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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CINEMA – PPGCINE

Engajamento estético e ruptura com as formas canônicas de


representação cinematográfica no filme Prata Palomares (1971)

Trabalho monográfico apresentado pelo discente Adriano Del Duca como


conclusão da disciplina optativa “História e teoria da recepção
cinematográfica” ministrada pelo Prof. Dr. João Luiz Vieira.

Niterói, 09 de março de 2018


Resumo

O filme Prata Palomares (André Faria, 1971) foi realizado no contexto


emblemático do pós-1968 e traz elementos estéticos e históricos marcantes da produção
cinematográfica deste período. A obra de ficção assinada por André faria é produto da
experimentação cinematográfica coletiva do Teatro Oficina em sua fase tropicalista, no
final dos anos 1960. Censurado, foi impedido de estrear na Semaine de La Critique do
Festival de Cannes de 1971, permanecendo bloqueado para exportação até 1977 e para a
exibição nacional até 1979. Apesar de desconhecido e ignorado pela historiografia do
cinema, é uma das expressões cinematográficas contundentes do cinema brasileiro da
virada para os “anos de chumbo”.

Palavras-chave: cinema brasileiro moderno; cinema marginal; teatro oficina; censura;


tropicalismo.

Abstract

Prata Palomares (André Faria, 1971) film was made in the pos-1968
emblematic context and brings esthetic elements and remarkable historical production
cinematographic for this period. The works of fiction signed by Andre Faria is a product
of cinematographic collective experimentation of the Treatre Oficina in your tropicalist
phase, at the end of the 1960s. Censored, he was barred to launch in the Semaine de La
Critique from the 1971 Cannes Festival, remaining blocked for exportation until 1977
and for national exhibition until 1979. Although he was unfamiliar and ignored by the
historiography of cinemas, it is one of historiography cinematographic forceful by the
Brazilian Cinema of turning point for the “lead years”.

Key words: modern brazilian cinema; marginal cinema; teatro oficina; censors;
tropicalism.
1. Introdução

A abordagem que proponho ao filme Prata Palomares (André Faria, 1971) tem
sido prioritariamente histórica e política no sentido de compreender a dinâmica criativa
que animava os artistas envolvidos no processo de realização do filme no contexto
político do início da década de 1970, ainda fortemente influenciados pela experiência da
Tropicália e do Cinema Novo. A partir disso, o foco da presente pesquisa esteve em
perscrutar as nuances políticas e ideológicas que permearam a censura ao filme, bem
como o processo de resistência política dos realizadores, a fim de trazer o filme à
público.

Neste ínterim, a investigação pouco se deteve sobre a análise do material pró-


fílmico e o discurso enredado através do uso que faz da linguagem cinematográfica.
Aproveitamos a proposição de refletir à luz de teorias que refletem a recepção da
imagem, a representação do corpo, afetos e percepções, a fim de refletir em que sentido
a perspectiva política crítica, característica ao filme Prata Palomares, estabelece
também uma postura outra em relação à representação dos atores, à estrutura da
narrativa e ao uso dos mecanismo de identificação/distanciamento para construção de
uma outra forma de recepção da imagem, pautada pela crítica e ruptura com as
estruturas do cinema dominante. Interessa-nos refletir se os autores manipulam seus
esquemas narrativos a fim de criticar os sistemas canônicos de representação e a
estrutura narrativa do cinema clássico narrativo.

Inicialmente contextualizaremos a obra ao período histórico e o contexto


político-cultural em que foi gestada, afim de melhor relacionar a análise que fazemos
das proposições estéticas radicais presentes em Prata Palomares e a perspectiva teórica
escolhida para a análise do material pró-filmico. O texto “Prazer visual e cinema
narrativo” de Laura Mulvey e o livro “Alegorias do subdesenvolvimento” de Ismail
Xavier são os referenciais a partir do qual pretendemos não apenas localizar
historicamente o filme, mas apontar o quanto suas proposições estéticas dialogam com a
teoria crítica de sua época, e quais aspectos viabilizam relacioná-lo ao momento
experimentado na arte de vanguarda brasileira nos anos pós-1968.

