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FAMÍLIA E SOCIEDADE A ORGANIZAÇÃO POLICIAL NUMA ÁREA

EM DOIS LIVROS M ETI<OPOUTANA*


''POLÊMICOS'' Antônio Luiz Paixão
Poucas organizações evocam uma polícia nílo .é de forma alguma irrelevante.
avaliação negativa tão consensual quanto a Porém, se ela nos diz muito sobre os níveis
polícia. Entretanto, ela é mais temida que de repressão no sistema político, informa
conhecida pelo cientista social brasileiro. 1 pouco sobre a organizaçílo policial. Algo
Aparece na literatura quando se ocupa da análogo ocorre nas referências sociológicas
repressão política 2 e, enquanto tal, é vista â organização militar: ao privilegiar o cará-
como cão de guarda das classes dominan- ter instrumental da inteiVenção militar na
tes, um instrumento dócil nas mãos de seus política, o analista minimiza a capacidade
mestres. organizacional de formular objetivos pró-
Esta ênfase nas funções políticas da prios, de explorar o ambiente e de impor

* Este trabalho, apresentado no IV'? Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e


Pesquisa em Ciências Sociais (Rio de Janeiro, outubro de 1980), resulta da pesquisa sobre "Crimi-
nalidade e Violência Urbana", conduzida pelo autor na Fundação João Pinheiro, com suporte fi-
FAM:itiA, PSICOLOGIA E REPRESSÃO SEXUAL nanceiro da Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral do Estado de Minas Gerais. Agrade-
SOCIEDADE ço a Antônio Octávio Cintra e Marcos Coimbra o apoio institucional e discussões constantes do
Jos Van Ussel
trabalho. Almira Rodrigues Bastos e Patrícia de Souza Lima colaboraram amplamente, tanto na
Coordenação de Gilberto Velho Cr$ 1.390,00, 292 páginas coleta de dados como na elaboração dos temas centrais do trabalho. Carla Machado de Souza,
e SétvUlo A. Figueira Sandra M. de Matos, Luciana Teixeira, Gustavo Gazzinelli e Marcelo J. C. Marinho ultrapassaram
Verdadeiro requisitório contra a
Cr$ 1.990,00, 348 páginas em interesse e envolvimento sua função de estagiários. Antônio Augusto Prates, Edmundo Cam-
mistificação de instituições pos Coelho e Geraldo Magela M. Duarte contribuíram para a melhoria de diversos aspectos do tra-
Artigos de vários autores como o casamento, contra as balho, assim como os participantes do Grupo de Trabalho "Organizações e Sociedade", da men-
contendo rf\flexões sobre o papel proibições lançadas sobre a cionada Associação. Sou grato a todos, embora seja minha a responsabilidade pelo resultado final.
da faml1ia e do casal na concepção e o aborto, contra a
Sociedade modema e suas intolerância de que são vítimas Este desconhecimento não é acidental e se deve tanto à relativa inacessibilidade da organização a
inter-relações com a vida psíquica os grupos minoritários, e contra observadores externos quanto à hostilidade dos cientistas sociais em relação a uma organização
dos sujeitos. O tema é tratado de várias outras situações que encarna a negação dos valores liberais próprios da profissão.
modo diversificado e rico. extremamente polêmicas. l Ver, por exemplo, Paulo Sérgio Pinheiro, "Violência do Estado e Classes Populares", Dados n<?
22, 1979,pp.5-24.

À VENDA NAS LIVRARIAS OU NA

a
EDITORA CAMPUS L'IDA.
r

Rua Japeri, 35 Rio Comprido


20261 Rio de Janeiro - RJ.

dados Revista de Ciências Sociu.is, Rio de Janeiro, Vol. 25, n<?l, 1982, pp. 63 a 85.
trasta fortemente com o poder do policial níveis hierárquicos são claramente distin-
suas premissas a grupos sociais e institui- rivalidade e conflito interorganizacional frente a sua clientela, e quando nos referi- tos e a coerência entre estrutura e ativida-
ções mais amplos. 3 Ou seja: organizações, do que o formalmente esperado-, a sub- mos a problemas como recalcitrância, "ló- de prática se deve à execução, pelos níveis
em geral, são instrumentos recalcitrantes4 missão da polícia a premissas decisórias gica em uso", ideologias e tipificações, es- mais baixos da hierarquia, dos comandos
e organizações poderosas tendem muito (ou a "aplicação de normas") formuladas tamos tentando definir como a organiza- emitidos pela cúpula. 11
mais a estruturar o ambiente do que a rea- pelo Judiciário. 6 ção policial estrutura suas atividade!l e uti- Entretanto, a pesquisa empírica so-
gir cegamente a "determinações" extemas. 5 Já se notou também que a "lógica liza seu poder na sociedade. bre organizações policiais desafia o mode-
Os temas da recalcitrância e da capa- em uso" do policial implica normalmen- lo burocrático em alguns pontos cruciais:
cidade de implementação de definições orga- te inversão dos formalismos legais de pro- -a atividade policial é, em grande
A ORGANIZAÇÃO POLICIAL:
nizacionais da realidade ganham maior ni- cessamento de criminosos. Mais do que ESTRUTURA FORMAL E ATIVIDADES parte, voltada para relações externas e
tidez na análise das relações entre a polí- categorias legais, ideologias e estereótipos conjlitivas (com o sistema legal, com a
PRATICAS 12
cia e o sistema legal, do qual ela é formal- formulados organizacionalmente orientam clientela, com o sistema político);
mente instrumento ou "braço armado". a ação dos membros de "linha" em sua ati- Convencionalmente, a análise organi- esta atividade demanda alocação
Na perspectiva instrumental, a polícia im- vidade rotineira 7 e estas ideologias e tipi- zacional procede através da identificação de discreção nos níveis hierárquicos mais
plementa a violência (legítima ou ilegíti- ficações tomam mais econômica a ação po- de estruturas formais de coordenação de baixos da organização: o significado da lei
ma) do Estado para neutralizar ou elimi- licial,8 na medida em que esta é orientada indivíduos e suas atividades, no sentido de e da ordem é determinado nos encontros
nar dissidentes políticos, domesticar as para a vigilância e controle das "classes alcançar objetivos previamente definidos. rotineiros e cotidianos do policial e sua
classes subalternas e manipular ideologi- perigosas".9 Estas estruturas são afetadas, por um lado, clientela nas ruas;
13

