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#14 Revista de Cultura e Teoria Politica

As massas populares conquistarão


a verdadeira e definitiva
independência do Brasil

SOBRE A CAMPANHA BRASIL: PELA SEGUNDA E DEFINITIVA INDEPENDÊNCIA

O XX congresso do PCUS e a Bolívia: do Golpe


crise do Movimento Comunista às Eleições
02 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

SUMÁRIO

EDITORIAL
“Bolsonaro e o Imperialismo Ianque”
página 03

“As massas populares conquistarão a verdadeira


e definitiva independência do Brasil”
página 08

Sobre a campanha “Brasil pela Segunda e Definitiva Independência”


página 22

“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista”


página 32

“Bolívia: do Golpe às Eleições”


página 44

NOVA CULTURA Nº 14 - SETEMBRO/2021 Para entrar em contato conosco e ter


Revista teórica eletrônica, uma publicação da
União Reconstrução Comunista (URC). mais informações sobre a URC, sobre
nossas publicações e sobre nossas
Colaboradores: Gabriel Martinez, Cássio Lima, Luiz Henrique,
Lucas Medina, Pedro Fernandes, Rodrigo Ortega, Fúvia Fernan-
atividades, escreva para o email:
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EDITORIAL: “Bolsonaro e o Imperialismo ianque” URC 03

A R O E O
BOLSON MO IANQUE
P E R I A L I S
IM
04 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

No editorial da edição anterior da revista Nova Cultura, quando fizemos um balanço


do governo de Jair Bolsonaro até então, demonstramos que diversas das tendências apon-
tadas desde a sua eleição em 2018 se consolidaram: “aprofundamento do servilismo às
grandes potências, particularmente ao imperialismo ianque, não só economicamente, mas
também nas aventuras belicistas e manobras geopolíticas, resultando num maior empo-
brecimento do país e do povo; descrédito entre a maior parte das massas trabalhadoras da
nação, muito difundida no período eleitoral, segundo a qual Bolsonaro e sua trupe seriam
honestos ou mesmo ‘menos corruptos’ do que outros políticos, algo como uma rebeldia ‘an-
tissistema’ ou coisa parecida; manutenção das leis e medidas anti-povo e anti-operárias que
haviam se aprofundado durante o Governo Temer; avanço da tutela do militarismo fascista
sobre o Estado brasileiro; a fraqueza de Bolsonaro e seu governo levaria não ao fim da ‘divi-
são nacional’, mas ao aprofundamento das disputas entre os diversos setores da burguesia
burocrática (e das castas militares) pelos cargos chave do Estado reacionário brasileiro”.
O que vimos no decorrer do tempo foi a consolidação deste processo, em um cenário
potencializado pela crise econômica e política em meio a devastação causada pela pande-
mia do novo coronavírus no país. De todo modo, um ator dessa conjuntura, que nem sempre
fica tão claro para boa parte da esquerda brasileira, conhecida por abraçar as ilusões mais
pueris: o imperialismo norte-americano.
A vassalagem voluntária de Bolsonaro ao ex-presidente ianque Donald Trump, sua
tentativa de reproduzir de forma geral todo o modus operandi e as medidas entreguistas,
e mesmo a inabilidade política do mandatário brasileiro, fez com que os nossos ilustres
analistas políticos e dirigentes partidários visem na derrota eleitoral do velho magnata uma
notícia positiva, como se algo pudesse mudar no caráter do governo da principal potência
imperialista mundial e que isso seria útil ao “combate” a Bolsonaro.
De um lado, os reacionários brasileiros faziam coro na torcida pela reeleição de Do-
nald Trump, uma vez que o próprio presidente Jair Bolsonaro sempre se colocou como um
lambe botas dessa figura que governou os Estados Unidos, submetendo todo o governo a
serviço dos interesses do magnata ianque. Natural assim, que os apoiadores bolsonarista
se identifiquem com o trumpismo, até mesmo por usar dos mesmos métodos.
De outro, a dita “esquerda” brasileira, em sua grande maioria, até para fazer oposição
a Bolsonaro, se jogou em uma defesa apaixonada e totalmente sem critério ao candidato
Joe Biden. O democrata passou a ser exaltado como a grande alternativa para vencer o
“fascismo” de Trump, como a grande solução para os males do mundo. Evidentemente, isso
faz parte da visão estritamente eleitoreira dominante em nossas terras, que aponta o voto
como uma mágica que resolve todos os problemas, e que a vitória de Biden apontaria para
a mesma solução para o Brasil em 2022, com a derrota de Bolsonaro para qualquer nome
(de Lula a Moro) de uma possível “frente ampla”.
Contudo, quando da vitória de Joe Biden sobre Donald Trump, apesar dos sonhos de
civilidade da esquerda reformista de que algo podia mudar, a realidade logo demonstrou que
o caráter agressivo do imperialismo estadunidense independe da figura presidencial e que
avança ainda mais contra os povos em época de crise do capitalismo.

O cerco à Cuba
O recente exemplo de Cuba, com o aumento da pressão sobre o primeiro país socia-
lista da América Latina, as medidas cada vez mais criminosas para ampliar o bloqueio eco-
nômico e destruir seu povo, além da tentativa frustrada de iniciar uma “Revolução Colorida”
com protestos que foram logo suprimidos diante do apoio popular ao Partido Comunista, é
mais uma amostra da agressividade cada vez maior do imperialismo contra os povos latino-
-americanos.
No começo de julho eclodiram diversas manifestações coordenadas em diferentes
lugares de Cuba, ainda que “de alcance limitado, sem impacto político, sem capacidade
de desestabilização e sem enraizamento popular”, conforme foi explicado pelo Cônsul
Geral de Cuba em São Paulo, foi o suficiente para se criar um alvoroço em torno de tais
“protestos”. A notícia de tais manifestações logo se espalhou pelo mundo, não inocen-
EDITORIAL: “Bolsonaro e o Imperialismo ianque” URC 05

temente, e a grande mídia burguesa se apressou em divulgar alegremente que o povo


cubano se levantava contra o “governo autoritário”, quando não até mesmo celebrar o
que seria o fim do “regime castrista” na Ilha. A esperança era de que tais manifestações
cumprissem seu objetivo e causasse um caos no país e a perda de apoio do povo cubano
ao governo do Partido Comunista.
Mais essa tentativa de desestabilização vem em um cenário no qual Biden manteve
todas as medidas de Trump que recrudesceram o bloqueio econômico à Cuba a níveis inédi-
tos e graves, que buscam cortar por todos os meios possíveis a acesso de Cuba à importa-
ção de itens alimentícios e de combustíveis, justamente para rebaixar as condições básicas
de vida de todo um povo e gerar distúrbios sociais.
O caso da Venezuela não é diferente, e o país bolivariano segue como um alvo pre-
ferencial dos EUA. E tem no governo Bolsonaro e sua diplomacia aloprada um dos pontos
de apoio para tentar naturalizar os ataques diretos aos países latino-americanos que não se
alinham aos ditames do imperialismo estadunidense.

Muda-se o tutor, mantém-se a coleira


Em julho, William J. Burns, diretor da CIA, a agência de inteligência dos EUA, fez
uma visita não oficial ao governo, com encontros com o presidente Jair Bolsonaro, além dos
militares Luiz Eduardo Ramos (então ministro da Casa Civil) e Augusto Heleno (chefe da Se-
gurança Institucional). O próprio presidente acabou assumindo o conteúdo das conversas,
sobre o suposto do interesse do Brasil na situação da América Latina, não só de Venezuela
e Cuba, como a retórica bolsonarista já ladra, mas também sobre Argentina, Chile e Bolívia.
Como vemos, apesar da insistência de Bolsonaro em fazer uma apologia de Trump
nas eleições norte-americanas, até mesmo fazendo coro às supostas fraudes (tal qual o faz
aqui), ele está preparado para cumprir o papel de fantoche dos EUA, como lhe cabe, assim
como os generais o fazem há algumas décadas.
Além disso, os EUA têm a intenção de enfraquecer a influência da China em nosso
país e, em especial, vetar a participação da empresa Huawei, a principal do mundo neste
segmento, no mercado 5G no país.
E para tal, o imperialismo ianque mais uma vez acena com um osso aos cães: em
agosto, o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, ofereceu apoio para
que o Brasil se torne um sócio global da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte),
a aliança militar que faz o serviço sujo ao imperialismo nas agressões contra outros povos.
À exemplo do que foi feito com a Colômbia, país que se tornou a ponta de lança dos interes-
ses norte-americanos na América do Sul, que recebeu promessas como esta, e hoje vive em
uma situação de caos social, com inúmeros líderes sindicais e camponeses assassinados e
protestos em massa que já duram meses.
E não podemos deixar de citar todos as leis que estão sendo aprovadas a toque de
caixa no Congresso Nacional, que garantirão a privatização da Eletrobras, dos Correios e
outras estatais, que a exemplo da Petrobras, serão entregues a preço de banana para gru-
pos estrangeiros, que pagarão com recursos do dinheiro público brasileiro, via BNDES, em
um negócio extremamente lucrativo ao imperialismo. Além das reformas, como a trabalhista
e a administrativa, que aumentarão a falta de direitos e facilitarão ainda mais a obtenção
de superlucros das empresas estrangeiras com a exploração cada mais vez maior dos tra-
balhadores e trabalhadoras brasileiros. Some-se a isso ainda as diversas medidas contra
os povos indígenas e quilombolas, que visam entregar as suas terras à exploração das
riquezas minerais e outros recursos brasileiros, entregues de bandeja aos grandes grupos
monopolistas estrangeiros.
Por isso, neste cenário que apesar do problema da dominação imperialista no Brasil
nem sempre ser tão aparente no nosso cotidiano, é preciso que fiquemos atentos ao papel
que nosso país passou a cumprir na América Latina, de um fantoche dos EUA, enquanto
suas riquezas são roubadas e seu povo superexplorado. Não à toa, Bolsonaro, típico po-
lítico que lambe as botas do seu amo estrangeiro, chegou a bater continência à bandeira
estadunidense e mudar seu bordão para “Brasil e Estados Unidos acima de tudo”.
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6 anos do selo Edições Nova Cultura URC 07

Completamos mais um ano do trabalho iniciado pela União


Reconstrução Comunista com o objetivo declarado de
impulsionar a divulgação a teoria marxista-leninista e a história
revolucionária dos povos de todo o mundo.

O selo Edições Nova Cultura que foi iniciado com a tarefa da


publicação de obras de J.V. Stalin e sobre a Revolução Coreana
chega ao seu sexto ano com um catálogo que cumpre tais
tarefas iniciais e se amplia para uma gama de textos e obras
fundamentais para a formação dos comunistas em nosso país.

Fomos capazes nestes anos de publicar as obras fundamentais


dos grandes clássicos do marxismo-leninismo, organizamos
volumes sobre a história das revoluções na China, Cuba, Coreia e
Indochina, publicamos obras para o estudo da Economia Política
marxista, biografias dos grandes nomes do socialismo científico,
registros da luta do povo negro nos Estados Unidos, obras sobre
a luta revolucionária das mulheres, entre outros temas, que
devem ser estudados por todos que desejam contribuir com o
avanço da revolução brasileira.

Vimos nesses anos, felizmente, inclusive se ampliar iniciativas


de publicações e editoras independentes, em um momento
importante, no qual o governo pretende dificultar ainda mais
o acesso aos livros, já tão limitado entre nosso povo, além
de ameaçar a logística de entrega (somos orgulhosos de ter
enviados nossos livros para todos os cantos do país) com a
privatização dos Correios.

Conscientes da nossa tarefa, pretendemos fortalecer ainda


mais o selo Edições Nova Cultura no próximo período, não
somente editamos novas obras ainda inéditas no país, como
resgatar textos clássicos que há muito deixaram de circular no
movimento comunista brasileiro.

Também conseguimos consolidar definitivamente o Clube do


Livro “Por uma Nova Cultura”, iniciativa pensada para nosso
projeto de financiamento coletivo para ampliar o trabalho em
torno do NOVACULTURA.info, e que passaremos a oferecer
mais brindes e outros materiais aos camaradas que nos apoiam.
Assim como também desde o ano passado iniciamos o projeto de
grupos de estudos em torno dos livros publicados pelo selo, que
pretendemos que se espalhe para mais lugares e que contemos
com a iniciativa dos nossos leitores e leitoras.

Reafirmamos a necessidade da difusão da teoria revolucionária


entre o público brasileiro é uma das fundamentais tarefas que
se impõe em nossa conjuntura. E para isso, o selo Edições Nova
Cultura será nosso esforço para tal processo.
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As massas popular
verdadeira e definitiva i
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 09

res conquistarão a
independência do Brasil
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Há quase 50 anos, quando do marco do sesquicentenário da proclamação da inde-


pendência do Brasil, Pedro Pomar escreveu o documento “O povo conquistará a verdadei-
ra independência”. Distribuído como encarte do jornal “A Classe Operária”, órgão central
do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em setembro de 1972, o documento apresentava
a tarefa fundamental do nosso povo, em uma conjuntura onde “submetido a uma ditadura
militar fascista, o Brasil torna-se dia a dia mais dependente, vê seu futuro ameaçado pelo
imperialismo norte-americano e seus males sociais agravados pelo reacionarismo e a trai-
ção das classes dominantes”.
O grande mérito do documento é buscar levantar toda a tradição de luta do povo
brasileiro por sua independência, que apesar dos grandes esforços dos nossos compatrio-
tas, sempre viu o seu objetivo central se perder em meio a conciliações e acordos espúrios
em nossa história, em diversos momentos se mudou, para continuar como está. Por isso a
história demarca com fundamental importância a fundação do Partido Comunista no Brasil
em 1922, quando a classe operária passa a atuar de forma autônoma e pode garantir uma
nova perspectiva para a vitória da causa da independência com a bandeira da revolução
agrária e anti-imperialista.
E agora, nos aproximamos dos 200 anos da proclamação da independência, vive-
mos mais uma vez um quadro dramático, no qual os militares voltam a ter papel preponde-
rante na política nacional, aprofundando o entreguismo das riquezas naturais e jogando as
massas populares na miséria e no desemprego. E tudo isso sob a tutela do imperialismo
ianque, que estende suas garras contra a América Latina, buscando renovar a Doutrina
Monroe. Mais uma vez, diante de mais fracassos da “esquerda” liderada por oportunistas
e revisionistas, coloca-se diante de nós a realidade de que somente as massas populares
sob a direção do Partido da classe operária pode dar respostas concretas ao nosso país
em sua luta pela soberania e a verdadeira democracia.
E para tal tarefa é fundamental que aprofundemos nosso estudo sobre a dominação
estrangeira no Brasil, para que conheçamos como o inimigo imperialista age.

A divisão do mundo na época do imperialismo


Não podemos entender a teoria leninista do imperialismo sem entendermos que nes-
sa fase do desenvolvimento, o mundo inevitavelmente se divide entre um punhado de na-
ções opressoras e a grande maioria das nações permanece sob as rédeas da dependência
desses países imperialistas. Lenin afirmava que o imperialismo significava a superação,
pelo capital, dos marcos dos Estados nacionais, bem como uma ampliação e o agravamen-
to do jugo nacional em uma nova base histórica. É verdade que a Grande Revolução So-
cialista de Outubro impulsionou uma enorme onda de luta anticolonial. Sob influência das
ideias de Outubro milhões de homens e mulheres dos países dominados se levantaram
para derrubar a opressão imperialista. Essa sangrenta luta pela liberdade das massas po-
pulares culminou no surgimento de regimes democráticos populares no Leste Europeu e na
Ásia, que depois caminharam para o socialismo, sendo a Revolução Chinesa o caso mais
emblemático. Também ocorre a desintegração do sistema colonial e vários movimentos de
libertação nacional, em especial na África, possuíam uma orientação marxista-leninista.
Mesmo com o fim do sistema colonial e o avanço da luta anti-imperialista, em ne-
nhum momento os países capitalistas dominantes deixaram de arremeter contra os povos.
Utilizaram todos os meios possíveis, a fim de derrotar os países socialistas, promovendo a
contrarrevolução. Por fim, obtiveram uma enorme vitória com a dissolução da URSS e o de-
saparecimento dos regimes socialistas do Leste Europeu, que foram corroídos e destruídos
graças a atividade de sabotagem levada a cabo pelos revisionistas que dirigiam os partidos
comunistas de tais países. O mundo entraria num novo período de luta imperialista pela
partilha do mundo. Os países africanos que haviam conquistado a independência caíram
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 11

nas garras do neocolonialismo e o imperialismo também recrudesceu a sua ofensiva contra


a América Latina e até mesmo contra a Rússia após a dissolução da URSS.
É bom lembrarmos que os países da América Latina, com exceção honrosa de Cuba,
jamais obtiveram uma genuína independência nacional, ainda que já não fossem mais colô-
nias, como era o caso dos países africanos. Depois do surgimento do imperialismo, os países
latino-americanos foram submetidos ao domínio dos monopólios imperialistas e perderam
suas precárias independências nacionais. O domínio do imperialismo deformou o desenvolvi-
mento dos países dependentes, inviabilizando o surgimento de um “capitalismo autônomo”.
O imperialismo norte-americano, a partir de 1930, intensifica sua atuação no Brasil;
passou a controlar – e controla até hoje – vastos ramos da economia do país. Mesmo que
ainda existam alguns setores que estão livres do seu controle total, dado o caráter reacionário
e pró-imperialista do Estado e das classes dominantes, pouco a pouco serão definitivamente
controlados pelos monopólios imperialistas. Em termos gerais o Brasil segue sendo um país
dependente do imperialismo. A URC bate nessa tecla desde de que ela foi fundada, no ano
de 2013, em um momento em que a situação política e econômica no país criava em muitos
a situação de que o Brasil estava “avançando” ou “afirmando sua soberania”. Naquela época,
ainda que de um modo embrionário, já apontavamos para a tendência da intensificação do
caráter semicolonial do país, fato este que o passar dos anos vem confirmando.

Privatização, desestatização e desindustrialização no Brasil – três décadas de


um processo criminoso
Há 30 anos o Brasil vem sendo desmontado por um esquema antinacional, antipovo
e criminoso de privatização de nossos maiores bens. O imperialismo realiza a sua sede por
lucros e dominação comprando a preços irrisórios nossos bens naturais e nossa indústria,
fator que tem como consequência a precarização das relações e condições de trabalho
de nosso povo, a desindustrialização de nosso país e o desmonte de setores estratégicos
para o desenvolvimento de nossa nação. Tais consequências, tão caras aos trabalhadores
brasileiros, também nos colocam em uma condição de meros exportadores de matérias-
-primas, reforçando a ideia de que o Brasil é a grande fazenda do mundo (ou mais especifi-
camente, do imperialismo); condição que nos encontramos desde o período colonial e que
atualiza as precisas análises de Alberto Passos Guimarães, em seu livro Quatro Séculos
de Latifúndio, publicado em 1963.
Desde a fundação da URC, em 2013, denunciamos os ataques deflagrados pelo
imperialismo, tendo como atravessadores e realizadores internos a burguesia burocrático-
-compradora e os latifundiários, contra o nosso povo e a nossa soberania. Para além dos
saques e genocídios que nos acompanham desde os primeiros anos do processo de co-
lonização, vimos entrar em cena, sobretudo a partir da década de 1990, a privatização de
setores estratégicos de nossa economia, a exemplo do setor elétrico, de comunicações,
de siderurgia, de transportes, de mineração e de energia, alguns já em processo avançado
de desestatização. Sabemos que esse processo tem objetivos muito específicos, servindo
aos anseios de uma dúzia de super-ricos estrangeiros: alimentar os monopólios imperialis-
tas em sua demanda por matérias-primas e fontes de energia e lhes fornecer mão de obra
barata para ser superexplorada, garantindo-lhes mais e mais lucros.
O Brasil viu, na esteira da política e das reformas neoliberais, seu patrimônio público
ser transformado em privado, movendo-se de uma maneira insana, já que os governos Collor,
Itamar e FHC pagavam para vender nossas riquezas e nossa indústria. Apesar de parecer
um tanto controverso, foi esse o caráter do Programa Nacional de Desestatização (PND),
programa de privatização em larga escala empenhado em terras brasileiras. Os governos do
PT também deram continuidade a esse processo, a exemplo da privatização das rodovias
federais e dos aeroportos, e da lei que criou as Parcerias Público-Privadas, em 2004, garan-
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tindo financiamento público para serviços prestados pelo setor privado e a instituição de um
seguro para esses investimentos. A privatização dos setores de mineração e de energia são
expressões “canônicas” da marcha privatista em nosso país, podemos citar o caso da Vale
do Rio Doce (hoje Vale) – leiloada em 1997 e vendida por R$ 3,3 bilhões, “quando somente
as suas reservas minerais eram calculadas em mais de R$ 100 bilhões à época” –; o caso
da Petrobras, cada dia mais ameaçada pelos leilões insanos ao capital estrangeiro; além do
caso da privatização e desnacionalização da Embraer, iniciado no ano de 1994.
Na passagem dos anos 1980 para a década de 1990, vimos as novas estratégias
de acumulação das grandes empresas privadas para se apoderarem de empresas estatais
dos países semicoloniais e semifeudais ganharem forma. Além da compra de estatais de
setores-chave da economia a preços baixíssimos, no Brasil, a aquisição de títulos da dívida
pública também foi uma prática corrente da burguesia monopolista; prática impulsionada
pelas mudanças econômicas e de abertura aos capitais especulativos, caudilha do Con-
senso de Washington , espécime de manifesto neoliberal com um programa a ser aplicado
sobretudo na América Latina. O que está em jogo nesse processo são nossas riquezas
naturais, nossa soberania, setores estratégicos não-comercializáveis de nossa economia
(não é por acaso que os países imperialistas fazem questão de manter seus setores es-
tratégicos estatizados) e as condições de vida de nosso povo e de nossos irmãos latino-
-americanos, também assolados pela sede de lucros do imperialismo e pela liberalização
econômica. Elencaremos neste texto alguns dos casos de privatização mais escandalosos
da história de nosso país, sabendo que os que ficarão de fora não deixam de ter sua impor-
tância nesse complexo processo.
A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) inaugura o ciclo vicioso e criminoso das
privatizações em nosso país. A estatal foi “criada em 1941 por Getúlio Vargas como parte
do acordo com os Estados Unidos que levou o Brasil a entrar na Segunda Guerra Mundial
ao lado dos países aliados. A siderúrgica foi pedra fundamental no processo de indus-
trialização nacional” . No ano de 1992, no governo Collor, a estatal entrou no PND, “sua
desestatização era considerada estratégica para seu governo, por ser a maior indústria
siderúrgica da América Latina e por suas características de fortes movimentações sindicais
e sociais” . Foi privatizada no governo Itamar Franco, em 1993, em meio a protestos e re-
sistência de setores nacionalistas de nossa sociedade.
O caso da Telebras, fundada como monopólio telefônico estatal em 1972 – da fusão
de pelo menos 27 operadoras estaduais brasileiras – e leiloada em 1998 na Bolsa de Valo-
res do Rio de Janeiro, figura a privatização mais expressiva dentre as que já foram realiza-
das no Brasil, arrecadando R$ 22,058 bilhões pelos 20% das ações em poder do governo
na época. Desde 1991, sob a gestão de Fernando Collor (PRN), “o Banco Mundial pressio-
nava o governo brasileiro a assinar um acordo de privatização do sistema de telecomunica-
ções”, fato consumado sete anos mais tarde, no governo de seu xará, Fernando Henrique
Cardoso (PSDB). Mas a questão mais importante é que além de o sistema Telebras ter sido
altamente lucrativo, chegando, em 1998, a superar os lucros da Coca-Cola Internacional,
“o desenvolvimento tecnológico nacional para construção de fibra ótica, centrais telefônicas
digitais”, e todo um centro de pesquisa voltado às telecomunicações e à telemática foram
detonados a partir do início dos anos 90.
O setor elétrico também não passou ileso desse processo. Desde o governo FHC,
a Eletrobras, a maior empresa de energia da América Latina, vem sendo desmembrada e
sucateada em um movimento de subserviência ao imperialismo estadunidense, que, com
o intuito de garantir estrategicamente fontes de minerais e energia, visa também garantir
os maiores lucros do mercado para seus monopólios. A Eletrobras está na mira do ultra-
liberal Paulo Guedes desde que assumiu a cadeira de ministro da economia do governo
Jair Bolsonaro. “A privatização da área de energia começou nas empresas de distribuição,
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 13

