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FÁBIO MOURÃO DUTRA

SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS: O DIREITO COMO


APOLOGIA DO ESTABELECIDO

TESE DE LÁUREA

Orientador(a): Professor Ari Marcelo Solon

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO - USP


2020
FÁBIO MOURÃO DUTRA

SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS: O DIREITO COMO


APOLOGIA DO ESTABELECIDO

Tese de láurea apresentada como exigência


para a conclusão do curso de Direito da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco – USP -, com
orientação do Professor Ari Marcelo Solon.

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO - USP


2020
AGRADECIMENTO

A Domitila de Castro Canto e Melo,


com admiração e respeito, minha sincera gratidão
“Alguns costumam renovar o sabor de uma
citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas
não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as
graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal
não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções
convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos,
incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas
têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço
inútil”.

Teoria do medalhão, Machado de Assis Commented [GM1]: Refer&encia


Autorizo a reprodução e a divulgação total e parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação da Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP

DUTRA, Fábio Mourão:


O senso comum teórico dos juristas: o direito como apologia do estabelecido / Fábio
Mourão Dutra; orientador: Professor Ari Marcelo Solon - São Paulo, 2020, fls. 39.
Tese de láurea (Bacharel– Graduação em Direito) – Faculdade de Direito do Largo São
Francisco - USP
Palavras-chave: 1. Filosofia do direito; 2. Senso comum teórico dos juristas; 3. Warat;
I. (Ari Marcelo Solon), orient. II. [Senso comum teórico dos juristas: o direito como
apologia do estabelecido.]
Nome: DUTRA, Fábio Mourão.
Título: Senso comum teórico dos juristas: o direito como apologia do
estabelecido

Tese de láurea apresentada como exigência para a conclusão


do curso de Direito da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco – USP.

Orientador: Professor Ari Marcelo Solon

Depósito em 2020. Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

Professor: ___________________________ Instituição: ________________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ________________________

Professor: ___________________________ Instituição: ________________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ________________________
RESUMO

O trabalho proposto consiste na análise do conceito de senso comum teórico dos


juristas na obra de Luiz Alberto Warat e para além dela, buscando suas origens em
diversos escritos da filosofia, da linguagem e da psicologia. Procura-se demonstrar o
direito como ciência, contextualizado historicamente e ciente de suas correlações de forças
sociais, em oposição ao direito como filosofia espontânea, viciado como ponto de
convergência de discursos semelhantes e alheio ao novo e à transformação – o que o
coloca em posição de mero legitimador sofista das estruturas de poder vigentes.

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Warat; Senso comum teórico dos juristas.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...............................................................................................................05
2. SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS E SEU TEMPO...................................10
3. SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS E SEU TEMPO...................................12
4. ORIGENS........................................................................................................................19
5. CONCLUSÃO.................................................................................................................34
6. BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................39
5

1. INTRODUÇÃO

Em um texto do final da vida, em 1900, Liev Tolstoi (Leão Tolstói em bom


português), define o que pra ele é o direito ocidental gerado pelas luzes liberais de Paris,
Londres e, até, Nova York. O imperativo cientificista liberal-positivista que tenta justificar
por meio da linguagem e de uma série de princípios o que, ao fim e ao cabo, são decisões
políticas e ordenamentos constitucionais oriundos de relações de poder - alguns dos quais,
inclusive, conseguiram a proeza de positivar constituições que permitiam a convivência da
escravidão com o liberalismo político – é descrito assim pelo grande romancista russo:

“Muitas constituições foram criadas - a começar pela inglesa e a


estadunidense, terminando com a japonesa e a turca - de modo a fazer com que as
pessoas acreditassem que todas as leis estabelecidas atendiam a desejos expressos
pelo povo. Mas a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles
supostamente mais livres - como a Inglaterra, os EUA, a França e outros - as leis
não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles
que detêm o poder. Portanto elas serão sempre, e em toda parte, aquelas que mais
vantagens possam trazer à classe dominante e aos poderosos. Em toda a parte e
sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que
algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da
liberdade e assassinato. Não há outro meio.
Nem poderia ser de outro modo, já que as leis são uma forma de
exigir que determinadas regras sejam cumpridas e de obrigar determinadas pessoas
a cumpri-las (ou seja, fazer o que outras pessoas querem que elas façam) e isso só
pode ser obtido com pancadas, com a perda da liberdade e com a morte. Se as leis
existem, é necessário que haja uma força capaz de fazer com que alguns seres se
submetam à vontade de outros e esta força é a violência. Não a violência simples,
que alguns homens usam contra seus semelhantes em momento de paixão, mas
uma violência organizada, usada por aqueles que têm o poder nas mãos para fazer
com que os outros obedeçam à sua vontade.
Assim, a essência da Legislação não está no Sujeito, no Objeto, no
Direito, na ideia do domínio da vontade coletiva do povo ou em qualquer outra
condição tão confusa e indefinida, mas sim no fato de que aqueles que controlam a
violência organizada dispõem de poderes para forçar os outros a obedecê-los,
fazendo aquilo que eles querem que seja feito.
Assim, uma definição exata e irrefutável para legislação, que pode
ser entendida por todos é esta: "As leis são regras feitas por pessoas que governam
por meio da violência organizada que, quando não acatamos, podem fazer com que
6

aqueles que se recusam a obedecê-las sofram pancadas, a perda da liberdade e até


mesmo a morte".1 (grifos nossos)

Com licença da enorme citação (que cortada perderia parte do sentido), fica a
reflexão sobre uma questão importantíssima, tantas vezes esquecida, acerca das discussões
jurídicas: por mais que o direito evolua como ciência ele advém sempre do poder, de
decisões e de arranjos no âmbito do poder. Direito é essencialmente humano. E, por óbvio,
direito é essencialmente político.
A palavra “óbvio” aqui não é banal. Esse óbvio nem sempre é observado. Para citar
a frase clichê de Nelson Rodrigues: “só os profetas enxergam o óbvio”.2 Luis Alberto
Warat, pois, foi um desses profetas. Ao fugir de sua formação positivista clássica,
kelseniano de carteirinha, e assumir uma postura crítica, ele submergiu no humanismo – a
ponto de chegar em conceitos como a carnavalização do direito3 e em livros como A
ciência jurídica e seus dois maridos4 – para alcançar o óbvio: não há que se falar em
direito sem política – e a inobservância dessa variável é o que tira o direito do caminho
científico, e não o contrário.
Expliquemos. O direito, na prática jurídica, tende a trazer uma série de tecnicismos
e cientificismos em seu bojo e os chama de “episteme”. Dessa forma, há uma ilusão de
aproximação de uma “verdade”, pois haveria um filtro científico que faria com que essas
questões pudessem ser tratadas de forma técnica e decididas, então, de forma imparcial e
científica. Balela. Na prática, o que ocorre é uma série de vozes convergentes para um
mesmo ponto, diferentes entre si mas nada divergentes, e que abarcam uma série de
malabarismos sofistas, questões morais, de classe – é mister lembrar que os atores da arena
jurídica têm posição social muito bem definida, mormente na América Latina -, enfim,
variáveis nada científicas que são ignoradas. Dessa forma, essa dita “episteme” não passa
de “doxa” justamente por, em seu filtro pseudocientífico ignorar a origem do direito no
poder, o direito sendo essencialmente político, e se julgar a-histórica portanto. Para tentar

1
TOLSTÓI, Leon. A Violência das Leis. In. Letralivre. Rio de Janeiro: Robson Achiamé, ano 8, nº39, 2004.
p.1
2
RODRIGUES, Nelson. A menina Sem Estrela. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.231
3
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Sergio
Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995.
4
WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Porto Alegre. EDUNISC, 2000
7

nomear essa salada toda, Warat sistematiza o conceito de senso comum teórico dos
juristas5, razão desta monografia.
O tema será trabalhado ao longo do texto e ficará menos obscuro, mas é importante
estabelecer algumas questões sobre o pensamento de Warat. Como dissemos, o autor em
questão tem formação juspositivista ortodoxa e não se furta a esses conceitos descritivos
fundamentais. Como no anedotário que põe Hans Kelsen na posição de Pôncio Pilatos, no
sentido de que o alemão lavasse as mãos sob o imperativo de que “eu não necessariamente
quero que o direito seja assim, mas é assim que ele existe no mundo”, Warat sabe que a
descrição sistêmica positivista é real e ocorre na prática – permitindo que mesmo regimes
autoritários operem sua ordem jurídica. E essa lógica, além de conceitos, permite que
Warat, filósofo do direito, jamais aceite um direito meramente metafísico, de modo que seu
pensamento é sim conceitual e principiológico, para usar o neologismo da moda, mas
sempre parte da práxis pra pensar e escreve para influir na prática.
Direito, resta claro, para fins desse trabalho ao menos, é ciência humana aplicada.
Buscaremos analisar aqui os limites em que é ciência, mas seguramente é humano e é
aplicado. Não há que se falar em ordenamento, jurisprudência, doutrina e conceitos de
justiça sem que haja o principal: agrupamentos humanos, Estado – ou sua superação -,
demandas, etc. e tal. Isso é fundamental para levar em conta o que falaremos aqui: sobre o
senso comum teórico dos juristas, sobre as ditas “verdades”, sobre a importância de
entender o direito como histórico, sobre Durkheim e as possibilidades de aplicar o método
científico em questões humanas. Sem pousar o olhar na prática jurídica e em seus vícios
toda essa conceituação seria tola.
Por lealdade ao escrito, que critica fortemente a descontextualização histórica e
social da produção jurídica, começar-se-á pela contextualização do conceito senso comum
teórico dos juristas ao tempo, ao local e às circunstâncias em que foi cunhado e
desenvolvido e amadurecido pelo Professor Luiz Alberto Warat.
Senso comum teórico dos juristas apareceu pela primeira vez no livro Mitos e
teorias na interpretação da lei6, de 1979, mas foi um conceito bastante revisitado e
amadurecido por Warat, que dedicou artigos somente para essa questão – O saber crítico e
o senso comum teórico dos juristas, por exemplo – e capítulos inteiros de seu compilado

