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São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999

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Novo romance de Silviano Santiago acompanha a


decadência de uma família
Imaginação do desastre
JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha

Ao contrário da abertura de Tolstói em "Ana Karenina" -


segundo a qual "todas as famílias felizes se parecem, e as
infelizes são infelizes cada uma à sua maneira", nas novelas
de Silviano Santiago as famílias infelizes o são de uma
maneira acabrunhadamente igual. É como se o princípio da
diferenciação e a marca do particular que agem no chamado
romance de decadência familiar -da moscovita do conde
Leon Tolstói à burguesa e hanseática de Thomas Mann- não
se vissem impelidos a agir da mesma forma nessa também
perfeita novela da decadência que é "De Cócoras" (como já o
era "Uma História de Família", do mesmo autor).
Como se nelas (e assim também em muitos dos melhores
romances pertencentes à família "crônica da casa
assassinada" da literatura brasileira), o fim e a decadência
confluíssem não para a diferenciação, mas para uma mesma
figura acanhada, o mesmo rosto, a mesma infantilização
regressiva e o mesmo agachamento histórico.
Não é que falte "imaginação do desastre" a Silviano Santiago
e aos outros escritores dessa família. Silviano Santiago a tem
de sobra e sua índole literária e intelectual é de ir com ela até
o último furo. É que nas casas assassinadas que há por aqui
(como o casarão do Catete dessa novela), a situação de pós-
tudo própria dos romances nos revela não uma nova
identidade entrevista no limite, mas uma rigidez progressiva
e monstruosa de traços. E isso por força do acanhamento do
quadro histórico e social em que aquelas casas surgem,
desmoronam, elaboram seu luto e fazem seu inventário. A
configuração e o destino do que deixou de existir são uma
questão de futuro.
Assim o Antônio dessa novela, de cócoras debaixo da mesa
de jantar do casarão do Catete onde é velado o corpo da sua
mãe -uma dessas mulheres cujo desconforto existencial de
classe manifesta-se sob a forma de desmazelo, auto-exílio no
quarto de dormir e penhoar escuro diuturnamente usado.
Dessa posição Antônio nunca parece ter saído, tendo a morte
da sua mulher nordestina (capaz pelo menos de dar algum
contraste à sua vida, um pouco de barulho e um lado
definido na cama de casal) a confirmado medonhamente:
sozinho na casa de Laranjeiras (a novela acompanha também
um certo movimento de regressão do Rio), ele se parece com
um ídolo acocorado, sujo de fezes, e cada vez mais deleitado
com a imobilidade e o nenhum contato com o mundo.
Este só lhe chega por meio das visitas repudiadas do irmão
mais velho, com a sua barulheira, seu ressentimento social-
guanabarino de todo o tamanho, sua histeria lacerdista
aplicada a cada canto do Rio da década de 90. Esse parece
ser o máximo de mundo público que o grupo social de
Antônio e do seu irmão ainda dá conta de esboçar.
Tanto melhor que Silviano Santiago faça uma novela
completamente não-engalanada. Talvez porque o mundo de
que trata escorre inapelavelmente pelo ralo. O perfil da sua
novela é baixo mesmo, a linguagem antiexpletiva, o desenho
do relato é antilegendário, o teor final do sentido é
anticatártico, a contagem dos mortos é anti-ressurreição. Já é
assim em "Uma História de Família", já o era, embora num
sentido um tanto experimental, em "Em Liberdade" (Rocco),
é assim nos poemas de "Cheiro Forte", de 1995 (Rocco).
Não por nada: Silviano Santiago é um escritor que tem como
poucos o sentido de "moralidade da forma". Mesmo que seja
para usar aquela que parece ser a forma de menos. Essa
moralidade, no caso do também autor de "Uma Literatura
nos Trópicos", é no fundo uma moralidade da literatura. Para
ele, esta não tem nada a ver com uma espécie de mais-valia
cerimonial e simbólica a expropriar o mundo para encher o
balão do sujeito literário. Não tem medo, ao contrário, de pôr
esse sujeito para andar no prejuízo e arrumar para ele,
"desprestigiosamente", muitas faces. Tirando a ênfase por
demais sacrificial que haveria no quadro, tem um quê de são
Sebastião meio programático em Silviano Santiago.
Se essa moralidade da literatura é dura com o sujeito
literário, ela não o é com suas figuras e suas criações. Tanto
assim que, no final de "De Cócoras", Antônio deixa de ser o
ídolo senil, de coisa nenhuma, emporcalhado numa casa das
Laranjeiras, para voltar, como no poema famoso, a ser
voluptuosamente menino. Caímos de compaixão. Fazer o
quê? Não é pouco como efeito da literatura, esse mover-se
no deficitário.

A OBRA
De Cócoras - Silviano Santiago. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar,
CEP 20011-040, RJ, tel. 021/ 507-2000). 120 págs. R$ 16,00.

José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu",


biografia de Carlos Drummond de Andrade.

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