a partir de 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso”, e apesar de, nesse mesmo
período, a privatização das usinas de geração ter encontrado forte resistência dos traba-
lhadores das empresas públicas, hoje, 60% da geração de energia instalada no Brasil,
“39% da transmissão (que interliga o sistema) e 71% da distribuição (que entrega a energia
ao consumidor final)” está nas mãos de empresas privadas . A Light, que era uma grande
companhia federal de distribuição de energia no Rio de Janeiro, foi leiloada e privatizada
em 1996, na onda do Programa Nacional de Desestatização. José Serra (PSDB), Ministro
do Planejamento do governo FHC até pouco antes de a privatização da empresa ser con-
solidada, tratou de acelerar o processo (prática corrente dos signatários do PND e segui-
dores do Consenso de Washington) e, ainda em 1995, “respondendo a crescente crítica da
imprensa sobre a lentidão do PND, prometeu publicamente que a Light seria privatizada na
primavera de 1996” .
A privatização de segmentos de infraestrutura de transportes em nosso país data da
segunda metade dos anos 1990. Nesse caso específico, “os processos têm sido conduzi-
dos com arrendamento dos ativos e concessão da prestação do serviço por determinado
período de anos” , prática comum nas parcerias público-privadas, onde empresas privadas
competem por uma licitação pública que concede a empresa “ganhadora” o direito de ex-
ploração de determinado serviço. Em 1993, “cerca de 855 km da extensão da malha rodo-
viária que havia sido ‘pedagiada’ diretamente pelo Departamento Nacional de Estradas de
Rodagem (DNER) [extinto em 2001] foi concedida à iniciativa privada, por meio da licitação
de cinco trechos que deram início ao programa de concessão das rodovias no país” . No
setor ferroviário, a privatização também foi a opção do governo federal. Desde 1984 já
havia a separação institucional entre transporte de cargas e de passageiros, bem como
um conjunto de planos de demissão incentivada de trabalhadores (prática utilizada para
preparar o terreno para a privatização). Segundo dados do BNDES, “em 1997 terminou a
desestatização dos seis trechos da Rede Ferroviária Federal e, em 1998, com a venda da
Malha Paulista, encerrou-se uma fase importante da transferência de serviços públicos à
iniciativa privada. Foram arrecadados U$ 205,73 milhões com a venda desta última ferrovia
transitoriamente federalizada” .
A Embraer criada durante a Ditadura Militar em nome do “desenvolvimento da in-
dústria aeronáutica brasileira” conseguiu ter resultados positivos ao longo das décadas
de 70 e 80 e passou a se tornar competitiva no mercado internacional. Contudo, com o
desastre econômico gerado pelos governos militares, a empresa foi sucateada e já em
1994 foi privatizada em uma operação de meros 57 minutos na Bolsa de Valores de São
Paulo (Bovespa) por R$ 154,1 milhões (0,3% acima do valor mínimo), cujo valor foi pago
integralmente em títulos da dívida de estatais (“moedas podres”). Ainda que o Estado bra-
sileiro tenha ficado com uma “golden share”, uma ação preferencial que dá direito a veto a
decisões estratégicas, o prejuízo mais uma vez ficou evidente, com a empresa se tornando
uma das maiores do mundo graças aos aportes do BNDES, e com os lucros garantidos aos
acionistas privados, que nos últimos anos fomentam a possibilidade da entrega completa
da empresa à multinacional Boeing.
Todos esses números e fatos apontam para a questão de que os discursos favo-
ráveis a privatização, com a desculpa de que as empresas estatais só dão prejuízo ao
Estado, são uma grande e descarada mentira. Os altos custos e os péssimos serviços
oferecidos por essas empresas, que hoje estão nas mãos de monopólios privados, além
das humilhantes condições de trabalho as quais os trabalhadores dessas empresas estão
submetidos, são consequências desse programa de desestatização. A maioria das empre-
sas estatais privatizadas hoje são sociedades de economia mista e capital aberto que tem
seus lucros destinados a grande burguesia estrangeira, engordando cada vez mais o cofre
do imperialismo.
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Essa acumulação foi empreendida por uma política de rapina que se aproveitou – e
se aproveita – de nossas abundantes riquezas naturais e das estruturas criadas aqui com
o esforço e o trabalho de nosso povo. Nos momentos em que esse processo foi barrado ou
adiado, também foi por meio da resistência popular. Em nosso país, esse processo ainda
está em curso e anda a passos largos, tendo como principal caudilho do imperialismo e ini-
migo do povo o atual ministro da economia, Paulo Guedes. Lutar pela soberania de nosso
país, por nossa verdadeira e definitiva independência se coloca na ordem do dia, pois as
diversas mudanças de gabinete ocorridas em nosso Estado desde a dita “redemocratiza-
ção” dos fins dos anos 1980, só reforçaram esse cenário.

Petróleo e a luta contra o entreguismo


Em muitas ocasiões em que abordamos a dominação imperialista sobre o nosso
país, fizemos questão de destacar a importância que a questão do petróleo possui nessa
discussão. Uma vez que o imperialismo necessita do controle das reservas mundiais de
matérias-primas e fontes de energia para alimentar seus monopólios, é evidente que o
mais estratégico de todos os recursos, o petróleo, seja objeto de cobiça das grandes po-
tências mundiais. O petróleo não é apenas a principal fonte de energia a mover a produção
mundial, como também é a principal matéria-prima de centenas de produtos essenciais
para a vida contemporânea. Ele é e certamente continuará sendo pelas próximas décadas,
o recurso natural mais importante para o desenvolvimento de uma nação. Se ele pode ser
motivo para guerras de pilhagem e massacres coloniais, também pode ser convertido em
ferramenta para a construção de uma verdadeira soberania e independência nacional –
política e econômica – em relação às grandes potências imperialistas. Contanto, as fantás-
ticas reservas brasileiras, em especial aquelas do pré-sal, sempre despertaram a cobiça
dessas grandes potências.
Historicamente, nosso povo empreendeu grandes lutas para garantir o seu direito
aos benefícios da exploração petrolífera. Mesmo com seus sucessos limitados pela estru-
tura semicolonial e semifeudal que sufocava e ainda sufoca o desenvolvimento do país, as
lutas realizadas na época da famosa campanha “O petróleo é nosso!” foram capazes de
frustrar os objetivos imediatos dos monopólios estrangeiros. Com a criação da Petrobras
e com o monopólio da exploração petrolífera em suas mãos, o povo brasileiro conquistou
grandes vitórias, motivos de legítimo orgulho. A descoberta e a exploração do pré-sal feita
pela Petrobras – realizada na fronteira tecnológica da exploração de águas ultra profundas,
com excelência reconhecida mundialmente – ao mesmo tempo em que foi um marco para
o país, reavivou o apetite dos monopólios petrolíferos.
O desmonte da Petrobras e a entrega das reservas brasileiras para a pilhagem direta
de empresas estrangeiras, iniciada nos anos noventa com a entrada da ideologia “neolibe-
ral”, é retomado com força renovada no contexto das denúncias de corrupção que aconte-
ciam na empresa – essa hipocrisia imensa do imperialismo de se aproveitar da podridão das
estruturas que ele mesmo cria e do qual se beneficia diretamente para atingir algum objetivo
determinado em um momento específico. Já denunciamos anteriormente a parcialidade da
chamada “Operação Lava-Jato”, que fez vistas grossas para tantas empresas estaduniden-
ses, europeias e japonesas que participavam de esquemas de corrupção com os grandes
compradores e burocratas “brasileiros”. Apenas para relembrarmos, essas são algumas das
empresas estrangeiras citadas em inquéritos da operação e que foram rapidamente inocen-
tadas ou sequer chegaram a ser investigadas: Mistui, Saipem, Keppel, Technip, Skansa,
Maersk, Glencore, Astraoil, Trafigura, SBM e Ocean Rig. Ao mesmo tempo em que dava
tratamento privilegiado para essas empresas e cooperava com serviços de inteligência es-
tadunidenses, a “Lava-Jato” atuava em conjunto com os monopólios midiáticos para criar as
melhores condições possíveis para a entrega da Petrobras ao capital financeiro.
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 15

Atualmente, podemos sistematizar os principais efeitos desses movimentos. Ainda


que os principais golpes tenham sido desferidos após o golpe de 2016, já em 2013 o “Leilão
de Libra” entregou dezenas de bilhões de barris para empresas chinesas e para a anglo-
-holandesa Shell – pelo menos 60% do petróleo de reservas estimadas de 50 bilhões de
barris foram arrebatados pelos vencedores do leilão. Alguns anos depois, Dilma Rousseff
chamaria o burocrata Aldemir Bendine para assumir a presidência da estatal e promover o
processo de desmonte e venda da estatal, chamado eufemisticamente de “Plano de Desin-
vestimento” ou “desalavancagem”. Na prática, tratava-se de retirar dinheiro de projetos de
pesquisa e desenvolvimento tecnológico, vender subsidiárias e a infraestrutura da empresa
e arrochar ainda mais seus trabalhadores. O plano projetava US$ 15 bilhões em “desinves-
timentos” desse tipo no biênio de 2015/2016, tendo sido em grande medida bem-sucedido.
Em 2016 temos um aprofundamento dos ataques contra a Petrobras e do saque dos
monopólios imperialistas às nossas riquezas. Destacamos a venda do campo petrolífero
de Carcará, um dos mais importantes do pré-sal, que foi entregue ao monopólio norueguês
Statoil pela bagatela de US$ 2,5 bilhões, sendo que suas reservas eram avaliadas por
pelo menos US$ 10 bilhões. Nesse mesmo período, também tivemos o assalto à nossa
infraestrutura de transporte de gás, antes de propriedade da Petrobras por meio de sua
subsidiária Nova Transportadora do Sudeste (NTS), que controlava uma malha de 2,5 mil
quilômetros de gasodutos em uma região estratégica, por onde é transportado o gás ex-
traído das operações do pré-sal. Essa empresa e os seus gasodutos foram entregues para
um fundo de investimentos canadense chamado Brookfield por míseros US$ 5 bilhões.
A Brookfield possui inserção monopolista em nosso país, cujas propriedades por aqui in-
cluem “1 hidrelétrica, cinco parques eólicos e três usinas de geração de energia a partir da
biomassa, além de linhas de transmissão, portos, ferrovias, milhares de hectares de terras
e florestas, edifícios comerciais e residenciais e seis shopping centers”. Na ocasião, a re-
vista Euromoney chamou de o prêmio de “melhor negócio no setor de óleo e gás” para a
Brookfield por sua compra da NTS. Isso se explica facilmente se levarmos em conta que a
própria Petrobras já pagou, de 2016 para cá, mais do que os US$ 5 bilhões em aluguéis ao
novo proprietário para utilizar os gasodutos que eram seus – tal situação já havia sido pre-
vista por muitos analistas e organizações democráticas, uma vez que a Petrobras sempre
foi dependente destes dutos para escoar a sua produção do pré-sal.
Ao mesmo tempo em que a Petrobras era depenada, nossos recursos saqueados
e nossa indústria parapetrolífera doméstica arrasada, acionistas estrangeiros que possuí-
am ações da nossa estatal a colocavam no banco dos réus em tribunais estadunidenses.
Esses processos se deram por conta da desvalorização financeira que a Petrobras sofreu
após a deflagração da operação Lava-Jato. Esses senhores, que tanto lucraram com a es-
tatal brasileira no período da descoberta do pré-sal, inclusive com a corrupção que corroeu
a empresa, não tiveram dúvidas em processá-la quando viram seus interesses ameaçados.
Aqui é interessante destacar uma coisa: tamanho absurdo de uma empresa brasileira sen-
do processada por acionistas estrangeiros em tribunais estadunidenses (sem que o Estado
brasileiro mova um dedo quanto a isso!) só é possível porque suas ações são negociadas
na bolsa de Nova Iorque.
A Petrobras, uma estatal fundamental para o país, espinha dorsal de nossa econo-
mia e um instrumento de política econômica do Estado brasileiro, foi abandonada à própria
sorte diante da investida desses abutres financeiros. Isso não diz apenas da fragilidade
em que uma empresa brasileira é colocada quando é capitalizada em bolsas de valores
estrangeiras, mas também do próprio caráter do Estado brasileiro enquanto um gestor dos
interesses do imperialismo, ao invés da nação. Não fosse isso, não teríamos a situação
vergonhosa em que capitalistas estrangeiros controlam 41% das ações preferenciais (com
direito à primeira divisão dos lucros) e 38,9% das ações ordinárias (com direito a voto) da
16 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Petrobras, ante 36% das ações preferenciais e 50,5% das ações ordinárias que são con-
troladas pela União. Assim, ainda que o Estado detenha a maioria das ações com direito
a voto, mantendo o controle da empresa, vimos que o Estado brasileiro é essencialmente
antinacional e pró-imperialista; ao mesmo tempo, os lucros gerados pelo trabalho de nosso
povo, que se realiza de modo tão brilhante na Petrobras, são majoritariamente transferidos
para acionistas estrangeiros.
Para coroar a onda até agora bem-sucedida de ataques contra nossa principal es-
tatal, o governo Bolsonaro vendeu em 2019 a TAG Distribuidora – outra subsidiária que
controla malhas de gasodutos em nosso país – e em 2020 a BR Distribuidora, empresa que
sempre foi um símbolo do sistema integrado da Petrobras. A primeira dessas empresas foi
vendida para um fundo de investimentos canadense, o Caisse de Dépôt et Placement du
Québec (CDPQ), e outro franco-belga, a Engie, por US$ 8,6 bilhões. Evidentemente, trata-
-se de outra mixaria, tendo em vista que é um valor que a Petrobras irá devolver para os
novos proprietários um valor muito maior do que esse para utilizar a infraestrutura que en-
tregou, repetindo o episódio vergonhoso da NTS Distribuidora. Sobre a BR Distribuidora, a
Petrobras entregou 30% de suas ações com direito a voto e perdeu, com isso, o controle da
empresa. As ações foram vendidas de forma pulverizada, com muitos compradores arreba-
tando os papéis, o que impossibilita traçar exatamente quais monopólios se apropriaram da
empresa.
No final de 2019 o governo Bolsonaro também realizou o maior leilão em termos de
valores da história da indústria do petróleo, o da chamada cessão onerosa. Nesse leilão, o
excedente de petróleo e gás que havia sido entregue pela União para a Petrobras em troca
de ações da companhia, algo em torno de 10 bilhões de barris de petróleo, foram coloca-
dos à venda. Explicando melhor: quando o pré-sal foi descoberto, algumas das principais
áreas da Bacia de Santos foram entregues por contrato para a Petrobras, que deu em troca
para a União ações e uma compensação em dinheiro. No contrato, cedia-se o direito de
exploração de 5 bilhões de barris para a estatal, que era a quantidade de petróleo estima-
do existir naquelas áreas à época. Contudo, posteriormente foi descoberto que naquelas
áreas haviam até 15 bilhões de barris, um “excedente” de 10 bilhões que, na visão de Jair
Bolsonaro e Paulo Guedes, poderiam e deveriam ser entregues para os compradores de
sempre. Esse governo muito se esforçou para que esse petróleo fosse entregue para os
monopólios estadunidenses. Entretanto, foi a própria Petrobras a principal vencedora do
leilão, que arrematou, entre os 4 blocos que estavam sendo leiloados, 1 deles sozinha e o
outro em consórcio com as estatais chinesas CNOOC e CNODC, sendo que a Petrobras
arcou com 90% da operação e as empresas chinesas 5% cada uma. Outros 2 blocos per-
maneceram sem ofertas, em um leilão marcado inclusive pela ausência dos monopólios
estadunidenses e europeus.
O processo todo arrecadou R$ 69,9 bilhões para o Estado brasileiro. Nada disso pos-
sui nem o mínimo aspecto positivo, uma vez que as riquezas de nosso subsolo deveriam ser
inteiramente destinadas aos interesses imediatos e gerais do povo brasileiro e explorados
integralmente por sua principal estatal, a Petrobras, empresa mais apta para realizar essa
tarefa. Na exata contramão, contudo, o governo entreguista de Jair Bolsonaro já planeja no-
vas rodadas de leilões para 2021, desta vez garantindo que as condições sejam ainda mais
vantajosas para que possam atender às expectativas de seus amos do norte.

