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A judicializaçao dos

conflitos de adolescentes
infratores: solução ou
mito?
Handling adolescent defendants in the courts:
solution or myth?

R esumo A bstract
Com o propósito de examinar, através This study seeks to critically examine
de uma perspectiva crítica, sob quais the conditions under which the state can
condições pode o Estado executar a provide for the education called for in
finalidade educativa das medidas e penas measures and punishments issued to
aplicáveis aos adolescentes em conflito adolescents involved in legal conflicts. It
com a lei, no presente trabalho são analyzes the problems and limitations
analisados os problemas e as limitações caused by reducing the search for
de se reduzir a busca de soluções para solutions to these issues to the activity
essas questões à atuação do Estado, of the State, through access to the courts,
através do acesso à justiça, ao Poder the Judicial System and to administrative
Judiciário e às instâncias administrativas care agencies, as the only sources of rights
de atendimento, como única fonte de and of a guarantee of rights. It points to
direitos e de garantia de direitos. Apontam- the negative consequences of using
se as conseqüências negativas de se education as a final goal of the applicable
utilizar a educação como finalidade das measures and punishments in the juvenile
medidas e penas aplicáveis nos modelos court models in vigor, both in Spain and
de justiça juvenil vigentes tanto na Brazil. Based on this critical analysis, a
Espanha como no Brasil. Com base nesta broad debate is suggested, which Luciana de Oliveira
análise crítica, sugere-se um amplo debate, involves the parts directly involved in the Monteiro
que implique as partes diretamente conflict in the construction of
envolvidas no conflito, para a construção emancipatory alternatives based on the Advogada.
de alternativas emancipatórias a partir da democratization of responses that go
democratização de respostas que beyond the juridifciation of life and the Diplomada em Estudos Avançados (DEA)
ultrapassem a juridificação da vida e a judicial resolution of conflicts. e Doutoranda pelo Programa de Dou-
judicialização dos conflitos. torado ‘Problemas actuales del Derecho
Penal y de la Criminologia’.
Palavras-chave: adolescentes infratores, Key words: adolescent infractors, rights,
direitos, justiça, medidas socieducativas. Universidade Pablo de Olavide, Sevilha -
justice, social educational measures.
Espanha.

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Violencia sería, como de hecho lo es, que los tutelar, educativo, de responsabilidade e de proteção inte-
hombres, seres históricos y necesariamente gral. Ademais, para além de uma análise estritamente ju-
insertos en un movimiento de búsqueda con rídica, pretendemos apontar as deficiências destes mode-
otros hombres, no fuesen el sujeto de su los, notadamente dos modelos atualmente vigentes no Brasil
propio movimiento. e na Espanha, e as bases para a construção de alternati-
Es por esto mismo que cualquiera que sea la vas que ultrapassem o mito da necessária “juridificação”
situación en la cual algunos hombres da vida e a “judicialização” de conflitos.
prohíban a otros que sean sujetos de su
búsqueda, se instaura como una situación
violenta. No importan los medios utilizados 1 Origem dos modelos de justiça juvenil
para esta prohibición. Hacerlos objetos, es
enajenarlos de sus decisiones, que son Tratar de modelos de justiça juvenil significa falar de
transferidas a otro u otros. um conjunto de normas aplicáveis a uma faixa da socie-
Paulo Freire dade que se caracterizou, ao largo da história da
modernidade (RIVERA BEIRAS, [ca. 2003]), pela sua in-
trínseca fragilidade físico-psíquica, traduzida em incapa-
Introdução cidade e em, conseqüente, necessidade de tutela e prote-
ção. Por esta razão, em sua origem, o que existia era um

A
busca de soluções para os casos de confli- sistema normativo orientado a um objeto definido: o “me-
to de adolescentes com a lei é um tema nor”, cuja incapacidade impedia o reconhecimento de di-
apaixonante que nos incita a refletir sobre reitos e garantias outorgados aos adultos.
os problemas gerados pela modernidade e a exercitar nos- Como categoria jurídica distinta dos adultos1 , o “me-
sa capacidade criativa na procura de alternativas cons- nor” surge a finais do século XIX (GARCÍA MENDEZ, 1997)
trutivas e emancipatórias para aqueles que são a continui- quando, por defeito estrutural da sociedade industrial dessa
dade e a esperança do futuro da humanidade. época, transformou-se em elemento pernicioso e perigoso
Neste âmbito, tratar de como se constroem atualmen- à segurança coletiva. Vem, enquanto conceito, carregado
te estas respostas no marco do Estado Democrático de pelos equívocos do positivismo criminológico e se orienta,
Direito, principalmente pelas mãos do Poder Judiciário, no marco da ação do Estado, à estruturação de um sistema
significa partir do princípio de que o “menor” já não corretivo-repressor2 diferenciado, justificado com apelo a
corresponde à imagem de sujeito incapaz, imposta entre fundamentos humanitários, em prol da defesa social.
finais do século XIX e princípios do século XX. E signifi- O “menor” se distingue dos adultos segundo critérios
ca, ao mesmo tempo, reconhecer as diferenças que ele biológicos de idade, localizando-se no tempo, nos anos
possui em relação aos adultos, o que, entretanto, não o relacionados à infancia e à juventude, quando o indiví-
qualifica como sujeito hierarquicamente inferior ou débil, duo se encontra em franco processo de socialização e
mas, sim, como sujeito que possui, ao menos formalmen- de desenvolvimento físico-psíquico. O conceito ainda se
te, um espaço garantido na sociedade para viver e se de- caracteriza, especialmente neste momento histórico, por
senvolver segundo sua condição particular. selecionar as crianças e os adolescentes que não tive-
A possibilidade desta nova visão sobre o “menor” se ram acesso às, ou foram expulsos das, instituições bási-
estruturou a partir da consolidação do Estado de Bem- cas de socialização e de controle social existentes para
Estar. Seu reconhecimento, a nível formal, como sujeito esta faixa da sociedade: a família e a escola. Para esses
de direito, é uma construção recente, de finais do século casos foram criados os tribunais de menores, de caráter
XX, que se vincula à atividade estatal. Neste contexto, é essencialmente paternalista-repressivo, os quais, no âm-
de vital importância analisar as novas pautas de regulação bito científico já indicado, substituíram o tratamento jurí-
e de intervenção do Estado em relação aos adolescentes, dico da criminalidade dos “menores” por um tratamento
de maneira que o exercício do poder punitivo estatal não educativo-terapêutico, sem garantia substancial ou
entre em conflito com os seus direitos, e verificar se a adjetiva3 . O controle, efetivamente, estendia-se para
proposta garantista realmente corresponde à efetividade além da prática de condutas tipificadas como delito,
destes direitos. para alcançar a todos aqueles que se situassem no
Assim, a proposta deste trabalho é examinar, numa padrão da irregularidade, assumindo o juiz poderes ex-
uma perspectiva crítica, sob quais condições pode o Esta- tremamente amplos com grande espaço para a arbi-
do executar a finalidade educativa das medidas aplicáveis trariedade, de modo que os conflitos, que deveriam
aos adolescentes em conflito com a lei. Objetivo que pre- ser situados na esfera das políticas sociais, resulta-
tendemos desenvolver a partir do estudo dos modelos for- ram por ser apropriados pelo Estado, judicializados,
mais de intervenção estatal, especificamente os modelos criando assim uma categoria marginalizada4 .

