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conteúdo ideológico e quase sempre bio Macário, apesar do caráter paródico


limitado a uma representação verista da desta obra camiliana, demonstram que
realidade exterior. a estética naturalista tinha ganhado já
Como se pode deduzir do que ficou uma enorme notoriedade em Portu-
exposto, encontramo-nos perante uma gal quando noutros países europeus
obra com amplos motivos de interesse, (em Espanha, por exemplo) não tinha
reunindo colaborações de especialistas sequer começado a ser discutida na
portugueses e franceses da temática imprensa.
naturalista. Não cobre, evidentemente,
todas as áreas possíveis, não vai além do António Apolinário Lourenço
universo linguístico luso-francês e cen-
tra-se, talvez em demasia, na produção
escrita de dois autores Émile Zola e Eça RETRATOS PARA A CONSTRUÇÃO DO FE-
de Queirós (o criador do movimento e MININO NA PROSA DE JOSÉ SARAMAGO
o primeiro escritor naturalista portu- PEDRO FERNANDES OLIVEIRA NETO
guês), que são, sem dúvida, referência Curitiba: Appris, 2012
fundamentais, mas cujo estudo é insu- 280 páginas, ISBN: 9788581920306
ficiente para dar uma ideia da difusão
de um paradigma estético que foi domi- A escrita ensaística de Pedro Fernandes
nante na Europa durante a década de 80 de Oliveira Neto é acadêmica e sensível
do século XIX. Sentimos, sobretudo, na medida necessária para quem aborda
a ausência de textos sobre Flaubert, o a obra saramaguiana. Retratos para a
verdadeiro criador do modelo narra- construção do feminino na prosa de José
tivo em que assentou o Naturalismo, o Saramago (2012) é um livro que resulta
mestre incontestado de Zola, de Eça, de não apenas da sua pesquisa de mes-
Clarín, de Verga, de Maupassant. trado, realizada no Programa de Pós-
Gostaríamos também de encontrar -Graduação em Letras da Universidade
no volume uma visão mais alargada do Estado do Rio Grande do Norte,
do Naturalismo português, que não mas de uma investigação iniciada ainda
se limita a Eça e que constitui inclu- antes, no trabalho final da graduação.
sivamente um caso especial quanto à O resultado desse estudo é, segundo
difusão do Naturalismo zoliano além- afirma o próprio autor, “a constatação
-fronteiras. O crime do Padre Amaro não de que o escritor [Saramago] propõe
só constitui o primeiro exemplo de um uma ressignificação do feminino e para
romance naturalista publicado fora de isso produz múltiplos deslocamentos
França, como as obras que imediata- de identidades de suas personagens –
mente lhe sucederam, nomeadamente apresentando-as ora como mulheres à
Amor divino (Estudo patológico duma frente de seu tempo (no caso específico
santa), Os noivos, Margarida ou o Eusé- das protagonistas), ora como mulheres
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localizadas em seus próprios universos” elementos necessários para a reflexão