2. Prata Palomares e seu contexto político-cultural;

O filme Prata Palomares (André Faria, 1971) é uma obra que carrega em si o
emblema de 1968, desde o engajamento político presente na temática alegórica da
revolta popular e da guerrilha, característico do período, bem como proposições
estéticas que dialogavam com a postura esboçada por inúmeros cineastas que se
engajaram, e também às suas obras, na crítica aos regimes políticos, ao sistema de
representações da sociedade burguesa e ao próprio aparato produtivo do cinema
industrial. Além disso, os impedimentos que o filme sofreu ao longo dos anos em que
permaneceu interditado, o inserem drasticamente no contexto que em que a cultura
cinematográfica confrontou-se diretamente com a política.

O final da década de 1960 foi marcado pelo recrudescimento das formas de


exploração do trabalho e repressão às resistências dos trabalhadores, mas destaca-se
também pelas respostas engendradas por grupos de jovens estudantes, artistas e
trabalhadores que repercutiram na cultura política daquela geração em todo o mundo. A
Revolução chinesa, a Primavera de Praga, a luta dos negros nas periferias dos EUA, e os
levantes estudantis, são signos do ocaso de uma década que questionou profundamente
as estruturas da ordem social capitalista.

No Brasil, o período foi marcado por manifestações do movimento estudantil


contra a ditadura militar, pela emergência de organizações políticas de esquerda
identificadas com a guerrilha guevarista e/ou ao maoísmo e que atuavam de forma
clandestina1, bem como o emblemático momento de criação artística e intelectual
engajada, caracterizando um momento em que contraditoriamente, na mesma medida
em que se aprofundava o caráter autoritário do regime político, através do Ato
Institucional nº5, respirava-se um ambiente efervescente de criação artística engajada
(RIDENTI, 2014). A arte, audaciosa em suas estratégias para refletir o momento
histórico, estabelece uma postura claramente política: há uma tentativa de diagnóstico
da crise – econômica, política, cultural – que reverbera na sociedade, refletindo
criticamente o caráter do subdesenvolvimento econômico e a incompletude do
desenvolvimento sócio-cultural; e também há um esforço no campo da linguagem de

1
No livro Em Busca do Povo Brasileiro, artistas da revolução do CPC à era da TV, Marcelo Ridenti traça
um detalhado mapa das relações entre o pensamento político, a prática política das organizações
revolucionárias, e a ideologia que compunha a atmosfera de criação cultural durante as décadas de
1960-70. Sua pesquisa aponta que o imobilismo da esquerda próxima ao Partido Comunista Brasileiro e
ao trabalhismo, levou as alas mais radicais se reorganizarem em grupos armados – destaca-se a ALN,
MR-8, VPR, VAR, entre outros pequenos grupos – que com diferenças programáticas, dialogavam com as
experiências vitoriosas do comunismo de Cuba e da China na década anterior. Neste sentido as
doutrinas políticas de Che Guevara, Fidel Castro e Mao Tse-Tung, conformavam a perspectiva política de
grande parte dos jovens no fim dos anos 1960. Ridenti aponta ainda vários artistas do período atuaram
nestas organizações, além de haver ‘resíduos’ destas tendências político-ideológicas na postura
romântica dos artistas e em inúmeras obras realizadas no pós-1968.
estabelecer uma dialética obra/público tendo como pano de fundo a “polêmica que
envolveu cineastas do cinema novo e uma nova geração que exigia a continuidade de
uma estética da violência, de um cinema mais empenhado na expressão radical do autor
do que nas concessões viabilizadoras dos filmes como mercadoria” (XAVIER, 2012. p.
30).

O contexto de efusão de idéias e de respostas políticas ao momento histórico


reverberou sobremaneira no cinema e teatro brasileiro. Terra em Transe, O Rei da Vela,
a tropicália, o cinema marginal, enunciavam um discurso de respostas à experiência
política autoritária da sociedade brasileira. A força criativa deste momento ecoou em
inúmeras obras do início da década de 1970, compondo uma atmosfera de engajamento
político e estético que é fundamental para compreensão da cultura ao longo daquela
década.

3. Alegoria e representação da História no cinema brasileiro de vanguarda


dos anos 1970;

Prata Palomares (1971) é um marco no cinema brasileiro mesmo sendo um


filme completamente desconhecido. Sua relevância estética e histórica justifica-se pelos
elementos da cultura moderna brasileira que convergem quando analisamos a obra. É
uma produção cinematográfica independente, em diálogo com o movimento da
Tropicália e com a estética chamada de “marginal”, própria do final da década de 1960
e início dos anos 1970. E é conseqüência direta da profissionalização do Teatro Oficina
em São Paulo, que ao longo de toda a década de 1960, constituiu uma vanguarda
dramatúrgica no contexto do teatro brasileiro.