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Assim tem razão García Méndez (1997, p. 41) ao enun- nuevo concepto de sociedad, se produce un au-
ciar que mento, sobre todo en las grandes ciudades, de
pobreza, marginación y miseria que afecta con
[…] la historia del control social formal de la fuerza a los niños y jóvenes, llenándose las
niñez como estrategia específica, constituye un calles de jóvenes mendigos, vagabundos,
ejemplo paradigmático de construcción de una rateros y maleantes.
categoría de sujetos débiles para quienes la
protección, mucho más que constituir un Esta situação suscitou a formulação de uma resposta
derecho, resulta una imposición. que, para encobrir uma marcada atuação repressiva e
paternalista, buscou suporte em súplicas de ajuda humani-
Como conseqüência destas construções e da associa- tária e se traduziu no grande laboratório de práticas do
ção entre pobreza, abandono, incapacidade e práticas de positivismo criminológico. Assim, o modelo de justiça de
delitos, surge a chamada delinqüência juvenil, sobre a qual “menores”, representado institucionalmente pelos tribunais
se estruturaram, ademais do esquema protetor-tutelar, di- de “menores”, estruturou-se a partir de uma série de pro-
ferentes modelos de controle, cujo eixo na busca de solu- cedimentos defensivos, educativos e curativos adaptados
ções passa necessariamente pelas mãos do Estado, o de- aos graus de periculosidade e à capacidade de readaptação
tentor do monopólio da resolução de conflitos. daqueles delinqüentes, conscientes, mas com uma vontade
imatura, atendendo aos imperativos da defesa social e atri-
buindo às medidas impostas (primordialmente o
2 Modelos de justiça juvenil internamento) o fundamento da prevenção especial, ou seja,
a possibilidade de ressocialização através de medidas
Para a construção de um sistema formal de controle educativas e curativas (VÁSQUEZ GONZÁLEZ, 2003).
dos menores distinto do de adultos, foi necessário delimi- Do ponto de vista constitutivo, este modelo se carac-
tar objetivamente quem são os “menores” e porque esta teriza pela declaração da inimputabilidade do menor, tras-
construção adjetiva os faz merecedores de um tratamen- ladando
to diferenciado. Os motivos desta distinção, como foi indi-
cado antes, estavam historicamente baseados na incapa- […] el juicio sobre sus actos de la esfera de la
cidade do “menor”, como conseqüência de sua suposta culpabilidad a la esfera de la peligrosidad. Se
fragilidade físico-psíquica, que encontrou neste último ele- considera a los menores delincuentes sumidos
mento o seu maior pilar de sustentação, uma vez que a en un estado prolongado de inferioridad o de
carência de razão e a resultante debilidade ou incapacida- insuficiencia, peligrosos para ellos mismos y
de de discernimento, traduzida juridicamente por graus ou para los demás; el peligro que comportan se pre-
ausência de imputabilidade, possibilitou a construção teó- cave, no por la imposición de una pequeña pena,
rica da justificação de sistemas de intervenção estatal di- sino por el ensayo de un régimen prolongado
ferenciados dos de adultos. A este respeito, cabe averi- de guarda y educación con el que todos se
guar se, efetivamente, o paradigma da incapacidade foi encuentran bien (CRUZ BLANCA, 2001, p. 85).
superado. Em relação ao marco objetivo para definir os
limites da intervenção, utilizou-se o critério da idade, que Assim, os tribunais de “menores” expandiram sua es-
se mantém na atualidade. fera de competência para além da prática de delitos, in-
Assim, delimitada a faixa de idade que caracteriza o terferindo preventivamente no âmbito da vida privada do
“menor”, estruturam-se distintos modelos de controle. “menor”, cerceando sua liberdade, também quando este
se encontrava em situação irregular, ou seja, quando suas
2.1 Modelo tutelar ou de proteção condições pessoais, familiares e sociais indicavam um prog-
nóstico de periculosidade. Além do mais, o procedimento
Este modelo coincide, nos aspectos histórico e ideoló- para a adoção de medidas era desenvolvido sem as ga-
gico, com o contexto do surgimento da categoria jurídica rantias jurídicas típicas do Estado de Direito garantista, de
do “menor” na modernidade, conforme já referimos. O maneira que o que existiu foi um autêntico sistema
panorama deste momento está muito bem descrito por paternalista e repressor,
Vásquez González (2003, p. 248):
[…] administrado informalmente, donde se pres-
A finales del siglo XIX y principios del siglo XX, ta especial atención a una mal entendida
con el nacimiento de la sociedad industrial, la protección, asistencia y tratamiento del menor,
inmigración urbana procedente de sectores en donde el factor más importante a la hora de
rurales y, en definitiva, el nacimiento de un establecer una medida no es el delito, sino la

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personalidad del menor y las circunstancias que te modelo, a interferência se justificava para a imposição
lo rodean (CRUZ BLANCA, 2001, p. 90). de medidas consideradas educativas ou assistenciais, mas
que, paradoxalmente, significavam a efetiva restrição de
Como conseqüência este modelo possibilitou, como direitos, além de resultar na estigmatização dos “menores”
marco para a atuação estatal, o “secuestro y judicialización ante a ausência de distinção, para efeito do atendimento,
de los problemas sociales” (BELOFF, 1999, p.15), de ma- entre infratores da norma penal, “menores” abandonados,
neira que todos os conflitos relacionados à infância e à ju- enfermos mentais, em processo de desestruturação famili-
ventude são interpretados como casos ou ameaças de de- ar, etc. Realidade que, em parte, explicava-se pela não apli-
linqüência. Assim, a resposta intervencionista e repressora cação de garantias jurídicas. Aqui, o principal argumento a
do Estado, pelas mãos do Poder Judiciário, ultrapassa a favor do modelo educativo – o distanciamento do “menor”
barreira da prática concreta de delitos, rompendo com os dos estigmas do sistema penal – acabou por desacreditá-lo,
limites e garantias do Direito Penal. uma vez que a renúncia às garantias formais e substancias
do processo abriu espaço para o excesso e o arbítrio na
2.2 Modelo educativo aplicação de medidas socioeducativas.

