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Itala Nandi no teatro e cinema brasileiro da década de 1970, trajetória no

tropicalismo.

Adriano Del Duca

Introdução

Itala Nandi é reconhecida atriz brasileira, tendo circulado entre o teatro, cinema e TV,
encenando personagens e dramaturgias muito distintas, do épico ao cômico, do
experimentalismo ao drama televisivo. Nos palcos e diante das câmeras, sua presença é notória
ao longo de mais de 5 décadas de carreira contínua e bem sucedida. No entanto, desde o inicio
de sua carreira teatral também exerceu funções de produção, criação ou direção em espetáculos
e filmes que realizou.

Apesar da notória carreira, há certo hiato entre o peso de sua contribuição à dramaturgia
e cinematografia brasileira, e a atenção dada a sua participação, geralmente focada na figura da
‘bela atriz’, ‘musa’ do cinema e TV. Há pouca atenção até a sua influência no comportamento
cultural de uma época, principalmente na representação social do que é ser uma mulher
autônoma em um período em que esta discussão ainda era um tabu na esfera pública brasileira.

Ítala contribuiu ativamente como atriz, criadora e produtora no Teatro Oficina durante a
década de 1960. Esteve no centro dos processos criativos, administrativos e políticos que
envolveram o grupo teatral entre os anos de 1963 e 1972. Sua imagem e colaboração artística
estão em inúmeras obras marcantes na modernização do teatro e cinema brasileiro, foi ativa na
experimentação estética e comportamental do final dos anos sessenta, tendo encenado e
produzido obras fundamentais do momento da Tropicália na dramaturgia e no cinema.

Este artigo pretende lançar luz a esta personagem – Itala Nandi – refletindo criticamente
sobre a historiografia e o relevo dado às mulheres no processo de construção do discurso
histórico. A abordagem pretende não apenas iluminar a potente carreira de uma artista múltipla,
mas atentar para como o discurso histórico cria apagamentos, submetendo o protagonismo de
mulheres na história da cultura apenas a representações consentidas pela lógica patriarcal. Ao
focar a atenção em seu trabalho teatral ao longo da década de 1960, procuramos também
mostrar a relevância de sua atuação no que foi o momento criativo da tropicália, e na
modernização da dramaturgia e cinema brasileiros pós-1968.

Este artigo se construiu a partir do livro de memórias “Teatro Oficina, onde a arte não
dormia” (NANDI, 1998) e da análise de filmes protagonizados por ela ao longo da década de
1970, a fim de recolocar sua relevância como agente histórico nas transformações operadas no
teatro e cinema brasileiros.
1. Itala Nandi – atriz, produtora, cineasta e escritora.

Ítala Nandi, gaúcha de Caxias do Sul, é atriz desde a adolescência. Ingressou jovem em
1963 no Teatro Oficina, em São Paulo, compondo a primeira geração do grupo junto a José
Celso Martinez Correa, Fernando Peixoto, Renato Borgui e Etty Fraser. Encenou ou produziu
quase todas as montagens do Teatro Oficina ao longo da década de 1960. No final desta década
esteve no centro do movimento teatral identificado com a tropicália, encenando em 1967 a
emblemática montagem d’O Rei da Vela de Oswald de Andrade. Atuou ainda nas históricas
montagens, dirigidas por José Celso, dos textos de Bertolt Brecht, Galileu Galilei (1969) e Na
selva das cidades (1970). Neste período também esteve envolvida na realização de filmes que
marcaram o cinema de vanguarda brasileiro realizado no pós-1968.

