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Título original em inglês: Moderne? Comment /e
cinéma est devenu /e p/us singulier des arts
© Cahiers du Cinéma, 2007
08-08333 CDD-791.4301
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PREFACIO
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<'<)t1 gelado no momento de seu aparecimento, é destinado a
('11vcll1ecer, como também envelheceram as máquinas e a
:~t·11sibilidade urbana/moderna do início do século (cca idéia de uma
,,rt t· 111oderna que dura 100 -anos é um oximoro': diz Aumont). Por
1 lt l r{ís desses trabalhos, está a idéia de que o cinema, máquina
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,1/11rr" ,/11 Cinéma e amplo conhecedor da história do cinema.
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O cinema é mais que uma máquina, mas traz em sua natureza (vanguarda cinematográfica francesa) e surrealismo passam
um maquinismo intrínseco que a maior parte das artes ignora. A praticamente ao largo neste panorama, que acaba se fixando nos
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questão, e sim respostas, conhecidas e reconhecidas. ('Moderno'', campos da arte - que se comunicam cada vez mais~ em um dos
palavra um tanto antiga, que quer dizer ''de há pouco': foi durante ideais pós-modernos
..,
ainda atuais, o da ''transmedialidade'' -
toda uma época a senha que permitia ao atual, ao recente, ao novo tornam-se cada vez mais decepcionantes para o amador, pois,
ser qualificado de modo diferente de '(contemporâneo'', epíteto com o fim da modernidade ele foi privado de pontos de referência
que tem o grave inconveniente de ser o que se chama de um shifter, às vezes arbitrários, mas cômodos. A paisagem da arte mudou e,
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ou seja, de não designar nada de estável ( como ''agora'', ('aqui'', nos museus d e ''arte contemporânea'', vemos coisas e~quisitas
''eu''). Enquanto durou a modernidade histórica, era moderno o serem agora oferecidas - aliás, no mais das vezes, coisas
que era contemporâneo, e o contemporâneo aspirava a ser real- engraçadas-, que já não têm muito em comum com o que
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mente moderno, ou seja, a se identificar com uma espéci~ de ideal, estávamos acostumados a aceitar como obras. Não muita feitura,
mesmo se mutante. Ainda em 1961 , um dos últimos repre- em todo caso; tudo vira ''conceito': no sentido da arte conceitua! e
sentantes de uma das últimas vanguardas, Maurice Lemaitre, no sentido dos publicitários. Aliás~ arte e publicidade estão,
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podia exigir de um projeto de teatro experimental que fos~em doravante, tão bem ·casadas que não param de fazer filhos.
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colocados no programa ''modernos, mas modernos mesmo'' - ou Estamos longe do cinema. Talvez ele tenha sido moderno (é
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seja, exclusivamente inovadores. (Mas o que fazer da novidade, toda a minha questão), mas ''contemporâneo''? Seria preciso logo
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quando ela já não é nova?) se perguntar: "de quê?''. O problema é que essa questão nunca pôde
Há 25 anos, a arte contemporânea já não é moderna, ela se ser colocada independentemente de outra, a do status artístico do
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tornou apenas ''contemporânea''. Não é um grande progresso. cinema. O cinema surgiu fora da arte, corno uma curiosidade
''Arte moderna'' acabou significando que se tinha consciência de científica, uma diversão popular e também como uma mídia (um
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ter de parecer com alguma coisa, com uma idéia da arte, mesmo 1neio de exploração do mundo); entretanto, foi rapidamente
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que ela fosse vaga e geral. ''Contemporâneo'' não contém exigência reivindicado como arte ( e até mesmo, de modo notável, a
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alguma dessa espécie, e seu sentido é movediço, flutuante, prifl1:eira arte inventada) e como medium (um meio de criação).
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lj l indeciso. A única verdadeira definição da ''arte contemporânea'' é Após décadas, em que críticos, filósofos, universitários, até mes-
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li ' institucional: é o que se expõe nas galerias conhecidas ou nas 1110 cineastas fizeram de tudo para que se levasse a sério essa
manifestações de balanço, como em Paris, em 2-006, na exposição reivindicação, o aforismo de Malraux ainda é válido: o cinema é
''A força da arte''. Mas seria bem difícil, até mesmo impossível, t1111a indústria. As periodizações da história da arte, até mesmo e
0 (>b1·etudo da história bem recente, dizem respeito a ele realmente?
prever o que nos será oferecido nas galerias ou nessas exposições;
não podemos sequer esperar sermos, necessariamente, surpreen- /\i11,da não ficou claro. Não se tem mais de lutar para que um
didos. E se penso em ''músi~a contemporânea", é ainda pior; difícil t·i11 casta seja reconhecido como artista e seus filmes como obras
pensar algo abrangente sobre ela se não sou especialista, a não ser ( st\ri a preciso, antes, lutar para que não se comprometa nem a
o fato de que ela não é "clássica'' e, geralmente, inaudível para o ,,rre> 11em a idéia de obra atribuindo-as a qualquer coisa). Mas o
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vulgum pecus. Mesma coisa para a ''dança contemporânea''. Os , 111 c 111a, arte contemporânea''? Não é óbvio.
Quase se poderia dizer que, fmalmente, foi alguma coisa de publicando, e na escola de pensamento difusa que eles e11ge11 -
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sua economia ideológico-estética tão particular que foi imitada e draram, ao longo de gerações amontoadas numa alegre
alcançada pelas outras artes: produzir uma instalação, às vezes, continuação-contradição. Lembro-me de minhas altercações
requer o orçamento de um pequeno filme. E que toda a questão da épicas, já faz quase 15 anos, com Fabrice Revault d'Allo1111es, que
modernidade se deu, aliás, em outra parte, fora dele, no mundo escrevia seu livro sobre a luz no cinema. Sua tese era simples, mas
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dos críticos e dos marchands de arte. Não é, porém, totalmente essa simplicidade me revoltava: como se podia esperar descrever
possível. Se quisermos levar o cinema a sério, como algo diferente 40 anos de cinema com um crivo tão grosseiro quanto ''clássico/
da diversão, algo diferente da indústria que organiza a diversão, se moderno'' se, além disso, identificava-se o clássico com o filme com
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1111 quisermos acreditar que o cinema foi também um meio de roteiro escrito, realizado antes da guerra nos estúdios hollywoo-
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expressão, e até mesmo, durante um século, o meio de expressão dianos, e o moderno com a câmera que descobre ontologemas do
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mais fecundo, mais inventivo, mais atual, é preciso que nos cinema rosseliniano da ·segunda fase e de seus rebentos? Meu
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perguntemos por que ele apareceu como moderno. Por que ele espanto nunca se enfraqueceu diante do vigor dessa crença. No
apareceu como uma peça constitutiva, e não como uma peça entanto, como toda religião, esta fascina pelo modo como a
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reportada, ''da'' modernidade, de nossa modernidade (nós, doutrina foi elaborada e propagada. Ela teve seus profetas,
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habitantes dos países industrializados que temos o luxo do encabeçados pelo jovem Jacques Rivette; seus escritos, de Daney a
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p~nsamento estético)? Por que ele teve dificuldade de desenvolver, Deleuze, e vice-versa; seu propagandista, o Jean-Luc Godard
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1 quase sempre com má consciência, esses pólipos que chamamos de pauliniano de História(s) do cinema; e sua congregação da
vanguarda, quando eles foram, nas artes estabelecidas, a ponta propagação da fé ( dirigida com um ardor esplêndido por meu
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visível da modernidade? E por que, a despeito de tudo, se pôde ter amigo Bergala). Só lhe falta a vítima propiciatória (ainda que a
Ili I o sentimento, não apenas de que ele havia coincidido com a biografia de Rossellini por Tag Gallagher não proíba ver o grande
1 modernidade, mas que a encarnou, que teria havido um ''cinema I{oberto nesse papel). Religioso? Eu diria, arites, místico. Religião
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,1 moderno'', singular, diferente de todas as outras maneiras de fazer ve1n de religio, que contém a idéia de laço ( um laço social). O
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cinema? E, além disso, esse cinema moderno teria dado cria. Longe 1111st1co so se preocupa em estar no verdadeiro, o que quer que a
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de se apagar diante de outras concepções e de outras escolas, como 111t1ltidão diga e pense; só lhe importa o contato imediato com
todas as modernidades bem educadas fizeram, em pintura, em l) eus. O deus da crença no ''cinema moderno'', a princípio
literatura et alii, esta teria tido a pretensão de durar. O que estot1 itie11tificado simplesmente com o Deus cristão, tornou-se, depois
dizendo: ela teria tido, ou ainda teria, a pretensão de ser a essência tlc passar pela lavagem lacaniana (portanto, remotamente, pelo
do cinema, sua profundidade, sua lição absoluta. r1ictzcheísmo, via Bataille), algo como o Real. Também não pode
:~l\r conhecido, embora seja menos exultante (imagina-se mal um
O projeto deste ensaio surgiu de meu espanto, sincero e
t xlase destinado a encontrar o Real), mas isso desempenha muito,
i11cessantemente renovado, diante do credo do ((cinema moder110"
l l< ~111 o velho papel da transcendência.
e 1n vigor aqui mesmo, nos Cahiers du Cinéma que estão Jll l'
li ' si só ingrata, de me perguntar se, como, por que, quando e até própria ambigüidade da relação entre o cinema e a posteridade, ou
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onde o cinema, realmente, "foi moderno''. seja, entre o cinema e seu tempo, e também entre o cinema e a arte.
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De fato, se tivesse dependido do juízo crítico a seu respeito,
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o cinema não teria sobrevivido por muito tempo, a não ser como
prática do sábado à noite, prefiguração da televisão de massa. Ele
era criticado por duas coisas. Em primeiro lugar, por sua tolice,
sua falta de elevação espiritual e cultural: ''O abuso cinemato-
gráfico, até mesmo da variedade dita instrutiva, não parece
at1mentar muito as inteligências. Quanto ao cinema dramático e,
se se pode dizer, literário, é uma escola perfeita de aturdimento''
(l{émy de Gourmont, em 1914). Crítica sem recurso - ainda mais
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cinema saberá responder, e até mesmo duas vezes e não uma. Em particularmente, a imagem literária, tão preciosa, como disse
primeiro lugar, ao demonstrar que podia, ao contrário, tornar-se com amargura Duras); no fundo, ele nos impede de viver em geral,
o veículo privilegiado da fineza dramática ( é um dos maiores pois nos faz viver demais por procuração (tema, dessa vez, da
momentos dos anos 1930, com Guitry, na França, e Ben Hecht, no socioideologia mais comum, a que pensa que é preciso proibir os
estrangeiro). Em seguida, e de modo mais sutil, assumindo sua filmes violentos na televisão).
tolice, demonstrando que ela só aparece assim aos olhos dos Antes da Primeira Guerra Mundial, tais argumentos pare-
''semi-hábeis'' ( como diria Pascal). À maneira deles, os ciam inatacáveis: uma prática tola e psiquicamente perigosa não
surrealistas, vangloriando o cinema de igual para igual com a arte podia ser levada a sério; a fortiori, ela não/podia pretender o título
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dos loucos e das crianças, perceberam esse poder de transcender a de arte. Quando, em 1903, Debussy recomenda que se livre dos
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tolice. Clément Rosset disse o mesmo, com argumentos mais problemas de encenação do Anel wagneriano, confiando-os ao
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li ' elaborados. cinematógrafo, não se sabe até onde ele estava brincando .
