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AUGUSTO CÉSAR DA SILVA MOREIRA

A METAFÍSICA DO PERMITIDO EM KANT APLICADA AO


DIREITO INATO DE INSURREIÇÃO

Londrina
2016
AUGUSTO CÉSAR DA SILVA MOREIRA

A METAFÍSICA DO PERMITIDO EM KANT APLICADA AO


DIREITO INATO DE INSURREIÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Departamento de Serviço
Social da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito à obtenção do título
de Especialista em Direito e Processo Penal.

Orientador: Prof. M.e. José Laurindo de


Souza Netto.

Londrina
2016
AUGUSTO CÉSAR DA SILVA MOREIRA

A METAFÍSICA DO PERMITIDO EM KANT APLICADA AO DIREITO


INATO DE INSURREIÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Departamento de Serviço
Social da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito à obtenção do título
de Especialista em Direito e Processo Penal.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Orientador: Prof. M.e. José Laurindo de
Souza Netto
Universidade Estadual de Londrina - UEL

____________________________________
Prof. Dr. Componente da Banca
Universidade Estadual de Londrina - UEL

____________________________________
Prof. Dr. Componente da Banca
Universidade Estadual de Londrina - UEL

Londrina, _____de ___________de _____.


MOREIRA, Augusto César da Silva. A Metafísica do Permitido em Kant Aplicada
ao Direito Inato de Insurreição. 2016. 24 f. Trabalho de Conclusão do Curso (Pós-
graduação em Direito e Processo Penal) – Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, 2016.

RESUMO

O presente trabalho visa analisar sob um prisma jurídico-filosófico, a liberdade moral


do arbítrio humano pautado em máximas de liberdade universal, ao qual, quando
aplicado ao convívio mutuo de qualquer indivíduo com os demais, em respeito às
outras liberdades individuais, deve ser pautada pela segurança jurídica de suas
liberdades individuais. Quando se há a deturpação do estado jurídico instituído para
esse fim, deixando de haver a promoção e proteção das liberdades de cada membro
do corpo civil, bem como submetendo qualquer indivíduo à qualidade de meio e não
de fim em si mesmo, é facultado ao homem reclamar seu direito de insurreição para
negar as injustiças e confirmar suas liberdades, coagindo o próprio Estado que ora
impede suas máximas universais ou para simplesmente destituir o estado criado,
voltando ao estado de natureza do homem ou ao estado de ausência de direito,
permitindo-o constituir nova ordem.

Palavras-chave: Corpo-civil. Liberdade Moral. Direito de Insurreição. Coação do


Estado.
MOREIRA, Augusto César da Silva. Metaphysics of The Allowed in Kant Applied
to Birthright of Insurrection. 2016. 24 f. Completion of Course Work (Graduate in
Law and Criminal Procedure) - State University of Londrina, Londrina, 2016

ABSTRACT

This study aims to analyze , from a legal -philosophical perspective, the moral
freedom of the human will , based on maxims of universal freedom , which , when
applied to the mutual interaction of any individual with others, in respect to the other
individual freedoms , should be guided by legal certainty of their individual freedoms .
When there is a misrepresentation of the legal status established for this purpose , no
longer be the promotion and protection of freedom of each member of the civil body
as well as submitting any individual to quality means and not an end in itself , it is
allowed to man claim their right to insurrection to deny the injustice and confirm their
liberties , coercing the State itself that now prevents its universal maxims or to simply
dismiss the state created , returning to man's state of nature or state of the absence
of law, allowing the constitute new order.

Key words: Body- civil. Moral freedom. Law Insurrection. Duress State.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................05

2 A NATUREZA DA UNIÃO CIVIL E A FUNÇÃO DO ESTADO..................06

3 A DETURPAÇÃO DA FUNÇÃO DO ESTADO E A CONSEQUENTE


PERDA DE SUA LEGALIDADE E LEGITIMIDADE...................................................10

4 A FACULDADE MORAL DAS ESCOLHAS E O LIVRE EXERCÍCIO DO


ARBÍTRIO PARA A PROTEÇÃO DE LIBERDADES INDIVIDUAIS..........................13

5 O CONCEITO DO MERAMENTE PERMITIDO POR KANT E O DIREITO


INATO DE INSURREIÇÃO.........................................................................................17

5 CONCLUSÃO ...........................................................................................24

REFERÊNCIAS........................................................................................25
5

1 INTRODUÇÃO

Considera-se como ponto de partida para a fundamentação dessa


tese, a ideia difundida por Immanuel Kant sobre a relação entre o direito e a moral,
em que ficou consignado na sua doutrina que o homem é detentor da liberdade
universal de controlar seu próprio arbítrio, bem como pela definição de que
moralmente aceito é aquilo que não contraria uma obrigação.
Verificará durante a construção do raciocínio lógico pretendido que o
homem somente adere a um corpo civil, constituindo um poder soberano para
orientar e controlar todos os seus membros, apenas por vontade própria, em
obediência a sua faculdade de escolha e às máximas de liberdade e com o intuito de
deixar o estado de natureza ou o estado de ausência de direito.
Com a formação do estado jurídico de mutua convivência, o homem,
assim como todos os demais membros, para a promoção da paz social e a proteção
de suas liberdades individuais deve ceder parte de suas liberdades com o fim de se
submeter ao julgo de toda a coletividade. Porém, também se verificará que uma das
liberdades que o indivíduo reserva para si, por ser uma liberdade universal do
arbítrio, é a de insurreição e negação do próprio estado instituído.
Tal prerrogativa, também pode ser aderida quando se há a
deturpação das funções do estado jurídico constituído, quando não há mais a
segurança jurídica necessária para a promoção e proteção das liberdades
individuais, quando nesse momento, nasce ao indivíduo a autorização de coagir o
Estado, negando a injustiça feita contra sua liberdade e, por conseguinte,
confirmando a justiça inicialmente necessária para a proteção de suas liberdades.
Essa última prerrogativa, é oriunda de situações e em partes da
sociedade que o Estado às coloca à margem da lei, utilizando o homem como meio
para um fim e não como fim em si mesmo. Das parcelas da sociedade, a que mais
sofre com as injustiças da ineficiência do Estado é a sociedade carcerária, que
quando promove motins e rebeliões, estão simplesmente exercendo seu direito inato
de insurreição para confirmar suas liberdades universais.
6