camente a classe média. Para a abordagem Entretanto, mesmo tendo o poder de pelo meio-ambiente e, por outro, pelas tec- -isto porque o policial enfrenta si-
organizacional, a mediação exercida pela interpretar a lei (ou de decidir instâncias de nologias disponíveis para o processamento tuações ambíguas, dificilmente decididas
polícia entre a lei impessoal e o universo aplicação ou não de categorias legais a atos de matéria-prima em produtos organizacio- por "planejamento" ou consulta a níveis
14
de cidadãos é problemática. e indivíduos), falta à polícia- ao contrá- nais.10 hierárquicos superiores;
I! bem conhecida a tendência de rio do Exército a capacidade de moldar Aplicado à análise da organização po- -estes, por sua vez, têm como base
organizações policiais à execução de fun- a estrutura institucional da sociedade a suas licial, este paradigma leva à formação de de autoridade não tanto a posição funcio-
15
ções judiciárias - o "Esquadrão da Mor- definições de missão e objetivos. Este baixo modelos contraditórios. À ênfase na estru- nal, mas qualidades pessoais e estes pa-
te" constituindo o exemplo mais dramá- poder institucional (freqüentemente discu- tura fonnal corresponde a construção do drões de "subordinação personalizada" per-
tico - e, rotineiramente refletindo-se tido na literatura em termos de "isolamen- modelo "quase-militar" da polícia, onde a meiam as relações entre níveis hierárquicos
nos padrões de "cooperação antagonísti- to" ou "desconfiança" em relação a insti- autoridade é fortemente centralizada, os na organização policial. 16
ca" que configuram mais instâncias de tuições e grupos centrais na sociedade) con ·
'
3 Ver Edmundo Campos Coelho, Em Busca de ldentidllde: O Exh'cito e a Pol(tlca na Sociedade 10 v exemplo Charles Perrow "A Framework for Comparative Organizational Analysls",
Brasileira, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1976. '
er, por Sociological H Udy • "The .Com •
Review, 32, 'n9 2, Abril,1967,pp.1 94 -208 e Stanley ·
American
4
parative Study of Organit.ations". ln: J. G. March, Ed., Handbook of Organizatlona, Chtcago,
Sobre este tema ver P. Selznick, "Foundations of a Theory ofOrganizations",Amerfcan Sociolo-
Rand McNally, 1965, pp. 678-709.
gical Review, 13, 1948, pp. 25-35.
11 Ver John M. Jermier e Leslie J. Berkes, "Leader Behavior in a Pollce Command Bureaucracy: A
Charles Perrow, Complex OrganiZtltions: A Criticai Eslll)l, Glenview, Scott, Foresman and Compa- Closer Look at the Quasi-Military Model",Administrative Science Quarterly, 24, Março, 1979,
ny, 1979 (2~ Edição), caps. 5 e 6.
pp.1-23.
6 Ver Albert J. Reiss, Jr. e David J. Bordua, "Environment and Orpnization: A Perspective on the 1'2 Ver A. J. Reiss, Jr. e D. J. Bordua, art. cit.
Police". ln: D. J. Bordua, Ed., The Poffce:Six Sociological Ealltlys. New York, John WJ.ley & Sons,
1967' pp. 25-55. 13 Cf. A. Cicourel, op. cit. e C. Wethman e I. Piliavin, art. cit.
A. Cicourel, The Socilll Organlzation of JuvenUe Justice, New York, John Wiley & Sons, 1968, 14 C. Wethman e I. Piliavin, art. cit.
pp.l12-123.
15 R. L. Peabody, "Perceptions of Organizational Authority", Admlnistratil'e Science Quarterly.
8 C. Werthman e I. Piliavin, "Gang Members and the Police". ln: D. J. Bordua, Ed. op. cit., pp. 56- Março, 1962, pp. 463-482.
98.
16 A. J. Reiss,Jr.e D. J. Bordua,art.cit.
9 D. Matza,Becomlng Devillnt, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1969.

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Estes pontos configuram, em linhas vidades, regras são freqüentemente viola- processos. A estrutura das delegacias é aná- res e carcereiros (embora a supervislo cons-
gerais, um modelo discricionário de orga- das, decisões freqüentemente não são im- loga à estrutura do judiciário, expressando tante, na delegacia, apareça freqüentemen-
nização policial, onde o foco se desloca da plementadas e, se implementadas, têm con- as exigências do Código Processual Penal. O te como um atributo do delegado compe-
estrutura formal para a "realidade de senso seqüências incertas, tecnologias têm efi- Quadro 1 mostra, simplificadamente, a es- tente), o que implica "perdoar certas coi-
comum do trabalho policial" (P. Manning), ciência problemática e sistemas de avalia- trutura da polícia metropolitana. sas que eles fazem". 22 Daí o alto grau
visto como o exercício de um papel media- ção e inspeção são subvertidos ou tomam- O acesso às diversas carreiras policiais de coesão entre delegados, inspetores e in·
dor entre a estrutura burocrática e seu se tão vagos que possibilitam pouca coor- se dá através de concursos públicos, cada vestigadores, e a: tendência ao estabeleci-
meio ambiente. Esta atividade mediadora denação.19 Entretanto, é através da crença carreira exigindo requisitos mínimos de es- mento do que um dos entrevistados cha-
ndcessita autonomia porque ela é, em gran- de que atividades práticas derivam e são colaridade, e a socialização se completa em mou de "microgrupos", como unidade da
de parte, exercida fora do campo de obser- controladas pelo desenho racional da es- cursos formais, realizados na Academia de estrutura social da polícia: grupos integra-
vação de superiores hierárquicos (na rua, trutura que organizações adquirem legiti- Polícia Civil. Cada carreira se subdivide em doS', formados em grande parte por escolha
em locais "suspeitos") e um dos correlatas midade junto ao ambiente externo. diversas classes e a promoção a cada uma pessoal do delegado e que o acompanham
da discreção é a capacidade dos níveis infe. Este trabalho procura explorar a uti- delas segue os critérios de mérito e antigüi- ao longo de sua carreira.
riores de resistência a estratégias formais de lidade da perspectiva organizacional para a dade. Estes são regulados pela própria pro- Lealdades pessoais, entretanto, não
controle organizacional (pela manipulação "compreensão" da polícia civil. Usamos, fissão, através do Conselho Superior da Po- implicam redução de distâncias hierár-
de informação, pela interferência nos cur- em caráter exploratório e preliminar, da- lícia Civil. quicas, que são reafirmadas cerimonialmen-
sos posteriores de processamento de clien- dos empíricos resultantes de entrevistas em Centralização, hierarquia, disciplina, te no cotidiano da organizaçíro delegados
tela etc). Organizações policiais experimen- profundidade com policiais em diferentes princípio de carreira, universalismo e pro- usam terno e gravata, enquanto os demais
tam intensamente o "paradoxo da discre- posições hierárquicas e de alguns meses de fissionalismo são atributos que aproximam policiais se vestem informalmente; o dele-
ção" - a coexistência da autonomia de observação em delegacias distritais e espe- a Polícia Metropolitana do modelo "quase- gado é sempre tratado como doutor; co·
funcionários de nível hierárquico inferior cializadas na região metropolitana de Belo militar"20 e que permitem insular a organi- municações de ocorrências utilizam a se-
com a rigidez de controles burocráticos for- Horizonte. zação de seu ambiente - especialmente em gunda pessoa do plural e inferiores só en-
mais.~' relação ao envolvimento político. Entretan- tram na sala do delegado a seú comando. "'
Ora, o "paradoxo da discreção" (ou to, entrevistas com policiais introduzem Uma outra dimensão do personalismo diz
A ESTRUTURA FORMAL E SEUS USOS respeito à identidade entre posição e pes-
a tensão entre burocracia e profissionalis- alguns problemas nesta descrição estrutural.
mo, estrutura formal e atividades práticas, A polícia segue padrões burocráticos O primeiro deles tem a ver com a na- soa nos níveis mais altos da hierarquia:
controle e autonomia) aproxima a análise rígidos de organização. No topo da hierar- tureza das relações entre ocupantes das di- "Falar mal do órgão X é falar mal do dele-
da organização policial de alguns desenvol- quia está o Secretário de Segurança Públi- versas posições na hierarquia. Este relacio- gado e falar mal do delegado é falar mal
vimentos recentes na teoria organizacio- ca (o Chefe de Polícia), ao qual se subordi- namento aparece nas entrevistas como for- de toda a classe".23 Esta identidade amplia
nal.18 Esta perspecliva ao contrário do nam diversos Departamentos e Superinten- temente personálizado. O delegado é des- a precariedade dos mecanismos formais de
paradigma convencional que vê, na imple- dências, administrativos e operacionais. Ao crito como um modelo de comportamento avaliação e inspeção.
mentação de um modelo racional, a lógica nível de distrito policial, cabe ao delegado para seus subordinados e seu estilo pessoal Algumas características específicas
da atividade organizacional - define orga- presidir inquéritos e processos, secretaria- se imprime na delegacia.21 Em contrapar- da carreira policial contribuem para a am-
nizações como sistemas debilmente inte- dos por escrivãos e escreventes. Peritos cri- tida, ele depende da lealdade de inspetores pliação deste problema. Uma delas é a dis-
grados: "elementos estruturais são apenas minais e investigadores oferecem evidências e subinspetores para controlar investigado- tribuição temporal do trabalho policial. A
frouxamente ligados uns aos outros e a ati- e informações que são incorporadas aos

20 Pudemos experimentar, ao longo do trabalho de campo, diversas ~stância~ de sensibili~ade de


17 Ver J. M. Jermier e L. J. Berkes, art. cit. e Jeffrey M. Prottas, "The Power of the Street Level policiais a "ordens de cima" e a probabilidade de censura por supe~1ores: d1~rsas entreVIstas fo-
Bureaucrat in Public Service Bureaucracies'', Urban Affairll QUDTterly, 13, 1978, pp. 285-312. ram concedidas após consulta ao Secretário e para termos acesso as delegactas percorremos to-
dos os níveis hierárquicos entre o Delegado e a Subsecretaria de Estado. . . _ .
18 Ver M. Meyer et aL, Environmentll and Organizatiom: Theoretical and Empirical Perapectivell, 21 "Se 0 Delegado é do tipo truculento e aparatoso, daí a pouco todos os mves~dores.estao eJU-
San Francisco, Jossey-Bass Inc., 1978 e John W. Meyer e Brian Rowan, "Institutionalized Orga- bindo armas na Delegacia", Entrevista, ou "O pessoal de baix.o tem seus ídolos , Entrevista.
nizations: Formal Structure as Mith and Ceremony", American Joumal of Sociology, 83, n<? 2,
setembro, 1977, pp. 340-363. 22 Entrevista.
19 J. W. Meyer e B. Rowan, art. cit., p. 343. Entrevista.