5
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In. Sequência. Estudos jurídicos e
políticos, n.5. Florianópolis. Editora da UFSC, 1982. p.48
6
WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre. Editora Síntese, 1979
8

preparado aos ingressantes dos cursos de direito em que lecionava no Rio Grande do Sul,
Introdução geral ao direito.7 8 9
As origens do conceito devem ser analisadas em seguida, destacando-se: Niestzche
e seus ataques à existência de uma “verdade”10; Durkheim e seu método epistemológico
em oposição a uma sociologia espontânea; Althüsser, que toca nos vícios da ingenuidade
da filosofia espontânea11; e Freud e seu conceito de superego.
Começaremos pela contextualização histórica do conceito de senso comum teórico
dos juristas no capítulo Senso comum teórico dos juristas e seu tempo. É importante
entender o quanto a atmosfera política da América Latina da época tem a ver com a
conceituação. Se dissemos aqui que a lógica política e as relações de poder têm forte
ascendência sobre a práxis jurídica – inclusa a doutrina -, não seria diferente aqui no
tocante às ideias que pretendemos analisar.
Em seguida, achou-se por bem conceituar devidamente o termo que Warat cunhou
para sintetizar seu pensamento, de modo que um capítulo Senso comum teórico dos
juristas, o conceito se fez necessário. É um capítulo descritivo que busca mesmo explicitar
as ideias contidas no texto de 198212 em que o pensador reúne diversos elementos
presentes em outras obras, suas e de outros autores, para conceituar o senso comum teórico
dos juristas de fato como algo sistematizado.
Por último, assim como a importância da contextualização histórica entendeu-se
relevante buscar as origens por trás do pensamento de Warat. Há, claro, muito mais coisa e
provavelmente ignorou-se algum pensador ou alguma obra basilar, mas para fins do
entendimento do que é senso comum teórico dos juristas e de seu papel como elemento
fundamental da crítica waratiana, acredita-se que foi o suficiente. Na conclusão, há alguns
outros textos que se julgou interessantes para ilustrar a questão e a exposição do
entendimento deste autor sobre o tema estudado.

7
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito I. Interpretação da lei. Temas para uma
reformulação. Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995
8
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Sergio
Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995
9
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O direito não estudado pela teoria jurídica
moderna. Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995
10
NIETZSCHE. Friederich Wilheim. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Tradução:
Fernando de Moraes Barros. Hedra. São Paulo, 2007
11
ALTHÜSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Presença, 1976.
12
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In. Sequência. Estudos jurídicos
e políticos, n.5. Florianópolis. Editora da UFSC, 1982. p.49
9

Cabe aqui, antes de nos atermos ao tema propriamente dito, uma história ocorrida
recentemente numa audiência de custódia na cidade de São Paulo, narrada por um defensor
público que preferiu não ser nomeado. Na sala de audiência está o cidadão detido,
algemado e toureado por um policial militar, uma juíza, um membro do parquet e o
defensor indiscreto. Algo embriagado, o preso responde com evasivas, não presta atenção,
bagunça, enfim, instiga a ira da juíza – talvez por saber que iria para o cárcere
independentemente do que fizesse. Diante do quadro a magistrada grita indignada: “O
senhor sabe quem manda aqui?”. Eis que o infeliz responde: “Sei: o policial armado ao
meu lado”. É sobre isso o trabalho a seguir.
10

2. SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS E SEU TEMPO

É interessante entender em que momento histórico estamos. Esqueçamos o


indescritível ano de 2020. Para fins desse trabalho queremos entender as origens do senso
comum teórico dos juristas. A primeira vez que o conceito é enunciado pelo professor
argentino radicado no Brasil Luis Alberto Warat, num texto de 1979, Mitos e teorias na
interpretação da lei13, o Brasil e a América Latina passavam por muitas aflições. O Cone
Sul era todo governado por ditaduras, a recente industrialização – dos primeiros países do
mundo a se industrializarem de forma tardia – dava mostras de desaceleração e retrocesso
na região, a crise do segundo choque do petróleo (Revolução iraniana) tinha acabado de
chegar e ditaria as bases da próxima década, hoje chamada “perdida” pelos historiadores14.
Tínhamos uma sociedade em frangalhos. Mas havia algo que não estava estilhaçado e, ao
contrário, vaidosamente se colocava como ascendente: o direito.
É necessário retroceder. O Brasil havia sido tomado de assalto por um golpe de
Estado civil-militar em 196415. Em 1968 houve o recrudescimento do regime, com a
suspensão até do remédio jurídico ancestral do habeas corpus e o patrocínio da
organização de um sistema estatal de repressão política extremamente eficiente para a
carnificina16. O próprio Warat foi vítima disso, tendo ficado um tempo refugiado num
apartamento em que outra perseguida, posteriormente presidenta da república aqui no
Brasil, esteve, Dilma Rousseff. A orientanda e primeira esposa de Warat, Rosa Maria
Cardoso, inclusive, foi advogada de Rousseff quando de sua prisão política – e
posteriormente nomeada pela mandatária como uma das integrantes da Comissão da
Verdade instaurada para investigar os crimes da ditadura militar lá em 2011.
O clima pesado, o odor de sangue e o sufocamento da virada dos anos 1960 pros
1970 já tinha passado por aqui - e já melhorado um pouco mesmo na Argentina natal de
Warat -, e surgia o clima animado da distensão. Mas havia algo que não andava bem e que,
parece, ao menos ao pobre autor do presente escrito, foi notado por Warat: a ordem
jurídica. É inacreditável a jabuticaba, mas o Brasil – e a partir daqui será abandonada a
menção à Argentina por falta de conhecimento sobre a questão - conseguiu manter uma

13
WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre. Editora Síntese, 1979
14
GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. Intrínseca, 2016
15
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Intrínseca, 2016
16
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. Intrínseca, 2016
11

ditadura extremamente arbitrária sob um véu liberal. Tivemos uma ditadura militar
constitucional. Se não foi a primeira, foi uma digna de nota. Com requintes, aliás, quase de
crueldade na conceituação epistemológica sobre o funcionamento dos atos institucionais,
decretos presidenciais acima da constituição, como se houvesse justificação jurídica para
isso. Nem citemos os grandes juristas que engenharam a empreitada, por respeito à
tradição desta Casa.
Além disso, é bom lembrar, não tivemos por aqui justiça de transição. Da mesma
forma que tivemos uma ditadura que fechou o parlamento por largo período mas seguiu
constitucional e com uma Suprema Corte em pleno funcionamento, apenas com o cuidado
de aposentar alguns ministros como Evandro Lins e Silva, no momento de abertura jamais
foi questionado o Judiciário nacional e não houve nenhuma reforma, nenhuma cassação,
nenhuma mudança dessas estruturas. Isso explica bastante como o autoritarismo judicial
chegou até os dias atuais, aliás. Quanto a isso, vale a menção honrosa a Adaucto Lúcio
Cardoso, ministro do STF colocado na corte no âmbito do golpe de 1964 ao lado de
Aliomar Baleeiro, ambos ligados à UDN conservadora de Carlos Lacerda. Durante mais
um, dos tantos, julgamento absurdo em que o plenário da Suprema Corte chancelava
juridicamente o regime autoritário no começo dos anos 1970, anos de chumbo, o ministro
Lúcio Cardoso se retirou da sessão17 – não sem antes atirar sua toga na mesa antes de sair.
Mas para fins desse trabalho, o que resta claro é que Warat, ali em fins dos anos
1970 – e depois ao aprofundar o conceito anos 1980 afora – percebeu claramente o quanto
o arbítrio e o conchavo político, típico de regimes autoritários provincianos, seguiam a
permear o direito, ainda que vaidosamente a gritar teorias e a entender a si mesmo como
científico. A percepção da manutenção dessa lógica é que embasa o conceito de “senso
comum teórico dos juristas”. E a conclusão deste pobre autor aqui de que na triste América
Latina o conceito nunca foi tão descritivo do que ocorre na práxis jurídica já no último ano
da segunda década do século XXI, uma tragédia.

17
FERREIRA MENDES, Gilmar. A solitária voz de Adaucto Lúcio Cardoso e o processo constitucional
brasileiro. In. https://www.conjur.com.br/2014-nov-08/observatorio-constitucional-solitaria-voz-adaucto-
lucio-cardoso-processo-constitucional-brasileiro
12

3. SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS, O CONCEITO

O senso comum teórico dos juristas é um conceito talhado pelo professor Luis
Alberto Warat para dar conta de alguns problemas graves que inundam a prática jurídica e,
nada residualmente, contaminam a doutrina. O ponto ilusório para o qual aponta uma
diversidade polifônica tem consequências reais sérias e fundamentais para se pensar
criticamente o direito, ainda mais o direito em países latino-americanos com suas questões
históricas, sociais e políticas tão complicadas – e sempre latentes na práxis jurídica.
Para começar precisamos pensar o que é o conhecimento crítico do direito, nos
ensina el maestro argentino. Hoje, como nos anos 1980 quando esse conceito foi pensado
(avançamos pouco, muito pouco), não se pode dizer que há uma escola crítica do direito
entre nós. Ainda que marxistas e outras correntes tenham uma grande identificação entre
seus autores, isso é incipiente ainda. O que há é uma série de autores e de trabalhos que se
propõem a revisar valores epistemológicos do direito posto, ou, nas palavras de Warat,
“um revisionismo das verdades jurídicas sagradas”. A questão das verdades sagradas ou da
dessacralização das relações sociais operadas a partir da superação do feudalismo18 será
tratada oportunamente, mas não é disso que se trata essa questão específica.
Pensamos aqui que, por conta de como equivalente de escola crítica termos
somente um emaranhado de escritos contra o estabelecido de forma quase moral e
definitivamente acachapante, falta um sistema. Há um conjunto de vozes dissidentes que
critica “os limites, os silêncios e as funções políticas da epistemologia jurídica oficial”. O
que é tratado como “verdade” de forma oficial tem sempre um sentido político. Dado que
Warat sempre pensava no direito a partir e para a prática, e era dado a misturar direito e
literatura, surge aqui a liberdade poética para citar Ariano Suassuna e seu conceito de dois
Brasis: o Brasil real e o Brasil oficial, cunhado a partir de Machado de Assis19. É para esse
Brasil oficial que essas vozes apontam seu indicador de forma autônoma e coletiva, sem
sistema, mas num arquipélago prenhe de ilhas críticas.