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A segunda crítica é mais insidiosa, porém, mais profunda: ,. Olhando de longe, essa obstinação em conduzir o debate no
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'<O cinema implantou-se de tal modo em nossos costumes, em terreno da arte é estranha. A arte é uma noção vaga, muito evolu-
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1 nossa existência, que já não sabemos se as dores são verdadeiras e tiva (hoje vemos bem isso); ela só pode parecer evidente com a
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condição de adotar a definição, coerente e sólida, mas não eterna,
as alegrias reais ou se elas não são apenas uma encenação
espreitada pela objetiva'' (anônimo, Fantasio, no mesmo ano de
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que o século XIX burguês havia elaborado. Além do mais, esses
1914). O cinema é um ladrão e um fazedor de truques: ele nos debates realmente esqueciam o que tinham sido, outrora, as artes
rouba nossas emoções verdadeiras e as substitui por seus afetos agora consagradas: a poesia, fustigada por Platão como perigosa
artificiais, que ele ·faz passar tão bem por verídicos que nossa para a coesão da sociedade; a pintura, violadora de proibição
própria vida é atingida e transformada. A crítica não é nova-; ela já veterotestamentária; a música, julgada voluptuosa demais por
foi feita há muito tempo, a toda imagem ( é o esquema mental da Lutero para que fosse tocada durante os serviços divinos etc. Mas
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iconofobia platônica) . Mas ela insiste, durante os 20 ou 30 foi justamente por causa do caráter penetrante da definição do
primeiros anos do cinema, e até mesmo depois, tomando sua século XIX, de suas origens românticas, que faziam com que lhe
forma nobre, por exemplo, em l(afka, para quem o cinema ''nos fosse conferido, surda ou ostensivamente, um valor de
impõe sua própria inquietude'~ ou em Julien Gracq, falando das ·p ensamento (um valor especulativo , como diz Jean-Marie '\
imagens de cinema que se ''enquistam'' no psiquismo, e não podem Scl1aeffer), que a arte era o horizonte inevitável, se se quisesse que
ser desalojadas (cito ambos de memória) . O cinema nos impede o cinema saísse do gueto do <'divertimento de hilotas''.* Até mesmo
de viver: uma primeira vez, durante a projeção ( é o tema de <> gosto surrealista pelos filmes <'idiotas'' supunha que se podia
l)artl1es, que critica o cinema de impedir de sonhar ou de se c11contrar alimento mental na idiotice.
c11tregar à contemplação); uma segunda vez, depois ( ele nos
i111 1)ôs su as i1nagens, privando-nos das nossas, apagando , Cf. Georges Duhamel (1884-1966), in Scenes de la vie future, 1930. (N.T.)
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Uma tolice, mas perigosa, pois tinha, além de tudo, o poder melhor dos casos, um desdém divertido; no pior, uma vaga
de mudar sua alma ou de roubá-la: é de somenos que se tenha repulsa. Os olhos dos segundos estavam ocupados demais com o
resistido a reconhecer nele uma arte. Podemos nos perguntar, em cálculo de sua própria e iminente derrota (o fauvismo, o
compensação, por que não foi identificado aí um fenômeno expressionismo, o cubismo, o orfismo e outros) para perceber o
moderno. Provavelmente isso se deve à ambigüidade da idéia ponto de junção imprevisível entre sua arte e essa modesta técnica
moderna do início do século XX, encurralada entre modernidade das aparências móveis. Desencontro.
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técnica e científica, de um lado, e modernidade ideológica e (
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estética, de outro. O cinema é inegavelmente uma invenção
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Ili técnica, bem nova - mas deficiente, por seu caráter mecânico e seu
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11 pouco interesse científico; é o leitmotiv de um Marey diante dos
Lumieres (retornando, ainda hoje, à mercê das comemorações).
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Ili 1 O cinematógrafo pertence profundamente ao século passado, ele
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1111 tem um pequeno lado Júlio Verne: uma invenção prodigiosa, mas
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1 propósito da literatura)? Os emblemas do século XIX, cuja lista
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Walter Benjamin arrola com base em Baudelaire (a passagem, o •
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Do cinematógrafo ao cinema, o que se atualiza é,
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portanto, a passagem de uma técnica a uma arte moderna,
imediata e inteiramente moderna. O cinema propriamente dito
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existiria afastando-se de três taras ( ou invertendo-as): seu caráter
superficial de atração de feira, que lhe barrava o caminho da arte;
mais sutilmente, sua lealdade tardia à ideologia simbolista de fim
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de século (da qual Élie Faure testemunhará de modo ainda
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eloqüente); e enfim, sua periculosidade ou, no melhor dos casos,
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Burch e seu "modo de representação primitivo''; sobretudo, ver é a da velocidade - outro clichê, porém, mais recente, mais atual e
Tom Gunning e seus inúmeros artigos sobre o modo ''atracional'' ao qual a filosofia conferiu alguma notoriedade há pouco. O
do primeiro cinema). automóvel acelera os transportes, a eletricidade torna as comuni-
Quanto ao simbolismo, não poderíamos repetir o bastante cações a distância instantâneas, e uma técnica_~ue foi batizada
sobre sua influência no cinema mudo (Alain Masson), e até na com o nome grego do movimento não poderia ignorar tal
obra falada de cineastas nascidos pouco antes do século, como contexto. É o triunfo dos ideologemas futuristas, até mesmo fora
Hitchcock. O simbolismo, na literatura, é uma tentativa de ir da Itália, em um terreno rapidamente escorregadio (ele levará aos
i ,1 além dos limites da linguagem em um equivalente verbal da totalitarismos), o do homem novo, do homem máquina, do
imagem, e era lógico que isso permitisse a homens da imagem, homem sem sentimento. O homem com a câmera será o epítome
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pintores, em primeiro lugar, cineastas, mais tarde, acreditar que a dessa modernidade (aliás, sem reivindicação de arte, mas esse
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imagem era como a invenção de uma nova linguagem. É sabido o filme só será visto como obra de arte). '½. terra escorregando sob
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quanto essa crença simbolista conseguiu encerrar o cinema mudo u~ ca?ô de automóvel. Dois punhos cerrados. Uma boca que
nas ilusões do ''esperanto visual''. Teria o cinema se tornado grita. Arvores engolidas, uma atrás da outra, pela goela da tela. O
aceitável como arte se tivesse permanecido nessa ideologia? pensamento rivaliza rapidamente com o desfile das imagens. Mas
Podemos duvidar disso. Existe, com efeito, ot1tra sensibilidade nos ele se atrasa e, vencido, experimenta surpresa. Ele se entrega. A
anos 1920, e mais apta a fazer, do cinema, a um só tempo uma arte tela, novo olhar, impõe-se a nosso olhar passivo. É nesse instante
e um momento da modernidade. O simbolismo, por mais eterna que o ritmo pode surgir." É de René Clair, mas é a mesm.a
que seja a aspiração a se expressar sem ou sob a linguagem falada, modernidade da velocidade a que visava também Jean Epstein, em
e1·a, depois da guerra, uma estética caduca, por seu próprio seus textos e - sem muito acerto - em La glace à trais faces (que vem
sucesso. A imagem fala, exprime, vale tanto quanto a linguagem: de Paul Morand, o ''homem apressado''). Epstein é mais
os pintores demonstraram amplamente isso, e o expressionismo interessante que Clair, como cineasta e sobretudo como escritor e
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foi sua última e ingênua manifestação. Mas em cinema, essa via - a filósofo .do cinema. A idéia de ritmo, com efeito, embora crucial,
do caligarismo e depois do ''cinegrafismo'' - não leva muito longe, já é banal em 1925, e sempre diabolicamente difícil de ser definida.
pois não faz justiça à sensação: parecendo exaltá-la (as imagens de Quando Epstein, em compensação, retoma a palavra de Deluc -
Caligari, de Genuine ou de Raskolnikow são comoventes), ela a fotogenia-, prontamente lhe confere uma versão dupla-face dela.
reduz a ser apenas o primeiro estágio de um processo de signi- Por um lado, é uma palavra ''boba'' (cucul-la-praline, Cendrars),
ficação bem pesado e, geralmente, decepcionante (o significado é, que prolonga a herança simbolista sob um aspecto adocicado e de
finalmente, bem pobre, e o filme é atacado por tê~lo dito de modo cartão postal, aquele que Le ballet mécanique fustigará nos planos
do balanço. Mas há também uma fotogenia ''nervosista'', a de
tão indireto) .
Chaplin, a do herói histérico e, numa antecipação espantosa de
De fato, a verdadeira modernidade do cinema dos anos
Deleuze, a do herói cansado. Por um lado, as brumas e as gazes, 0
1920, e a dos anos 1930 também, por contágio, não é a da image1n,
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permanente, entre uma sensibilidade.vindourista* (para não diz.e r
fora de foco artístico e as fotos de Julia Cameron; por outro, as
futurista), um cinema moderno de velocidade, de fotogenia, de
buzinas e os raccords brutais, o cinema como um fluido nervoso,
movimento, e uma modernidade já histórica, preocupada com a
em que o gesto contamina o gesto.
tradição, até mesmo para fustigá-la, traí-la ou negá-la. Não é por
Com o movimento, com a fotogenia, que é seu conceito
acaso que, em seguida, os historiadores do cinema hesitam tanto
(apesar de vago), o cinema torna-se a um só tempo moderno e
.. sobre o status des-se momento da estética e da ideologia do cinema .
artístico: ele encontrou sua modernidade simplesmente ao se
Escola impressionista, como quis. Georges Sadoul? ,Q.u vanguarda,
integrar à modernidade. Ela própria de duas faces, como sempre,
((primeira vaga'' do cinema francês, como propuseram Henri
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designando a um só tempo o presente, o atual, o último grito
Langlois, Noel Burch e Jean-André Fieschi? Movimento identi-
contemporâneo e a enigmática "parte efêmera da arte''
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ficável, copiado das artes ((nobres'' (no caso, a pintura), e que
•.li baudelairiana, componente superficial e datado de uma beleza
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poderá se confrontar de modo mais ou menos polêmico com
((eterna". A modernidade artística tinha mais de meio século
outros movimentos, tal como o expressionismo? Ou vago, sem
quando o cinema se junta a ela; ela já vinha trilhando uma história
forma como toda vaga, mas como ela portador de esquifes ( como
que será a da ·r enúncia à eternidade e à beleza, do culto cada vez
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se fossem simples pranchas de surfe)?
mais unívoco do efêmero, do ((movimento''; o moderno vai se
É nos anos 1910 e 1920, depois de uma breve fase de ('primi-
tornar "tradição da ruptura'' (Thierry de Duve). A arte moderna . . )) .
t1v1smo , que o cinema toma realmente forma: um ((primeiro''
1,1: vai encontrar o movimento da civilização moderna, ou seja, o
cinema, mudo depois falado, procur.a ndo em várias vias seus
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ções da modernidade. À idéia militar, estratégica, da força que qual é o assunto; ele regurgita alusões enigmáticas, até mesmo
caminha na frente para ((enfraquecer o inimigo em prol das que crípticas, que hoje, para serem decifradas, necessitam da inter-
virão depois dela'' (Kenneth Anger), é preciso acrescentar a idéia venção de exegetas especializados (ver os textos fundamentais de
que ccse enraíza na antecipação estética do futuro, conforme o Iouri Tsyviane) . Em compensação, no plano dos conceitos
modelo schilleriano'' (J. Ranciere). A história da vanguarda é a de cinematográficos, seu ·poder de fascinação continua intacto, e há
uma confusão das duas noções, a idéia arquipolítica do partido e mais de 30 anos já não se podem contar as publicações
a idéia metapolítica da '(virtualidade nos modos de experiência especializadas que o glosam, nem as declarações entusiastas que o
sensíveis, novadores de antecipações da comunidade por vir'' (G. reivindicam, nem tampouco os plágios e os revivals. Como a de
Agamben). A vanguarda está sempre entre política e estética. Vertov, a modernidade de Deslaw (La marche des machines), de
Não é diferente no cinema, e as vanguardas dos anos 1920 e Chomette (Les jeux de la vitesse et de la lumiere), de Léger (Le ballet
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''li 1930 oscilam com regularidade entre esses dois pólos. A mécanique), todos igualmente fascinados pela mecânica e p ela
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concepção militar e estratégica é a mais rara, por uma razão eletricidade, é uma modernidade negadora de passado e grávida
simples: ela não pode ser concebida sem se apoiar em um aparelho de futuro, até naquilo que o futuro tem de inquietante.
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político conseqüente. Só Vertov tem realmente os meios para isso; As vanguardas do cinema dos anos 1920 e 1930 foram
nem na Itália nem na Alemanha, os totalitarismos desejarão . durante muito tempo mal aval1adas, em grande parte por causa
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realmente se munir de uma ponta de lança cinematográfica, de sua cegueira sobre si mesmas. Reivindicar-se como arte
1' apesar da carreira germano-italiana do alemão Ruttmann absolutamente autônoma não era, para o cinegrafismo e outras
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(Acciaio, O aço, 1933, seguido de Metall des Himmels, Metal do céu, vanguardas mais ou menos abstratas, uma posição sustentável.