Itala protagonizou, América do Sexo (1969) projeto coletivo dirigido por, Luis Rosemberg
Filho, Leon Hirszman, Flavio Moreira da Costa e Rubem Maia, que é um experimento
cinematográfico audacioso e bastante idiossincrático em sua temática e no uso que faz da
linguagem audiovisual, encenando roteiros pouco narrativos ou lineares, repleto de
experimentações na montagem e uso do som. O filme tem colaboração de José Celso Martinez
Correa, André Faria entre outros artistas que se destacaram na vanguarda deste período
emblemático. Entre 1970 e 1971, Itala produziu e protagonizou o filme Prata Palomares (André
Faria – 1971), foi protagonista em Os deuses e os mortos (Ruy Guerra – 1971), em Pindorama
(Arnaldo Jabor – 1971) e foi coadjuvante em O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla –
1970), todos estes, filmes atravessados por ideias e artistas que realizavam e discutiam, no
teatro, nas artes plásticas, na música e no cinema, aquilo que se chamou de marginal ou
tropicalista. Atuou em outra dezena de filmes durante toda a década de 1970, enfrentando
críticas conservadoras, a censura e as transformações do mercado audiovisual brasileiro
impactado pelo contexto econômico e cultural da ditadura militar.

Em paralelo a isso, realizou inúmeras participações na televisão. Estreou em 1964 na


televisão Oficial do Uruguai com a peça O Cimento (Gianfrancesco Guarnieri e dir. Fernando
Peixoto). Em 1965 atuou em Melodia Imortal (Ivany Ribeiro e dir. Walter Avancini) para a TV
Excelsior de São Paulo. Na segunda metade da década de setenta, depois de várias experiências
com o cinema, atuou na novela O Pulo do Gato (Braulio Pedroso e dir. Walter Avancini – 1977)
e no episódio A Procura (Gianfranceso Guarnieri e dir. Milton Gonçalvez - 1979) do seriado
Carga Pesada, ambos na TV Globo do Rio de Janeiro. Atuou em novelas durante a década de
1980 e 1990, com destaque para O Direito de Amar (Janete Clair, Walter Negrão e dir. Jaime
Monjardim – 1986), Que Rei sou eu? (Cassiano Gabus Mendes e dir. Jorge Fernando – 1988) e
Pantanal (Benedito Ruy Barbosa e dir. Jaime Monjardim – 1990).
Dirigiu ainda os documentário In Vino Veritas (Itala Nandi, 1981) e Índia, o caminho dos
Deuses (Itala Nandi, 1991), coroando, na direção destes documentários, sua experiência com o
audiovisual. Ainda que formalmente simples, quase em formatos de reportagens televisivas,
estas realizações apontam o domínio de Ítala com a linguagem audiovisual, tendo escrito os
roteiros, atuado na produção executiva, filmagens e montagem dos materiais. O documentário
de 1981 é um retorno as suas origens em Caxias do Sul através da investigação das tradições e
do processo vinicultor de famílias de imigrantes italianos radicados na região, pautado por
entrevistas e registros de atividades tradicionais como a ‘vindima’, o plantio, a colheita e
processamento das uvas, até a atividade comercial familiar nas vinícolas gaúchas. Índia, o
Caminho dos Deuses surge de uma viagem à Índia. Realizado junto ao filho Giuliano, o
documentário reúne registros de locais históricos e sagrados ao budismo, e através de narração
expositiva e didática encadeia um enredo simples, mas bem construído. Tem um tom de
reportagem televisiva especial, típica de programas formatados durante a década de 1980 em
veículos como a TV Manchete e Rede Globo.

Com uma trajetória extremamente produtiva no teatro e no cinema Itala atravessou uma
época compondo com seu trabalho e corpo, o debate ligado ao comportamento da mulher, a
liberação sexual, uma nova subjetividade criativa e comportamental que confrontou a produção
cultural de um período que, embora efervescente, era controlado política e ideologicamente pela
Lei de Censura e por aparelhos repressores de um regime ditatorial. Entrevistada para a Revista
Realidade n°10, de dezembro de 1966, foi censurada por seu posicionamento frente a assuntos
sobre a sexualidade feminina. A primeira página da reportagem de Alessandro Porro estampava
o rosto da atriz com a manchete “Esta mulher é livre”. No conteúdo, afirmações sobre a
necessidade de afirmação feminina frente ao contexto machista da sociedade brasileira: “Será
que os homens perceberão que mulher pensa?”, “Devemos ser independentes a qualquer custo”,
“Ela é uma moça que não tem medo de dizer o que pensa sobre amor e sexo no Brasil”.
Algumas semanas depois de lançada, em janeiro de 1967, a Censura Federal ordena a apreensão
da tiragem desta edição da revista em bancas de jornal de todo o território nacional. O episódio
de censura passou relativamente despercebido pela sociedade da época, mas ilustra a
contundência da atitude de uma artista independente em meio a uma sociedade machista e
conservadora, e o teor de sua atuação sobre a cultura de seu tempo histórico.

