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Eduardo Paes-Machado
DOSSIÊ
INTRODUÇÃO
O campo dos Estudos sobre Policiamento censão de movimentos sociais de negros, paci-
(Policing Studies)1 ou da Sociologia da Força Pú- fistas e operários desempregados. Dessas mobi-
blica, como defendeu Jean Paul-Brodeur (2004), lizações e das respostas policiais violentas que
desenvolveu-se nos Estados Unidos, na segunda lhes foram dadas de modo frequente emergiram
metade dos anos 60, e no Reino Unido, na década grandes debates públicos acerca do papel dessas
de 80, estendendo-se depois a outros países do agências como violadoras de direitos.
mundo. Tais questionamentos se perderiam, pro-
Em ambos os países, o interesse acadêmi- vavelmente, em generalidades, ou não gerariam
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sua compreensão na sociedade brasileira. sentidos e funcionalidades, já que nem todo ex-
pediente de controle corresponde às formas ins-
trumentais de policiamento.
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A exemplo de qualquer ciência social, os estudos sobre O policiamento caracteriza-se, assim,
policiamento abrigam duas vertentes: uma teórico- como uma expressão pragmática, funcional, uti-
interpretativa e crítica – a Sociologia da Polícia – e outra
gerencial-administrativa – a Sociologia para a Polícia litária e invasiva do como sustentar a submis-
(Manning, 2005).
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No Brasil, os primeiros estudos sobre policiamento foram são, sob algum consentimento, às regras do jogo,
feitos por Luis Paixão, da UFMG, no começo dos anos 80, vistas como objeto de enforcement (ou aplicação
e vêm se expandindo desde então por conta da
redemocratização política, da participação das universida- da lei), ou a uma determinada ordem pactuada
des em cursos de formação policial e do desenvolvimento
de programas de pós-graduação e pesquisa. Ao lado disso, ou não, com o recurso à coerção respaldada pela
não é supérfluo acrescentar que a tradução e publicação de
uma grande coleção de textos internacionais sobre a temática, força. Observados no seu plural, especialmente
pela Editora da Universidade de São Paulo, com o patrocí- nas sociedades complexas, os policiamentos e
nio da Fundação Ford, no primeiro quinquênio do ano 2000,
contribuiu para alargar a sua compreensão pelos pesquisa- suas práticas ultrapassam a administração do
dores brasileiros. Segundo um estudo recente, das 8.205
dissertações e teses de doutorado indexadas pela palavra- Estado, sendo-lhe historicamente anteriores. Tal
chave “segurança pública”, elaboradas nas universidades
brasileiras, entre 1983 e 2006, 10% (ou 822 destes traba- evidência é relevante, uma vez que se podem
lhos) tiveram por tema a polícia Lima, 2010). reconhecer práticas de policiamento em socie-
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dades sem Estado, assim como práticas de poli- tes do mundo. Naquele momento histórico, a
ciamento que não são administradas por agênci- força policial nasceu para substituir as forças
as estatais. militares que, segundo o modelo de defesa da
A anterioridade das práticas de policiamen- soberania (Foucault, 2003), mantinham a ordem
to à emergência de burocracias especializadas e pública nas grandes cidades. Tal modelo não
estatais na sua administração, põe em relevo duas combinava bem com as novas práticas de gover-
questões caras à compreensão desse conjunto de no – fundadas na disciplina e na normatização,
práticas sociais de controle e regulação (Bayley, e na consequente normalização das condutas dos
2002; Reiner, 2004). A primeira, é a de que o po- novos sujeitos sob domesticação, constituídos
liciamento não constitui um lugar hegemônico do como indivíduos e cidadãos, isto é, como atores
Estado. Sobretudo quando se considera que a políticos e morais autônomos.
