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A MORAL R EFORMADORA E A PRISÃO DE MENTALIDADES: ADOLESCENTES SOB...

A MORAL REFORMADORA E A PRISÃO DE


MENTALIDADES
adolescentes sob o discurso penalizador

SALETE MAGDA DE OLIVEIRA


Membro do Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP, Pesquisadora da Capes

depositário do justo e procedimento exemplar que res-

A
sociedade ocidental insiste em reatualizar, sob
inúmeras vestes, o legado da concepção de jus- ponde aos anseios democráticos que clamam pelo fim da
tiça da filosofia platônica. Parte do pressuposto violência e da impunidade. Se a violência manifesta-se
de que justiça equivale ao bem, sob a ótica da moral; ao como uma das formas preferenciais de identificação do
bem comum, como generalização legal; e à garantia da mal-estar, a resposta convencional esperada, que coabita
ordem pública, enquanto meta legitimadora de expurgos vidas inseguras de si próprias, justifica não só a existên-
do que é considerado insuportável. cia da prisão para jovens no Brasil e suas eternas refor-
Criam-se, assim, dicotomias que alimentam o jogo de mas, bem como a manutenção dos dispositivos carcerários
antagonismos coadunados à falaciosa pretensão que ca- que encontram sua porta de entrada sob a forma de julga-
minha lado a lado do ideal de felicidade. A denominação mento materializado no tribunal para adolescentes consi-
de mal-estar emerge complementada pelo seu oposto: o derados infratores.
bem-estar, duplo equivalente e capaz de redenção. Trata- As consciências engajadas ao ideal da democracia
se, mais uma vez, de fazer caber o outro no um, batalha encontram alívio na atuação de advogados, cumprindo
de pólos contrários que rivalizam no mesmo espectro de um mero expediente formal que desqualifica seu papel
intervenção e centralidade. de defesa; de juízes e promotores, garantindo a ordem
A tessitura do clamor de segurança disseminado pela e deixando intocada a propriedade privada como ex-
sociedade exige que o bem-estar seja o modelo exemplar tensão da própria vida; e de técnicos que, sob parece-
capaz de responder a mal-estares inerentes, construídos e res biopsicosociais, legitimam a intervenção das cha-
cultivados sob a lógica do temor. madas ciências humanas sobre cotidianos, corpos e
As conotações de bem-estar e mal-estar respondem mentes, fornecendo o aval científico de que o procedi-
à retórica que prima pela tautologia 1 de uma sociabili- mento jurídico tanto necessita para respaldar suas sen-
dade que constrói e reconstrói intervenções reformis- tenças.
tas, legitimadas pela edificação de seu próprio emba- Os adolescentes considerados infratores transbordam
raço diante da escolha de uma moralidade do juízo nos excessos das ruas e casas, nas páginas de processos
providencial. esquecidos em algum arquivo, nos inventários de culpas
Não causa espanto que o espectro do tribunal incida, tecidos por neutralidades de toda ordem, transbordam,
sob as mais variadas nuances, em diversas esferas da vida, enfim, em uma sociabilidade autoritária reproduzida por
muitas vezes de forma velada e doce, e, regularmente, eles e legitimada pelos defensores do combate ao mal-
como ritual soberano e disciplinar. estar, que incapazes de dizer sim, insistem no não da moral
Cabe, assim, interrogar o significado da reinvenção e do ressentimento, duplo fraterno da vingança e da educa-
reiteração do tribunal em nossa sociedade, como locus ção pelo medo.

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CRIANÇAS E ADOLESCENTES a ressonância deste assistencialismo e consolidou, no cam-