1935, e para terminar Deutsche panzer, Blindados alemães, em Quando Germaine Dulac pretende que ,co cinema não é a cópia do
1940) e os dois ou três ensaios de Riefenstahl. De O décimo primeiro romance ou do teatro, ele não é a cópia das outras artes, ele não
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ano a O homem com a câmera e Entusiasmo, Vertov constro1 deve nada a elas': seu desejo de independência estética a impede de
sistematicamente a idéia de um ,ccinedeciframento comunista do pensar como produtivas as relações entre o cinema e a pintura, a
mundo", submetido em seu princípio e em cada uma de suas poesia, o rom~nce, ou seja, de compreender a situação do cinema
modalidades aos imperativos da construção do socialismo, até como arte (inventada, é claro, mas numa ·sociedade que praticava
mesmo nos detalhes do Plano. todas as outras havia séculos). Quando a mesma Dulac, ou seu
Portanto, é a utopia que domina, até mesmo em Vertov. colega L'Herbier, lamenta incessantemente que o público não
Não é por acaso que seu único filme a ter realmente sobrevivido (e aprecia, não pede, não recebe seu cinema, tende a fazer desse
não apenas por razões de cópias perdidas), O homem com a tl. esprezo da multidão, um pouco rápido demais, um critério de
câmera, é também e antes de tudo um manifesto de cinema. Não se t1t1alidade artística (ora, o público não é necessariamente imbecil).
trata de fazer propaganda para a sociedade ''socialista'', e aliás, Sem dúvida, as vanguardas pictóricas e literárias, também
vendo o filme, não se compreende grande coisa se já não se sabe ('las, pretendiam se dirigir a um público de conhecedores. Mas é o
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desprezado pela multidão é necessariamente bom (abrigando-se,
por exemplo, sob o aforismo de Cocteau, "o que o público lhe
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censura, cultive-o, é você''). Jamais estruturadas em verdadeiros
movimentos, com objetivos claros e fronteiras afirmadas, essas N os anos 1920, ainda era possível ficar dos dois lados,
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1 vanguardas do cinema desempenharam, é verdade, por muito interessar-se igualmente pelos ímpetos vanguardistas e pelas
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tempo, um papel difícil de precursor (do cinema dos artistas, tal produções de massa (o que acarretava, em geral, críticas que
como a galeria de arte e o museu o acolhem e produzem há 20 ·ou pretendiam ser melhoradoras, receitas para transfu11dir no
11 1 30 anos). Mas elas não tiveram, no cinema em geral, o papel de grosso do cinema um pouco das virtudes dos experimentadores).
motor, de incitação, de ponta avançada do possível. A moder- O aparecimento e a instalação definitiva do cinema falado, a
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nidade se desenrola sem elas nos anos do primeiro cinema. consolidação do sistema industrial maior, o de Hollywood,
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vivência dificultosa e aleatória dos valores da imagem de t1111a arte pelo qual um rapaz de pouco mais de 20 anos designa, no seio da ,
muda amplamente fantasmática, e sim, baseado e111 valores arte que o preocupa, uma revolução parecida com a do
paradoxais - populares, ''baixos'', idiotas - que tinham sido os do romantismo: o romance nascente, no início do · século XIX
cinema desde seu estado primitivo. fascinava pelas novas possibilidades que oferecia em relação a~
É sobre esse pano de fundo de um cinema ''nor1nalizado'' - e mundo e ao pensamento; agora, com o cinema, pode-se ''escrever''
0 que se quer, como se quer, sem limites. O cinema do entre-
de modo algum, é preciso salientar, sobre um terreno vanguar-
dista - que é lançado, uma bomba incessanteme11te celebrada guerras envelhece, mas de modo ambíguo: ele não é mais de
desde então, o filme que assina o fim da inocência e a entrada atuali~de, a audácia do jovem Welles o faz caducar; entretanto,
I' ,
1 1 voluntarista numa espécie de idade adulta, Cidadão Kane. Depois sua _solidez logo cria um classicismo e, até mesmo, no duplo
1
do filme de Welles, continuará a fabricação de prodt1tos norma- sentido do termo: o que é santificado pela antigüidade e O que
li
'll ,1 1
tizados, conformes às regras mais ou me11os lógicas, 1nais ou pode desempenhar o papel de modelo estético. Mal tinha sido
1 1
menos universais, elaboradas por Hollywood, mas se saberá que revolucionado por Welles, Hollywood reage, a princípio censu-
1
'
1
1
existe outra possibilidade de cinema, que não apenas autoriza a ~ando a novidade (nem Welles nem mais ninguém terá a mesma
1 1
111
11 !
virtuosidade narrativa - misturar os tempos e as vozes -, de como lib,e~dade d~ ~~iação ), depois impondo, com a benévola ajuda da
permite reivindicar a responsabilidade plena e inteira do dizer ·e cr1t1ca, a 1de1a do classicismo hollywoodiano. (Noto na
" . )
do dito, em suma, de comportar-se como autor de film'e s, ocorrenc1a, que foi a crítica francesa - que devia estar nos postos
seguindo o modelo então confesso do romancista. André Bazin, ~vançados da estética durante um tempo bem longo _ que
sempre perceptivo, não se enganou quanto a isso, ao declarar que, 111ventou essa idéia de um ''classicismo hollywoodiano': uma idéia
com e depois desse filme, ''o cinema é, enfim, o igual da literatura''. tiessas era incongruente demais para um americano.)
O igual: não o vassalo, não o equivalente, não uma vaga Já estava claro, depois da guerra, que o cinema dos anos
lembrança, e não, também não, o concorrente. ((Fazer cinema'' é 19 20 e 1~30 tinha sido popular em grande parte porque aderia à
''
1
1 1
igual a ''fazer literatura''. .,,·t(.' de viver de uma época ''moderna': como O jazz, ao qual ele foi
llj
Para um crítico iniciante, como era então Alexandre t ·' 11 t·as vezes a~sociado (positivamente, em Seldes; negativamente,
111
Astruc, o choque foi enorme. Saía-se de uma idade em que o •· Aclorno ). E realmente possível falar de classicismo a propósito
cinema tinha forjado para si, artificialmente e de fora, ~ormas às ' 11 • ti, 111 a prática essencialmente fundada em modernidad e,
quais devia obedecer, para se entrar numa idade cujas únicas
regras sãd a vontade e, até mesmo, o capricho dos autores. A
l tH'11 u· s.c lingL1agem. Uma linguagem, ou seja, uma forma na quctl e pela qual
famosa ''câmera-caneta'' (caméra-stylo),* não é mais que o slogan 11111
n rl.1sta pocle expressar seu pensamento, por mais abstr<:1to que seja, ou
11 ttlii 1.1r Sltas obsessões exatamente como acontece ho,ie ·
1 no ensaio ou no
!·
_ _ " ., . ..
1
• t1n.1t~ r c (( ,t Aiimont ~e M. Marie, Dicionário teórico e critico do cinema.
* Exp·ressão forjada por Alexandre Astruc, em 1948-, em um artigo de L'écru11 1
11
' ' " 1nt1o s: l\ t~1 1rL1s, 3ª ed. 2007. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro, p. 42). (N.T.)
française: "Nascimento de uma nova vanguarda, a câmera-caneta': «o ci11e1J10
acompanhamento constante da vida moderna? Tal paradoxo, pensaram que a ordem ''clássica'' indubitavelmente alcançada por
reforçado por outros mitos, como o da '' idade de ouro dos Hollywood ( e hoje passível de ser estudada com a frieza da retros
estúdios'', será revirado em todos os sentidos até o fim dos anos pecção científica, ver o livro de David Bordwell e seus acólitos) era
1950 pela escola dos Cahiers e suas vizinhas. Grandes estetas de uma espécie de equivalente da tragédia clássica, com suas regras e
épocas passadas, como Eric Rohmer e Michel Mottrlet, defen sua arte poética..Ora, não passava de uma ordem padrão.
derão seriamente a idéia, não apenas de que pode existir um
classicismo cinematográfico de mesma natureza que o das outras
artes, mas de que, não tendo ainda o cinema atingido seu apogeu,
(·
li
ele tem seu classicismo diante de si. Rohmer tirará daí a co11clusão
1
11
'' " .
de que o cinema é superior a todas as outras artes que, i,cndo
lil 1
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5
11
11
11
11
1
111 <,< lt·rr1id.ade da eletricidade e do automóvel foi ultrapassada
1 1
1I" 1 •l,,1, :1111t·11 to das artes durante tantos anos - vai-se procurar
\ l.1111 <,s
<.~11co11trar duas (sem contar todas as outras) . A mais
• 1,1 . 111 ('. :1 111 :, i:-, l(>gica, a que foi, geralmente, mais percebida na
1· , ,1t11 i1 ,.,,,H:t, v a de ·welles. Cidadão Kane parece ter resolvido e
1
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1
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story a It happened one night, de Platinum blonde a Wedding presente montagem, onde pode exercer um controle absoluto sobre seus
muitos outros. Com a réplica de Kane, ''J think it would be fun to run filmes; declara prezar a forma do ensaio, ''os filmes cheios de
ª·newspaper':* e seu eco automático (''o cinema é o trem elétrico opiniões, expressão da personalidade e das idéias de seu autor'';
mais maravilhoso que se pôde sonhar quando criança), a junção se afirma trabalhar sob o olhar de uma transcendência, ''talvez seja a
· dá imediatamente entre o personagem Kane, o ator Welles e o autor Lei, talvez seja Deus, talvez seja a Arte ou qualquer conceito, mas
mítico Welles. Cidadão Kane enlaça estreitamente um \assunto deve ser maior que o homem': Ele teria dito: ''Theatre is a collective
tradicional do cinema americano, a violência exercida contra essa experience; cinema is the work of one single person''. * Discurso
tradição (pelo obscurecimento absoluto do herói e o disparate da admirável, tão coerente quanto congruente à situação, mesmo
1:
1 narração), e o autor dessa violência, um wonder boy bem não sendo sempre verificável nos filmes.
,, 1
roteiristas. É a época em que Hollywood manda buscar os c11tre o pequeno número de obras que figuram em sua exposição
melhores escritores americanos, quase todos antigos jornalistas. l( Voyage(s) en Utopie': em 2006). E, sobretudo, é uma persona-
Ben Hecht é o modelo deles; ele coleciona óscares, a ponto de 1i(lade enorme, invasora, sedutora, um mestre na arte de se
acabar, ironicamente, servindo-se deles para calçar as portas de :11 1 resentar como mestre. Sua modernidade é ''paradoxal'' (F.
sua casa. Produto de um dos mais reputados desses roteiristas 'J'I1<>n1as)? Ele se descreve de bom grado como um homem do
(hoje esquecido, em prol de seu irmão Joseph), Cidadão Kane l >:1ss~1do? Seus filmes passam lições ambíguas quanto ao
nunca foi visto senão como obra de Welles. Dentre seus traços de 1>I'< >1~ rcsso? Em sum_a, há, nele, uma incurável nostalgia? Pouco
gênio precoce, Welles teve o seguinte: ele soube imediatamente
.
j,, 11 1(, r l~1, ele é um ícone moderno, tal como Manet ou Picasso; o
como se colocar como autor, como artista, mesmo se tomando I ' , t ) 1l ri<) fato de ele se tornar, após Kane, o mais célebre lo ser de
algumas liberdades com os fatos - e isso é essencialmente moderno f • )( 1:, ti I1istória de Hollywood nutre a lenda.
( Godard não esquecerá a lição; é verdade que ele tinha essa
/\ te:m poralidade da vanguarda é o futuro, ela não pensa
disposição). Em uma célebre entrevista com André Bazin (e ,, . d111 l' lll t\ t1 0 presente. Como utopia e dogmatismo sempre se
Charles Bitsch), ele se apresenta como um cineasta da sala de
"'ll ·,11.,·<> (' u111a experiência coletiva; cinema é o trabalho de uma única pessoa:'
* c½.cho que seria divertido dirigir um jornal>: (N. T.) (11 .' r.)