O modelo educativo surge em alguns países da Euro- 2.3 Atual modelo de justiça juvenil: o con-
pa como oferta do Estado de Bem-Estar e tem como pro- texto da mudança de paradigma
posta o distanciamento dos “menores” do sistema penal
através da aplicação de medidas educativas extrajudiciais, As conseqüências negativas dos modelos anteriormente
em resposta à prática de condutas anti-sociais (VÁSQUEZ expostos derivaram estruturalmente da consideração do
GONZÁLEZ, 2003; CRUZ BLANCA, 2001). “menor” como indivíduo incapaz, alheio aos processos de
produção econômica e cultural. Este estigma na socieda-
El internamiento (paradigma del sistema tute- de moderna trouxe consigo uma enorme mácula: por um
lar) aparece como el último recurso a utilizar y lado significava identificar o “menor” como indivíduo pri-
solamente en casos muy extremos. Se sustituye vado de razão, num momento em que a emancipação es-
por una serie de medidas que intentan no alejar tava estritamente vinculada ao padrão de cidadania5 e
al menor de su familia y, en aquellos casos en racionalidade ao qual o “menor” efetivamente não tinha
los que resulta necesario, se intenta que sean lo acesso, estando, portanto, excluído do espaço de reco-
más parecidas posibles a ésta. Se organizan una nhecimento de direitos. E ao não ser sujeito de direitos
serie de medidas e instituciones, dirigidas por não se lhe eram asseguradas garantias. Por outro lado
trabajadores sociales, como: acogimiento fami- significava que a solução para os casos de conflito de
liar, familias sustitutas, residencias de tipo fa- “menores” com a lei estava restringida ao marco de atu-
miliar (con un número limitado de chicos), etc ação estatal, pelas mãos do Poder Judiciário, como centro
(VÁSQUEZ GONZÁLEZ, 2003, p. 253). decisório, e de instâncias administrativas fortemente
institucionalizadas, onde se executavam medidas
Prevalece neste modelo o critério das necessidades educativas e corretivas.
do “menor”, estritamente vinculado à ideologia da ne- Assim, a construção jurídica em torno da infância e da
cessidade de educação (a imposição da educação), o que juventude nos períodos indicados (finais do século XIX e
permitiu a introdução de técnicas desjudicializadas e não princípios do século XX, e o pós-segunda guerra) refletiu
formalizadas em prol da não estigmatização do menor a incapacidade (aqui sim o termo está empregado em sua
(CRUZ BLANCA, 2001). verdadeira acepção) do
Estas mudanças, sistema de reconhecer
enunciadas como positi- aqueles que não se ajus-
vas, não representaram,
Uma mudança no tratamento jurídico tavam ao conceito de
entretanto, uma transfor- “cidadão”, de acordo
mação significativa com
do “menor” somente foi possível a com o significado que se
respeito ao modelo ante- circunscreve ao proces-
rior. Isto porque se man-
partir do momento em que lhe foram so histórico de configu-
teve a ampla possibilida- ração do Estado-nação
de de interferência do
reconhecidos, formalmente e sob na modernidade6 (estig-
Estado na vida privada ma que na mesma medi-
do indivíduo, através de certas condições 8 , os mesmos direitos da alcançou as mulheres,
instâncias administrati- os negros, os pobres, os
vas de atendimento. Nes- e garantias atribuídos ao cidadão. imigrantes, enfim, todos

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aqueles que não se ajustassem ao dito padrão, ou seja, através do Poder Judiciário, além de determinar ao Esta-
aqueles que se caracterizaram como “minorias diferenci- do o cumprimento de uma série de deveres correlatos, a
adas”, que, em verdade, correspondem quatro-quintas fim de garantir ao adolescente o gozo de seus direitos10 .
partes da humanidade) (SANTOS, 2003a). Além disso, Nesta linha, estruturam-se na Espanha e no Brasil, dois
constituíram o caldo de cultivo do que ainda hoje podemos modelos diferenciados de justiça juvenil que, seguindo as
chamar de o mito da “juridificação” e “judicialização” dos diretrizes marcadas pela Convenção Internacional dos
conflitos sociais, ou seja, o mito de que as respostas aos Direitos da Criança, incorporaram as garantias substanci-
problemas vividos em sociedade, entre eles a “delinqüên- ais e adjetivas próprias da justiça penal de adultos, centra-
cia juvenil”, devem vir pelas mãos do Estado7 através do lizando, de forma exclusiva, nas mãos do Poder Judiciário
reconhecimento de direitos e da formalização do acesso a fonte de respostas legítimas às condutas infratoras, de
aos direitos, como se o Direito e os direitos fossem, “ao acordo com o estabelecido pela lei e com o reconhecido
mesmo tempo, meios e fins da prática social” (SANTOS, como direito.
2003b, p. 36). A análise dos dois modelos se justifica porque estes
Uma mudança no tratamento jurídico do “menor” so- correspondem a diferentes respostas elaboradas com base
mente foi possível a partir do momento em que lhe foram nas distintas interpretações do fenômeno da delinqüên-
reconhecidos, formalmente e sob certas condições8 , os cia juvenil – em razão dos específicos contextos sócio-
mesmos direitos e garantias atribuídos ao cidadão. econômico-político-culturais que caracterizam e distanci-
Historicamente, este período corresponde ao que se am a realidade espanhola da brasileira –, que, entretanto,
tem chamado como geração dos direitos sociais, consoli- aproximam-se na medida em que estão inseridas no mes-
dados com o surgimento do Estado de Bem-Estar e for- mo âmbito de respostas formalmente admitidas, segundo
malmente declarados no Pacto Internacional sobre Direi- a moderna concepção do Estado de Direito, atendendo
tos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, que nada aos limites impostos pelas normativas internacionais.
mais significa que a reinterpretação dos direitos funda-
mentais civis e políticos, extendidos socialmente, àqueles 2.3.1 O modelo de responsabilidade espanhol
que são, em certa medida, diferentes (RIVERA BEIRAS,
[ca. 2003]). Diferença que não está na essência do indiví- Na Espanha, o modelo de justiça juvenil, introduzido
duo, uma vez que todos são dotados de extraordinárias pela Lei Orgânica (LO) 5/2000, caracteriza-se, essenci-
capacidades, mas sim na maneira de se expressar e de se almente, pela tentativa de fusão das garantias jurídico-
conduzir no mundo, levando em consideração os diferen- penais consignadas aos adultos à particular condição do
tes contextos econômicos, sociais e culturais em que se adolescente: o ser humano em desenvolvimento11 .
desenvolveram aquelas capacidades, que dificilmente se Em uma exata síntese, Gómez Rivero (2002, p. 6) des-
aceitariam fora de um estrito padrão de comportamento. creve que
O reconhecimento dos direitos sociais introduziu, como
um de seus principais avanços, a imposição de obrigações […] el ‘modelo de responsabilidad’, si bien
positivas ao Estado para a implementação efetiva dos di- reconoce la necesidad de reservar al menor un
reitos em prol dos indivíduos, considerados na sociedade trato diferenciado respecto al régimen propio
a partir de suas diferenças e especificidades, e trouxe, de los adultos, tampoco ignora el riesgo de que
como importante beneficio, a própria mudança do concei- bajo dicho velo argumentativo se despoje de
to de cidadão. garantías a la imposición de lo que es una
Sucede que, no processo de construção dos direitos auténtica pena. Su punto de partida es el
sociais, o reconhecimento formal das crianças e dos ado- reconocimiento de la imputabilidad del menor,
lescentes como sujeitos de direito não aconteceu de ma- aunque disminuida, y, por ello, de la posibilidad
neira imediata e uniforme. Transcorreu de modo lento nos de diseñar un régimen de responsabilidad pe-
diversos ordenamentos jurídicos e culminou, com seu re- nal. Justamente porque reconoce dicha
cente reconhecimento em nível internacional, em uma série naturaleza a las sanciones que contempla, par-
de tratados e convenções, cujo referênte mais importante te del carácter eminentemente restrictivo de
é a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de derechos de cualquier intervención sobre el
20 de novembro de 1989 (CRUZ BLANCA, 2001)9 . menor a la par que se esfuerza en dotarle de
Como conseqüência sobre a específica realidade dos todas sus garantías tanto desde un punto de vista
adolescentes infratores, surgiu a concreta barreira à des- sustantivo como procesal.
medida intervenção punitiva estatal nos casos de conflito
com a lei pela prática de delitos – reduzindo-se ao âmbito Desta maneira incorporou como princípios gerais: a) a
de atuação repressiva formalmente autorizada num Esta- consideração do adolescente como sujeito de direitos, ca-
do Democrático de Direito: a do Direito Penal, exercida paz de assumir a responsabilidade por seus atos (capaz