NA NAU DAS REFORMAS po da proteção a crianças e adolescentes, a política de bem-
estar social em sentido amplo, inaugurada sob o autorita-
A Primeira República, no Brasil, inaugura o conceito rismo de Vargas.
de menoridade, não mais vinculado a correlações etárias, O Código de Menores de 1979, dando continuidade à
mas associado ao conceito de marginalidade em situações associação abandono-pobreza-marginalidade, não se li-
de abandono ou de delito. O abandono é visto como o mita apenas à idéia de correção, mas, respondendo a uma
prenúncio do risco do delito, condição tratada, na época, política de segurança, implanta uma prática institucional
como caso de polícia. de reintegração coadunada com a proposta da Política
A década de 20 opera a passagem da simples repres- Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM).
são para o afastamento das crianças dos focos de contá- “Reduzir a tese de associação positiva entre criminali-
gio, que consistia, basicamente, na idéia de que as crian- dade e classes sociais é próprio de uma percepção empi-
ças deveriam ser retiradas das ruas para se submeterem a ricista da sociedade que por meio do próprio discurso
medidas preventivas e corretivas, que estariam a cargo político de uma instituição passa a dar justificativa para
de instituições públicas. O Código de Menores Mello seu próprio funcionamento. Na verdade, essa associação
Matos, de 1927, consolida legalmente esta prática de pre- positiva favorece a reprodução das desigualdades na me-
venção ligada ao ideário de periculosidade. dida em que estas se erguem na sociedade por diferen-
O discurso que permeia todo o direito penal moderno ciações individuais expressas nos comportamentos dos
tem como um dos principais pressupostos o conceito de indivíduos, a partir de uma maior ou menor introjeção dos
periculosidade, assentado no saber do exame que com- valores considerados essenciais. Considera-se desajustado
porta uma argumentação exterior ao próprio direito, mas, ou delinqüente todo aquele que fere com sua ação à ordem,
simultaneamente, incorporada por ele. É um ideal de hi- sintetizada no crime contra o patrimônio” (Passetti, 1982:79).
giene e saúde pública que informa o discurso jurídico Segundo o autor, a criação da Política Nacional do
desde o final do século passado, assumindo um caráter Bem-Estar do Menor, fundamentada no pensamento da
fundamental para os defensores da doutrina da periculo- Escola Superior de Guerra (ESG), mostrou-se como uma
sidade, que se encontram balizados pelas prerrogativas eficaz possibilidade de equacionar um problema social,
da Escola de Defesa Social, fundada por Fran von Liszt e por um lado demonstrando a seleção estratégica operada
Adolph Prins, dirigentes do grupo tedesco-belga no Con- pelo Estado para o problema social em si e, por outro,
gresso de 1910, realizado em Bruxelas pela União de Di- apontando como esta escolha vinha se ajustar aos meca-
reito Penal. nismos de controle acionados pelo próprio Estado, cor-
O Código de Menores de 1927 sedimenta em termos respondendo a um determinado perfil de organização
legais a idéia de correção a que deveriam ser submetidos política. O Código de Menores de 1979, coadunado com
crianças e adolescentes, entendidos legalmente como a política social da ditadura militar e sob a rubrica de si-
menores e qualificados como abandonados e delinqüen- tuação irregular, fundamenta-se nos mesmos preceitos que
tes, respondendo, assim, a objetivos bastante específicos, nomeiam a figura do delinqüente, o indivíduo perigoso,
o que implicava a participação multidisciplinar de sabe- a associação pobreza-marginalidade e a idéia de defesa
res. Cabia ao higienista os cuidados com saúde, nutrição social, retraduzindo, sob a forma de segurança nacional,
e higiene; ao educador, a disciplina e instrução; e ao ju- o subversivo por delinqüente, uma suposta minoria por
rista, conseguir que a lei garantisse essa proteção e assis- outra suposta maioria.
tência. Mesmo antes da Revolução de 30 e do Estado O ano de 1979 foi declarado, conforme decisão da
Novo, a formalização jurídica da questão do “menor” já Assembléia das Nações Unidas, Ano Internacional da
ultrapassava o campo policial para ser equacionada como Criança. Marcou, historicamente, o momento em que a
política social. pesquisa sobre a criança no Brasil floresceu de maneira
A idéia de correção já aparece acompanhada do cará- sistematizada, levando à articulação de diversos grupos
ter assistencial que acompanha a prática do recolhimento voltados para a defesa dos direitos de crianças e adoles-
dos “menores”, justificando a incrementação das institui- centes, que, desde esse momento, já direcionavam suas
ções a que estes eram destinados. A criação do Serviço críticas ao Código de Menores promulgado no mesmo ano.
de Assistência a Menores (SAM), em 1941, representou Tais críticas questionavam a chamada “situação irregu-