ambição do Estado, desde seu surgimento, é o Estamos falando aqui da redefinição de
monopólio legal e legitimo da força e, por conse- um tipo de governo, de ambição democrática e
guinte, das práticas de policiamento que expres- liberal, e da construção da polícia, como um cor-
sam e sustentam sua soberania sobre um deter- po especial de funcionários – uniformizados e
minado território e população, assim como dos armados ou não –, para fazer o trabalho de ma-
dispositivos de governo, sobretudo as forças ar- nutenção da ordem entre e por sobre os corpos
madas e polícia, as quais são objeto de uma espé- e territórios. Trata-se da fabricação de dispositi-
cie de duopólio. A segunda, como decorrência, é vos coercitivos imediatos e, ao mesmo tempo,
que as agências especializadas estatais, as políci- indiretos, cujo objetivo era o de comunicar a
as, também não possuem, ainda que isso não seja substituição da violência deliberada e a admi-
abertamente assumido, por uma estratégia de nistração de sua escassez por meios legítimos de
legitimação e ampliação de poder, o monopólio força, em nome da emergência de uma forma de
das práticas de policiamento. governar capaz de conduzir de perto e à distân-
A possibilidade de uma teoria do policia- cia (governance at a distance) as comunidades
mento e da polícia começa com essa distinção, nacionais. Tamanha mudança nos processos de
posto que ela permite compreender que, por um governo e de estabilização do exercício de poder
lado, a polícia não se explica por suas funciona- tem implicações fundamentais no tocante aos
lidades ou aplicações e, por outro, que o policia- modos, aos meios e aos fins relacionados à pro-
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clivagens sociais e étnicas –, as organizações entre nós, que explicita, questiona e redefine os
policiais seguem abertas às dinâmicas pré-moder- limites e os sentidos do fazer policial pela afir-
nas ou tradicionais de proteção, reproduzindo mação de direitos constituídos ou na emergên-
práticas desiguais, discriminatórias e excludentes cia de direitos difusos e novos direitos. Nessa
sobre uma parcela da população colocada à mar- linha, o fiel da balança depende sempre e mais
gem, ou situada na periferia do pacto social.4 Nesse do que de outras variáveis – a exemplo do nível
cenário de desigualdade em direitos, as flutuações de escolaridade e do treinamento dos policiais –
do crime e a percepção generalizada de insegu- da orientação governamental, no sentido de li-
rança, assim como os seus impactos sobre a opi- mitar ou não o potencial das forças policiais para
nião pública, reforçam a aprovação coletiva de “invadirem a cerca” ou solaparem os princípios
práticas heterodoxas de policiamento público e democráticos, bem como da consciência
estatal, nas quais se incluem toda sorte de viola- (Cheviny, 1995) e do grau de universalidade dos
ções e violências socialmente autorizadas. direitos de cidadania nas sociedades (Ivo, 2008).
Diante desta perspectiva, a reflexão sobre
a polícia não pode desconsiderar as diversas fa-
ces assumidas por essa complexa organização em PARA UMA ANÁLISE DO POLICIAMENTO
suas expressões de governo: um dispositivo de
dominação (de classe, raça, gênero e geração), Ao contrário dos prognósticos que apon-
uma instância produtora e distribuidora de mo- tam uma tendência crescente de estatização das
ral e “moralismo” conflitantes, um instrumento práticas de controle e vigilância, os policiamen-
de sustentação de direitos a serviço de uma ci- tos apresentam um caráter mais plural, fragmen-
dadania mais ou menos inclusiva e em processo tado e privatizado nas sociedades contemporâ-
continuado de afirmação, e um meio de força neas (Johnston, 2002). Esse também é o padrão
orientado por fins coletivos e atravessado por no Brasil, onde novos arranjos de policiamento,
seus interesses corporativos. representados pela proliferação das mais diver-
Pode-se afirmar, então, que a relação da sas formas de segurança privada, como mostra
polícia com a cidadania é de complementaridade, Martha K. Huggins, neste Dossiê, articulam-se e
que se evidencia em um jogo de negociação de revigoram velhas modalidades de controle soci-
verdades, de afirmação e negação, de legitimação al privado, informal e, muitas vezes, violento.