O problema da mineração na semicolônia Brasil


A mineração como fenômeno de relevância no Brasil teve seu início no século XVIII.
A atividade minerária desde sua forma embrionária se posicionava como importante na
economia colonial, com a finalidade de atender aos interesses da metrópole. De lá para cá,
não podemos afirmar que tal atividade tomou caráter completamente distinto, o processo
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 17

neocolonialista do imperialismo reconfigurou a forma como se efetiva a mineração no Bra-


sil, mas sua finalidade continua sendo atender aos interesses externos. No caso, de grupos
monopolistas estrangeiros.
A mineração surge em um contexto histórico interessante, o mundo presenciava
transformações estruturais aceleradas na economia europeia, tendo como base a transição
do modo feudal de produção para o modo capitalista. Neste período podemos observar
o papel que ocupou a Holanda na “articulação da estrutura de produção açucareira” nas
nações colonizadas, com o seu findar a partir do domínio de Portugal e suas colônias por
parte da Inglaterra, particularmente a partir da segunda metade do século XVII. Com isso,
como nos coloca Nelson Werneck Sodré, “processa-se na Metrópole, por isso mesmo, a
transição entre a fase de associação de interesses com o capital comercial holandês e a
fase de subordinação econômica à Inglaterra”. Assim, é possível identificar como se dará a
divisão desigual dos países no desenvolvimento do que viria a ser o capitalismo e, poste-
riormente, o imperialismo e a sua forma de dominação colonialista.
No Brasil, o crescimento da atividade de mineração tem uma forte vinculação com a
dependência econômica em relação aos países imperialistas, apostando sua sorte no for-
necimento de commodities para o centro dinâmico do sistema do capital. O Brasil, por con-
ta de seu vasto território, tem grande diversidade de recursos minerais, bem como jazidas
de minérios de muito valor. A existência desses recursos implica em algumas interpreta-
ções de que o Brasil tem certa “vocação” para atividade de mineração. Tal caracterização,
por sua vez, expõe o papel que é imposto ao Brasil na divisão internacional do trabalho,
ou seja, de um capitalismo burocrático com parco desenvolvimento industrial e refém da
exportação de suas matérias-primas como principal meio de obtenção de divisas.
Do ponto de vista jurídico, a atividade de mineração no Brasil tem sua regulação por
meio do Decreto lei n. 227/1967. No entanto, no ano de 2013, o governo de conciliação
de classes do PT colocou em pauta o Projeto de Lei n. 5.807/2013, que se efetivou como
Novo Marco Regulatório para atividade de mineração. Junto do Novo Marco Regulatório da
mineração, foram colocadas três Medidas Provisórias, sendo fundamentais para mudanças
mais profundas na legislação federal até então vigente. A saber: MP n 789/17, MP n. 790/17
e MP n. 791/17. Conforme o livro Quando vier o silêncio: o problema mineral brasileiro, de
Charles Trocate e Tádzio Coelho (2020), a Medida Provisória 789/17 modificou a forma de
se fazer o cálculo da CFEM, ou seja, o que antes era calculado a partir da receita líquida, da
“receita após o desconto dos tributos incidentes sobre comercialização, das despesas de
transporte e dos seguros”, com a consolidação da MP após conversão à lei n. 13.540/17, o
cálculo passou a ser realizado sobre a receita bruta da venda, “deduzidos os tributos inci-
dentes sobre sua comercialização, pagos ou compensados, de acordo com os respectivos
regimes tributários”. Com a percentagem chegando, ainda que com as variações de acor-
do com o mineral extraído, no máximo até 3,5%. As outras duas MP’s foram responsáveis
pelas normas que subsidiaram juridicamente a criação da Agência Nacional de Mineração
(ANM) para substituir o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) (p. 57-58).
A lista de tributos e compensações sobre a atividade de mineradoras no Brasil é a
seguinte: Imposto sobre Importação (II), Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Servi-
ços (ICMS), Participação do Superficiário, Taxa Anual por Hectare (TAH) e a Compensação
Financeira pela Exploração dos Recursos Minerais (CFEM). Mas, na prática, observamos
que a produção minerária tem como principal destino a exportação e, sendo assim, as mi-
neradoras buscam os benefícios que a Lei Complementar n.87/96 (Lei Kandir) proporciona,
ou seja, isenção de ICMS para “os serviços e os bens primários, manufaturados e semima-
nufaturados destinados à exportação”, assim, os grandes monopólios de mineração que
atuam no Brasil conseguem, também, via frouxidão jurídica, ampliar seus níveis de lucrati-
vidade. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) avalia que o estado de Minas Ge-
18 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

rais obteve perdas potenciais na casa de 16,9 bilhões de reais, isso entre os anos de 1997
até 2013, como consequência da isenção do ICMS para atividades que se enquadrassem
na tipificação de “serviços e os bens primários, manufaturados e semimanufaturados desti-
nados à exportação”, isso somado aos insuficientes mecanismos de “compensação” como
o que o governo federal destinou para essa perda, apenas 26% do total do valor, ou seja, o
déficit potencial ficou na casa de 12,5 bi de reais. No caso do Pará, no mesmo período, as
perdas potenciais chegaram ao valor de 11,9 bi de reais. Seguindo a mesma tendência de
MG, a União estabeleceu uma compensação de 21,2% do valor total, o que proporcionou
um prejuízo de 9,4 bilhões de reais ao estado do Pará. Fator importante para expor as con-
tradições que beneficiam os monopólios da mineração é o padrão de compensação impos-
to pela União aos estados, pois não acompanham as variações dos preços dos minérios,
ou seja, durante o período de alta dos valores – no contexto de boom das commodities –,
os estados não tiveram uma compensação equivalente.
Entre outros mecanismos, legais ou ilegais, das corporações monopolistas do setor
para abater o valor dos tributos pagos no processo de produção e circulação de mercado-
rias, segundo Charles Trocate e Tádzio Coelho, baseados em um estudo da Red Latindadd
e do Instituto de Justiça Fiscal, aponta que umas das principais maneiras das corporações
mineradoras para redução de gastos com tributos é o de preços de transferência. Esse pro-
cedimento ocorre por meio de comercialização de bens ou serviços de uma determinada
corporação para outras corporações, pertencentes ao mesmo grupo monopolista ou coli-
gadas de alguma forma, que estão sediadas em paraísos fiscais. No entanto, essa venda
é realizada a preços abaixo do mercado para, em um segundo momento, ser repassado
ao consumidor final a preços de mercado, o que, por sua vez, garante uma margem de
lucro maior para corporação exportadora por meio do aviltamento dos meios de compen-
sação (tributos e compensações socioambientais, por exemplo) pela sua atividade em um
determinado país. Sendo assim, identificam que, no que diz respeito a mineração no Bra-
sil, esse mecanismo se expressa na diminuição do valor pago de CFEM, pois como essa
compensação tem como base de cálculo a receita bruta e com a transferência de preços,
a receita bruta é diminuída no país de origem da atividade extração minerária. Segundo
esse mesmo estudo, estima-se que “(...) o subfaturamento das exportações de minério de
ferro ocasionou a saída indevida de 39,1 bilhões de dólares entre 2009 e 2015, uma perda
média de mais de 5,6 bilhões de dólares por ano. Para o mesmo período, esteve associa-
da uma perda de arrecadação tributária de 13,3 bilhões de dólares, o que significou em
média uma perda anual de 1,9 bilhão de dólares” aos cofres do Estado brasileiro. Outro
dado alarmante do estudo da Red Latindadd é que, pelo menos desde 2011, “mais de 80%
das exportações brasileiras de minério de ferro foram adquiridas por empresas sediadas
na Suíça”. Nesse caso, a Suíça não é o destino final da exportação, mas um paraíso fiscal
que serve como mediador para a chegada do minério de ferro para outros países de forma
a garantir um rebaixamento dos custos que as mineradoras teriam com tributos caso a ex-
portação fosse realizada de maneira direta para o país importador. Ainda sobre a questão
do subfaturamento das exportações: “(...)Segundo o estudo da Red Latindadd, entre 2009
e 2015, o subfaturamento das exportações adquiridas por este país totalizou 28,7 bilhões
de dólares”.
Estes mecanismos que visam garantir os superlucros dos monopólios imperialistas
que atuam na mineração em solo brasileiro não surgem de uma base meramente política-
-jurídica, o contexto que viabiliza uma realidade atrativa para as mineradoras tem relação
direta com as riquezas naturais nacionais. Se consultarmos informações sobre a capacida-
de de exportação mineral brasileira entre os anos de 2000 e 2010 veremos praticamente
duplicar de 163 milhões de toneladas para 321 milhões de toneladas exportadas. Ainda
sob o contexto do boom de commodities, mas com uma margem de análise mais ampla, o
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 19

intelectual e estudioso da questão, o professor Bruno Milanez, afirma que se verificou que
as empresas que atuam no Brasil aproveitaram a elevação dos preços de minérios para
intensificar o processo de extração mineral para o atendimento da demanda, sobretudo,
internacional. Este crescimento se expressa tanto no sentido da produtividade quanto do
valor, principalmente, a partir de 2009. Como evidência deste fenômeno, observamos que
a atividade mineraria aumenta sua participação na receita das exportações que, em 2006,
era de 7%, para 18%, no ano de 2011. Ainda, como demonstração deste contexto, em
1997, a produção mineraria no Brasil se aproximava da marca de 150 milhões de tonela-
das de minérios exportados, o que gerava um valor de aproximadamente US$ 20 bilhões;
em 2011, a marca atingida de minérios exportados chegou à casa de aproximadamente
350 milhões de toneladas, com valor em quase US$ 45 bilhões. Neste processo de expan-
são da atividade de mineração no Brasil, corporações monopolistas como Vale S.A, BHP
Billiton, Anglo Gold Ashanti, Anglo American, KinRoss Brasil Mineração S.A, Gerdau etc.,
consolidaram suas atividades sob condições privilegiadas.
A questão da exportação de minérios, no caso do Brasil, é emblemática, pois tem-se
um aprofundamento da vulnerabilidade econômica em compasso com o ganho de prota-
gonismo chinês como principal comprador. A China, em 1990, importava cerca de 2% do
minério de ferro do Brasil. No entanto, em 2009, verificou-se um aumento significativo para
59% (2012, p.35). Ainda, segundo Milanez: “(...) a quantidade de minérios exportados para
a China é mais de quatro vezes superior àquela vendida para o Japão, o segundo país no
ranking dos destinos desses produtos. Esse grau de concentração coloca o Brasil em uma
situação de baixa segurança, uma vez que qualquer mudança na política econômica ou
industrial da China impactará diretamente a balança comercial brasileira, assim como as
regiões especializadas em extração mineral para exportação”.
Estabelecendo-se este contexto, as economias das colônias e das semicolônias, ao
deslocar sua estratégia de inserção na divisão internacional do trabalho a partir da especia-
lização produtiva baseada, sobretudo, em recursos naturais, compromete sua possibilidade
histórica de desenvolvimento que garanta mínima condição de soberania e ampliação de
direitos para o povo, garantindo autonomia e oposição mais sólida ao imperialismo. A lógica
da atividade de mineração tem no seu conteúdo a destruição dos territórios para viabilizar
um processo de exploração de “produtos de baixo valor agregado” que, por sua vez, não
retribui de maneira significativa para o desenvolvimento nacional e, em momentos de crise,
o setor de exploração minerária pouco contribui para retomada econômica das nações do
terceiro mundo.
Para exemplificar esse contexto, em texto intitulado COVID-19 e a instrumentaliza-
ção da morte na atividade minerária publicado no NOVACULTURA.info nos mostra que,
em uma conjuntura de crise do capitalismo e em meio a pandemia do coronavírus, a única
saída possível para o imperialismo garantir seus interesses é a promoção da barbárie,
intensificando a produção com alto custo ambiental e, sobretudo, social, na medida em
que coloca trabalhadores e trabalhadoras em condições cada vez mais deterioradas de
trabalho. Muitas vezes fazendo com que a classe trabalhadora seja constrangida a oferecer
as suas próprias vidas, em um contexto sem alternativas econômicas de fazer isolamento
social, às piores condições possíveis para garantir seu ganha-pão. Conforme o texto citado
“no dia 28/04, Bolsonaro impõe-nos um decreto que estabelece a mineração como ativi-
dade essencial e, assim, expondo trabalhadores, comunidades inteiras e até municípios a
um ritmo de propagação do Covid-19 que beira a promoção de um genocídio. Assim, mi-
neradoras como a Vale S.A perpetuam sua sanha pelo aumento da margem de lucro sem
qualquer entrave à sua produção, ainda que isso custe, de maneira mais acentuada, vidas
de trabalhadores e trabalhadoras”. É simbólico o fenômeno da mineração no Brasil, pois
evidencia com profundidade o caráter semicolonial e semifeudal da realidade brasileira e
20 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

sua lógica de superexploração da classe trabalhadora.


A realidade atual da atividade minerária no Brasil se expressa como implicação de
uma noção de aumento da capacidade de lucro do setor no mercado internacional que
estabeleceu reflexos diretos no comportamento das mineradoras em território nacional.
Entre 2004 e 2011, no que diz respeito as operações totais no setor, saltaram de menos
de R$ 20 bilhões para marca superior a R$ 85 bilhões. O destaque desta expansão foi o
minério de ferro, sendo responsável, em 2011, por 70% das operações minerais levantadas
pelo Departamento Nacional de Produção Mineral, seguidos por ouro e cobre, com 5% e
4%, respectivamente. Contudo, o Ministério de Minas e Energia têm como planejamento a
intensificação deste aumento da atividade de mineração em solo (ou melhor, subsolo) bra-
sileiro. Como indica Milanez, tomando por base valores de 2008, o MME antecipa que, até
2030, a exploração de bauxita e ferro deverá aumentar três vezes, a do ouro três vezes e
meia, e a do cobre e níquel mais de quatro vezes .
O processo de expansão para mineração no Brasil tem previsão de ocorrer em duas
plataformas diferentes. O contexto que passa a se apresentar é, de um lado, intensificar as
atividades de mineração em regiões em que tal atividade já é consolidada, “como o quadri-
látero ferrífero em Minas Gerais, e Carajás, no Pará”, ou seja, haverá um aprofundamento
dos impactos atribuídos à mineração nestes locais, “como conflitos por água, redução da
qualidade do ar, e aumento de acidentes rodoviários e ferroviários”; de outro, de acordo
com a insuficiência da produção mineraria nas regiões consolidadas, ainda que sob pro-
cesso de intensificação produtiva, o setor de mineração busca solucionar a questão do au-
mento de sua capacidade lucrativa avançando sobre outros territórios. Assim, a produção
de contradições socioambientais por conta da mineração tende a se aprofundar que, por
sua vez, produzirá, também, implicações em relação ao número de pessoas atingidas pelos
impactos da mineração no Brasil. Os conflitos sociais em torno de tais atividades são, cada
vez mais, explosivos e o caráter predatório das mineradoras aprofundam a dominação im-
perialista e perpetua o papel histórico do Brasil como uma semicolônia sempre “disposta” a
atender aos interesses dos colonizadores imperialistas. Reconfigurar a forma como se dá
a mineração no Brasil é questão de primeira ordem na transformação que nos garanta, de
fato, a independência historicamente buscada. De certo que, a atividade minerária, mais do
nunca, deve estar associada integralmente aos interesses de soberania nacional, portanto,
a partir do contexto latino-americano com caráter fortemente anti-imperialista, que garanta
ampliação democrática e de direitos ao proletariado.

Agricultura e dominação estrangeira


Sabemos que um aspecto básico do imperialismo é a produção de superlucros por meio
da exploração dos povos oprimidos dos países semicoloniais, e que a agricultura é o principal
meio que as corporações imperialistas utilizam para a produção de semelhantes superlucros.
Nosso país não foge à regra. É verdade que o Brasil possui uma riquíssima oligarquia
latifundiária, dona de vastas extensões de terras para além das centenas de milhões de
hectares onde são cultivados os gêneros de exportação que vão parar no mercado mundial.
Por mais que a agricultura de exportação gere a bonança dos ultrarricos do “agrobusiness”,
não são eles quem abocanham o principal filão que resulta desta produção. A maior parte
da lucratividade obtida acaba indo parar nos bolsos das grandes companhias relacionadas
ao comércio e industrialização da produção rural não apenas no Brasil como no mundo.
Poder-se-ia imaginar que se trata de um contrassenso observar que, ainda que os
camponeses e trabalhadores assalariados rurais assumam o ônus mais pesado de toda
a cadeia da produção rural, os resultados desta produção acabam parando quase inteira-
mente nos bolsos da classe latifundiária e das corporações imperialistas, ao passo que os
verdadeiros produtores permaneçam em um estado que se aproxima à miséria.
“As massas populares conquistarão a verdadeira e definitiva independência do Brasil” URC 21

Podemos observar assim que, nos países dominados, a agricultura é uma alavanca
utilizada pelo imperialismo para arrancar a mais-valia produzida localmente, deixando como
rejeitos deste saque classes dominantes parasitárias e produtores diretos (camponeses ou
trabalhadores assalariados) extremamente mal pagos. Massas imensas da mais-valia que
poderiam ser investidas localmente para o progresso econômico e social são drenadas
para o exterior sob formas de remessas de lucros, importações e demais.
Vejamos aqui no aspecto da comercialização. Somente a estadunidense ADM ex-
portou, no ano de 2017, 7,6 milhões de toneladas de soja, a terceira maior empresa do país
em exportações, atrás apenas da também estadunidense Cargill e da holandesa Bunge.
A corporação imperialista tem avançado no controle logístico local, por exemplo, por meio
do consórcio com, além das duas empresas mencionadas, a francesa Louis Dreyfus Com-
modities e a brasileira Amaggi para investir 12 bilhões de reais na construção da ferrovia
Ferrogrão, que interligará por aproximadamente mil quilômetros o município de Sinop (MT)
ao porto de Miritituba (PA), facilitando o escoamento das lavouras de exportação, principal-
mente da soja. Atualmente, a norte-americana Cargill controla, no Brasil, 22 fábricas, seis
portos e 192 armazéns de logística, galgando no ano de 2016 uma receita de cerca de 33
bilhões de reais por meio de suas operações no Brasil. Recentemente, investiu 700 milhões
de reais para a construção de um porto no município de Barcarena (PA) para facilitar o es-
coamento da produção de soja.
Qualquer semelhança das condições atuais que prevalecem no Brasil com o assédio
das potências externas aos portos brasileiros após a chamada “Abertura dos Portos para
as Nações Amigas” de 1808 não é mera coincidência. Trata-se de uma natureza colonialis-
ta que prosseguiu de lá para cá.
Mas as grandes corporações imperialistas não alçam superlucros somente por meio
da comercialização e industrialização da produção rural brasileira. Enriquecem também
por meio da venda de meios de produção a preços de monopólio, pilhando o campesinato
brasileiro com tais preços extorsivos e compelindo os fazendeiros e capitalistas agrários a
transferirem o ônus dos preços de monopólio sobre o proletariado rural e o campesinato.
Eis aqui mais um traço do imperialismo: conseguem alçar superlucros por meio da
venda a preços de monopólio de mercadorias que não são aceitas nos mercados metropo-
litanos de seus países. À medida que a legislação – principalmente dos países europeus
– passa a “fechar o cerco” para o uso de agrotóxicos que prejudicam gravemente a saúde
humana, tais corporações têm no Brasil e demais semicolônias fontes seguras de lucros
de monopólio. Evidentemente, às expensas da saúde do trabalhador rural brasileiro e das
populações urbanas.
Como por exemplo, ao analisarmos a tabela elaborada pela AENDA – Associação
Brasileira de Defensivos Pós-Patente – sobre as vinte maiores empresas do Brasil em
termos de vendas de agroquímicos no ano de 2017, observamos que dessas maiores
empresas que responderam por praticamente todo faturamento da venda de agroquímicos
no Brasil no ano de 2017, quinze são estrangeiras (Nortox, Ourofino, CCAB e Leme são
empresas nacionais, sendo a Sipcam-Nichino uma empresa de capital misto brasileiro-
-nipônico). Somente vendendo agrotóxicos no mercado brasileiro, as grandes corporações
estrangeiras logram arrancar do couro dos brasileiros até 8 bilhões de dólares.
Estas são apenas algumas amostras da magnitude da dominação estrangeira na
agricultura e seu potencial para entravar o desenvolvimento nacional. Há muitos outros que
mereceriam ser objeto de estudo posterior.

UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA


22 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros que presenciarão o aniversário dos


200 anos da independência do Brasil em relação a Portugal, têm muito pouco a
comemorar, pois nossa nação encontra-se em um dos piores períodos da sua
história. O desemprego, o subemprego, a miséria social atingem dezenas de
milhões de pessoas. A consequência se vê nas ruas, nas filas de desemprega-
dos, nas Cracolândias, nos famintos a espera de caridade; mas também se es-
conde em diversos outros problemas, como aumento dos suicídios, sofrimento
mental, entre outros. E isso não vem somente por azar de sermos um país do
chamado “Terceiro Mundo” ou por maldade ou incompetente de um ou outro
governante da vez. Por detrás de toda a exploração da burguesia e do latifúndio
em nosso país está o nosso inimigo principal: o imperialismo estadunidense.
Anteriormente, Portugal e Inglaterra, hoje Estados Unidos; e por toda a parte do
nosso imenso território, burgueses, latifundiários, militares, políticos, oportu-
nistas e outros fantoches exploram e oprimem as grandes massas do povo para
garantir que a dominação estrangeira persista e se amplie. Diante deste cenário
e suas causas, que são atuais e históricas, é que organizações revolucionárias,
dentre elas a União Reconstrução Comunista, e alguns militantes em caráter in-
dividual, resolveram desenvolver a campanha “Brasil: pela segunda e definitiva
Sobre a campanha “Brasil: Pela Segunda e Definitiva Independência” URC 23

independência”. Buscar a compreensão mais profunda da nossa realidade, para


agir de forma consequente, de maneira a enfrentar as reformas regressivas que
estão ocorrendo, para vincular essa luta imediata com a luta para que as maio-
rias nacionais, ou seja, o proletariado e seus aliados, tenham uma vida digna em
nosso país. Desde o seu lançamento, em 2019, buscando lançar desde então o
debate sobre a necessidade da conquista da nossa verdadeira independência,
a Campanha se esforça para desenvolver agitação e propaganda para fustigar
as justificativas que se apresentam para defender os sucessivos ataques sofri-
dos pelo povo brasileiro e o entreguismo generalizado de nossas riquezas aos
estrangeiros, além de contestar as versões oficiais sobre o processo que levou
à proclamação da independência e da república no Brasil, buscando trazer à
luz as ideias, os ideais, a contribuição e o combate daqueles que buscaram
levantar, em épocas passadas, as aspirações e objetivos dos explorados da
terra. Organizamos grupos de Estudos sobre a formação histórica do Brasil,
fizemos atividades presenciais e online, produzimos documentos, cartilhas e
manifestos, realizamos atividades de agitação e propaganda em torno de temas
como saúde, educação, apoio a greves, etc., mobilizamos companheiros e com-
panheiras em várias cidades do país, entre outras iniciativas em torno da causa.
E seguiremos trabalhando. Oxalá todas essas iniciativas propiciem uma festa
com mais convidados no ducentésimo aniversário da independência do Brasil.
24 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Em 2019, a URC juntamente com a Célula Comunista de Trabalhadores (CCT) e


outros grupos e militantes assinaram o documento a seguir, que deu início ao de-
senvolvimento da campanha “Brasil: pela Segunda e Definitiva Independência”, que
desde então vem trabalhando para denunciar a dominação imperialista no país e a
necessidade do acirramento da luta pela libertação nacional em um momento no
qual se aproxima o duocentésimo aniversário da “independência” do Brasil.