No filme, dois guerrilheiros em fuga de uma revolução derrotada escondem-se


em uma igreja abandonada em um lugar chamado Porto Seguro. Um deles decide se
passar pelo vigário que a comunidade esperava enquanto o outro prepara meios para
prosseguirem a fuga. No entanto, envolvidos por uma figura mística, misto de santa e
prostituta, acabam se envolvendo com as disputas políticas locais. Em meio ao conflito
entre o povo do local e a Família de Branco, estrangeiros poderosos, o falso padre
enlouquece e assume uma personalidade messiânica. Diante de torturas, assassinatos, e
de seu conflito psicológico, o guerrilheiro trai seus objetivos revolucionários e instaura
o “Paraíso Agora”, a alegoria de uma república messiânica e caótica que remete ao
subdesenvolvimento político e cultural dos países periféricos.
A abordagem feminista de Laura Mulvey, elaborada em 1973, no artigo “Prazer
visual e Cinema narrativo” encontra possíveis pontos de aproximação com o filme
através do simbolismo e a significação estabelecida em sua alegoria. Como uma
expressão do cinema alternativo de um país periférico, observa-se a crítica ao aparato
produtivo do cinema industrial desde os modos de produção, até ao sentido da
representação buscada. A maneira como os personagens são apresentados e sua
construção dramatúrgica, bem como a forma como se busca representar a mulher
através de uma alegoria crítica à estrutura patriarcal da representação cinematográfica,
ajustando o personagem feminino como um elemento desestabilizador da narrativa e
como agente narrativo ativo na diegese e construção semiótica.

Trabalharemos de forma reincidente o conceito de alegoria por tratar-se de um


recurso estético e narrativo fundamental ao filme analisado. A acepção do termo é
complexa e remete a algumas tradições filosóficas e literárias com sentidos diversos.
Seu sentido na tradição Greco-latina, conforme nos informa Ismail Xavier,
“etimologicamente allos(outro) + agoreuein (falar na assembléia) – traz a ideia de falar
uma coisa referindo-se a outra, o conteúdo manifesto estando no lugar de algo
que,embora ausente, é seu significado” (XAVIER, 2012, p. 465). Mas esta definição
apesar de elucidativa, não contempla o uso contemporâneo da alegoria no cinema, onde
ela pode estar associada à uma dimensão narrativa – o texto, o personagem ou o local,
como alegorias – e à uma dimensão da composição visual – associada à
descontinuidade, pluralidade de focos, colagens, fragmentações e outros efeitos de
montagem (XAVIER, 2012, p.38)

Neste sentido, trabalhamos com a definição emprestada de Angus Fletcher, aqui


resumida por Ismail Xavier, que dá conta das metamorfoses da alegoria ao longo do
tempo, e seu sentido no uso narrativo moderno.

(...) no âmbito da mise-en-scène, desfilam personagens cuja aparência tende


ao diagramático, à constelação de traços marcantes que as insere num sistema
de oposições bem nítidas e, no limite, elas compõem de modo a escancarar
sua condição de ‘personificações’ de forças dentro de um mundo
hierarquizado. Sua ação, mesmo numa linearidade aparentemente simples,
pode adquirir um tom de ritual, de uma jornada feita de procura obsessiva, ou
pode estar justaposta a ações paralelas espelhadas de forma rigorosa num
jogo de repetições, que assinalam uma ordem cujo horizonte é enigmático.
Em casos limites há uma causalidade mágica a inserir os agentes numa
progressão do cosmo que nem sempre é unívoca em seu sentido. Os espaços
destas ações e causalidades se estruturam como microcosmos mais ou menos
fechados, podendo receber nomeações reveladoras. (XAVIER, 2012, p.39)

Prata Palomares tem a marca da transição temática e estética ocorrida entre o


ocaso do Cinema Novo e a emergência do tropicalismo e do cinema marginal, e neste
sentido estabelece uma narrativa, a um só tempo crítica ao Estado autoritário, mas
também à incapacidade da militância de esquerda em esboçar respostas efetivas. Sua
alegoria expõe um ‘lugar’ – Porto Seguro – tomado por uma aristocracia imperialista, e
uma ‘nação-distópica’ – o Paraíso Agora – vislumbrada messianicamente por um
guerrilheiro em fuga que se converte em um padre alucinado. De um lado temos o
personagem de um Prefeito populista da cidade de Porto Seguro, figurando a burguesia
nacional entreguista politicamente e economicamente, de outro temos um ‘Povo’
amorfo, alienado, ensimesmado em crenças e rituais, incapaz de tomar as rédeas do
processo histórico, passivo diante de seu líder Tonho, e posteriormente do falso
padre/messias. De lado, uma Família estrangeira, Kitsch e ritualizada exercendo a
dominação pela violência, por outro temos uma Santa/Prostituta que encarna a violência
reativa do povo e a ritualização da revolta política.