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lar” ali preconizada, na medida em que esta reiterava um ção à opinião pública, ajustando-se, confortavelmente,
padrão de normalidade e legitimava o recolhimento de com o cunho autoritário da gestão da vida.
todos aqueles que fugissem do padrão de comportamento Se o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda apre-
esperado. Práticas como estas, no interior de cada grupo senta lacunas em várias passagens e mantém resquícios
de defesa de direitos e suas respectivas articulações, fo- do ranço assistencialista, preconizado pelas políticas so-
ram fundamentais para fomentar, durante uma década, o ciais, seu advento, porém, inaugura, em termos jurídicos,
perfil social que deveria pautar uma nova legislação re- uma posição nunca antes tomada em relação a crianças e
ferente a crianças e adolescentes, consolidada com a pro- adolescentes no Brasil – dentre os avanços do Estatuto
mulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deve ser ressaltado o direito à ampla defesa, instaurando
em 13 de julho de 1990. a figura do advogado da criança –, concebendo-os como
O ECA veio redimensionar a possibilidade de diferen- sujeitos de direitos no presente e priorizando a formação
ciação do atendimento destinado a crianças e adolescen- destes futuros cidadãos, fundamentada em uma mentali-
tes, priorizando seu desenvolvimento no interior do con- dade pedagógica e respaldada na opção preferencial pela
vívio familiar, ressaltando um caráter educativo que deve liberdade.
ser privilegiado a partir da família, de forma diversa ao Acreditou-se, por motivos óbvios, que o Código de
Código de Menores de 1979, que propugnava a positi- Menores de 1979 estava de uma vez por todas sepultado
vidade da instituição ressocializadora, supostamente ca- e definitivamente já não era o referencial legislativo que
paz de suprir as falhas na sociabilidade primária, ocasio- orientaria o Estado, a Justiça e a sociedade no atendimento
nadas pela convivência com a chamada família deses- a ser dado a crianças e adolescentes. Contudo, a Justiça
truturada. vem insistindo em ler o ECA sob a lente encarceradora
Outra descontinuidade do ECA em relação ao Código do Código de Menores, que, no cotidiano da prática judi-
de Menores de 1979 é a de dirimir a suspeita sobre os ciária, sobreviveu como um cadáver insepulto. Onde o
empobrecidos, ao não partir do pressuposto econômico ECA prevê a excepcionalidade, promotores e juízes, pela
para entender a situação particular vivida por crianças e ação, advogados pela omissão e técnicos pela reconstru-
adolescentes, mas priorizar o empobrecimento como causa ção científica da figura do delinqüente apreendem a re-
geral e o atendimento como particular, investindo em um gra, transformando a internação em regularidade.
tipo de sociabilidade cuja definição não seja mais calca- Da disciplinarização à multidisciplinaridade, o objeto
da em reducionismos econômicos, ainda que imprima de repressão, com maior ou menor dor, da mesma manei-
certo vínculo direto entre pobreza estrutural e medidas ra que o objeto de consentimento, é pensado como certe-
estatais assistencialistas. za centralizadora que em nome de todos beneficia o par-
O Código Penal, em vigor até hoje, foi promulgado em ticular e exige cada vez mais a omissão: a individualidade
1940, sob a égide de um governo ditatorial, o Estado Novo, perdida como meta de controle.
e é este código que rege a aplicação que a prática judiciá-
ria atual faz do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao O TRIBUNAL
correlacionar ato infracional a crime e medida socio-
educativa a pena, balizando-se por uma ótica penalizadora, A defesa dos direitos de crianças e adolescentes calca-
em detrimento do perfil pedagógico que pode ser desco- da na aplicação regular que a Justiça faz do ECA reserva
berto no Estatuto. aos adolescentes, chamados infratores, a parcela de socia-
No entanto, o que se constata na histórica política do bilidade que lhes cabe, sob a forma de restauração da
Brasil República é que tanto em períodos ditatoriais como personalidade “quase perdida”, baseada no saber cientí-
em períodos de distensão democrática, a intervenção em fico acoplado à sentença jurídica, aquela que diz ser capaz
nome do bem-estar acompanhou o ideal de desenvolvi- de instruir para suprir as deficiências na sociabilidade.
mento, intimamente ligado à idéia de segurança. A con- Quando o adolescente, considerado infrator, adentra
duta intervencionista do Estado brasileiro consiste, des- no espaço do tribunal, a vestimenta austera é um dos ele-
de o princípio, em privilegiar o desenvolvimento de mentos de visibilidade que demarca algumas extensões
programas e políticas sociais que, em nome da defesa do dessa instituição com a qual ele se depara como território
bem-estar dos infratores, encontrou uma maneira eficaz da autoridade por excelência. A disposição espacial dos
de justificar o aumento da burocracia e dar uma satisfa- objetos e das pessoas transcreve a racionalização utilitá-

