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ENCONTROS – ANO 12 – Número 22 – 1º semestre de 2014

POR QUE ENSINAR A DITADURA CIVIL-MILITAR?


A formação de um sujeito por meio da democracia.

Marcus Vinicius Monteiro Peres1

Resumo:
Esse artigo se propõe a reafirmar a importância do ensino da Ditadura
Civil-Militar no Brasil, como resposta a uma série de demandas do nosso
presente. Entendo esse objeto de estudo como um “tema sensível”
(ARAÚJO, 2013), e considero crucial a abordagem de suas permanências
e efeitos no presente como parte de um ensino de História voltado para a
construção de uma sociedade mais democrática. Eu vejo essa discussão
como parte do campo do currículo, e procuro me aproximar de uma
abordagem pós-fundacional para entender tais questões.
Palavras chave: Ensino de História; Ditadura Civil Militar; sociedade
democrática; currículo; abordagem pós fundacional;

Abstract
This article proposes to reaffirm the importance of teaching Civil-Military
Dictatorship in Brazil, in response to a series of demands of present. I
understand this subject as a "sensitive issue" (Araújo, 2013) as well as
considering the approach of its continuities and effects as a part of a
History teaching in order to building a democratic society. I see this
discussion as a part of the curriculum field, and I seek help from a post-
foundational approach to understand such matters.
Keywords: Teaching of History; Civil-Military Dictatorship; democratic
society; post-fundational approach.

1 Professor da Rede estadual do Rio de Janeiro. Mestrando do PPGE da UFRJ.


Especialista em Ensino de História pelo CESPEB-UFRJ. Especialista em Docência do
Ensino Básico na disciplina de História pelo Programa de Residência Docente do Colégio
Pedro II. Bacharel e licenciado pela UFRJ, Mestrando do PPGE/UFRJ.

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Nesse artigo, pretendo empreender uma reflexão sobre, e reafirmar,

a necessidade do ensino da Ditadura Civil-Militar na disciplina de

História. Nesse percurso, abordo algumas questões cruciais para esse

debate, como algumas continuidades (discursivas, práticas, culturais,

institucionais, etc.) do período autoritário até o nosso presente, e as

implicações para o Ensino da História. Porque ainda é importante ensinar

sobre o Estado autoritário militar? Há a possibilidade de construção de

uma escola e um método mais democrático no e através do ensino desse

tema?

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, abordo

algumas questões levantadas pelo aniversário do golpe que levou à

implantação do Estado autoritário em 1964. Na segunda seção, trago um

pequeno histórico referente às permanências da Ditadura Civil-Militar no

nosso presente, com uma reflexão sobre elas. Na terceira parte, reflito

sobre as especificidades e a importância desse tema para o Ensino de

História, além de problematizar algumas questões dentro da área da

Educação. Por fim, concluo com a reafirmação da importância do ensino

da Ditadura como aposta política, e faço alguns apontamentos para uma

possível satisfação desse objetivo.

I – A Ditadura no presente.

No dia 01 de abril de 2014, completamos cinquenta anos da

instalação do governo militar no Brasil. Essa data marca, também, a


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percepção de como o debate sobre esse regime, seus atos e

desdobramentos marca ainda o nosso presente.

Uma série de debates foi levantada por especialistas no assunto,

mas também pela sociedade civil, como forma de lembrar o regime

autoritário e suas características positivas e negativas. Na mídia e nas

redes sociais, pudemos observar desde reportagens dedicadas a mostrar

a História do Regime Militar (para citar apenas dois, O Globo e a Folha

de São Paulo, fizeram reportagens e sites especiais sobre os 50 anos do

golpe2), a um sem número de discussões e propostas de revisionismo

sobre o tema. Golpe ou revolução? Foi no dia 31 de março ou no dia 01

de abril? Houve censura no Brasil? A Ditadura Civil-Militar trouxe mais

benefícios ou malefícios à sociedade brasileira? Havia corrupção durante

o período?