2 A NATUREZA DA UNIÃO CIVIL E A FUNÇÃO DO ESTADO

A crer na máxima da violência dos homens e sua animosidade em


guerrearem entre si quando isolados, é que surge a necessidade de se estabelecer
uma ordem social dirigida ao comando e orientação de seus membros, inclusive com
um braço que toca a punição daqueles que, ao entregar-se ao corpo civil
mutuamente consentido, transgridam as regras gerais de convivência.
Nesse sistema, em que cada membro do corpo civil encontra-se
sobre a influência recíproca entre si, é necessário a constituição de um estado
jurídico dotado de normas que traduzem a vontade geral. Pode-se dizer que tal
atitude se caracteriza no direito público, que na interpretação de Immanuel Kant
consiste no conjunto de leis elaboradas e promulgadas para um povo unido sobre
uma constituição.
Portanto, tem-se que a união civil é derivada da ideia de que sem a
constituição de um estado legal jurídico, povos e homens não conseguem se afastar
da liberdade pura do homem, em que cada um faz o que considera justo e
necessário, mesmo que seja em detrimento de outrem.
A cerca dessa liberdade pura, denominado “estado de natureza”, em
que impera o uso da força para a satisfação pessoal, vale destacar que não consiste
diretamente em um estado de injustiça, pois até que tais indivíduos aderem ao corpo
civil, o que persiste é apenas uma ausência de direito. Assim, sobre a natureza da
união civil, KANT (2014, p. 126) menciona:

Deve-se sair do estado de natureza, no qual cada um segue sua própria


cabeça, e unir-se com todos os outros (não lhe sendo possível evitar entrar
em interação com eles) com o intuito de se submeter a uma coação externa
legal e pública, portanto entrar em um estado no qual é determinado
legalmente o que deve ser reconhecido como o seu de cada um, cabendo-
lhe por um poder suficiente (que não é o seu, mas um poder externo), i. é,
deve-se antes de tudo o mais entrar em um estado civil.

Já com relação às normas gerais criadas pelo Estado para o


controle e orientação do corpo civil, devem ser oriundas unicamente da vontade
unificada do povo. Pois, quando se procede do Estado todo o direito, não há como
ele ser injusto com ninguém.
Assim, pelo método dedutivo, se o direito pudesse ser proveniente
de um indivíduo, o permitindo que decidisse algo sobre um igual, seria perfeitamente
7

possível que tal indivíduo cometesse um erro ou até mesmo fosse injusto com o seu
subjugado. Já quando se permite ao indivíduo que decida algo sobre seu próprio
interesse, ou seja, o faz subjugado de si mesmo, não há como ele cometer erros,
nem tampouco ser injusto.
Portanto, a vontade mútua e unificada de todos os membros do
corpo civil, refletidos no poder de cada qual decidir sobre todos e todos sobre um
subjugado é que faz nascer o poder legislativo do Estado, ao qual o coloca no
controle absoluto do corpo civil. (KANT. 2014, p. 128):

Os membros da sociedade (societas civilis), i. é, de um Estado, reunidos


para a legislação, chamam-se cidadãos (cives), e seus atributos jurídicos,
inseparáveis de sua natureza (como cidadãos), são a liberdade legal, de
não obedecer a nenhuma lei a que não tenham dado seu consentimento – a
igualdade civil, de não reconhecer com relação a si mesmo nenhum
superior no povo, a não ser um em relação ao qual ele tenha a mesma
faculdade moral de obrigar juridicamente que o outro tem de obriga-lo;
terceiro, o atributo da independência civil, de não ficar devendo sua
existência e sustento ao arbítrio de um outro povo, mas a seus próprios
direitos e forças, como membro da república, por conseguinte a
personalidade civil, de não poder ser representado por nenhum outro em
assuntos jurídicos.

Imperioso destacar, ainda, que todo homem que adere ao corpo


civil, expõe ao Soberano, ora Estado, parte de seus direitos reservando para si
apenas uma parcela particular de sua liberdade, em especial aquela que o faculta
dirigir sua própria vontade.
De forma bem explorada por Jean Jacques Rousseau em seu
Contrato Social, o filósofo expõe que a parcela que cada homem reserva para si
corresponde aos direitos e deveres que não interessam ao corpo civil, tendo em
vista que se prestam às soluções para demandas entre os membros particulares,
como, por exemplo, no direito civil, restando ao Estado somente a parcela de direitos
concedida para dirimir demandas de interesse público, com o fim de preservar a paz
e a segurança do corpo civil.
Ademais, tem-se que se considerar que quando um membro se
submete ao julgo da coletividade, lhe concedendo poderes para orientar e controlar
todos, ele passa a entregar-se de uma forma que se transfigura no próprio corpo
social, aderindo às responsabilidades e ao autogoverno de seus atos e dos atos de
todos.
8

Já com relação à parcela concedida ao corpo social, esta tem uma


influência direta nas demandas que envolvem o conflito entre os particulares e a
coletividade, em que direitos são violados de uma forma que afeta todo o corpo
social. Sahid Maluf (2005, p. 73), debruçando sobre o tema expõe de forma clara a
relação anunciada acima:

Esse convênio determinante da sociedade civil, isto é, esse contrato social,


teria resultado, assim, das seguintes proposições essenciais: cada um põe
em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da
vontade geral; e cada um, obedecendo a essa vontade geral, não obedece
senão a si mesmo. A liberdade consiste, em última análise, em trocar cada
um a sua vontade particular pela sua vontade geral. Ser livre é obedecer ao
corpo social, o que equivale a obedecer a si próprio. O homem transfere o
seu eu para a unidade comum, passando a ser parte do todo coletivo, do
corpo social, que é a soma de vontades da maioria dos homens. O povo,
organizado em corpo social, passa a ser o soberano único, enquanto a lei é,
na realidade, uma manifestação positiva da vontade geral.