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distribuição semanal rotineira do trabalho na organização), geralmente relacionados correspondem a gratificações de Regime migos externos e a proteção contra um am-
de um investigador é a seguinte: trabalha com a atividade policial (motorista, guarda Policial e de Tempo Integral, que não são biente hostil contribuem para ampliar a
14 horas; folga - 54 horas; trabalha particular etc.), implicando a possibilida- incorporadas na aposentadoria. Nos níveis dependência indiviqual em relação à or-
4,30 horas; folga - 24 horas. Isso quer di- de de utilização da "carteirinha" e, conse- mais baiXos da hierarquia, a conjugação de ganização, intensificando seu caráter de
zer que o policial, nos níveis inferiores da qüentemente, no uso privado de recursos regime de trabalho flexível e baixa remu- "comunidade de destino" e afetando o de-
hierarquia, tem condições de desenvolver organizacionai_s. neração pode transformar a ocupação poli- senho racional da estrutura formal.
outros tipos de atividade (o que constitui, Outra diz respeito à remuneração do cial em atividade secundária. Entretanto, Na medida em que o quadro de pes-
invariavelmente, uma das motivações cen- trabalho. A pollcia se julga mal-remunera- uma resposta comum é a saída da organi- soal da polícia é limitado e a renovação é
trais para a permanência de investigadores da:24 cerca de 7fffo do salário de policiais zação.25 Nos níVeis mais altos, há um es- lenta nas classes superiores, a estrutura or-
tímulo inverso: "Delegado só sai da polí· ganizacional pode ser descrita como uma
cia na alça do caixão" .26 Mas é ilusório pirâmide de vértice bem agudo, composto
Quadro 1
explicar apenas pela variável salarial o cará- por 36 .delegados gerais, que ocupam as po-
Estrutura Formal da Organi7.ação
ter vitalício que assume a atividade policial: sições de mando na organização.
"o sujeito saindo da ativa perde todas as Este poder se institucionaliza no
Secretário prerrogativas" .27 Vantagens salariais é uma Conselho Superior de Polícia Civil - com-
de Segurança
Pública delas, mas há outras, também relevantes. posto por 7 delegados gerais em chefias de
Por um lado, a atividade policial implica Superintendências e Departamentos -, que
"broncas", conflitos personalizados com assessora o Secretário de Segurança Públi-
indivíduos e grupos afetados no curso da ca, funciona como câmara disciplinar e,
ação policial. Neste caso, "estar sob as o que é estratégico, decide sobre nomea-
asas da polícia" significa proteção pessoal ções e promoções (concursos públicos de-
em relação a interesses grupais ou in- finem apenas a entrada na classe inicial de
dividuais atingidos. Por outro, a resistên- cada carreira). Há, portanto, uma "perpe-
cia à aposentadoria é uma resposta ao iso- tuação de pessoas na direção" 29 que, agre-
lamento social (que discutiremos mais tar· gada às dimensões de personalismo nas re-
de) intensamente experimentado pelo poli· lações organizacionais, introduz a politiza-
cial: "a classe é um apoio diante da margi- ção na polícia: "o pessoal de baixo tem que
nalização da gente pela sociedade~'. 28 As- ficar muito ligado ao pessoal de cima, que
sim, incentivos como a manutenção do sa- é sempre omesmo".30
lário indireto, a segurança em relação a ini- A politização na polícia tem signifi-

organização é forçada a recrntar mão-de-obra abaixo dos padrões satisfatórios, o que afeta ne-
gativamente a perfornumce da policia.
25 O tum-over é maior entre escrivãos e peritos criminais, principalmente: "os universitários que
passam no concurso tentam ser delegados, não conseguem e vão embora ... Cerca de 25 delegados
se transferiram recentemente para o Ministério Público, onde o salário é mais alto e há menor
fiscalização" Entrevista.
26 Entrevista.
27 Entrevista.
28 Entrevista. "Para a polícia, vingar a morte de polictal é ponto de honra".

2\l Entrevista.
A referência aos baixos salários é uma constante no discurso policial que avalia a própria orga-
nização: porque salários são baixos, a prot'!ssão perde a capacidade competitiva no mercado e a 30 Entrevista.

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cados diferentes conforme o nível hierár- político de chances de promoção na carrei- está limitada ao rodízio de delegados ge- tifica mais com a PM por causa da forma-
quico e a atividade (administração e "li- ra configuram uma nova imagem estrutural rais entre as 36 posições fundamentalmente ção" .37
nha") do policial. Para o pessoal de nível de características quase feudais, cuja unida- destinadas a eles -e este rodízio é proble- Mas se o Secretário de Segurança tem
hierárquico mais baixo, estar bem situado de é constituída pelo que um dos entrevis- mático. Se por um lado "o rodízio é salu- pouca capacidade de intervenção na polí-
na política da organização significa a possi- tados chamou de "pirâmides paralelas" ou tar, mesmo sem fatos objetivos, porque tica interna da polícia a arena onde gru-
bilidade de desvio de função -a substitui- "microgrupos" liderados por delegados ge- desfaz ligações", 34 por outro afeta o desen- pos competem por bens materiais e simbó-
ção do plantão policial com seus custos por rais que barganham e competem por vanta- volvimento de especialidades na organiza- licos -, ele é o Chefe de Polícia e a obe-
uma função burocrática na Secretaria de gens pessoais na alocação e promoção de ção: "temos delegacias especializadas, mas diência a ordens superiores como carac-
Segurança Pública, conservando as vanta- pessoal. Portanto, para os delegados gerais, não temos policiais especializados. Quando terística comportamental da pol(cia não é
gens salariais e os descansos regulamentares a participação no Conselho Superior de Po- muda o delegado, ele leva o seu grupo e até subvertida pelos conflitos internos: "polí-
do serviço de linha- e/ou promoção mais lícia Civil toma-se uma condição crucial pa- a mesa". 35 Portanto, o poder da autorida- cia é funcionário público e funcionário
rápida. Para os delegados, participar do gru- ra o exercício de poder na organização. de central é limitado, principalmente quan- dança conforme a música. A hierarquia é
po hegemônico quer dizer chances maiores Daí o caráter peculiar do conflito na do esta autoridade é "externa" à organiza- respeitada". 38
de promoção, de escolha de postos (alguns organização policial: embora alguns entre- ção, recrutada no Exército. O controle mi- A estrutura "quase feudal" é uma
implicando vantagens salariais) e de exer- vistados tenham sugerido uma linha ideoló- litar sobre a Secretaria de Segurança Públi- descrição racionalizada da política interna
cício de influência na Secretaria. Poli- gica de clivagem, separando "policiais mais ca implica tanto mudanças constantes da organização, no sentido em que ofere-
ciais de "linha" são geralmente críticos em policiais" 32 de "policiais que têm o direito na Chefia de Polícia (se o Secretário é mi- ce prescrições para a mobilidade ocupacio-
relaçíio à influência política na determina- ã frente da atividade policial", para a maio- litar da ativa só pode exercer o posto por nal do policial e critérios para determina-
ção da carreira: "A gente trabalha de estou- ria deles o conflito na polícia se trava entre 2 anos, ou seja, "quando ele começa a en- ção do poder relativo de grupos internos.
rar maloca, se arrisca, segura a barra, com- "pirâmides paralelas", competindo por van- tender o problema, ele sai")36 quanto Atívidade política e estrutura formal arti-
pra bronca para todo lado, não é promovi- tagens relativas para o grupo. Mas, sendo uma clara distância profissional entre o mi- culam-se frouxamente - a autoridade cen-
do a não ser por antigüidade e ainda está um conflito interpares, suas regras são bas- litar e os delegados bacharéis em direito. tral retém o poder de selecionar o grupo di-
sujeito a levar um PC -1 O". 31 tante claras - o dissenso interno não afeta O Secretário dispõe de algumas es- rigente; "pirâmides paralelas" reproduzem,
À rígida determinação burocrática da a coesão da categoria frente a pressões ex- tratégias de intervenção que têm sido uti- em menor escala, as linhas hierárquicas for-
"polícia de carreira", a realidade prática da temas: "Briga de delegado é igual briga de lizadas na organização. Uma delas é o rodí- malmente estabelecidas e lealdades pessoais
"micropolítica" organizacional opõe a marido e mulher. Se alguém de fora entra, zio nas Chefias. Outra é a aceitação tácita ampliam a capacidade das autoridades de
"carreira de polícia" a mobilidade ocu- eles fazem as pazes e se unem contra o do poder de um grupo, que passa a dirigir mobilizar energia dos subordinados para
pacional através de investimentos políticos cara".33 Por outro lado, o resultado das a política interna da organização. Mas, em fms organizacionais.
bem-,'!ucedidos -,~e implica o respeito a "guerras internas" é a marginalização polí- ambos os casos, o resultado final é o mes- Entretanto, há uma nítida disjunção
algumas regras básicas como condiçíio para tica das "pirâmides paralelas" derrotadas: mo - a captura da autoridade centrai por entre a atividade política, dominada por
o desenvolvimento da carreira: o policial o grupo dominante comanda mas "não pisa grupos na organização. Criando um novo dimensões particularistas e personalizadas,
não deve aparecer demais, principalmente na moela do adversário", que espera "no grupo ou apoiando-se numa das facções e a estrutura formal burocrática:39 o dese-
na Imprensa; deve sempre explicitar a par- corredor" as alterações na composição dos existentes, o Secretário se isola no Gabi- nho racional permite à organização policial
ticipação de superiores hierárquicos em postos centrais para a volta ao poder. nete: "um ou outro é mais flexível, mas a apresentar-se como uma agência de imple-
seus atos profissionais e, o que é fundamen- Entretanto, a capacidade da autori- maioria não assimila a política e se iden- mentação de justiça igualitária. Recmta-
tal, não deve ter "bronca" na Corregedoria. dade central (o Secretário de Segurança
Personalismo, vitaliciedade e controle Pública) de afetar esta estrutura de poder 34 Entrevista.
35 Entrevista.
31
Entrevista. PC-10 é o último documento do inquérito policial, onde o criminoso é identiticâdo. 36 Entrevista.
Ou seja, com uma def"mição de papel do tipo "guerreiro contra o crime". Uma definição precisa
Entrevista.
é dada por uma citação constante em documentos da Associação dos Delegados: "Na Polícia
não há lugar para os tímidos, os acomodados e os covardes. Nela só deverão permanecer os for: 38 Entrevista.
tese os valentes" (Dr. Luiz Soares da Rocha).
39 Sobre os mecanismos de disjunção (decoupling) entre estruturas e atividades organizacionais, ver
33
Entrevista. Meyer e Rowan, art. cit. e Meyer et al., op. cit.