18
BADIOU, Alain. O ser e o evento. J. Zahar, 1996
19
SUASSUNA, Ariano. Uma filha do Brasil real. Folha de São Paulo. São Paulo, 13 de junho de 2000
13

Perceba que ao partir da práxis o autor deixa claríssimo que não é para sobrepor a
razão à experiência, tal qual positivistas, nem tampouco para valorar a experiência como
superior à razão, pede-se licença aos teóricos do “lugar de fala”, mas para demonstrar, abre
aspas, “o primado da política sobre ambas”. É forte isso. A prática jurídica, inclua-se a
doutrina dominante, procura, por meio de sofismos, dizer que resolveu as questões por
meio da ciência, de um filtro epistemológico que põe a hermenêutica pura, a análise técnica
de textos jurídicos, para decidir da melhor forma as diversas demandas. Ao passo que os
abusadores dos princípios, para relembrar a crítica de Lênio Streck, autor pessoalmente
próximo, aliás, do autor em questão, partem da experiência e do senso comum popular,
para fazer valer na prática tutelas não amparadas pelo ordenamento. Warat demonstra que
ambas as abordagens podem sim existir, ser aceitas e persistir. A depender da política. A
política se impõe sobre as duas abordagens.
Para citar dois acontecimentos jurídicos recentes, rapidamente, para pincelar um
pouco de noticiário e fazer jus ao entendimento de Warat de que o direito é sempre e é
também práxis: na Ação Penal 470, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal
Federal, condenou alguns dos réus pela famosa teoria do domínio do fato, de Claus Roxin,
que foi cunhada para tentar condenar penalmente oficiais nazistas processados sem que
houvesse provas materiais suficientes sobre sua atuação nos crimes contra a humanidade,
de forma que a individualização da conduta se fizesse quase impossível. Para além de
irmos a fundo na crítica da decisão ou da teoria, e de se era uma teoria que fosse cunhada
para estabelecer a qualidade jurídica de participe ao réu e tornou-se uma maneira de
acusar-se como mandante o réu sem provas materiais cabais, fato é que essa teoria,
totalmente racional e doutrinária, prevaleceu e teve resultado na prática: dezenas de presos.
O outro acontecimento, mais recente, é a Operação Lava Jato. Novamente, para
além de suas questões ideológicas nos interessa o primado da experiência nesse caso. Sob a
bandeira de um combate à roubalheira generalizada estabeleceu-se uma jurisdição
absoluta, competência universal, chancelada por diversos tribunais superiores, para
autoridades de Curitiba. Uma investigação sobre a maior petroleira brasileira feita numa
cidade que não produz petróleo – é desconhecido se há sequer escritórios da estatal na
capital paranaense – que culminou com a condenação de um ex-presidente por um imóvel
na cidade paulista do Guarujá, algo que foge muito dos ensinamentos acerca do juiz natural
que se aprende nas escolas jurídicas do mundo ocidental, ao menos.
14

Tais exemplos, meramente ilustrativos, provam o que Warat queria elucidar. Na


primeira história, uma teoria científica alemã – a razão, ah!, a razão – é a base para uma
decisão que na jurisprudência era, no mínimo, grande novidade. Em outra, há uma
avocação de jurisdição por autoridades de certa cidade o que, ao menos em matéria penal,
também foi mudança graúda no entendimento jurisprudencial. Por trás de ambas havia um
clima político e social gravíssimo a permitir tais guinadas. Voltemos a Warat: “trata-se do
primado da política sobre a experiência e sobre a razão”, não sejamos ingênuos.
Chegamos, assim, no conceito de “enclausuramento lógico referencial dos
discursos produzidos em nome da ciência”20. No próprio nome podemos depreender um
princípio basilar do que pretendemos analisar: faz-se de ciência o que é discurso. Dessa
forma, escamoteia-se a forte verve política detrás. Warat assim estabelece o que chama de
passo sistêmico decisivo para vermos além:

- “Substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de


significações;
- Introdução da temática do poder como explicação do poder social das
significações proclamadas científicas”.21

A perda da ingenuidade também é fundamental. O tal controle lógico tantas vezes


proclamado é disfarce. Disfarce da dimensão arbitrária do poder como composição de
verdades jurídicas. Em linguagem do autor: “o lógico-conceitual invocado em nome da
ordem político-social”.22 Assim, é necessário pôr a crítica em cena e produzir uma
“sociologia do conhecimento prático do direito”23. Sociologia no sentido durkheimiano, e
não ensaístico, que esteja claro.
Seguimos, logicamente, pois, para a análise discursiva do direito, que o autor
denomina “semiologia do poder”. Aqui se impõe conceituar as duas palavras em oposição,
“doxa” e “episteme”. O autor vai dizer que há que se rejeitar a autoproclamada
superioridade da dita ciência em direito (reduzida a “episteme”) mas tampouco aceitar a
mera opinião comum, moral, como guia (reduzida a “doxa”). Para, assim, chegar no
raciocínio: “Na prática jurídica, de fato, nada disso é rejeitado em verdade e temos um

20
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In. Sequência. Estudos jurídicos
e políticos, n.5. Florianópolis. Editora da UFSC, 1982. p.49
21
Idem 15
22
Idem 15
23
Idem 15
15

acúmulo de opiniões valorativas e teóricas que se manifestam de modo latente no discurso


aparentemente controlado pela ‘episteme’”24. Está claro, mas vamos aos conceitos:
- “Doxa” – palavra que vai dar em “dogma”, originalmente quer dizer “aquilo que
aparece”, e em Warat, para fins desse trabalho, tem o sentido de opiniões comuns, enfim,
aquilo que pensa o afegão médio;
- “Episteme” – palavra que define o conhecimento científico, pensado de forma
sistemática e que se opõe à irreflexão dogmática.
Posto isso, inclusive as conceituações algo desnecessárias, no conceito de “senso
comum teórico dos juristas” o que temos é uma “episteme” que se converte em “doxa”.
Nesse sentido, o autor explica que “a prática jurídica é processada como lugar fora do
poder” e, dessa forma, “o discurso kelseniano virou senso comum e o operador do direito
não é tratado como alguém, que opera relações sociais, mas como um operador técnico de
textos legais”25. Dessa forma, fica claro que há de haver uma epistemologia das
significações, ciência humana e, consequentemente, política, que o direito é e deve ser. Em
oposição a essa epistemologia de conceitos, a-histórica e ignorante do poder, que se
converte em “doxa” sem perceber. Portanto, o “senso comum teórico dos juristas” é a
grande “voz em off”26 do direito que leva a uma pseudo-racionalidade nada consistente,
mas que impõe uma uniformidade na práxis jurídica.
Os hábitos semiológicos do dia-a-dia jurídico, morada do “senso comum teórico
dos juristas”, conforme o autor:

“- A mobilidade dos conceitos, sempre tidos como coisa-em-si e


despregados das teorias que os produziram;
- Arsenal de hipóteses vagas e contraditórias – ainda mais se despregadas
das teorias originárias, vide acima;
- Opiniões vulgares;
- Premissas vinculadas a valores morais e nunca explicitadas;
- Metáforas e representações de mundo.”27

Para exemplificar a mobilidade de conceitos, vale lembrar do célebre debate


emulado pelo texto Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz.28 Ali, num embate

24
Idem 15
25
Idem 15
26
Idem 15
27
Idem 15
28
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo. Editora 34, 1977
16

sociológico e político, Schwarz demonstra, valendo-se de Machado de Assis como


mcguffin – e também argumento -, como nós aqui da colônia somos capazes de ficcionar a
vida a ponto de a elite brasileira da segunda metade do século XIX, encantada com os
ingleses, passar os dias a discutir liberalismo num país que àquela altura sequer tinha o
mínimo para ser liberal: mão de obra livre. Uma oligarquia escravocrata era capaz de
discutir a sério o liberalismo como modernidade. Raymundo Faoro, posteriormente, em sua
obra Os donos do poder, ensaística e nada rigorosa metodologicamente tal qual este pobre
escrito, chamaria isso de cultura ornamental. E Warat, que nem se sabe se tenha lido tais
autores, empenha a mesma cruzada na arena jurídica. Esse abraço cego a grandes conceitos
cunhados sabe-se-lá-por-quem-quando-ou-onde, por mais belos que sejam, de nada valem
ou podem ser tratados como científicos se despregados de sua teoria fundadora.
Ciência não é, nem pode ser, a mera uniformidade de pontos de vista. Émile
Durkheim já combateu isso na sociologia - e o direito, de certa forma sociologia aplicada,
tem o dever de não regredir. O sistema de verdades não pode ser desvinculado de
conteúdos para se vincular a processos legitimadores, ensina Warat. Um exemplo clássico
de crença num direito científico-conceitual que ignora a realidade e o caráter político da
vida, para nem falar apenas de direito, é a lógica dos fanáticos kelsenianos que creem num
“Estado imaculado”29, nas palavras do autor, que não seria capaz de agir contra a lei ou
contra decisões judiciais, por exemplo, sendo engessado a cumprir as normas positivas. E
que é o Estado na prática? Para além de eventuais autoritarismos de autoridades, policiais
ou não, civilmente o Estado age bastante distante dessa sacralidade, basta necessitar
demandá-lo para notar tal dificuldade.
Fica claro, então, que o senso comum teórico dos juristas vale-se de uma
“apropriação institucional dos conceitos” – universidade, tribunais, legislativo, parquet,
está todo mundo no bolo – e “ajusta versões das teorias às crenças”30. Essa
institucionalização tem uma razão de ser: legitimar a salada. Nos dizeres de Warat: [isso
permite] “a fusão de Kelsen com os jusnaturalistas misturado com princípios liberais. E
Hegel de vez em quando”.31 É assim que “sujeitos sociais viram objeto de poder”32.
Passada a explicação de como as coisas se põem na prática, passemos ao que o
autor reputa ser uma análise epistemológica séria e devida:

29
WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre. Sergio Antonio Fabris Editor, 1995
30
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In. Sequência. Estudos jurídicos
e políticos, n.5. Florianópolis. Editora da UFSC, 1982
31
Idem 24
32
Idem 24
17

“- Reflexão entre sistema de conotação e de práxis jurídica;


- Preocupação com a explicitação das funções sociais do saber jurídico;
- Substituir-se o ‘egocentrismo textual’ pelo princípio da ‘heteronímia
significativa’ – denúncia metalinguística dos discursos em busca da lógica”.33

O que resta claro é que “as funções sociais do saber jurídico devem ser
explicitadas”. De novo: partir da realidade pra pensar e pensar pra alterar a realidade. Vale
aqui, vale para Schwarz ou Faoro, vale para a ideia de universidade do terceiro mundo
pensada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira34. Warat bate forte: “O saber provoca uma
opacidade das relações sociais e afasta os juristas da compreensão do papel do direito e seu
conhecimento na sociedade”.35
Por fim, para definir de vez o que é senso comum teórico dos juristas, como ele
opera na prática e como deve ser rechaçado para pensar o direito, o autor define as regiões
em que o conceito se apresenta. “Regiões que influem consciente ou inconscientemente na
formação do espírito jurídico”:

“- Região das crenças ideológicas – que independentemente da vontade do


cientista influi em seu pensar;
- Região das opiniões éticas – uma identificação falaciosa entre razão e
ética;
- Região das crenças epistemológicas – evidências da prática, hábitos
intelectuais, interpretações vulgarizantes por desvinculação da matriz teórica,
metáforas, crença cega na eficiência do método;
- Região dos conhecimentos vulgares – traduzem necessidade em ideias, o
saber do homem comum que busca utilidade no saber e gera ilusão de uma
realidade por intuição”.36

Fica claro tudo aquilo que deveria estar fora do direito, entendido como científico,
mas em verdade está dentro, escondido por um suposto filtro epistemológico que em vez
de gerar “verdade” científica gera senso comum teórico dos juristas. A cada ministro do
Supremo Tribunal Federal que aparece na televisão ao vivo nas sessões plenárias – no
famigerado Direto do plenário, programa que tantas discussões suscita – a justificar uma

33
Idem 24
34
Ver RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro. Paz e terra, 1978
35
Idem 24
36
Idem 24
18

decisão contra legem em matéria penal, em desfavor do réu, baseado em frases clichê
como “a sociedade não aguenta mais” temos todas essas regiões descritas por Warat. E
temos tudo, menos ciência surgindo aí. E ainda mais patente fica a dinâmica do poder. Tal
decisão arbitrária ocorre por um simples motivo: o magistrado pode decidir assim e o
Estado tem os mecanismos de fazer valer na prática o que foi decidido. Pura “doxa”
travestida de “episteme” enfiada goela abaixo por meio do poder.
É sabido que a lei pretende justificar-se por sua função de garantia contra as
violências ilegítimas ressaltando a imagem de um reinado abstrato, neutro, universal. Desta
maneira os saberes comuns do Direito, o senso comum teórico dos juristas, deslocam para
o território das abstrações perfeitas as necessidades negadas pelas relações de dominação.
Posto assim, o direito é entrave à própria noção de liberdade e de democracia,
sendo o superego de uma sociedade que se torna imóvel por uma culpabilidade voltada a
controlar antecipadamente o tempo e o espaço social37. Deve-se, portanto, devolver a
dimensão simbólica ao Direito, devolvendo-o a seu contexto histórico para que ele possa
ser ciência e instrumento, não discurso ideológico e legitimação de um poder opressor.

37
WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p.
26.
19

4. ORIGENS

Senso comum teórico dos juristas é um conceito que discute direito na prática,
direito e linguagem, direito e justiça, mas não é um conceito exatamente novo – como, de
resto, costuma ocorrer com novações em matérias de ciências humanas. O senso comum
teórico dos juristas nasce da observação da prática e da aplicação de diversos conceitos da
filosofia, da sociologia e do direito que o erudito professor Luis Alberto Warat conseguiu
vislumbrar para identificar vícios e enunciar uma crítica. O maior mérito da obra é, sem
dúvida, a capacidade de associação e de sistematização de um problema – e de
possibilidades para sua superação – patente no direito, ainda mais quando entendido fora
da dinâmica do poder. Assim, busca-se aqui tratar de alguns dos autores que embasaram tal
entendimento e a explicação, tanto quanto possível, desses conceitos fundadores.
Antes de mais nada, cabe a nomeação do filósofo marxista francês Louis Pierre
Althüsser, influência sempre citada por Warat, e que já estabelecia muito bem o senso
comum teórico (não só o dos juristas) como instrumento de reforço das ideologias
dominantes38. Para nem chegar em Lênin e sua crítica ao sistema eleitoral como elemento
fantasioso a disfarçar o poder da burguesia como vontade popular nas democracias liberais
por meio de uma falsa simetria que simula equidade, paremos em Althüsser para sermos
fiéis à obra em questão.
Outro autor que tratou de questões importantes sobre o estabelecimento de falsas
afirmações, ou afirmações pseudocientíficas que servem de reforço a estruturas de poder
como se fossem naturais ou necessárias – ou até justas – foi Friedrich Nietzche. Em seu
livro A verdade e a mentira no sentido extra-moral39, o alemão questiona bastante a noção
de verdade, como essa das ditas verdades jurídicas questionadas aqui, e mostra o quanto de
sombra e senso comum se esconde atrás dessa sistematização positivista que serve ao
poder instituído sem se assumir dessa forma.
Também Platão, em suas críticas à democracia grega e, notadamente, em seu texto
descritivo de um diálogo socrático – Hípias menor, ou sobre a mentira40 – questiona
bastante aquilo que tem aparência de verdade mas não necessariamente o é, mas é o que se

38
ALTHÜSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Presença, 1976.
39
NIETZCHE. Friederich Wilhein. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Tradução: Fernando
de Moraes Barros. Hedra. São Paulo, 2007
40
Platão. Sobre a mentira (hípias menor) precedido de Sobre a inspiração poética (Íon). Tradução: André
Malta. Porto Alegre. L&PM, 2020
20

apresenta, tal qual as sombras da caverna famosa do mito que ele analisou longamente em
outra obra.
Fundamental também se faz a obra de Émile Durkheim, talvez o mais positivista
entre os pensadores que influenciaram essa fase da vida de Warat, sociólogo francês que
combateu o ensaísmo das ciências sociais da virada do século XIX para o século XX para
permitir o abraço dessas disciplinas ao nascente método científico. A partir do seus
conceitos sobre o método científico e sobre a sociologia é possível perceber a confusão que
se faz na práxis jurídica entre “doxa e “episteme”, como já abordamos, e o quanto o que se
traveste de ciência e de estabelecimentos de “verdades” jurídicas é meramente a profunda
expressão do senso comum teórico dos juristas.
Tampouco poderemos deixar de citar Hans Kelsen e sua Teoria pura do direito41
para buscar as raízes kantianas e positivistas dos procedimentos que iremos criticar, bem
como o professor Tércio Sampaio Ferraz, em homenagem a esta casa do Largo São
Francisco, e seu Introdução ao estudo do direito42 lido por todos os ingressantes desta
faculdade há algumas décadas. Seus conceitos, de Sampaio Ferraz, de “zetética” e de
“dogmática” são bastante elucidativos para explicar melhor a dicotomia “doxa” e
“episteme” a que se propõe esse trabalho. A seguir, exporemos um pouco cada uma dessas
origens tanto quanto possível diante da limitação de espaço e de conhecimento do autor
deste presente escrito.

4.1. Friedrich Nietzsche

O alemão abre seu Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral com


grandiloquência: a invenção do conhecimento teria sido o “minuto mais audacioso e
hipócrita da história universal”43. Para o autor, a dissimulação é arma dos homens,
mormente os homens fracos, e a única razão de não mentirmos são as consequências
sociais. O homem não nega o engano, ele apenas rechaça as consequências ruins desse
engano. Assim, sobre a verdade, há crueza: “Se não espera contentar-se com a verdade sob

41
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. Martins Fontes, 2006
42
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São
Paulo. Atlas, 2008
43
NIETZCHE. Friederich Wilhein. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Tradução: Fernando
de Moraes Barros. Hedra. São Paulo, 2007
21

a forma de tautologia, isto é, com conchas vazias, então irá permutar eternamente ilusões
por verdades”44. Percebamos o quanto isso se assemelha ao conceito de senso comum
teórico dos juristas: que é o dito filtro epistemológico que, ao menos em hipótese, a práxis
jurídica usa para ser científico e longe das paixões populares ou políticas, senão uma
grande permuta de ilusões por verdades?
A coisa em si, a physis de Aristóteles, “a pura verdade sem consequências”45, diz
Nietzsche, se torna para o criador da linguagem algo totalmente inapreensível e pelo qual
“nem de longe vale esforçar-se”46. A honestidade é qualitas occulta47, algo que não
podemos reconhecer mas colocamos como pressuposto - quando em verdade os homens só
não operam o engano por conta das consequências sociais, não por conta de valores
imaginados que supostamente têm talhados em seu espírito. Dessa forma, as ditas verdades
não passam de ilusões, como um dinheiro antigo que hoje não vale mais nada, meras
“metáforas desgastadas e sem força sensível”48 – muito semelhante à ideia dos conceitos
jurídicos rígidos, supostamente a-históricos, que guiam a prática do direito como diógenes
cegos.
A verdade, então, não passa de mentira coletiva. De convergência polifônica para
um centro ilusório. “O homem é gênio da construção e ergue sobre fundações instáveis”49
é a metáfora. A linguagem, portanto, é que constrói os conceitos – o desdobramento disso,
sacralizado, será a ciência – e não uma suposta questão natural ou mística oriunda de uma
grande qualidade divina dos homens bondosos.