Dito isso, questiona-se a função que o Estado deve observar quando


nasce sobre a égide de uma constituição de leis jurídicas, promulgadas sobre o
mútuo consentimento do povo, na qualidade de legisladores e constituidores do
corpo civil.
Considerando que todos os membros do corpo social devem viver
com uma máxima cuja liberdade do seu arbítrio deve coexistir com a liberdade de
qualquer outro membro segundo uma constituição de leis, conclui-se que a primeira
função que o Estado deve observar é a preservação de tais liberdades.
Sim, pois se a liberdade de cada um consiste na faculdade de fazer
o que acha justo, ao seu bel prazer, desde que não afete a liberdade e os direitos de
outro membro, ou seja, desde que consigam conviver mutuamente numa sociedade
pluralizada e unificada, exercendo ao mesmo tempo vontades individuais e o
interesse público, não poderia ter outra função o Estado que não fosse preservar
essa relação.
Até mesmo porque, caso não fosse preservado essa relação mútua
de convivência, não poderia existir um corpo civil, nem tampouco um poder
soberano.
Ora, se o poder do estado é proveniente da concessão de liberdades
individuais para o bem comum, seria contraditório permitir o uso desenfreado das
liberdades individuais em detrimento da própria coletividade, pois caso o Estado não
proibisse o desenvolvimento de tal prática, seria exatamente o que ocorreria com a
9

sociedade, fazendo que o soberano dissolvesse por completo e o homem retornasse


ao estado de natureza. Nesse sentido afirma MALUF (2002, p. 71):

Os homens não delegaram ao órgão diretivo da sociedade todos os seus


direitos, mas somente aqueles necessários à manutenção da paz e da
segurança de todos. O poder público é instituído por um pacto voluntário,
artificial, porém de fundo utilitário, com o objetivo precípuo do bem comum.
Ao Estado cabe regulamentar as condições externas da vida em sociedade
e, ao mesmo tempo, respeitar e garantir aqueles direitos fundamentais da
pessoa humana, que lhe são anteriores e superiores.

Também pactua desse entendimento ROUSSEAU, que na defesa de


seu contrato social e ao também afirmar que o Estado é um resultado convencional
da soma de vontades manifestadas pela maioria da coletividade, o filosofa entendia
que o Estado é instituído principalmente para promover e manter o bem comum, e
somente pode ser suportado pela sociedade enquanto se mantiver observante às
normas de justiça e eficácia nas suas funções.
Deve, portanto, o Estado preservar a relação de convivência entre
os membros, preservando a paz comum e a segurança da sociedade, garantindo e
protegendo o arbítrio no uso das liberdades individuais conexas e subjugadas ao
interesse do bem comum.
10

3 A DETURPAÇÃO DA FUNÇÃO DO ESTADO E A CONSEQUENTE PERDA DE


SUA LEGALIDADE E LEGITIMIDADE

Estipulado a linha de raciocínio em que expõe de forma clara qual a


essência da união civil e a função do Estado, chega-se ao questionamento da
legitimidade e legalidade do Estado.
De salto, tem-se que a legitimidade e a legalidade do Estado foram
instituídas pelo consenso comum do povo que, conforme já mencionado, na ânsia
de abandonar o estado de natureza, transferiram parte de suas liberdades para a
promoção da vida em sociedade, o que de fato é a sua essência, mas não o seu fim.
Todavia, vale destacar inicialmente, a distinção entre legitimidade e
legalidade com o fim de enquadrar os institutos nos argumentos apresentados nesta
tese, principalmente com relação ao esclarecimento dos deveres do Estado com a
sociedade.
Assim, Norberto Bobbio (1999, p. 69) define a legalidade através do
ato existente no livre exercício do poder, ou seja, quando o Estado toma iniciativas
observando as leis estabelecidas e consentidas pela coletividade. Portanto, quando
o Estado age em conformidade com o interesse público, o mesmo age na
legalidade. Ainda, para melhor elucidação, pode-se comparar que o contrário de um
poder legal, seria um poder arbitrário, déspota ou que submete a vontade geral à
margem de seus interesses.
Já com relação à legitimidade, tem-se que é todo ato pautado,
inicialmente, na sua qualidade de legal, cuja titulação é alicerçada juridicamente,
permitindo dessa forma, que o Estado seja o único titular das prerrogativas do ato e
torne todas as suas consequências legais pelo consenso do pacto celebrado. Ainda,
conclui-se que o contrário de um poder legítimo seria o poder fundado na força.
Nesse sentido, pode-se dizer que poder legítimo é aquele instituído
por lei e tem suas prerrogativas estipuladas pela instituição de tal poder, já o poder
legal é aquele que está sendo exercido em conformidade com as leis. Alexandre
Botelho (2005, p. 130) ao citar Wolkmer expõe:

Valendo-se das palavras de Wolkmer, cumpre ressaltar que a legalidade


reflete fundamentalmente o acatamento a uma estrutura normativa posta,
vigente e positiva. Compreende a existência de leis, formal e tecnicamente
impostas, que serão obedecidas por condutas sociais presentes em
determinada situação institucional. A legitimidade é fruto de um consenso
11

social, resultado dos desejos coletivos da Sociedade. Ainda que proposto


por Kelsen e considerando-se o valor intrínseco da norma, o Direito não
pode confundir os dois institutos. Em uma cultura jurídica pluralista,
democrática e participativa, a legitimidade não se funda simplesmente em
uma legalidade meramente positivada, mas é fruto da consensualidade das
práticas sociais e das necessidades reconhecidas por esta mesma
Sociedade como reais, justas e éticas. Em não atendendo a estas
qualidades mínimas, pouca ou nenhuma adesão social receberá a norma
jurídica.