(p.17). acerca dos redimensionamentos iden-
Tarefa árdua, visto que a galeria titários porque são guiados” (p. 90).
de personagens femininas em José Reflexão que reescreve o sujeito femi-
Saramago é tão variada quanto com- nino como agente de um discurso
plexa, tanto a nível psicológico quanto questionador ou uma posição diferente
filosófico. Estruturalmente, o ensaio daquela instaurada pelos discursos nor-
está organizado em três partes: A per- mativos de índole patriarcal, assentes
sonagem e seu enfoque na obra de José e combatidos pelos estudos de cunho
Saramago (p. 35), Entre feminino e iden- feminista.
tidade na obra de José Saramago (p. 91) Isso tudo acontece porque a mulher
e O feminino em Memorial do convento e tem alto valor na obra de José Sara-
Ensaio sobre a Cegueira (p. 135). mago. Ainda que não lesse nenhum de
O movimento da escrita de Pedro seus romances, o leitor que tivesse mini-
Fernandes é preparatório no sentido mamente uma leitura do conto Viagem
de aliciar os seus leitores, para culmi- à ilha desconhecida saberia dessa marca.
nar na discussão iniciada no prefácio, É a mulher da limpeza que possibilita
mas que tem seu ápice no quarto capí- ao homem que foi pedir o barco que ele
tulo, no qual o autor se debruça sobre encontre seu caminho, que se encontre
as personagens dos dois romances a si mesmo. Relembremos também que
tomados como obras balizadoras dessa ao se desprender da Europa, a Penín-
reflexão; sem, no entanto, deixar de sula Ibérica, que sai como uma jan-
refletir, entre as páginas 35 e 90 sobre gada ao mar, leva duas mulheres e três
as várias outras personagens femininas homens. Destas cinco figuras ibéricas,
da obra do escritor português. Neste apreende-se o mito do repovoamento,
sentido, o autor trabalha a personagem a partir dos ventres de Joana Carda e de
saramaguiana de um modo geral, mas Maria Guarvaíra, fecundados possivel-
também se encaminha para a especifi- mente por Pedro Orce, ou por seus par-
cidade das personagens femininas dos ceiros, o que nos remete para a figura da
outros romances de Saramago, como mulher como geradora de novas vidas,
se todos eles fossem também objetos daquela terra que se desprende e se faz
de estudo do seu livro. Reveste-se de jangada ao mar, uma nova Ibéria que
argumentos de autoridade fornecidos poderá surgir.
pela teoria literária para afirmar que Lembramos ainda que n’A jangada
“o papel que a personagem feminina de Pedra está o “mote” da ilha desco-
ocupa no romance de José Saramago nhecida: “diga-me você se sabe doutro
[…] assinala que o perfil arquitetónico país onde pudesse ter acontecido uma
desses sujeitos ficcionais – construídos história como esta. E o fidalgo, que fez
nos interstícios dos paradigmas – são o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela,
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gostaria bem que me dissessem como por acaso, o romancista reconhece em


se pode encontrar uma ilha imaginária” Ensaio sobre a Cegueira o mesmo “ver
(p. 61). que não é olhar”, mencionado muito
Respaldada sobremaneira pela dis- antes no Memorial do Convento. Por-
cussão dos conceitos de feminino e de tanto, as duas personagens, Blimunda e
identidade, a reflexão instaurada ao a Mulher do médico, são os dois lados
longo de todo o ensaio nos leva a mer- da moeda simbolicamente feminina,
gulhar e a refletir sobre as questões do quando Saramago se refere a ver e não
sujeito como indivíduo sócio-histórico, apenas a olhar. Ver seria olhar com
sobre a materialidade constitutiva da consciência de apreender, de apren-
individualidade e sobre o feminino der para a sabedoria. Figurativamente,
que, na maioria das vezes, faz a voz Blimunda é um lado da moeda, porque
de agente condutor desses questiona- ver o que está dentro de cada ser e de
mentos. Como bem observa Fernandes cada coisa e conecta estas visões com o
(2012), às mulheres, Saramago atribui que está fora, ao seu redor. A mulher
o “trabalho do reordenamento; traba- do médico é o outro lado da mesma
lho de revisão e intercâmbio de modos moeda, a que vê o que está de fora, e
outros de fazer-se sujeito; trabalho relaciona essa perceção com o estado
de redireccionamento das verdades psicológico pelo qual estão passando
preestabelecidas” (p. 112). Por isso é outras personagens do romance, ou
que Blimunda é uma personagem que seja, estabelece as relações entre con-
subverte a ordem, tanto social como texto, subjetividade, coletividade e
religiosa, invertendo assim a própria individualidade. Dois perfis femininos
narrativa em sua condição de persona. que se completam em relação à forma
Todo o destaque que poderia ser dado saramaguiana de olhar e ver, sendo,
à personagem da rainha D. Maria Ana portanto, balizadoras da sua obra.
é voltado para Blimunda. Ela, assim Entretanto, indo além da sua pro-
como a mulher do médico, é a que pos- posta de construção dos retratos, o
sui o dom de ver: “não o de olhar, que ensaísta não se detém apenas na análise
esse pouco é que o fazem os que olhos das protagonistas, conferindo ainda
tendo, são outra qualidade de cegos” atenção a outras personagens femi-
(SARAMAGO, p. 79). ninas dos dois romances, para no-las
A partir dessa fala do narrador de apresentar como sujeitos de linguagem
Memorial do Convento, constatamos com a possibilidade de “irem além da
quão acertada foi a escolha feita por alienação, condição favorável, aliás,
Pedro F. de Oliveira Neto, por nos não só das mulheres, mas de todos
apercebermos que o ensaísta seguiu a os sujeitos de linguagem, reside na
trilha inscrita nas entrelinhas da pró- capacidade que tais sujeitos têm de se
pria escrita ficcional de Saramago. Não reinventarem, de se ressignificarem
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discursivamente na ordem vazia dos sonagens femininas que redesenhou a