Documento base da campanha


BRASIL: PELA SEGUNDA E DEFINITIVA INDEPENDÊNCIA
Dentro de três anos “comemoraremos” os 200 anos da independência do Brasil. A apro-
ximação da efeméride nos enseja uma reflexão sobre a condição do nosso país. Afinal, somos
realmente independentes?
A resposta a essa questão é quase evidente para qualquer um que reflita sobre a nossa
realidade com um mínimo de capacidade crítica.
Não, não somos independentes. Sempre fomos um país subjugado por interesses es-
trangeiros como via de regra ocorreu na América Latina. Tanto não somos, que se constituíram
em nossos meios políticos e intelectuais, duas vertentes explicativas de nossa condição que,
não por acaso, têm a palavra dependência no próprio nome. Referimo-nos à Teoria da Depen-
dência e à Teoria Marxista da Dependência. Com maior ou menor con-cordância com as mes-
mas, sua elaboração por si só, já indica as limitações de nossa autonomia diante dos países
imperialistas.
Não poderíamos ser independentes pois, em um mundo em que a economia joga papel
determinante, a nossa independência de 1822, nos deixou como herança, essa sim maldita,
nada menos do que a famigerada dívida externa, hoje transformada em dívida pública interna,
que daquele instante até hoje, é um dos mecanismos com os quais os países dominantes su-
gam parcela significativa de nossas riquezas.
Se olharmos para o nosso território, veremos exemplos absurdos. Desde os tempos mais
remotos, e a independência de 1822 não resolveu e nem quis resolver esse problema, grupos
estrangeiros tomam posse de extensas áreas, com a complacência dos nossos governantes.
Só para dar um pequeno exemplo, no livro de Carlindo Marques Pereira, O massacre de Ipatin-
ga, editado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema em 1984, relata-se, no capítulo
intitulado O começo da matança, que “por volta de 1957, em nome da Cia. Belgo Mineira (hoje,
proprietária de cerca de 10% do território de Minas Gerais), famílias inteiras eram exterminadas
nas margens do Santo Antonio, por jagunços e pela polícia de Governador Valadares (...) Nessa
época o Estado doava, a qualquer modo, grandes extensões de terra da região para a empresa
siderúrgica. Esta, com seu poderio econômico e o apoio do governo, contratava jagunços que,
em conjunto com a polícia, partiam em perseguição aos trabalhadores do campo. Os lavrado-
res, por sua vez, haviam posseado as terras há muito tempo. Alguns trabalhavam o seu pedaço
de chão há 10, 20 ou 30 anos. Nessa terra dava de tudo. Ninguém falava em fome. Colhia-se
alimentos em abundância. Viviam em outra dimensão”.
No Paraná, temos o relato de uma importante luta, descrita em Porecatu, a Guerrilha
que os Comunistas Esqueceram de Marcelo Oikawa. São partes da nossa história que ficaram
esquecidas, mas que é preciso resgatar, juntamente com a memória da luta e dos lutadores,
para estimular as lutas de hoje. São apenas dois exemplos, de inúmeras outras ocorrências em
nossa história.
Nesses mais de 500 anos sempre estivemos submetidos aos interesses estrangeiros e
hoje se coloca mais destacadamente o domínio do imperialismo estadunidense que por diver-
sos meios – econômicos, políticos, culturais, ideológicos – dominam o nosso país para atender
os seus próprios interesses, impedindo que o Brasil se desenvolva para atender as necessida-
des do seu povo.
“Documento base da campanha Brasil: Pela Segunda e Definitiva Independência” URC 25

O programa para um Brasil independente, soberano e digno


Um Brasil independente, soberano e digno, deve ser um país onde haja:
1) Trabalho decente para todos os brasileiros em condições de trabalhar e assistência
para aqueles que não o possam. Criação de uma indústria nacional para o desenvolvimento da
economia brasileira e nacionalização de todos os setores estratégicos.
2) Educação pública em todos os níveis, oferecida por um sistema único, que produza
conhecimento direcionado aos interesses do país. Contra o avanço das multinacionais mono-
polistas do setor.
3) Saúde pública, com um SUS que seja de fato único, público e decente.
4) Acesso aos bens culturais: cinema, teatro, etc., para todos com o desenvolvimento de
uma cultura genuína nacional.
5) Combate à discriminação e aos preconceitos de toda ordem. Garantir os direitos das
mulheres, negros, LGBT e demais camadas historicamente discriminadas em nosso país.
6) Reforma Agrária para o campesinato pobre e médio. Contra o latifúndio e defesa dos
direitos dos quilombolas e indígenas.
7) Reforma Urbana: Moradia digna, acesso ao lazer e a prática esportiva para todos.

Essas medidas, tendentes à socialização das riquezas do país, só serão efetivadas com
uma mudança radical da correlação de forças na sociedade em favor do proletariado e seus
aliados, com a conquista do poder de Estado e sua transformação socialista em transição para
o comunismo.
A execução de um programa como esse será o resultado de um processo de acúmulo de
forças, alicerçado nas lutas de resistência que ocorrem no atual período da luta de classes, em
todas as frentes: ideológica, política, sindical, popular (saúde, educação, moradia, etc.), contra
a discriminação racial, sexual, regional, etc.
Tal acúmulo de forças deverá, para a consecução desse programa, levar à conquista de
um governo revolucionário, que desempenhe as tarefas de transição do capitalismo ao socialis-
mo e deste ao comunismo.
Tal governo, nas suas diferentes fases, será a expressão da aliança do proletariado e dos
camponeses, bem como de outras classes ou frações de classe que se somem, em cada etapa
da luta, à concretização do programa revolucionário. Será, portanto, a expressão de um bloco
das classes dominadas no capitalismo, em oposição ao bloco das classes dominantes que há
séculos exercem o poder no Brasil.
Como essa proposta poderá se desenvolver?
Nos propomos a desenvolver uma campanha em torno da questão nacional, aprovei-
-tando a aproximação dos 200 anos da nossa independência, envolvendo organizações e mi-
litantes não organizados que tenham acordo com essa proposta, com os quais a mesma deve
ser discutida.

Objetivos

a) Desenvolver a luta em todos os níveis contra os ataques burgueses em curso.

b) Retomar o debate programático no movimento de massas, enfrentando o rebaixa-


mento do último período.

Todos esses debates que necessitamos fomentar, seja sobre a conjuntura, a tática e a
estratégia; sobre o programa, etc., tem como objetivo avançar nas condições subjetivas para
a Revolução Brasileira. Aqui é importante resgatar o evidente descasamento entre a revolução
social e a revolução política em nossa história. Existiram os que agentes que quiseram incluir
nos programas da independência, ou da república, a melhoria nas condições de vida dos explo-
rados da terra, mas esses não tiveram a compreensão e força suficiente para se impor àqueles
que trabalharam para que as coisas mudassem para continuar como estavam.
Em termos comparativos, enquanto o processo de independência na maior parte das
26 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

colônias espanholas acabou também com a escravidão, no Brasil ainda convivemos por 66
anos com o sistema escravista legal após a independência. E a escravidão ainda persiste nas
relações de trabalho, sendo designadas pelo ministério público como “condições análogas à
escravidão”. As reformas regressivas, recentemente aprovadas, agravam tal situação.
O profundo rebaixamento programático representado pela hegemonia petista no movi-
mento operário, sindical e popular no Brasil, coadjuvado pelo PC do B e outros, que fez com
que muitos defendessem políticas compensatórias orientadas pelo Banco Mundial como se fos-
sem grandes conquistas, além de outros contrabandos reformistas, tem uma relação histórica
com os processos anteriormente citados e precisa ser debatido e superado.
Neste aspecto, não se tratou, como ainda pensam alguns, de erros cometidos pelo PT e alia-
dos, mas de um caminho conscientemente escolhido e resolutamente trilhado. O que o PT
fez no governo federal, é preciso dizer uma vez mais, já tinha feito em prefeituras e governos
estaduais, como demonstração à classe dominante de que o partido estava pronto para fazer
o serviço por ela esperado. Os efeitos aí estão e devem ser enfrentados. Parte dessa tarefa é a
reelaboração e defesa de um programa revolucionário, a ser conquistado pelo proletariado e
seus aliados na luta, posto que, o caminho da conciliação de classes, mais uma vez está pro-
vado, não serve a esse fim.

c) Disputar com a burguesia a bandeira nacionalista, desenvolvendo o nacionalismo


revolucionário.
A burguesia brasileira sempre esteve aliada, como sócia menor, às burguesias dos pa-
íses imperialistas. Assim como as demais burguesias do continente, é uma burguesia entre-
guista, submissa aos interesses estrangeiros, nada tendo de nacionalista, ao contrário, mantém
relações com as potências estrangeiras semelhantes às relações metrópole/colônia. No entan-
to, tem conseguido manter os setores nacionalistas, progressistas e revolucionários da nossa
sociedade na defensiva. Manipulando os símbolos nacionais, nos acusa de estarmos a serviço
de interesses alheios, tendo sucesso nesta manipulação. O patriotismo popular não está em
oposição ao internacionalismo proletário. Ao contrário, é sua condição, pois não é possível
defender os interesses das maiorias nacionais, sem defender que as riquezas do país devam
se desenvolver de acordo com os interesses dessas maiorias, composta pelo proletariado e
demais camadas exploradas do povo.

Governo Bolsonaro: corrupto, continuísta e reacionário


O atual governo, já em seus primeiros meses, encontra-se atolado em escândalos de
corrupção. O elemento de continuísmo, contudo, não fica apenas nesta questão. No que se
refere à política econômica, busca acelerar as reformas regressivas que caracterizaram os go-
vernos que o antecederam.
A novidade no governo Bolsonaro é seu caráter abertamente reacionário, nas questões
de gênero, etnia e comportamentais. Deve-se registrar que não são todos os membros do go-
verno que defendem tais posições. Se é uma manobra para confundir a oposição ou não, só o
tempo dirá.
O governo de Bolsonaro é entreguista e anti-nacional, como foram a maior parte dos
governos “brasileiros” até hoje. Pretende entregar ao setor privado o que resta do patrimônio
estatal, tornando o Brasil ainda mais subordinado aos interesses imperialistas.
A persistente crise do capitalismo, nos últimos trinta anos, desgastou em boa parte do
mundo os partidos burgueses, de todos os matizes. Buscando enfrentar esse novo cenário, os
estrategistas a serviço da ordem, passaram a apresentar candidaturas supostamente de fora da
política, de fora dos esquemas partidários tradicionais. Trump nos EUA, Macron na França, Ma-
cri na Argentina, entre outros, são expressões desse populismo de direita. Bolsonaro se elegeu
no Brasil nessa mesma onda.
O populismo de direita não nega os problemas que afligem o povo. Trump, por exemplo,
se elegeu afirmando que recuperaria os empregos dos estadunidenses. Bolsonaro tam¬bém
falou sobre o desemprego em sua campanha. Assim, a complexidade desse fenô-meno não
pode ser combatida com frases feitas.
“Documento base da campanha Brasil: Pela Segunda e Definitiva Independência” URC 27

Como já afirmamos, a construção de uma oposição classista e revolucionária ao governo


Bolsonaro, passa pela organização e mobilização das lutas de resistência em curso, bem como
da defesa de um programa que vá ao encontro das aspirações mais profundas da maioria do
povo. A campanha que nos propomos a realizar, deve servir a esse fim.

Como posso participar dessa campanha?


▪ Participando das lutas que estão ocorrendo contra as reformas regressivas (elimina-
ção de direitos sociais, privatizações, etc.). Organizando a luta por reformas que melhorem a
vida da maioria do povo (redução de jornada sem redução de salário, salário igual para traba-
lho igual, etc.).
▪ Organizando um grupo de estudo sobre a realidade brasileira. Indicamos a seguir um
conjunto de livros de autores que buscaram compreender o Brasil ao longo dos tempos. São in-
dicações feitas, entre outras fontes, a partir do livro de Nelson Werneck Sodré, O que se deve ler
para conhecer o Brasil. Por isso, o indicamos em primeiro lugar. São obras que, em sua maioria,
não devem estar disponíveis em livrarias, mas podem ser encontradas em bibliotecas, o que é
bom, para estimular a utilização desses espaços:

- Rebeliões da Senzala – quilombos, insurreições, guerrilhas (Clóvis Moura)


- Capítulos de História Colonial (Capistrano de Abreu)
- Conciliação e reforma no Brasil (José Honório Rodrigues)
- O Brasil desde 1980 (F.Luna e H.Klein)
- História da Nação latino-americana (Jorge Abelardo Ramos)
- Evolução Política do Brasil (Caio Prado Jr)
- Formação do Estado burguês no Brasil (Décio Saes)
- Modos de ver a Produção no Brasil (José Ricardo de Figueiredo)
- Quatro Séculos de Latifúndio (Alberto Passos Guimarães)
- Formação Histórica do Brasil (Nelson Werneck Sodré)
- A Presença dos Estados Unidos no Brasil (Moniz Bandeira)
- O Povo conquistará sua Verdadeira Independência (Pedro Pomar)
- O Poder do Macho (Heleieth Saffioti)
- A formação das almas (José Murilo de Carvalho)

▪ Criando cineclubes, para exibição de filmes sobre nossa realidade, seguidos de deba-
tes sobre o mesmo. Indicamos a seguir alguns filmes:

- Jango, de Silvio Tendler


- Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade
- Os militares que disseram Não, de Silvio Tendler
- Garotas do ABC, de Carlos Reichembach
- Um homem de moral, de Ricardo Dias
- Linha de Montagem, de Renato Tapajós
- Pra frente Brasil, de Roberto Farias
- Eles não usam Black-tie, de Leon Hirszman
- Jânio a 24 quadros, de Luiz Alberto Pereira

▪ Criar debates, artigos, estudos sobre a questão do imperialismo e sua dominação na


América Latina, e esclarecer como o Brasil está submetido à mesma lógica do restante dos pa-
íses latino-americanos de fonte de superexploração da mão de obra e extração de superlucros.

Março/2019
Em 2019, a URC juntamente com a Célula Comunista de Trabalhadores (CCT) e
28 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Manifesto da campanha
BRASIL: PELA SEGUNDA E DEFINITIVA INDEPENDÊNCIA

A proclamação da independência do Brasil está prestes a com-


pletar 200 anos. Nunca o Brasil esteve tão ameaçado como nesse
momento. O saque das riquezas naturais, dos recursos energéticos
e do trabalho do nosso povo parece seguir sem freios. Os direitos so-
ciais, a previdência social e a legislação de proteção ao trabalho estão
em processo de extinção. A política externa se tornou um apêndice da
Casa Branca e do Departamento de Estado estadunidense. Petróleo,
Amazônia, minérios, tecnologia nacional, tudo está aberto à sanha do
capital estrangeiro e seus associados locais.
O resultado da política entreguista, antitrabalho e antipopular é a
explosão do desemprego e a deterioração das condições de vida do
nosso povo. Doenças outrora erradicadas retornam, como o saram-
po e a poliomelite. O Brasil retorna para o mapa da fome da ONU. A
concentração de renda é cada vez maior, com os ricos cada vez mais
ricos e os pobres cada vez mais pobres. As cenas de miséria nas ruas
das grandes cidades são cada vez mais visíveis.
A política econômica de Bolsonaro-Guedes entrega os recursos
da educação e saúde do povo para os especuladores financeiros. En-
quanto há corte dos gastos sociais, os juros e os encargos da dívida
são pagos em dia e de maneira crescente, chegando a quase um
trilhão de reais em 2018. É uma política que pune o trabalho e a pro-
dução e favorece o enriquecimento de uns poucos. Esta, porém, não
é uma política exclusiva da dupla Guedes/Bolsonaro. O modelo neoli-
beral imposto nos fins da década de 80 não foi combatido nos diversos
governos desde então.
A privatização dos serviços públicos, dos ativos da Petrobras e do
setor elétrico tem gerado ganhos para os mesmos, a grande finança
internacional e local. A venda dos ativos públicos se dá de maneira
suspeita, como mostra o caso da BR Distribuidora. Para os consumi-
dores serviços mais caros, para os compradores das empresas priva-
tizadas e seus intermediários mais oportunidades de ganho fácil.
Privatização, prioridade absoluta aos ganhos da alta finança e ar-
rocho estão desarticulando a indústria brasileira. Empresas industriais
fecham as portas, inclusive filiais de multinacionais. Em 1993, 63% da
pauta de exportações brasileiras era de bens manufaturados. Em 2018,
66% das exportações foram em produtos in natura ou com pouco be-
neficiamento. O Brasil se converte em exportador de soja em grão,
“Manifesto da campanha Brasil: Pela Segunda e Definitiva Independência” URC 29

petróleo cru e minério bruto. A indústria que é o setor que oferece mais
e melhores empregos começa a desaparecer. A exploração de recur-
sos naturais sem controle tem um alto custo social e ambiental, sendo
Brumadinho um caso exemplar.
Em prol do que há de mais atrasado no agronegócio, o governo
descumpre e estimula o descumprimento da legislação ambiental. A
devastação cresce exponencialmente. Ameaça entregar as terras indí-
genas à exploração das mineradoras estrangeiras.
O objetivo dos círculos da alta finança, do capital estrangeiro, no-
tadamente estadunidense, e das classes dominantes é transformar o
país em mero produtor de bens agrícolas e minerais e fornecedor de
mão-de-obra barata. Destruir o sistema educacional, universitário e de
ciência e tecnologia é central para a consecução desse objetivo.
Para impor as políticas neoliberais, há um recrudescimento da
repressão às lutas populares. Militantes sociais são encarcerados. Ma-
nifestações são reprimidas a bombas e tiros. A violência policial perde
qualquer limite, assumindo um caráter de genocídio. Lideranças in-
dígenas, de trabalhadores rurais, negros e pobres são assassinados
cotidianamente.
O governo Bolsonaro é um governo de traição nacional! Entrega
as riquezas do Brasil. Rebaixa a força de trabalho e desarticula o mer-
cado de trabalho em nosso país. Entrega o comando forças armadas
ao Pentágono, como denota a nomeação do Brasil como aliado extra-
-OTAN. Entrega a Base de Alcântara. Afasta o Brasil dos seus parcei-
ros naturais, inviabilizando a integração latino-americana e deixando
de lado a parceria BRICS. Estabelece acordos danosos à economia
nacional, como o acordo Mercosul e União Europeia e como se anun-
cia acordo similar com os EUA.
A luta pela soberania nacional, pelos direitos sociais e do trabalho
é urgente e cada vez mais necessária. Os frutos do trabalho dos brasi-
leiros devem ser revertidos em benefício dos brasileiros. O povo brasi-
leiro deseja viver em paz no mundo, respeitando a autodeterminação
de todos os povos. Quer emprego e condições dignas de vida para os
seus filhos. Os brasileiros querem acesso à cultura e à educação, ter
direito à livre criação artística, científica e filosófica. Quer viver em um
país diverso, em que as raízes africanas e dos povos originários sejam
respeitadas e cultuadas. Quer ter pleno direito à sua identidade, onde
ser Nordestino, Amazônida, Paulista, Gaúcho, Mineiro ou Carioca seja
expressão da brasilidade, reduzindo as desigualdades regionais.
A independência não foi para os trabalhadores e o povo. É hora
do povo brasileiro tomar o seu destino em suas mãos. É chegada a
hora da Segunda e Definitiva Independência!
30 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Texto do material produzido pela campanha em defesa do Sistema Único de


Saúde (SUS) realizado pelo conjunto dos grupos de estudo da campanha no
início de 2021. Foram realizadas panfletagens e colagens em diversas cidades
do país como São Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Juiz de Fora (MG), Vitória (ES),
Rio de Janeiro (RJ), São José dos Campos (SP), entre outras.