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ria do minúsculo ao operacionalizar taticamente o “cál- sentido técnico, mas contemplando diversas comunica-
culo da anatomia política do detalhe” (Foucault, 1987) ções de saber e poder que constroem e edificam discur-
do direito penal moderno. sos regulares, articulados a uma arquitetura espacial e
Este cálculo baliza a penalização para além do ato co- temporal que se mostra e se esconde nas falas dos pro-
metido. Na verdade, estes adolescentes não são punidos cessos. Os espaços discursivos formalizados se inter-
pelo que fizeram, mas pelo que podem vir a fazer. A cambiam durante o desenvolvimento do processo jurídi-
inquisição a que são submetidos não percorre apenas atos, co (sindicância) referente à apuração de ato infracional
pessoas e objetos, mas vasculha almas, tratadas pela men- atribuído a adolescentes.
talidade punitiva como formas desabitadas que devem O não dito e o não lugar deste discurso transitam no
estar a serviço do procedimento legal. espaço da palavra proferida e ao se referirem à coisa que
Estes adolescentes experimentaram situações que os nomeia, estabelece e organiza silêncios constitutivos da
colocaram diante de circunstâncias de convívio auto- própria escuta técnico-jurídica sobre seu objeto de saber.
ritário e, por conseguinte, foram também se socia- Este silêncio não se refere apenas à composição de cada
bilizando autoritariamente, submetidos a uma educa- processo em particular, nos quais de alguma forma se
ção na qual preponderou o “sim” ou o “não”, e que se reconta a história de cada um a partir de um episódio vi-
mostrou para eles, na maioria das vezes, como única vido, mas denota também a utilidade do silêncio na his-
possibilidade de lidar com o outro, seja no âmbito pú- tória no que tange à infância e adolescência no Brasil.
blico ou privado. Diante de uma justiça penalizadora, A eficácia do procedimento legal a serviço da menta-
seus atos não deixarão de ser compreendidos como prá- lidade punitiva explicita-se quando se percebe que exis-
ticas criminosas. tem padrões de justificativa para a internação dos adoles-
Não se trata mais da pessoa do infrator ou da noção da centes considerados infratores, independentemente do tipo
infração, como prevê o ECA, mas do investimento de um de infração atribuída. O primeiro padrão se refere à justi-
saber técnico-científico sobre a edificação da personali- ficativa regular para a internação provisória, que se as-
dade delinqüencial desses adolescentes, que se caracteri- senta na tríade ordem pública, personalidade violenta e
za como pressuposto para sua própria existência. O saber integridade pessoal. O segundo padrão é constituído de
do exame (Foucault, 1973), incorporado pelo direito pe- forma contínua ao primeiro, já que se refere à internação
nal moderno, não opera, tal qual o modelo do saber do propriamente dita, acrescido de um novo elemento: a dis-
inquérito, sobre a pesquisa da verdade, mas trabalha todo solução da autoridade paterna. Trata-se não mais de uma
o tempo na construção de uma verdade acerca desse su- tríade, mas de um quarteto: ordem pública, personalida-
jeito transgressor caracterizado pela figura do delinqüen- de violenta, integridade pessoal e dissolução da autorida-
te ou criminoso. de paterna.
O tribunal, tomado como foco de discussão do siste- É possível perceber uma diferença óbvia em termos
ma penalizador, estabelece um deslocamento na discus- da duração temporal máxima prevista pelo ECA em rela-
são acerca do encarceramento de crianças e adolescen- ção à internação provisória (45 dias) e à internação máxi-
tes. A reflexão não se centra mais no cárcere em si, mas ma (três anos). Uma outra diferença é demarcada espa-
privilegia o “campo” anterior deste mesmo sistema, ao cialmente pela circunstância de que o adolescente, mesmo
explorar o espaço do tribunal no seu sentido restrito (o tendo sido internado provisoriamente e permanecendo
entre paredes) e como um dos elementos da tecnologia internado por 45 dias, ainda tem chance de ser absolvido
carcerária. Sua eficácia reside na capacidade de estabele- ou receber, no final do procedimento de apuração do ato
cimento de um “território” mais amplo.2 infracional a ele atribuído, outra medida que não a inter-
O tempo de julgamento é incorporado como campo nação.
contínuo ao do cárcere, na medida em que o processo Entretanto, ao se conjugar a circunstância temporal com
penal, lançando mão de mecanismos de mortificação, ou, a espacial, percebe-se que no interior da diferença apare-
mais especificamente, de normalização do indivíduo, não ce a continuidade entre internação provisória e interna-
apenas antecede, como antecipa o tempo do encarcera- ção, como medida final do procedimento em que uma e
mento. outra se equivalem. A equivalência, porém, não repousa
A forma que circunda o tempo e o espaço do julga- em torno da discussão do tempo mínimo de uma e do tem-
mento faz emergir sua arquitetura discursiva, não em seu po máximo da outra.