70 71
mento em bases universalistas (envolvendo ta articulação é pouco estruturada. Policiais Quadro 2
concursos públicos, cursos de aperfeiçoa- "linha-de-frente" freqüentam pouco a Se- Fluxo de Atividades (Judiciárias)
mento, estágios probatórios, requisitos edu- cretaria de Segurança Pública e ressentem-
cacionais), controle profissional de promo- se da sobreposição de critérios políticos a Oconência
ções e punições, e existência de órgãos de
fiscalização do comportamento público e
privado do policial legitimam a organização
padrões profissionais na atribuição orga-
nizacional de mérito e prestígio ou da bai-
xa capacidade de aquisição de recursos
1
lnspetoria Seção
em dois sentidos cruciais. Universalismo e (embora aceitem como contingência não- Delegado Subinspetoria
impessoalidade demonstram que a organi- manipulável alocações e cortes de recursos Registra t----- Encaminha r------ Administrativa
Protocola
f-----t. Distribui

zaçi:o não será capturada por interesses decididos unilateralmente pela cúpula ad-
privados na sociedade; códigos disciplina- ministrativa). Em outras palavras, a "linha
res e órgãos de correição asseguram a ca- de frente" se mostra pouco interessada e
pacidade de controle organizacional sobre envolvida na "micropolítica" da organiza-
os membros, sua subordinação ao sistema ção: seu problema central não se encontra
legal e sua responsabilidade a críticas e na estrutura formal mas no ambiente da Conforme o Caso
Detetive
organização. Transfere para Delegacias
pressões externas. Apura
Especializadas
A estrutura do distrito policial é re-
A ATIVIDADE PRATICA DA lativamente simples. Ocorrências(ou "bron-
ORGANIZAÇÃO POLICIAL cas") são registradas na Inspetoria por ví-
timas (ou representantes legais), policiais-
As imagens de organização discutidas militares do Batalhão de Rádio-Patrulha e

~ Ir
acima dizem muito pouco sobre o que se investigadores em atividades de ronda. Re- Cartório
Justiça.
passa nos distritos policiais. O "delegado Inquérito
gistrada a ocorrência, esta é enviada ao De- I
de cúpula", habitante típico das "pirâmi- legado, que a encaminha ã Seção Adminis-
des paralelas", cede lugar aqui ao "delega- trativa para Protocolo. Daí ela é transferi- Quadro3
do de ação", e o policial "linha de frente" da para a Subinspetoria, que designa um Estrutura Típica de um Distrito Policial
substitui o policial em desvio de função investigador para a sua apuração, assim co-
nas hierarquias internas de prestígio. Há mo peritos criminais para a confecção de
poucas referências ~"polícia de carreira"; laudos periciais. Verificada a procedência,
ao tema da profissão se sobrepõe a defmi- o Cartório instaura o inquérito, presidido
ção da atividade policial como vocação. A pelo Delegado. O Escrivão de Polícia autua
distribuição de justiça como objetivo orga- as peças, convoca vítimas, testemunhas e
nizacional se transforma na busca de clien- suspeitos, que são interrogados pelos inves- Cartório
tes para o bem coletivo, categorizados co- tigadores. Terminado o inquérito, este po- Escrivão
mo vítimas, suspeitos ou criminosos. de ser arquivado na própria delegacia ou
Administração e operação realizam-se enviado â Justiça (que pode devolvê .,lo ã
em locais distintos mas articulam-se através Delegacia para maiores esclarecimentos).
de mecanismos como: ( 1) decisões adminis- Os quadros ao lado mostram a estrutura e o
trativas sobre alocaça:o de pessoal e recur- fluxo rotineiro da atividade judiciária de
sos nos distritos policiais; (2) participação um distrito policial típico.
de delegados de classes inferiores em "pi- Mas é ilusório confundir a atividade
râmides paralelas"; (3) experiências ante- rotineira da polícia judiciária com a ativida-
riores de carreira de "delegados de cúpula" de do distrito policial. Muitas ocorrências
na linha de frente ou (4) participação cole- registradas não resultam em inquéritos (se-
tiva em organizações profissionais. Mas es- ja por falta de informação, seja por consti-