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e deslegitimação diante da ordem político-social Como não poderia deixar de ser, as práticas pú-
ambicionada ou do escopo do pacto construído, blicas e privadas de policiamento alimentam-se
se para alguns ou para todos. A relação da polí- de espaços de alegalidade e, especialmente, das
cia com a cidadania revela, assim, uma tensão ilegalidades populares ou ilegalismos tolerados
criadora e criativa que põe em relevo os modos que atravessam de alto a baixo a sociedade bra-
concretos do governar e seus efeitos em uma di- sileira. A isso se agregam as chamadas “visões de
mensão mais sensível e crítica: o exercício auto- mercado”, tomadas como expressões de
rizado do poder coercitivo ali “nas esquinas”, modernidade e trazidas pelos processos neo-li-
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Mesmo em contextos onde as organizações policiais estão berais de desregulamentação e promoção do
conformadas pelos princípios democráticos da igualdade
e imparcialidade da ação coercitiva do Estado, sob a uni- empreendedorismo na produção e distribuição
versalidade das regras do jogo, como nas sociedades do de coercitividades consentidas.
hemisfério norte-ocidental, a atuação policial pode vir a
fortalecer, mediante orientação de governo, clivagens Dentre os distintos eixos que podem estru-
sociorraciais e políticas entre indivíduos e grupos, discri-
minando segmentos sociais percebidos como perigosos, turar as possibilidades lógicas e históricas de ar-
indesejáveis ou estrangeiros, em seu próprio território. A
escala desses abusos e excessos da polícia, entretanto, está ranjos de policiamento em sociedades comple-
muito aquém da escala que se verifica em sociedades me- xas, parece oportuno entender esse universo a
nos inclusivas, do ponto de vista dos direitos de cidada-
nia, como a brasileira. partir de um enquadramento tridimensional que
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elege os seguintes atributos para ordenar suas comum, com mandatos legalmente estabeleci-
prováveis variações empíricas: (i) administração dos, como os realizados pela Polícia Militar,
ou governo (estatal e não-estatal); (ii) espaço ou Civil, Federal e Guarda Municipal etc.;
território (público e privado); e (iii) referência § Policiamento estatal ilegal e público, represen-
normativa (legal ou ilegal). tado pelos policiamentos administrados ou fei-
Busca-se, com esse enquadramento, pos- tos por agentes estatais em áreas públicas ou
sibilitar generalizações ou ampliar o alcance espaços de uso comum, sem mandato legal-
conceitual-explicativo dos estudos de caso e aná- mente estabelecido, a exemplo daqueles
lises qualitativas. Da combinatória desses atri- implementados por empresas e grupos de vi-
butos, chega-se a uma matriz de análise qualita- gilância clandestina que praticam extorsão con-
tiva de propriedades que integra quatro conjun- tinuada (racketeering). Amplamente dissemi-
tos que se desdobram em oito tipos lógicos de nada nas cidades brasileiras, esta modalidade
práticas, entre o legal e o ilegal, que pretendem de policiamento estatal ilegal se expressa em
dar conta do maior número possível de evidên- toda a sua plenitude nas milícias no Rio de
cias empíricas, assim como dos seus inevitáveis Janeiro.
hibridismos. Isso é o que pode ser visualizado O segundo conjunto circunscreve as prá-
na matriz de análise apresentada a seguir. ticas de policiamento não-estatal e em espaços
O primeiro conjunto agrega as práticas de restritos, que dizem respeito àqueles policiamen-
policiamento estatal e público, que dizem res- tos feitos em locais privados ou de circulação
peito aos policiamentos feitos em locais de uso restrita, sob a administração de agentes não-es-
coletivo, sob a administração de agentes contra- tatais ou privados. Esse conjunto de evidências
tados e pagos pelo Estado. Esse conjunto de evi- se desdobra em dois subconjuntos:
dências se desdobra em dois subconjuntos: § Policiamento não-estatal legal em espaços pri-
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culação restrita ou privados: segurança priva- blicos, que diz respeito aos policiamentos
da bancária, brigadas de emergência de em- implementados com respaldo legal por agen-
presas, vigilância de condomínios, escolta pes- tes particulares ou privados, em espaços pú-
soal, segurança de grandes eventos, clubes, blicos ou de uso coletivo, como as práticas de
detetives particulares regularizados, etc.; controle e vigilância feitas moradores, vizinhos,
§ Policiamento não-estatal ilegal em espaços pri- proprietários rurais, etc..