Acontece que, nas hipóteses em que há o desvirtuamento da função


do Estado, em promover a paz social e a segurança de todos, o mesmo age à
margem da lei, e quando seus atos são feitos de uma forma negligente ou de pouca
eficácia, mesmo assim, não estão sendo realizados conforme a lei mas em
cumprimento parcial e omisso da própria lei.
Tais situações podem ser observadas facilmente na realidade
vivenciada nas penitenciárias, tendo em vista os casos como superlotação,
homicídios, trafico de drogas ou condições insalubres e desumanas em que os
detentos são submetidos, comprova que o Estado deixa de prover algumas
liberdades individuais e direitos garantidos pela própria constituição do Estado.
Portanto, tendo o Estado sido instituído para tão somente preservar
e observar as garantias individuais de cada membro, facilitando o seu livre exercício
dentro da sociedade e prevenindo que nunca entrem em conflito com as liberdades
e interesses da própria coletividade, forçoso reconhecer que quando se age
contrário a esse fim, o Estado não cumpre mais com sua função, deturpando seus
interesses e corrompendo a própria sociedade, pois abre campo para a
arbitrariedade e passa a agir tão somente fora da legalidade.
Age fora da legalidade, pois é contraditório dizer que o Estado
cumpre com sua função, quando exerce a parcialidade de seus deveres, sendo que
somente pode agir dentro da legalidade quando se observa todos os seus deveres e
direitos, não havendo que se falar em meio termo. Contrário a isso seria tão
somente agir na ilegalidade.
Ainda, tendo sido anteriormente apresentado o raciocínio lógico de
que o poder legislador somente pode ser proveniente do Estado, na medida em que
este detém todo o poder oriundo da concessão mutua de seus membros, tem-se que
o mesmo somente pode agir dentro da legalidade, não podendo ser injusto com
ninguém, pois caso fosse com algum dos seus membros, estaria sendo consigo
mesmo, o que também é contraditório e impossível.
12

Exercendo, dessa forma, a garantia parcial das liberdades


individuais da sociedade, o Estado deixa de possuir a legitimidade para agir em
nome do corpo civil, pois não possui mais o poder de garantidor e, por conseguinte
se dissolve por completo.
Estando nessa situação de degradação do próprio soberano, e
considerando que ROUSSEAU afirmou que um Estado somente pode ser suportado
pela sociedade enquanto se mantiver justo, eficaz e legítimo, conclui-se que o povo
passa a ter o direito de destituí-lo ou substituí-lo, instituindo um novo governo; novo
contrato e novas leis. Tal prerrogativa, na visão do supracitado filósofo, corresponde
ao direito de revolução ou direito de insurreição.
Por fim, na interpretação de A. BOTELHO (2005, p. 131), a situação
apresentada se visualiza na seguinte perspectiva:

A redução dos problemas relativos à ilegitimidade ao campo de atuação do


direito positivo é prejudicial ao avanço democrático da Sociedade, pois em
muitos grupos sociais, nos quais por alguma razão o Estado se afastou
(morros, favelas, periferias, presídios, etc.), a pluralidade jurídica aguarda
também, por uma discussão acerca da legitimidade de suas normas
paralelas às do Estado.
13

4 A FACULDADE MORAL DAS ESCOLHAS E O EXERCÍCIO DO ARBÍTRIO


PARA A PROTEÇÃO DE LIBERDADES INDIVÍDUAIS

Neste ponto, considerando as especificidades do direito no âmbito


da interpretação filosófica de KANT (in Metafísica dos Costumes), é importante
destacar o domínio prático da moral que, concernente à sua conceituação, tem-se
que a definição mais acertada para o momento é a apresentada por Baumgarten,
que na introdução a “Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito”, João
Beckenkamp (2014, p. XVI) esclarece:

Tanto o prático de Kant, como o “que é possível por liberdade” (KrV, A


800/B 828), quanto o moral de Baumgarten, como o que é possível em nexo
com a liberdade, admitem, portanto, e requerem, caso se queira chegar a
uma conceituação apropriada ao rigor das exigências éticas, uma
especificação de seus diferentes sentidos. Talvez a mais básica seja, em
Baumgarten, aquela que distingue entre uma possibilidade moral em
sentido amplo e uma em sentido estrito: “Assim, moralmente possível é: 1)
aquilo que não pode ser feito a não ser por liberdade ou na substância livre
enquanto tal, em sentido lato; 2) aquilo que não pode ser feito a não ser por
liberdade determinada em conformidade com as leis morais, em sentido
estrito, ou lícito” (Baumgarten, Metaphysica, § 723). O sentido amplo do
moral em Baumgarten, assim como o sentido mais amplo do prático em
Kant, é obtido a partir do conceito de liberdade, antes mesmo de se abordar
a relação, possível ou necessária, da liberdade com a legislação da razão.

Portanto, entende-se que a moral em sentido amplo é todo ato que


pode ser consumado por intermédio de uma substância livre, ou seja, pela liberdade
pura da razão do homem. Já com relação à moral em sentido estrito, compreende-
se como sendo todo ato praticado com liberdade, mas em conformidade com as leis,
ou seja, praticado por uma liberdade restringida e determinada pelas leis.
Data vênia ao pensamento exposto acima, mas considerando que o
homem, na definição de ROUSSEAU, é um ser que nasce livre em sua essência e
assim permanece até que seja colocado em “ferros”, bem como considerando a
filosofia prática de KANT que trata sobre as faculdades do ânimo humano, é
necessário para a presente tese, apenas o estudo da moral em sentido amplo, como
sendo a definição mais acertada da moral.
Sim, pois na dedução lógica traçada por KANT, o desejar pode ser
conexo ao prazer ou desprazer, tendo em vista que a faculdade de desejar
(sentimento) é considerada como a faculdade de ser, através das representações, e
14

quando a faculdade de desejar algo é necessariamente conexa ao prazer, afetando


diretamente o sentimento, denomina-se como prazer prático (2014, p. 12).