Ao estilo diagramático e com oposições marcantes, as relações estabelecidas


entre estes personagens e que farão andar a narrativa também são formas de desnudar
relações políticas e sociais, sem evidenciar classes, personalidades, instituições, mas
elaborando uma mística interna que, no jogo do ocultamento da realidade, expõe,
através da metáfora alegórica, as contradições do subdesenvolvimento social e cultural.
A escolha por uma estrutura não industrial de produção, associada ao recurso alegórico,
está em diálogo com esta postura crítica, que permeou a práxis dos cineastas de
esquerda naquele contexto.

(...) o contexto de rápidas transformações culturais e estéticas nos anos 60


marcou um cinema que internalizou a crise política da época em sua
construção formal, mobilizando estratégias alegóricas marcadas pelo senso
da história como catástrofe, não como uma teleologia do progresso técnico-
econômico ou da revolução social, nem como promessa de estabilização de
uma cinematografia no médio ou longo prazo, muito menos como sugestão
de contato com uma transcendência capaz de definir um campo de
esperanças. (XAVIER, 2012, p.13)
A alegoria de ‘nação’ que é desenvolvida na diegese de Prata Palomares não é
clara em seu sentido histórico, pois rompe tanto com a teleologia de redenção histórica,
na qual o povo liberta-se de opressores e instaura outra ordem, e tampouco faz alusão a
uma ‘narrativa de fundação’ positiva do “novo lugar”. Há uma mística sincrética por
trás das representações políticas e religiosas no filme, relacionando promiscuamente as
referências do cristianismo às do candomblé, das revoltas regionais com a guerrilha,
criando assim um ambiente completamente absurdo, uma conjunção política
improvável, que através da metáfora violenta da guerrilha e de uma representação
agressiva, remete a interpretação do espectador à história dos países latino-americanos.

Nessa tensão entre a fragmentação e a totalização do discurso, Prata Palomares


tende à fragmentação. Sua metáfora para a nação quando não é irônica, é pessimista. O
desdobramento da crise de Porto Seguro não remete a soluções, e mesmo apontamentos
abertos sobre o futuro são taxativamente pessimista. Os personagens que poderiam ser
os portadores do futuro – a Santa que deseja um filho, os revolucionários que querem
voltar a Maracangalha, e Tonho e sua revolta liberadora – são avassalados pelos
acontecimentos.

A narrativa não contempla uma teleologia clara, sua diegese não tem
encadeamento direto com a realidade sócio-histórica, e não respeita internamente uma
sucessão de acontecimentos que se justifiquem, apesar de manter alguma lógica
discursiva que permita a compreensão dos acontecimentos. O pastiche de referências é
talvez uma das marcas mais fortes da postura tropicalista do Teatro Oficina e na
estruturação estética de Prata Palomares. Junto dela está uma postura de estranhamento
que utiliza a citação e a reflexividade, como forma de expor o procedimento narrativo,
quebrando com o ilusionismo próprio da técnica cinematográfica.

(...) no seu jogo de contaminações – nacional/estrangeiro, alto/baixo,


vanguarda/kitsch – o tropicalismo pôs a nu o seu próprio mecanismo. Ou
seja, chamou a atenção para o momento estrutural das composições,
lembrando um tipo de estranhamento que ganha maior nitidez nas artes
visuais e de mise-en-scène (...). pela função que cumpriu no procedimento
tropicalista, a citação se articulou a outro protocolo da modernidade,
igualmente programático e variado em suas acepções: a reflexividade, a
exibição dos materiais e do próprio trabalho de representação.