Formada como atriz no cerne da ‘vanguarda tropical’, ativa em muitas obras proibidas pela
censura, Ítala Nandi também transitou com desenvoltura pelo teatro comercial, o cinema
popular, e a TV, por mais de três décadas. Escreveu textos para o teatro e o livro de memórias
“Tetro Oficina, onde a arte não dormia” onde realiza importante retrospectiva sobre o grupo e
sua atuação pessoal em processos fulcrais da transformação da cultura brasileira entre os anos
sessenta e setenta. Entre 2005 e 2009 colaborou na idealização e fundação de uma escola
superior de Cinema, a CINETV-PR, sediada em Curitiba, hoje curso superior encampado pela
Universidade Estadual do Paraná. Recentemente atuou em novelas da TV Record e participou
do filme Domingo (Clara Linhart e Fellipe Barbosa – 2017), além disso, leciona teatro e
coordena um curso de atores em Jacarepaguá, o Espaço Nandi. A imagem geralmente associada
aos personagens polêmicos que encenou no teatro e cinema, ou aos personagens populares da
TV, eclipsa uma artista e produtora engajada na criação subjetiva de seu tempo, e ativa em
diversos setores da cultura nos quais a presença masculina é hegemônica, como na arte, na
política e produção intelectual.

2. No olho do furacão – Teatro Oficina e a tropicália;

Ítala Nandi chegou a São Paulo em 1963, casada com o crítico e diretor teatral Fernando
Peixoto. Fernando dirigiria o espetáculo A torre em concurso (Joaquim Manuel Macedo), que
seria encenado pelo grupo d’Oficina, mas que jamais saiu das salas de ensaio. Contadora em
uma agência de publicidade, não demorou para que Ítala passasse a realizar a função
administrativa no Teatro Oficina, abandonando o emprego na agência e tornando-se secretária
do grupo teatral. Nesse mesmo ano substituiu a atriz Rosamaria Murtinho que adoeceu e saiu da
peça Quatro num Quarto (Valentin Kataiev), texto de vaudeville russo que fez bastante sucesso
na montagem dirigida por José Celso Martinez. Ítala ficou definitivamente no papel, e além das
funções administrativas iniciou carreira profissional no Teatro Oficina que neste momento já
tinha certo destaque na cena teatral paulistana.

Entre 1963 e 1966, o grupo realizou montagens de textos fundamentais do teatro moderno, e
Ítala compôs o elenco, os processos criativos e a produção de vários deles. Pequenos Burgueses
(Máximo Gorki) em 1963; Toda donzela tem um pai que é uma fera (Glaucio Gil), Andorra
(Max Frisch) em 1964; e Os inimigos (Máximo Gorki) em 1965/66. Nestas montagens o grupo
experimentou a maturidade dramatúrgica, estética e organizativa, ao mesmo tempo em que os
atores desenvolviam-se através dos laboratórios stanislaviskianos coordenados por Eugênio
Kusnet, e José Celso crescia como dramaturgo e diretor.

