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tropicalismo.
Introdução
Itala Nandi é reconhecida atriz brasileira, tendo circulado entre o teatro, cinema e TV,
encenando personagens e dramaturgias muito distintas, do épico ao cômico, do
experimentalismo ao drama televisivo. Nos palcos e diante das câmeras, sua presença é notória
ao longo de mais de 5 décadas de carreira contínua e bem sucedida. No entanto, desde o inicio
de sua carreira teatral também exerceu funções de produção, criação ou direção em espetáculos
e filmes que realizou.
Apesar da notória carreira, há certo hiato entre o peso de sua contribuição à dramaturgia
e cinematografia brasileira, e a atenção dada a sua participação, geralmente focada na figura da
‘bela atriz’, ‘musa’ do cinema e TV. Há pouca atenção até a sua influência no comportamento
cultural de uma época, principalmente na representação social do que é ser uma mulher
autônoma em um período em que esta discussão ainda era um tabu na esfera pública brasileira.
Ítala contribuiu ativamente como atriz, criadora e produtora no Teatro Oficina durante a
década de 1960. Esteve no centro dos processos criativos, administrativos e políticos que
envolveram o grupo teatral entre os anos de 1963 e 1972. Sua imagem e colaboração artística
estão em inúmeras obras marcantes na modernização do teatro e cinema brasileiro, foi ativa na
experimentação estética e comportamental do final dos anos sessenta, tendo encenado e
produzido obras fundamentais do momento da Tropicália na dramaturgia e no cinema.
Este artigo pretende lançar luz a esta personagem – Itala Nandi – refletindo criticamente
sobre a historiografia e o relevo dado às mulheres no processo de construção do discurso
histórico. A abordagem pretende não apenas iluminar a potente carreira de uma artista múltipla,
mas atentar para como o discurso histórico cria apagamentos, submetendo o protagonismo de
mulheres na história da cultura apenas a representações consentidas pela lógica patriarcal. Ao
focar a atenção em seu trabalho teatral ao longo da década de 1960, procuramos também
mostrar a relevância de sua atuação no que foi o momento criativo da tropicália, e na
modernização da dramaturgia e cinema brasileiros pós-1968.
Este artigo se construiu a partir do livro de memórias “Teatro Oficina, onde a arte não
dormia” (NANDI, 1998) e da análise de filmes protagonizados por ela ao longo da década de
1970, a fim de recolocar sua relevância como agente histórico nas transformações operadas no
teatro e cinema brasileiros.
1. Itala Nandi – atriz, produtora, cineasta e escritora.
Ítala Nandi, gaúcha de Caxias do Sul, é atriz desde a adolescência. Ingressou jovem em
1963 no Teatro Oficina, em São Paulo, compondo a primeira geração do grupo junto a José
Celso Martinez Correa, Fernando Peixoto, Renato Borgui e Etty Fraser. Encenou ou produziu
quase todas as montagens do Teatro Oficina ao longo da década de 1960. No final desta década
esteve no centro do movimento teatral identificado com a tropicália, encenando em 1967 a
emblemática montagem d’O Rei da Vela de Oswald de Andrade. Atuou ainda nas históricas
montagens, dirigidas por José Celso, dos textos de Bertolt Brecht, Galileu Galilei (1969) e Na
selva das cidades (1970). Neste período também esteve envolvida na realização de filmes que
marcaram o cinema de vanguarda brasileiro realizado no pós-1968.