(XAVIER, 2012, p.50)


Encontramos na representação dos atores, no cenário e na construção da mise-
en-scène características próprias à “estética do lixo”, da valorização do grotesco e do
violento. O grito, o sangue, a sujeira, um apelo ao kitsch não como referência distorcida
da tradição clássica, mas como decadência de uma sociedade condenada ao
subdesenvolvimento econômico, moral e civilizatório. A ritualização da política
também aparece de maneira jocosa e pessimista, evidenciando a representação, a
teatralidade do ato. A dominação política se dá pela fé, como dominação carismática
tanto da direita como da esquerda. A autoridade não está posta pela razão, mas sempre
pela doutrina ou afeto, como no paternalismo e no populismo, e isso será enunciado pela
caricatura, não por atitudes ou personagens realistas. Toda a construção desta atmosfera
catastrófica se dá pela ‘suspensão da descrença’, ao mesmo tempo que estabelece um fio
de significado que amarra a trama de Porto Seguro à realidade brasileira ou latino-
americana. A armação que sustenta esta tensão é a opacidade do aparato – a forma
narrativa metafórica, a ritualização da mise-en-scène, o uso do ‘subjetiva indireta
livre’2, tudo colabora para o efeito de estranhamento e percepção crítica do jogo
narrativo.

Maracangalha, o local sublevado de onde os rebeldes fogem no início do filme e


para onde pretendem voltar, é um sujeito oculto. Não há a construção de uma utopia
redentora oposta à catástrofe de Porto Seguro, que abarque a expectativa revolucionária;
desde o início Maracangalha está derrotada. O ímpeto resistente dos guerrilheiros vai
sendo domesticado pela tragédia que envolve Porto Seguro e a saída surge como uma
distopia violenta e ‘esculhambada’ que é o Paraíso Agora. Referir-se à Maracangalha é
uma maneira de os personagens acessarem uma camada paralela do discurso fílmico,
onde a voz do autor, suas visões de mundo, é estampada através dos personagens. As
longas cenas de balanço político entre os guerrilheiros dentro da igreja, não como flash
back, mas como memória ou reflexão, abrem o discurso para “a presença de uma
instância externa que atua por trás da consciência agonizante” (XAVIER, 2012 – p. 80)
mediando, ora o discurso do personagem, ora a intervenção livre do agente externo.

2
Pasolini, em seu artigo “Le Cinema de poésie” [1965] – apud Xavier (2012) – apresenta uma
característica narrativa em que o autor, identificado ideologicamente com o personagem, utiliza-o como
mediação através de digressões (um discurso indireto) para realizar uma intervenção na narração. A
instância narrativa externa, interfere sutilmente através de metáforas, mesclando-se a visão de mundo
do narrador e personagem. Pasolini identifica este procedimento no cinema ‘poético’ e ‘moderno’ de
Godard, Glauber Rocha, Antonioni ou Bertolucci.
O recurso à alegoria de uma revolução derrotada, de guerrilheiros em fuga, de
uma elite parasitária e entreguista, bem como à tresloucada atuação da esquerda,
aliando-se à tradição messiânica e religiosa, evidenciam uma consciência da crise que se
vivia naquele momento, e estabelece pontos de uma crítica irônica e violenta. A postura
do cineasta na organização da narrativa, desarticulando as estruturas temporais,
espaciais, e a clareza dos personagens, indica a tentativa de estilhaçar a legibilidade do
filme e estabelecer um olhar caótico a uma conjuntura marcada pela violência. Através
da alegoria catastrófica reflete implicitamente uma visão de sociedade e uma visão
sobre o próprio cinema.

As características de descontinuidade e fragmentação que dão ao filme uma


textura ininteligível são partes de uma “experiência de transgressão” próprias de um
cinema experimental em conflito com os parâmetros do mercado. Mais que isso, o
cineasta e demais artistas envolvidos na criação de Prata Palomares evidenciam na obra
o conflito declarado ao regime político vigente em sua época. Esta postura demarcada
no filme incidirá sobre os desdobramentos históricos do mesmo, e marcam seu lugar na
História do cinema brasileiro a partir da perspectiva de combate ideológico e estético no
qual seus autores se colocaram.

Buscaremos apresentar através de cenas fulcrais do filme, todas elas


protagonizadas pela personagem feminina, a construção crítica da imagem da mulher e
sua significação, além do uso que se faz da linguagem cinematográfica, mobilizando
recursos de distanciamento e identificação para modular esta representação da mulher
enquanto elemento ativo, ainda que desestabilizador.