72 73
tuírem instâncias de "bagunça", arbitradas gais "manietam a polícia":41 "não temos inquérito começa de trás para a frente, "vagabundo esperto é superdocumentado,
pelo policial no local ou mediante a pacifi- amparo legal com que enfrentá-los (os fora- com a detenção dos suspeitos'\44 porque não vai dar bobeira de dançar por falta de
cação das partes na delegacia). Além disso, da-lei) sem sérios riscos, ao passo que eles "as prisões ilegais são funcionais e opera- documento" .48 Daí a utilização de outros
grande parte da atividade policial é admi- nos enfrentam com a lei da bala e da pei- cionais". É "o exemplo da própria dinâ- critérios, alguns objetivos, como o exame
nistrativa - atestados, alvarás, licenciamen- xeira, sob o pálio dos direitos humanos" .42 mica do trabalho policial, que é trabalhar das mãos dos suspeitos (''vagabundo" ge-
tos etc. Ambas as atividades judiciária e O ponto central de crítica é a.Lei n94898/ com a clientela marginal e não com o cri- ralmente não tem calos nas mãos) e outros
burocrática - são altamente formalizadas e 66, que pune a prisão por averiguações (ou me propdamente". 45 mais sutis: a polícia reconhece o vagabundo
o produto final de ambas é a categorização correcional): "se a polícia não ... prende Assim, comunicada uma ocorrência e pelo "jeito" uma expressão indéxica que
na forma de inquéritos, atestados e certi- [os marginais] em flagrante, não pode fazê- existindo uma vítima, a investigação busca inclui o uso de expressões lingüísticas,49
ficados de atos e indivíduos (vítima x lo depois, mesmo que identificados portes- não tanto a apuração do crime,46 mas a corporais e faciais: "o marginal muda de
indiciado; capaz x incapaz para o trabalho; temunhas e pela vítima, para interrogató- identificação, na "clientela marginal" da cor quando vê um cana, muda o jeito com-
bons antecedentes x nota desabonadora rio. E, se nllo são identificados, jamais o organização, de possíveis autores do crime. pletamente e da mesma forma que um po-
etc). serão, e contra eles jamais existirá manda- Para isto, não são necessárias categorias le- licial conhece o marginal, o marginal co-
A "linha de frente" encontra sua de- do de prisão expedido pela autoridade gais; antes, são usadas tipificações47 que ar- nhece o cana e tira o time". 50
finição ocupacional na atividade judiciária, competente que, aliás, mesmo nos casos de ticulam atos (modalidades de ação crimi- Em segundo lugar, o estoque de co-
que se legitima enquanto aplicação da siste- flagrante, costuma perder o prazo para a nosa) a comportamentos e atitudes típicos nhecimento do policial permite a categori-
mática processualística penal. Mas estes có- formação de culpa, em regra geral". 43 Daí de atores. Tipificações surgem tanto da zação de tipos de ''vagabundos". A tipifica-
digos legais não descrevem acuradamente a a polícia se ver "obrigada a trabalhar fora experiência subjetiva do policial quanto de ção mais geral divide a clientela marginal
prática do inquérito policial: "quando o in- do formalismo". Isso implica o poder do seu treinamento prático adquirido na car- em duas amplas modalidades: a '1eve" e a
quérito é instaurado, ele já está quase pron- policial (ou do delegado, na conclusão do reira. "pesada". A "leve" é constituída pelo con-
to. A gente já sabe quem é o criminoso". 40 inquérito) de interpretar categorias legais O estoque de conhecimento do poli- junto de carreiras marginais voltadas para o
Não se trata, de forma alguma, de incompe- que dão margem a ambigüidade (como de- cial inclui, em primeiro lugar, tipificações furto, incluindo modalidades e especialis-
tência na implementação de determinações finir, por exemplo, o limite legal entre o sobre o "vagabundo" que permitem a ele tas como "trombadinhas" e "trombadões";
legais (escrivãos consideram o conhecimen- furto e o roubo numa "trombada" que re- distinguir membros das "classes perigosas" "palqueiras", "descuidistas" e "punguis-
to do "ritual do inquérito" um elemento sulta em fratura de costelas ou a categoriza- de indivíduos das "classes trabalhadoras". tas"; "ventanistas" e "engomadores"; o
fundamental de seu sentido de "honra" ção de um evento como "disparo de arma O critério definidor pode ser formal (posse "mercado paralelo" e os ''vigaristas". A
profissional) ou de uso de elementos infor- de fogo" ou "tentativa de homicídio", que de carteira de identidade e, principalmente, ''pesada" inclui assaltantes. O que distingue
mais para a realização de produtos forma- são vistas como irrelevantes (crimes de se- de carteira de trabalho assinada) mas este, "leve" e ''pesada" não é apenas uma ques-
lizados. A atividadê' prática do inquérito dução) ou de conseqüências socialmente embora importante no contexto de justifi- tão de coragem pessoal, mas principalmen-
policial é orientada, por um lado, por ava- perversas (como a categorização de "adul- cação da detenção, não é essencial na inves- te de inteligência: o profissional da ''leve"
liações organizacionais da adequação dos tério" ou "lesões corporais" aplicada a con- tigação, podendo mesmo induzir a erro: é avaliado como um especialista, que de-
instrumentos legais disponíveis para a apu- flitos familiares, que pode ter como conse-
ração de "broncas" e, por outro, pela apli- qüência a ruptura de famílias relativamen-
44 Entrevista.
cação a casos concretos de teorias e esto- te estáveis).
ques de conhecimento policiais sobre a Mas o significado crucial do traba- Entrevista.
natureza do fenômeno criminoso e seus lho "fora do formalismo" é a prisão cor- 46 "O furto é raramente apurado com ajuda da polícia técnica". Entrevista.
atores. recional como condição para a eficiência
Para os policiais, os instrumentos le- da atividade policial: "para ter sucesso, o 4'7 Usamos o conceito de tipificação no sentido atribuído a ele por A. Cicou.rel, op. cit. teorias de
senso comum que categorizam e avaliam objetos, indivíduos ou comportamentos.
48 Entrevista.
40 Entrevista.
49 Por exemplo, este bilhete encontrado em um dos distritos: "Vai na mina, descola um carvão e
41
Entrevista. procura o alivio. O alivio fica no final do carretel do carangão. A situação tá preta. O Cardeal já
42 me botou no piano". Ver glossário em anexo, para estas e outras expressões lingilísticas.
D. P. Rocha e J. B. Barreto, CartaaosPolicials,mimeo.,p.l2.
43 Entrevista. 50 Entrevista.