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Moderno? 41
deram bem, a vanguarda sempre se baseia em um programa
cinema americano, e de seu duvidoso "classicismo': para a idade
~xclusivo ( e na guerra declarada aos outros programas). Ao
adulta e moderna. Foi u1n crítico um pouco mais jovem, Jacques
contrário, a temporalidade moderna por excelência é o presente,
Rivette, que, alguns anos mais tarde, teve a intuição de que a missa
um presente voltado para o passado, um presente que talvez
não tinha sido dita, e propôs, em algumas fórmulas singular-
quisesse melhorar O passado, e, portanto, um presente que é feito de
mente tocantes, consagrar outro arauto da modernidade. Em sua
tradições. Welles não procura prescrever uma maneit;a de fa~er
''Carta sob1·e Rossellini': ele escreve a um grupo, de modo ami-
cinema (mesmo que tenha imitadores ou parodistas). Ele emite,
gável, mas a priori reticente, argumentando, diz ele, sem procurar
em filmes amplamente "teóricos", propostas sobre as imagens, até
1 convencer. Essa carta, entretanto, cheira a manifesto, e logo o
mesmo sonoras, e sobre seus agenciamentos narrativos, em st11na,
será. Manifesto de quê? De uma modernidade cinematográfica,
propostas a um só tempo abstratas e concretas sobre o exercício de
reivindicada como tal, e que, dessa vez, não provém de nenhum
sua arte. J(ane vale por seu questionamento da técnica invisível: ele classicismo, mas se funda por si só.
deixa ver a técnica. Melhor: ele deixa ver que ele a deixa ver. De
A argumentação - em 16 pontos - vale ser le1nbrada. Ela se
todos os traços modernos, certamente o que Welles pratica com
rcd11z, em suma, a três teses Il).aiores:
mais naturalidade é a reflexividade: uma obra moderna é sempre
também uma declaração a propósito da arte. A linha Welles, desse
ponto de vista, continuará, quase idealmente, em Alain Resnais, 1ª) a liberdade do cineasta, que não se conforma com
grande amador de experiências, cineasta que exige ~ue, a ca~a nenhum modelo estético-formal a priori; Rossellini não é
novo filme, um outro possível, mesmo menor, do cinema seJa um '<velho mestre': ele tem a latitude de procurar; aliás,
criado (ver sua apaixonante entrevista com Liandrat-Guigues e ele não procura nenhum estilo pessoal, ele é inimitável;
•
Leutrat). E, é claro, em Godard (mas Godard não se contenta ele se permite o esboço, ele se permite até mesmo
com uma concepção da modernidade, nem, aliás, em ser continuar sendo um amador, pois seu or•jetivo não é a
moderno) . Como ''homem do Renascimento'' que era, Welles obra, e sim o ensaio (lembrança de Astruc, dez anos
'
tinha ao menos percebido sua situação de renovador. Con10 d.epois da ''câmera-caneta'');
li 1 ,,
• I
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Moderno? 43
modo, o contrário do cinema clássico, no qual o autor é qualquer jeito: o que não quer dizer, de modo algum, que são mal
onisciente, mas não vê, propriamente falando, nada. filmados (eles são bem expressivos) ou filmados de modo
negligente (o sentido é sempre salientado sem equívoco), mas que
Este último traço, o anticlassicismo, está no cerne do artigo não existe regra ~ priori de filmagem. A câmera está ali, ela vê 0
de Rivette: o cinema de Rossellini é adaptado à época; todas as suas que precisa ver, e de um ângulo que não o torna confuso: quase
qualidades, uma por uma, são anticlássicas (mesmo, parado- toda a gramática de Rossellini está nesse filme . Mas essa
xalmente, uma série de qualidades cristãs); em su1na, ''se há um prescrição (já bem importante de ser notada, em uma época em
/ . .
cinema moderno, é este aí''. Excelente gesto crítico - até 1nesmo .f~1n que, ao contrario, o cinema narrativo devia obedecer a regras
sua parte prospectiva, que prediz que dali em diante os jove11s que precisas, que deviam ser aprendidas) não é fácil de ser imitada.
querem fazer filmes o farão inspirando-se nesse 1nodelo. Não se Onde pode estar, desde então, o proveito de Stro.mboli para 0
prestou muita atenção a isso: a modernidade que Rivette descreve aprendiz-cineasta ( e acessoriamente, para o esteta adormecido
não é uma modernidade teórica, não é a declaração de um 11ele)? Na posição ideológica do cineasta, mais do que em sua
historiador da arte constatando a sucessão mais ou menos posição técnica. O filme é, em sua essência, um grande
canônica dos períodos, é o credo, panfletário e radical, de um rn ovimento de raptus, de emoção viva, que culmina com a longa,
artista que se diz contemporâneo, é quase um gesto vanguardista l'errível e catártica cena da conversão da atéia na encosta de
em sua radicalidade. Para o jovem crítico dos Cahiers que se St1~omboli. Mas esse culmen foi preparado por outros raptus
prepara para se tornar cineasta, Rossellini não é o moderno de um r>a reiais, cada vez mais fortes: o furão matando o coelho, a pesca
11
clássico anterior, nem o frm de uma história que teria começado tle atum, a erupção do vulcão e a fuga dos habitantes. Rossellini
em um primitivismo; ele não é, tampouco, o moderno que abole <.f t1c r agir sobre seu espectador, e para isso joga a carta mais
i 111 portante, a da emoção: depois do coelho, dos atuns e do
uma concepção precedente da modernidade ( conforme o
esquema de De Duve, tradição da traição etc.); ele é a simples v 11 leã o, lá estamos nós, rotos, alquebrados de terror delicioso
modernidade, a de alguém que tem 27 ou 28 anos e define o (t ·sse delight onde 9 século XVIII viu a fonte do sublime) -
,..
1)1< >11 l'os, também nós, para nos convertermos.
moderno como o que é de sua época.
Vamos rever Stromboli, e tratemos de vê-lo com os olhos de llever Stromboli é experimentar, a cada vez, a violência dessa
alguém que procura nele uma lição de cinema. O filme, a ' 1i t't ' \ ~1<) 1e espectadores que só tem par na de Hitchcock. Mas a
'
princípio, resiste a essa visão: ele parece, ao contrário, aferrar-se.\ 1•r•>1)ria ~Jerenidade do efeito de choque que esse filme produz não
1,111 t, :1 li (1vida sobre a modernidade? Não seria preciso aqui se
em não dar lição alguma - lição alguma de forma ou de
gramática, em todo caso. Os episódios - mal podem se r 1. 11 il ) i'~t r) jt1stamente, da oposição colocada por Benjamin, entre
chamados de cenas, são, antes, momentos sucessivos que va]e111 ,, 111t.111t is1110 e modernidade? Não é esse filme (ou Europa 51 , que
por uma pequena conclusão momentânea - são filmado s ,J(, 1111 1 ,• l <>111 IJarável por sua estrutura em forma de raptus sucessivos)
; 111 1 1', 1\ 11 t(lc~ filme romântico, ou seja, um filme que visa menos 11n1a
1
-- - -- -
atualidade do que uma eternidade, menos uma intervenção sobre quase que só ela) a fazer de Rossellini o herói e o arauto de uma
o presente do que sobre o presente eterno? revolução estética, com a qual ele não havia sonhado.
consc1enc1a mais e~ata de sua arte; que ele pode se enganar sobre
Assim, diferentemente da modernidade wellesiana, evidente
suas intenções e, mais ainda, sobre o alcance real de suas
e nitidamente reivindicada por seu herói, a tese de Rivette não
realizações; que um crítico pode ser mais lúcido do que ele. Rivette
deixa de suscitar alguma perplexidade. Em primeiro lugar, tinha o
escrevia seu manifesto durante a breve época em que as pretensões
próprio Rossellini um projeto moderno? Sim e não. Globalme11te,
de Rossellini podiam parecer coincidir com as do pequeno grupo
pode-se creditar a ele um desejo de saída deliberada do ci11e1na
de críticos do qual ele fazia parte. Portanto, ele conservava O que
clássico, de ruptura com a tradição. Sua consciência l1istórica -
lhe convinha das idéias de Rossellini - esse misto singular de
outro critério constante de modernidade - é real, embora
1nanipulação absoluta dos personagens e de neutralidade na
singularmente oportunista ( ele roda um primeiro filme de
observação deles, essa posição complexa do cineasta como voyeur
resistência na Roma liberada havia pouco, depois filmes que
e vidente e, incidentalmente, esse considerável distanciamento dos
mostravam heróis fascistas). Outro traço moderno, ele é capaz de
·i deais, bem diferentes, do neo-realismo. O problema dessa
refletir sua prática em termos teóricos gerais; além disso, sua
111odernidade, como modernidade, é o de não ter pretensão à
concepção não variará, no essencial, em quase 30 anos (ver, por
11<>vidade. Rivette fala de um "anticlassicismo" rosselliniano, mas
exemplo, sua entrevista de 1972, com James Blue). Mas a
1 •1 cdiante uma evidente simplificação. A posição de controle do
modernidade rosselliniana, o que veio em seguida o mostrou, não
:1rl ista, à qual Rivette o identifica, não poderia definir o clássico (0
é exatamente o que, apesar da fineza de suas intuições, Rivette
< ,>11trole faz amplamente parte do projeto moderno em geral). Ao
acreditava adivinhar ali - essencialmente porque ela nunca se
{'.'~ l rever sua ((Carta sobre Rossellini)), um ano depois de outro
define no âmago da arte. Rossellini não pára de dizer, bem cedo,
,111 ig<> n1anifesto ("Gênio de Howard Hawl<s''), que era uma
que o cinema não é uma arte, e que, de todo modo, arte ou não, a
·li )< >l<)gi<l da postura mais clássica, da qual ele então se afasta, não
1
1
• televisão é mais interessante. Até mesmo sua prática do non fi11.ito)
11 1• i 1111 )rovável que Rivette projete sobre o objeto de seu estudo sua
do filme como esboço, em cujos detalhes não vale a pena insistir,
111'• •1 1 ria palinódia: perturbado por Europa 51 e Viagem à Itália, ele
não tem determinação artística. O cineasta italiano, se
1
,. \ tl<·l c~ o ~011trário de Monkey business. E por que não? Mas essa
considerarmos a globalidade de sua carreira, foi, efetivamente, a
'
' •1 11 ,,·~ ili·;1<) 11ão é o forte do cineasta. Na verdade, do mesmo 1nodo
encarnação de uma concepção moderna do cinema, mas 11H
1
111 t• We 11 e s era um a figura ide a 1 d e artista 1n o d e r ..1 o () LI
medida em que ele exalta a coincidência entre cinema (depl)i s
11 1•t1l( ·1'11ista> Rossellini, bem rápido, fará de tudo para 11? J ser OLI
televisão) e vida moderna, ou seja, do ponto de vista de u111 ~1
11 1, 1 · i1 ' l' 111ais t11n artista moderno - ao menos no se11tidr negelit111 o
história das mídias, e não no sentido da prática da arte. É daí <]li <:
111 1 111 <· Sl' e11tende a modernidade nos Cahiers du / ,iné111a, e1n
virá o mal-entendido ulterior, que levará a crítica francesa ( r
' ' '' •'' N: 1( > é ele todo surpreendente que essa moder11idade 11ão teve
48 Papirus Editora
Moderno? 49
'
com o fantasma nuclear, com o qual ~e viverá até o fim dos anos vias de se acabar, e que o cinema, tornado finalmente capaz e
1960 (ver o filme, ainda hoje assustador, de Peter Watkin, The wa1,. preocupado em expressar seu tempo, entra em uma forma de
gaine, 1966). modernidade? (Nesse caso, Welles é o melhor candidato para
Quanto à modernidade artística, ela já faz parte da história, encarná-la.) Devemos, enfim, imaginar que novos valores, novas
mesmo que não tenha se dado conta disso plenamente. formas ou novos dispositivos apareceram no cinema do pós-
Sobretudo, ela já deu provas de algumas de suas impotências, a guerra, mudando a própria idéia da arte do cinema e de sua relação
começar pela sucessão das vanguardas, que não trouxeram atrás com o mundo? Essa última posição, vaga, não é, na época,
de si os grandes batalhões esperados. A arte moderna, logo depois majoritária, apesar do brilhantismo da ccCarta sobre Rossellini':
da guerra, é o teatro da maior mutação do século, com a ***
transferência, de Paris para Nova York e em poucos anos, do
O cinema de Welles, o de Rossellini, e o que eles engendram
centro da vida artística. A ''escola de Paris" cede o lugar aos arro-
rompem com aquilo que os precede, e particularmente com os
gantes movimentos da escola nova-iorquina, abstração lírica,
esforços para pensar a modernidade no entre-guerras. Nesse
action painting, promovidos com uma brutalidade crítica até
sentido, podem ser claramente vistos como tentativas modernas:
então desconhecida; dogmas estéticos surgem do outro lado do
elas têm, do moderno, a virtude do inesperado; têm também a
Atlântico, que informarão, decis~vamente, as décadas por vir.
ingratidão traidora para com a tradição mais imediata. Mas, se
Enfim, pródromos de um fenômeno que se revelará essencial, os
lembrarmos que a promessa da modernidade é a de confrontrar a
artistas são encarregados de produzir um discurso crítico
articulação da arte com a política, elas são bem desiguais -
abstrato, teórico e conceitua!, sobre sua própria prática. Barnett
revelando o vivo abismo entre o Antigo e o Novo Mundo nesse
Newman escreve seu categórico The sublime is now (1948);
início da guerra fria. Com esse quadro crítico, sai-se pela primeira
' 1
,,
tão geral que pouco,, se diz respeito às obras. O cinema de autor
Dessa revolução, o cinema ignora tudo, aqui como na mestre e de experimentador racional, à maneira de Welles, e o
América. Nesse fim de era mecânico-elétrica e nesse início de era cinema de médium à espreita, à la Rossellini, são as primeiras
atômica, a escola dos Cahiers é a que mais reflete sobre a situação tentativas para fazer face, pelo viés de uma posição na arte, a
histórica do cinema como arte, mas ela hesita entre várias propostas questões essenciais da época: o poder (versão abstrata, O processo;
contraditórias. Devemos pensar que o cinema tem seu classicismo versão alegórica, Grilhões do passado; versão concreta, Kane); a
diante de si, que a modernidade mal está em questão de tanto que corrupção (A marca da maldade); o heroísmo e a utopia (Paisà ,
parece estar longe? É o ponto de vista, um pouco escolástico, de Roma, cidade aberta), a derrelição (Alemanha ano zero); e até
Rohmer. Devemos, antes, como André Bazin, acreditar que o mesmo (é a tese escandalosa de Rivette) o amor, a renúncia e a fé
cinema teve, efetivamente, um período clássico, mas sucinto e em (Stromboli, Viagem à Itália).