seus universos” (p. 258). partir da prosa daquele homem, sujeito
O verbo ressignificar é notoriamente de linguagem, filosofias e quebras de
uma palavra muito utilizada nestes paradigmas que Portugal lançou ao
retratos ensaiados por Pedro Fernan- mundo: ele próprio uma jangada de
des. Isso que nos leva a constatar que ideias ibéricas.
seu olhar captou uma visão sarama-
guiana da figura feminina como uma Aldinida Medeiros
ressignificação – não há como fugir
ao uso deste termo –, isto significa que
viu na personagem feminina um lugar LEITURA DE LITERATURA NA ESCOLA
muito maior do que aquele que lhe é M. A. DALVI, N. L. DE REZENDE
atribuído pela ficção de cunho patriar- e R. JOVER-FALEIROS (orgs.)
cal. O tratamento das personagens São Paulo: Parábola, 2013
reveste-se de elementos aglutinado- 168 páginas, ISBN: 9788579340642
res, de microssignificados outros, pois
Blimunda, a Mulher do médico, assim A problemática da leitura literária é
como a mulher da limpeza, são signos abordada, neste volume marcante, com
de mulheres-guia, mulheres que ven- um contributo especializado sobre ques-
cem a cegueira. É como se nós, leito- tões fundamentais que se colocam, hoje,
res, pudéssemos dizer, ao acabar de ler sobre a presença da literatura na escola
os romances em que elas se encontram: contemporânea, designadamente as prá-
“parem com estas querelas; ninguém ticas de leitura, as suas metodologias,
é superior ou inferior pelo gênero que finalidades, sucessos e lacunas.
carrega, pelo sexo com o que nasceu. Tendo em conta as mudanças que se
A condição de seres humanos deve ser verificam na sociedade e que impendem
suficiente para promover o respeito. sobre a cultura e a educação, os autores,
Por tudo isso, do livro Retratos para militantes no terreno da formação do
a construção do feminino na prosa de José leitor, responderam ao desafio que lhes
Saramago fica-nos o painel complexo fora endereçado pelas organizadoras
dessas mulheres, tanto as protagonis- (também autoras) do volume a partir
tas quanto as outras personagens, que das seguintes questões: O que se ensina
“Juntas, inauguram uma nova postura hoje na escola quando se ensina literatura?
identitária para si e para os outros” (p. O que se ensinaria se de facto se “ensinasse
252). Mas, este painel só se tornou pos- literatura”? Qual o papel da literatura na
sível porque Pedro Fernandes soube educação e, particularmente, na escola?
entrelaçar o seu discurso ensaístico O que sabemos, podemos e queremos em
com as teorias necessárias para deixar relação às práticas atinentes à literatura?
ao seu leitor os nítidos retratos das per- Que mudanças são necessárias?

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