4.2. Platão

Platão não gostava da democracia grega por motivos distantes mas semelhantes à
crítica que aqui se faz do senso comum teórico dos juristas ou mesmo dos teóricos do

44
Idem 37
45
Idem 37
46
Idem 37
47
Idem 37
48
Idem 37
49
Idem 37
22

poder – e mesmo de escritores mais engajados do século XX, como Lênin -, por entender
que a espuma discursiva que se produz (ele criticava os sofistas) gera aparência de verdade
no que é mero discurso. “A democracia é um governo de inaptos e ineptos” é frase que se
atribui ao grande filósofo clássico.
Não será aprofundada tal crítica platônica à democracia por não ser o objetivo deste
trabalho e também por inépcia e inaptidão deste autor, claro, mas o conceito de verdade e
de mentira, ou melhor, de mentirosos, no diálogo entre Sócrates e Hípias será suficiente
para fins deste trabalho.

4.3. Louis Pierre Althüsser

Althüsser, filósofo marxista francês, em diversos escritos já tinha deixado claro o


quanto o senso comum – que no fim das contas advém do utilitarismo do pensamento, uma
ideologia da necessidade que põe de lado o pensamento sistemático – é pai do senso
comum teórico, já que há uma apropriação de termos, métodos e ditas verdades teóricas
pelo acontecimento do utilitarismo do senso comum. Dessa forma, fica patente que a
linguagem, e os malabarismos feitos em seu manejo, e o poder estabelecido precedem
muitas vezes a teoria – e o que parece ciência é mero axioma dogmático.
Em seu Filosofia e filosofia espontânea para cientistas50, ao analisar a obra de
Jacques Monod, Althüsser enuncia alguns achados para fins desse trabalho. Monod:
“Ainda hoje se confunde muitas vezes a ética do conhecimento científico com o próprio
método científico. Mas o método é uma epistemologia normativa, não uma ética. O método
diz-nos que procuremos. Mas quem manda procurar, e para isso adaptar o método, com a
ascese que ele implica?”51. Althüsser, de um ponto de vista filosófico, tal qual Warat, de
um ponto de vista jurídico, deixa claro que é o poder quem manda procurar. Dessa forma,
para além do método em tese matematicamente exato, há a dinâmica do poder por trás da
existência da investigação científica. O poder precede tal lógica.
Para falar do senso comum, Althüsser estabelece a ideia de concepção de mundo,
C.D.M, a morada das ideologias práticas, as que buscam utilidade nos enunciados, e
também percebe o problema da salvação. Há um conteúdo de matiz extremamente político

50
ALTHÜSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Presença, 1976.
51
Idem 44
23

nisso. Para Monod, há uma alienação do homem moderno em relação à ciência. Althüsser
entende diferente: o homem é que estabelece um sistema de valores cujas bases estão
arruinadas. Tal qual a questão religiosa medieval, a modernidade coloca o imperativo da
salvação nas costas do conhecimento sistematizado. “A ciência é a base da história
moderna”52. Nesse sentido, toda concepção de mundo está relacionada a certa política que,
tanto quanto a força que tiver, criará as bases para travesti-la de “verdade” científica.
Althüsser deixa claro seu pensamento sobre as origens da questão: “Específicos da
espécie humana são a linguagem e o conhecimento científico”53, é isso que nos diferencia
como espécie – e é isso que é instrumentalizado pelo poder para chamar verdade o que, em
última análise, é mera expressão de definições no âmbito do poder sob a forma bonita de
algo naturalmente determinado e quantificado pela ciência.
“A história da humanidade não é constituída exclusivamente por aquilo que se
passa na ordem do conhecimento científico. Existe assim a ordem da práxis, do poder
material, das paixões religiosas, morais, políticas, etc.”54. Resta claro que, falando sobre
um leque mais aberto de possibilidades sociais, filósofo que era, Althüsser chancela a
opinião jurídica de Warat de que a pseudoepistemologia avocada pelos operadores do
direito, como se intérpretes de textos surdos-mudos fossem e a realidade não existisse,
esconde uma questão latente que envolve todas as relações jurídicas: a dinâmica do poder.
A política, pois.

4.4. Émile Durheim

Na introdução de seu Tristes trópicos55, Claude Lévi-Strauss conta de seu trabalho


antropológico com tribos brasileiras e critica o que ele costumava ver nas bibliotecas
parisienses antes de vir ao Brasil: livros de viagem, moda numa época de comunicação
difícil em que a fotografia era novidade, costumavam mostrar tribos ditas incomunicáveis

52
Idem 44
53
Idem 44
54
Idem 44
55
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução: Rosa Freire Aguiar. Companhia das Letras, 1996
24

– mas nas quais sempre vazavam latas de industrializados ao fundo de imagens ilustrativas
– combinados com textos ensaísticos sobre o novo mundo. Sociologia espontânea com
requintes imagéticos. O contrário do que Lévi-Strauss pretendia para seu estruturalismo –
que só seria possível a partir da teoria de seu predecessor Émile Durkheim.
Durkheim, para fins deste escrito ao menos, é um positivista suave. É fato que se
ateve ao método científico para entender em que medida poderia arrancar dessa
racionalidade elementos para que as ciências humanas, mormente a sociologia, fugissem
da armadilha ensaística. Desse ponto de vista ele pode ser visto como um pai da sociologia
moderna, pela adição dessa racionalidade, e, por tabela, das ciências jurídicas modernas –
até por passarem a se chamarem de ciências -, dado que direito é, algo sempre lembrado no
presente escrito, ciência social aplicada. Durkheim, em última análise, é o responsável pela
“institucionalização da sociologia como ciência autônoma”. Saravá.
A crítica em Durkheim nasce da observação da existência da construção de uma
forma idealizada de sociedade para embasar análises, de forma que há mistura grossa de
julgamentos de valor com fatos. Entretanto, não há que ver nesse pensamento uma rigidez
fria, como se, extirpado o julgamento de valor e posto o método científico, tivéssemos
chegado ao oásis. Há muita crítica ao liberalismo do positivismo, como se a vontade dos
homens explicasse o mundo. Há a refutação a Comte sobre ser possível a “explicação de
fenômenos sociais por meio de objetivos buscados pelos indivíduos”56.
O entendimento de Durkheim de que é possível aplicar o método científico, das
ciências naturais, às ciências humanas e sociais advém de uma antevisão: a realidade social
também é uma realidade natural. Tal qual a verdade em Nietzsche, não há uma qualidade
metafísica que faz com que os homens ajam de certa maneira, mas há um ethos coletivo – e
as possibilidades de o indivíduo rebelde ser tachado de pária – que se impõe. É entender
isso, que perpassa pela lógica de entender como se impõe o poder, é que interessa.
Os fatos sociais, em Durkheim, são entendidos como coisas. São objeto possível da
ciência, e os métodos da ciência natural, porque o fato social tem algo de natural, tem
regras e padrões, e daí o interesse na observação. Quando acaba por virar objeto da ciência,
escreve, é porque já está representado no espírito – provavelmente por conceitos formados
de forma grosseira -: “A reflexão é anterior à ciência”57. Ao enunciar essas regras do
método científico, Durkheim estabelece:

56
DURKHEIM, Émile. As regras do método científico. Tradução: Walter Solon. São Paulo. Edipro, 2012
57
Idem 50
25

“A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da


sociedade aparece assim como um simples desenvolvimento das idéias de
que nós temos sobre a sociedade, o
Estado, a justiça, etc.
(...)
Assim, num grupo de pessoas, os grandes movimentos de
entusiasmo, de indignação, de piedade que se produzem, não tem por local
de origem nenhuma consciência particular. Eles vêm a cada um de nós de
fora e são capazes de nos arrastar contra nossa vontade.
(...)
Toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança
maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não chegaria
espontaneamente.
(...)
A educação tem justamente por objetivo construir o ser social”.58

O fato social “exprime certo estado de alma coletiva” e cada um de nós é “resultado
do todo”. Desse ponto de vista, o fato social tem o caráter da verdade em Nietzsche, de
certa forma, que seria “mentira coletiva”59, já que não existe, mas ir de encontro a isso, ser
mentiroso, tem consequências sociais em forma de sanção jurídica ou moral. Assim, “é
fato social toda maneira de fazer, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de uma dada sociedade que tem
existência própria, independentemente de suas manifestações individuais”60.
Como bem resume Walter Solon na apresentação da editora Edipro de As regras do
método sociológico, as tais regras são: “os fatos sociais são objetivos, externos (eles são
“coisas”) e podem ser identificados pela coerção que exercem sobre os indivíduos; a
explicação dos fatos sociais deve se dar por causas objetivas e sociais, não podendo ser
reduzida aos fins perseguidos pelos indivíduos; a sociologia deve se inspirar no método
experimental, chegando às causas e às funções dos fenômenos sociais por meio
comparações e das variações concomitantes”61. (grifos nossos)
Solon ainda nos brinda com a história biográfica de Durkheim em defesa de
Dreyfus e a geração em seu pensamento da diferença entre egoísmo puro e individualismo
moral. Durkheim expõe então “os limites da autoridade estatal diante dos direitos do