50 Papirus Editora }
Moderno? 51
Consciência histórica, reflexividade, relatividade do gosto \, farão cada vez mais); não terminar uma narrativa (Les petites
( o belo moderno é plural, graduado, variável), arbitrário da margu~rites) ou adotar uma postura tão subjetiva que beira o
decisão sobre a arte. Era preciso começar por aí para que algo ensaio (La pointe courte). Tudo ou quase tudo é possível - no
como uma modernidade e, até mesmo, um modernismo âmbito, é verdade, nunca questionado do filme narrativo e
cinematográfico pudesse ver o dia. "Modernismo'', ou seja, representativo.
modernidade consciente de si mesma, afirmativa, audaciosa, que Foi aí, entre Acossado e o imediato pós-68 (terminus ad
já não luta contra o clássico, e sim contra outro moderno passado. quem obrigatório, fim mítico de tantas histórias e começo do fim
Em 1961, Clement Greenberg, o crítico nova-iorquino que ''fez'' as do moderno) que se deu o que há de mais vivo na possibilidade
vanguardas americanas, declara, no início de seu artigo ccModern modernista em cinema. O momento em que o cinema, perma-
painting", que o modernismo se distingue da simples moder- necendo uma arte de massa, parecia querer se aproximar das
11idade pela ''intensificação, quase a exacerbação, da tendência liberdades e dos engajamentos da arte em geral. A obra de Godard
autocrítica que começou com o filósofo Kant''; uma modernidade nesses dez anos é evidentemente a mais significativa. Reescritura
mais deliberada, mais refletida, mais capaz de teorizar sobre si da tradição jump cuts em série de Acossado ao falso-raccord
mesma, mais consciente de sua situação em uma história da acentuado de Week-end à francesa, da retração dos gêneros
cultura, e que sabe se criticar para se reforçar. (policial, melodrama e, até mesmo, ficção científica) à invenção
Houve, nesse sentido, u~ modernismo cinematográfico de gêneros ( o retrato, Viver a vida, a investigação, Masculino
nos anos 1960? Apesar das diferenças evidentes entre a arte nova- feminino, Duas ou três coisas que sei dela, Uma mulher casada; a
:11 iorquina dos anos 1950 e o cinema de arte europeu cinco ou dez política-ficção, Week-end à francesa, A chinesa). Invenção de
,.,'I
anos mais tarde, eu diria que sim. Poucos anos depois da ''Carta novos modos narrativos, fundados sobre o empobrecimento do
sobre Rossellini'', a profecia de Rivette se realiza em parte, e jovens relato (Tempo de guerra, Made in USA) e sobre a substituição do
cineastas inspiram-se avidamente na liberdade rosselliniana para bloco à seqüência (em uma inspiração mais pictórica do que
fazer seus próprios filmes. A nouvelle vague não é um movimento literária). Re_flexão incessante sobre a representação: Godard, o
primeiro e de modo mais constante, fará da câmera a prota-
1 1
sobre seus atores (Rivette e, de modo bem diferente, Rohmer o teorizará isso em História(s) do cinema, de modo nostálgico,
Moderno? 55
54 Papirus Editora
preocupa e se satisfaz de ser um trabalho de imagens. Como diz
espécie de olho que recorta nele pedaços enquadrados, e um
minimalisticamente o cineasta: ccSe não tenho a eloqüência fácil,
estado terminal da pintura, aquele do qual o impressionismo foi o
ousarei dizer que tenho, antes, a imagem fácil''. Além disso, a
apogeu e o termo. A invenção do cinema foi também a de uma
vigilância, elogiada por Barthes, em 1980, em seu ('caro
nova forma do olho viajante, que havia fascinado todo o século
Antonioni': faz com que cada um de seus filmes seja ccuma expe-
XIX. Mas essa invenção ocorreu, justamente, no momento em que
riência histórica, ou seja, o abandono de um antigo problema e a
a pintura descobria outras veredas. Sempre restou, no modo
formulação de uma nova questão": um modernismo, porém sutil,
ambíguo do recalque, uma paixão do cinema pela pintura e sua
como diz ainda Barthes - e cuja sutileza impedirá por muito
maneira de manipular o visível enquadrando-o, estilizando seus
tempo que se realize que é mesmo um modernismo, e certamente o
valores e suas cores. São incontáveis os filmes hollywoodianos que
mais convincente dentre todos aqueles que se pode batizar com
põem em cena pintores ou quadros - sobretudo depois do cinema
um nome de autor.
falado , como se fosse preciso se redimir com as potências da
Nessa concepção formalista, a obra de arte torna-se imagem. O retrato pintado desempenha nos filmes hollywoo-
importante por algo que não é seu conteúdo. Mais exatamente, é dianos um papel importante - no mais das vezes, um papel
sempre preciso que um eventual conteúdo se manifeste como inquietante ou maléfico, de Laura a Rebecca, de Dragonwych a
conteúdo da forma, retomando a expressão dos formalistas russos Experiment perilous (ver Marc Vernet). A pintura persegue os
(que, como que por acaso, redescobre-se e traduz-se na época). O filmes ambiciosos, tal como O retrato de Dorian Gray, de Albert
traço mais marcante, pois mais genérico, aquele que poderia ser Lewin (ver a análise insuperável de Alain Bonfand). De modo
encontrado em quase todos os filmes importantes entre Viver a mais direto, a arte do câmera foi inúmeras vezes comparada à do
vida e, digamos, Querelle, é o que foi chamado de "hiperen- pintor: o bom câmera é aquele que· pinta com a luz. Godard o dirá
quadramento'' (Dario Marchiori) . A câmera torna-se por toda de maneira definitiva em Paixão, num momento em que não é
parte sensível, por toda parte ,cvisível'' ( como diz Ishaghpour a mais totalmente verdade, em que é uma arte perdida.
propósito de Welles); o quadro pesa sobre a imagem, como uµ1a
O modernismo dos anos 1960 foi, desse ponto de vista, o
., enunciação eloqüentemente muda. É a época das aparições no
momento em que ''o'' cinema esteve, se não mais próximo c<da''
filme da câmera, da claquete, do próprio cineasta. Em 1969,
pintura, ao menos mais preocupado em incorporar até mesmo
Bergman em A paixão de Ana plagia A chinesa e suas entrevistas de
seus valores mais específicos, a cor, a pincelada, a matéria.
atores comentando seu papel; com Intervista, Fellini fará todo um
Antonioni, que é um pintor, dá exemplos mais claros, intervindo
filme para exorcizar esse caráter impositivo do fora-de-quadro.
tanto sobre o material filmado (que ele colore) como sobre o
..
*** plano enquadrado (que ele compõe). O deserto vermelho deve seu
Houve, desde o cinematógrafo, uma conivência sensível título enigmático a um jogo de palavras sobre La desserte rouge (A
entre essa técnica da vista móvel, passeando no mundo uma mesa de jantar - Harmonia em vermelho), uma tela de Matisse,
evocada fugidiamente por um plano do filme. A noite cita uma tela
56 Papirus Editora
Moderno? 57
irmãos Whitney, Hy Hirsch) ou com uma certa idéia da escultura
de Sironi, intitulada A noite. Blow up pode ser lido como
(Len Lye) . Entre Europa e América, correntes que têm uma
oscilando entre uma referência à pintura holandesa do século
mesma sensibilidade para questões de visualidade desenvolvem-se
XVII e o color field, de Barnett Newman (Luc Vancheri). No
de maneira independente umas das outras. Antonioni faz ''blocos
mesmo momento, Godard, que também foi um pouco pintor em
de sensações'' (Dele.uze e Guattari); ele quase poderia contra-
sua juventude ( e continuou sendo o bastante para fazer em
assinar a famosa frase de Maurice Denis sobre o quadro como
História(s) do cinema pastiches de Matisse e de Stael), cita Picasso,
''cores que foram dispostas em certa ordem''. Mas de Dog Star Man
Klee ou Renoir. A citação é a moeda de troca permanente da
a Three Homerics, é tudo o que Brakhage faz. Nunca se chegou tão
filiação imaginária do cinema à pintura. Mas a época não é avara
perto, no cinema, de rentear problemas e atitudes de pintor
em fenômenos de imagem mais radicais, ligados à matéria. No
modernista, e também questões de crítica moderna. O cinema
final, de modo deliberadamente modernista, de A paixão de Ana,
nunca esteve tão perto de se encontrar realmente no seio da arte.
Bergman dissolve seu protagonista no anonimato definitivo, ao
mesmo tempo em que o deixa ser devorado pela granulação, ***
desmedidamente aumentada, da imagem argêntea, como para Em um texto de 1965, Three American paiizters, Michael
nos lembrar, ironicamente, a lição greenbergiana do all over. Um Fried define o modernismo pela convicção de que existe ''um
pouco mais tarde, é a cena de Profissão: Repórter (1974), em que . " .
pr1nc1p10 graças ao qual a pintura pode mudar, se transformar e se
um fuzilado morre não tanto pelas balas recebidas quanto pelo renovar, e que lhe permite deixar praticamente intactos e, até
grão da imagem, por seu aspecto desfocado, por sua cor mesmo, às vezes enriquecidos, para além de cada época de
empalidecida, por sua matéria ameaçadora. renovação, aque1es de seus valores tradicionais que não
Então, foi preciso à crítica ( eu fazia parte dela) muita dependem diretamente da representação''. A despeito das
cegueira, muita falta de cultura e preconceito para não fazer a aparências formalistas de seu trabalho, o artista modernista não
11
aproximação com as aventuras paralelas da visão e da matéria no faz obra gratuita: sendo capaz de formular os problemas artísticos
1
'·I.
underground em seu apogeu. O artista mais coerente e mais do momento - aqueles que as obras modernistas recentes
lt t
teórico, Stanley Brakhage, não é um apologista da pintura, longe indiretamente deixaram -, ele se torna responsável por esses
disso; ele parece, ao contrário, a princípio, ser um continuador da problemas, ele deve tratá-los. Desse ponto de vista, o modernismo
antiga idéia do olho móvel, ''interminável'', que preconiza um cinematográfico ficou inacabado. Os cineastas conscientes de sua
cinema da visão pura, livre de toda a cultura que o atravanca, de precisa situação histórica em sua arte, capazes de identificar em
volta ao estado nativo. Paradoxalmente, porém, isso o leva a obras recentes problemas próprios à arte, de tratá-los e de
filmes de uma tal riqueza sensorial que eles aparecem, retrospec- prolongar cientemente a cadeia artística de que fazem parte, são
tivamente, como uma forma de pintura-animada (ele consagrará exceção. Godard certamente é um deles, perseguido desde cedo
seus dez últimos anos de vida criativa pintando sobre a película). pela preocupação histórica e pela vontade de herança assumida.