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Ela é percebida quando se interroga qual o significado tenha proporcionado uma mudança de paradigma na ra-
desta interceptação do indivíduo para ele próprio e para a cionalidade jurídica, na medida em que a mesma racio-
sociedade, sinalizando a maneira como no interior da prá- nalidade que privilegia a intervenção perpetua a transgres-
tica judiciária penalizadora se formaliza uma forma de são de direitos individuais e coletivos.
gestão de vida cujo cálculo de tempo que deve ser ex- O padrão das falas do promotor reproduz a rotina da
traído da vida dos indivíduos deve estar coadunado com internação balizada pelo princípio de negativização do
espaços de eficácia adequados, onde o tempo de confina- indivíduo. Em nenhum momento se busca algo de positi-
mento representa não uma garantia de integridade pes- vo nesses adolescentes. Jacques Donzelot (1986) salienta
soal – para quem está fora ou dentro do cárcere –, mas que a reconstrução do indivíduo a ser encarcerado e sua
responde de maneira estratégica a uma prática política de vida na prisão estão fundamentadas na classificação de
controle. Por meio de um discurso de verdade, instaura atributos negativos, e a perpetuação desta negatividade é
na vida da sociedade a parcela de cada indivíduo que deve que dá sentido à continuidade destas instituições.
ser confinada, confinando também, assim, uma parte de Caso elas fossem capazes de descobrir, pedagogica-
cada um de nós. mente, novos sentidos latentes nos prisioneiros, corre-
O promotor corporifica a fala da sociedade instituída riam o risco de autodestruição. A fala do promotor sub-
que imprime à comunidade voz comum, interpelando o mete-se às demais quando lhe convém e referenda a dos
espaço circunstancial privado em nome da mensagem técnicos quando a legitima, fazendo aparecer uma regu-
padronizada do público. Configura-se em agente da fala laridade fundada na fala técnica dando-lhe respaldo “tes-
coletiva, transformando o enunciado que preserva em temunhal” para justificar o pedido de internação ao juiz.
palavra de exclusão. O promotor (Ministério Público) sim- O padrão do testemunho preferencial é explicitado não
boliza a figura do vigilante na medida em que personifi- só como base de instrumentalização dos argumentos da
ca o guardião do Bem-Comum. Contudo, o dito bem-co- promotoria, como sua incorporação é ressaltada sob a
mum passa a ser um conceito questionável, já que a forma de elogio ao laudo técnico, quando este recomen-
maioria das infrações registradas é contra o patrimônio. da a internação. Todas as vezes que convém ao promo-
Sua figura do guardião do Bem-Comum associa-se à tor, a fala externa não é incorporada, o fato de os adoles-
integridade física e moral do indivíduo, sendo este últi- centes negarem o ato infracional é desconsiderado, ado-
mo a base para a materialização dos bens que ele mesmo tando-se como regra geral a desqualificação da fala do
possa usufruir, em nome da preservação do corpo do in- adolescente e sobrepondo à sua voz a justificativa padrão
divíduo em geral garantem-se os bens dos indivíduos par- legitimadora de sua internação.
ticulares. Desta forma, o bem-comum é uma abstração A aceitação da medida de internação pedida pelo pro-
necessária para a garantia dos bens em particular. O indi- motor e a negação das alegações do advogado são uma
víduo passa a ser o particular e os bens o geral a ser asse- regularidade no procedimento do juiz, demonstrando como
gurado pela impessoalidade da lei através do procedimento se estabelece uma cumplicidade constante entre a atua-
sob o regime da soberania. ção do Ministério Público e a sentença do juiz, na qual
O promotor, portanto, aquém do guardião do Bem-Co- um e outro existem como seu próprio duplo.
mum, constitui-se no guardião de bens e, no limite, um O juiz aparece no espectro da defesa da ordem pública
dos interceptadores de indivíduos que ousam investir con- como a incorporação da lei ou, mais precisamente, como
tra a propriedade. símbolo da inscrição da lei. Contudo, esta lei não é ape-
O Direito contemporâneo, característico do Welfare nas uma via de mão única objetiva e positiva, como en-
State, propaga a afirmação de que a racionalidade jurídi- tende a leitura meramente técnico-jurídica, mas compre-
ca do direito está norteada por um novo paradigma pre- ende meandros mais sutis, proporcionados por sua própria
conizado pelo direito social, que não está mais subjuga- premissa que reside, prioritariamente, na interpretação.
do às noções universais e transcedentais da justiça, mas Uma vez que a lei seja compreendida enquanto represen-
balanceado por interesses sociais irredutíveis. tação e sua aplicação como uma conseqüente interpreta-
É necessário salientar que, por um lado, o conceito de ção de uma primeira representação, abre-se a possibili-
justiça social é uma falácia, pois ele não passa de um pre- dade de se ler o cotidiano da prática judiciária como um
texto a mais para legitimar a intervenção e, por outro, é campo de representações produtoras de realidade e práti-
oportuno interrogar a afirmação de que o direito social cas sociais.