4. O representação do sexo, da violência e da revolta através da figura


feminina em Prata Palomares;

Na abertura do filme, ainda durante os créditos, são apresentados os


protagonistas e o conflito da história. Nos primeiros planos vê-se fogo entre montanhas.
Uma voz over: “No fogo do Napalm a gente morre tranquilo, como num fogo de
artifício” (PRATA Palomares. André Faria, 1971 - 00:02:00). Ao som da canção “Mi
matan si no trabajo” de Daniel Viglietti, vemos dois guerrilheiros fugindo em meio ao
fogo da mata. Encontram um homem morto em um carro em chamas, pegam a carteira
do cadáver e seguem a fuga. Encontram corpos enforcados e pendurados pela mata.
Durante esta localização espacial da abertura, ouvimos um diálogo desconexo dos
guerrilheiros, em que citam músicas populares como “Estrada de Santos” de Roberto
Carlos e “Maracangalha” de Dorival Caymmi. Seguem por um pântano e depois
lançam-se ao mar.

Encerram-se os créditos de abertura, e os guerrilheiros encontram-se deitados em


uma praia, entre pedras, porcos e a imagem de uma santa. Ouve-se uma voz feminina:
“atenção senhores passageiros, esta é a nossa última escala antes do fim –
Maracangalha” (PRATA Palomares. André Faria, 1971 - 00:04:40). Corte seco e os
guerrilheiros estão paramentando a imagem. Novo corte e eles novamente adormecidos
no chão, rodeados por crianças e no lugar da santa inanimada está agora uma mulher
vestida como santa. A voz over feminina prossegue: “sou a imagem de uma prostituta
ensanguentada. Há rumores de guerra, mas este ainda não é o fim (...)” (PRATA
Palomares. André Faria, 1971 - 00:04:59). A mulher rasga sua bata e como simbolizasse
um parto, retira um objeto de dentro de si. A voz feminina segue proclamando
maravilhas para um futuro, onde haverá fartura e liberdade, “o retrato de um paraíso
real”.

Este personagem feminino, fundamental na estrutura da alegoria proposta no


filme, desde a abertura, indica elementos simbólicos que permearão a narrativa e que
compõem a perspectiva crítica esboçada na forma do filme. A imagem da ferida
ensangüentada será reincidente no arco desta personagem, e o parto/oferta do filho aos
revolucionários em fuga será representativo, tanto da construção das ações da
personagem como de sua significação no corpo do filme. Como um prólogo, as cenas
iniciais apresentam a problemática da narrativa e elementos simbólicos de sua alegoria.

Iremos, a partir daqui, saltar para as outras cenas em que a personagem da santa-
prostituta protagoniza a ação e que são pontos de virada fundamentais para o
desdobramento da história narrada: i) sua aparição na igreja onde explica a situação
política do lugar, diz conhecer o Padre morto e que quer ter um filho dos guerrilheiros,
relacionando-se sexualmente com eles; ii) a sua mutilação em ritual de tortura como
punição à revolta popular que ela organizou contra a morte do líder Tonho; iii) seu
retorno, mutilada e ensangüentada, para vingar-se da Família de Branco, poderosos
conservadores que a torturaram.

Depois de apresentar detalhadamente os personagens guerrilheiros, e a sua


situação de exílio da revolução derrotada, a narrativa anseia por alguma problemática
que acione a transformação dos personagens que nos aparecem como possíveis ‘heróis’
da narrativa. A personagem feminina conduzirá a ação a um novo rumo, levando os
guerrilheiros exilados a uma relação direta com o lugar em que estão refugiados.

Inicia-se uma batucada. Crianças negras e pobres no lugar das imagens de santos
da igreja batucam com pedras, os guerrilheiros assustados observam com armas em
punho. A voz da Santa surge do fundo da igreja. Diante do altar ela carrega um bebê nas
mãos. Vê-se sua silhueta. Ela caminha seguida pelas crianças. Está nua sob o manto.
Pára diante dos revolucionários e diz que quer ter um filho deles. A misè-e-scene
fortemente teatralizada e um longo plano seqüência vasculham alguma sensualidade do
corpo enquanto, em voz over, a mulher diz que o manto de santa que usa, foi o padre
morto que lhe deu pra que cobrisse sua primeira gravidez. Um plano detalhe mostra sua
virilha e tanga ensanguentadas, ela diz: “o padre me deu a missão de encher o mundo de
filhos, e eu digo pra todas as mulheres fazerem o mesmo” (PRATA Palomares. André
Faria, 1971 - 00:28:57).

A Santa e os dois guerrilheiros transam sobre o manto no chão da igreja. O


corpo dos três, nus, ensangüentados e amontoados giram rapidamente na tela,
intercalado por imagens em que os homens, passivamente, são tomados pela mulher,
que acaricia seus corpos e feridas, e por imagens de um homem negro arremessando um
molotov – este homem é Tonho, e líder popular de Porto Seguro.