No Oficina começamos a trabalhar um dado que era uma contribuição muito


nossa, que é a contravontade. O jogo entre vontade e contravontade. Todos
querem alguma coisa e não querem ao mesmo tempo. Então adotamos um
processo de laboratório a partir da vontade e contravontade do personagem, uma
pesquisa que era muito mais rica que a vontade unilateral, monomotivada. E o
Kusnet nos estimulava muito neste sentido. Ele achava ‘uma pequena maravilha’
essa coisa da contravontade. Tudo começou assim, até que mais tarde
encontramos a nossa linguagem pessoal – a linguagem Oficina de interpretação,
quando todas as tendências foram executadas – do teatro realista, passando pela
chanchada, pela ópera, pelo distanciamento brechtiano e por aí afora”.
(NANDI, Ítala. 1998 – pg. 93-94)
Havia o desafio de administrar o empreendimento comercial através da renda da bilheteria,
lidando com a complexa relação entre público, crítica e censura, que durante a década de 1960,
interferiu em quase todas as montagens do grupo, perseguindo policialmente os diretores
artísticos José Celso, Renato Borgui e Fernando Peixoto, após o golpe militar de abril de 1964.
Em maio de 1966 a sede do grupo na Rua Jaceguay, na Bela Vista, é atingida por um incêndio.
O incidente alterou projetos e forçou uma mostra retrospectiva do repertório d’Oficina. O
esforço por remontar, reencenar e produzir três espetáculos ao mesmo tempo, em paralelo a
captação de recursos e empréstimos bancários para reconstruir o teatro incendiado definiram um
novo momento do Teatro Oficina. Ítala, que não atuava em nenhum dos espetáculos
retrospectivos deixou as tarefas de produção no grupo e realizou, ainda em 1966, uma
participação na montagem de Flavio Rangel ao texto Sr. Puntilla e seu criado Matti (Bertolt
Brecht) no Rio de Janeiro, afastando-se brevemente, e contra a vontade de José Celso, do grupo
d’Oficina para trabalhar em um espetáculo em que as relações entre os atores e diretor não era
colaborativa.

Nesse período a jovem atriz teve importantes experiências profissionais e pessoais


realizando atividades fora do Teatro Oficina: aproximou-se de outros artistas que viviam no Rio
de Janeiro; foi convidada a estudar na França (experiência que realizaria entre 1967 e 1968); e
protagonizou o episódio de censura à Revista Realidade por suas declarações acerca de sua
sexualidade e visão sobre a autonomia feminina. Em meio a redefinições vividas após o
incêndio da sede, o grupo voltou-se a um trabalho reflexivo realizando laboratórios de
interpretação com Luís Carlos Maciel e cursos de dialética materialista e materialismo-histórico
com Leandro Konder.

Nós, os renascidos das cinzas, aproveitamos esse momento de renovações


para nos repensar novamente como grupo – os laboratórios com Maciel e as
aulas teóricas com Leandro, produziam seu efeito. Insatisfeitos com o exercício
da profissão, marcado por certa estagnação criadora e visível imobilismo diante
da realidade, começamos a nos preocupar com a observação crítica do processo
social e sua reprodução cênica em nível de exteriorização igualmente crítica. (...)
A própria remontagem de Quatro num Quarto, que fizemos com Zé, foi
fascinante, um aprendizado diário: nos soltamos em todos os níveis, deixamos os
limites do ‘bom comportamento’ cênico transformando o texto de Kataiev no
veículo para um exercício de surrealismo e criatividade, improvisando a todo
instante (...) a peça ganhou mais um estranho personagem mudo: colocamos um
lençol sobre o contra-regra Adolfo Santana e volta e meia ele atravessava a cena,
simplesmente carregando fuzis para o corredor...tudo isso com uma conivência
absoluta com a platéia que nos acompanhava rindo explosivamente. (...) é certo
que esta explosiva versão desta comédia que nos acompanhava a tantos anos, em
alguns níveis, foi o necessário embrião para a ruptura com a interpretação mais
tradicional que viria acontecer. Foi dessa montagem que nasceu o embrião do
deboche e irreverência que iria estourar no O Rei da Vela de Oswald de Andrade.
(NANDI, Ítala. 1998 – pgs134, 135)