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A fala do juiz, tida como a fala da imparcialidade, inscre- lidade passada, e é incorporada pelo saber do exame –
ve-se na figura do sujeito que, por si só, configura-se em sendo que o surgimento deste é acoplado a uma série de
representação enquanto personalização da fala da lei e agente saberes especializados, que fazem parte da gestão de con-
aplicador da “justiça”. Sua fala, de forma regular, revela-se trole da regularidade dos fluxos de “vida” e de “morte” –,
pela prática em transformar a prescrição legal que preserva deve-se ressaltar que, na modalidade do exame, o teste-
em palavra de inversão da realidade, valorizando o cárcere munho comum assume apenas uma faceta formal no pro-
em nome do bem-comum, optando, regularmente, pela in- cedimento jurídico para a apuração do ato infracional atri-
ternação, formalizando, assim, a via oposta do que propug- buído a adolescentes, pois o testemunho legitimador da
na o Estatuto da Criança e do Adolescente. sentença não é o do homem comum, mas do homem que
Uma primeira regularidade encontrada no padrão de detém o saber sobre os caminhos e descaminhos do ex-
internação mostra-se sob a forma de valorização do estu- cesso: o saber técnico-científico. O parecer técnico é o
do biopsicosocial, que constrói a figura do delinqüente, testemunho preferencial.
ratificando o desempenho deste como o testemunho pre- O padrão dos pareceres técnicos, por meio de estudo
ferencial balizador da sentença. Outra regularidade com- biopsicosocial, mostra-se, regularmente, favorável à res-
plementar valoriza o tratamento institucional, ressaltan- trição da liberdade. Portador de respaldo científico, trans-
do o fracasso contínuo do adolescente. Justifica a forma a “intenção que reintegra” em palavra que perso-
interceptação fundamentando-a moralmente pela influên- naliza o delinqüente, utilizando-se de argumentos fala-
cia de más companhias e pelo consumo de drogas como ciosos tais como “família desestruturada”, e fazendo a
elementos geradores do ato infracional. perigosa associação de marginalidade e pobreza, explici-
O padrão das falas do juiz ainda aglutina a associação ta o olhar e a palavra que incrimina.
do laudo técnico com o fracasso da família e a “afeição A desqualificação da família, nos pareceres técnicos,
do adolescente ao ilícito”, resultando na institucionaliza- quando não é obtida pelos elementos regularmente perse-
ção, na qual a solução, supostamente, repousa no Estado. guidos em seus membros – escola, trabalho, religião, ren-
A fala do advogado apresenta-se, regularmente, como da –, é buscado no próprio adolescente, qualificado como
fala da realidade dissociada; a expressão global do agen- em descompasso ao perfil familiar. Tal lógica opera pela opo-
te é substituída pelo indivíduo representado, portador da sição regular-irregular, desnudando uma mentalidade que
fala circunstancial que suprime a mensagem global do pauta as regras de convivência restrita à introjeção de um único
agente. Produz um enunciado formal, mesmo pleiteando padrão de valores, aquele que responde à conduta regular.
a absolvição do adolescente como padrão geral; baseia- O saber científico, subsidiando as vertentes crimino-
se de forma recorrente nos mesmos argumentos que ser- lógicas, vê nesses adolescentes “indivíduos marcados” e
vem como subsídios de legitimidade para a internação. os apresenta para a “sociedade fechada” que se acredita
Ao se respaldar em conceitos coadunados com o Código capaz de cumprir seu papel ressocializador. No entanto,
de Menores de 1979, desqualifica seu próprio discurso e os próprios técnicos admitem que a Febem não passa de
se apresenta descomprometida com seu papel de defesa, um depósito de expurgados, e mesmo assim recomendam
edificando uma fala de consentimento da sentença. a internação como saída cabível. Desse modo, desquali-
A figura do advogado apresenta-se sob a forma ausen- fica-se a liberdade enquanto tempo inoportuno e perpe-
te da palavra não proferida, inversamente do que se espe- tua-se o cárcere enquanto espaço adequado.
ra, que a ordem pública no estado de direito pressuponha Se o homem é e foi livre para criar tribunais sustenta-
a real defesa de qualquer cidadão, e que isto inclua tam- do por termos como culpa, inocência, perdão entre ou-
bém o transgressor. tros, de acordo com o exercício de jogos de palavras ca-
No entanto, se, por um lado, a prática penalizadora tra- racterísticos de cada sociedade, como afirmam os defen-
balha com o ato, como um instante suspenso no tempo, por sores da dissuasão penal, isto não implica que o tribunal
outro, resgata condutas anteriores e paralelas, inventariando seja tomado como produto de uma liberdade positiva, em
desvios e sobrepondo culpas em um somatório que acarreta que a liberdade do outro amplia a minha, mas cabe inter-
a construção da “personalidade criminosa” coadunada com rogar como acontecimentos de liberdade e coação ampli-
os parâmetros do saber do exame. ficaram mecanismos de mortificação da própria liberda-
Se a figura do testemunho surge na modalidade do in- de, quando se artificializa a convivência em nome da
quérito, sendo capaz de responder à reatualização da rea- retórica restauradora ou reformista.