74 75
senvolve treinamentos e habilidades a nível ve ou da pesada, porque não confio em A utilizaçio do "cagoete" como in- quer é ficar arrumadinha, bonitinha, com
tanto organizacional ("trombadas" e "pal- aparência, confio em mim e no meu 38, formante é mais complexa. O "cagoete" ge- um reloginho Cartier no bolso e descolar
cas" geralmente incluem a coordenação de mais ainda no meu 38". 51 Um fato ocorri- ralmente é um elemento da "leve", "um ca- uma graninha para sair à noite e tomar as
duas ou mais pessoas na seleção, aborda- do em um dos distritos il11stra esta ambi- ra medroso e que nunca fixa residência em suas, além do mais acompanhada com o
58
gem e neutralização de vítimas) quanto güidade: um investigador envolveu-se em lugar nenhum'' .54 A "parada de cagoetar" cara que é fera das mãos". A aquiescên-
operacional. Esta distinção toma-se clara luta corporal com um "trombadão" que é, inicialmente, utilitária- um acordo com cia da "mulher do bandido" é um misto de
quando policiais opõem o arrombador ao conseguiu escapar com a arma do investi- ... o policial para se livrar de urna "bronca" utilitarismo e reação a uma situação de
assaltante: o arrombador competente de- gador. O delegado se viu diante de duas hi- ou mesmo ganhar dinheiro. Entretanto, "o abandono pelo bandido: "você chega nela
senvolve um estilo pessoal que possibilita póteses de investigação. Armado com um marginal, quando descobre o cagoete, os firme, com umas boas conversas, solta uma
ao policial experiente identificar o autor 38, o "trombadão" poderia tanto transitar dias dele estio contados", 55 surgindo daí o micharia de grana nela e garante uma se-
pelas características do crime, enquanto o da "leve" para a "pesada" quanto vender a intercâmbio de informaçio por proteção gurança por parte da polícia para o futuro
assaltante usa a violência física como re- arma para indivíduos da "pesada" de sua J policial. Este intercâmbio é bastante desi- dela" .59
curso. Destas distinções emerge uma hie- rede de relacionamento pessoal. Assim, da- gual para o "cagoete", que controla menos Tipificações orientam também o poli-
rarquia de ocupações criminosas: estelio- do o risco potencial envolvido na interação recursos que o bicheiro ou a cafetina na in- cial na busca de evidências - via interroga-
natários encontram-se no estrato superior, com a clientela, a racionalidade prática do teração com a polícia, a qual pode testar tório de culpabilidade. Em muitos casos,
enquanto assaltantes ocupam o escalão policial requer tanto o uso de simplifica- constantemente sua lealdade e reforçar sua a própria vítima pode ser o objeto inicial
mais baixo. ções tipológicas do mercado criminoso dependência: se o policial desconfia do "ca- de suspeita. Por isso, é preciso "ver na hora
Ao lado de categorizações de atores quanto a "suspensão" de categorias em en- goete" (porque este "abre a boca " ou su- o estado emocional do interrogado, cQlllo
do mercado criminoso, o estoque de co- contros concretos com "tipos". postamente retém informação relevante), ele chega aqui para fazer a queixa, porque
nhecimento da organização descreve mode- A articulação entre indivíduos e mo- ''o policial convida outro policial de outra muitas vezes ele está envolvido ou a queixa
60
los de articulação entre categorias (ou for- dalidades de ação criminosa toma-se pos- delegacia para dar um mofo no cagoete, é falsa". Técnicas de interrogatório va-
mas de divisão e organização do trabalho sível pela acessibilidade de informação "de para dar um jeitinho nele, discipliná-lo" .
56 riam com o tipo de crime - neste nível,
criminoso). O "trombadinha" não furta dentro" ao poliCial. Este sabe que a eficiên- O intercâmbio entre informação e a polícia opera uma clara distinçílo entre
apenas transeuntes (pessoas idosas e mulhe- cia do trabalho de investigação constitui, proteção não é tão importante para garan- homicidas e "chorros": "O homicida tem lá
res, preferencialmente) - ele "faz" tam- em grande parte, função do acesso a uma tir a colaboração de outras fontes privile- suas razões. Muitas vezes a gente conclui o
bém automóveis. Talões de cheques e do- rede de informantes confiáveis, que "dá a giadas de informação: mendigos (informan- inquérito dizendo -matou por motivos f\1.
cumentos de identidade são recursos valio- ele estatísticas informais de quem está na tes estratégicos sobre a freqüência de sus- teis. Fúteis para a gente, para ele não eram,
61
sos e escassos que "trombadinhas" ofere- rua". 51 Informantes competentes são, por peitos a locais específicos), prostitutas tanto que ele matou". O interrogatório
cem a estelionatáriQS (o "mercado parale- um lado, bicheiros, cafetinas e "cagoetes". ("policias devem ter amantes na zona, es- do homicida é um esforço para estabelecer
lo"); armas são vendidas ao pessoal da "pe- Bicheiros controlam a vida fmanceira de 57
sas são as melhores informantes") e mu- "conexões de sentido" entre motivo sub-
sada". Estes estão sempre ligados a um re- "vagabundos" - "fulano está gastando lheres de criminosos. "Mulher de marginal jetivo e ação - implica uso de empatia
ceptador que é ao mesmo tempo o agente muito dinheiro e não ganhou no bicho". 53 não está muito aí para ele não, porque ela e, assim, "se você fala mais alto com um
de comercialização de mercadorias rouba- Bordéis são arenas institucionalizadas de in-
das e o fornecedor de armas e de assistência teração de vítimas, criminosos e policiais.
legal. O policial enfrenta, ainda, o proble- A vulnerabilidade de bicheiros e cafetinas à 54 Entrevista.
ma da precariedade da atribuição de cate- pressão policial transforma a informação ss Entrevista.
gorias nominais a indivíduos em carreiras em instrumento de barganha entre ativida-
56 Entrevista.
dinâmicas: "quando eu enfrento um mar- des ilegais e a organizaçio repressiva, que
ginal não me interessa saber se o cara é da le- passa a "tolerá-las" estrategicamente. 57 Entrevista.
58 Entrevista.
51 Entrevista. 59 Entrevista.
Entrevista. tiO Entrevista.
Entrevista. 61 Entrevista.

76 77
homicida, ele não abre a boca". 62 Em opo- prática de novos policiais: "Atividades po- os cursos da Academia de Polícia, definin- "lógica reconstruída,. do inqvlfdto I)Drmüo
sição, o "chorro" "se não leva uns tapas, liciais são atividades que não se aprendem do-se como meios racionais de fonnação articular prática policial e aplicação da lei,:
não fala. A única fonna de tirar alguma coi- na Escola. O policial aprende a trabalhar profissional, no sentido de introdução de
sa dele é criando um clima pesado, com in- é na Delegacia, onde ele tem exposição in- critérios técnicos e científicos na atividade
O POLICIAL E OS OUTROS:
terrogatórios enérgicos".63 O grau de ener- tegral ao meio e onde policiais ensinam po- prática da organização, funcionam como
AUTOCONCEPÇÃO E
gia empregado varia em função da familia- liciais".68 Em outras palavras, tipificações cerimoniais adicionais de legitimação da or-
REPRESENTAÇÕES
ridade entre suspeito e policial, estabeleci- sobre a natureza e composição da clientela ganização.
da em múltiplos encontros e entradas no marginal, sobre fontes competentes de in- Algumas investigações empíricas so-
Esta breve descrição da atividade prá-
distrito. "O tarimbado não confessa fácil e fonnação e modos de processamento de bre organizações policiais em outros con-
tica do policial mostrou que esta se organi-
sempre guarda parte de seus delitos porque suspeitos constituem a cultura da organi- textos enfatizam o papel legimitador de
assim que entrar em outra delegacia pode za em tomo de duas linhas. Por um lado, o
zação e a socialização profissional signifi- uma definição "quase militar" do papel do
produto final da atividade é a classificação
dizer o resto ou parte do que não disse an- ca o uso competente desta cultura. policial: auto-identificando.,c;e como parte
fonnal de indivíduos em artigos do Código
tes".64 Em contraste, "o virgem nem preci- Este modelo prático de socialização de uma "guerra contra o crime", o policial
Penal e da Lei de Contravenções Penais (in-
sa pendurar que ele dá o serviço logo". 65 contrasta fortemente com o modelo for- justifica não apenas os investimentos socie-
quéritos) ou a produção de papéis burocrá-
Esta distinção orienta a alocação de pessoal malmente prescrito - três meses de cursos tários na organização, mas o uso de violên-
ticos que indicam o status de indivíduos,
na atividade do interrogatório; "os mais ta- na Academia de Polícia (técnicas de inves- cia e coerção como meios para a implemen-
objetos ou locais frente a detenninações
rimbados ctúdam dos mais tarimbados, e tigação, de processo, defesa pessoal, disci- tação da segurança pública.
ou reqtúsitos legais (atestados, certificados,
calouros, com assistência de um detetive plinas acadêmicas etc.) e três meses de es- Esta imagem guerreira transparece
alvarás etc.). Por outro lado, a atividade em textos policiais72 mesclada a outro te-
mais experiente, cuidam dos malandros tágio em delegacias. Os cursos fonnais,
menos malandros". 66 prática é o uso e ampliação da cultura or- ma a incompreensão da sociedade em re-
além do objetivo de "moldar" tecnicamen- ganizacional. Esta dimensão independe da
Tipificações e infonnação "de den- te o profissional, buscam "mudar a menta- lação à missão institucional da polícia, de-
primeira ela é exercida cotidianamente finida através de uma metáfora organicis-
tro" sobre a criminalidade tomam possível lidade dos novos policiais, dando a eles no- sem o estímulo da ocorrência e da investi- ta: "nossa função é intestinal. A polícia eli-
para o policial ligar atividades criminosas a vos conhecimentos científicos da crimino- gação e refere-se ao patrulhamento e mina do organismo social o que deve ser
membros individuais da clientela marginal, logia e ensinando técnicas científicas de in- vigilância constantes de sua clientela, pa- rejeitado". 73 Assim, o papel do policial
com "sua psicologia, hábitos e manias". 67 terrogatório" .69 Entretanto, no estágio, o ra atualizar e ampliar o "arquivo" do po- equivale ao do lixeiro: "o policial é o lixei-
Tipificações são geradas nos distritos poli- novo policial "aprende que nada que ele licial. ró da sociedade"."' Esta concepção impli-
ciais infonnalmente (não são escritas e não aprendeu na Academia vai ser utilizado"'lO
são annazenadas em arqtúvos), assim como e, "em pouco tempo, já está pegando to- A disjunção entre fonnalização e ati- ca uma percepção nítida de avaliações so-
infonnalmente se ~corporam à atividade dos os vícios do pessoal antigo". 71 Assim, vidade prática toma-se explícita nos dife- cietárias negativas da atividade e do papel
rentes significados do inquérito. Para o in- policial. Tal percepção se clarifica quando
vestigador, o inquérito significa apenas uma policiais se comparam com juízes e promo-
62 Entrevista. ocasião de mobilização, utilização, teste ou tores: carreiras eqtúvalentes na implemen-
63
ampliação de um estoque preexistente (em tação da justiça. "Um Delegado, em final
Entrevista. de carreira, com suas vantagens especiais,
relação ao inquérito) de conhecimento. O
64 Entrevista. escrivão transcreve as categorias práticas ganha praticamente o mesmo que um Pro-
65 geradas pela cultura organizacional para a motor iniciante". 75 Policiais expressam
Entrevista.
linguagem da processualística penal. A tra- um senso agudo de injustiça quando con-
66 Entrevista. dução da "lógica em uso" do policial na trastam diferenciais de salário e prestígio
67 Entrevista.
68

6!1
Entrevista.
Entrevista.
1
i
Ver, por exemplo, o trabalho citado na nota n\>42.