Dentre seus contemporâneos, muitos flertam com a pintura ( os Mas quando Straub declara (bem mais tarde) que Bresson foi ''seu
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~--~~--- -
1 •
velho mestre': ele afirma que o que pretendeu prolongar não foi ''metafílmicos'' de Godard das histórias que ele conta não são em
tanto um trabalho formal, mas uma ética ( como também Rivette essência diferentes do que se pode encontrar em Welles. E se
desejando prolongar Renoir - sem falar da ''conturbada afinidade reduzirmos Antonioni à sua sensibilidade plástica, já não
de mão'', desvelada por Hervé Joubert-Laurencin entre Rohmer e saberemos o que o diferencia dos ('abstratos'' mais insossos.
Murnau). O cinema interessante dos anos 1970 não dá a mínima para
A diferença entre os pintores nova-iorquinos e o cinema de as aventuras da forma-cor, e cultivará, ao contrário, os dispo-
autor (europeu) é simples: os primeiros trabalham em um meio sitivos intelectuais e ideológicos, caso não encare, de modo mais
artístico, que inclui e correlaciona a dimensão econômica, a direto, a ficção. O cinema hollywoodiano desse período interessa,
dimensão midiática e a dimensão estética; os segundos trabalham em suas produções mais inventivas, pela ·tensão entre ataques
em um meio que não é artístico, privado que é de uma verdadeira deliberados contra a narrativa, mas sempre do interior da crença
dimensão estética objetivável. Não que os cineastas sejam na ficção (ver Arthur Penn; ver, sobretudo, Sam Peckinpah e os
insensíveis às questões de forma e de sensação; mas a economia do primeiros filmes de Francis F. Coppola, apesar ou por causa de seu
cinema não é a economia da arte (a indústria do cinema não visa à aspecto de rascunho) - e as primeiras manifestações do espírito
arte); e as questões formais em cinema não são o objeto primeiro que logo será batizado de pós-moderno, com seu gosto pela
e confesso da atividade dos cineastas. homenagem, pela citação ou pela referência de segunda mão ( o
flamejante O fantasma do paraíso, de Brian De Palma, em 1974) .
De resto, a apologia triunfalista da pintura abstrata
Os principais cinemas europeus sofrem em cheio a pressão de um
americana à qual se entrega Michael Fried está, em 1965, atrasada.
marxismo-leninismo sorrateiro ( ou, conforme o contexto, ao
A pop art já questionou o reino sem partilha do abstrato,
contrário, perfeitamente arrogante e pronto para assumir o
enquanto, simetricamente, a arte minimalista e a arte conceituai
comando), e a cisão se acentua entre um cinema de intervenção
irão questionar seu caráter ainda material demais. A própria idéia
que está, antes de tudo, preocupado em inventar dispositivos e um
da pintura, como relação entre materiais e gestos - espalhar
retorno -à ordem moderna.
1
1
pigmentos sobre um suporte -, está prestes a se tornar obsoleta.
li'
As vibrações modernistas em cinema se chocam de modo mais O que subsiste do modernismo cinematográfico é, então, o
brutal com algo que não acontece na arte, e sim no social: elas se investimento de sua radicalidade, de sua intensificação e de sua
'
chocam com maio de 1968 e seus equivalentes em outros países - exacerbação críticas no quadro* - ou · seja, naquilo que, do
com o comando ideológico e político. O trabalho sobre a forma dispositivo fílmico, remete, a princípio, à enunciação e à recepção
não era, propriamente falando, revolucionário; ele foi bastante
criticado (ver a revista Cinéthique, caricatural). O que Bergman
fez no prólogo de Persona, quando duas mulheres pecam não é * Aqui, en1 francês, cadre, e não tableau (quadro, tela pintada). «o quadro
muito diferente, em seu espírito, dos filmes poéticos ou (cadre) define o que é imagem e o que está fora da imagem': cf. Dicionário
teórico e crítico do cinema, op. cit., pp. 249-250. (N.T.)
experimentais desde os anos 1930. Até mesmo os distanciamentos
"Trabalho, leitura, fruição" : em seu artigo de 1970, Daney e formais, um vocabulário surpreendente, e exerceu um grande
Oudart salienta,,am à porfia os dois primeiros termos, dando, poder de atração (e, aliás, teve uma posteridade mais real do qu.e
além disso, do terceiro, uma versão lacaniana, portanto, muitas outras, até sua volta à moda, há uns dez anos). Mas sua
igualmente intelectual. Só alguns discípulos de Lyotard tentarão presença é quase nula nas correntes modernistas, que quiseram,
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64 Papirus Editora
Ela fracassou no que tinha se tornado sua principal pretensão: de 1980, a palavra havia se tornado inevitável na crítica de arte,
melhorar o mundo e o curso das coisas. O progresso tecnológico designando, conforme o caso:
não impediu as guerras na Europa, na Argélia, no Vietnã. Começa-
se a farejar que ele não teve só efeitos positivos na vida cotidiana,
• uma cronologia, a passagem ao depois-da-modernidade,
com os primeiros gritos de alarme dos ecologistas. Quanto ao
esta tendo caducado;
progresso artístico, depois das abstrações, dos minimalismos, dos
• um estilo, e quase uma estética, fundado sobre a
purismos, é difícil ir mais longe na direção do elementar; depois
reciclagem ou sobre o novo tratamento de obras do
do pop, do conceitualismo, da herança dadá e de Duchamp, difícil
passado, no mais das vezes na forma fragmentária; é o
aumentar a distância intelectual com a obra. Em 1981, o
reino da citação, da paródia, do pastiche, da lembrança,
historiador da arte Hans Belting dá o título O fim da história da
da reaparição, do piscar de olho, do reemprego e de
arte?* a um ensaio. Da mesma época, data o sentimento que foi,
outras formas da retomada, tal qual ou transformada,
desde o fim da modernidade, o que melhor definiu o moderno
do passado da arte para nutrir o presente; é o reino do
.,
(vitória póstuma de Hegel). É o célebre ensaio de Thierry De
cool, logo, do relativismo;
Duve, que define (em 1985) a modernidade como o período da
história da arte ocidental para o qual ''a arte era um nome • enfim, uma espécie de sinônimo, defasado, daquilo que
próprio''. Um nome próprio não tem sentido, mas tem uma havia recoberto 20 anos antes a idéia do modernismo:
referência: a coleção indefinida chamada Arte. Assim, o fim da uma modernidade consciente de si, ativa, vigorosa e tão
modernidade é tão velho quanto ela própria, já que ela não segura de sua inserção na história que pode, com efeito,
deixou de viver do projeto de seu acabamento (negativo: a morte; fazer malabarismos com o passado; como diz mais ou
positivo: a utopia). menos Jean-François Lyotard, para ser moderno, é
preciso, antes, ser pós-moderno ( ou tê-lo sido).
O pós-moderno é a resposta ambígua que aprova e
legitima essa inquietação, e, ao mesmo tempo, indica a via da ***
salvação: superficialmente, na transformação do tesouro cultu- 1981, ano do fim decretado do moderno, é também aquele
ral e artístico em mina de ouro; profundamente, na identificação da esquerda no poder na França. A idéia do cinema que a crítica
com a essência viva do projeto-moderno (o pensamento, a reflete está tacitamente determinada por estes dois fatores: a
novação). Uma época terminou - mas há sempre algo que sucede política e o artístico. Década de confusão, em que os filmes
a uma época. É esse ''algo'' que designa o pós-moderno. Em torno desorientam as categorias, em que, em reação, a crítica inventa
diariamente novas categorias, prendendo-se, como pode, aos
1amos da velha história da arte. Uma crítica mete no mesmo saco
4
Calabrese publica A idade neobarroca. Em seu ensaio sobre a luz no A idéia de modernidade tem o inconveniente de conter a
cinema, Revault d'Allonnes faz do barroco um contrário do noção do tempo, portanto, a idéia de um fim possível e até mesmo
classicismo. Os Cahiers consagram um número ao ((maneirismo': inelutável: modernidade tardia, fim da modernidade, pós-
retomando a definição dada por um historiador de arte modernidade. Ela obriga a uma visão hegeliana da arte. O cinema
apressado. Dez anos mais tarde, a jovem revista Au hasard não era uma arte: o pós-moderno só lhe disse respeito de longe e de
Balthazar consagra ainda um número à mesma noção, consta- viés, e ele não reconheceu o frm da modernidade pelo que ele era. A
tando que ''ela muda de sentido conforme os textos e só encontra crítica, entretanto, que recebeu seus sintomas ilegíveis, foi sensível,
coerência se sistematizada de maneira brutal na tríade classi- às vezes ultra-sensível, a essa atmosfera de fim, de perda, de morte.
cismo/ modernidade/ maneirismo". O fim dos anos 1980 vive o reino das carpideiras, incluindo estrelas
Maneirismo, barroquismo, neobarroquismo: estranha- como Godard e um de seus interlocutores preferidos, Serge
mente, a crítica, que percebe sob esses termos uma decadência, um Daney. Por mais que Deleuze faça a distinção entre ''morte
fim de reinado, pensa que é o classicismo, não a modernidade, que natural'' (na qual ele se recusa a acreditar) e "assassinato': o tema
está doente ou moribundo. Do mesmo modo, a idéia de ''pós- da ''morte do cinema" é o refrão obrigatório da crítica entre 1985 e
moderno'' é pouco comentada a propósito do cinema (pois não se 1990. Tenta-se recorrer à Grande Arte ( uma meia dúzia de
havia percebido a natureza profundamente modernista dos colóquios, a mesma quantidade de livros sobre cinema e pintura) .
jovens cinemas dos anos 1960 ou porque o retorno à ordem impôs São feitos balanços retrospectivos (tipológico e racional, tal como
seu neoclassicismo de modo bem claro). Em todo caso, o caráter o livro duplo de Deleuze, poético e profético, tal como História(s)
mais patente do cinema dos anos 1980 e ainda dos anos 1990 foi o do cinema) . Não se vê que são apenas as facetas de uma ficção, de
extremismo, a tendência ao supra. Suprasensação, desde as uma ''grande narrativa", a história do cinema. (Godard o sentiu, e
violências cultivadas por Peckinpah, Siegel ou Penn até o falou de histórias no plural.)
fenômeno de massa mais importante dos anos 1980, a emergência A estética da retomada, que o cinema sempre conheceu
do cinema de Hong-Kong. Supracitação, de Syberberg e seu caldo (nisso ·ele se assemelha às outras artes), torna-se, então, o sintoma
de cultura ao Godard asfixiado de referências dos a11os 1990 e mais aparente da melancolia alegre do pós-moderno. Não há
depois, mas também, de maneira mais lúdica e mais inesperada, a praticamente nenhum ftlme interessante dos anos 1980 que n.ã o
cineastas corno Gus van Sant, Todd Haynes ou Aki Kaurismaki. tenha sua carga de referência, aberta ou dissimulada, às obras do
Supraimagem, com a explosão do artifício, digital ou não; ver o passado. Um filme como O selvagem da motocicleta (Coppola,
bullet time, invenção extraordinária (que obriga a reler, de modo 1984) exibe reminiscências de A marca da maldade, do Actor's
bem diferente, o emprego de um instrumento formal como o Studio (Matt Dillon como Brando de Uma rua chamada pecado e
zoom). Supradramaturgia, nos neo-autores de Hollywood, de como James Dean de Juventude transviada), de Amor sublime amor
Ferrara a Lynch, passando por Verhoeven e até mesmo Michael (a briga entre os dois clãs) e muitos outros. O todo é pego em uma
Mann. montagem desrealizante, uma narrativa sem causalidades claras,
personagens meio nebulosos. O herói prognóstico: (<_As gangues fato, quase que só basta se dizer pós-moderno para sê-lo. Em todo
voltarão quando a droga acabar"; há, de fato, nesse filme onde a caso, as fantasias baseadas nas refilmagens de um passado
droga nunca é mostrada, um ar de droga que é sua época. Quanto considerado como baú do tesouro foram uma reação saudável,
às ccgangues'', são também, claro, as equipes - de roteiristas, de uma espécie de troça feita à melancolia dos chorões. O cinema não
diretores, de produtores - do grande cinema clássico. No mesmo está morto, já que, só refazendo o que já foi feito, temos com o que
momento e paralelamente, pode-se ver em Mauvais sang (Carax, nos divertir.