vados, cujos arranjos reportam-se aos policia- § Policiamento não-estatal ilegal em espaços pú-
mentos sem respaldo legal, realizados por agen- blicos, que se refere aos policiamentos realiza-
tes particulares em espaços de circulação res- dos sem respaldo legal por agentes particula-
trita ou privados, os quais são ilustrados pelas res ou privados em espaços públicos ou de uso
ligas comunitárias de autodefesa, vigilância in- coletivo, ilustrados pelas práticas de controle
formal ou clandestina em condomínios, res- e vigilância feitas por ligas comunitárias de
taurantes, boates, propriedades rurais, escol- autodefesa, milícias, bandos armados, gangues,
tas efetuadas por “capangas”, vigilantes parti- grupos de extermínio, capangas, etc..
culares informais, “arapongas”, “leões de chá- Essas oito possibilidades lógicas permitem
cara” etc.. explorar tanto os tipos puros, como as suas combi-
O terceiro conjunto congrega as práticas nações, a exemplo de: (i) “milícias” compostas por
de policiamento estatal em espaços restritos. agentes do Estado, que fazem policiamento públi-
Refere-se aos policiamentos feitos em espaços co e privado ilegal e praticam extorsão continuada;
de circulação restrita ou privados sob a admi- (ii) bandos armados, que fazem policiamento pú-
nistração de agentes do Estado. Esse conjunto blico e privado não-estatal; (iii) agentes públicos,
de evidências se desdobra em dois subconjuntos: cedidos legalmente para atividades de policiamen-
§ Policiamento estatal legal em espaços de cir- to privado em agências bancárias, de pessoas
culação restrita, como, por exemplo, os poli- ameaçadas, eventos culturais ou esportivos, etc.; e
ciamentos feitos por agentes públicos e com (iv) atores privados ou terceirizados que, por meio
respaldo legal em museus, palácios, residênci- de concessões legais ou parcerias público-privadas,
as oficiais, Congresso Nacional, prisões, uni- fazem policiamento público como os agentes de
versidades públicas, empresas estatais, insta- trânsito, vigilantes e fiscais nos arredores de rodo-
lações das forças armadas etc.; viárias, aeroportos, metrô, etc..
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dente, seja em relação às características e cir- futebol. No seu estudo sobre os métodos de po-
cunstâncias que informariam as ocorrências cri- liciamento – brandos e duros, de baixo e alto
minais e não-criminais, seja em relação às for- perfil – empregados nos campeonatos europeus
mas pelas quais o lugar da autoridade policial é, de futebol de 2000 e 2004, Adang retoma a
na prática, constituído e negociado. “Nessa bus- contribuição inovadora de McPhail (1991) sobre
ca por uma boa medida, algum agir consentido o comportamento das massas. Ao contrário das
e que faça sentido para os envolvidos, sob o ‘es- teorias tradicionais ao estilo de Le Bon, que expli-
pírito da lei’, constatou-se que, quando se trata cam esse comportamento apenas por processos
de questões criminais violentas, consideradas de internos e assumem que a patologia de alguns con-
maior gravidade, a tendência dos policiais é dar tamina todo o grupo, McPhail enfatizou que as
um encaminhamento formal, conduzindo os multidões não formam uma massa homogênea
envolvidos para a delegacia de polícia, para o de indivíduos que se comportam da mesma ma-
devido processo legal. Já nas situações criminais neira. Para ele, por exemplo, não está provado
de menor gravidade e não-criminais, que con- que as pessoas reunidas em grupos tenham mais
formam a maior parte do chamamento à polícia, probabilidade de usar a violência do que em ou-
observou-se que os PMs da ponta da linha bus- tras circunstâncias cotidianas, ou que as multi-
cam fazer, desde que não haja risco iminente, dões manifestem uma maior tendência a se com-
uso de expedientes informais e alegais de toma- portar de modo emocional ou irracional.