Se não há consenso aparente sobre muitos desses temas, é porque

o regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 (até nas

datas temos debates. Começou em 64 ou 68? Terminou em 79, 83, 85 ou

88?) ainda tem muito a ser estudado e investigado. Seja pelas lacunas de

pesquisa em alguns assuntos, seja pela dificuldade (ou impossibilidade)

em consultar alguns documentos ou personagens do período,

especialmente os referentes às ações do Estado. Tais questões tendem

2Folha de São Paulo: 50 anos do golpe de 1964. Disponível em:


http://arte.folha.uol.com.br/treinamento/2014/01/05/50-anos-golpe-64. Acesso em
03/05/2014
O Globo: 50 anos do golpe. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/pais/50-anos-do-golpe. Acesso em 03/05/2014

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aparentemente a ser superadas, em especial a partir de duas medidas

tomadas pelo governo federal no ano de 2012: a criação da Comissão

Nacional da Verdade e a sanção da lei de Acesso à informação.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e

instituída em 16 de maio de 2012. Esse órgão ficou responsável pela

investigação de crimes contra os direitos humanos no Brasil entre 18 de

setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 (mas o foco acaba sendo o

período da Ditadura Civil-Militar). Deveria funcionar até o final de 2013,

concluindo sua atividade com um relatório contendo as atividades que

desempenhou, os fatos que investigou, e sugerindo medidas a serem

tomadas pelo Estado brasileiro. Em 24 de dezembro de 2013, por medida

provisória, teve o prazo para encerramento de seus trabalhos, e para

divulgação do relatório, prorrogado até 16 de dezembro de 20143.

A instalação da Comissão também não ficou livre de polêmicas.

Houve críticas quanto aos membros escolhidos, pois seis possuem

formação jurídica e uma atua na área da psicanálise, sujeitando

questionamentos sobre a ausência de um Historiador, por exemplo4. A

Comissão também suscitou a reação dos militares, expressa em notas

assinadas pelos presidentes do Clube Naval, Clube Militar e Clube da

Aeronáutica, cujo conteúdo exalta a participação dos militares no

período, enumerando o que consideram como pontos positivos e avanços

3 Informações disponíveis no site da Comissão Nacional da Verdade:


http://www.cnv.gov.br/ Acesso 05/04/2014.
4 Mais informações em http://oglobo.globo.com/infograficos/comissao-verdade/,
Acesso em 04/04/2015.

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do período, e questiona a investigação apenas de crimes cometidos pelos

agentes do Estado brasileiro5.

Junto com a Comissão da Verdade, entrou em vigência outra lei

relativa a temas ainda não investigados sobre a Ditadura Civil-Militar: a

Lei de Acesso à Informação (lei nº 12.527/2011). Essa lei regulamenta o

direito constitucional de acesso dos brasileiros às informações públicas

e é aplicável a todas as instâncias do poder público brasileiro. Segundo

site da Controladoria Geral da União, responsável pela aplicação e

fiscalização da lei, ela “institui como princípio fundamental que o acesso

à informação pública é a regra, e o sigilo somente a exceção”6.

A sanção dessa lei teve como objetivo dar mais um passo em busca

de transparência no regime democrático brasileiro (o principal exemplo

disso foi o surgimento de uma série de “portais da transparência” de

diversos órgãos do governo). Porém, acaba também respingando efeitos

sobre a possibilidade de acesso a arquivos militares ainda não permitidos

para estudiosos do tema.

A interpretação dos militares acerca dessas medidas é que elas

causariam uma perseguição aos militares agentes do governo daquele

período, em detrimento de uma ação investigativa mais justa, que levaria

em conta também os crimes cometidos pelos movimentos de resistência

ao regime militar (classificados desde “subversivos” a “terroristas”).

5 Documento disponível em: http://www.defesanet.com.br/dita/noticia/10237/31-de-


Marco----Nota-dos-Clubes-Militares Acesso em 04/04/2014.
6 Trecho e informações retirados de

http://www.acessoainformacao.gov.br/acessoainformacaogov/ Acesso em
30/04/2014.

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Esses fatos já nos mostram que a Ditadura Civil-Militar ainda é, no

Brasil, um tema polêmico e que suscita debates acalorados e

controversos. Acredito que tanta polêmica se deve à relevância das

questões sobre as a transição ao fim do regime autoritário e suas

permanências, e o debate sobre ele faz parte da construção da

democracia pós-85 no Brasil. E o principal, de qual democracia queremos

construir. E de qual cidadão democrático. Para avançar nessas

discussões, acredito que seja profícuo que reconheçamos as

permanências do regime autoritário em nosso presente, e que saibamos

desconstruí-lo e compreendê-lo antes de nos posicionarmos sobre ele.