Itala protagonizou, América do Sexo (1969) projeto coletivo dirigido por, Luis Rosemberg
Filho, Leon Hirszman, Flavio Moreira da Costa e Rubem Maia, que é um experimento
cinematográfico audacioso e bastante idiossincrático em sua temática e no uso que faz da
linguagem audiovisual, encenando roteiros pouco narrativos ou lineares, repleto de
experimentações na montagem e uso do som. O filme tem colaboração de José Celso Martinez
Correa, André Faria entre outros artistas que se destacaram na vanguarda deste período
emblemático. Entre 1970 e 1971, Itala produziu e protagonizou o filme Prata Palomares (André
Faria – 1971), foi protagonista em Os deuses e os mortos (Ruy Guerra – 1971), em Pindorama
(Arnaldo Jabor – 1971) e foi coadjuvante em O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla –
1970), todos estes, filmes atravessados por ideias e artistas que realizavam e discutiam, no
teatro, nas artes plásticas, na música e no cinema, aquilo que se chamou de marginal ou
tropicalista. Atuou em outra dezena de filmes durante toda a década de 1970, enfrentando
críticas conservadoras, a censura e as transformações do mercado audiovisual brasileiro
impactado pelo contexto econômico e cultural da ditadura militar.
Com uma trajetória extremamente produtiva no teatro e no cinema Itala atravessou uma
época compondo com seu trabalho e corpo, o debate ligado ao comportamento da mulher, a
liberação sexual, uma nova subjetividade criativa e comportamental que confrontou a produção
cultural de um período que, embora efervescente, era controlado política e ideologicamente pela
Lei de Censura e por aparelhos repressores de um regime ditatorial. Entrevistada para a Revista
Realidade n°10, de dezembro de 1966, foi censurada por seu posicionamento frente a assuntos
sobre a sexualidade feminina. A primeira página da reportagem de Alessandro Porro estampava
o rosto da atriz com a manchete “Esta mulher é livre”. No conteúdo, afirmações sobre a
necessidade de afirmação feminina frente ao contexto machista da sociedade brasileira: “Será
que os homens perceberão que mulher pensa?”, “Devemos ser independentes a qualquer custo”,
“Ela é uma moça que não tem medo de dizer o que pensa sobre amor e sexo no Brasil”.
Algumas semanas depois de lançada, em janeiro de 1967, a Censura Federal ordena a apreensão
da tiragem desta edição da revista em bancas de jornal de todo o território nacional. O episódio
de censura passou relativamente despercebido pela sociedade da época, mas ilustra a
contundência da atitude de uma artista independente em meio a uma sociedade machista e
conservadora, e o teor de sua atuação sobre a cultura de seu tempo histórico.
Formada como atriz no cerne da ‘vanguarda tropical’, ativa em muitas obras proibidas pela
censura, Ítala Nandi também transitou com desenvoltura pelo teatro comercial, o cinema
popular, e a TV, por mais de três décadas. Escreveu textos para o teatro e o livro de memórias
“Tetro Oficina, onde a arte não dormia” onde realiza importante retrospectiva sobre o grupo e
sua atuação pessoal em processos fulcrais da transformação da cultura brasileira entre os anos
sessenta e setenta. Entre 2005 e 2009 colaborou na idealização e fundação de uma escola
superior de Cinema, a CINETV-PR, sediada em Curitiba, hoje curso superior encampado pela
Universidade Estadual do Paraná. Recentemente atuou em novelas da TV Record e participou
do filme Domingo (Clara Linhart e Fellipe Barbosa – 2017), além disso, leciona teatro e
coordena um curso de atores em Jacarepaguá, o Espaço Nandi. A imagem geralmente associada
aos personagens polêmicos que encenou no teatro e cinema, ou aos personagens populares da
TV, eclipsa uma artista e produtora engajada na criação subjetiva de seu tempo, e ativa em
diversos setores da cultura nos quais a presença masculina é hegemônica, como na arte, na
política e produção intelectual.