Todas estas vivências foram bases para a definitiva profissionalização técnica do coletivo e
para o amadurecimento estético que desembocaria nas experiências vanguardistas de O Rei da
Vela (Oswald de Andrade) em 1967, Galileu Galilei (Bertolt Brecht) em 1969 e Na selva das
cidades (Bertolt Brecht) em 1970. O Teatro Oficina era um efervescente laboratório estético,
teórico e político, em meio a um contexto contraditório em que o regime político repressivo
contrastava com uma cultura fervilhante de novidades. O Cinema Novo, a música popular
engajada, e as inovações concretistas nas artes visuais e literatura, arejavam o ambiente artístico
e estimulavam o clima criativo existente n’Oficina. José Celso, Renato Borgui, Etty Fraser, Ítala
Nandi, Fernando Peixoto, Eugênio Kusnet, Luiz Carlos Maciel, Hélio Eichbauer, Flávio
Império, Lina Bo, desenvolveram através do Teatro Oficina, como atores, encenadores,
escritores, artistas plásticos ou cenógrafos, expressões de ruptura com a dramaturgia moderna
que era realizada no Brasil até aquele momento. Estas novas proposições não se resumiram à
temática ou à atuação: cenografia, figurinos, as novas relações com o público que surgiram ali,
dialogavam com um momento histórico da construção de uma arte de vanguarda no Brasil.

A sugestão do texto de Oswald de Andrade para a nova montagem do Oficina em sua ‘nova
sede’ reformada foi dada por Luis Carlos Maciel, que realizava os laboratórios de interpretação
junto aos artistas do grupo. Interessados nas teorias de Brecht, especialmente do Gestus social e
no funcionamento do V-Effekt, o famoso estranhamento brechtiano, o grupo vasculhava formas
de realizar estes efeitos de representação através da própria tradição do teatro popular brasileiro.
Maciel teria então retomado a obra do escritor modernista como uma referência desta busca por
uma expressão crítica genuínamente brasileira.

A montagem do texto de Oswlad de Andrade, jamais realizada até então, teve grande
impacto sobre a produção artística naquele momento de transformações. Da música popular ao
cinema, o Rei da Vela do Teatro Oficina foi referido como um terremoto expressivo de uma
brasilidade crítica a um só tempo não folclórica, debochada, sensual e política. As pesquisas
estéticas acumuladas no grupo ao longo dos anos anteriores explodiram na montagem inédita do
texto modernista, através de uma leitura não convencional, antropofágica, em que os elementos
do modernismo eram confrontados com a realidade brasileira do final dos anos sessenta. A frase
provocativa Tupy or not tupy, incorporou a língua inglesa à tradição ameríndia ao mesmo tempo
em que manifestava a brasilidade através do deboche, do desbunde, de alguma agressividade e
sexualidade latente que pretendiam o chocar os espectadores. Esta leitura do texto de Oswald
desestabilizou paradigmaticamente a produção dramatúrgica do período – parte da vanguarda
identificada com a obra reivindicou sua novidade e radicalismo, enquanto outro setor,
incomodado com o discurso constituído, mas sem poder ignorar sua potência, levantou duras
críticas. O tamanho do impacto cultural da montagem, geralmente atribuído ao diretor José
Celso Martinez Correa, se deu através da potência forjada coletivamente e confrontada ao longo
de um intenso processo de experimentações formais e teóricas no interior do grupo do Teatro
Oficina, ao qual Ítala Nandi esteve intensamente ligada desde 1963.
A montagem do texto de Oswald colocou o grupo no centro dos acontecimentos da assim
chamada Tropicália. Dirigido por José Celso, o espetáculo alçou sua figura como dramaturgo
inovador e um dos ícones da vanguarda tropicalista, compondo na dramaturgia a ruptura estética
que vinha renovando as artes visuais, a música e o cinema brasileiro. Sublinhamos aqui o peso
da criação colaborativa do Oficina nesta viragem expressiva do teatro brasileiro, não como
fetiche horizontalista, mas porque foi realizada através de pesquisas que envolveram atores e
outros colaboradores, em um esforço coletivo que resultou numa linguagem potente estética e
politicamente, atualizando a abordagem de persectiva crítica da cultura brasileira. O conteúdo e
a forma inovadores incomodaram a censura e os setores conservadores da sociedade que, em
meio a ditadura civil-militar, estava à beira de um dos períodos politicos mais restritivos de sua
história. Nas palavras de Ítala,