1986), referências a Chaplin (imitado por Mireille Perrier), a
A ''crise'' do cinema ( ou antes, de seu comentário) há 20
Cocteau (os motoqueiros como imagem da morte), a Welles (A
anos não durou muito tempo, mas foi intensa. Estávamos persua-
dama de Xangai), a Jean Epstein, a Marcel Carné (toda a atmosfera
didos, não de que o cinema fosse desaparecer, mas de que ele ia
dos cenários) e, obviamente, a Godard (o fim do filme é uma
desaparecer tal como nós o conhecíamos e o havíamos amado. A
retomada poética do fim de Acossado). Os novos cineastas, da
imagem digital es,tava chegando, as Cassandras da tecnologia
América e da Europa, brincam com o passado de sua arte. Em
galopante eram ouvidas. O cinema continuava, mas será que ele
1992, De Palma conclui sua série de pastiches e de homenagens
não tinha mudado sorrateiramente, não oferecendo mais a seu
hitchcockianas com um filme que não passa de uma piada, Raising
espectador a garantia de . realidade mínima que era sua marca, e
Cain (Síndrome de Caim). O título (da expressão to raise Cain:
sim, ao contrário, a suspeita generalizada sobre o real? Não é
bagunçar tudo) é uma homenagem transparente ao Raising Kane,
assim tão surpreendente, portanto, com a distância, que esse
de Pauline Kael, o ensaio de 1971 que relativizava a glória de
período tenha sido também o da exaltação renovada de uma
Welles. Ora, De Palma imita o estilo de A marca da maldade - tetos
modernidade essencial do cinema, como outra salubre reação a
baixos, ângulos abertos, luzes expressionistas, ambiente nebuloso
esse quadro necrófilo demais. Renovada e reforçada. Nesse meio
- e, como bônus, alguns outros, de Hitchcock ( de novo o chuveiro
tempo, com efeito, o mito da modernidade rosselliniana recebeu
de Psicose) a Eisenstein ( o carrinho de bebê, as escadarias do
(apressadamente, mas que seja) fundações em terreno filosófico
Potemkin, a criança jogada pela janela de A greve) .
( existencialista) e se depurou em proporção inversa à de sua
*** atualidade cinematográfica imediata. Essa versão recente nos é
O cinema talvez tenha sido pós-moderno, como o outro familiar: Rossellini teria inventado uma forma de cinema tão
fazia prosa; tal como Monsieur Jourdain,* poderíamos imaginar pertinente, que falaria tanto da natureza do cinema em geral, e
o cinema dizendo ou se dizendo: ''Era isso, então! Era só isso ...". que, além disso, teria aderido tão de perto ao coração ideológico
Nada de muito complicado, nada de muito surpreendente. De de sua época, que ela representaria uma modernidade quase
definitiva e ('necessária'' (A. Bergala) - realizando assim o
paradoxo de uma modernidade insuperável.
* Personagem de Le bourgeois gentilhon1me (O burguês fidalgo), de Moliere.
Paradoxo, pois a modernidade, por definição, é efêmera e
(N.T.)
transitória ( ela leva a outra coisa - a outra modernidade, por
Na obra, sintomática e tão hipostasiada como o cúmulo do travessia do Atlântico em menos de uma semana; mas era apenas
choque com o real, de Kiarostami? Sem dúvida, ler Kiarostami à um fenômeno moderno - portanto perecível, como a flapper girl e
luz do rossellinismo, como propõe Alain Bergala, é fecundo. Mas o resto. Aliás, como a modernidade rosselliniana ''necessária''
podemos ler nos escritos de Youssef Ishaghpour, e com (portanto, mais ou menos eterna), a idéia de uma ''arte moderna''
argumentos igualmente interessantes, que "o fim da moder- que dura 100 anos é um oximoro. O paradoxo é elegante, claro, e
nidade, o das ''grandes narrativas',, da reflexividade, da nega- diz uma verdade do século do cinema - mas, sobretudo, uma
tividade, da historicidade, reconheceu seu cineasta em Abbas verdade sobre o momento em que ele é emitido. É interessante, em
Kiarostami, oriundo de um mundo onde o moderno nunca havia 1990 (sobretudo quando alguém se torna diretor da cinemateca
penetrado. [Em] ''Kiarostami, o minimalismo pós-moderno se francesa), alguém dizer que o cinema é uma arte inteiramente
completa com uma arte conceituai que se toma por seu próprio moderna, mas isso não podia ser pensado em 1950, menos ainda
objeto". É que, tanto quanto o moderno, o real só tem um rosto; em 1970.
em 1990, um cinema moderno fundado sobre o respeito do t"eal,
Se eu ousasse, di~ia que, à maneira deles, os críticos e os
isso quer dizer algo diferente do que em 1945 ou 1955.
aprendizes historiadores que disseram, um pouco antes do
(Valeria a pena perguntar se, no final das contas, o moder- centenário do cinema, que a força positiva dele era sua
nismo antonioniano, com sua ciência das imagens, não teve modernidade - seja ela identificada com uma estética e com uma
também herdeiros involuntários: sem Antonioni, teríamos ética, seja ela vista como global - tiveram uma atitude ... pós-
•
sabido ver Hou Hsiao-hsien ou mesmo Tsai Ming-liang?) moderna. ''Pós-moderno'' só é uma palavra grosseira se
*** retivermos dela apenas o sentido um pouco pejorativo: a citação
desregrada, sempre com o risco, e às vezes o efeito, de depreciar o
Houve outra saída para a crise do pré-centenário do cine-
que se cita, rebaixando-o ( o relativismo cool). Ora, o aspecto
ma; outra maneira de caracterizá-lo, positivamente, mas
positi':o, libertador do pós-moderno era justamente o seguinte: a
remetendo-o, dar-se conta disso, a uma retrospecção definitiva. O
liberdade do projeto (o moderno é mais constrangedor: é preciso
cinema, uma arte moderna: o título do livro de Dominique Pa1ni
ser um autor) . Poucos cineastas pós-modernos, nada de cinema
(1996) não tem equívoco, mesmo que nele a tese esteja um pouco
pós-moderno, mas atitudes críticas, sim. Um paradoxo a mais na
diluída. O cinema foi inteiramente uma arte moderna, ele só foi
estranha história das relações do cinema com a modernidade.
isso, um longo acompanhamento da modernidade. Resta saber
como, e Pa1ni propõe algumas respostas sobre o assunto.
Entretanto, ele não vê que esse seja um ponto de vista a posteriori, ,
1
' .
Moderno? 77
•
Desde o fim do episódio pós-moderno, a arte se debate em sentado em salas de arte e ensaio, é relacionado com
/ . . . .
meio a essas proposições, girando e1n torno do trauma inconfesso essas margens ensa1st1cas ou exper1menta1s que o cmema
que a renúncia a toda origem e a toda tradição, apesar de tudo, em sala pode tolerar ( como tolera Bill Plympton ou,
representa. outrora, os primeiros Garrel); mas poderia ser u.m a
O cinema não poderia se comportar de maneira tão clara, peça em uma instalação e tornar-se arte.
sempre pela mesma razão: seu meio não é claramente definido, • O postulado crítico que pretende que existe um estado
nem institucional nem idealmente. Conseqüentemente, a contemporâneo da arte definível por algo diferente da
consciência histórica, no cinema, é complexa; ela só existe em um tautologia do atual: quer dizer, paradoxalmente, estado
•
setor bem restrito, grosso modo, o cinema de autor, campo histórico, que se faça dele, então, o cúmulo do pós-
particularizado pela crítica, importante por sua visibilidade moderno, quer dizer, da liberdade absoluta, ou que se
estética e até mesmo social, mas minoritária. Nesse mesmo veja aí um novo avatar do modernismo, mas livre de
campo, roteiros que imitam os da história moderna da pintura qualquer obrigação para com uma modernidade
puderam ser refeitos, mas mediante todo tipo de ambigüidades concebida como cadeia histórica.
institucionais e intelectuais, sobressaindo-se o debate sobre a
''qualidade" (ver os livros recentes de Fabrice Montebello e · Cinema, arte contemporânea: é, portanto, a um só tempo,
Laurent Jullier) . uma questão de estética e uma questão de história. Foi por muito
A idéia do cinema como "arte contemporânea'' levanta, tempo, exclusivamente, a da relação do cinema com a arte; além
portanto, não um, mas dois problemas entremeados: do mais, privilegiaram-se, por muito tempo, respostas genéricas.
Mas, enquanto o cinema for visto como uma superação ou um
anexo da herança artística, ele não poderá se desenvolver como
• A relação do conjunto heterogêneo que se chama ''o
''arte .contemporânea''. Ora, nessa relação com o passado, não foi
cinema'' com uma noção mais unitária, a da arte. Um
colocado um termo brutal; ela sobrevive em diversas formas,
filme pode funcionar como uma obra de arte, no sentido
embora subvertidas pelo término de qualquer projeto ainda
da crítica de arte e ensaio, mas também em um sentido
ligado à existência de uma arte identificável com base na pintura
bem diferente, o da instituição artística. Blanche-Neige '
(ou seja, em qualquer projeto moderno). Daí a ambigüidade da
Lucie, de Pierre H11yghe (1996), é uma obra de artista,
situação do cinema hoje, no momento de sua anexação galopante
pois é visto em lugares onde os artistas expõem; visto
pelo museu de arte contemporânea.
fora do espaço institucional que é o seu, na cinemateca,
por exemplo, ele se torna um ensaio filmado, even- ***
tualmente televisível, e de bem pouco interesse. Inversa-
mente, Tarnation, de Jonathan Caouette (2004), apre-
'
.
,_ ..,,, ~ - - - - - -. .
•
Das coincidências fatais ao eterno coincidência, absolutamente fatal (só se podia cair nesse filme, que
contemporaneo - havia desempenhado o papel de matriz para tantos outros),
sistematizada e depurada, mas também agindo sobre o repertó-
Há 20 anos, queriam <<ligar novamente''* o cinema à
rio, sobre o passado reciclado? Um pouco o equivalente, inverti-
pintura - prática sem idade e que, ao menos, não podia morrer.
do, do que Pasolini havia feito com Rosso Fiorentina em La 1"Ícotta
Na passagem do milênio, a relação entre cinema e pintura voltou
(só estou forçando um pouco) .
de modo bem semelhante, mas infinitamente diferente, sob a égide
O cinema não é arte contemporânea no sentido em que
daquilo que a exposição <<Hitchcock e a arte': em 2001, chamou,
poderia ser exposto tal e qual nos museus, embora isso tenha sido
com um belo oximoro, de <<coincidências fatais": a coincidência,
feito (por Chantal Akerman ou Pedro Costa, cujas instalações,
com efeito, só é <'fatal'' com a herança. Além disso, entre, primeiro,
bem simples, só mostram filmes) e a questão possa ser
a gigantesca e inelutável coincidência que eu postulava outrora
freqüentemente levantada. Pode-se imaginar com facilidade
em O olho interminável, e que concerne a todo o aparato cinema,
Gerry, e até mesmo Last days, no museu de arte moderna, numa
segundo, o gênero de coincidências particulares inventado pela
tela gigante num espaço minúsculo (como Passage, de Bill Viola,
exposição Hitchcock, e terceiro, as reprises, mais ou menos
de 1987) ou sobre uma bateria de monitores colocados no chão ou
coincidentes, por alguns artistas cineastas de certos artistas .
pendurados a 20 metros de altura. Mas, em geral, quando o
pintores, não é certo que se possa tirar um mecanismo comu1n.