A sequência, fragmentária e performática do ritual sexual se encerra com som de


uma sirene. A polícia, vestida em trajes de plástico preto, invade a igreja junto da
“Família de Branco”, aristocratas estrangeiros. Transcorridos os trinta primeiros
minutos de filme já está construído um clima confuso em que não sabemos se os
guerrilheiros deliram ou se habitam um universo fantástico. Apesar de a narrativa
apontar para inúmeras referências da política e da cultura popular brasileira e latino
americana, o que temos é um ambiente fantasioso, onde os personagens compõem,
através de uma representação histriônica e repleta de gritos, o ambiente para a alegoria.

A Santa avisa que precisam sair dali por segurança, os guerrilheiros se dividem
– um propõem construir um barco para irem a Maracangalha colaborar na revolução; o
outro decide vestir-se de padre e apresentar-se para comunidade de Porto Seguro, que
aguardam pelo pároco morto. Assim, através da figura da mulher, e de seu desejo de ter
um filho, a narrativa apresenta um desdobramento possível dentro do clima de
irrealidade – um dos homens entrará em ação através da representação de um falso
pároco, o que permitirá a apresentação dos demais personagens e o desenrolar da trama.

A narrativa desdobra-se em uma confusa sequência de relações políticas entre os


poderosos (Prefeito e a Família de Branco) e a insatisfação política de Tonho (Lider
popular). Sem fatores coerentemente encadeados pela narrativa, irrompe uma revolta em
Porto Seguro, que evidenciará o caráter violento dos poderes locais. A Família de
Branco, poderosa e conservadora, executa Tonho dentro da igreja em um ritual grotesco
de tortura marcado por uma teatralidade agressiva, sincretizando símbolos religiosos ao
sadismo violento do aparato policial. A partir deste ponto a estrutura narrativa
estabelece uma crise, que se expressará na postura dos personagens e por uma
estruturação espaço-temporal completamente fragmentada estabelecida pela montagem.

A Santa envolve o corpo de Tonho em um manto e carrega-o para a praça para


que o povo veja o cadáver. Num terreiro, em meio a um ritual com imagens do
candomblé e tambores, a mulher, o falso vigário e o povo fazem um ritual com o corpo,
pedem que ressuscite, que lhes “dê o ódio de seu sangue para sua gente”. Dentro do
terreiro, a santa distribui lanças às mulheres: “toda mulher precisa de uma arma”. A
figura feminina ganha relevo novamente, como liderança possível à massa amorfa. Ela
incita a rebeldia e a ação. Fora do terreiro o homem vestido de Padre, incita aos
populares que se acalmem, que aceitem a dominação, que se resignem diante da
violência dos poderosos. Há novamente uma contraposição entre feminino e masculino,
desta vez em que a figura da mulher ganha protagonismo ao apontar a postura ativa
diante do conflito, enquanto o homem, conciliador, organiza a passividade política do
povo.

A polícia invade o lugar, o falso vigário tira a arma das mãos da mulher e
quebra. Faz novamente um discurso conciliador para que o “sangue coagule e o povo se
arrependa do pecado da rebelião” (PRATA Palomares. André Faria, 1971 - 01:28:39).
Os policiais levam os rebeldes presos. No terreiro vazio o vigário beija as mãos e os pés
do aristocrata da Família de Branco, em gesto de total submissão. Esta ação de
submissão do guerrilheiro diante do poder do aristocrata é seguida pela repressão ao
personagem feminino, que na seqüência anterior protagonizou a revolta do povo.

A mulher está presa no fundo de uma sala escura, amarrada e segurada por duas
figuras despersonificadas pela indumentária de plástico preto que caracteriza a Polícia,
representação violenta e masculina no contexto da alegoria. Outro policial entra no
quadro, empunha uma faca, e segue lento até a mulher. Um close-up mostra em detalhe
a mutilação de sua língua. Com a boca ensangüentada e urrando, cortam-lhe as mãos à
machadadas. Os policiais abandonam a mulher ensangüentada na sala. Toda a ação se
dá sem nenhuma verbalização. Não há enunciação direta sobre o sentido político da
ação, não há uso da estratégia da ‘subjetiva indireta livre’, mas na imagem evidencia-se
a violência das instituições patriarcais (Igreja e Estado) diante da rebeldia feminina. A
ferida ensangüentada toma a representação do corpo feminino novamente – se na
primeira ação como representação desestabilizadora do sexo, aqui como castração. A
mulher, ensangüentada e mutilada, não é representada em Prata Palomares como fonte
de prazer visual, objeto de satisfação visual ao olhar masculino, prática obsessiva do
ilusionismo do cinema narrativo, calcado nas estruturas representativas da sociedade
patriarcal.