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de culpabilidade); b) a limitação do modelo de justiça de Começa por afirmar que


menores à esfera penal pela prática de delitos; c) o princí-
pio de mínima intervenção penal (potencializado pela ne- […] la responsabilidad penal de los menores
cessidade de respeito ao processo de desenvolvimento fí- presenta frente a la de los adultos un carácter
sico-psíquico-social do adolescente); d) a aplicação de primordial de intervención educativa que
medidas alternativas ao internamento; e) a aplicação de trasciende a todos los aspectos de su regulación
medidas privativas de liberdade em casos de extrema gra- jurídica y que determina considerables diferen-
vidade e necessidade; f) a adoção das garantias penais, cias entre el sentido y el procedimiento de las
materiais e processuais, compatíveis com o princípio de sanciones en uno y otro sector, sin perjuicio de
superior interesse do menor. las garantías comunes a todo justiciable (Pará-
Neste modelo, em que se determinou a criação de grafo segundo, item 4, inciso I).
um sistema penal específico para os adolescentes, es-
tes devem participar ativamente nas decisões que pos- Depois segue com a enumeração expressa dos princípios:
sam implicar na restrição de direitos, sobre os quais
exercem a titularidade (ainda que não possam dispor […] la presente Ley Orgánica ha sido conscien-
deles com autonomia)12 . temente guiada por los siguientes principios
De fato, como indica Bernuz Beneitez (1999, p. 320), generales: naturaleza formalmente penal pero
materialmente sancionadora-educativa del
[…] el derecho a ser oído que tiene el menor en procedimiento y de las medidas aplicables a los
toda decisión que le afecte adquiere gran infractores menores de edad, reconocimiento
importancia en la Justicia de Menores. Primero, expreso de todas las garantías que se derivan
porque a través de la confesión del niño se del respeto de los derechos constitucionales y de
averiguan las causas que se encuentran detrás las especiales exigencias del interés del menor,
de la comisión de la infracción y ponen de diferenciación de diversos tramos a efectos
manifiesto sus necesidades personales y procesales y sancionadores en la categoría de
sociales. Tanto la explicación de las causas de infractores menores de edad, flexibilidad en la
la infracción como de las necesidades del niño adopción y ejecución de las medidas aconsejadas
contribuyen a diseñar la medida más justa en por las circunstancias del caso concreto,
la relación a las primeras y más adecuada para competencia de las entidades autonómicas rela-
dar respuesta a las segundas. cionadas con la reforma y protección de meno-
res para la ejecución de las medidas impuestas
Por isso cabe destacar o importante papel que exerce en la sentencia y control judicial de esta
o princípio do superior interesse do menor, entendido, se- ejecución (Parágrafo primeiro, item 6, inciso II).
gundo Bernuz Beneitez
(1999, p. 148-149), como Ademais, reitera a
“[…] el concepto que Como pauta para a atuação estatal, natureza sancionadora da
permite conectar el mun- Lei e esclarece que a re-
do del derecho con o modelo de proteção integral ação jurídica está dirigida
conceptos y problemas à intervenção de caráter
sociales. Y, por tanto procura reconhecer e promover os educativo de especial in-
posibilita la protección del tensidade, “rechazando
sujeto de derecho”. As- direitos humanos, econômicos, expresamente otras fina-
sim, utilizado como crité- lidades esenciales del
rio interpretativo no mo- sociais e culturais de crianças Derecho penal de adul-
delo de responsabilidade, tos, como la proporcio-
vincula e limita a ativida- e adolescentes.... nalidad entre el hecho y
de estatal na punição e la sanción o la intimi-
prevenção de delitos à dación de los destinata-
vigência e satisfação simultânea dos direitos dos adoles- rios de la norma”, com o objetivo de “impedir todo aquello
centes (CILLERO BRUÑOL, 1999). que pudiera tener un efecto contraproducente para el
A Exposição de Motivos da LO 5/2000 (CRUZ BLANCA, menor, como el ejercicio de la acción por la víctima o
2001) enuncia uma série de princípios interpretativos que, por otros particulares” (CRUZ BLANCA, 2001, parágrafo
de maneira clara, mas não isenta de críticas, delineia as primeiro, item 7, inciso II, da Exposição de Motivos da
finalidades do modelo de responsabilidade na Espanha. LO 5/2000).

