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UMA ROMANCISTA NEGRA INTÉRPRETE DA NAÇÃO:

RUTH GUIMARÃES EM ÁGUA FUNDA

A BLACK WOMAN NOVELIST INTERPRETER OF


THE NATION: RUTH GUIMARÃES IN ÁGUA FUNDA

Fernanda Rodrigues de Miranda


fernandaromira@gmail.com

Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul e


Sudoeste do Pará. Doutora, mestra e bacharel em Le-
tras pela Universidade de São Paulo. Publicou
“Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras
negras brasileiras (1859-2006)”, Editora Malê, 2019.
Dossiê

Ressonâncias de escrevivências: Resumo/Abstract


literatura, antirracismo e educação
literária Palavras-chave/Keywords

Ruth Guimarães (1920-2014) foi uma intelectual e escritora intérprete


Organizadoras:
do Brasil. Em seu único romance, Água funda (1946) refletiu principal-
Dra. Adriana de F. A. L. Barbosa mente o tempo nacional como uma matriz da colonialidade. Na primei-
Dra. Milena Britto de Queiroz ra parte deste artigo, apresento a trajetória da autora negra e as conse-
quências do apagamento que sofreu para sua recepção contemporânea.
Dra. Ana Flávia Magalhães Pinto
Na segunda, analiso alguns aspectos do romance, destacando a elabora-
ção narrativa como condutora de uma inscrição afro-diaspórica que
suscita novas interpretações acerca da nação.
v. 30, n. 57, dez. 2021
Brasília, DF
ISSN 1982-9701 Ruth Guimarães; Romance; Autoria negra; Colonialidade.

Ruth Guimarães (1920-2014) was an intellectual and writer interpreter


10.26512/cerrados.v30i57.38289 of Brazil. In his only novel, Água funda (1946) mainly reflected natio-
nal time as a matrix of coloniality. In the first part of this article, I
Fluxo da Submissão
present the trajectory of the black woman author and the consequen-
Submetido em: 31/05/2021 ces of the erasure she suffered for her contemporary reception. In the
Aprovado em: 30/11/2021
second, I analyze some aspects of the novel, highlighting the narrative
elaboration as the driver of an Afro-diasporic inscription that raises
Distribuído sob
new interpretations about the nation.

Ruth Guimarães; Novel; Black authorship; Coloniality.


MIRANDA

Uma romancista negra intérprete da nação: Ruth Guimarães em Água Funda

nas linhas de folclore e cultura.