da de decisão, resolvendo no local, harmonizan- A “desordem” coletiva só se torna possí-
do, conciliando, advertindo ou orientando os vel graças à proeminência psicológica comparti-
envolvidos.” da, resultante de uma dinâmica de interações
Os sentidos atribuídos à “autoridade entre os participantes do grupo, de uma identi-
consentida”, legal e legítima, são atravessados por dade comum. A partir de uma perspectiva psi-
apetites oportunos e oportunistas de particulari- cológica, para que isto aconteça, é preciso que a
zação. Em seus próprios termos: “Na prática, o polícia trate uma multidão inicialmente hetero-
poder do policial tende a ser intencionalmente gênea como um todo homogêneo, levando os
menor que a amplitude formalmente estabelecida seus integrantes a se perceberem como mem-
no poder de polícia. Inseguros, política e bros de uma categoria comum e, por conseguin-
institucionalmente, quanto aos termos pactuados te, desencadeando um ciclo de tensão e agravan-
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policiais entrevistados não possuam a mesma apontam para a sutil fronteira existente entre o
compreensão do castigo e dos meios para minis- arbítrio e a arbitrariedade policial. Para eles, a
trá-lo, eles o praticam com apoio dos seus cole- batalha diária contra o pecado traduz, em ter-
gas de trabalho, de modo informal e com maior mos atemporais, o dilema de produzir respostas
ou menor visibilidade, a depender das circuns- policiais eficientes, sem, entretanto, sucumbir
tâncias, contra certos indivíduos e grupos. Um aos efeitos corrosivos do poder ou aos “ardis do
aspecto decisivo para reduzir a possibilidade de demônio”, segundo os termos da chamada “cul-
castigo é o poder de reclamação do cidadão, tra- tura cristão-evangélica policial”.
duzido em capacidade de denunciar e processar O artigo da socióloga brasilianista Martha
policiais por essa prática. K. Huggins discute as tendências do policiamen-
A cultura policial relativa às maneiras de to público e privado no Brasil. Publicado inicial-
as pessoas reagirem e interpretarem as exigênci- mente em 2004, na revista Social Justice, esse
as e situações a que estão expostas (Reiner, 2004) artigo causou e ainda causa impactos entre os
é o tema da antropóloga Elizabete Albernaz. O estudiosos. Ainda que de lá para cá os números
foco do estudo são os encontros, desencontros e macabros dos homicídios tenham mudado, as
reencontros, dentro da organização policial mi- tendências gerais por eles indicadas não são mui-
litar, entre a cultura evangélica e a cultura da to diferentes. Ao tomar como ponto de partida
polícia. Recusando os essencialismos e monolitis- os nexos entre a violência letal e a privatização
mos que impregnaram, até o passado recente, os do policiamento, Huggins problematiza a
estudos da cultura, Albernaz foca a experiência invisibilidade social e a subnotificação dos ele-
individual dos policiais evangélicos da atividade vados números de homicídios de brasileiros jo-
policial. vens e adultos, pobres e afrodescendentes. Além
Ao mesmo tempo em que ambas as cul- de apontar as inevitáveis técnicas de neutralização
turas – evangélica e policial – partilham uma ou atenuantes morais acionados para justificar
visão maniqueísta do mundo, elas apresentam essa tragédia social e humanitária em curso, a
diferenças marcantes quanto à projeção e trata- autora examina as dinâmicas socioinstitucionais
mento do mal, que influenciam a trajetória dos produtoras dessas mortes. As taxas de homicí-
evangélicos na organização policial. Na experi- dios são mascaradas porque as vítimas são oriun-
ência dos evangélicos entrevistados, a questão das dos setores já marginalizados da população
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decisiva são as implicações, derivações e exces- e por causa do status, oficial ou semioficial, da
sos do poder da polícia. Se uma parte dos polici- maioria dos agentes dos assassinatos.