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A leitura dos princípios enunciados sugere, precisamen- namento jurídico brasileiro no qual, paradoxalmente, con-
te, a tentativa de estabelecer critérios interpretativos que vivem o reconhecimento de direitos sociais e a correlata
possibilitem o ajuste dos institutos do Direito Penal de adul- institucionalização de políticas de atendimento social, com
tos à particular situação do adolescente. Estes matizes um projeto político de desresponsabilização do Estado em
estão dirigidos à finalidade da pena, que se orienta clara- relação a seu caráter distributivo. Desta forma o que se
mente à prevenção especial (ressocialização do indivíduo) vê no âmbito normativo, concretamente no ECA, é uma
através da educação, em oposição à pura retribuição e à extensa lista de possibilidades de regulação e de interven-
prevenção geral negativa que se admitem com maiores ção estatal através da juridificação de situações da vida
restrições13 . social como via de prevenção e solução de conflitos que
Como enuncia Bernuz Berneitez (1999, p. 135), afetam à criança e ao adolescente (FAJARDO, 2003).
Como modelo de justiça juvenil, o ECA se caracteriza
En primer lugar, se pretende la rehabilitación por incorporar limites à intervenção estatal pela prática
del menor y su integración ya que al concebir de atos infracionais próprios do Direito Penal, asseme-
al menor como sujeto, la reinserción forma par- lhando-se, neste aspecto, ao modelo de responsabilidade
te de las tareas de la sociedad hacia el mismo. espanhol. Com respeito à finalidade das medidas
Además, la medida mantiene su carácter socioeducativas aplicáveis como conseqüência e respos-
retributivo en tanto considera al menor como ta pela prática de um ato infracional, o art. 100 do ECA
sujeto de derechos, debe asumir con ellos una estabelece expressamente que “Na aplicação das medi-
serie de responsabilidades. En consecuencia, se das levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas,
atribuye a la medida una función importante de preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos
prevención general positiva defendiendo que la vínculos familiares e comunitários”.
pena aplicada de forma sistemática, certera y Desta forma, a finalidade educativa também marca, no
proporcional legitima el sistema. modelo brasileiro, a pauta de intervenção legítima do Esta-
do, através de medidas de prevenção e repressão aos ca-
Em razão destes princípios, que marcam a pauta da sos em que os adolescentes entram em conflito com a lei.
atuação estatal na Espanha na persecução dos delitos pra- Numa análise precisa, Fajardo (2003, p. 349-351) in-
ticados por adolescentes, sugerimos o debate sobre as fi- dica que:
nalidades deste Direito Penal de “menores de idade”, con-
cretamente a finalidade educativa na execução das penas O ECA, assim, ‘apresenta-se’ como síntese dos
ou medidas estabelecidas pela LO 5/2000. modelos protetor e educativo e ‘implementa-se’
Antes de passar a este debate, analisaremos o modelo como síntese dos modelos protetor e de justiça.
de justiça introduzido pelo Estatuto da Criança e do Adoles- Em termos gerais, o adolescente autor do ato
cente (ECA) brasileiro que, além de incorporar garantias infracional é visto, ao mesmo tempo, como su-
substantivas e adjetivas próprias do Direito Penal de adul- jeito de direitos e como vítima/objeto de prote-
tos, também estabelece a finalidade educativa das medidas ção e educação.
aplicáveis aos adolescentes pela prática de delitos. As conseqüências desta ambigüidade teórica e
prática e as possibilidades de implementação
2.3.2 O modelo de proteção integral brasileiro poder ser, por exemplo, de três ordens.
Em primeiro lugar, um protecionismo com ênfa-
A proteção integral, interpretada como um princípio se terapêutica que reforça a estigmatização,
garantista, significa a proteção dos direitos das crianças e medicaliza a violência, estressa funcionários e
dos adolescentes, de maneira que através da proteção seja resume o trabalho à ‘atendimentos’ descontex-
possível garantir a efetivação destes direitos. Como pauta tualizados, pontuais, caros, ineficazes e, muitas
para a atuação estatal, o modelo de proteção integral pro- vezes, de resultados trágicos.
cura reconhecer e promover os direitos humanos, econô- Em segundo lugar, um educativismo retórico,
micos, sociais e culturais de crianças e adolescentes. apoiado na falácia da socioeducação como ins-
No Brasil este modelo se concretizou pela elaboração trumento de transformação social, que desequi-
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), introdu- libra a balança entre a necessária discriciona-
zido pela Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990, que repre- riedade técnica e o garantismo, que nunca é
senta o micro-sistema jurídico aplicável aos “menores”, e demasiado. Esta distorção ainda pode embasar
está inserido no projeto de incorporação dos princípios do a produção de laudos técnicos substancialistas,
Estado de Bem-Estar e a conseqüente outorga de direitos apoiados no critério do comportamento ‘den-
sociais expressados pela Constituição Federal de 1988. tro’ dos internatos como condição para viver
Neste marco, o ECA absorve as ambigüidades do orde- ‘fora’, em liberdade.