58
Idem 50
59
NIETZSCHE. Friederich Wilheim. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Tradução:
Fernando de Moraes Barros. Hedra. São Paulo, 2007
60
Idem 50
61
Idem 50
26

homem (...) e a responsabilidade do intelectual em fazer julgamentos racionais para


problemas de moralidade prática, enfrentando o entusiasmo das massas e o prestígio da
autoridade, no sentido de completar o projeto liberal, superando seus defeitos históricos,
para que se possam construir liberdades políticas que visem à justiça econômica e
social”62.
O caso Dreyfus63, um dos casos de erros judiciais mais famoso da história, foi a
condenação de um jovem oficial francês por traição baseada em uma única prova, que se
mostrou falsa: uma carta conspiratória achada no lixo.
Entretanto, diante da constatação de que a carta era uma falsificação grosseira, nem por
isso Alfred Dreyfus foi automaticamente inocentado e libertado. As forças armadas
francesas se recusaram a reabrir o processo. Iniciou-se um debate público renhido a opor as
forças conservadoras às liberais. Mesmo diante da certeza de inocência, havia um grupo
que defendia a condenação e outro que exigia a libertação do oficial.
Por trás disso tudo, tínhamos a história recente da França. Depois da revolução, das
idas e vindas, da Guerra Franco-Prussiana perdida pelos franceses, da consequente eclosão
da revolta popular que daria na Comuna de Paris64, derrotada em 1871 pelas forças
contrarrevolucionárias, chegava-se à terceira república. O embate entre conservadores e
liberais era enorme, opondo, principalmente, o entendimento do saldo da Revolução
Francesa de 1889, antes de tudo – conservadores acreditavam que aquilo fora um castigo
divino e flertavam com a reintrodução das bases do Ancien Régime, ao passo que os
liberais aproveitavam parte do que emergiu de lá para pensar -, e diversas discordâncias
acerca dos eventos históricos posteriores. Entretanto, mesmo entre conservadores e
liberais, entre parte deles, havia um ponto de união: o crescente patriotismo francês,
extremamente fortalecido pelo recente episódio bélico contra a Prússia de Bismarck. E os
patriotas franceses culpavam muito os judeus pela derrocada perante os germânicos. O
crescente antissemitismo europeu ganhava força em fins do século XIX (sabe-se onde isso
vai dar na primeira metade do século XX...) e Alfred Dreyfus era judeu. Diante desse
emaranhado político-ideológico, permeado de traumas históricos recentes e racismo, toma-
se a frase de uma filósofa judia alemã: “Como afirma Hannah Arendt (1990: 143), este é ‘o

62
Idem 50
63
FERREIRA DE VARES, Sidnei. Durkheim, o Caso Dreyfus e o republicanismo liberal na Terceira
República francesa. In. Revista Contemporânea, v. 4, n. 2. Jul.–Dez. 2014. p. 481-505
64
Ver LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. Tradução: Sieni Maria Campos.
Editora Ensaio, 1991
27

único episódio no qual as forças subterrâneas do século XIX vêm à plena luz nos registros
da história’”65.
Durkheim não comprou as provocações religiosas ou raciais e se ateve à
racionalidade para defender metodologicamente que a defesa do indivíduo e de sua
dignidade é universal e qualquer outra afirmação, teológica ou leiga, que se pusesse em
outra posição era imoral. Já que, segundo Durkheim, se o sistema jurídico e político não
pode ser amoral, há que se dizer que de certa forma é moral. E essa moralidade é a
moralidade que garante a coisa social e a coisa comunitária mas também protege o
indivíduo, em última análise, de um ataque coletivo, jurídico ou real, da mesma
comunidade.

“Com efeito, as linhas gerais que nortearam tanto o seu individualismo


moral quanto sua concepção de republicanismo foram expostas durante o polêmico
Caso Dreyfus, em 1898, quando Durkheim publicou um pequeno artigo a respeito
do individualismo e do papel dos intelectuais no qual, sem abrir mão dos
pressupostos comunitaristas, sugeria um modelo social que reconhecesse na pessoa
humana um valor inalienável. Esse texto, que será devidamente analisado na seção
seguinte, comporta alguns importantes pontos a respeito de como o autor procurou
solucionar as dicotomias inerentes à relação entre a sociedade e o indivíduo, bem
como estabelecer as bases para uma moral republicana e lai- ca. Destarte, intenta-se
verificar o que, de fato, o sociólogo francês entendia por “culto” ao indivíduo, e de
que modo o referido conceito resume o pensamento do autor acerca do modelo
republicano”66.

Dessa forma, além do elogio que se deve fazer à postura de Émile Durkheim em um
debate apaixonado não entre pensadores, mas entre algozes a defensores, fica clara sua
postura extremamente dura com o arranjo das coisas conforme crenças, ideologias e
interesses, de forma a manipular a realidade para conformá-la de certa forma conveniente
para fazer a decisão jurídica responder à decisão política. No caso Dreyfus, a injustiça
estava patente, claro, mas tal firmeza metodológica a combater a sociologia espontânea,
como no caso do conceito de senso comum teórico dos juristas é a postura que pode
combater o arbítrio também nas comezinhas questões da práxis jurídica do dia a dia.

65
FERREIRA DE VARES, Sidnei. Durkheim, o Caso Dreyfus e o republicanismo liberal na Terceira
República francesa. In. Revista Contemporânea, v. 4, n. 2. Jul.–Dez. 2014. p. 493
66
Idem 55. p.492
28

4.5. Hans Kelsen

Quando se senta pela primeira vez nos bancos da faculdade de direito, ainda careca
por conta dos tradicionais trotes e prenhe de idealizações sobre o divino saber que
supostamente será absorvido, um dos primeiros encontros é com Hans Kelsen e sua Teoria
pura do direito67, batata. A linguagem difícil e as conceituações que encerram – e
enfrentam – séculos de teoria jurídica, ainda mais quando descontextualizados, tendem a
aterrorizar o jovem ingressante. Somada a isso a leitura muitas vezes enviesada
proporcionada por alguns professores durante a orientação desses neófitos, temos a
construção de um monstro sem precedentes. Ouvir que a teoria de Kelsen dá as bases para
o nazismo é algo relativamente corriqueiro em círculos juvenis. Diante disso, Luis Alberto
Warat empreendeu um projeto inusitado e criou os Quadrinhos puros do direito68 em que
conceitua, contextualiza e problematiza a principal obra de Kelsen.
A obra de Kelsen, antes de tudo, é uma obra descritiva. Ele pretende analisar os
mecanismos que operam o aparecimento do direito no mundo. Toma-se a famigerada
pirâmide de Kelsen e sua sistematização da hierarquia entre as normas, cuja premissa pode
ser grosseiramente ilustrada aqui no esquema: norma válida é aquela positivada por
autoridade competente; a autoridade tem a caneta por conta de uma norma que lhe
concedeu poderes; essa última norma é válida por ter sido positivada por uma autoridade; e
assim tautologicamente até atingirmos a norma fundamental, que fecha o sistema. Tal
triângulo é demonizado por supostamente embasar até o nazismo. Veja o absurdo. Kelsen
tão somente sistematizou como as coisas acontecem. O nazismo, desse ponto de vista,
inclusive prova sua teoria de certa forma. Por mais que devamos lamentar a existência do
regime genocida alemão, e combater qualquer mínimo sinal do reaparecimento de algo que
emule algo semelhante, ele existiu. Um regime totalmente indefensável, desumano, mas
que tinha sua forma jurídica operada na prática – de forma eficiente para assassinar de
forma industrial, é bom lembrar – e que só caiu pelas armas. Dessa forma, resta claro que
Kelsen descrevia as coisas, não torcia para que elas acontecessem de tal ou qual forma.

67
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. Martins Fontes, 2006
68
WARAT, Luis Alberto e CABRIADA, Gustavo Perez. Quadrinhos puros do direito. ALMED
29

Como deixa claro Warat, a pureza dessa teoria estava no olhar, que não partia de
valores para analisar como o direito ulula no mundo – ainda que como tragédia – e era fiel
às conclusões advindas de tais observações, ainda que eventualmente pudesse discordar de
seus efeitos. É uma “teoria pura do direito e não uma teoria do direito puro”, como Warat,
frasista, estabeleceu. Kelsen não estava interessado no direito em si, na experiência jurídica
e suas consequências, quando escreveu sua obra. A questão dele era científica, a ciência
jurídica em sentido estrito era o foco. Por mais positivista e distante da busca pela justiça
que isso possa parecer, é fundamental para chegarmos no ponto que buscamos ao enunciar
sobre o senso comum teórico dos juristas.
Kelsen estabelece que norma válida é aquela enunciada por autoridade competente.
Há que se perceber que i. trata-se de verdade incontestável - basta estacionar em local
proibido e receber uma multa para ter certeza de tal enunciado - e ii. em nenhum momento
ele refuta que há uma relação de poder latente dado que qualquer autoridade só o é por
arranjo político – ainda que seja concursado, quer dizer que a sociedade estabeleceu que
alguém que tivesse determinados conhecimentos e passasse em determinada prova se
tornaria autoridade, algo eminentemente político. Assim, por mais contraditório que possa
ser, a obra de Hans Kelsen é fundamental para o conceito de senso comum teórico dos
juristas. Tal escrito combate o arbítrio, estabelece bases epistemológicas, não nega a
temática do poder e deixa claro em que bases seu próprio procedimento pode ser assaltado
para se utilizar da forma epistemológica para conduzir uma ordem imoral e assassina –
exemplo do nazismo -, mesma crítica que Warat faz do direito corriqueiro quando acusa os
operadores do direito de avocarem-se uma “episteme” quando em verdade estão falando de
“doxa”.
Para ficarmos no direito penal e no contrato social, temáticas mais humanas e
duras, vejamos:

“Se considerarmos a evolução por que o direito passou desde os seus


primeiros começos até ao estádio representado pelo direito estadual moderno,
podemos observar, com referência ao valor jurídico a realizar, uma certa tendência
que é comum às ordens jurídicas que se encontram nos níveis mais altos da
evolução. É a tendência para proibir – numa medida que aumenta com o decorrer
da evolução – o emprego da coação física, o uso da força por um indivíduo contra
outro.
(...)
Gradualmente, porém, estabelece-se o princípio de que todo o emprego da
força é proibido quando não seja – e temos aqui uma limitação ao princípio –
especialmente autorizado como reação, da competência da comunidade jurídica,
30

contra uma situação de fato considerada socialmente perniciosa. Então é a ordem


jurídica que, taxativamente, determina as condições sob as quais a coação física
deverá ser aplicada e os indivíduos que a devem aplicar”.69