O prazer que está ligado necessariamente ao desejo (do objeto, cuja


representação afeta assim o sentimento) pode ser chamado de prazer
prático, seja ele causa ou efeito do desejo. Em contraposição, o prazer que
não está ligado necessariamente ao desejo do objeto, o qual não é,
portanto, fundamentalmente um prazer com a existência do objeto de
representação, mas apenas se prense simplesmente à representação,
poderia ser chamado de prazer meramente contemplativo ou complacência
inativa. Ao sentimento da última espécie de prazer chamamos de gosto.
Desse não se falará numa filosofia prática, portanto, como de um conceito
próprio, mas quando muito apenas ocasionalmente. No concernente ao
prazer prático, contudo, a determinação da faculdade de desejar que deve
ser precedida necessariamente por este prazer chamar-se-á, em sentido
estrito, desejo sensível, e o desejo sensível habitual, inclinação, e, porque a
ligação do prazer com a faculdade de desejar, na medida em que esta
conexão é julgada como válida pelo entendimento segundo uma regra
universal (em todo caso, apenas para o sujeito), chama-se interesse, assim
o prazer prático terá de ser chamado neste caso um interesse da inclinação,
ao passo que, se o prazer somente pode seguir-se a uma determinação
precedente da faculdade de desejar, ele terá de ser chamado um prazer
intelectual, e o interesse no objeto, um interesse racional; pois, se o
interesse fosse sensível e não fundamentado apenas em princípios puros
da razão, então a sensação teria de estar ligada com prazer e poder assim
determinar a faculdade de desejar. Ainda que, onde se tem de admitir um
mero interesse racional puro, não se lhe pode atribuir um interesse de
inclinação, pode-se, contudo, para atender à linguagem usual, admitir,
mesmo numa inclinação para aquilo que só pode ser objeto de um prazer
intelectual, um desejo habitual por puro interesse racional, a qual não seria,
no entanto, a causa, mas o efeito do último interesse, podendo ser chamado
de inclinação livre dos sentidos.

É o prazer prático, portanto, que quando conexo a uma consciência


livre da ação que está sendo iniciada e para alcançar um fim denomina-se na
interpretação de KANT (2014, p. 14) como sendo um arbítrio.
O arbítrio, por sua vez, é caracterizado como a vontade pura do
homem oriunda de sua liberdade de escolha, ou seja, o aspecto mais considerável
do arbítrio é apresentado pela faculdade da razão pura, e mesmo que houvesse a
submissão de qualquer máxima ou determinação legal, como ocorre com o
consentimento mútuo de cessão de liberdades individuais, o agente permaneceria
na sua essência com a liberdade de escolha, por suas convicções morais ou éticas,
a adotar o direito ou não. (KANT. 2014, p. 14).

A faculdade de desejar segundo conceitos na medida em que o fundamento


de sua determinação para a ação se encontra nela mesma, e não no objeto,
chama-se uma faculdade de fazer ou deixar de fazer a bel-prazer. Na
medida em que a acompanha a consciência da faculdade de sua ação para
15

a produção do objeto, ela se chama arbítrio, mas, se ela não vem


acompanhada, seu ato se chama mero desejo.

E continua:

O arbítrio que pode ser determinado pela razão pura chama-se arbítrio livre.
Aquele que é determinado só por inclinação (estímulo sensível, stimulus)
seria arbítrio bruto (arbitrium brutum). O arbítrio humano, ao contrário, é um
arbítrio tal que é decerto afetado por estímulos, mas não determinado, não
sendo, portanto, puro em si mesmo (sem a habilidade adquirida da razão),
mas podendo assim mesmo ser determinado a ações por vontade pura. A
liberdade do arbítrio é essa independência de sua determinação por
estímulos sensíveis, sendo esse seu conceito negativo. O positivo é: a
faculdade da razão pura de ser prática por si mesma. Mas isso não é
possível senão pela submissão das máximas de cada ação à condição de
serem aptas a uma lei universal.

Então, conclui-se que o homem pode dirigir sua vontade e seu livre
arbítrio para escolhas que sejam conexas às máximas universais que adota por
critérios pessoais, mas que condizem com sua vontade de conviver em sociedade,
cedendo juntamente com os outros membros, parte de suas liberdades individuais
para a promoção da paz social e a proteção contínua dos direitos que lhe são
reservados.
Ademais, quando o soberano instituído pela livre vontade dos
membros do corpo civil e constituído de um poder oriundo do livre exercício do
arbítrio de cada um para todos e de todos para o Estado, permanece resguardado
aos constituidores, ora subjugados, o direito inato de comandarem a seu próprio
arbítrio, ou seja, de determinarem até quando vão se mantiver submetidos às leis e
à sociedade instituída para esse fim.
Tem-se, ainda, que o livre uso do arbítrio do homem em suas
escolhas, pautando-se por máximas universais que o permite submeter suas
liberdades individuais ao corpo civil ou resguardá-las para si é considerado como
leis da liberdade ou leis morais, que na interpretação de KANT, consiste na
obediência daquilo que deve ser, em contrapartida daquilo que é, característica das
leis da natureza. (BECKENKAMP. 2014, p. XVI):

Pois “estas leis da liberdade chamam-se morais, à diferença de leis


naturais” (MS, AA 06: 214). Ou seja, a alternativa às leis da natureza, leis
daquilo que é, são as leis morais, como leis da liberdade ou daquilo que
deve ser: distinção fundamental da filosofia kantiana, mas que se encontra
prefigurada na Metaphysica de Baumgarten, que também entende as leis
morais como leis de determinação da liberdade: porque o moral em sentido
16

lato compreende tudo o que pode ser dado com a liberdade, é possível
dizer simplesmente que “determinações livres são morais [e...] leis de
determinações morais [são leis] morais” (Baumgarten, Metaphysica, § 723).

Considera-se aqui, a liberdade exercida pelo arbítrio do homem, em


optar pela manutenção de um estado que escolheu para ser de uma forma, e a
recusa desse estado por não estar observando suas aspirações, pois ser de outra
forma.
Assim, pautado pela escolha do que deve ser, permitindo ao homem
destituir esse estado ou até mesmo substituí-lo, atenta-se que, seja qual for sua
escolha, pela razão pratica de KANT ela sempre será moralmente aceita, pois
condiz com as leis da liberdade e sobre as máxima universal de livre exercício das
próprias razões.
E, quando se depara com um Estado que teve sua função
deturpada, não atendendo à proteção das liberdades individuais dos membros do
corpo civil, em sua totalidade, mas fazendo com que uma parcela da sociedade
sofra injustiças, em detrimento de outra parcela mais favorecida, a liberdade destes
injustiçados de renegarem o próprio Estado é um direito inato e moralmente aceito,
pois é amplamente difundido no seu arbítrio de escolha e nas leis da liberdade.
17