Vivemos uma triste realidade: o Brasil está em ritmo acelerado


ultrapassando a terrível cifra de 230 mil mortes pela pandemia do novo
coronavírus. Essa situação colocou em primeiríssimo plano a impor-
tância do direito à saúde como uma necessidade básica para a exis-
tência humana. Principalmente para aqueles que não podem pagar
por serviços privados, que são a imensa maioria de nosso povo, é
indispensável a existência de um sistema público de saúde inteiramen-
te voltado aos interesses dos trabalhadores, orientado por uma lógica
coletiva, pública e acessível a todos.
O Sistema Único de Saúde (SUS) surgiu de lutas populares que de-
mandavam por outro modelo de prestação de saúde. Em suas propos-
tas e objetivos iniciais estavam incluídas todas as qualidades que enume-
ramos acima. De fato, se não houvesse o SUS e os serviços realizados
com grande sacrifício por seus trabalhadores, certamente a tragédia que
estamos vivendo seria ainda pior, porém, infelizmente, o sistema que
existe hoje tem se mostrado incapaz de cumprir plenamente sua missão.
“A Saúde Pública que temos e a que precisamos” URC 31

Isso porque o que temos atualmente é algo muito distante daquilo


que propunham os idealizadores do Sistema Único de Saúde: é ape-
nas uma parte distorcida dessa proposta, aquela que o capitalismo
brasileiro e seu Estado foram capazes de realizar. Assim, a privatiza-
ção foi imposta ao SUS por meio das chamadas Organizações Sociais
de Saúde (OSSs), empresas privadas que atualmente abocanharam
pedaços do sistema público. Além de seu orçamento também estar
sendo reduzido anualmente pelos diferentes politiqueiros que coman-
dam o Estado, com a desculpa de que seu financiamento estaria sen-
do “responsável” pelo rombo nas contas públicas – uma piada aos
ouvidos do povo!
As consequências são evidentes: o sistema de saúde não conse-
gue dar uma resposta satisfatória em situações de crise radical como
a que vivemos. Daí os problemas com os colapsos das redes hospi-
talares, que não são capazes de receber todos os enfermos nos mo-
mentos críticos da pandemia, devido à falta de leitos em enfermarias
e UTIs. Vemos assim um Estado impotente diante dessas deficiências,
mesmo com os bilhões de reais liberados supostamente para o en-
frentamento da pandemia.
Outro exemplo é a situação de milhares de trabalhadores da rede
pública de saúde da cidade do Rio de Janeiro, que estão desde junho
denunciando irregularidades no pagamento de seus salários. Em no-
vembro, mais de 16 mil trabalhadores não receberam o salário, nem
devem receber o pagamento de dezembro e o décimo terceiro; entre
eles, estão os que trabalham nos hospitais de referência no tratamento
do novo coronavírus. Segundo estimativas, o valor referente aos atra-
sos pode chegar a R$ 90 milhões.
Em Santa Catarina os trabalhadores do SAMU enfrentam situação
semelhante: há meses não recebem corretamente os salários que de-
veriam ser pagos pela OZZ Saúde, empresa que administra o serviço
no estado. Em São Paulo, desde o início da pandemia, os trabalhado-
res estão realizando protestos para denunciar a ausência de condições
básicas para o exercício de suas funções, entre elas a falta de equipa-
mentos de proteção necessários.
Para colocar um fim nessa inaceitável situação e tornar realidade
um sistema de saúde de qualidade e inteiramente a serviço do povo, de-
fendemos a total estatização do sistema de saúde. A vida das pessoas
não pode ser objeto da especulação e do lucro das empresas do setor.
É urgente que os trabalhadores se empenhem em uma luta que
rompa de uma vez por todas com as amarras de nossa dependência
e atraso, transformando profundamente as bases de nossa sociedade.
Vamos à luta pela segunda e definitiva independência nacional!
Por um Sistema de Saúde que seja, de fato, único, público e decente!
32 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

O XX CONGRESSO DO PCUS E A
CRISE DO MOVIMENTO COMUNISTA
por Icaro Leal Alves

1. As teses revisionistas de Nikita Khrushchev


Durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado em Mos-
cou, em fevereiro de 1956, o secretário-geral Nikita Khrushchev apresenta uma série de teses
novas, que representaram uma verdadeira ruptura com a antiga ortodoxia soviética; ao mesmo
tempo, redige um Relatório Secreto contra o seu antecessor J.V. Stalin. Os acontecimentos que
se sucedem a esse Fórum precipitam os países socialistas do Leste europeu numa crise polí-
tica e repercutem nos principais partidos comunistas do mundo capitalista. Finalmente, no final
daquele ano, tais eventos reverberam no Partido Comunista do Brasil.[1] Apresentemos agora
as resoluções do referido congresso.
Primeiro: Khrushchev afirmou que as guerras imperialistas não eram mais inevitáveis.
Segundo ele, a tese, elaborada por Lenin, que permaneceu vigente durante todo o período de
Stalin, correspondia a condições específicas da época: quando “o imperialismo era um sistema
que dominava em todo o mundo” e “as forças sociais e políticas não interessadas na guerra
eram débeis, estavam insuficientemente organizadas e não podiam, por isto, obrigar os imperia-
listas a renunciar à guerra”. Ademais, ao se analisar a questão – ainda para Khrushchev – toma-
-se, em geral, “unicamente a base econômica das guerras sob o imperialismo”. Isso não basta:
pois “A guerra não é somente um fenômeno econômico. Que haja ou não guerra depende em
grande medida da correlação de forças de classe, das forças políticas, do grau de organização

[1] O PCB chamou-se Partido Comunista do Brasil desde sua fundação em 1922 até o ano de 1961, quando mudou seu nome para Partido Comunista Brasileiro.
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 33

e da vontade consciente dos homens”[2].


Porém, os cálculos de Khrushchev sobre a superação das guerras imperialistas guardam
uma flagrante superestimação das forças da paz. “Agora – ele diz – existem poderosas forças
sociais e políticas que dispõem de grandes meios para impedir o desencadeamento da guerra
pelos imperialistas e para – se estes tentarem iniciá-la – dar aos agressores uma réplica demo-
lidora, frustrando os seus planos aventureiros.”[3] Ao mesmo tempo, as forças dos elementos
“guerreiros” são subestimadas, apostando-se prematuramente no fracasso da política de “posi-
ção de forças”[4], cara a certos círculos de Washington. Ele afirma que essa política, “não pode
fazer pressão sobre os países contra os quais foi dirigida” e “fracassou”[5].
Por trás dessas teses encontra-se o desejo de reverter a política do Movimento Comu-
nista Internacional em favor de uma aproximação EUA-URSS. Ele o afirma com todas as letras:
“Queremos ter a amizade e a colaboração com os Estados Unidos na luta pela paz e a seguran-
ça dos povos, bem como nas esferas econômica e cultural”[6]. Khrushchev busca conquistar o
apoio dos Estados Unidos na redivisão do mundo e, principalmente, na consolidação sobre sua
própria esfera de influência de um sistema de relações semelhante ao americano. Isso se verifi-
ca em sua teoria das “condições naturais”. A política dos países capitalistas industrializados foi,
primeiro, a de transformar os demais em colônias. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando
isso se tornou impossível, buscaram então neutralizar os esforços de industrialização destes
países; valendo-se da lei das vantagens comparativas do comércio internacional para conven-
cer esses países a abrirem seus mercados para os produtos industriais e os capitais daqueles
países economicamente avançados[7]. Nikita Khrushchev apresenta um modelo semelhante
para os países socialistas.
Segundo o secretário-geral do PCUS: “Nos dias de hoje já não há necessidade de que
cada país socialista desenvolva obrigatoriamente todos os ramos da indústria pesada, como
teve de fazer a União Soviética, que durante muito tempo foi o único país do socialismo e se
encontrava sob o cerco capitalista. Agora que existe a potente comunidade dos países do so-
cialismo e sua capacidade defensiva e sua segurança se apoiam no poderio industrial de todo
o campo socialista, cada país europeu de democracia popular pode especializar-se no desen-
volvimento dos ramos da indústria e na produção dos artigos para os quais possua condições
naturais e econômicas mais favoráveis.”[8] O líder soviético argumentava que assim ficavam
“disponíveis importantes meios que possam destinar-se a fomentar a agricultura e a indústria
leve”[9]. Tratava-se, pois, de garantir, por exemplo, que a Polônia e a Albânia fornecessem,
respectivamente, carvão e cítricos para os interesses do Kremlin.
De acordo com tal orientação, foram reestruturados os organismos de intercâmbio eco-
nômico exterior da URSS, dentro dos marcos do monopólio estatal[10]. A mudança que mais
nos interessa aqui é aquela que se opera nas relações com os países do COMENCON[11]: 1)
a política de acordos bilaterais entre os Estados – vigente até 1958 – foi alterada por uma polí-
tica de fixação dos preços com base nos praticados no mercado mundial[12], reproduzindo, em
certo nível, a prática capitalista das “trocas desiguais”; 2) a concepção de que cada país deveria
desenvolver uma base industrial completa é substituída, a partir da década de 60, sob pressão
soviética, por uma política de especialização, coordenada pelo Banco Internacional para a Co-
operação Econômica (BICE), um organismo internacional para integração/especialização[13].
Para consolidar a nova política (na verdade, um novo sistema) haviam duas tarefas a
cumprir: 1) no campo socialista, a estabilidade interna para uma nova casta privilegiada; 2) no
[2] KRUSHCHEV. Informe do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Voz Operária – Nº 356 – Rio de Janeiro 10/3/1956 (Suplemento Especial), p.3.
[3] KRUSHCHEV. Ibidem, p.3.
[4] “Posição de forças” era a expressão soviética para a “linha dura” dos estrategistas americanos, liderados pelo secretário de Estado Dean Acheson. Essa política consistia
num elevado orçamento militar e numa orientação menos tolerante para com a dissidência interna. (ver CHOMSKY, Noam. A política externa dos Estados Unidos da Segunda
Guerra Mundial a 2002. – São Paulo: Editora Peres, 2005. P.8)
[5] KRUSHCHEV. Ibidem, p.2.
[6] KRUSHCHEV. Ibidem, p.3.
[7] BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Prefácio à Segunda Edição. In BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O ‘milagre alemão’ e o desenvolvimento do Brasil (1949-2011). – 2ª ed.
rev. e ampliada – São Paulo: Editora Unesp, 2011. P.19-20.
[8] KRUSHCHEV. Op. Cit., p.1.
[9] KRUSHCHEV. Ibidem, p.1.
[10] FERNANDES, Luís. URSS, ascensão e queda: a economia política das relações da URSS com o mundo capitalista – 2ª ed. – São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1992.
P.133.
[11] Conselho para Assistência Econômica Mútua, fundado em 1949, entre a URSS e as Democracias Populares do Leste Europeu.
[12] A rigor, os países socialistas não adotaram os mesmos preços do mercado mundial, mas uma média aritmética desses (FERNANDES. Ibidem, p.135.)
[13] FERNANDES. Ibidem, p.135-6.
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campo capitalista, conter as forças revolucionárias que impossibilitavam o entendimento entre


as duas superpotências para a “partilha do mundo”.
O terror político na URSS equivaleu a uma “repressão [...] exercida pela primeira vez
na história no interesse das massas populares para domar as classes exploradoras”. Desde
1933, “os esforços do partido e do povo da URSS foram levados ao extremo no combate pela
industrialização e pela defesa contra a ameaça fascista”. Todavia, os sucessos na construção
do socialismo criaram um clima no qual era impossível se opor as “infrações ao centralismo de-
mocrático e a certas decisões arbitrárias, nas quais Stalin se tornava culpado”[14] É necessário
notar, porém, que “foram essencialmente os comunistas as vítimas de erros de outros comunis-
tas”[15]. O lugar mais perigoso para se estar durante o terror stalinista era, portanto, na própria
hierarquia partidário-estatal.
Khrushchev precisava criar então um clima mais ameno, livre das constantes campanhas
de retificação e dos expurgos que vitimava e sobretudo ameaçava os privilégios da casta buro-
crática. Ele declarou então, no Informe Secreto, que Stalin inventou sua teoria, segundo a qual,
“a medida em que vamos avançando ao socialismo, a luta de classes deve, presumivelmente,
agudizar-se”[16], para “preparar o Partido e a N.K.V.D. para o emprego do terror em massa
quando já as classes exploradoras haviam sido liquidadas em nosso país”[17]. Khrushchev não
vê, ou busca enublar a realidade do ressurgimento constante de novos elementos capitalistas
soviéticos.
Finalmente, em seu Informe ao XX Congresso, Khrushchev apresenta sua tese sobre a
via pacífica ou parlamentar ao socialismo. Ele nega a inevitabilidade da guerra civil no processo
de transição ao socialismo: “É plenamente possível que as formas de transição ao socialismo
sejam cada vez mais variadas. Certamente não é obrigatório que a realização destas formas
esteja unida, em todas as condições à guerra civil”. E: “Dizer que reconhecemos a violência e a
guerra civil como o único caminho de transformação da sociedade, não corresponde à realida-
de”[18]. Buscando a aproximação e a amizade da superpotência americana, Khrushchev busca
liquidar a ameaça representada pelo movimento revolucionário ao bloco capitalista americano
e integrar aquele nos regimes parlamentares deste. Assim, contradizendo o pensamento mar-
xista, ele nos diz que a classe operária “pode derrotar as forças reacionárias, antipopulares,
conquistar uma sólida maioria no Parlamento e transformá-lo de órgão da democracia burguesa
em instrumento da verdadeira vontade popular”[19]. Tratava-se da socialdemocratização dos
partidos comunistas do mundo capitalista e até de sua integração aberta na socialdemocracia.
“Reveste-se de extraordinária transcendência – dizia Khrushchev – o problema da unidade da
classe operária”; e ele entende essa unidade como “a unidade de ação de seus partidos políti-
cos comunistas, socialistas e outros partidos operários”[20].
Chegamos aqui a um esquema básico daquilo que chamamos de revisionismo moder-
no ou Khrushchevismo: a busca pela divisão do mundo entre as duas superpotências (EUA e
URSS); a eliminação da teoria e da política de luta de classes sob o socialismo; e a substituição
da luta revolucionária pela via pacífica ao socialismo no mundo capitalista.

2. O revisionismo moderno e as contradições no campo socialista


Para Jean Baby, depois do XX Congresso, o movimento comunista internacional foi sa-
cudido por uma tempestade devastadora. Nos países socialistas “as revelações do XX Con-
gresso iriam provocar explosões dramáticas”[21]. Dentro da União Soviética a resistência foi
pequena. Manifestações pró-Stalin foram reprimidas com numerosas vítimas na Geórgia. Po-
rém, de modo geral, o problema ficou restrito aos intelectuais e a direção do Partido, onde
existiam homens pouco inclinados a condenar o culto à personalidade de Stalin. Já nos países
de democracia popular, ninguém havia sido preparado para essas contestações e muitos ele-

[14] MARTENS, Ludo. A URSS e a Contrarrevolução de Veludo – São Paulo: Raízes da América, 2016. p. 28.
[15] MARTENS. Ibidem, p.28-9.
[16] KRUSHCHEV. Informe secreto. – Buenos Aires: Editorial La Causa, 1956. P.38.
[17] KRUSHCHEV. Ibidem, p.39.
[18] KRUSHCHEV. Informe do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Op. Cit. P.3.
[19] KRUSHCHEV. Ibidem, p.3.
[20] KRUSCHEV. Ibidem, p.2.
[21] BABY, Jean. As Grandes Divergências do Mundo Comunista. – São Paulo: Editora Senzala, s/d. p.18-19
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 35

mentos de sua direção eram contrários as novas ideias e as novas práticas.[22] O quadro era
agravado pelo método utilizado por Khrushchev, que apresentou seu relatório em uma sessão
a portas fechadas e impedira que esse fosse publicado pela imprensa soviética.[23]
Baby considera que o Relatório Secreto não forneceu “explicações satisfatórias sobre as
condições nas quais o “culto de personalidade” de Stalin havia podido desenvolver-se e resultar
nos abusos que acabavam de ser revelados”[24]. Mesmo um autor como Elleinstein, segundo
o qual, “O mérito de Kruchtchev perante a história é imenso”, afirma que: “devemos interrogar-
-nos sobre o modo como procedeu”, completando que, “o relatório levantava mais problemas
do que resolvia”. E diz ainda: “Ao ‘foi graças a Stalin’ opunha-se, como situando-se no mesmo
plano, na mesma estrutura, o ‘foi por culpa de Stalin’”[25]. No XX Congresso, Khrushchev afir-
mou: “Durante todos esses anos, o Partido manteve desfraldada a grande bandeira do imortal
Lenin. A fidelidade ao leninismo é a base de todos os êxitos de nosso Partido”[26]. Nenhuma
palavra sobre o papel de Stalin na manutenção dessa fidelidade. Ele considera que Stalin de-
sempenhou um papel positivo na luta contra os trotskistas, direitistas e nacionalistas burgueses
durante os anos 1920[27], mas seu papel encerra-se aí. A se julgar pelo informe secreto, todas
as realizações na edificação do socialismo se dão a despeito de uma ditadura tão absoluta
quanto a de Stalin.
Segundo Baby, os chineses mostraram-se mais prudentes que os soviéticos[28]. O fato
é que o Partido Comunista da China foi o primeiro a apresentar uma interpretação própria do
problema. Em abril de 1956, o Birô Político do PC da China publica Sobre a Experiência Histó-
rica da Ditadura do Proletariado. Ao tratar do papel de Stálin, afirma-se que ele “cometeu certos
erros sérios nos últimos anos de seu trabalho”[29]. Porém, os chineses reconhecem em Stalin
uma parcela significativa dos méritos nas realizações do socialismo na URSS. “Na luta para rea-
lizar os princípios leninistas o Comitê Central do PCUS, por sua firme direção, alcançou grande
mérito, e neste mérito uma parte destacada coube a Stalin”[30]. No XX Congresso do PCUS,
Mikoian foi o único orador a pronunciar o nome de Stalin.[31] É uma postura bem diferente da-
quela assumida pelos comunistas chineses, que consideram necessário até mesmo continuar a
estudar suas obras: “Com relação a isto é preciso salientar que os trabalhos de Stalin devem
ser ainda como antes, seriamente estudados e que nós devemos aceitar, como um legado his-
tórico importante, tudo o que há de valioso neles, especialmente aqueles muitos trabalhos em
que ele defendeu o leninismo e, resumiu corretamente a experiência da construção da União
Soviética. Não fazer isso, seria um erro. Mas há duas maneiras de estudar essas obras, a for-
ma marxista e a forma doutrinária. Algumas pessoas tratam os escritos de Stalin de uma forma
doutrinária. O resultado é que não podem analisar e ver o que é correto e o que não é correto,
e mesmo aquilo que é correto é tratado como uma panaceia e aplicado indiscriminadamente.
Inevitavelmente, essas pessoas cometem erros.”[32]
O PC chinês elogia, entretanto, as resoluções soviéticas contra o culto à personalidade.
“A luta contra o culto à personalidade, lançada pelo XX Congresso é uma grande e corajosa luta
dos comunistas e do povo soviético para remover os obstáculos ideológicos que se antepõem
ao seu avanço”. E pretendem lutar eles mesmos contra esse culto. “O Partido Comunista da
China tem lutado constantemente nas suas fileiras revolucionárias contra a exaltação da pessoa
e contra o heroísmo individualista, porque ambos significam isolamento das massas”[33]. Mas é
inegável que as divergências entre o PCC e o PCUS começavam a se desenrolar. Khrushchev
rejeitara a teoria stalinista da luta de classes sob o socialismo. Os chineses afirmaram, “Algu-
mas ideias ingénuas parecem sugerir que não há mais contradições numa sociedade socialis-
ta”[34] Não é uma crítica aberta, todavia, demonstra como os chineses possuíam uma visão
[22] ELLEINSTEIN, Jean. História da U.R.S.S., vol. 4. A U.R.S.S. Contemporânea. – Lisboa, Editora Europa-América, 1976. P. 99
[23] ELLEINSTEIN, Jean. Ibidem. P.96
[24] BABY, Jean. Op. Cit. P.18-19
[25] ELLEINSTEIN, Jean. Ibidem. P.96, 99 e 97.
[26] KRUSCHEV. Informe ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Op. Cit. P.1
[27] KRUSCHEV. Op. Cit. 1956. P.16-17
[28] BABY, Jean. Op. Cit. P.15
[29] Birô Político do Partido Comunista da China. Sobre a Experiência Histórica da Ditadura do Proletariado. Voz Operária. – Nº 392 – Rio de Janeiro – 17/11/1956, p.4
[30] Birô Político do Partido Comunista da China. Ibidem. P.4
[31] ELLEINSTEIN, Jean. Op. Cit. P.96
[32] Birô Político do Partido Comunista da China. Op. Cit. P.5
[33] Birô Político do Partido Comunista da China. Ibidem. P.4
[34] Birô Político do Partido Comunista da China. Ibidem. P.4
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muito menos idílica do socialismo.