Entrevista.
'W) I
Entrevista. Entrevista.
7l Entrevista. A. G. C. Pereira, A Remuneração dos Delegados de Polfcia de Carreira,mimeo, p. 13.

78 79
com diferenciais de atividade entre as duas co, mas não gera apoio societário para a or-
instituições: "a Justiça é uma máquina em- ganização policial. Policiais são sensíveis à pelo judiciário. 84 Além disso, os critérios do, e esta sente o gume afiado da legalida-
perrada. Enquanto a polícia funciona 24 hostilidade da opinião pública e da socieda- de avaliação da eficiência policial são ambí- de a ameaçar -lhe o pescoço'~. 87
horas por dia, a justiça só funciona 3 horas. de a suas atividades. Un:t indicador desta guos, justificando a descrença popular na A segunda enfatiza a ambigüidade
Juiz só é bom antes de assumir o cargo; de- sensibilidade é a avaliação da imprensa en- organização. Mas a hostilidade é sentida moral da sociedade de classes. Mesclado SO·
pois não faz nada que preste, chega à hora quanto instituição mediadora entre a polícia mais diretamente pelo policial na identifi- cial e ocupacionalmente à marginalidade
que quer, tem mil privilégios. A gente res· e o público. Para o policial, a imprensa é uma cação societária entre ele e sua clientela: urbana, o policial típico "de linha" distan-
peita juiz porque a ética manda mas corno fonte de incerteza: "os repórteres fazem um "para o povo, polícia é praga de mãe, esta- cia-se dos padrões comportamentais da
homem a gente não respeita ... Aqui, coi- monstro de um policial ou de um bandido mos na polícia porque escapamos da ca- classe média. Por outro lado, a convivência
tado do policial que manda um cara para a assim como podem endeusá-los". 19 Sensa: deia" ou "quem não conseguiu nada na vi- policial com prostitutas, assaltantes, traves-
Justiça, no fim ele é que vai ser julgado, cionalista e ligada a grupos econômicos, no da entra para a polícia". 85 tis ou traficantes de droga fornece a eles
dança. A Justiça e o juiz slo muito teóri· entanto, a imprensa tem o poder de formar Assim, o "lixeiro da sociedade" é uma imagem do comportamento das "clas-
cos, a polícia é que tem a prática. A polí- também o "marginal oficializado" e a con- ses proprietárias" que contrasta fortemente
opinião: "com a imprensa é preciso usar a
cia faz a justiça com a prática". 76 tradição entre a autodefinição do policial com a sua auto-imagem de classe moral, a
cabeça, senão a gente dança e pega uma
Uma primeira dimensão conflitiva do como produtor de um bem coletivo e sua partir da qual outros grupos são avaliados:
bronca". 80 Usar a cabeça significa tanto
papel do policial emerge desta comparação. rejeição pelos beneficiários contamina a vi- o gerente que multiplica o valor do dinhei-
"esconder fatos dos repórteres com aquele
Ser "lixeiro da sociedade" implica a pro- são organizacional da sociedade: "a socie- ro roubado; a vítima de assalto que ríão re-
sorriso na cara, senão a coisa piora", 81
teção da sociedade contra o resíduo mar- dade é um rio dinâmico, bonito, agitado. gistra a ocorrência por estar envolvida em
quanto recorrer a mecanismos hierárquicos
ginal, a "escória" e, praticamente, esta e disciplinares, "ordens de cima", para evi- Na margem esquerda, sem nenhuma conota- atividade moralmente condenável; o uso ge·
proteção significa a imposição autoritária tar declarações. ção pol(tica, ficam os marginais. Na mar- neralizado de drogas; a utilização de margi-
de valores centrais na "periferia" social. Na gem direita, sem nenhuma conotação polí- nais sociais para práticas sexuais desviantes
Mas a imprensa, mesmo transmitin·
medida em que a ação da Justiça é avaliada tica, ficam os policiais. De vez em quando, etc. deixam de ser instâncias de "desvio de
do "uma imagem deteriorada, que faz.a po-
como lenta, ritualista ou preconceituosa um marginal pula no rio. O rio pára e grita: personalidade" para constituírem modali-
pulação desconfiar da polícia". 82 não ex.
em relação à atividade policial, 77 a prote- plica totalmente o fato da polícia "estar Polícia, por favor, nos acuda. O policial pu- dades de ação criminosa dificilmente ao al-
ção da sociedade impõe ao policial a assun. hoje inteiramente divorciada do povo e o la no rio, luta com o marginal e o empurra cance da repressão policial.
ção de papéis judiciários: "a gente prende povo divorciado da polícia". 83 Atividades para a margem esquerda. Aí o rio fala: Po- Esta percepção ganha um contorno
o vagabundo, a Justiça solta, a gente toma policiais slo impopulares: "polícia é quem lícia, cai fora, e o policial volta para sua mais nítido quando policiais abordam o
a prender, ele sai e apronta mais ainda. Na não deixa você fazer o que você quer''; "se margem''. 86 problema da criminalidade da classe mé-
terceira a gente f&Z\Parte de juiz" .18 o bandido é violento a gente tem que usar
A percepçlo da marginalidade da or- dia: "Vivemos como na decadência do hn·
A imposição de ordem às expensas da violência . .e o tal fato de nlo se poder dei- ganização evoca duas representações da so- pério Romano. Os piores crimes são feitos
lei para a proteção da sociedade implica ~ar à solta este ou aquele elemento, já man- ciedade. A primeira vê a sociedade como por filhos de papai, porque nestes a gente
conflito com a Justiça e o Ministério Públi- Jado pela polícia como marginal e impune "masoquista", identificando-se patologica- não pode pôr a mão, eles têm toda a cober-
mente com seu agressor: "Os ladrões, no tura de políticos, de magnatas e da própria
Brasil, estão erigindo a maior prisão domi- polícia";88 "nos casos que tem gente gran-
15 Entrevista. ciliar da história ... A sociedade tanto idola- de envolvida, você começa a mexer mas
trou o bandido e acuou a Polícia, que aque- tem que parar quando chega neles, senão
..
71
Entrevista.
le não vai ceder fácil no terreno conquista- vai para a Corregedoria e lá eles falam que
Entrevista.
'!!*
Entrevista.
1M Entrevista.
80 Entrevista.
85 Entrevista.
81
Entrevista.
86 Entrevista.
a Entrevista.
1!17 Entrevista.
IB
Entrevista.
88 Entrevista.