II – A Ditadura presente.

O golpe que levou os militares ao poder não só instaurou um regime

autoritário, como interrompeu o processo de construção de um regime

realmente democrático do Brasil, iniciado então há menos de 20 anos.

Mesmo com algumas questões a serem pensadas (dois presidentes

militares, exclusão dos analfabetos do sistema eleitoral, etc.), o período

entre 1945 e 1964 representou um grande avanço frente à ditadura

varguista e ao período da Primeira República. Segundo Emir Sader:

O golpe militar rompeu com essa continuidade, impôs a mais


brutal ditadura que o País conheceu, destruindo ou
golpeando profundamente a tudo o que tivesse elementos de
democracia – Parlamento, Judiciário, partidos políticos,
sindicatos, imprensa, entidades sociais e culturais, assim
como as pessoas que ele arbitrariamente decidisse que
estivessem vinculadas a essas atividades consideradas
“subversivas” pelo regime militar. (SADER, 2014, p.36)

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Diversas instituições do Estado e da sociedade brasileira foram

atingidas pelo regime autoritário, em nome da “moralidade”, da “luta

contra o comunismo” ou do “desenvolvimento econômico”, dentre outras

bandeiras levantadas pela Ditadura e por seus apoiadores. O modelo

econômico adotado, baseado na entrada do capital estrangeiro e em um

suposto “milagre”, servia de pano de fundo para a camuflagem de uma

série de medidas que deterioraram a vida da população em geral: arrocho

salarial, jornadas de trabalho mais longas, controle do ambiente sindical.

Além disso, a repressão implementada contra a oposição ao regime se

desdobrou em um aparelhamento do Estado e em uma série de medidas

antidemocráticas, cujos efeitos até hoje ecoam: os Atos Institucionais,

censura, tortura, perseguição política, exílios, dentre outras medidas.

A escola pública brasileira também foi aparelhada (com a criação

das disciplinas de “Educação Moral e Cívica” e “Organização Social e

Política Brasileira”), e precarizada para favorecer o ensino privado. O

mesmo processo atingiu outros serviços públicos essenciais, como, por

exemplo, a saúde e o transporte público.

O Brasil viveu um período de lenta transição para o regime

democrático, na qual, ao que parece, a Ditadura ficou para trás. Mas

ficou mesmo? Considero que não, e que uma série de medidas tomadas

pelos governos militares ecoam ainda hoje na vida dos brasileiros. Basta

pensarmos tanto nas discussões trazidas na primeira sessão desse

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artigo, quanto nas permanências das medidas apontadas nessa segunda

seção.

Uma das grandes polêmicas gira em torno da Lei de Anistia,

aprovada em agosto de 1979, e uma das primeiras medidas tomadas pelo

governo militar no processo de abertura. Daniel Aarão Reis define a

aprovação dessa lei como um “pacto de sociedade” (REIS, 2010),

costurado naquele momento sobre “três silêncios”: o silêncio sobre a

tortura e os torturadores, o silêncio sobre o apoio da sociedade à

Ditadura, e o silêncio sobre os projetos revolucionários de esquerda. Para

ele, por mais que pareça definitivo, esse “pacto”:

não configura uma interdição a futuras revisões, nem pode


ser pensado como um tabu. Como uma Constituição, como
qualquer tratado, tais pactos duram enquanto durarem as
vontades e os interesses que lhe deram vida. Quando estes
se alteram, pode-se alterar-se o pacto que é sua resultante.
Ademais, como se sabe, a lei da Anistia não é uma virgem
há muito tempo. Foi revista e ampliada em 1985, 1988 e
2002 (REIS, 2010, p.176).

Acredito que o entendimento dos “três” silêncios e do pacto pela

Anistia e pela abertura política sejam necessários para compreender as

permanências da Ditadura e a sua influência na construção de uma

memória sobre esse período. Contribuições de Pierre Nora (1993) e

Jacques Le Goff (1996), dentre outros, sobre a memória e suas relações

com a História, levaram-nos a perceber que ela, assim como a ciência

histórica, não é neutra, e que o esquecimento é tão parte da memória

quanto a lembrança. Como diz Daniel Aarão, ela é “inexoravelmente

seletiva e tendencialmente unilateral” (REIS, 2010, p.171).

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Tais fatos levam a uma série de dificuldades em se discutir, de

maneira neutra, a história da Ditadura Civil-Militar. Muitos temas

considerados “passado” ressurgem, e marcam sua presença no presente.