O Rei da Vela era nosso melhor resultado, da produção à criação. O


espetáculo caía como uma luva no momento cultural que vivíamos. Eu estava
feliz comigo mesma. Havia feito uma Heloisa (de Lesbos – personagem d’O Rei
da Vela) realmente expressiva, fora de qualquer traço conhecido, e que resultou
ainda melhor do que eu esperava. Mas eu estava acima de tudo feliz conosco. O
lance de renascer das cinzas nos obrigou a um amadurecimento acelerado. E
estávamos conscientes do salto que dávamos. [...] Agora, era agüentar
corajosamente os ataques da sociedade conservadora e da imprensa reacionária,
além das investidas do CCC (comando de caça aos comunistas) e da polícia.
(NANDI, Ítala – 1998, pg 163-167)

Ítala viajou para estudar na França ainda em 1967, permanecendo por lá até meados do
ano seguinte. No período, além de estudar teatro, vivenciou as revoltas de Praga, na
Tchecoslováquia, o levante operário-estudantil de maio de 68 em Paris, aproximou-se da
linguagem do cinema e atuou com o Oficina durante apresentações d’O Rei da Vela realizadas
no IV Rassegna Internacionale dei Teatri Stabili (Florença, Itália), II Festival Internacional de
Jeunes Compagnies (Nancy, França) e em curta temporada no Théâtre de la Commune d’Auber-
Villiers (Paris, França). Pelo afastamento temporário do Brasil, não participou da controversa
montagem de Roda Viva (Chico Buarque de Holanda, 1968), espetáculo que marcou a transição
para uma estética mais agressiva, de choque, e que gerou, entre tantas reações da censura e
imprensa, o mórbido episódio da invasão do teatro por cem membros do CCC que agrediram
público e elenco.

As montagens subseqüentes – Roda Viva, Galileu Galilei e Na selva das Cidades –


consolidaram o método colaborativo e uma linguagem muito particular do grupo que levando a
antropofagia às ultimas conseqüências, encenou Brecht incorporando elementos da cultura pop
e da brasilidade. Esta postura enfrentou o acirramento das formas de censura, que com o
recrudescimento do regime político através do AI-5, restringia obras inteiras, fechava teatros,
caçava livros, filmes e seus autores.
Marcados por essas inúmeras tensões crescem também divergências internas ao grupo,
marcadas pela defesa de uma postura anárquica e representação irracionalista capitaneadas por
José Celso, e uma visão esquemática, mais racional e dialética defendidas por Fernando Peixoto
e Ítala Nandi. Esta situação perdura até 1971, quando após conflitos ligados à montagem de Na
Selva das Cidades e da realização do filme Prata Palomares (André Faria, 1971) Fernando e
Ítala afastam-se definitivamente do grupo.

Coincidindo com as divergências no grupo, Ítala inicia sua carreira no cinema, atuando,
junto com Zé Celso no filme América do Sexo (Rosemberg, Costa, Maia e Hirszman – 1970).
Até 1972 sua atividade dividiu-se cada vez mais entre o teatro e o cinema, incorporando às suas
atuações cinematográficas, direta ou indiretamente, elementos marcantes da experiência
vanguardista vivida no Teatro Oficina.