O desacordo chinês com o Khrushchevismo fica mais evidente no discurso de Mao Tsé-
-Tung na Sessão Plenária do Oitavo Comitê Central do PCC de novembro de 1956. Nele, o tra-
tamento dado pelos soviéticos a questão de Stalin é abertamente criticado, assim como a teoria
da via pacífica ao socialismo.
Sobre a primeira problemática Mao afirma: “Em minha opinião, há duas ‘espadas’: uma é
Lenin e a outra Stalin. A espada Stalin foi agora abandonada pelos russos. Gomulka e algumas
pessoas da Hungria empunharam-na para apunhalar a União Soviética e opor-se ao chamado
Stalinismo. Os Partidos Comunistas de muitos países europeus também criticam a União Sovi-
ética, sendo Togliatti o seu chefe. Os imperialistas também utilizam esta espada para chacinar
o povo. Dulles, por exemplo, brandiu-a durante algum tempo. Esta espada não foi aproveitada,
foi desperdiçada. Nós, os chineses, não a abandonámos. Em primeiro lugar, protegemos Stalin
e, em segundo lugar, criticamos, ao mesmo tempo, os seus erros e escrevemos o artigo Sobre
a experiência histórica da ditadura do proletariado. Ao contrário de algumas pessoas que tenta-
ram difamar e destruir Stalin, nós estamos a agir de acordo com a realidade objetiva.”[35]
Sobre a segunda problemática, suas palavras não são menos diretas: “Quanto à espada
de Lenin, não será que ela foi também, em certa medida, abandonada por alguns dirigentes
soviéticos? Em minha opinião, ela foi em grande medida abandonada. A Revolução de Outubro
ainda é válida? Ainda pode servir de exemplo para todos os países? O relatório apresentado
por Khrushchev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética diz que é possível
atingir o poder de Estado pela via parlamentar, ou seja, os países já não precisam de aprender
com a Revolução de Outubro. Uma vez aberta esta porta, o Leninismo é praticamente rejeita-
do.”[36]
Enquanto as divergências com os chineses se tornavam evidentes, os soviéticos tratavam
de reabilitar os iugoslavos. Em 1948, o Kominform criticou o partido iugoslavo pela passividade
diante do crescimento dos elementos capitalistas no país e o acusava de posições nacionalistas
burguesas. Tito desencadeia então uma depuração maciça contra todos os elementos favoráveis
a resolução do Birô de Informações, entre os quais o general Jovanovic, chefe do Estado-maior
do exército durante a resistência antifascista. Foram 100 mil a 200 mil os presos e executados.
[37] Entre 1950 e 1953 vieram as reformas econômicas: logo após a libertação da Iugoslávia do
domínio alemão, o regime de Tito liquidou a propriedade latifundiária e da Igreja, mas não a dos
camponeses ricos, que tiveram sua pose simplesmente restringidas.[38] Em 1953, Tito reintro-
duziu o direito de contratação de operários rurais e o comércio de terra.[39] Ele se manifestava
contra os kolkhozes soviéticos, afirmando que, nestes, os camponeses viviam pior do que nos
países capitalistas. Em uma entrevista, comenta acerca das impressões dos comunistas iugosla-
vos sobre a URSS, nos anos de 1930: “As aldeias eram pobres e as cooperativas, ou kolkhozes,
muito tristes. No nosso país, por muito atrasado que a agricultura estivesse, ela parecia melhor
sob todos os aspectos, enquanto o nível de vida dos camponeses era superior. Em muitas coisas
se desiludiram, mas disse-lhes que não deviam falar disso na Iugoslávia.”[40]
Em 1950, Tito introduz o sistema de autogestão operária nas fábricas, afirmando que,
“ao aceitar os meios de produção das mãos estatais, ainda não se cumpriu o lema de ação
do movimento operário ‘as fábricas para os operários’”, pois, prossegue: “A propriedade es-
tatal constitui a forma mais baixa de propriedade social, e não a superior, como os dirigentes
da URSS a consideram”[41]. Para Ludo Martens, com essas políticas “as medidas socialistas
adotadas pela Iugoslávia antes de 1948 foram rapidamente liquidadas”. Um correspondente do
Daily Mail, Alexander Clifford observando a Iugoslávia da época, considerou que o país ficara
menos socializado que a Grã-Bretanha.[42]

[35] MAO, Tsé-Tung. Discurso Pronunciado na Segunda Sessão Plenária do Oitavo Comitê Central do Partido Comunista da China. In____________. Obras Escolhidas de
Mao Tsé-Tung, vol. 5. – 3º ed. – São Paulo: Editora Alfa-Omega, 2012. P.407-408.
[36] MAO. Ibidem. P.408
[37] MARTENS, Ludo. Sobre Alguns Aspectos da Luta Contra o Revisionismo. In_____________. Balanço do Colapso da URSS e outros escritos. – São Paulo: Editora Raízes
da América, 2016. P.198-199
[38] TITO, Josip Broz. As Fábricas para os Operários. In __________. Documentos, Discursos e Mensagens. – Lisboa: Publicações Europa América, 1977. P.42
[39] MARTENS, Ludo. Sobre Alguns Aspectos da Luta Contra o Revisionismo. Op. Cit. P.200
[40] TITO, Josip Broz. A Revolução foi para mim o impulso de toda vida (Entrevista à Radiotelevisão de Belgrado). Op. Cit. P.19
[41] TITO, Josip Broz. As Fábricas para os Operários. Op. Cit. P.39 e 52
[42] MARTENS, Ludo. Sobre Alguns Aspectos da Luta Contra o Revisionismo. Op. Cit. P.202
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 37

Estudando a experiência da conformação de Comitês de Fábrica e sua posterior subor-


dinação ao controle planificado durante a Revolução de Outubro, Charles Bettelheim analisa:
“[...] ao mesmo tempo em que cresce o número dos comitês de fábrica, cada um deles tende a
multiplicar suas prerrogativas e a tratar cada fábrica como uma unidade de produção indepen-
dente – propriedade coletiva de seus próprios trabalhadores –, determinando por si mesmo o
que produz, a quem vende e a que preço, isto quando a dominação social da classe operária
sobre os meios de produção exigiria que os poderes atomizados e contraditórios desses comi-
tês fossem subordinados a um fim político comum.”[43] Se referindo diretamente a experiência
iugoslava, sentencia: “a autonomia concedida às empresas do setor público, levada além de
certo ponto, conduz ao domínio do mercado sobre o desenvolvimento econômico”. Então, a
partir desse ponto, “as empresas, embora pertencentes ao Estado, funcionam como empresas
capitalistas que se desenvolvem, entram em estagnação ou até abrem falência, conforme sua
“rentabilidade” própria”[44]. Para Bettelheim, “a economia deste país deixou de ser verdadei-
ramente planificada. No caso jugoslavo existe uma econômica de mercado à qual se sobrepõe
uma planificação ‘indicativa’”[45].
Ao fim de vinte anos, mesmo Tito se veria obrigado a admitir o retorno das relações ca-
pitalistas sobre a socapa da autogestão operária. Porém, buscando dissimular seu alcance e
atribui-lo a meras deformações no sistema socialista: “Determinadas medidas legais que ti-
nham por finalidade libertar as organizações de trabalhadores da ingerência direta dos fatores
alheios a elas foram aproveitadas, aqui e ali, para obter uma autonomia da economia na qual o
poder clássico do aparelho político seria substituído por novos grupos e estruturas tecnocrato-
-burocráticos e manipuladores”.[46]
Em junho de 1955, Khrushchev tratou de reabilitar os iugoslavos e ao encerrar o XX Con-
gresso recebeu em Moscou uma delegação iugoslava chefiada pessoalmente por Tito.[47]
Em 1956, Khrushchev adotou certas medidas de liberalização, limitando os poderes da
polícia política e libertando e reabilitando presos políticos.[48] Tais medidas são adotadas tam-
bém nos países do Leste da Europa. Em março, Lazlo Rajk, ex-Ministro das Relações Exterio-
res da Hungria, e seus partidários, executados nos julgamentos de 1949, são postumamente
reabilitados. Em abril, 30 mil presos políticos são liberados na Polônia.[49] Nesses países,
porém, o socialismo era ainda recente, as antigas classes dominantes não haviam perdido toda
influência e contavam com a prontidão da propaganda ocidental para explorar as debilidades
da situação através das atividades da Rádio Europa Livre.[50] Existiam ainda as dificuldades
econômicas, como o desabastecimento de mercadorias e problemas em aumentar os padrões
de vida dos operários, fruto de um planejamento econômico dogmático, que não levava em
conta as reais possibilidades dos dois países.[51] Nessas condições, em Poznan, na Polônia,
em junho, estourou a primeira rebelião.
Perseguindo as tropas alemães, o Exército Vermelho libertou uma série de países do
Leste da Europa da ocupação nazista. A presença das forças armadas soviéticas facilitou a
eliminação dos capitalistas e latifundiários e a instauração do socialismo. Depois da liquidação
do nazismo, as potências ocidentais voltam todos os seus esforços para o enfrentamento contra
a União Soviética. Stalin concentra suas atenções nos problemas de segurança soviética, inte-
grando uma série de territórios reclamados pela Polônia e Romênia, pela Finlândia e o Japão,
assim como os países Bálticos. Desde o fim da guerra, a direita desses países desenvolvia
campanhas nacionalistas contra o socialismo.[52]
Surgiram as primeiras divergências entre poloneses e soviéticos quando, em 1947, os
primeiros se vêm forçados a aumentar o tempo de trabalho dos mineiros, para atender aos acor-
[43] BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na União Soviética: primeiro período (1917-1923). – 2º ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. P.133
[44] BETTELHEIM, Charles. A Planificação Socialista da Economia. – Lisboa: Edições 70, 1975. P.16
[45] BETTELHEIM,Charles. Ibidem. P.8
[46] TITO, Josip Broz. Só o Sistema Social que Conduz à Libertação do Trabalho e do Homem tem uma Perspectiva Real. Op. Cit. P.60
[47] Declaração Conjunta Iugoslava-Soviética sobre as relações entre a União dos Comunistas Iugoslavos e o Partido Comunista da União Soviética. Voz Operária – Nº 372
– Rio de Janeiro – 30/06/1956. P.2
[48] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.96
[49] BABY, Jean. Op. Cit. P.20
[50] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.99
[51] GOMULKA. Informe no 8º Plenum do C.C. do Partido Operário Unificado Polonês. Voz Operária – Nº 391 – Rio de Janeiro – 10/11/1956. P.4 & C.C. do Partido Operário
Socialista Húngaro. As Causas dos Acontecimentos da Hungria (parte I). Voz Operária – Nº 400 – Rio de Janeiro – 19/01/1957. P.4
[52] MARTENS, Ludo. Sobre Alguns Aspectos da Luta Contra o Revisionismo. Op. Cit. P.195-196
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dos comerciais entre os dois países.[53] Em 1956, as dificuldades econômicas se agravam e as


agitações entre os operários eram percebidas pela direção do Partido. Certas medidas foram
tomadas, como a diminuição do nível de investimentos e o aumento geral de salários. Entretan-
to, o nível de vida continuava baixo.[54]
As violências de Poznan foram atribuídas, pelos soviéticos, a agentes do imperialismo.
[55] Os próprios poloneses sempre recusaram essa versão. O então primeiro-secretário do
POUP[56], Edward Ochab afirmou que nada prova essa versão. Segundo informa, após a de-
flagração da greve, espalhou-se o boato de que uma delegação de operários da oficina Ce-
gielski estava presa, enquanto eles, na verdade viajaram para Varsóvia. Diante de tal boato, a
manifestação saíra do controle da organização operária, dirigindo-se para a prisão da cidade
em busca de seus camaradas e libertando, sem qualquer resistência dos guardas, presos co-
muns. Logo em seguida, o prédio do Serviço de Segurança foi atacado e um soldado do Corpo
de Segurança Interior assassinado. Muitos dos presos liberados se apropriaram de granadas
e pistolas automáticas dos guardas e as desordens públicas se tornaram difíceis de controlar.
O marechal soviético Rokossowski propôs a utilização de destacamentos militares. O Secreta-
riado Político do POUP deu-lhe carta branca. As tropas soviéticas agiram então com tremenda
desproporção, atirando dos telhados e matando vítimas inocentes.[57] Um total de 54 mortos,
300 feridos e centenas de prisões.[58]
Depois de Poznan, as relações entre os soviéticos e poloneses se deterioram. Numa
reunião do COMENCON, Ochab rejeita decididamente as pressões para que a Polônia forne-
cesse mais carvão.[59] O antigo dirigente comunista Gomulka, preso entre 1948-1956 e agora
reabilitado, ganha apoiadores entre grupos de opositores intelectuais e operários e mesmo
no comitê local do partido em Varsóvia.[60] Em outubro de 1956, a reunião plenária do CC do
POUP o elege primeiro-secretário do Partido, com 74 votos, contra 25 obtidos por Rokossowski.
O marechal era de origem polonesa, mas havia feito sua carreira militar na Rússia. Desde a
libertação exerce a função de Ministro da Defesa na Polônia. Sua presença era criticada e exas-
perava os sentimentos nacionalistas dos poloneses. Após sua derrota em outubro é substituído
em seu posto e retorna a Moscou.[61]
Para Ralph Miliband, “tumultos revolucionários produzem traumas nacionais tremendos
e duradouros”. Segundo ele, na Polônia, “os traumas tendem a ser mais fortemente acentua-
dos”, pois as transformações revolucionárias estão associadas a um “poder estrangeiro tradi-
cionalmente percebido como inimigo”. Ele afirma que, “Regimes nascidos nessas condições
raramente possuem muita legitimidade”.[62] De fato, os acontecimentos de outubro represen-
taram a busca de maior autonomia nacional polonesa. É o que demonstra a análise do Informe
de Gomulka ao Plenário que o elegeu primeiro-secretário. Ele denuncia abertamente o hege-
monismo soviético nas relações com os demais países socialistas. Estas relações, “deveriam
cristalizar-se na base de uma solidariedade operária internacional; elas deveriam apoiar-se na
confiança mútua e na igualdade de direitos”. Porém, “no passado, não era sempre assim nas
relações entre nós e nosso grande vizinho e amigo, a União Soviética”. Mesmo a palavra de
ordem de democratização do socialismo e reforma do Estado foi agitada como uma forma de
pressionar os soviéticos quanto aos acordos comerciais entre os países. Isso porque, assim, se
protegeria o comércio exterior polonês do constrangimento dos tratados a portas fechadas. Go-
mulka afirma: “O caminho da democratização, em nossas condições, é o único que leva à cons-
trução do melhor modelo de socialismo”[63]. Uma de suas propostas nessa direção encontra-se
na ampliação das atribuições constitucionais da Dieta (Parlamento polonês), que possibilitaria
a esta, entre outras coisas, “ter o direito de controle sobre os acordos comerciais concluídos
[53] OCHAB, Edward. Entrevista à Teresa Toranska. In Teresa Toranska (org.). Eles: stalinistas poloneses se explicam. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1989. P.64
[54] OCHAB, Edward. Ibidem. P.65-66
[55] CLAUDÍN, Fernando. A Oposição no “Socialismo Real”: União Soviética, Hungria, Polônia Tcheco-Eslováquia 1953/1980. – Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983. P.156
[56] Partido Operário Unificado Polonês
[57] OCHAB, Edward. Op. Cit. P.68-71
[58] CLAUDÍN, Fernando. Op. Cit. P.154
[59] OCHAB, Edward. Op. Cit. P.64-65
[60] CLAUDÍN, Fernando. Op. Cit. P.154-1955.
[61] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.108-109
[62] MILIBAND, Ralph. Reflexões Sobre a Crise dos Regimes Comunistas. In BLACKBURN, Robin. (org.) Depois da Queda: O Fracasso do Comunismo e o Futuro do Socia-
lismo. – 2º ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P.23
[63] GOMULKA. Op. Cit. P.5
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 39

com outros países”[64]. Por outro lado, o programa econômico de Gomulka assemelha-se ao
de Tito, anteriormente analisado. Gomulka orienta-se para a dissolução das fazendas coletivas,
a autonomia das empresas socialistas e o desenvolvimento da indústria artesanal privada.[65]
Na Hungria, entretanto, os acontecimentos tiveram um desfecho sangrento. A direção
do Partido Húngaro dos Trabalhadores encontrava-se dividida desde 1953. Em 1955, o seu
secretário-geral, Matias Rakosi conseguiu afastar o presidente do Conselho, Imre Nagy. Depois
do XX Congresso, Rakosi se recusou a adotar a nova orientação, sendo substituído, em julho,
por Erno Geröe, também recalcitrante. Um grupo de estudantes e intelectuais organiza, então,
o Círculo Petöfi, que inicia uma campanha em favor da liberalização. A repercussão dos acon-
tecimentos da Polônia levou ao desencadeamento de manifestações, em 23 de outubro, em
Budapeste, nas quais escutam-se palavras de ordem anticomunistas e horthystas. Imre Nagy
é novamente nomeado presidente do Conselho.[66] Em 24, eclode a insurreição, organizada
por Ferenc Nagy, líder do antigo Partido dos Pequenos Proprietários, e contando com o apoio
dos círculos estrangeiros. Antigos fascistas húngaros exilados retornavam em massa através
da fronteira austro-húngara, contando com a inação do governo Nagy em reprimir o levante.
[67] O caráter perfeitamente coordenado das ações armadas contra os alvos militares e esta-
tais provam que não se tratou de um tumulto espontâneo, como em Poznan, mas de uma ação
planejada por agentes bem treinados.[68]
Seguem-se os assassinatos de membros do partido. Ellenstein escreve, “Verdadeiros
bandos de fascistas massacram os comunistas”[69]. Mesmo Fernando Claudín, que nega o ca-
ráter contrarrevolucionário do levante, admite a realidade dos massacres empreendidos pelas
forças rebeldes: “Grupos de pessoas exasperadas, às quais se misturam elementos duvidosos,
caçam os membros da polícia política que participaram nos combates ao lado das tropas sovi-
éticas, provocando cenas de linchamentos e execuções sumárias. Entre as vítimas estão tam-
bém pessoas totalmente inocentes ou comunistas cujas responsabilidades deveriam ter sido
elucidadas com todas as garantias de imparcialidade”.[70]
Em meio a tais cenas, o governo húngaro solicitou o auxílio de tropas soviéticas, que
então se limitam a marcha sobre a capital sem combater. Geröe é substituído no posto de secre-
tário-geral por Janos Kadar, que anuncia a formação de um governo de coalizão com os antigos
partidos camponês, pequeno-proprietários e comunistas antes proscritos. Desencadeiam-se os
primeiros combates entre rebeldes e tropas soviéticas que ainda hesitam[71].
Moscou anuncia em 30 de outubro: “Com o objetivo de garantir a segurança mútua aos
países socialistas, o Governo soviético está preparado para examinar, com os demais países
socialistas membros do Tratado de Varsóvia, a questão das forças soviéticas estacionadas nos
territórios daqueles países”.[72] Porém, os massacres continuaram. Em 1 de Novembro, Kadar
anuncia a dissolução do PHT e a formação do Partido Operário Socialista Húngaro. No mesmo
dia, Imre Nagy declara a Hungria um país neutro e anuncia sua retirada do Pacto de Varsóvia.
No dia 3, Kadar conforma um governo paralelo, solicitando novamente a ajuda soviética. Estes
dominam Budapeste, enquanto Nagy se refugia na embaixada iugoslava. No dia 9, a luta arma-
da havia cessado em todo território húngaro.[73]
Baby escreve que o caráter separatista e contrarrevolucionário do levante se tornara patente.
[74] Para Ellenstein, aqueles eventos punham em evidência a complexidade da situação na
Europa oriental assim como as “dificuldades encontradas na aplicação da orientação decida no
XX Congresso”[75].

[64] GOMULKA. Ibidem. P.8


[65] GOMULKA. Ibidem. P.4
[66] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.109-110
[67] Defender o Socialismo e Esmagar a Restauração Contrarrevolucionária. Voz Operária – Nº 392 – Rio de Janeiro – 17/11/1956. P.2
[68] Comitê Central do Partido Operário Socialista Húngaro. As Causas dos Acontecimentos na Hungria (parte II). Voz Operária – Nº 401 – Rio de Janeiro – 26/11/1956. P.4
[69] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.110
[70] CLAUDÍN, Fernando. Op. Cit. P.159
[71] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.110-111
[72] Declaração do Governo da URSS Sobre as Bases do Desenvolvimento e Posterior Fortalecimento da Amizade e da Cooperação entre a União Soviética e Demais Esta-
dos. Voz Operária – Nº 393 – Rio de Janeiro – 24/11/1956. P.2
[73] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.111-112
[74] BABY, Jean. Op. Cit. P.20
[75] ELLENSTEIN, Jean. Op. Cit. P.112
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3. O revisionismo moderno e os partidos comunistas ocidentais


Para Kurt Gosswelier, “o “browderismo” representa a forma original do ‘revisionismo mo-
derno’”[76] Ele afirma que Earl Browder introduziu no movimento comunista “‘ideias’ que mais
tarde constituíram o núcleo do “comunismo reformista” de Tito, Khrushchev e Gorbatchev”.[77]
Browder ocupou a função de secretário-geral do Partido Comunista dos EUA desde
1929. Em 1940, ele é preso sob o pretexto de crime de passaporte e condenado a quatro anos
de prisão. Dois anos mais tarde é posto em liberdade. Gosswelier nega que a libertação do
secretário-geral do PC americano tenha sido resultado da ampla campanha a seu favor, como
o considerou o Partido Comunista naquela altura. Ele recorda como “a justiça americana é nor-
malmente insensível aos protestos das massas, mesmo no plano internacional”, como demons-
tram os casos Sacco e Vanzetti, Ethel e Julius Rosenberg e Mumia Abu Jamal. Segundo Gos-
swelier, as autoridades americanas tinham “algumas razões para esperar que Browder viesse a
contribuir substancialmente para o ‘reforço da unidade da frente nacional’”[78].
Browder escolheu como ponto de partida para sua nova orientação a declaração da
Conferência de Teerã – 28 de Novembro a 1 de Dezembro de 1943 – onde Roosevelt, Stalin
e Churchill afirmaram que os seus países continuariam a cooperação depois da guerra. Ele
considerou, precipitadamente, que a declaração de intenções dos “Três Grandes” significava
que a unidade no pós-guerra tinha sido de fato acordada e, por isso, estava garantida a paz e a
cooperação. Ele apresentou suas teses, em Janeiro de 1944, numa reunião do Comitê Nacional
do Partido Comunista, em Nova Iorque, e, mais tarde, as desenvolveu em seu livro Teheran:
Our Path in Peace and War. Ele afirmou que o capitalismo e o socialismo buscavam agora con-
viver e cooperar pacificamente. Que os interesses do capital monopolista norte-americano não
eram incompatíveis com a revolução popular na Europa e mesmo com a revolução dos países
coloniais. Browder considerava que era do interesse do capitalismo americano criar grandes
mercados nos países coloniais e semicoloniais, sendo, portanto, a tendência do pós-guerra a
de um acordo entre EUA e Grã-Bretanha para a libertação, industrialização e democratização
destas áreas. Deduzia daí que cabia aos comunistas americanos cooperar com os “capitalistas
compreensivos” para a elevação dos salários dos operários, a abolição do antissemitismo e da
discriminação dos negros, a revolução na Europa e a libertação das colônias. Ele acreditava
que tal programa era plenamente realizável sobre o regime bipartidário norte-americano e, as-
sim, o Partido Comunista se tornava supérfluo.[79]
Em discurso, a 10 de Janeiro de 1944, Browder propôs a dissolução do Partido Comu-
nista dos EUA e a sua transformação em uma Associação Política Comunista. A sua proposta é
aprovada no XII Congresso do PC dos EUA, em Maio de 1944.
Para Wolfgang Kiessling, autor bastante favorável as ideias de Browder, “A Associação
Comunista dos EUA tinha-se afastado dos princípios de um partido marxista-leninista de cariz
stalinista. O ‘centralismo democrático’, com os poderes ditatoriais da direcção a todos os níveis,
e a linha de unidade e pureza da ideologia do partido, em conformidade com o PCUS, foram
abolidas”.[80]
Em 20 de Janeiro de 1944, o presidente do PC americano, Wiliam Foster, endereça uma
carta ao Comitê Nacional do Partido, na qual criticou duramente a orientação do secretário-ge-
ral. Ele afirma que “Nesta descrição desaparece, na prática, o imperialismo americano, quase
nada resta da luta de classes, e o socialismo quase não desempenha papel algum”[81] Browder
tomou medidas para exclui-lo num futuro próximo. Desde o começo houve dúvidas no partido
sobre a orientação revisionista. Dúvidas que logo se transformaram em oposição. Em Abril de
1945, o dirigente do Partido Comunista Francês, Jacques Duclos, escreveu o artigo Sobre a
Dissolução do Partido Comunista dos EUA. A dissolução do PC americano havia estimulado as
tendências liquidacionistas no PC francês. O artigo de Duclos era uma resposta contundente
a linha revisionista. Duclos desautorizou a interpretação feita por Browder sobre os acordos de
[76] GOSSWELIER, Kurt. As origens do revisionismo moderno: ou como o browderismo foi implantado na Europa. P.33. In <www.hist-socialismo.com/docs/KGBrowderismo.pdf>
Consultado pela última vez em 17/11/2018
[77] GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.27
[78] GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.27
[79] GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.28
[80] KIESSLING, Wolfgang. Apud. GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.30
[81] FOSTER, William. Apud. GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.30
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 41