Ítala Nandi chegou a São Paulo em 1963, casada com o crítico e diretor teatral Fernando
Peixoto. Fernando dirigiria o espetáculo A torre em concurso (Joaquim Manuel Macedo), que
seria encenado pelo grupo d’Oficina, mas que jamais saiu das salas de ensaio. Contadora em
uma agência de publicidade, não demorou para que Ítala passasse a realizar a função
administrativa no Teatro Oficina, abandonando o emprego na agência e tornando-se secretária
do grupo teatral. Nesse mesmo ano substituiu a atriz Rosamaria Murtinho que adoeceu e saiu da
peça Quatro num Quarto (Valentin Kataiev), texto de vaudeville russo que fez bastante sucesso
na montagem dirigida por José Celso Martinez. Ítala ficou definitivamente no papel, e além das
funções administrativas iniciou carreira profissional no Teatro Oficina que neste momento já
tinha certo destaque na cena teatral paulistana.
Entre 1963 e 1966, o grupo realizou montagens de textos fundamentais do teatro moderno, e
Ítala compôs o elenco, os processos criativos e a produção de vários deles. Pequenos Burgueses
(Máximo Gorki) em 1963; Toda donzela tem um pai que é uma fera (Glaucio Gil), Andorra
(Max Frisch) em 1964; e Os inimigos (Máximo Gorki) em 1965/66. Nestas montagens o grupo
experimentou a maturidade dramatúrgica, estética e organizativa, ao mesmo tempo em que os
atores desenvolviam-se através dos laboratórios stanislaviskianos coordenados por Eugênio
Kusnet, e José Celso crescia como dramaturgo e diretor.
Todas estas vivências foram bases para a definitiva profissionalização técnica do coletivo e
para o amadurecimento estético que desembocaria nas experiências vanguardistas de O Rei da
Vela (Oswald de Andrade) em 1967, Galileu Galilei (Bertolt Brecht) em 1969 e Na selva das
cidades (Bertolt Brecht) em 1970. O Teatro Oficina era um efervescente laboratório estético,
teórico e político, em meio a um contexto contraditório em que o regime político repressivo
contrastava com uma cultura fervilhante de novidades. O Cinema Novo, a música popular
engajada, e as inovações concretistas nas artes visuais e literatura, arejavam o ambiente artístico
e estimulavam o clima criativo existente n’Oficina. José Celso, Renato Borgui, Etty Fraser, Ítala
Nandi, Fernando Peixoto, Eugênio Kusnet, Luiz Carlos Maciel, Hélio Eichbauer, Flávio
Império, Lina Bo, desenvolveram através do Teatro Oficina, como atores, encenadores,
escritores, artistas plásticos ou cenógrafos, expressões de ruptura com a dramaturgia moderna
que era realizada no Brasil até aquele momento. Estas novas proposições não se resumiram à
temática ou à atuação: cenografia, figurinos, as novas relações com o público que surgiram ali,
dialogavam com um momento histórico da construção de uma arte de vanguarda no Brasil.
A sugestão do texto de Oswald de Andrade para a nova montagem do Oficina em sua ‘nova
sede’ reformada foi dada por Luis Carlos Maciel, que realizava os laboratórios de interpretação
junto aos artistas do grupo. Interessados nas teorias de Brecht, especialmente do Gestus social e
no funcionamento do V-Effekt, o famoso estranhamento brechtiano, o grupo vasculhava formas
de realizar estes efeitos de representação através da própria tradição do teatro popular brasileiro.
Maciel teria então retomado a obra do escritor modernista como uma referência desta busca por
uma expressão crítica genuínamente brasileira.