cinema é exposto , é como peça de convicção (no Centro
Rohmer citou Füssli em vez de Matisse, reservando para seus
Pompidou, durante as exposições Hitchcocl< e Cocteau, e ainda na
filmes didáticos seu conhecimento da arte contemporânea, e só
de Godard, <<Voyage(s) en Utopie'') ou como obra de arte museal,
incluindo uma reprodução de Mondrian, em As noites de Zita
fundada sobre a citação e o desvio. Não se sai realmente da
cheia, quando este é aceito pela cultura difusa. Do mesmo modo,
segregação dos meios. Uma relação termo a termo entre um filme
quando Alain Bonfand evidencia uma relação Lewin-Chirico
e <<a a~te'', que escape à fatalidade e ao repertório, será forçosa-
(confessada pelo filme) ou Hitchcock-Hopper (dissimulada), a
mente um hápax. Quando, no fim de Buffalo 66 (1998), Vincent
pintura é tratada como já sendo anterior. Em sentido inverso,
Gallo materializa a imagem mental do jovem vagabundo que
quando a arte museal se refere ao cinema, é também a herança que
enfim tem a oportunidade de matar o homem que' o mandou para
ela responsabiliza numa lógica que parece, de modo mais radical e
a prisão, ele congel~ a imagem, mas sem fazer a parada habitual
mais cru, a da ''coincidência fatal". O que é 24 hours psycho
sobre ela: sua imagem é flutuante, a câmera a cerca lentamente,
(instalação de Douglas Gordon, 1992), se não uma gigantesca
apreendendo o jorro de um sangue totalmente congelado; pensa-
se em hologramas, em obras de escultura hiper-realistas de
* Em francês, raccrocher (pendurar novamente). O autor joga aqui com a palavra
plástico e também nas condições de visão que não são as do
accrocher, que significa, em uma de suas acepções, «pendurar,, ( um quadro na cinema, e sim do museu. Mergulha-se fugidiamente na arte
parede). (N.T.) contemporânea - mas é um acidente. Talvez tais encontr,o s
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primazia de tudo: o que é apresentado deve sê-lo de maneira a tese de que o conjunto das propriedades do cinema só estão no
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explícita; o visitante não deve saber apenas o que é, mas conhecer «cinema'' na forma de um ''agenciamento'' entre outros, que só
o pedigree e, no mais das vezes, ver imposta uma justificativa, teria a seu favor o fato de ter tido a sorte de dar mais certo do que
sempre argumentada, é óbvio, do interesse da obra (da ''peça''). os outros. Em um campo diferente do da arte, é o tema subjacente
Não é absolutamente novo e, já há bastante tempo, os defensores à reabilitação estranhamente polêmica de Marey contra Lumiere.
do cinema "experimental" tiveram de lutar para que suas obras Será que esse paradigma não tem realmente sentido histórico?
fossem apresentadas como obras. Para Peter Kubelka (que inicia a Pouco · importa, ele adquirirá um, por urna espécie de ''historica-
coleção de filmes do Centro Pompidou), era preciso projetar um mente correto'' que pretenderá que Lurniere não passou de um
único filme de cada vez, por sua singularidade. Evidentemente, vagabundo, tirando do cinema-como-conjunto-de-propriedades
isso nunca foi feito, e esses filmes sempre foram vistos em seu alcance geral, para fazer dele um espetáculo vulgar. Ainda aí,
programas compósitos e compostos (por um programador, ou prefere-se o conceito à aisthesis, a ''pureza" da experiência sobre o
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movimento à sedução do movimento das formas e, sobretudo, esta, aliás, já não é o que era (refrão antigo, freqüentemente
não querem compromisso com a ficção. entoado por Daney). Mas, no cinema, as mudanças sempre foram
Em compensação, o cinema se torna cada vez mais aco- menos bruscas do que em outras áreas, tanto no cinema industrial
lhedor para as imagens. São, em Minority report (Spielberg, 2003), quanto em suas margens autorais, e até mesmo no cinem.a
as imagens se sacudindo sobre a caixa de cereais, exacerbação ''experimental'' ou poético. Aliás, em que outro setor das artes o
cartunesca da verdadeira publicidade e de suas imagens público popular (não especialista, não dotado de uma cultura
obsedantes. Ou, em Black out (Ferrara, 1998), as telas de particular) aceita ver as obras do passado no mesmo pé que as
monitores, caricatura de instalação na discoteca/videoteca, que obras recentes? Com certeza, não em música, onde reina a moda e
resume tudo: as imagens por toda parte, multiplicadas, no meio onde a herança só é gerada pelas elites; nem em pintura, onde a.s
dos corpos; a imagem com referente atual e real avizinhando-se da exposições de público de massa não ultrapassam os meados do
imagem com referente ficcional; a imagem produzida em um século XX. E, é claro, o cinema continua a ser o reino da ficção, até
circuito econômico. A invasão das imagens (de um filme) pelas mesmo nos filmes mais radicais, até mesmo junto com a alegoria,
imagens (como objeto diegético) é, na verdade, um motivo banal com o jornal, com o documento social, com o happening. Essa,
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no cinema recente: ela anda junto com o fascínio pelo digital ( com aliás, talvez só seja outra maneira de fazer a mesma observação: o
risco da confusão quase permanente entre gênese e fenômeno). O cinema não muda, posso ver na mesma noite um Ford ou um
arquétipo sob essas acumulações de imagens que ganham vida é o Hitchcock, e um John Woo ou um Kiarostami. Terei menos o
do simulacro: o simulacro é a emanação de seu referente, sempre sentimento de ter viajado no tempo do que nos estilos.
renovado e capaz de ''vir me procurar'' para provocar minha Eu dizia: ''eterno contemporâneo''. Com efeito, há no
percepção. Um grau suplementar é atingido quando essas ima- dispositivo do cinema, no que chamamos cautelosamente de o
gens materiais se tornam manipuláveis, quando podemos ''agenciamento'' cinema, algo a mais que o simples acaso de um
apreendê-las, deslocá-las, empilhá-las, jogá-las fora (Minority êxito. O cinema talvez seja apenas um agenciamento que deu certo
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report fez delas seu motivo mais original). - mas como podemos dizer do cristianismo que ele é uma seita que
*** deu certo, ou seja, apesar de tudo, de modo mais profundo do que
devido unicamente ao acaso. ''A imagem virá no tempo da
ressurreição'': Godard fez bem em não negar a frase de são Paulo;
O cinema, ainda, sempre, mesmo assim imagem por imagem, o cinema tem também seu mistério.
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mentos arcaicos (pode-se julgar o cinema recente do ponto de escreveu: '½. própria palavra <<modernidade'' parecia estranha e,
vista da teoria do autor?). em uma palavra, não parecia realmente moderna. Ulrich Beck
Nada de grandes cineastas, de mestres, de autores de lança seu livro sobre a sociedade do risco em 1985, com o
subtítulo: ,cPor uma segunda modernidade". O trem da primeira
referência? Os últimos dinossauros contentam-se em coincidir,
modernidade foi p.u xado pela tecnologia, hoje, as ameaças são de
perfeitamente, consigo mesmos, de Eastwood, que faz filmes de fã-
origem humana. Portanto, a modernidade se define, hoje, como a
clube um atrás do outro, exibindo sua saúde viril e encarnando
valentemente os últimos fogos do classicismo, a Manuel de maneira de antecipar e de controlar as conseqüências do
Oliveira, que, diabolicamente, teve êxito em seu pacto faustiano; progresso tecnológico. Ponto de vista de sociólogo, sem abono
direto na arte, mas ainda assim revelador. Uma ccsegunda
de Scorsese, que se toma por Scorsese com filmes cada vez mais
modernidade''? Que modernidade poderia ser essa?
aproximativos e chamativos, a Straub, Rohmer ou Rivette, que
continuam impassivelmente seus empreendimentos; de Ferrara, A questão da modernidade - se decidirmos ver nela uma
que acabou, enfim, com sua imagem de autor cristão e luciferiano questão -, é, no cinema, inseparável da questão da arte. Como na
a Kiarostami, que, além do mais, teve êxito em sua conver~ão arte em geral, como na sociedade em geral, ,a palavra ''moder-
rumo à arte museal. Não faltam autores, na verdade (ainda que nidade'' parece ''estranha e não parece realmente moderna''.
esses tenham passado dos 50 e até mesmo dos 60): falta, e de Fenômeno moderno, o cinema? Isso só explicita a cronologia. O
maneira cruel, uma nova política dos autores, que reorga11ize cinema, arte moderna? Não é óbvio. Uma arte que só teria existido
tudo, mesmo que de modo arbitrário. na forma moderna? Ou que só teria existido na época moderna? A
Nada de noções diretoras. Desde o abalo sísmico do livro de segunda hipótese significaria que essa arte morreu com a
Schefer e as neoconcepções egotistas que ele gerou, o que domina a modernidade (tentação dos críticos há 20 anos); a primeira que
não poderia ter tido outro destino que o do moderno: mas qual é,
teoria já não é o questionamento clássico sobre o grande Outro,
sobre o mundo e a mundanalidade, sobre o real e o ser. O justamente, esse destino moderno? Assumir a tradição da ruptura
problema c'do corpo'' não deu ainda totalmente cabo de seu reino (nesse caso, o cinema não foi muito convincente em seu papel de
na teoria - não na linha direta de uma liberação ético~política arte moderna)? Ou dizer o mundo (tarefa em que foi exímio, mas
que só é moderna em um sentido frouxo)?
(somos mais do que nunca submissos), não na filiação de um
pensamento crítico (Foucault foi esquecido, por canonização Não são, provavelmente, boas questões, e a modernidade
prematura), e sim como conseqüência, remota, mas direta, do do cinema não se deu em torno de um respeito tão escrupuloso do
triunfo do liberalismo, com o culto do Eu como adorável. sentido e. da história das palavras. O que distingue o . cinema das
outras artes - se ele for urna arte - é que ele continua igual a si
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mesmo. No século XX, a pintura, a escultura, a música erudita, a
Essa ladainha negativa não tem fim - nem grande alcance.
dança se afastaram, pouco a pouco, do público dos amadores,
Em fevereiro de 2006, um jornalista do Nouvel Économiste
para só se dirigir a conhecedores sérios. Outras práticas simbó-
licas tomaram o lugar delas na difusão de massa: música pop, hip- sobre Rossellini" é um texto com valores eminentemente clássicos;
hop, imagens da p~blicidade e do ·design, sem contar a televisão, o próprio Daney pertencia· plenamente a uma época em que
que substitui tudo. E cada vez mais, também a arte é uma coisa do refletir sobre o cinema encontrava os grandes problemas ou os
passado, cuja reprodução é consumida: pôster, disco, vídeo. Ora, grandes conceitos filosóficos: habitar/pensar (Heidegger), estar
o cinema, apesar de todas as renovações, os apertos, as crises, no mundo (Merleau-Ponty), a arca originária-Terra (Husserl),
nunca mudou no fato de se dirigir à multidão. Ele continua se outrem (Levinas), o imaginário (Sartre), o absurdo (Camus) .
estruturando em torno da partilha instaurada nos anos 1920 Questões que não têm nada de psicológico, que vêm de uma
entre cinema de ensaio ou cinema de autor e cinema de massa, consideração do homem em relação ao que o excede, com o que
industrial e de diversão - mas sempre com a ambição de juntar os lhe preexiste, com o que ele só compreende e só conhece por
dois, já que não pode reconciliá-los. (Ver, revelador, o pós- enigma. A esse enigma, para a longa filiação oriunda diretamente
moderno no cinema: ele nunca impediu de continuar a contar de Bazin, o cinema aparece como o espelho no qual se pode ver,
histórias. Exemplo perfeito: Raul Ruiz.) paulinianamente.
No cinema do século XX, a modernidade foi algo bem Uma ''segunda modernidade'' é concebível? Com certeza ela
diferente; a reconquista da aura pela própria arte que a fez não teria o mesmo rosto que a outra. No entanto, contra a
desaparecer. Colocar aura na arte do filme foi, em profundidade, ossificação que ameaça lá mesmo onde vivia o projeto moderno,
o propósito comum a todos os artistas do cinema que pretendiam vale a pena procurar sua fórmula . Parece claro que essa nova
ser modernos. O propósito de Rossellini ( e dos rossellinianos mais modernidade se distinguirá da primeira em três pontos ao menos:
ainda), mas também o de Welles, Antonioni e de todos os seus
sucessores modernistas, até um Ferrara. c'A arte não é a simples
Ela não poderá se definir pelo olhar sobre 'o passado,
reprodução de uma realidade dada, totalmente pronta. Não é
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pela própria tradição cctraída''; mas tampouco pela
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"O tempo histórico é a criação do novo. Dito isso, é preciso ,I Introdução à teoria do
questionar mais. Será que nossa consciência do tempo, notada -
cinema
mente do futuro, repousa sobre a necessidade e a capacidade Robert Stam
humanas de criar algo novo, ou será, ao contrário, a possibilidade
Introdução ao docu111• 111 •• ••>
de criar algo novo que depende do fato de termos consciência do
Bill Nichols
futuro?'' Essa observação bem geral de Jan Patocka delineia muito
claramente a questão da segunda modernidade: crença no novo, Narrativa e moderni,I 1,1,
mas, ao mesmo tempo, consciência do futuro, ou seja, uma arte André Parente
também nova da transmissão e da tradição. A esse preço, o cinema
Pré-cinemas & 11os-,;1111 111 •
não terá sido em vão a mais moderna das artes modernas.
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