ais evangélicos se protege disso buscando, den- Huggins argumenta que o controle social
tro de uma linha de baixo perfil, postos de tra- no Brasil articula dois processos institucionais,
balho na “pista” ou nas áreas centrais da cidade aparentemente contraditórios, que ocultam o
do Rio de Janeiro, outros passam a participar de papel violento do Estado: por um lado, a centra-
operações arriscadas, nas quais a polícia usa a lização e militarização da polícia profissional e,
força para fazer justiça por conta própria. Os por outro, a privatização e descentralização do
esforços dos sujeitos para elaboração dessas sín- policiamento. Enquanto a militarização centrali-
teses culturais, entretanto, expõem alguns focos zada contribui para encobrir, por meio das ideo-
de tensões e inconsistências que se revelam, não logias da guerra contra o crime e do profissio-
só na busca do policial evangélico por uma inte- nalismo (e autonomização das forças policiais),
gralidade moral da coerção, mas também no co- os efeitos das políticas estatais repressivas, a con-
tidiano de todo policial que tenta evitar as forças dição mista ou híbrida das empresas de segu-
corruptoras que emanariam da coerção. Os ca- rança privada – sob o controle ou operadas, em
minhos e descaminhos dos policiais evangélicos muitos casos, por policiais da ativa, em serviço e
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rança privada na sociedade brasileira e, em es- BECKER, H.S. Outsiders: studies in the sociology of
pecial, à falta de fronteiras claras entre esse mer- deviance. New York: Free Press, 1963.
cado, incluindo grupos e empresas informais e CHEVINY, P. Edge of the knife: police violence in the
Americas. New York: The New Press, 1995.
irregulares, e o policiamento público. Para
BRODEUR, J.P. Por uma sociologia da força pública: consi-
Huggins, a característica definidora desse con- derações sobre a força policial e militar. Caderno CRH: re-
vista do Centro de Recursos Humanos da UFBA, Salvador,
trole social privatizado é que ele foi gestado e v.17, n.42, p.481-489, set./dez., 2004.
nutrido no ventre da polícia, com o qual ainda FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: _______; MOTTA,
Manoel Barros da. Estratégia, poder e saber. Rio de Janeiro:
não cortou o seu cordão umbilical. Verifica-se Forense. 2003. v.4 p.281-305. (Ditos & escritos)
um fluxo facilitado de policiais dentro e fora das IVO,A.B.L. Viver por um fio: pobreza e política social. São
empresas de segurança e dos esquadrões da mor- Paulo; Annablume; Salvador: CRH/UFBA, 2008.
te, o que evidencia a diluição dos limites reais JOHNSTON, L. Modernidade tardia, governo e policiamen-
to. In: BRODEUR, J.P. Como reconhecer um bom policia-
entre essas entidades de controle social, assim mento. São Paulo: Edusp, 2002. p. 233-257.
como dificulta o controle público sobre elas. LIMA, R.S. de. Palavras e números: violência, democracia e
Segurança Pública no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010.
Enfim, a grande variedade de formas assumidas
McPHAIL, C. The myth of the madding crowd. New York:
pela privatização do controle social e pela segu- Aldine de Gruyter, 1991.
rança privada contribui para obscurecer o papel MANNING, P. Os estudos sobre a polícia nos países anglo-
americanos. Caderno CRH: revista do Centro de Recursos
do Estado na produção da insegurança social- Humanos da UFBA, Salvador, v.8, n.45, p.431-446, set./
dez., 2005.
mente estruturada, assim como o seu fracasso
MUIR, Jr., K.W. Police: streetcorner politicians. Chicago:
para resolvê-la adequadamente. Chicago University Press, 1977.
REINER, R. A política da polícia. São Paulo: Edusp, 2004.
(Recebido para publicação em dezembro de 2010)
(Aceito em dezembro de 2010)
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