3. A guisa de conclusão – da tropicália teatral ao cinema marginal

Durante toda a década de 1970, sua carreira como atriz perpassou filmes relevantes do
cinema brasileiro do período, que apesar de importantes sofreram com a censura e as restrições
de um contexto político-cultural conservador. São filmes bastante distintos entre si, nas
proposições estéticas/formais e no modo de produção, mas que tem em comum o contexto pós-
1968, em que, acossada pela censura e o moralismo das instituições culturais, a vanguarda
artística esboçou respostas ao contexto repressivo, principalmente ao aprofundamento da
repressão física, sintetizada na tortura e no assassinato de militantes das organizações de
esquerda.

Seu protagonismo nos quatro episódios do experimento coletivo “América do Sexo”


(Rosemberg, Moreira, Maya, Hirszman – 1969) é um reflexo do relevo de seu trabalho como
atriz no Oficina. Colaborando ativamente na construção estética do filme, percebe-se que não há
ali apenas um uso de sua figura, da bela atriz, mas um aporte corajoso em realocar a
representação da mulher em outra chave, em que o corpo feminino e o sexo não são meramente
objetos de prazer visual, mas ferramentas de desestabilização da estrutura clássico-narrativa do
cinema tradicional feito até ali.

Ítala participou do icônico de “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla – 1970) e


teve destaque nos filmes “Pindorama” (Arnaldo Jabor – 1970) e “Os Deuses e os Mortos”
(Ruy Guerra – 1971) os quais representou no Festival de Cannes de 1971. No mesmo período
produziu e protagonizou o filme Prata Palomares (André Faria – 1971), obra realizada no
contexto do Teatro Oficina, envolvendo técnicos e atores do grupo. Prata Palomares é um filme
desafiador para o período, tanto em sua temática – guerrilheiros em fuga, revolta popular,
sincretismo religioso, crítica à igreja católica – mas também no uso que faz da linguagem
cinematográfica, rompendo drasticamente com a legibilidade e outros cânones do cinema
clássico narrativo. Estrearia no Festival de Cannes do mesmo ano, e Ítala realizaria o marco de
protagonizar três filmes convidados para um mesmo Festival de Cannes, no entanto a censura
brasileira vetou completamente o filme e impediu sua exportação. Junto ao diretor André Faria,
seu companheiro à época, realizou campanha internacional pela liberação do filme, envolvendo
a Associação Francesa de Críticos de Cinema, a organização do Festival, entre outras
personalidades do cinema mundial.

Ao longo da década de 70 atuou em outros importantes filmes brasileiros, destacamos


Roleta Russa (Braulio Pedroso – 1972), A Cartomante (Marcos farias – 1974), Guerra Conjugal
(Joaquim Pedro de Andrade – 1974), Os homens que eu tive (Thereza Trautmann – 1976), O
cortiço (João Ramalho Jr. – 1977), Muito Prazer (David Neves – 1979) e O homem do pau
Brasil (Joaquim Pedro de Andrade – 1980), por serem filmes que de alguma forma tematizam a
autonomia da mulher na sociedade, a liberalização dos costumes sexuais, e a relação entre
vanguarda e modernismo na cultura brasileira.

É importante salientar, dentro deste intenso período da cultura brasileira, o nível de


atividade criativa de Ítala, sempre no cerne de importantes processos de ruptura e renovação da
dramaturgia e do cinema. O olhar tradicional da historiografia volta suas lentes aos homens e
aos diretores das obras as quais ela e outras inúmeras mulheres colaboraram ativamente,
ignorando peso de suas contribuições. É notório que o destaque dado à sua imagem, bem como
à sua postura despojada diante do contexto histórico de tensões entre projetos políticos e
ideológicos, não passaria despercebida já que como atriz e figura pública ela realmente se
esforçou para contrapor-se ao papel que o contexto patriarcal impunha a uma moça nascida no
interior, atraindo a atenção para seu corpo e a forma como o posicionava no mundo. No entanto
o embotamento de seu protagonismo como criadora ativa nos processos de renovação do teatro
e cinema são também conseqüências da maneira como o discurso historiográfico ainda focaliza
os personagens referindo-se aos gêneros e os papéis sociais que os atribui.
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