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É provável que o limite democrático repouse em seu entre a penalização e a liberdade. São Paulo, PUC/SP, 1996, que diz respeito à
análise de 473 processos de adolescentes oriundos de comarcas do interior do
limiar com a mentalidade punitiva, quando defende o bem Estado de São Paulo, internados na Febem-SP, relativos aos anos de 1991 e 1992,
para todos, o bem comum para a maioria e a ordem públi- sendo que o total de processos considerados completos foi de 299.

ca como melhor tradução da benevolência para as mino- 1. Conforme definição do Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa (Rio
de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988), bem-estar corresponde a estado de per-
rias de toda sorte, diversificando cotas de bem-estar nos feita satisfação física ou moral; conforto. (Antônimo. mal-estar: indisposição ou
perturbação orgânica, doença de pouca gravidade; incômodo. Ansiedade mal defi-
estilhaços de diversidade que é capaz de suportar enquanto nida, inquietação. Situação incômoda, constrangimento, embaraço. (Antônimo: bem-
espelhos de si mesma. estar).
O bem como valor maior e absoluto não produz outra 2. Os termos campo e território são utilizados aqui a partir da analítica
foucaultiana, designando, respectivamente, noção econômico-jurídica e jurídi-
coisa senão prisões, sejam elas rudimentares ou assépticas, co-política.
disciplinares ou de controle, e, muito mais do que equi-
valer a uma pena racional econômica e politicamente
quantificável, representa a explicitação dos limites da REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
mentalidade punitiva, em qualquer tempo e lugar,
edificando, reformando e consolidando o cárcere do pen- DONZELOT, J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1986.

samento sobre o próprio pensamento. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1973.
__________ . Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987.
PASSETTI, E. Política nacional do menor. Dissertação de Mestrado. São Paulo,
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OLIVEIRA, S.M. de. Inventário de desvios: os direitos dos adolescentes entre
Este artigo é produto do desenvolvimento de algumas idéias presentes em minha a penalização e a liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Pontifícia
dissertação de Mestrado: Inventários de desvios: os direitos dos adolescentes Universidade Católica de São Paulo, 1996.

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