Concordo, portanto, com Maria Paula do Nascimento Araújo (2013),

quando classifica o ensino desse regime autoritário nas escolas

brasileiras como um “tema sensível”. Para ela, os obstáculos em lidar e

pensar esses temas se dão:

não apenas porque é difícil falar sobre eles, mas,


principalmente, porque não há ainda, na maioria dos
casos, um consenso da sociedade sobre o que dizer e como
falar sobre esse passado. Em muitos casos, os processos
de memória, trauma e reparação ainda estão em curso e
diferentes versões ainda estão em disputa — tanto na
memória como na história (ARAÚJO, 2013, p.9).

A fala da historiadora mostra, mais uma vez, que muitas questões

relativas ao período do Estado autoritário ainda não foram superadas. O

recente assassinato do coronel reformado do exército Paulo Malhães,

pouco tempo após dar depoimento à Comissão da Verdade e a alguns

veículos de comunicação em massa7, serve como exemplo. Sua morte

causou comoção e levantou uma polêmica sobre uma possível ligação

entre o crime e suas revelações feitas em suas últimas entrevistas e

declarações.

Adiciono a essas considerações outra possibilidade: é difícil falar

em democracia no Brasil, pois sua construção ainda está em curso. Seja

no processo eleitoral (desde o voto em si até o financiamento das

7Para mais ver http://oglobo.globo.com/pais/coronel-paulo-malhaes-assassinado-na-


baixada-12296242, Acesso em 06/05/2014.

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campanhas, passando pela “Lei da Ficha Limpa”), seja na conquista de

direitos por diversos grupos ainda alijados da democracia, vivemos em

uma Democracia que é só um pouco mais “velha” que o regime ditatorial

que a antecedeu.

A situação é tal que, diante do atual quadro de demandas da

sociedade brasileira por igualdade e democracia, há aqueles que pensam

no retorno da Ditadura Civil-Militar como a solução para os problemas

do país, baseados em uma visão pouco aprofundada e tendenciosa de

que “na Ditadura era melhor” (ou, como já dito, em uma memória

seletiva). Tal pensamento se materializa em diversos momentos de

contradição nacional, seja quando nos deparamos com os índices de

corrupção dos nossos governos democráticos, seja quando analisamos os

números da violência urbana em nossas grandes cidades8.

Que exemplo maior senão a reedição da “Marcha da Família com

Deus 2014”? Baseados na classificação do governo petista como

comunista (mesmo com a evidente aliança entre esse e o grande capital),

na existência de uma “perseguição aos militares” (personificados na

figura do deputado federal Jair Bolsonaro), e na moralidade incontestável

dos “cidadãos de bem”, tais indivíduos defendem o retorno de um governo

militar como forma de solução dos problemas brasileiros.

Também se proliferam discursos, e, infelizmente, práticas, que

coadunam com a postura do regime militar de julgar e executar seus

8https://www.facebook.com/pages/Marcha-da-Fam%C3%ADlia-com-Deus

2014/246183012217531? fref=ts Acesso em 03/05/2014

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“outros” de maneira antidemocrática e injusta. O que dizer dos

assassinatos de Amarildo9, Cláudia10 e DG11, e do linchamento seguido

de morte da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, que agitaram os

noticiários no último ano? O que pensar sobre a real implantação de uma

democracia e dos direitos humanos no Brasil? O que dizer sobre a

inclusão das minorias?

Portanto, afirmo ser imprescindível o ensino da Ditadura Civil-

Militar como forma de pensar a construção real da democracia no Brasil.

Refletir sobre o contexto de sua implantação, suas ações, as diversas

esferas da vida política, econômica, social e pública do brasileiro, é

fundamental para que nossa atual geração de jovens estudantes, que não

viveram aquela época, não repita alguns erros praticados por aquele

regime.

III – A Ditadura para o presente.