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E, em terceiro lugar, uma visão penalista estreita mento de emancipação para a liberdade de eleger e decidir
de justiça juvenil, que reduz as possibilidades com responsabilidade e consciência das conseqüências das
de resolução de conflitos fora do sistema judici- ações individuais para a sociedade. Tal perspectiva, aplicá-
al, que embasam propostas como redução da ida- vel às crianças e aos adolescentes, parte do pressuposto do
de para imputabilidade penal, aumento de re- reconhecimento de seus direitos, principalmente do direito
pressão, etc. Esta distorção, ainda, reduz a ne- à igualdade e à liberdade de expressão.
cessária margem de discricionariedade técnica, Num sentido contraposto, a educação é uma via de
coerente com o aspecto pedagógico do trabalho transmissão do conhecimento que, ao ser desenvolvida a
socioeducativo. nível formal, abarca “no sólo la transmisión, sino también
Na justiça juvenil brasileira a ambigüidade prin- la selección, clasificación, distribución y evaluación (a tra-
cipal, em resumo, que aparece tanto no texto da vés de exámenes y pruebas) del conocimiento” (COUSO
lei quanto em sua implementação, é entre o cará- SALAS, 1999, p. 91). Nesta acepção é um forte instru-
ter pedagógico e o penal, enquanto secundária, mento ideológico, possibilitando ao interlocutor dotar de
mas que aparece com força na prática, é entre conteúdo e de sentido o objeto do conhecimento, estruturado
os anteriores e o terapêutico/repressivo. Em ní- sobre relações de poder, de modo que “en educación no
vel de discurso, o argumento hegemônico sus- todo es construcción de personas libres y creativas”
tenta o caráter pedagógico das medidas (COUSO SALAS, 1999, p. 91), o que afeta diretamente a
socioeducativas (o próprio termo demonstra), construção da consciência de coletivo e a correlata noção
mas, em nível de práticas, as características prin- de responsabilidade no atuar em sociedade.
cipais são a ausência do caráter pedagógico e a Na medida em que o Direito Penal se apropria do con-
violação do caráter garantista. ceito de educação, o faz contextualizando com a finalidade
ressocializadora da pena, transformando-a em instrumento
Neste contexto, consideramos necessário analisar duas de controle. O objetivo é fazer com que o adolescente seja
questões: a) se a educação é uma finalidade executável capaz de aprender e respeitar valores reconhecidos na so-
pelo Direito Penal quando adolescentes entram em con- ciedade, de maneira a promover sua integração como par-
flito com a lei, seja pela via do modelo de responsabilidade te desta mesma sociedade, a fim de que não volte a delin-
ou pela via do modelo de proteção integral; e b) se é pos- qüir. Basta concretamente cumprir através da educação a
sível seguir sustentando que as respostas mais eficazes a finalidade da pena: a prevenção de delitos.
este problema devam permanecer restritas ao âmbito de A educação que se pretende possível pela via do Di-
atuação estatal, a partir de decisões do Poder Judiciário. reito Penal se circunscreve em grande medida ao sentido
contraposto esboçado anteriormente, porque neste con-
texto não há espaço para a liberdade. De fato, segundo
3 Educar através da pena Hassemer e Muñoz Conde (1989, p. 154),

Como indica Albrecht (1990, p.108), […] se ha puesto de relieve la incompatibilidad


del tratamiento y de cualquier otro objetivo
Educación en el sentido de las ciencias sociales terapéutico con la privación de libertad. ‘Edu-
es socialización, bajo la cual en una car para la libertad en condiciones de no
consideración sociológica, psicológica y peda- libertad’ es una especie de cuadratura del cír-
gógica, se entiende un proceso de desarrollo culo de difícil solución.
complejo que aspira del educando un desarrollo
determinado de personalidad. Educación en este Dessa forma, funciona como um instrumento de impo-
sentido complejo exige una posibilidad de sição ideológica e conformista do ideário de mundo, soci-
decisión libre del educador – y ciertamente edade e das normas da cultura adulta, executada através
también en consideración a apreciaciones sub- da deslegitimação da posição do menor com relação ao
jetivas. […] Por lo demás, a una educación adulto (COUSO SALAS, 1999).
adecuada pertenecen también chances de A orientação da finalidade da pena para a educação,
socialización adecuadas, dicho cortamente, como instrumento de ressocialização, sugere duas inter-
circunstancias vitales que permitan un pretações: a primeira é a associação entre a prática de
desarrollo de la personalidad. delitos pelo adolescente ao déficit de aprendizagem. A
segunda é a possibilidade de suprir este déficit através da
Quando se desenvolve em um ambiente de autonomia, educação pela via da pena ou de medidas socioeducativas.
respeito, participação conjunta e reciprocidade entre edu- A construção histórica do modelo de justiça de “meno-
cador e educando, a educação supõe um verdadeiro instru- res” sobre estas bases, ainda que sejam observadas todas

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as garantias materiais e formais típicas do Direito Penal pria vida. Ademais, a tomada de consciência do erro, pelo
de adultos, é o prognóstico de seu fracasso, por implicar o delito cometido, e a decisão pessoal de mudar, são pro-
mascaramento da mesma estrutura dos modelos anterio- cessos subjetivos que não podem ser controlados pelo
res: a consideração do adolescente como indivíduo inca- Direito Penal. Se o pretendido é tornar o adolescente um
paz e carente de tutela e proteção. sujeito responsável e capaz de conviver em sociedade sem
cometer outros delitos, a reprovação do comportamento
La corrección de los niños y su tratamiento ilegal através da pena pode de ser uma das vias (a mais
constituyen la señal que identifica principalmen- dura e perversa) de informação e conhecimento das nor-
te las medidas impuestas por la Justicia de Me- mas de conduta em sociedade, sobretudo se vem acom-
nores (Mir: 1994, 149). Porque aplican la me- panhada da oferta de ferramentas que potencializem o
dida analizando lo que los hechos esconden y desenvolvimento e o aprendizado, mas que em nenhum
pretenden con la imposición de la medida aspecto garante que o indivíduo não volte a delinqüir.
hacerles tomar conciencia sobre el acto y las O instrumento mais eficaz, seguramente, seria garan-
consecuencias que supuso para el perjudicado. tir ao indivíduo, antes que a punição, o acesso às ferra-
Si trata de diagnosticar en el primer caso y de mentas para seu desenvolvimento e integração à socieda-
pronosticar en el segundo actuando sobre el de, objetivo que se pode cumprir com o apoio da educa-
síntoma. En principio, todos los operadores ju- ção, levando em conta que
rídicos y expertos sociales predican la
aspiración a lograr, a través de las medidas, […] cualquier propósito de genuina educación
una responsabilización del menor por sus actos y de restitución de derechos pasaría por la
y su educación conforme a las normas sociales. implementación de programas ajenos al siste-
La eficacia de estas medidas de cara a evitar la ma y a la lógica del derecho penal juvenil. […]
reincidencia no ha sido probada. De manera si ha de privilegiarse una intervención
que los expertos sociales justifican la medida verdaderamente educativa y restitutiva de
por la cobertura del vacío educativo, psicoló- derechos, ello ha de ocurrir fuera del Derecho
gico o afectivo que presentan estos menores penal juvenil y lo mejor que puede hacer éste,
(BERNUZ BENEITEZ, 1999, p. 348). lejos de ‘entusiarmarse’ con la idea de educación
y pretender hacerla suya, es replegarse todo lo
Executada nestes termos, a finalidade educativa tem o posible renunciando al máximo a una sanción,
mesmo “sello ideológico de centrar el problema de la no sólo si es privativa de libertad, sino, también
criminalidad en el individuo delincuente y no en el sistema si es ambulatoria (COUSO SALAS, 1999, p. 97).
social que lo produce” (HASSEMER; MUÑOZ CONDE, 1989,
p. 154), além de possibilitar o embuste da aplicação de Por tudo isso acreditamos que insistir na busca de so-
medidas ou penas severas, com burla à consideração da luções restritas à atuação do Estado significa permanecer
culpabilidade, em virtude da enunciada “transcendência” limitado ao âmbito das respostas padronizadas que
do caráter primordial de intervenção educativa. Neste sen- juridificam e burocratizam as situações da vida em socie-
tido, a legitimação do Direito Penal de adolescentes so- dade, distanciando-se das dinâmicas que originam os con-
mente é sustentável na medida em que seja exercido para flitos sociais, invisibilizando, desta forma, tudo o que está
o reproche pelos delito/ato infracional cometido, “en el fora do marco de regulação e atuação estatal, provocan-
sentido de la exigencia de un comportamiento legal” do a imobilização na construção de alternativas que, des-
(ALBRECHT, 1990, p. 108-109), considerada a educação de dentro do problema, poderiam ser mais eficazes.
não como finalidade da medida ou da pena, mas, sim, como
limite (COUSO SALAS, 1999) e parâmetro para a interven-
ção estatal. Em outras palavras, é necessário desmistificar Conclusões
a educação como tarefa do Direito Penal ou do sistema
de justiça juvenil. Sua consideração somente pode ser útil Como desdobramento dos argumentos desenvolvidos
para a limitação da medida/pena no momento de reprimir neste trabalho, consideramos que a finalidade educativa das
o adolescente pelo fato cometido e como oferta da Admi- medidas/penas aplicáveis aos adolescentes em conflito com
nistração (HASSEMER; MUÑOZ CONDE, 1989), em res- a lei, nos modelos de justiça juvenil analisados, é um mito que
peito ao seu processo de desenvolvimento físico-psíquico se alimenta para justificar a legitimidade da intervenção esta-
e social. A imposição do aprendizado não deve ser uma tal como remédio a um problema que pode ser resolvido de
finalidade legítima da medida/pena, por implicar numa grave maneira eficaz em esferas anteriores à do Direito Penal.
restrição da liberdade subjetiva de convicção do indivíduo De fato, como atividades que necessitam da participa-
sobre si mesmo e os rumos que pretende dar à sua pró- ção ativa do adolescente, as medidas/penas com finalida-