A montagem do texto de Oswlad de Andrade, jamais realizada até então, teve grande
impacto sobre a produção artística naquele momento de transformações. Da música popular ao
cinema, o Rei da Vela do Teatro Oficina foi referido como um terremoto expressivo de uma
brasilidade crítica a um só tempo não folclórica, debochada, sensual e política. As pesquisas
estéticas acumuladas no grupo ao longo dos anos anteriores explodiram na montagem inédita do
texto modernista, através de uma leitura não convencional, antropofágica, em que os elementos
do modernismo eram confrontados com a realidade brasileira do final dos anos sessenta. A frase
provocativa Tupy or not tupy, incorporou a língua inglesa à tradição ameríndia ao mesmo tempo
em que manifestava a brasilidade através do deboche, do desbunde, de alguma agressividade e
sexualidade latente que pretendiam o chocar os espectadores. Esta leitura do texto de Oswald
desestabilizou paradigmaticamente a produção dramatúrgica do período – parte da vanguarda
identificada com a obra reivindicou sua novidade e radicalismo, enquanto outro setor,
incomodado com o discurso constituído, mas sem poder ignorar sua potência, levantou duras
críticas. O tamanho do impacto cultural da montagem, geralmente atribuído ao diretor José
Celso Martinez Correa, se deu através da potência forjada coletivamente e confrontada ao longo
de um intenso processo de experimentações formais e teóricas no interior do grupo do Teatro
Oficina, ao qual Ítala Nandi esteve intensamente ligada desde 1963.
A montagem do texto de Oswald colocou o grupo no centro dos acontecimentos da assim
chamada Tropicália. Dirigido por José Celso, o espetáculo alçou sua figura como dramaturgo
inovador e um dos ícones da vanguarda tropicalista, compondo na dramaturgia a ruptura estética
que vinha renovando as artes visuais, a música e o cinema brasileiro. Sublinhamos aqui o peso
da criação colaborativa do Oficina nesta viragem expressiva do teatro brasileiro, não como
fetiche horizontalista, mas porque foi realizada através de pesquisas que envolveram atores e
outros colaboradores, em um esforço coletivo que resultou numa linguagem potente estética e
politicamente, atualizando a abordagem de persectiva crítica da cultura brasileira. O conteúdo e
a forma inovadores incomodaram a censura e os setores conservadores da sociedade que, em
meio a ditadura civil-militar, estava à beira de um dos períodos politicos mais restritivos de sua
história. Nas palavras de Ítala,
Ítala viajou para estudar na França ainda em 1967, permanecendo por lá até meados do
ano seguinte. No período, além de estudar teatro, vivenciou as revoltas de Praga, na
Tchecoslováquia, o levante operário-estudantil de maio de 68 em Paris, aproximou-se da
linguagem do cinema e atuou com o Oficina durante apresentações d’O Rei da Vela realizadas
no IV Rassegna Internacionale dei Teatri Stabili (Florença, Itália), II Festival Internacional de
Jeunes Compagnies (Nancy, França) e em curta temporada no Théâtre de la Commune d’Auber-
Villiers (Paris, França). Pelo afastamento temporário do Brasil, não participou da controversa
montagem de Roda Viva (Chico Buarque de Holanda, 1968), espetáculo que marcou a transição
para uma estética mais agressiva, de choque, e que gerou, entre tantas reações da censura e
imprensa, o mórbido episódio da invasão do teatro por cem membros do CCC que agrediram
público e elenco.
Coincidindo com as divergências no grupo, Ítala inicia sua carreira no cinema, atuando,
junto com Zé Celso no filme América do Sexo (Rosemberg, Costa, Maia e Hirszman – 1970).
Até 1972 sua atividade dividiu-se cada vez mais entre o teatro e o cinema, incorporando às suas
atuações cinematográficas, direta ou indiretamente, elementos marcantes da experiência
vanguardista vivida no Teatro Oficina.
Durante toda a década de 1970, sua carreira como atriz perpassou filmes relevantes do
cinema brasileiro do período, que apesar de importantes sofreram com a censura e as restrições
de um contexto político-cultural conservador. São filmes bastante distintos entre si, nas
proposições estéticas/formais e no modo de produção, mas que tem em comum o contexto pós-
1968, em que, acossada pela censura e o moralismo das instituições culturais, a vanguarda
artística esboçou respostas ao contexto repressivo, principalmente ao aprofundamento da
repressão física, sintetizada na tortura e no assassinato de militantes das organizações de
esquerda.
NANDI, I. Teatro Oficina, onde a arte não dormia. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade
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Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. Ano XI .abr./2016 . n. 21.