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Abstract
Prata Palomares (André Faria, 1971) film was made in the pos-1968
emblematic context and brings esthetic elements and remarkable historical production
cinematographic for this period. The works of fiction signed by Andre Faria is a product
of cinematographic collective experimentation of the Treatre Oficina in your tropicalist
phase, at the end of the 1960s. Censored, he was barred to launch in the Semaine de La
Critique from the 1971 Cannes Festival, remaining blocked for exportation until 1977
and for national exhibition until 1979. Although he was unfamiliar and ignored by the
historiography of cinemas, it is one of historiography cinematographic forceful by the
Brazilian Cinema of turning point for the “lead years”.
Key words: modern brazilian cinema; marginal cinema; teatro oficina; censors;
tropicalism.
1. Introdução
A abordagem que proponho ao filme Prata Palomares (André Faria, 1971) tem
sido prioritariamente histórica e política no sentido de compreender a dinâmica criativa
que animava os artistas envolvidos no processo de realização do filme no contexto
político do início da década de 1970, ainda fortemente influenciados pela experiência da
Tropicália e do Cinema Novo. A partir disso, o foco da presente pesquisa esteve em
perscrutar as nuances políticas e ideológicas que permearam a censura ao filme, bem
como o processo de resistência política dos realizadores, a fim de trazer o filme à
público.
O filme Prata Palomares (André Faria, 1971) é uma obra que carrega em si o
emblema de 1968, desde o engajamento político presente na temática alegórica da
revolta popular e da guerrilha, característico do período, bem como proposições
estéticas que dialogavam com a postura esboçada por inúmeros cineastas que se
engajaram, e também às suas obras, na crítica aos regimes políticos, ao sistema de
representações da sociedade burguesa e ao próprio aparato produtivo do cinema
industrial. Além disso, os impedimentos que o filme sofreu ao longo dos anos em que
permaneceu interditado, o inserem drasticamente no contexto que em que a cultura
cinematográfica confrontou-se diretamente com a política.
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No livro Em Busca do Povo Brasileiro, artistas da revolução do CPC à era da TV, Marcelo Ridenti traça
um detalhado mapa das relações entre o pensamento político, a prática política das organizações
revolucionárias, e a ideologia que compunha a atmosfera de criação cultural durante as décadas de
1960-70. Sua pesquisa aponta que o imobilismo da esquerda próxima ao Partido Comunista Brasileiro e
ao trabalhismo, levou as alas mais radicais se reorganizarem em grupos armados – destaca-se a ALN,
MR-8, VPR, VAR, entre outros pequenos grupos – que com diferenças programáticas, dialogavam com as
experiências vitoriosas do comunismo de Cuba e da China na década anterior. Neste sentido as
doutrinas políticas de Che Guevara, Fidel Castro e Mao Tse-Tung, conformavam a perspectiva política de
grande parte dos jovens no fim dos anos 1960. Ridenti aponta ainda vários artistas do período atuaram
nestas organizações, além de haver ‘resíduos’ destas tendências político-ideológicas na postura
romântica dos artistas e em inúmeras obras realizadas no pós-1968.
estabelecer uma dialética obra/público tendo como pano de fundo a “polêmica que
envolveu cineastas do cinema novo e uma nova geração que exigia a continuidade de
uma estética da violência, de um cinema mais empenhado na expressão radical do autor
do que nas concessões viabilizadoras dos filmes como mercadoria” (XAVIER, 2012. p.
30).
A narrativa não contempla uma teleologia clara, sua diegese não tem
encadeamento direto com a realidade sócio-histórica, e não respeita internamente uma
sucessão de acontecimentos que se justifiquem, apesar de manter alguma lógica
discursiva que permita a compreensão dos acontecimentos. O pastiche de referências é
talvez uma das marcas mais fortes da postura tropicalista do Teatro Oficina e na
estruturação estética de Prata Palomares. Junto dela está uma postura de estranhamento
que utiliza a citação e a reflexividade, como forma de expor o procedimento narrativo,
quebrando com o ilusionismo próprio da técnica cinematográfica.
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Pasolini, em seu artigo “Le Cinema de poésie” [1965] – apud Xavier (2012) – apresenta uma
característica narrativa em que o autor, identificado ideologicamente com o personagem, utiliza-o como
mediação através de digressões (um discurso indireto) para realizar uma intervenção na narração. A
instância narrativa externa, interfere sutilmente através de metáforas, mesclando-se a visão de mundo
do narrador e personagem. Pasolini identifica este procedimento no cinema ‘poético’ e ‘moderno’ de
Godard, Glauber Rocha, Antonioni ou Bertolucci.