A representação feminina é parte da estrutura crítica deste cinema que se


pretende contra-hegemônico, postura que está em clara consonância com as proposições
que Laura Mulvey esboçaria no artigo, contemporâneo ao filme, “Prazer visual e
Cinema narrativo”:

“Jogando com a tensão existente entre o filme enquanto controle da


dimensão do tempo (montagem, narrativa), e o filme enquanto controle das
dimensões do espaço (mudanças em distância, montagem), os códigos
cinematográficos criam um olhar, um mundo e um objeto, de tal forma a
produzir uma ilusão talhada à medida do desejo. São esses códigos
cinematográficos e sua relação com as estruturas formativas externas que
devem ser destruídos no cinema dominante, assim como o prazer que ele
oferece deve ser também desafiado” (MULVEY, 1973 – p. 452)

Colocando-se neste campo da representação em que a relação com os


mecanismo canônicos é crítica e busca implodir um sistema que se relaciona
profundamente com as estruturas sociais patriarcais, os realizadores de Prata Palomares
inscrevem um discurso crítico que não se furta a estabelecer concessões na construção
do personagem feminino. Não se apóia na identificação escopofílica ou voyerista para
estabelecer relevo narrativo a partir da representação da mulher, mas a utiliza como
elemento para construção da alegoria crítica que pretende. O filme e o uso que faz da
linguagem cinematográfica estabelecem uma crítica ao contexto político, mas também
ao aparato de representação canônico do cinema.
Há ainda uma seqüência em que a mulher protagoniza a revolta, a ação contra a
ordem patriarcal. Novamente a legibilidade e a coesão diegética se esgarçam,
funcionando ao mesmo tempo como desdobramento da ação narrativo e crítica formal
ao sistema canônico de representação cinematográfica. A mulher retorna para vingar-se.
Saída do mar, ensangüentada e mutilada, empunha uma faca acima da cabeça. Ela
invade a mansão da Família de Branco e esfaqueia a todos. O falso clérigo, rendido ao
poder da Família aristocrata, assiste a tudo assustado. Ela retorna ao mar.

A seqüência é estilhaçada pela montagem e se insere como flash-back enquanto


o homenzinho da Família de Branco convence o falso clérigo de abandonar seus ideais e
juntar-se aos aristocratas. Apesar dos grandes planos gerais, que contextualizam a
personagem e o espaço da ação, e das ações de violência coreografadas que delimitam a
significação de seu retorno vingativo, toda a cena é entremeada de planos em que os
personagens do falso padre (homem) e da santa-prostituta (mulher) relacionam-se
sensualmente com sangue, armas e os corpos de seus antagonistas. No altar da igreja,
ela esfrega o pé ensangüentado no cadáver da mulher da Família de Branco; o falso
clérigo armado é assediado por um jovem nu, que lambe seu fuzil provocando-o
(PRATA Palomares. André Faria, 1971 - 01:34:52). A vingança da mulher não é
representada de maneira linear, como um fato localizável no espaço-tempo da diegese.
A montagem articula uma atmosfera onírica, espécie de delírio em que obsessões
sexuais e ideológicas do patriarcado são enunciadas nos quadros encenados.

Elencamos estas passagens como marcas de uma proposição estética que


buscava dialogar com seu contexto político-cultural. Mesmo que não diretamente
articuladas, a perspectiva crítica assumida pelo coletivo de artistas que realizou Prata
Palomares, relaciona-se sobremaneira com as vanguardas cinematográficas do período
pós-1968 e com as reflexões combativas que inúmeros intelectuais estabeleceram
mirando as vidraças das normatizações e códigos do sistema dominante de
representação.
BIBLIOGRAFIA

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_______________. Reflexões sobre “Prazer visual e cinema narrativo” inspiradas por


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SENAC, 2005.
NANDI, I. Teatro Oficina, onde a arte não dormia. Rio de Janeiro: Faculdade da
Cidade Editora, 1998.
PRATA Palomares. Direção: André Faria. VEGA-I Filmes, Brasil,1971. (100 min),
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