80
81
a gente está caluniando, prensando";89 cial desempenha um papel de mãe e madras- mulação de políticas salariais que tomam ria por votos e eleitores: "Polícia não dá
"se você vier bem vestido, com todos os ta da pobreza urbana: esta é objeto de vi- a polícia de carreira pouco competitiva no voto, pelo contrd.rio. Se a gente agir direito,
dentes, limpinho, você é ouvido, mas mui- gilância e repressão, mas, ao mesmo tempo, mercado. a geate prende filho de prefeito, atrapalha
to raramente é preso". 90 a polícia é para ela uma organização aberta O baixo poder institucional da polí- negócio de gente importante. Polícia tira
Não é apenas a legislação (ou a ação (pela origem comum de classe, pela proxi- cia revela, por um lado, a indiferença do voto"; 96 "polícia trabalha com estatística
do Judiciário) que cria obstáculos ao pleno midade ecológica entre distrito e periferia Estado em relação ao problema da seguran- negativa, para a população o policial é um
exercício do poder de polícia - este se tor- ou por relações de vizinhança entre poli- ça pública. Na perspectiva dos administra- tipo meio cafajeste, isto aqui é um terreno
na rarefeito ao atingir grupos mais centrais ciais e pobres). Esta abertura é percebida dores, esta indiferença se manifesta no ca- onde ninguém quer entrar". 97
na sociedade que, por um lado, beneficiam- na busca de resolução policial1e problemas ráter residual do tema no planejamento es- Políticas de enfraquecimento da po-
se da ação policial quando esta se volta domésticos ("brigas de pinico"), como al- tatal demandas e necessidades de segu- lícia são interpretadas, nesta perspectiva,
para o controle das "classes perigosas" mas, ternativa a soluções judiciárias, na demanda rança só entram na agenda do decisor quan- como estratégias de neutralização de uma
por outro lado, rejeitam ideologicamente a de arbitragem policial de problemas de vi- do o problema da criminalidade ganha sa- organização potencialmente recalcitrante:
organização e impedem a busca universalis- zinhança ou na assunção, pela polícia, de liência, através da imprensa ou de pressões "há um interesse latente do Estado em tor-
ta da justiça pelo uso de poder para defesa papéis assistenciais (prestação de socorro de grupos poderosos (Associação Comer- nar a polícia fraca e corrupta, porque assim
de seus desviantes. Este dilema se expressa médico, assistência a parturientes, conse- cial, por exemplo). ela é maleáveL Polícia bem paga é indepen-
claramente numa entrevista com um poli- lhos e advertências a filhos e maridos rebel- Na perspectiva da "linha de frente", dente".98
cial: "Se uma puta é agredida em um res- des etc). Mas a mobilização da polícia para a indiferença do Estado pelo problema tem Definindo-se como o "lixeiro da so-
taurante e eu intimo o proprietário, o pes- resolução de problemas é um recurso utili- a ver com a contenção da atividade crimi- ciedade", o policial absorve, em sua auto-
soal de classe média fala que polícia é as- zado em bases individuais, níio criando nosa e seus efeitos dentro dos limites da imagem, a percepção da marginalidade so-
sim mesmo, em vez de prender assaltante identidade entre polícia e pobreza: "o pes- classe baixa urbana: "Eu vibrei com o as- cial e política da organização. Por um lado,
fica protegendo puta. Se eu não levo o ca- soal da favela não entrega nada para a po- salto do Cardeal. O governo só se preocupa esta marginalidade é usada como explica-
so para a frente, a turma de esquerda fala lícia. Cinqüenta por cento não de da porque com o problema do crime quando gente da ção de um desempenho pouco eficiente.
que polícia está aí para proteger a classe tem medo. Cinqüenta por cento acoberta elite é assaltada. Se a filha do Ministro ... Por outro, ela estimula o isolamento da or-
dominante". 91 porque saúva não pica perto do ninho. E a fosse estuprada, aí sim, o governo fazia al- ganização em relação ao Estado e à socie-
Assim, o policial se vê "distribuindo lei todo mundo é mudo, surdo e cego". 94 - t em nem filha" .95
. Mas o ... nao
guma cOisa. dade. Entretanto, marginalidade e isola-
justiça por amostragem" - confundindo, Ao impor seu modelo de ordem na Contudo, o baixo poder institucional mento não afetam o grau de poder do poli-
em sua atividade prática, crime e pobreza, periferia social, o policial se vê desempe- da polícia não resulta apenas do caráter se- cial sobre sua clientela: defendido por uma
mesmo reconhecendo a precariedade empí- nhando um papel político: a "linha de cundário do problema da segurança pública estrutura formal que legitima este poder e
rica desta identida8.e - "no morro, moram frente" da polícia é também a "liflha-de- nas políticas governamentais. Ele decorre acreditando realizar a justiça na prática,
umas 10.000 pessoas e só tem uns 10margi- frente do Estado". Mas a relação entre a também da desconfiança de policiais em re- "fora dos formalismos", isolar-se da socie-
nais"92 ou sua perversidade social "quan- polícia e o Estado é ambígua -a mesma lação à política partidária: a função policial dade significa afastar da organização pos-
do entramos numa casa do morro é que a ordem estatal que a polícia representa e se define com referência à sociedade, não síveis formas societárias de controle.
gente vê a miséria. Porra, aquele cara tem suporta limita seu poder através da legis- ao Estado. A polícia, organizando-se em
mais é que roubar, tinha é que pegar numa lação, da transferência para a Polícia Mi- termos rigidamente burocráticos (e, por-
metralhadora". 93 Nesta atividade, o poli- litar de suas funções ostensivas ou da for- tanto, politicamente neutra) tem poucos
recursos a. oferecer na competição partidá- (Recebido para publicaç4o em agolto de 1981)

8!1 Entrevista.
90 Entrevista.
9S Entrevista.
91 Entrevista.
96 Entrevista.
92 Entrevista.
93 IJ1 Entrevista.
Entrevista.
94 Entrevista. 98 Entrevista.

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orientée par les théories et la somme des connais- minéllos, eles intorinateurs, des méthodes de mile
ANEXO en valeur d'évidences etc .•. ). En conclusion, l'au-
sances pratiques disponibles dans l'organisation,
lesqueUes soitt situ,ées à une distance considérable teur étudie l'image que le policier se fait de lui-
Alguns Termos Usados na lnteraçio das de la légalité formelle (11 s'agit, en fait, de la "lo- même: celle d'un "éboueur de la société" et les
Classes Perigosas e Organização Policial gique en usage" dans les milieux policiers,laquel- contradictions existantes entre imposition de la
le consiste en un ensemble de typages des auteurs loi et imposition de l'ordre dans la société bré-
Alivio = Advogado quando há qualquer descuido possibles de crirnes, des modalités d'actions cri- silienne.
Briga de pinico =Briga entre vizinhos, con- Engomada = Entrar numa casa quando sa-
fusões be que não tem ninguém
Bronca = Crime Estourar Ma/oca = Dar busca no lugar onde
Cagoete = Dedo-duro o bandido está escondido ou onde ele mora
Carangão = Onibus Mercado paralelo = Mercado de cheques
Cardeal = Escrivão roubados
Ca"etel = Linha de ônibus Palca = Bolsa
Cho"o =Furto em bolsa ou em bolso, ba- Palqueira = Pessoa que furta em bolsa
tedor de carteira de homem, ladrão em geral Piano = Máquina de escrever
Descuidista = Ladrão de soja, o que rouba Ventana =Janela e faca.

ABSTRACT
The Police in a Metropolitan Area
The author seeks to evaluate the adequacy Next, the author analyzes the police's orp-
of an orpnizational approach for the analysis of nization of practical activities. The police is seen
police organization in a metropolitan area based as guided by a backlog of empirical knowledge
on direct observation of the operation of police (the "lQgic-in-use" of policemen on the beat or
precincts and in-depth interviews with policemen that set of notions used to identify potential cri-
from all niches of the police hierarchy. minais, modes of criminal actions, informers, me-
ln the f"ust place, the author discusses the thods for gathering court evidence, and the like)
police force's formal structure and the practical which is far removed from formally established
uses to which it is put by policemen, emphasizing legal norms.
the precarious natur& of supervisory and control ln conclusion, the author investigates the
official mechanisms, the eJtistence of a "quasi- policeman's self-image as "society's trash conec-
feudal" authority pattem, and the loose articula- tor" and the resulting conflict between the impo-
tion between formal structure and practical acti- sition of law and the .imposition of order in Bra-
vities. züian society.

RESUM~

L'Organisation Policiere dans une Grande


Ville
L'auteur de ce travaü essaye de voir dans ainsi que des usages que les policiers en font dans
quelle mesure la perspectiVe organisationnelle est la pratique. 11 met en relief le caractêre précaire
utile quand 11 s'agit d'analyser l'organisation poli- des mécanismes formeis d'inspection et de con-
crere d'une grande ville. Son article est le fruit trôle, la généralisation d'un modêle quasiment
d'une observation du fonctionnement de postes féodal d'organisation de l'autorité et la lâcheté
de police et de minutieuses entrevues menées des liens d'articulation entre structure formelle et
avec des policiers situés à tous les niveaux de la activités pratiques. En second lieu, l'auteur, dans
hiérarchie. Tout d'abord, ü fait une analyse de la son analyse met en relief 1' organisation des acti-
structure formelle de l'organisation en question vités pratiques de la police. n constate qu'elle est

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