Considero, também, que, para o ensino de História, tais debates se

inserem no campo do currículo. É necessário, a princípio, apresentar que

definição desse conceito utilizo. Entendo que o currículo é um espaço-

tempo híbrido de fronteira cultural (MACEDO, 2006, GABRIEL, 2008),

9 No dia 14 de julho de 2013, o assistente de pedreiro Amarildo de Souza foi torturado


até a morte por policiais da UPP da Rocinha.
10 Claudia Silva Ferreira foi baleada no dia 16/03/2014, em uma operação da Polícia

Militar no Morro da Congonha, em Madureira, subúrbio do Rio, e veio a óbito após ser
transportada para o hospital no porta-malas de um camburão, e ser arrastada por mais
de 300 metros pelo asfalto.
11 O corpo de Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, de 26 anos, foi achado em uma

creche na comunidade Pavão-Pavãozinho, após confronto entre policiais e bandidos da


comunidade. A principal suspeita é que tenha sido torturado e assassinado por policiais.

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em que diferentes saberes constantemente negociam entre si, para

legitimarem socialmente seus códigos de significados. Nessa perspectiva,

o currículo é enxergado como uma arena cultural12 onde alunos, famílias,

instituições - públicas e particulares -, professores, gestores, disputam

discursivamente.

Também penso ser pertinente uma breve reflexão sobre a validade

do ensino da Ditadura Civil-Militar dentro dos debates sobre

“conhecimento” dentro do campo curricular. Atualmente, há um grande

debate sobre o que é o “conhecimento, e, mais ainda, sobre que

“conhecimento” é esse que se deve ensinar na escola. Diversos autores

(GABRIEL e FERREIRA, 2012; GABRIEL E CASTRO, 2013; MACEDO,

2012; MONTEIRO, 2013) se puseram a pensar quais as especificidades

desse conceito, e qual o desdobramento de determinadas visões e

posicionamentos sobre ele para o campo do currículo, além de para a

escola e o ensino, considerados dentro de um quadro de “crise” e “sob

suspeita” (GABRIEL, 2008; MACEDO, 2012).

Considero, aqui, seguindo os preceitos teóricos de tais autoras,

baseados em uma perspectiva pós-fundacional13, que os sentidos de

12 Entendo a cultura como uma “rede de significados”, um “conjunto de sistemas de


significação” que, para Stuart Hall (1997), tem papel constitutivo em todos os aspectos
da vida social e é central nas questões sobre conhecimento e conceptualização.
(GABRIEL, 2008).
13 Essa perspectiva teórica busca repensar as formas de leitura essencializadas do

mundo, desconstruindo a ideia de fundamento, e adota uma postura política e


epistemológica de investigação na linguagem e pela linguagem. Dessa maneira, o
conceito de “discurso” toma centralidade no debate sobre a produção de sentidos,
entendidos como parte de um jogo de poder e hegemonia. Embora os debates desse
quadro teórico e os desdobramentos de sua postura para a pesquisa sejam bem mais
complexos que essa rápida definição, não é nosso foco abordá-los aqui.

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“conhecimento” são disputados em um jogo discursivo, no qual diferentes

grupos tentam significar seus diferentes sentidos em busca de

hegemonização. Segundo Ana Maria Monteiro, “conhecimento é produção

cultural disputada na fixação de sentidos do mundo, afirmando

hegemonias, questão política, questão de poder” (MONTEIRO, 2013,

p.13). Portanto, tais embates se dão mediante disputas e projetos

políticos, e são historicamente construídas e contingenciais, dentro das

relações de poder.

Dessa maneira, entendo que, para além de tudo o que já foi dito,

ensinar sobre a Ditadura Civil-Militar também é uma postura política,

pois defendo que, através do ensino e da reflexão sobre esse tema, nossos

alunos possam raciocinar sobre o período do Estado autoritário e se

posicionar a respeito de suas práticas.

Entendo, também, que o Ensino de História deve ser objetivo,

trazendo os debates teóricos para o campo prático, e levando tais

discussões para a sala de aula. Como nos diz Durval Muniz de

Albuquerque Júnior:

A História tem a importante função de desnaturalizar o


tempo presente, de fazê-lo diferir em relação ao passado e
ao futuro, no mesmo momento em que torna perceptível
como essas temporalidades se encontram, como elas só
existem emaranhadas, articuladas em cada instante que
passa, em cada evento que ocorre. A história serve para
que se perceba o ser do presente, como devir, como parte
de um processo marcado por rupturas e descontinuidades,
mas também por continuidades e permanências
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, pp. 30-31).

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Portanto, penso que, após os fatos, considerações e teorias levados

em conta nesse artigo, o ensino de Ditadura Civil-Militar seria também

uma resposta a uma série de demandas do nosso presente. Demandas

por igualdade, respeito aos direitos humanos e democracia.