5 O CONCEITO DO MERAMENTE PERMITIDO POR KANT E O DIREITO INATO


DE INSURREIÇÃO

Considerando para esse tópico que o homem dotado de seu livre


uso do arbítrio em suas escolhas instituiu um estado de leis jurídicas e morais, com
o fim de ser preservada a paz social e a proteção da convivência mútua entre os
membros do corpo social, concluiu-se que tal homem espera que o Estado instituído
cumpra com perfeição, eficácia e justiça todas as suas funções e, quando se há uma
deturpação das suas funções, tem a faculdade de renegar esse poder soberano,
posto que detém para si tal poder.
Agora, resta demonstrar a argumentação plausível para que o
indivíduo que se encontre na situação exposta, possa reclamar seu direito de
insurreição, bem como declamar sua insubordinação às leis jurídicas impostas por
um Estado corrupto e ineficiente.
Todavia, inicialmente e por amor ao debate, importante apresentar
que por mais que a presente tese se fundamente no raciocínio difundido pela
filosofia prática de KANT, referido pensador defende uma postura diferente quanto à
insurreição dos súditos, ora membros do corpo civil.
Na visão do filósofo, a origem do poder do Estado é incompreensível
e mantem o povo sempre submisso e suportável às injustiças e erros provenientes
do soberano, uma vez que caso fosse o contrário, consideraria uma negação da
soberania e, por conseguinte dissolveria o Estado por ser impossível sua instituição
sem a dita soberania geral. (2014, p. 134):

A origem do poder supremo é, do ponto de vista prático, inescrutável para o


povo que se encontra submetido a ele, i. é, o súdito não deve sofismar
ativamente a propósito dessa origem, como direito ainda contestável (jus
controversum) em vista da obediência que lhe é devida. Pois, uma vez que
o povo, para julgar de forma juridicamente válida o poder supremo do
Estado (summum imperium), deve ser considerado como já estando unido
sob uma vontade legisladora universal, ele não pode nem deve julgar de
modo diferente do que quer o atual chefe de Estado (summum imperans). –
se originalmente precedeu, como um fato, um contrato efetivo de submissão
a ele (pactum subjections civilis), ou se precedeu a violência e a lei veio só
depois, ou mesmo se devia seguir-se nessa ordem, isso são questões
sofísticas inteiramente despropositadas para um povo que já está
submetido à lei civil, mas que constituem uma ameaça ao Estado; pois, se o
súdito que tivesse finalmente descoberto a origem última quisesse se opor
àquela autoridade atualmente dominante, seria castigado, destruído ou
expulso (como fora da lei, exlex) de acordo com as leis dela, i. é, como todo
o direito.
18

Data vênia para discordar do argumento apresentado, posto que


conforme elucidado pelo raciocínio já exposto, quando o homem livre constitui um
estado de direito, cedendo parte de suas liberdades individuais, ele reserva para si
exatamente o poder inerente à insurreição de seu estado atual.
Pois seria ilógico afirmar que um homem se colocaria em um estado
permanente e irretratável, concedendo sem reservas toda a sua liberdade individual
ao bel prazer do poder soberano, sendo que isso o tornaria inseguro até mesmo
juridicamente, bem como justificaria qualquer forma de arbitrariedade do próprio
soberano.
Tal raciocínio não seria lógico nem plausível diante da essência livre
que a alma do homem carrega, em que a única forma de poder que vige sobre seu
livre arbítrio é o poder do consentimento, ou seja, o homem se submete a tal estado
jurídico por consentimento pessoal e faculdade de desejo em viver numa sociedade
pluralizada, organizada e que promova a paz social e a proteção de suas liberdades.
Dito isso, deve atentar-se que a própria argumentação defendida por
KANT sobre o meramente permitido, em que são difundidas as ideias e conceitos de
autorização, imperativo categórico e coação externa das obrigações, são suficientes
para ratificarem a tese ora defendida.
Na introdução à Metafísica dos Costumes, KANT expõe claramente
a definição de Obrigação, que consiste na necessidade de qualquer ação do homem
ser pautada pela liberdade e sob a orientação de um imperativo categórico. Sobre os
imperativos e o imperativo categórico KANT (2014, p. 24) define-os como sendo:

O imperativo é uma regra prática pela qual a ação em si contingente é


tornada necessária. Ele se diferencia de uma lei prática, a qual certamente
também representa a necessidade de uma ação, mas sem levar em
consideração se essa ação em si já se encontra interiormente de forma
necessária no sujeito agente (por exemplo, num ser santo), ou se ela é
contingente (como no homem), pois onde ocorre o primeiro não há
imperativo. Portanto, o imperativo é uma regra cuja representação torna
necessária a ação subjetiva contingente, representando assim o sujeito
como o que tem de ser coagido (necessitado) à concordância com essa
regra. – o imperativo categórico (incondicional) é aquele que pensa e torna
necessária a ação através da mera representação dessa mesma ação (de
sua forma), portanto imediatamente como objetivamente necessária, e não
porventura mediatamente, através de representação de um fim que possa
ser alcançado pela ação; imperativos dessa espécie só podem ser
apresentados como exemplo pela doutrina prática que prescreve obrigação
(a dos costumes). Todos os outros imperativos são técnicos e
condicionados. O fundamento da possibilidade de imperativos categóricos
19

se encontra, contudo, no fato de que eles não se referem a nenhuma


determinação do arbítrio (pela qual lhe pode ser atribuída uma intenção) a
não ser simplesmente à liberdade dessa determinação.

Portanto, com a definição de Obrigação, KANT interpreta uma ação


lícita como sendo aquela que não contraria uma obrigação, sendo que a liberdade
desta ação, quando não é restringida por nenhum imperativo, dá ensejo à definição
pura de Autorização. Dessa forma, qualquer atitude do homem, quando não
contraria uma obrigação imposta é lícita, autorizando-o a defender essa ação, posto
que não seja proibida por nenhum imperativo.
Nesta essa linha de raciocínio, bem como relembrando que na
hipótese de o Estado deturpar sua função, perde sua legalidade e legitimidade, não
há que se falar em imperativo oriundo de um estado inexistente, dissolvido pela
vontade dos membros, nem tampouco se pode dizer que há obrigações legítimas a
serem cumpridas pelos membros nessa situação.
Assim, uma ação que não é obrigada nem proibida, posto que não
seja vinculada a um imperativo categórico, nem tampouco válido, é meramente lícita
e moral, uma vez que não há mais qualquer lei restritiva da liberdade e, portanto,
nenhum dever de cumprimento.
Ademais, ressalta-se que em relação ao permitido, tem-se que a
liberdade de ações do homem, não pode ser restringida por nenhuma lei por
constituir uma autorização refletida como faculdade moral do livre arbítrio, uma vez
que a ação do homem, pautada em máximas universais é autorizada pela faculdade
moral de suas escolhas, suprimindo qualquer estado jurídico que não seja conexo às
leis da liberdade. BECKENKAMP (2014, p. XXIX):