Fica claro, pela denominação “evolução” a ordenamentos que limitam a violência


física como sanção, que não há que se falar de proselitismo de regimes autoritários ou
defesa do Estado sem limites supostamente feitas por Kelsen. Também fica patente a
observância da dinâmica do poder, da política como definidor muitas vezes do direito:
“Então é a ordem jurídica que, taxativamente, determina as condições sob as quais a
coação física deverá ser aplicada e os indivíduos que a devem aplicar”70. Que é a ordem
jurídica senão algo definido pela política?
Mais uma vez, o positivismo kelseniano é um dos instrumentos para chegarmos ao
conceito de ciência jurídica em sentido estrito e a instrumentalidade disso para enunciar o
“senso comum teórico dos juristas”. Não é um “inimigo”. Há aqui a crítica do direito como
apologia do estabelecido, como se dá na práxis atualmente. A “Teoria pura do direito” não
é isso. A teoria narra como é, não quer que seja assim. Ainda que positivistas vulgares
leiam o texto como algo que deva ser, não é isso que está escrito, está escrito como é, com
olhar puro, ainda que eventualmente haja equívocos no conteúdo. Tal qual o direito se
acostumou a dividir processual de material, Kelsen analisa o procedimento, o sistema em
que o direito faz uso para aparecer no mundo, ainda que em alguns momentos históricos
materialmente nos deparemos com o inominável.
Giorgio Agamben tem um capítulo interessante de seu magistral livro Opus dei
chamado As duas ontologias, ou como o dever entrou na ética. O autor se propõe a analisar
como, pelo menos a partir de Kant, o dever invadiu a questão ética:

“Reflita-se sobre o singular paradigma prático que está em questão aqui e


parece constituir de qualquer maneira o modelo do “dever de virtude”
(tugendpflicht) kantiano e pré-kantiano. No conceito de uma virtude cujo único
objeto é um debitum, de um ser que coincide integralmente um ter de ser, virtude e
officium coincidem sem resíduos. O ‘dever-ser’ é, portanto, o dispositivo que
permite aos teólogos resolver a circularidade entre ser e agir na qual restava presa a
doutrina das virtudes. O ato realizado graças à inclinação operativa do hábito
virtuoso é, na realidade e na mesma medida, a execução de um dever. Fazendo

69
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. Martins Fontes, 2006. p. 39
70
Idem 55
31

literalmente ‘da necessidade virtude’, o religioso é, ao mesmo tempo, inclinado ao


dever e obrigado à virtude”.71

Desse excerto extraímos tudo que a Teoria pura do direito, ainda que kantiana, não
é, e tudo que a práxis jurídica prenhe de “senso comum teórico dos juristas” é: uma
religião, pois, nesses termos, e muito longe do que seria uma ciência jurídica.

4.6. Tércio Sampaio Ferraz

Zetética é o termo que se impõe. A obra de Tércio, Introdução ao estudo do direito:


técnica, decisão, dominação72, conceitua logo e passa suas páginas a discorrer sobre a
oposição, dicotomia, e dá pra vislumbrar até uma dialética, entre os conceitos de “zetética”
e de “dogmática”. A “zetética” é problematização que vem de fora do direito, ainda que
tenha muito a ver com seus temas, e portanto é infindável. Ao passo que a “dogmática” é
aquilo que trata dos assuntos estritos do direito, e portanto é necessariamente finita.
Rapidamente:

“Zetéticas são, por exemplo, as investigações que têm como objeto o


direito no âmbito da sociologia, da antropologia, da psicologia, da história, da
filosofia, da ciência política, etc. Nenhuma dessas disciplinas é especificamente
jurídica. (...) incorporam-se ao campo das investigações jurídicas, sob o nome de
sociologia do direito, filosofia do direito, psicologia forense, história do direito, etc.
(...) A investigação zetética tem sua característica principal na abertura constante
para o questionamento dos objetos em todas as direções (questões infinitas), é
preciso, a propósito disso, proceder sua explicação.

(...)

[Sobre a análise de uma constituição] Do ângulo zetético, (...) pode


encaminhar sua investigação para os fatores reais do poder que regem uma

71
AGAMBEN, Giorgio. Opus Dei: arqueologia do ofício: homo sacer. Tradução: Daniel Arruda Nascimento.
Boitempo, 2013
72
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São
Paulo. Atlas, 2008
32

comunidade, para as bases econômicas e sua repercussão na vida sociopolítica,


para um levantamento dos valores que informam a ordem constitucional, para uma
crítica ideológica, sem preocupar-se em criar condições para a decisão
constitucional dos conflitos máximos da comunidade.
Esse descompromissamento com a solução de conflitos torna a investigação
infinita, liberando-a para a especulação.”73

Ao passo que a “dogmática”:

“Uma disciplina pode ser definida dogmática à medida que considera


certas premissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma decisão),
como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao postulado da pesquisa
independente.
Ao contrário das disciplinas zetéticas, cujas questões são infinitas, as
dogmáticas tratam de questões finitas. São regidas (...) pelo princípio da proibição
da negação, da não-negação dos pontos de partida”.74

A conceituação de “zetética” e de “dogmática” se faz interessante na medida em


que o conceito do “senso comum teórico dos juristas”, que na prática opera como um
escamoteamento da arbitrariedade ou, no mínimo, de tutelas jurisdicionais com retaguardas
eminentemente políticas travestidas de científicas, é justamente uma crítica ao dogmatismo
cego. Como se o operador do direito fosse um filólogo das leis e como se as leis fossem
impingidas pelo divino aos homens. A “zetética” é justamente a assimilação do caráter
diverso e multidisciplinar do direito. Ao passo que a dogmática tampouco pode ser
ignorada dado que estabelece a regras de guerra e é evolução em relação ao arbítrio. É o
equilíbrio das duas de forma sistemática que pode afastar o direito do lugar de
convergência polifônica de discursos jurídicos, sociologia espontânea, pois, para um lugar
epistemológico de fato – e não de “doxa” fantasiada de “episteme”.

73
Idem 58
74
Idem 59
33

5. CONCLUSÃO

Como estamos tagalerando sobre uma série de enunciações ideológicas, morais,


religiosas, e mais, se travestirem de “verdade” pelo simples fato de que há muitas vozes na
práxis jurídica a concordar, vale a pena levantarmos o conceito de “verdade” cunhado pelo
filósofo comunista francês Alain Badiou. Tal conceito é mais bem aprofundado na obra,
tão suis generis quanto provocativa, O Ser e o evento75, e posteriormente também em A
lógica dos mundos76. Entretanto, para fins desse trabalho, analisaremos a versão algo
simplificada da mesma teoria, publicada em Manifesto pela Filosofia77, de 1990, Badiou
trata ali de uma questão muito importante na virada das décadas de 1980 para 1990: se a
filosofia acabou ou se ainda era possível filosofar.
Está clara a provocação: para Badiou vivemos, sim, um tempo extremamente
propício para filosofar. E o porquê é muito interessante. Segundo seu sistema, a filosofia se
dá a partir de quatro questões chave: o matema (ciência), a política, o poema e o amor.
Somente a partir disso, no sistema badiouniano, é que se pensa filosoficamente e, portanto,
se investiga a “verdade”. Assim, para sabermos se uma época é uma época filosófica, é
necessário analisar se houve eventos que geraram novidade em algum desses quatro
quesitos. Para Badiou, houve.
Na matemática, tivemos Georg Cantor, e sua teoria dos conjuntos infinitos de
tamanhos diferentes (algo difícil de provar, daí o eureka do enunciado) que leva ao
conceito de múltiplo indiscernível que Badiou usa para dar outro olhar à questão
ontológica; na política tivemos os acontecimentos algo espontâneos e até agora difíceis de
explicar entre 1965 e 1980 (maio de 1968 como grande símbolo), tendo o efeito de
desconstruir a lógica racionalista com que costumávamos entender os levantes populares e
posto o caos, ou no mínimo, o indirigível, na ordem do dia como premissa da análise; no
poema tivemos Fernando Pessoa e Paul Celan; e no amor, tivemos o advento da
psicanálise, mormente Lacan.
Diante dessas novidades, eventos ocorridos no âmbito das quatros categorias
genéricas que devem ser analisadas para filosofar, Badiou estabelece que, sim, nossa época

75
BADIOU, Alain. O ser e o evento. J. Zahar, 1996
76
BADIOU. Alain. Logics of Worlds. Tradução para o inglês: Alberto Toscanos. MPG Books, 2009
77
BADIOU, Alain. Manifesto pela filosofia. Tradução: MD Magno. In. Angélica – psicanálise & cia. Rio de
janeiro, 1991
34

reúne as condições para filosofar, depois de muito tempo, e refuta Heiddeger e Nietzsche,
que pensavam o contrário. Para o francês, esses dois pensadores operaram o que ele
denomina “sutura”, ou seja, se agarraram a apenas uma das categorias genéricas para, de
certa forma, bater em Platão e na filosofia a partis dele em diante e buscar um retorno
bucólico a um mundo idealizado. Essa categoria foi o poema, e todas as fantasias de
retorno à natureza, a um estado puro do ser humano pré-Platão advêm disso, dessa
“sutura”. Badiou acredita que tais pensadores não entenderam a dessacralização ocorrida
na baixa Idade Média, ou seja, o advento do capitalismo e o fim das relações sociais e de
trocas baseadas em tradições, relações pessoais, cerimônia e grandes valores. Para Badiou
isso é evolução, e o estabelecimento da letra fria a fazer ruir toda essa pompa é novidade
interessante por deixar o ser livre enquanto ser, a ontologia da crueza. Senão, vejamos:

“Poema, matema, política inventada e amor são, muito exatamente, os diferentes


tipos possíveis de procedimentos genéricos. O que eles produzem (o inominável na própria
língua, a potência da pura letra, a vontade geral como força anônima de toda vontade
nomeável, e o Dois dos sexos como o que jamais foi contado por um) dentro de situações
variáveis nunca é mais do que uma verdade dessas situações sob a forma de um múltiplo
genérico, cujo nome não pode ser rotulado por nenhum saber, nem pode nenhum saber
discernir previamente o seu estatuto.
A partir de tal conceito de verdade, como produção pós-eventural de um múltiplo
genérico da situação de que ela é verdade, podemos nos recompor com a tríade constitutiva
da filosofia: ser, sujeito, verdade. Do ser-enquanto-ser, diremos que as matemáticas
constituem historicamente o único pensamento possível, porque elas são, na potência vazia
da letra, a inscrição infinita do múltiplo puro, do múltiplo sem predicado, e que este é o
fundo do que é dado, apreendido em sua apresentação. As matemáticas são a ontologia
efetiva. Da verdade, diremos que ela está suspensa a essa suplementação singular que é o
evento, e que seu ser, múltiplo como o ser de tudo que é, é o de uma parte genérica,
indiscemível, qualquer, a qual, efetuando o múltiplo no anonimato de sua multiplicidade,
pronuncia seu ser. Do sujeito, enfim, diremos que ele é um momento finito do proce-
dimento genérico. Neste sentido, é notável ter que concluir que só existe sujeito na ordem
própria de um dos quatro tipos de genericidade. Todo sujeito é artístico, científico, político
ou amo- roso. O que, de resto, cada um sabe por experiência, pois fora destes registros não
há senão a existência, ou a individualidade, mas nenhum sujeito”78.