No que diz respeito à incorporação no currículo de História dessas

demandas, por exemplo, podemos perceber que houve avanços,

principalmente através da luta dos movimentos sociais. Temas relativos

a grupos ainda subalternizados da sociedade brasileira, notadamente a

História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, foram tornados de estudo

obrigatório nas nossas escolas (leis 10.639/03 e 11.645/08). Casos como

esses mostram como as demandas podem interferir na construção do

currículo, e modificar posições e significações nos embates sobre o que

deve ser ensinado, e de que maneira.

O período da Ditadura Civil-Militar já é contemplado no currículo

dos ensinos fundamental e médio por todo Brasil, e sua abordagem faz

eco a essas disputas. Ao olhar o Currículo Mínimo, documento curricular

oficial do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, percebemos que há um

grande hiato sobre tais discussões, à medida que tal objeto de estudo

aparece desfigurado, inserido sob o tema “A bipolarização do mundo;

Brasil no contexto da Guerra Fria”, e vinculado a apenas duas

habilidades e competências, a saber: “- Compreender a formação de

alianças e conflitos no contexto de disputa por hegemonia” e “Analisar o

cenário político e socioeconômico brasileiro no contexto da Guerra Fria”

(RIO DE JANEIRO, 2012).

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Vemos, portanto, que as questões levantadas nesse trabalho são

deixadas de lado, e diluídas no eixo “Brasil no contexto da Guerra Fria”.

Isso pode levar, por exemplo, a uma abordagem da Ditadura Civil-Militar

em sala de aula voltada majoritariamente para sua compreensão dentro

do quadro político e ideológico mundial à época, localizando o estudo do

regime autoritário ainda no passado e desconectado das atuais

demandas do nosso presente.

IV – O Ensino da Ditadura para o futuro.

Inicio essa sessão final retomando Albuquerque Júnior: “A

História, quando se torna matéria escolar, explicita esse papel de

formadora de sujeitos, de construtora de formas de ver, sentir, de pensar,

de valorar, de se posicionar no mundo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012,

p.31). Dessa maneira, e por tudo que já foi exposto nessa breve reflexão

e contribuição para o tema, pretendo reafirmar a necessidade de ensino

da Ditadura Civil-Militar nas escolas brasileiras.

Segundo Reinhart Koselleck, o tempo histórico é fluido, constituído

pelo passado, mas também pelo presente e pelo futuro (KOSELLECK,

2006). Todo o ensino da História se faz nesses três tempos, pois a própria

disciplina os associa continuamente. O autor articula as categorias

“espaço de experiência” e “horizonte de expectativas”, argumentando que

o tempo histórico não pode ser visto como único e abstrato. Ele estaria

ligado às ações dos sujeitos de cada período, sejam essas políticas,

sociais, etc., e que compreender a conjuntura temporal da vida humana

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é de suma importância para o entendimento da História. É necessário

convidar nossos alunos a entrar nesses três tempos, e compreender sua

participação como agente da História, ou seja, articular passado e

presente, em vista de um futuro diferente.

O ensino da Ditadura Civil-Militar é de suma importância por

representar muito mais do que um tema escolar, mas por ser essencial

para uma educação voltada para o respeito aos direitos humanos, à

diferença e à construção da democracia. É necessária por nos possibilitar

refletir e dar respostas, ainda que parciais, a uma série de demandas do

nosso presente. Demandas essas que são a razão e o sentido do próprio

ensino da História.

Acredito, portanto, que a reflexão e o debate nas escolas sobre

Estado autoritário militar são fundamentais para o ensino e para a

formação de um cidadão para a democracia. E, além disso, como nos diz

Gert Biesta, se quisermos construir uma sociedade realmente

democrática, não devemos ensinar para a democracia, mas ensinar por

meio da democracia (BIESTA, 2013).

Para esse autor, “a melhor maneira de preparar para a democracia

é por meio da participação na própria vida democrática”. Defendo,

portanto, que o desenvolvimento de atividades nas quais o aluno tenha

participação na escolha do tema, na metodologia desenvolvida, e possa

produzir conhecimento a partir de seus referenciais e estudo é crucial

para um ensino satisfatório da Ditadura Civil-Militar pela democracia. Já

temos algumas iniciativas sendo desenvolvidas com esse intuito, por

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exemplo, no âmbito do Programa de Residência Docente, do Colégio Pedro

II14 e do Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e Espaço, da UFRJ,

por meio de financiamento do Observatório da Educação (OBEDUC), da

Capes15.