Em relação ao que lhe é permitido, a liberdade já não é restringida por


nenhuma lei, seja prescritiva, seja proibitiva. Pode, portanto, fazer ou deixar
de fazer a seu bel-prazer. Essa liberdade ainda não determinada por lei
alguma constitui a autorização como faculdade moral (facultas moralis), ou
seja, como mera possibilidade moral de agir. Na introdução à doutrina da
virtude (cf. MS, AA 06: 383), essa autorização originada no âmbito da
legislação moral é especificada ainda como faculdade moral em geral
(facultas moralis generatim), para distingui-la da autorização de coagir
outros no sentido de respeitar as decisões e ações provenientes do meu
arbítrio, a qual constitui uma faculdade propriamente jurídica (facultas
jurídica).

Neste contexto, pautado pelo método prático de KANT é importante,


para demonstração de hipóteses em que incide a autorização do homem em adotar
20

a insurreição e, por conseguinte negar o estado jurídico que se encontrar, trazer


como exemplo a realidade vivenciada nas penitenciárias, posto que sendo um fim
para a punição efetiva dos membros do corpo civil que transgredem as regras de
convivências, ou seja, as leis positivadas e impostas à sociedade, deixam de prover
a proteção de diversos direitos individuais.
Tendo em vista que o condenado deve arcar com as consequências
de seus atos injustos, com base na máxima de “deve agir exteriormente de tal
maneira que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de qualquer
um segundo uma lei universal”, é importante restringir o caráter punitivo do indivíduo
apenas concernente na negação do injusto e a confirmação do justo, pautado na
máxima descrita. Em BECKENKAMP (2014, P. XXXVII) entende-se:

O meu direito constitui um dever para os outros, o direito dos outros


constitui um dever para mim. Esse meu dever é inicialmente um dever
jurídico, ou seja, um dever que me pode ser cobrado externamente; mas,
como corresponde a um direito do outro que lhe foi conferido pela razão, ele
será indiretamente também um dever ético, ou seja, um dever que um ser
racional deve admitir como máxima de sua vontade. [...] O direito como
autorização, de tudo o que é lícito, quer dizer, como permissão do não-não-
permitido, do lícito como não-não-lícito.

Percebe-se que o homem jamais pode ser tratado como meio, mas
como fim em si mesmo, e que na qualidade de condenado jamais pode ser utilizado
apenas para alcançar um fim, mas deve ser esse fim, devendo unicamente arcar
com o peso da negação do injusto cometido por ele, com o fim de confirmar o justo e
o lícito e o trazer novamente para a união civil perfeita, resguardando todas as suas
liberdades individuais.
Nesse sentido, KANT (2014, p. 149) afirma categoricamente em sua
exposição sobre os fins da pena no direito que:

A pena judicial (poena forensis), que é diferente da pena natural (poena


naturalis) pela qual o vício se pune a si mesmo e não é levada em
consideração pelo legislador, nunca pode ser infligida meramente como
meio para promover um outro bem, seja para o próprio criminoso, seja para
a sociedade civil, mas tem de ser-lhe infligida sempre apenas por ter
cometido um crime; pois o homem nunca deve ser tratado meramente como
meio para os propósitos de um outro e confundido com as coisas do direito
real, contra o que é protegido por sua personalidade inata, mesmo que
possa ser condenado a perder sua personalidade civil. O criminoso tem de
ter sido considerado punível, antes de se pensar em tirar algum proveito da
pena, seja para o criminoso, seja para seus concidadãos. A lei penal é um
imperativo categórico, e ai daquele que envereda pelos meandros da
doutrina da felicidade para achar algo que o livre, pela vantagem que
21

promete, da pena ou até mesmo de mínimo grau dela, segundo a máxima


farisaica: “É melhor que morra um único homem do que se corrompa o povo
inteiro!” Pois, se parece a justiça, já não tem nenhum valor que existam
homens sobre a Terra.

Ora, diante de tal raciocínio lógico, ao se analisar as penitenciárias


brasileiras, chaga-se facilmente à conclusão de que o homem não só sofre
continuamente uma violação de suas liberdades individuais, mas também está
sendo utilizado como meio pelo próprio Estado.
Sim, pois se é vedado ao condenado uma vida digna e respeitável
durante o período de negação do injusto, privando-o de conforto físico; proteção
contra abusos sexuais; agressões físicas e psicológicas; proteção à saúde e
prevenção ao uso de entorpecentes; submissão a celas superlotadas, insalubres e
de condições degradantes, conclui-se que o Estado age à margem da legalidade,
pois é ineficaz em proteger todos esses direitos e liberdades individuais.
Agindo dessa forma, não há outra constatação a não ser de que o
próprio Estado está a usar os condenados apenas para cumprir metas; por
obediência às decisões judicias; por respeito às “leis jurídicas” impostas e para
simplesmente dar uma resposta confortável à sociedade quanto à “efetivação” da
negação do injusto.
Acontece que, estando o homem a ser injustiçado e reduzido a um
meio para alcançar um fim vil, bem como não lhe sendo promovido ou protegido
seus direitos e liberdades individuais, é direito inato de sua moral individual não só
renegar esse estado jurídico que se encontra como também lhe nasce o direito legal
e moral de resistir ao injusto.
Pois, se o homem, na qualidade de condenado está a ter a sua
liberdade restringida para negar o injusto que cometeu, este tem por simetria e
isonomia o direito de também restringir a liberdade e legitimidade do Estado para
negar o injusto que lhe está sendo cometido e confirmar o justo que lhe é de direito.
Sobre essa linha de pensamento, KANT (2014, p. 35) de forma
ímpar fundamenta a razão para a efetivação desse direito de coação aplicado aos
indivíduos particulares, mas que sendo utilizado nesta tese, deve ser ampliado por
analogia às relações jurídicas entre indivíduos, ora condenados, com o próprio
Estado.
22

Se minha ação, portanto, ou em geral meu estado, pode coexistir com a


liberdade de qualquer um segundo uma lei universal, então aquele que me
impede nisso é injusto para comigo, pois esse impedimento (essa
resistência) não pode coexistir com a liberdade segundo leis universais.