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de educativa (enquanto “sociologia das emergên-


ferramentas utilizadas
... um protecionismo com ênfase cias” (SANTOS, 2003b),
para a reinserção social) sugerimos a ampliação
não produzem efeitos
terapêutica que reforça a do eixo de respostas aos
positivos quando são apli- casos de adolescentes
cadas num ambiente de
estigmatização, medicaliza a violência, em conflito com a lei
repressão, violência e pri- para além do discurso
vação da liberdade. Pelo
estressa funcionários e resume o institucional – ainda cen-
contrário, as respostas trado na necessidade de
mais efetivas em benefí-
trabalho a ‘atendimentos’ reconhecer e garantir di-
cio do adolescente, para reitos através do acesso
sua reintegração ao seio
descontextualizados, pontuais, caros, à justiça, ao Poder Judi-
da família e do entorno ciário e às instâncias ad-
social, surgiram de pro-
ineficazes e, muitas vezes, ministrativas de atendi-
postas que se caracteri- mento – em direção a
zam pela conjugação da
de resultados trágicos. uma efetiva política de
atuação do Estado, da fa- democratização da cons-
mília e da sociedade num trução de alternativas, que
autêntico processo de apropriação, por parte dos sujeitos que implique ativamente as partes diretamente envolvidas
diretamente implicados, e de democratização das vias de no conflito, a sociedade, ONGs, empresas, associações e o
solução para os casos de conflito que reivindicam, cada Estado, paralela a uma política de democratização da dis-
vez mais, espaço para a execução em meio aberto e em tribuição de recursos, de modo que as desigualdades ge-
liberdade14 . radas pela pobreza e hierarquização do ser humano não
Desta forma, a finalidade educativa não pode ser con- continuem sendo o motor e o pano de fundo da violência.
cebida enquanto um fim em si mesma. Ela somente pode
ser legítima quando é considerada como um referente e Recebido em 05.10.2005.
um limite à intervenção estatal no exercício do poder pu- Aprovado em 02.12.2005.
nitivo. A pena, no modelo de responsabilidade espanhol, e
a medida socioeducativa, no modelo de proteção integral,
devem ser aplicadas levando em consideração a necessi-
Referências
dade e o direito do adolescente à educação, assim como
sua possibilidade de reabilitação a partir da educação, e ALBRECHT, M.-A. El Derecho Penal de menores. Tradução
não como instrumentos de imposição da educação de qual- Juan Bustos Ramírez. Barcelona: PPU, 1990.
quer maneira e a qualquer preço. Por isso consideramos BARATTA, A. Infancia y democracia. In: GARCÍA MÉNDEZ,
que o adolescente tem o direito a se opor ao cumprimento E.; BELOFF, M. (Comps.). Infancia, ley y democracia en América
da medida/pena educativa que determine sua participa- Latina. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1998, p. 31-57.
ção ativa quando esta resulte na imposição de um ato BELOFF, M. Modelo de la protección integral de los derechos
decisório produzido sem sua participação direta e pessoal del niño y de la situación irregular: un modelo para armar y otro
e que, portanto, não seja respeitoso com o seu direito de para desarmar. In: Justicia y Derechos del Niño, Santiago del
se manifestar e de ser escutado. Chile: UNICEF, Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia,
Ademais, para além do marco de atuação jurídico, con- Oficina de Área para Argentina, Chile y Uruguay, Ministerio de
sideramos necessário potencializar ações participativas e Justicia, n. 1, nov. 1999, p. 9-21.
democráticas, ali onde o conflito com os adolescentes se BERNUZ BENEITEZ, M. J. De la protección de la infancia a la
manifesta, nas quais o recurso ao Direito e ao aparato prevención de la delincuencia. Zaragoza: El Justicia de Aragón,
estatal represente apenas uma ferramenta a mais dentro 1999.
da multiplicidade de alternativas à solução dos problemas CILLERO BRUÑOL, M. El interés superior del niño en el marco
que afetam à juventude. de la Convención Internacional sobre los Derechos del Niño.
Com efeito, consideramos que a “juridificação” dos In: Justicia y Derechos del Niño, Santiago del Chile: UNICEF,
fatos da vida social e a “judicialização” de conflitos de- Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia, Oficina de Área
vem deixar de ser os eixos da discussão na procura de para Argentina, Chile y Uruguay, Ministerio de Justicia, n. 1,
respostas aos problemas que afetam aos adolescentes que nov. 1999 , p. 45-62.
infringem a lei. COUSO SALAS, J. Problemas teóricos y prácticos del principio
Assim, para a conclusão deste trabalho, e como pro- de separación de medidas y programas, entre la vía penal-juvenil
posta de discussão para o futuro, seguindo a lógica da y la vía de protección especial de derechos. In: Justicia y Derechos