Teerã e qualificou suas teses como um revisionismo do marxismo, que se manifestava na ideia
da paz de classes a longo prazo. O artigo foi discutido pela Comissão Política da Associação,
em Maio de 1945, e a linha de Browder saiu derrotada por dois terços daquela reunião e ele foi
substituído dias depois no posto de secretário-geral por um triunvirato composto por William Z.
Foster, Eugene Dennis e John Williamson. O XIII Congresso Extraordinário, reunido entre 26-28
de Julho, realizou uma rigorosa autocrítica da orientação browderista e reassumiu o nome de
Partido Comunista.[82]
Kurt Gosswelier sintetiza dessa maneira as linhas gerais do revisionismo browderiano:
“a) O abandono da concepção leninista de partido; b) a dissolução do Partido Comunista numa
frente nacional antifascista;c) A negação da contradição antagónica entre o imperialismo e o
socialismo e a orientação para uma parceria perene num trabalho confiante de cooperação e
ajuda mútua”.[83]
A linha browderiana promoveu comoções e cisões nos partidos comunistas da América
Latina, mas não teve grande repercussão na Europa. Nos EUA, ela não desapareceu totalmen-
te, voltando a ganhar força em 1956, quando se apoiou nas tendências khrushchevistas. Não
por acaso, o Partido americano seria o primeiro dos partidos ocidentais a assimilar comple-
tamente a linha do XX Congresso. Como na época de Browder, em 1956, o Partido dos EUA
foi um dos principais representantes da linha revisionista no interior do Movimento Comunista
Internacional. O então secretário-geral, Eugene Dennis, publicaria o artigo O PC dos Estados
Unidos e o Relatório Especial de Nikita Khrushchev. Diferente de outros partidos, que tentam
analisar os erros de Stalin em uma perspectiva histórica, os comunistas americanos não reco-
nhecem qualquer necessidade histórica para eles. “Os crimes e brutalidades que assinalaram o
último período da liderança de Stálin são inesquecíveis. Nem houve para eles qualquer “neces-
sidade” histórica ou política”[84] Ele tratou de rejeitar completamente a teoria da luta de classe
sobre o socialismo, afirmando: “Nos começos de 1930, quando o socialismo tinha sido construí-
do – apesar de todas as pressões e ataques do exterior – Stalin elaborou uma tese e uma linha
de ação que minaram a nova Constituição socialista e facilitaram as lamentáveis violações que
somente agora estão sendo corrigidas. Tratava-se da teoria de que com a vitória do socialismo,
o desesperado inimigo de classe se tornaria ainda mais perigoso, organizaria uma crescente
resistência interna, e penetraria em todos os escalões do Estado Soviético, da economia do
país, e mesmo no Partido e em sua direção”.[85]
Também a tese da via pacífica foi facilmente assimilada no Partido Comunista americano.
Dennis afirma: “Certamente nós, comunistas americanos, advogamos e lutamos por um curso
de transformações socialistas, democrático, constitucional e pacífico, através do qual a maioria
do povo americano posteriormente se moverá adiante e estabelecerá um novo sistema social à
base das necessidades e experiências, tradições e relações políticas trabalhistas democráticas
da América”.[86]
Na Europa Ocidental, os partidos comunistas francês e italianos eram os mais numero-
sos e influentes. Ambos haviam participado do governo de seu país entre 1945 e 1947 e eram
os únicos partidos do mundo capitalista a participar no Kominform. As condições criadas na
Europa Ocidental após o fim da Segunda Guerra Mundial favoreciam a difusão dos pontos de
vista revisionistas. A liquidação das leis fascistas e outras medidas restritivas adotadas pelas
burguesias ocidentais após a vitória da Revolução Russa, o estabelecimento de uma democra-
cia mais ou menos ampla, com a legalização de todos os partidos, com exceção do fascista.
Também o aumento considerável do nível de vida da classe trabalhadora e o início da revolução
científica e tecnológica. Sob tais circunstâncias, os programas dos partidos comunistas foram
se transformando em programas mínimos: a estratégia cedeu lugar a tática, que se transformou
em linha geral.
Ao estalar a segunda guerra, a maioria dos quadros do PC italiano encontrava-se na
França, onde foram colhidos pela polícia. Seu trabalho no interior do país começaria em mea-
[82] GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.31-32
[83] GOSSWELIER, Kurt. Ibidem. P.27
[84] DENNIS, Eugene. Os EE.UU. e o Relatório Especial de Nikita Kruschiov. Voz Operária – Nº 373 – Rio de Janeiro – 07/07/1956. P.3
[85] DENNIS, Eugene. Os EE.UU. e o Relatório Especial de Nikita Kruschiov. Ibidem. P.3
[86] DENNIS, Eugene. Os EE.UU. e o Relatório Especial de Nikita Kruschiov. Ibidem. P.4
42 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

dos de 1942 e, em março de 1943, já haviam logrado a realização de poderosas greves. De-
pois do golpe de Estado do Rei Vittorio Emanuele e de Badoglio contra Mussolini, a resistência
antifascista do povo italiano cresceu rapidamente, sobretudo no Norte, sob ocupação alemã,
onde o Partido Comunista organizou a luta de libertação nacional, aglutinando operários, cam-
poneses e intelectuais. Nesse período, a maioria das formações guerrilheiras era dirigida pelos
comunistas, porém, os comunistas não reivindicavam então a tomada do poder, ou a derrota da
monarquia e de Badoglio, mas somente a formação de um governo forte e com autoridade. Em
1944, quando retornou da União Soviética, o secretário-geral, Palmiro Togliatti adotou uma linha
de colaboração com os partidos Democrata-Cristão e outros. Os comunistas italianos ocuparam
duas pastas ministeriais, em 1945-1947. Já então, Togliatti falava em um “novo partido de mas-
sas”, diferente do partido de tipo leninista.
Diferente do que nos indica Claudín[87], as decisões do PCI e de Togliatti não eram di-
tadas de fora por Moscou. Já em janeiro de 1951, Togliatti rejeitara decididamente a proposta
de Stalin de desloca-lo a Praga para que assumisse as funções de direção do Kominform[88] e,
em julho de 1954, liquidou da direção do Partido o antigo dirigente “stalinista” Secchia[89]. Em
1956, o PC italiano assimilou mais rápido a linha revisionista que os demais partidos da Europa,
porém, igualmente, de forma independente. Toglitatti aprovou as críticas de Khrushchev a Stalin
e a via pacífica ao socialismo[90]. Ele foi até mais longe em dois pontos: 1) ao afirmar que os
erros de Stalin haviam criado formas de degeneração do socialismo e que esses erros ainda
não tinham sido de tudo superados[91]; 2) ao avançar a sua teoria do policentrismo. Sobre
este último, Togliatti afirma que: “[...] podemos encontrar um impulso para o socialismo e uma
orientação mais ou menos clara no sentido de reformas e de transformações econômicas de
tipo socialista até mesmo em países onde os partidos comunistas não apenas não participam
do poder, mas por vezes não são forças significativas.”[92] Fala também possibilidade do plu-
ripartidarismo no socialismo e da possibilidade da dissolução do Partido Comunista nos países
socialistas: “Admitimos sem dificuldade que, numa sociedade onde se constrói o socialismo,
possam existir diversos partidos, alguns dos quais colaborem com essa construção. Admitimos
que o estímulo no sentido de transformações de índole socialista possa provir de diversos par-
tidos, que cheguem a um entendimento a fim de poder realizar essas transformações. Quanto
a isso, as perspectivas que se abrem são certamente múltiplas. Pode-se chegar (e, se não me
engano, os dirigentes de um grande país hoje dirigido por comunistas estão discutindo sobre
isso) a considerar a própria extinção dos partidos em consequência da afirmação de uma socie-
dade socialista unitária, como resultado de um processo que envolva igualmente tanto o partido
comunista quanto os demais partidos que com ele colaboram.”[93]
Daí ele concluir que: “O conjunto do sistema torna-se policêntrico; e, no próprio movi-
mento comunista, não se pode falar de um guia único, mas de um progresso que se realiza
segundo caminhos frequentemente diversos”[94]. Marco Mondaini concede grande interesse e
novidade a essas teses, afirmando que, “[...] pela sua amplitude, não seria exagerado afirmar
que a tese do ‘policentrismo’ contém in nuce os principais elementos do eurocomunismo, que
marcou a estratégia comunista italiana (e, em menor medida, a estratégia dos comunistas fran-
ceses e espanhóis) nos anos 1970.”[95]
As reações do Partido Comunista Francês seriam relativamente distintas das do PC Ita-
liano, porém, ele também não foi um mero fantoche dos ditames de Moscou. Sua influência no
Movimento Comunista Internacional cresceu enormemente pelo seu papel decisivo na forma-
ção da Frente Popular e heroísmo durante a Resistência à ocupação nazista[96]. Em 1956, o
Partido Comunista Francês assumiu uma postura crítica com relação aos partidos comunistas
da União Soviética e das Democracias Populares.
[87] CLAUDÍN, Fernando. A Crise do Movimento Comunista. – 2º ed. – São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013. P.417
[88] MONDAINI, Marco. Do Stalinismo à Democracia: Palmiro Togliatti e a via italiana ao socialismo. – Brasília: Fundação Astrojildo Pereira/Rio de Janeiro: Editora Contra-
ponto, 2011. P.115
[89] MONDAINI, Marco. Ibidem. P.129
[90] TOGLIATTI, Palmiro. O caminho italiano para o socialismo. In ______________. Socialismo e Democracia: Obras Escolhidas – 1944-1964. – Rio de Janeiro: Ilha Livraria
Editora LTDA, 1980. P.146 e 148
[91] TOGLIATTI, Palmiro. Entrevista sobre o “culto à personalidade” [Texto integral da entrevista concedida à revista Nuovi Argomenti]. Ibidem. P.103-104
[92] TOGLIATTI, Palmiro. O caminho italiano para o socialismo. Ibidem. P.137
[93] TOGLIATTI, Palmiro. O caminho italiano para o socialismo. Ibidem. P.149
[94] TOGLIATTI, Palmiro. Entrevista sobre o “culto à personalidade” [Texto integral da entrevista concedida à revista Nuovi Argomenti]. Ibidem. P.125
[95] MONDAINI, Marco. Op. Cit. P.148
“O XX congresso do PCUS e a crise do Movimento Comunista” URC 43

Em Junho de 1956, uma resolução do Bureau Político do PCF criticou os métodos com
os quais Khrushchev tratou a questão de Stalin no XX Congresso: “O Bureau Político lamen-
ta, entretanto, que em virtude das condições em que o informe do camarada Khrushchev foi
apresentado e divulgado a imprensa burguesa tenha podido publicar fatos que os comunistas
franceses ignoravam. Um tal estado de coisas não é favorável à discussão normal destes pro-
blemas no Partido. Facilita, pelo contrário, as especulações e as manobras dos inimigos do
comunismo.”[97]
Também o conteúdo do relatório secreto de Khrushchev contra o culto à personalidade
de Stalin é criticado pelo PC Francês: “As explicações dadas até agora sobre os erros de Stalin,
sua origem, as condições em que eles se produziram, não são satisfatórias. É indispensável
uma análise marxista aprofundada para determinar o conjunto das circunstâncias em que o
poder pessoal de Stalin pode exercer-se.” “Era errôneo, quando Stalin estava vivo, dirigir-lhe
elogios laudatórios e atribuir-lhe o mérito exclusivo por todos os êxitos alcançados na União
Soviética em virtude de uma linha geral justa, a serviço da construção do socialismo. Esta ati-
tude contribuía para desenvolver o culto à personalidade e para influenciar num mau sentido o
movimento operário internacional. Hoje, não é justo atribuir somente a Stalin tudo o que houve
de negativo na atividade do Partido Comunista da União Soviética.”[98]
Os comunistas franceses foram ainda mais incisivos na crítica aos partidos comunistas
húngaros e poloneses. Etienne Fajon, membro do Bureau Político do CC do PCF, denuncia a
atuação dos elementos burgueses no interior desses partidos: “Essa atuação dos elementos
burgueses manifestou-se, de um lado, no plano ideológico, nas colunas de certos jornais contro-
lados pelo Partido ou em certos círculos intelectuais portanto animados por ele, onde pudemos
ver reivindicações e palavras de ordem burguesas exprimirem-se sob o disfarce da correção de
erros da democracia socialista”. “A crítica do marxismo, a condenação da ditadura do proletaria-
do, a renúncia à palavra de ordem de edificação do socialismo, a negação do internacionalismo
proletário, o anti-sovietismo, tais são alguns dos temas que puderam encontrar eco em vários
artigos da imprensa polonesa, notadamente no órgão da União dos Escritores Poloneses. No
que se refere à Hungria, deve lembrar que os ataques anti-comunistas do Círculo Petoefi e da
União dos Escritores Húngaros estavam recentemente no primeiro plano.”[99]
Os comunistas franceses são críticos tanto ao governo de Imre Nagy quanto a direção
de Janos Kadar sobre o partido. Na verdade, são particularmente duros com relação a ambos:
“Notaremos somente o fato de que Kadar, feito primeiro secretário do Partido dos Trabalhadores
Húngaros, vem de abandonar, pura e simplesmente, as fileiras desse Partido, imitado nisso pelo
presidente do Conselho, Nagy, que cobre com sua autoridade a S. Bartolomeu de comunistas
dos quais se livram os fascistas húngaros. Está assim demonstrado que esses personagens
não falam em “liberalizar” o Partido dos Trabalhadores Húngaros senão para ocultar uma em-
presa com o objetivo de destruí-lo.”[100]
L’Humanité, órgão central do PC Francês se recusou a publicar o Informe de Gomulka ao
8º Plenum do CC do Partido Operário Unificado Polonês, assim como, os editoriais do Szabad
Nép, órgão do Partido Húngaro dos Trabalhadores. Sobre isso Fajon comenta: “‘L’Humanité’
não publicou o informe do camarada Gomulka porque várias de suas passagens estão em con-
tradição com as teses democraticamente elaboradas por nosso Congresso. Não citou “Szabad
Nep” para não condenar seus leitores a nada compreenderem dos acontecimentos na Hun-
gria.”[101]
Não cabe aqui analisar o desdobramento posterior da história do Partido Comunista na
França, que progressivamente iria aceitar as teses revisionistas. Pelo que foi dito, está suficien-
temente demonstrado que a altura da crise de 1956, parecia que o Partido Comunista Francês
lutaria contra o revisionismo de Khrushchev.

[96] BABY, Jean. Op. Cit. P.328.


[97] Bureau Político do Partido Comunista Francês. Declaração do Birô Político Aprovado pelo Comitê Central do P.C. Francês. Voz Operária – Nº 372 – Rio de Janeiro –
30/06/1956. P.4
[98] Bureau Político do Partido Comunista Francês. Declaração do Birô Político Aprovado pelo Comitê Central do P.C. Francês. Ibidem. P.4
[99] Conclusões do CC do PCF Sobre Os Acontecimentos na Polônia e na Hungria. Voz Operária – Nº 392 – Rio de Janeiro – 17/11/1956. P.11
[100] Conclusões do CC do PCF Sobre Os Acontecimentos na Polônia e na Hungria. Ibidem. P.11
[101] Conclusões do CC do PCF Sobre Os Acontecimentos na Polônia e na Hungria. Ibidem. P.11
44 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info
“Bolívia: do Golpe às Eleições” URC 44

BOLÍVIA:
DO GOLPE
ÀS ELEIÇÕES por Luiz Henrique
46 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

O Golpe de Estado cívico-militar perpetrado na Bolívia em novembro de 2019, com o


apoio do imperialismo estadunidense, marca com sangue mais uma página da história de luta
do povo boliviano, povo este que sofreu no século XX, assim como a maioria dos países da
América Latina, da ingerência e dos ataques à soberania nacional, empenhados pelo imperialis-
mo na Operação Condor. Entre 1964 e 1982, a Bolívia viveu seus anos de chumbo sob a ditadu-
ra militar, marcada por golpes dentro de golpes; nesse período estiveram à frente da ditadura do
Estado reacionário os generais René Barrientos (1964-1969), Hugo Banzer (1971-1978) e Luís
García Meza (1980-1981), este último ligado ao narcotráfico e com auxílio direto do ex-agente
nazista Klaus Barbie, da Gestapo. Em 1981, García Meza fugiu para o Brasil, onde permaneceu
até 1995, antes de ser preso e extraditado.
Todo período da ditadura foi marcado pela violenta repressão, a desarticulação das orga-
nizações de trabalhadores com brutais assassinatos de suas lideranças, banimento de partidos
políticos de oposição, enfim, uma gama de medidas repressivas e reacionárias. Até que em
1982 foi eleito Hernán Siles Zuazo e o país voltou a ter um governo com verniz democrático, já
alinhado às políticas neoliberais impostas pelo imperialismo que seguiram sendo implementa-
das pelos presidentes sucessores.
Após anos de políticas neoliberais, com reformas que favoreceram o setor privado e faci-
litaram a compra de empresas estatais pelo capital monopolista estrangeiro, é eleito em 2005, o
primeiro presidente indígena da Bolívia, o aymara Evo Morales do partido Movimento ao Socialis-
mo (MAS) que assume em 2006 e inicia uma série de reformas - ainda que insuficientes - que vi-
saram em certo grau desacelerar as políticas neoliberais e reestabelecer uma relativa autonomia
nos planos político e econômico em relação ao imperialismo estadunidense. A ascensão de Evo
e do MAS deu-se após um período conturbado de revoltas populares, principalmente durante o
segundo mandato do presidente Sánchez de Lozada, do partido Movimento Nacional Revolucio-
nário (MNR) , que culminaram em dois momentos de grande acirramento e de lutas violentas num
período de grande mobilização do campesinato, dos povos indígenas, bem como do povo traba-
lhador urbano, contra as políticas neoliberais e o entreguismo das elites burocráticas da Bolívia.
As mobilizações ficaram conhecidas como a Guerra da Água (2000) e a Guerra do Gás (2003),
onde após diversos confrontos entre os trabalhadores contra a polícia e o exército reacionário,
o povo saiu vencedor. A Guerra da Água terminou com a revogação da concessão a empresa
monopolista estadunidense Betchel, uma das mais poderosas do mundo, sócia majoritária da
empresa Águas de Tunari, que nos poucos meses que controlou os serviços de abastecimento
de água do país aumentou as tarifas em 300%. A Guerra do Gás teve como estopim as políticas
tomadas pelo governo de Lozada - de exportar gás natural para os Estados Unidos e para o Mé-
xico através dos portos chilenos a preços baixíssimos enquanto o mercado interno do país, que
conta com a segunda maior reserva de gás natural da América do Sul, era marcado pela escassez
e por preços abusivos. Assim, os protestos exigiam a paralisação da exportação do gás até que
se resolvesse o problema do mercado interno e a criação de uma Assembleia Constituinte. Após
os sangrentos conflitos e da tenaz resistência dos bolivianos, Sánches de Lozada, que utilizara o
exército para reprimir os protestos populares, renuncia e foge do país.
Após a renúncia de Lozada, o vice-presidente Carlos Mesa assume a presidência e
emite o Decreto Supremo Nº 27237, que outorga anistia a todos os atores de outubro de 2003;
em seguida o decreto recebe uma emenda para especificar que a anistia não se aplicaria aos
ex-membros do Governo, mas apenas aos movimentos sociais envolvidos. Em junho de 2005,
Mesa propõe a formação de uma Assembleia Constituinte e um Referendum consultivo para
tratar do assunto do gás natural, onde uma opção seria arrecadar mais impostos para o Estado
das empresas estrangeiras que operavam no país. Entretanto, tal possibilidade sofreu grande
oposição tanto por parte de empresários - que viam tais ações como prejudiciais aos seus
interesses -, quanto dos sindicatos dirigidos por Evo Morales e Felipe Quispe, que exigiam a
estatização completa do gás natural.
Após a eleição realizada em 2005, onde Evo Morales foi eleito com 54% dos votos – pri-
meira vez na história da Bolívia em que um candidato consegue a maioria dos votos –, contando
com grande apoio de movimentos sociais campesinos, de sindicatos de plantadores de coca e
da mineração, bem como da população indígena que representa mais de 60% da população do
“Bolívia: do Golpe às Eleições” URC 47

país, pôde-se dar início, a partir de 2006, à implementação das principais promessas feitas por
Evo durante a campanha: a estatização dos hidrocarbonetos e a implementação da Assembleia
Constituinte. Assim, após três meses de mandato, Evo deu início as promessas a partir do decre-
to de nacionalização do dia 1 de abril de 2006. O governo de La Paz aumentou o imposto sobre
a exploração do gás de 50% para 82%, enviando militares para os principais campos de gás do
país que passavam, então, a ser propriedade do Estado, abrindo negociações com as empresas
estrangeiras que operavam o gás natural boliviano por meio da assinatura de novos contratos, já
que os contratos anteriores não tramitaram no congresso antes de serem assinados.
Com o Decreto, de nº 28.701, estipulou-se que as empresas que não assinassem os
novos contratos reconhecendo o controle estatal sobre os campos de gás natural teriam que
deixar o país. Os principais pontos do decreto eram os seguintes: o Estado recupera a proprie-
dade, a posse e o controle total e absoluto dos recursos hidrocarburíferos; a partir da data do
decreto, as empresas operadoras ficam obrigadas a entregar toda a sua produção à Yacimien-
tos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), estatal petrolífera da Bolívia. Assim, a YPFB assu-
me a comercialização dos combustíveis, definindo condições, volumes e preços, tanto para o
mercado interno quanto para a exportação e industrialização; só podem continuar operando no
país as empresas que acatem imediatamente as novas normas e firmem novos contratos em
um prazo de 180 dias. O Ministério de Hidrocarbonetos passou, então, a realizar auditorias das
empresas operadoras como base para a definição de novos contratos; as ações de empresas
produtoras mistas - como Chaco e Andina, bem como a transportadora Transredes e as refi-
narias que eram propriedades da Petrobrás - ficaram parcialmente nacionalizadas, para que,
assim, a YPFB assumisse 51% do controle destas.
No dia 6 de fevereiro de 2006 o governo de Evo Morales enviou a proposta de lei convo-
catória para a realização da Assembleia Constituinte, dando o primeiro passo para a reforma do
Estado burguês boliviano; em julho do mesmo ano, seus membros foram eleitos com a missão
de criar a nova Constituição da Bolívia. O texto foi aprovado em dezembro de 2007, sofreu al-
gumas modificações em outubro de 2018 e passou por aprovação popular por referendum em
janeiro de 2009, quando foi aprovado por 61,43% dos votos e tomou o lugar da velha Consti-
tuição de 1967. A nova Constituição passava a referenciar e garantir pela primeira vez – pelo
menos no papel – alguns direitos da população indígena do país.