BECKENKAMP (2014, p. XLIX) interpretando essa passagem de


KANT esclarece esse direito como sendo:

Desde que minha ação seja justa, quer dizer, tal que permite a coexistência
de meu arbítrio com o arbítrio de todos os outros, não impedindo, assim, o
livre exercício dos demais arbítrios, estou plenamente autorizado pela razão
a rejeitá-la. Em outros termos, tenho a faculdade moral plena de realizar
uma ação justa, neste preciso sentido, ou seja, tenho o direito de realiza-la
ou de determinar meu arbítrio no sentido de sua realização no mundo
externo. A ação injusta é, por derivação, aquele que impede a realização de
uma ação justa, quer dizer, aquele que impede o livre exercício do arbítrio
alheio, constituindo, por conseguinte, um obstáculo à coexistência universal
dos arbítrios livres.

Partindo desse raciocínio, se uma ação injusta é aquela que impede


o arbítrio no exercício da liberdade e, in casu, pode-se verificar que a forma como o
Estado age com relação aos condenados é injusta, segundo o princípio da
universalidade, então impedir essa ação injusta é considerado como uma ação justa,
ou seja, impedir o Estado, por meio de motins, revoltas, greves, insurreições em
geral, dentro ou fora das penitenciárias é moralmente justo.
Assim, quando se depara com a insurreição dos condenados com o
fim de anunciar a degradação de sua humanidade e a submissão de condições
insuportáveis sem as garantias constitucionais, tem-se que se trata de um
impedimento ao impedimento de uma ação justa pretendida inicialmente.
KANT, na Introdução à Doutrina do Direito, mostra com clareza que
o direito deve ser acompanhado da autorização de coagir, o que pode também ser
aplicado aos condenados, reconhecendo como conexos, o direito de insurreição e
de coação contra o Estado pelo estado jurídico imposto. (2014, p. 36):

A resistência que se opõe ao impedimento de um efeito é uma promoção


desse efeito e concorda com ele. Ora, tudo o que injusto é um impedimento
da liberdade segundo leis universais; a coação, no entanto, é um
impedimento ou resistência sofrida pela liberdade. Por conseguinte, se certo
uso da liberdade é ele mesmo um impedimento da liberdade segundo leis
universais (i. é, injusto), então a coação que lhe é oposta é, enquanto
impedimento de um impedimento da liberdade, concordante com a
liberdade segundo leis universais, i. é, justa: portanto, de acordo com o
princípio de contradição, está ligado ao direito ao mesmo tempo uma
autorização de coagir aquele que lhe causa prejuízo.
23

Tem-se, portanto, que com esta fundamentação apresentada


depara-se com uma colisão de deveres, quais sejam, o dever de coação para
impedir o impedimento de liberdade, segundo a lei universal da liberdade e o dever
de obediência às leis jurídicas impostas.
Acontece que quando se há a colisão de deveres haveria por lógica
uma relação entre esses deveres pela qual um suprimiria o outro. Todavia, como
duas regras opostas uma a outra não podem ser necessárias e obedecidas ao
mesmo tempo, mas deve-se agir de acordo com apenas uma delas, não se pode
concluir pela supressão de uma em relação à outra.
O que se deve concluir dessa colisão apresentada é a opção pela
dedução lógica de que quando se tem dois fundamentos para a obediência de duas
normas legais e universais colidindo entre si, a filosofia prática prevê que o
fundamento da obrigação mais forte deve predominar.
Nesse caso, o fundamento da liberdade do arbítrio praticada pelo
indivíduo constituindo do estado em que se encontra e pautado pela liberdade moral
e justa de seus atos deve ser predominante ao fundamento de um estado jurídico
constituído pelo próprio indivíduo, mas ineficaz no cumprimento de suas funções e
na proteção das liberdades individuais.
24

6 CONCLUSÃO

A tese apresenta, como se verificou no decorrer da formação de


toda a argumentação lógica e pautada pelo método prático de KANT, comprova que
todo homem possui a faculdade moral de controle de seu próprio arbítrio, razão
suficiente que o faz constituinte de um estado jurídico de convivência mútua com
seus pares.
Tal liberdade possibilita ao indivíduo que cesse parte de suas
liberdades individuais, com o fim de manter uma ordem central de controle e
orientação de todo o corpo civil, mas com a condição de que as liberdades
individuais sejam preservadas, promovidas e sempre incentivas ao uso coexistente
com os demais arbítrios, como função essencial desse Estado soberano criado.
Acontece que também é da liberdade universal do indivíduo reservar
para si o direito de aderir ou não ao presente estado jurídico, bem como de renega-
lo quando se há a deturpação de suas funções primárias, o que perfeitamente o
autoriza moralmente a coagir o Estado, negando as injustiças praticadas e por fim
confirmando suas liberdades individuais, ou ate mesmo destitui-lo.
Quando se há a destituição de tal ordem jurídica, passa-se não ao
estado de natureza, mas simplesmente ao estado de ausência de direito, o que
faculta também ao homem, detentor de autonomia do próprio arbítrio criar novo
sistema jurídico ou aderir a novo corpo civil, formado sem máculas e em observação
às máximas universais de liberdade e paz social.
Por fim, tendo sido fundamentado todo esse raciocínio lógico,
concernente à prática, vislumbra-se com autorizado e moralmente aceito a
insurreição aderida pelos condenados em penitenciárias, para coagirem o Estado a
impedir o injusto e confirmar o justo, restabelecendo a ordem natural das coisas.
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REFERÊNCIAS

BECKENKAMP, João. Introdução Princípios metafísicos da doutrina do


direito/Immanuel Kant [tradução]– São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

BOBBIO, N. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora


UNB, 1999.

BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política. 1. ed. Santa Catarina: Obra


Jurídica, 2002.

MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. São Paulo:


Editora WMF Martins Fontes, 2014. – (Biblioteca jurídica WMF), Titulo Original:
Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre.

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