O interessante disso, fora a curiosidade da obra em questão, é que Badiou


sistematiza seu sistema genérico que deixa claro que a filosofia não é espontânea, ela é um
procedimento de investigação sobre a tríade ser, sujeito, verdade, e que “verdade” deve ser
buscada e estabelecida conforme variáveis claras. Assim, a filosofia tem suas maneiras de
combater o ensaísmo e a mera concordância, institucional ou não, como mero validador da
“verdade”. “Verdade” carece de método e de estabelecimento claro de variáveis para se

78
Idem 63
35

impor como tal. E é isso que o direito precisa para ser de fato científico, num sentido
durkheimiano, e abrir mão do senso comum teórico dos juristas, como ocorre.
Constantin Stanislavski, notório teatrólogo russo, criou uma maneira de atuação
fantástica e inovadora79. A representação, pelo ator, não pode ser mera reprodução,
mimese, mas deve ser algo novo no mundo. Cada personagem deve ser de fato inventada,
de modo que o ator dá à luz algo a partir de si mas não limitado a si, e não meramente
imita. Um clássico da preparação de atores segundo essa escola é o interrogatório do ator
sobre questões externas ao texto. Cria-se uma situação estapafúrdia, uma consulta médica,
por exemplo, que não está na peça, e o ator deve representar como aquela personagem
reagiria. Assim, de intérprete o ator se converte em criador – e a riqueza disso é notória.
O que é riquíssimo na arte não pode se operar na práxis jurídica. O que ocorre é
que, sob a indumentária institucional e pseudocientífica os operadores do direito concebem
na prática uma assimilação de diversas questões morais, religiosas e de classe para inventar
no direito uma série de questões fora do texto – e do contexto social. E tal situação é
ratificada pela simples razão de que há muitas vozes a concordar.
Definitivamente, resta claro a necessidade de o direito se tornar científico. Quando
Durkheim combate a sociologia espontânea também a espontaneidade jurídica está no
centro da fogueira. Da dialética dos microconflitos sociais diários é que se dá o avanço da
humanidade, muitas vezes em espiral, outras em círculo, muitas vezes o passado vindo
depois do futuro, história é isso. E não dá para o direito se pretender a-histórico como se
seus operadores fossem filólogos a analisar textos frios. Não o são. E suas asinhas ficam de
fora toda vez que alguma demanda de grande repercussão que envolve grandes interesses
políticos permite ver que é possível ser dito, pelos operadores do direito, tudo aquilo que
era dito de forma diversa antes com a maior tranquilidade. É que há algo maior a nortear a
práxis política: o poder. Não há como tirá-lo do cálculo.
Platão fala de Críton, o discípulo que, diante da condenação à morte de Sócrates,
engenha um plano para salvar o pai da maiêutica. Eis que Sócrates não desejava ser salvo,
para desespero de Críton, que estava preocupado do que poderiam pensar dos seguidores
de Sócrates que o deixaram morrer. Críton, que jamais entenderia o compromisso do
mestre com a integridade, mesmo que isso significasse a morte – e Sócrates não titubeou e
bebeu de glut-glut o copo de cicuta que se lhe ofertaram – representa o senso comum. O

79
Ver STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Tradução: Pontes de Paula Lima. Civilização
Brasileira, 1999
36

senso comum é sempre sombra, pois no centro de seu utilitarismo do pensar há distância
grande da possibilidade de “verdade”, tal qual o mito da caverna é necessário sair desse
ponto de concordância para ver de fato o que pode aparecer como “verdade”. A práxis
jurídica toma a sombra como fato, “senso comum teórico dos juristas”, e produz arbítrio.
Para Lênio Streck, o senso comum teórico dos juristas é “o nada do direito”80, ainda que
produza efeitos na realidade, fato, mas sem nenhum conteúdo científico.
Leonel Severo da Rocha, co-autor de Luis Alberto Warat em diversos escritos,
gosta de lembrar d’“O Alienista”, de Machado de Assis.81 Simão Bacamarte, protagonista
do conto, vai à Europa – ê, colônia, valha-me-deus – e volta com conceitos sobre a saúde
mental dos cidadãos da vila de Itaguaí e consegue o patrocínio público para estabelecer
uma casa de malucos, a Casa Verde. A certa altura, metade da cidade está enclausurada.
Depois de um tempo, essa metade é liberada e enclausura-se a outra metade. Por fim, o
médico libera todos e enclausura-se a si mesmo na companhia de uma série de cachorros –
numa alegoria do fim de vida de Schopenhauer, influência forte de Machado. A história,
para além de ser um dos maiores contos brasileiros, divertido e sofisticado, com críticas
mil à sociedade de então – algumas resistentes e válidas à sociedade de agora – cabe como
uma luva aqui.
Valendo-se de uma dúzia de teorias estrangeiras, escondendo-se atrás da ciência de
que se dizia portador e único intérprete, Bacamarte consegue as chaves da cidade para
exercer seu arbítrio. Assim, ao fim e ao cabo, o poder sobre os corpos dos cidadãos para
encerrá-los ou não na Casa Verde, supostamente científico, não passava de um arranjo de
poder que assim o permitiu. Toda a dita ciência trazida do estrangeiro se resumia a uma
autorização de seus pares do poder para que a cidade se transformasse em um grande
experimento científico. Bacamarte bebia do senso comum teórico – dos cientistas, no caso
dele – para travestir seu arbítrio em “verdade”.
Colocado dessa forma, o conceito de “senso comum teórico dos juristas” se coloca
como síntese de um Direito opressor, criador de uma igualdade formal e despregada da
realidade que em nada contribui para uma sociedade democrática, mas para a manutenção
do poder estabelecido. Esse é o Direito posto como linguagem alienante, exclusiva e
excludente. Linguagem esta positivada em leis repletas de lacunas destinadas à
operacionalidade cotidiana dos juristas no sentido de manter as estruturas vigentes.

80
In. Direito & Literatura - https://www.youtube.com/watch?v=xGY9kOs17u8
81
Idem 66
37

O Direito, portanto, deve abandonar seus pontos comuns de discurso tidos como
“verdades científicas” para se abrir à diversidade e aos antagonismos tão humanos e reais e
se tornar de fato ciência. Aquilo que temos como “ciência jurídica” não passa de mera
“doxa”: uma série de apontamentos numa direção de abstração perfeita que nada dialoga
com o real e serve ao gozo linguístico de doutores. Em lugar disso, é preciso haver a
“episteme”, qual seja, a percepção de uma realidade plural, repleta de antagonismos em
constante embate que se renovam e forjam uma nova realidade a cada momento. Assim
sendo, o Direito pode ser ciência, com método, contextualizado sociologicamente e
exercendo sua função meramente balizadora e não castradora da transformação social.
O homem tem direitos. E o principal direito é o direito a ter direitos conforme a
realidade que se conforma a partir das lutas sociais. Uma “ciência” com poder de polícia
que estabelece no mundo das ideias quais os direitos do homem ignorando a realidade e os
novos direitos que ele conquista na dimensão do real não é a guardiã do Estado
democrático de direito, como se quer, mas instrumento de dominação sistêmica que aponta
ao autoritarismo social.
Alijado, portanto, dessa dimensão meramente dogmática, o Direito assume seu
papel de utopia eficaz na medida em que se ponha emancipador, ou seja, que estimule a
reivindicação da autonomia pelos excluídos, que sirva para que esses excluídos descubram
a repressão cultural que lhes foi imposta para que possam tomar consciência de si mesmos
e da exploração social, sendo “medida do possível sem ser ainda medida do real”.82

82
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Sergio
Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995
38

6. BIBLIOGRAFIA

ALTHÜSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Presença, 1976.

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Paulo. Edipro, 2012

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,


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2006.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Tradução: Rosa Freire Aguiar. Companhia das
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WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994.
39

WARAT, Luiz Alberto. O Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In.
Sequência. Estudos jurídicos e políticos, n.5. Florianópolis. Editora da UFSC, 1982

WARAT, Luis Alberto e CABRIADA, Gustavo Perez. Quadrinhos puros do direito.


ALMED.
TOLSTÓI, Leon. A Violência das Leis. In. Letralivre. Rio de Janeiro: Robson Achiamé,
ano 8, nº39, 2004.

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WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Porto Alegre. EDUNISC,
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SITES

FERREIRA MENDES, Gilmar. A solitária voz de Adaucto Lúcio Cardoso e o processo


constitucional brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-
08/observatorio-constitucional-solitaria-voz-adaucto-lucio-cardoso-processo-
constitucional-brasileiro Acesso em 07/10/20 às 08h10

VÍDEOS

Direito & Literatura


https://www.youtube.com/watch?v=xGY9kOs17u8 Acesso em 07/10/20 às 08h10
40

FÁBIO MOURÃO DUTRA DE OLIVEIRA


NÚMERO USP 6403362
fabio.mourao.oliveira@usp.br
(11) 9 8493 8888

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