O PARTIDO MOVIMENTO AO SOCIALISMO (MAS) E O “SOCIALISMO DO


SÉCULO XXI”
O partido de Evo Morales, Movimento ao Socialismo (MAS), fruto da aglutinação de sin-
dicatos cocaleiros, camponeses, trabalhadores das cidades e indígenas, teve origem em 1995
com o nome de Assembleia pela Soberania dos Povos (ASP). Em 1997, Evo foi expulso da
organização, mas conseguiu manter a maioria das bases ao seu lado e no mesmo ano, junto de
outros dirigentes, fundou o Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP), que pouco
depois acrescentou “Movimento para o Socialismo” ao nome. O MAS se apresentou na história
política da Bolívia como uma alternativa popular ao neoliberalismo e aos velhos partidos da
ordem que, entre ditaduras e eleições, pactuavam o caminho político de subserviência ao impe-
rialismo estadunidense e às demandas das oligarquias bolivianas. Seguindo a esteira da con-
juntura latino-americana, em um ambiente menos hostil a propostas mais progressistas, muito
por conta de um período de relativa estabilidade na expansão dos lucros no capitalismo mun-
dial, o “masismo” conseguiu angariar uma considerável base política nas camadas mais pobres
do país, contando com o apoio de movimentos sociais camponeses, indígenas e de sindicatos
urbanos. Através da nacionalização do gás natural, o governo de Evo conseguiu converter boa
parte dos recursos advindos da extração dos hidrocarbonetos para programas sociais.
A linha política do governo de Evo inseriu-se no chamado “socialismo do século XXI”, que
distante do socialismo real, é de caráter essencialmente reformista. Esse “socialismo” aponta a
possibilidade de criar democracias com ampla e genuína participação das massas populares na
vida política nacional, determinando o seu próprio destino e combatendo a corrupção por dentro
do próprio aparato estatal burguês. No plano econômico, em geral, defende a nacionalização de
recursos energéticos e, em alguma medida, a industrialização nacional, propondo a dinamização
48 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

do mercado interno e gerando melhorias imediatas nas condições de vida da população trabalha-
dora. No entanto não destaca, em nenhum momento, a questão da necessária revolução social,
via de superação qualitativa da ordem dominante vigente, que pode solucionar pela raiz as con-
tradições sobre as quais está alicerçada a sociedade boliviana. Assim, a linha política demonstra
que sua abordagem teórica não está para além dos marcos democrático-burgueses. Isso fica
elucidado por exemplo, nas palavras pronunciadas por Evo em seu discurso de posse em 2006:
“Não queremos mudar a Bolívia com bala, mas com voto, e essa é a revolução democrática”.
Tomando o plano econômico como objeto de análise, a Bolívia deu um importante salto
de desenvolvimento durante os mandatos de Evo Morales. Entretanto, por não se amparar em
uma linha política e ideológica balizada no socialismo científico, esse desenvolvimento causou
um desvio economicista em vários níveis do governo, bem como em diversas lideranças dos
movimentos sociais, desvio este que resultou no distanciamento das massas populares da par-
ticipação e do controle da política, um dos pontos importantes que facilitaram o golpe de Estado.
Durante os mandatos de Evo Morales, a ideologia pequeno-burguesa por detrás das po-
líticas sociais e econômicas se intensificou, bem como a própria pequena-burguesia, oriunda de
períodos anteriores e que se perpetuou nas instituições, passou a exercer um papel importante
nas decisões políticas. Os movimentos sociais e principalmente seus dirigentes converteram-se
em influências negativas para manutenção do processo de reformas; portanto, com o aumento
do temor decorrente do crescimento do bloco de oposição ao governo, algumas políticas inter-
nas e externas passaram a ser revistas por Evo. No plano internacional, principalmente a partir
de 2016, o governo de Evo buscou uma certa desvinculação e um certo distanciamento de
Cuba e Venezuela como forma de não desagradar o imperialismo estadunidense, na tentativa
de evitar alguns possíveis efeitos da reorientação política imperialista para a América Latina.
No plano interno, nas mobilizações chamadas pelo MAS, destacava-se a ausência, em grande
medida, de organizações sociais que outrora estavam presentes e a presença cada vez maior
de funcionários públicos, uma grande parte destes procedentes da burocracia que seguiu os
governos neoliberais. Essas constatações realçam uma vez mais o caráter do partido, que nem
de longe representava uma vanguarda destacada das camadas trabalhadoras assoladas mais
incisivamente pela contradição entre o capital e o trabalho. Soma-se a essas condições a insa-
tisfação das classes dominantes bolivianas – reacionárias, como demonstra a história do país,
e extremamente racistas em relação aos povos indígenas - e a necessidade do imperialismo
estadunidense de reorientar sua política de dominação na América Latina, daí que o desenvol-
vimento dessa contradição se desenrolou num Golpe de Estado.

OS PREPARATIVOS E A CONSOLIDAÇÃO DO GOLPE


No período que antecedeu as eleições marcadas para o dia 20 de outubro de 2019,
com Evo Morales liderando as pesquisas de intenção de voto com margem suficiente para ser
reeleito no primeiro turno, os candidatos de oposição, bem como as mídias hegemônicas e
através das mídias sociais, criavam narrativas de que as eleições seriam fraudulentas. Carlos
Mesa, um dos candidatos, em reiteradas ocasiões e através de suas redes sociais, busca-
va desqualificar o Órgão Eleitoral Plurinacional e o Tribunal Superior Eleitoral. A pressão de
órgãos internacionais também era grande, principalmente por parte do imperialismo estadu-
nidense. No dia 17 de janeiro de 2019, um documento assinado por senadores Democratas
e Republicanos do país imperialista encorajava que Evo não participasse das eleições, bem
como apontava que a Bolívia estava se encaminhando para um caminho “perigoso”, aproxi-
mando-a da Venezuela de Maduro; nesse período, os ataques e as tentativas de golpe na
Venezuela estavam a todo vapor.
Outro ator internacional que teve um papel de gatilho para o golpe foi a Organização dos
Estados Americanos (OEA), um instrumento corriqueiramente utilizado pelo imperialismo quan-
do se trata de desqualificar qualquer coisa que não seja de seu interesse na América Latina. Por
ingenuidade e/ou por uma fé exacerbada nas instituições burguesas, típica das camadas polí-
ticas legalistas, o Governo boliviano assinou um convênio para que enviassem à Bolívia uma
Missão de Observação Eleitoral, para que dessem as garantias de que as eleições não foram
fraudadas. A Missão, sem nenhuma prova, colocou o processo eleitoral sob suspeita alguns
“Bolívia: do Golpe às Eleições” URC 49

dias depois, convocando uma auditoria técnica para averiguar a situação.


Concomitante a esse processo, os políticos opositores, bem como os comitês cívicos
de Cochabamba e Santa Cruz, deram início a diversas mobilizações violentas compostas por
milícias paramilitares e civis ligados a esses movimentos e que pediam a renúncia de Evo, a
anulação da eleição e a troca de todos os membros do Tribunal Superior eleitoral. Preparava-
-se, então, o golpe, que teve como cenário bloqueios urbanos, preparação e confronto de gru-
pos paramilitares. A ação policial foi tímida - recebia golpes e agressões, mas não os respondia,
como forma de cooperar para tornar mais efetivos e contundentes os bloqueios, dificultando o
deslocamento de automóveis e transeuntes. Assim, as ameaças contra os dirigentes do MAS
foram tomando grande proporção – tiveram suas casas incendiadas e seus parentes seques-
trados, e alguns foram arrastados e humilhados pelas ruas. No dia 10 de outubro, as Forças
Armadas resolveram se manifestar em uma nota, por meio do general Williams Kaliman, que
pedia a renúncia de Evo para salvaguardar a segurança do povo boliviano, que não poderia
ser garantida pelo exército; isso após todos os atos violentos perpetrados pelos paramilitares,
em que as Forças Armadas nada fizeram para sua contenção. Alguns movimentos populares e
milhares de camponeses tomaram as ruas contra o golpe que acontecia. Entretanto, Evo Mo-
rales, justificando que muito sangue seria derramado, decide, então, renunciar após a nota das
Forças Armadas, e no dia 10 de novembro foge para o México.
Com a renúncia de Evo, a oposição força uma convocatória para sessões na câmara
dos deputados e na câmara dos senadores para eleger o presidente da segunda câmara, que
estava vaga após a renúncia de Adriana Salvatierra, podendo, assim, intitular o novo presiden-
te provisório do país. Em uma sessão esvaziada, sem o quórum necessário, Jeanine Áñez foi
designada para o cargo e fez o juramento - primeiro para presidenta da câmara dos senadores
e logo em seguida para presidenta do Estado Plurinacional.
Denominada como a nova presidenta, Jeanine falou publicamente que seu governo de
transição seria marcado pelas tarefas de pacificar o país, formar um novo Tribunal Superior
Eleitoral e convocar as novas eleições, que deveriam acontecer num prazo máximo de 120 dias.
Entretanto, milhares de trabalhadores da cidade, camponeses e um grande número de orga-
nizações populares indígenas não reconheceram Jeanine como a nova presidenta e seguiram
denunciando o golpe, bloqueando ruas e protestando. A postura de Jeanine foi a de direcionar
a força repressiva contra as manifestações, que culminaram nos massacres em Senkata, bairro
localizado na cidade de El Alto e em Sacaba, por ação das forças policiais. O ministro do interior
Artur Murillo fez, reiteradas vezes, declarações públicas em que afirmava que iria caçar e per-
seguir os apoiadores do MAS, chegando a dizer que os juízes e promotores que se colocassem
no caminho também seriam perseguidos. A perseguição aos jornalistas e opositores também
teve início sob a denúncia de sedição – assim, muitos foram presos sob a acusação de estarem
“colocando em risco” a segurança nacional do país.

A PANDEMIA NO GOLPE
Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, a fascistização no país seguiu em
escalada - a violência e a violação de direitos democráticos não diminuiu, mas se estendeu sob
a patota de enfrentamento da crise sanitária. A golpista Jeanine aproveitou a pandemia como
justificativa para tentar conter os protestos; dessa forma, aprovou um toque de recolher, o adia-
mento das eleições e deu continuidade na repressão contra os bolivianos.
No dia 25 de março foi anunciado um novo Decreto, elaborado pelos ministros do go-
verno e assinado por Jeanine, estabelecendo diretrizes para o enfrentamento da pandemia. O
artigo 13 do Decreto nº 4200 apontava para medidas que deveriam ser tomadas em respeito
ao controle de informações e estabelece que “as pessoas que incitem o não cumprimento do
Decreto Supremo, desinformem ou gerem incertezas à população serão sujeitas às denúncias
penais por supostos delitos contra a saúde pública”. O Decreto se transformou, então, em um
instrumento de legitimação da perseguição e prisão de opositores. Desde então, muitos ativis-
tas políticos foram acusados de participar de “movimentos de desestabilização, desinformação
e de guerra virtual”, identificados através das “cyber-patrulhas” da Polícia do Estado, onde mui-
tos destes já foram julgados e sentenciados à condenação através de processos abreviados.
50 URC Revista NOVA CULTURA - www.novacultura.info

Muitas denúncias vêm sendo feitas sobre irregularidades do governo provisório em rela-
ção à pandemia - dentre elas estão a compra de respiradores a preços superfaturados e o não
fornecimento de material hospitalar para tratar os pacientes internados. O número de leitos nos
hospitais públicos da Bolívia também é preocupante: no Hospital Norte da cidade de El Alto, o
hospital público que mais recebe pacientes é de aproximadamente 0,14 leitos para cada 1000
pacientes. Claramente notamos, por meio destes dados, aonde repousa a preocupação do su-
posto “governo democrático”.

AS ELEIÇÕES
Após a consolidação do golpe da Bolívia, a nova eleição foi marcada para o dia 3 de
maio, que, no entanto, foi cancelada pelo TSE com a chegada da pandemia e remarcada para
acontecer no dia 6 de junho. Após muitas tentativas, o governo golpista conseguiu prorrogá-la
novamente para o dia 18 de outubro. O adiamento das eleições motivou diversos protestos e
denúncias - como a de Evo, que acusou a prorrogação da eleição como uma tentativa de ga-
nhar tempo para dar seguimento às perseguições políticas contra os dirigentes do MAS, e com
a finalidade de impossibilitar que estes participassem da eleição.
Os dirigentes do MAS seguiram apostando suas fichas em uma saída pelas vias lega-
listas eleitorais, mesmo após terem sofrido um golpe de Estado. Tanto o fizeram que, após a
consumação do golpe, sua posição foi exposta pelos constantes pedidos de seus dirigentes
pela contenção das mobilizações populares. Os ataques e perseguições do governo transitório
contra opositores e a escalada midiática de denúncias contra o MAS e seus apoiadores foram
apenas algumas das ações que visaram minar a possibilidade de Luis Arce ser eleito. No início
de setembro, a presidenta golpista Jeanine Áñez admitiu que contratou, no final de 2019, a CLS
Strategies, empresa de lobby estadunidense acusada pelo Facebook de promover campanhas
de notícias falsas para desvirtuar o debate democrático. Em nota de esclarecimento, Jeanine
disse que a atribuição da CLS era apoiar a democracia na Bolívia.
No dia 23 de setembro, veio a público um documento em que a Capitã Silvia Sandoval
Paredo, chefa da Força Especial de Luta Contra o Crime (FELCC), denuncia a perseguição polí-
tica e as ameaças que vem sofrendo por apontar 11 casos para investigação onde atos irregula-
res foram cometidos pelo Coronel Iván Rojas del Caripo, Diretor Nacional da FELCC, acusado de
orquestrar, em diferentes ocasiões, processos contra políticos e militantes do MAS, encabeçan-
do o grupo operativo de perseguição política na Bolívia. Os informes da oficial apontam que, em
variados casos, foram executadas ordens de apreensão, invasão de domicílio e operações de
forma ilegal por ordens do Coronel Iván Rojas. Ela também denuncia a existência de um acordo
entre o Coronel e autoridades do Governo de Áñez. A capitã Sandoval afirma que após ter feito
as denúncias, passou a receber ameaças através de outros oficiais, apontando que se ela se-
guisse com as denúncias sua vida correria perigo; relata, também, que em episódio recente os
freios de sua motocicleta foram cortados, em uma clara tentativa de atentar contra sua vida.
Documentos disponibilizados pela Red de Comunicación Popular (REDCOM) apresen-
tam diversos nomes de militares da ativa e da reserva que estariam incumbidos de realizar
ações violentas caso fosse necessário, criando “falsos positivos” para incriminar o MAS e seus
apoiadores para impedir que as eleições acontecessem. Os objetivos das ações dos militares
seriam: boicotar a realização das eleições e criar uma demanda massiva pela suspenção ou
“Bolívia: do Golpe às Eleições” URC 51

anulação delas; desencadear uma condenação da população e dos meios de comunicação pe-
los danos causados contra civis nos atentados; e pressionar para que as eleições fossem con-
vocadas para um ano depois, com o argumento de que não existem garantias no país devido a
violência organizada do MAS.
Com as pesquisas eleitorais mostrando a possibilidade de Luis Arce ser eleito no pri-
meiro turno das eleições, os candidatos opositores tentaram acordar retiradas de candidatura
com o intuito de formar um bloco capaz de freia-lo. Após Jeanine retirar sua candidatura, com
o discurso de que seria uma honra poder impedir a volta dos masistas ao poder, no dia 11 de
outubro, o ex-presidente Jorge Quiroga também se retirou do pleito com discurso parecido de
Áñez, buscando concentrar os votos dos opositores ao MAS. Contudo, as diversas frações da
direita golpista não lograram uma unidade que possibilitasse a vitória eleitoral frente a “Lucho”
Arce. Assim, um dia após a eleição, as pesquisas de boca de urna já davam como certa a vitória
de Arce, que foi confirmada oficialmente no dia 23 de outubro.
Antes mesmo do resultado oficial, a presidenta golpista Áñez e Carlos Mesa reconhe-
ceram a vitória do MAS e diversos países elogiaram o processo “pacífico” e “transparente” no
qual se desenrolou a “festa da democracia” sob a chancela da OEA. Por outro lado, os fascistas
de Santa Cruz - encabeçados por Luis Fernando Camacho - até agora não reconheceram o
resultado da eleição, e no dia 21 de outubro, por meio de uma nota intitulada “Manifesto a Bolí-
via assinada por Rómulo Calvo Bravo (presidente do comitê cívico pro Santa Cruz), voltaram a
exigir o cancelamento das eleições por supostas fraudes e manipulações dos resultados. Dias
depois, Rómulo veio a público denunciar a traição de Mesa e Áñez que, ao reconhecerem a vi-
tória de Arce, dão sinais de que um acordo de benefício político mútuo já foi traçado entre estes
e o MAS, deixando os cruceñistas sozinhos na luta pela “democracia” boliviana.
A questão agora é a de como se dará o governo de Arce, ex-ministro da economia de Evo
que sempre compôs a ala à direita dentro do partido, foi eleito com 55% dos votos e já acena
para um governo para “todos”, que dialoga com todos os setores, mudando as políticas do MAS
para uma “nova direção”. Isso implica negociar com todos os atores do bloco golpista, desde os
candidatos opositores até às forças armadas e à polícia que reprimiram o povo boliviano duran-
te o período em que os golpistas estiveram à frente do governo nacional da Bolívia. Do outro
lado, os golpistas já acenam para novas ações caso o novo governo busque o justiçamento
daqueles que reprimiram e derramaram o sangue do povo. O ministro do governo golpista, Artur
Murilo, já declarou que se houver “perseguições políticas” contra a polícia e o exército haverão
represarias e mobilizações.
Sem poder contar com um partido revolucionário munido da ideologia e da ciência do
proletariado, capaz de direcionar a luta dos trabalhadores em prol dos interesses da classe, a
oposição ao governo golpista foi levada a cabo nas ruas de forma espontânea pelas camadas
populares. Entretanto, os dirigentes do MAS lograram a todo custo desviar a luta nas ruas para
as urnas, demonstrando uma vez mais o caráter revisionista e legalista do partido. As massas
trabalhadoras se mostram mais consequentes a defender sua soberania por meio das orga-
nizações de massa, dos movimentos sociais do que o partido de turno eleito, portanto, agora
consolidada a vitória eleitoral, os próximos meses demonstrarão para qual caminho seguirá a
Bolívia masista - se defenderá realmente a soberania de seu povo ou se fará parte da nova
agenda imperialista para América Latina.

A União Reconstrução Comunista (URC) em


conjunto com a Célula Comunista de
Trabalhadores (CCT), passou a publicar o
jornal mensal Rumos da Luta.
Conheça a nossa nova publicação:

www.novacultura.info/jornal
URC
UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA
A União Reconstrução Comunista (URC) visa ser um polo aglutinador
de todos os militantes revolucionários e ativistas descontentes com os
rumos tomados pelo movimento comunista em nosso país, destruído
e corroído pelo revisionismo e oportunismos de direita e esquerda.
Após longos estudos e debates e um ano da fundação do Coletivo Ban-
deira Vermelha, conquistamos, enfim a base da unidade orgânica que
deve nortear nossa prática: a unidade ideológica na teoria do proleta-
riado desenvolvida por Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao; a luta pela
refundação do Partido Comunista com base na teoria revolucionária
do proletariado; a necessidade de se levar a cabo a Revolução Prole-
tária dentro das condições concretas de nosso país.

www.uniaoreconstrucaocomunista.org

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