O recurso à alegoria de uma revolução derrotada, de guerrilheiros em fuga, de
uma elite parasitária e entreguista, bem como à tresloucada atuação da esquerda,
aliando-se à tradição messiânica e religiosa, evidenciam uma consciência da crise que se
vivia naquele momento, e estabelece pontos de uma crítica irônica e violenta. A postura
do cineasta na organização da narrativa, desarticulando as estruturas temporais,
espaciais, e a clareza dos personagens, indica a tentativa de estilhaçar a legibilidade do
filme e estabelecer um olhar caótico a uma conjuntura marcada pela violência. Através
da alegoria catastrófica reflete implicitamente uma visão de sociedade e uma visão
sobre o próprio cinema.
Iremos, a partir daqui, saltar para as outras cenas em que a personagem da santa-
prostituta protagoniza a ação e que são pontos de virada fundamentais para o
desdobramento da história narrada: i) sua aparição na igreja onde explica a situação
política do lugar, diz conhecer o Padre morto e que quer ter um filho dos guerrilheiros,
relacionando-se sexualmente com eles; ii) a sua mutilação em ritual de tortura como
punição à revolta popular que ela organizou contra a morte do líder Tonho; iii) seu
retorno, mutilada e ensangüentada, para vingar-se da Família de Branco, poderosos
conservadores que a torturaram.
Inicia-se uma batucada. Crianças negras e pobres no lugar das imagens de santos
da igreja batucam com pedras, os guerrilheiros assustados observam com armas em
punho. A voz da Santa surge do fundo da igreja. Diante do altar ela carrega um bebê nas
mãos. Vê-se sua silhueta. Ela caminha seguida pelas crianças. Está nua sob o manto.
Pára diante dos revolucionários e diz que quer ter um filho deles. A misè-e-scene
fortemente teatralizada e um longo plano seqüência vasculham alguma sensualidade do
corpo enquanto, em voz over, a mulher diz que o manto de santa que usa, foi o padre
morto que lhe deu pra que cobrisse sua primeira gravidez. Um plano detalhe mostra sua
virilha e tanga ensanguentadas, ela diz: “o padre me deu a missão de encher o mundo de
filhos, e eu digo pra todas as mulheres fazerem o mesmo” (PRATA Palomares. André
Faria, 1971 - 00:28:57).
A Santa avisa que precisam sair dali por segurança, os guerrilheiros se dividem
– um propõem construir um barco para irem a Maracangalha colaborar na revolução; o
outro decide vestir-se de padre e apresentar-se para comunidade de Porto Seguro, que
aguardam pelo pároco morto. Assim, através da figura da mulher, e de seu desejo de ter
um filho, a narrativa apresenta um desdobramento possível dentro do clima de
irrealidade – um dos homens entrará em ação através da representação de um falso
pároco, o que permitirá a apresentação dos demais personagens e o desenrolar da trama.
A polícia invade o lugar, o falso vigário tira a arma das mãos da mulher e
quebra. Faz novamente um discurso conciliador para que o “sangue coagule e o povo se
arrependa do pecado da rebelião” (PRATA Palomares. André Faria, 1971 - 01:28:39).
Os policiais levam os rebeldes presos. No terreiro vazio o vigário beija as mãos e os pés
do aristocrata da Família de Branco, em gesto de total submissão. Esta ação de
submissão do guerrilheiro diante do poder do aristocrata é seguida pela repressão ao
personagem feminino, que na seqüência anterior protagonizou a revolta do povo.
A mulher está presa no fundo de uma sala escura, amarrada e segurada por duas
figuras despersonificadas pela indumentária de plástico preto que caracteriza a Polícia,
representação violenta e masculina no contexto da alegoria. Outro policial entra no
quadro, empunha uma faca, e segue lento até a mulher. Um close-up mostra em detalhe
a mutilação de sua língua. Com a boca ensangüentada e urrando, cortam-lhe as mãos à
machadadas. Os policiais abandonam a mulher ensangüentada na sala. Toda a ação se
dá sem nenhuma verbalização. Não há enunciação direta sobre o sentido político da
ação, não há uso da estratégia da ‘subjetiva indireta livre’, mas na imagem evidencia-se
a violência das instituições patriarcais (Igreja e Estado) diante da rebeldia feminina. A
ferida ensangüentada toma a representação do corpo feminino novamente – se na
primeira ação como representação desestabilizadora do sexo, aqui como castração. A
mulher, ensangüentada e mutilada, não é representada em Prata Palomares como fonte
de prazer visual, objeto de satisfação visual ao olhar masculino, prática obsessiva do
ilusionismo do cinema narrativo, calcado nas estruturas representativas da sociedade
patriarcal.
MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. [1973] Trad. João Luiz Vieira.
IN: A Experiência do Cinema: antologia/ Ismail Xavier Organizador. Rio de Janeiro,
Ed. Graal/Embrafilmes, 1983.
VALENTINI, Daniel M. Uma leitura da censura ao Teatro Oficina nos anos 1960.
Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. Ano XI
.abr./2016 . n. 21.
XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1992.