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Notas
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n. 8069, de 13 de julho de 1990. 2003. Tese (Doutorado em Direitos primeiro Tribunal de Menores criado no final do século XIX,
Humanos e Liberdades Fundamentais) – Universidade de precisamente em Chicago, em 1899, que estabeleceu uma
Zaragoza. Zaragoza, 2003. jurisdição própria e autônoma para crianças e adolescentes,
com a intenção de oferecer um tratamento diferenciado aos
FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. Tradución Jorge Mellado. menores delinqüentes, que antes eram apenados nas
Madrid: Siglo XXI, 1988. mesmas bases que os adultos, com fundamento na
GARCÍA MÉNDEZ, E. La Convención Internacional de los Derechos culpabilidade de caráter retributivo. Conforme Tamarit
del niño: del menor como objeto de la compasión-represión a la Sumalla (2001), este momento corresponde ao modelo de
infancia-adolescencia como sujeto de derechos. In: Derecho de la justiça fundamentado no discernimento. Para aprofundar
infancia/adolescencia en América Latina: de la situación irregular neste tema, indicamos Cruz Blanca (2001).
a la protección integral. Disponível em <www.iir.oea.org/ 2 Para uma síntese dos reflexos do positivismo criminológico
la_convencion_internacional.pdf>. Acesso em 21 jan. 2004. no sistema de controle formal dos menores, indicamos. Rivera
_____. Para una historia del control socio-penal de la infancia: Beiras (199-).
la informalidad de los mecanismos formales de control social. 3 Sobre o processo sociocultural de construção da subcategoria
In: Derecho de la infancia-adolescencia en América Latina. do menor e sua introdução na cultura sociojurídica do modelo
Ibagué: Forum Pacis, 1997. protetor-repressivo de menores, consideramos importante
GÓMEZ RIVERO, M. C. La nueva responsabilidad penal del indicar a leitura de García Méndez (2004).
menor: las Leyes Orgánicas 5/2000 y 7/2000. Revista Penal, 4 Sobre a doutrina da situação irregular, vide Beloff (1999).
Universitat Jaume I, Castelló de la Plana, Espana, n. 9, p. 3-26,
2002. 5 Em uma das interpretações mais comuns da idéia de cidadania
(elemento que outorga ao indivíduo/cidadão/nacional
HASSEMER, W.; MUÑOZ CONDE, F. Introducción a la direitos específicos sobre o território e os recursos, não só
criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo blanch, materiais, mas também simbólicos), vê-se que está vinculada
1989. à integração do indivíduo a um grupo nacional em um
ILANUD – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para determinado território “sobre” o qual tem direitos
Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente. Sócio- (SABARIEGO GÓMEZ, 2005).
Educação no Brasil: Adolescentes em conflito com a lei. 6 No Estado Moderno o conceito de cidadania está
Experiências de medidas sócio-educativas. 1. e 2. ed. São Paulo: estritamente vinculado aos princípios que emanam da
publicação da comissão organizadora do Prêmio Sócio- declaração formal de igualdade e liberdade. Para aprofundar
Educando, [ca. 2003]. neste tema, vide Del Águila (2000).
RIVERA BEIRAS, I. Nacimiento y presupuestos ideológicos de 7 Para um estudo mais aprofundado das representações do
la justicia penal juvenil. In: SNEIDER RIVERA (Comp.). Pasado Estado geradas pelo mito da juridificação e da judiciali-
y presente de la justicia penal juvenil. Unicef/Universidad de zação dos conflitos sociais, vide Fajardo (2003).
Barcelona [ca. 2003], p. 7-19.
8 Condições que se referem ao exercício efetivo destes direitos.
_____. Disposiciones internacionales y jurisprudencia relevante
9 O reconhecimento do menor como sujeito de direitos em
en materia penal juvenil. In: SNEIDER RIVERA (Comp.). Pasado
nível internacional está, ademais da Convenção Internacional
y presente de la justicia penal juvenil. Unicef/Universidad de
dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, nas
Barcelona [ca. 2003], p. 43-64.
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração
SABARIEGO GÓMEZ, M. J. La globalización de las relaciones da Justiça a Menores (Regras de Beijing) de 1985, nas Regras
entre cultura y política: una nueva ecologia social de la das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil
identificación. In: V.V.A.A. Investigación de la paz y los Derechos (Diretrizes de Riad), de 1990 e nas Regras das Nações Unidas
Humanos desde Andalucía. Granada: Eirene, 2005, p. 107-117. para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica de la razón indolente. 10 Apesar da importância do reconhecimento do menor como
Bilbao: Desclée de Brouwer, 2003a. sujeito de direitos, cabe advertir que a implementação e a

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garantia destes direitos estão vinculadas ao desenvolvimento


de políticas sociais básicas, sem as quais o reconhecimento
formal não serviria a outra finalidade que ao exercício
simbólico e inócuo da retórica (BARATTA, 1998).
11 Cabe advertir que apesar da semelhança existente entre o
modelo de responsabilidade e o de proteção integral,
desenvolvido na América Latina, isto não implica na
necessária equivalência de tratamento da delinqüência
juvenil em ambos, entretanto é inegável reconhecer a origem
dos dois modelos nas mesmas diretrizes internacionais.
12 A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de
1989, estabelece, nos artigos 5 e 12, o princípio de autonomia
progressiva do menor no exercício de seus direitos e de
participação em todos os assuntos que lhe afetem,
declarando expressamente o direito de se manifestar, correlato
ao direito de ser escutado.
13 Para uma reflexão sobre as finalidades da pena no Direito
Penal de menores na Espanha, vide Gómez Rivero,(2002).
14 A confirmação desta realidade pode ser vista nas experiências
concretas referidas em ILANUD [ca. 2003].

Luciana de Oliveira Monteiro


luciana.lumonteiro@gmail.com
Universidad Pablo de Olavide
Crta. Utrera, Km 1
Sevilla – España
41013

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