Esses são temas complexos, e não é objetivo desse artigo se

aprofundar se é possível ou não efetivamente educar por meio da

democracia nas escolas como atualmente se organizam (discussão

também trazida pelo autor), especialmente no Brasil. Adoto essa

abordagem por considerar potente para um efetivo ensino da História, e

da Ditadura Civil-Militar, voltado para a construção consciente de uma

democracia mais justa e igualitária no nosso país. Também para apontar

para uma possibilidade de, além de ensinar, e aprender, que alunos e

professores vivam, de fato, a democracia dentro da escola.

Finalizo com a fala do presidente da Comissão de Anistia do

Ministério da Justiça, Paulo Abraão, com forma de reafirmar, mais uma

vez a importância, e o caráter político, do ensino da Ditadura Civil-Militar,

dentro da disciplina Histórica, nas escolas brasileiras:

Conhecer a verdade e ter acesso à história é, portanto, um


direito de todos. Mas ofertar especialmente aos jovens o
conhecimento histórico de acontecimentos que marcam
nosso passado repressivo (e que ainda condicionam nosso
presente) é certamente um ato político. Pois se trata de

14 Ver PERES, Marcus Vinicius Monteiro. “Prática docente, Pesquisa e Novas


Tecnologias da Informação e Comunicação: Implantação, consolidação e crise do Estado
autoritário (1964-1984/85)”. Produto Acadêmico Final apresentado ao Programa de
Residência Docente do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro, 2013.
15 A oficina “Cibermusealizando: trabalhando a ditadura civil-militar brasileira por meio

do Museu da Pessoa” foi desenvolvida em maio de 2014 pela pesquisadora Marcella


Albaine Farias da Costa, junto à equipe do Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e
Espaço, da UFRJ, por meio de financiamento do Observatório da Educação, da Capes,
com o objetivo de ser aplicada e utilizada em escolas da rede pública de ensino.

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lembrar não apenas para que haja justiça com as vítimas,


mas também para que toda a sociedade se envolva na
consolidação da nossa cultura democrática. Damos assim,
passos efetivos para fortalecer um modelo de sociedade cada
vez mais ativa e exigente com o respeito aos direitos
humanos. Para que não se esqueça. Para que nunca mais
aconteça. (ABRAÃO, 2013, p.7)

Referências

ABRÃO, PAULO. Educar para o futuro. In: ARAÚJO, Maria Paula


Nascimento, SILVA, Izabel Pimenta da, SANTOS, Desiree dos Reis (orgs.)
Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e
testemunho. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013, p. 7.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. O ensino da Ditadura Militar nas
escolas: Problemas e Propostas de Trabalho. In: ARAÚJO, Maria Paula
Nascimento, SILVA, Izabel Pimenta da, SANTOS, Desiree dos Reis (orgs.)
Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e
testemunho. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013, p. 9-10.
BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática
para o futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
GABRIEL, Carmem Teresa. Conhecimento Escolar, Cultura e Poder:
desafios para o campo do currículo em tempos pós. In: MOREIRA,
Antonio Flavio Barbosa; CANDAU, Vera Maria (Orgs.)
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GABRIEL, C. T.; CASTRO, M. C. Conhecimento escolar: objeto
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escolar: conceitos 'sob-rasura' no debate curricular contemporâneo. In:
LIBANEO, J. C.; ALVES, N. (orgs.) Temas de Pedagogia: diálogos entre
Didática e Currículo. São Paulo: Cortez, p. 227-241, 2012.
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sem Fronteiras, v. 6, n. 2, Jul/Dez 2006, p. 98-113.
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ENCONTROS – ANO 12 – Número 22 – 1º semestre de 2014

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.


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Em meio eletrônico:

REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Revista Estudos


Históricos. Brasil, 23, ago. 2010. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2914/18
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http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/curriculo_aberto.asp, acesso em
08/05/2014.
TOLEDO, Maria Aparecida Leopoldino Tursi. A história ensinada sob o
império da memória: questões de História da disciplina. História, Franca,
v.23, n.1-2, 2004. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
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Recebido em 10/05/2014
Aprovado em 10/06/2014

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