Trajetória autoral e as rotas do silencia- Ruth Guimarães foi (senão a) uma das
mento nacional constituinte primeiras escritoras negras a ocupar espaço na-
cional no cenário da literatura brasileira, ou
seja, a tornar-se visível no mundo público de
É razoável pensar Ruth Guimarães pela
circulação de discursos enquanto autora de li-
metáfora das águas. A água em seu fluxo, cor-
teratura. Nutriu este reconhecimento em vida,
redeira: a água como caminho, como estabili-
e desde o princípio.
dade e como reflexo do tempo. Metáfora ou
Água funda, seu primeiro livro escrito,
cognição, as águas espelham tanto a autora
foi publicado à altura de seus 26 anos, e obteve
como sua obra. Nascida em Cachoeira Paulista,
uma recepção crítica auspiciosa. Os primeiros
às margens do rio Paraíba do Sul, sua trajetó-
indícios da recepção interna ao próprio campo
ria foi como água correndo entre pedras, abrin-
dos escritores são perceptíveis no depoimento
do uma trilha para que hoje novas grafias bro-
de Amadeu de Queiroz, colhido por Silvio D’O-
tem e cresçam no território literário brasileiro.
nofrio:
Autora de Água funda (1946), que vem
a ser o primeiro romance publicado por uma Não encontrei nele o que censurar, supri-
autora negra no Brasil depois da abolição em mir, acrescentar – a escritora havia escrito
1888, Ruth Guimarães foi uma das raras mu- um romance, e dizendo isto tenho dito tu-
lheres negras a compor a roda dos modernistas do. (...) Só não gostei do título: chamava-se
“Mãe d'água”, ou “Mãe do ouro”, não me
paulistas, dialogando com os grandes escritores
lembro bem. Cheio de entusiasmo por ter
que lhe foram contemporâneos, como Mário de dado com o verdadeiro talento, procurei o
Andrade, Guimarães Rosa e Lygia Fagundes Edgar Cavalheiro, crítico de longa prática,
Telles. Não por acaso, a tela conciso e desabotoado, ao mesmo tempo
“Palmeiras” (1925), de Tarsila do Amaral, ilus- representante da livraria do Globo, de Por-
to Alegre. Contei-lhe o caso da moça e do
tra a capa da edição mais recente do livro
romance, disparei-lhe em cheio o meu en-
(2018), apontando a inscrição do romance na tusiasmo. Ele também me disparou um
cartografia modernista da qual é também par- olhar de espanto porque, com tanto ardor
te, e situando a obra no tempo e no território assim da minha parte era de se espantar!
cultural e estético na qual ela foi criada e rece- Guardou os originais que lhe confiei, de-
pois leu o romance e, a seu pedido, outras
bida primeiro.
pessoas leram, inclusive o Jorge Amado,
Como água abrindo caminho, Ruth foi que andava por aqui e que foi até o meio
provavelmente uma das primeiras pessoas ne- [...] e todos, por fim, sem discrepância gos-
gras formadas na área de Humanas da USP, taram do livro. A escritora foi chama-
tendo ingressado no curso de Letras em 1947 e da, recebeu os merecidos comprimentos de
vários escritores, assinou um contrato com
habilitando-se em Letras Clássicas. Sua chega-
a Globo e o romance foi publicado com o
da à universidade está relacionada com seu re- título de “Água Funda”. O resto é sabido.
conhecimento público inquestionável enquanto Não descobri nem emendei, não corrigi
intelectual, pois ela foi convidada a ingressar – nem apadrinhei a escritora Ruth Guima-
em um momento em que não havia sido insti- rães, encontrei-a moça de vinte anos e já
romancista. (QUEIROZ, Amadeu de. In:
tuído ainda os processos de seleção – em decor-
D’ONOFRIO, pp. 38-39, grifos meus).
rência da publicação de seu romance. Este da-
do possui grande relevância, considerando o
projeto de criação da Universidade de São Pau- O livro foi publicado pela livraria O
lo como algo pensado para ser o polo central de Globo de Porto Alegre, e tornou-se um grande
construção de pensamento da intelectualidade sucesso de crítica. Em 18 de setembro de 1946,
paulista – branca, elitizada e masculina. Na Antonio Candido publicou uma resenha do ro-
USP, ela se aproximou de pensadores como mance no Diário de São Paulo. No dia 22, o
Roger Bastide, com quem cruzava interesses Jornal de São Paulo, na edição de domingo,

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estampou em página inteira: “De menina espe- Em 2008, aos 88 anos, Ruth tornou-se a
loteada e petulante à romancista benquista pe- primeira – e ainda única – autora negra mem-
lo público e elogiada pela crítica – Ruth Gui- bro da Academia Paulista de Letras, onde ocu-
marães, a revelação literária de 1946”. O título pou a cadeira de nº 22. Até hoje, este é um
da reportagem inicialmente dá a Ruth atribu- marco que a destaca dentro do universo das
tos questionáveis, “menina petulante e espelo- autoras negras do Brasil, dado que as Acade-
teada”, sugere uma forma de mencionar al- mias de letras espalhadas pelo país são ainda
guém fora do lugar do literário – onde esperam majoritariamente brancas e a ABL não possui
seriedade e racionalidade. Na contramão disso, em seu panteão sequer uma autora negra.
quando visitamos o legado dessa grande autora O perfil intelectual de Ruth Guimarães
ressaltam características de altivez e autoconfi- é admirável. Em uma entrevista de 2008, a es-
ança. Alguém que sabia o que queria, e teve critora narra o princípio de sua trajetória auto-
coragem para seguir suas escolhas, rompendo ral, relembrando seu ímpeto em procurar inter-
qualquer limite pré-estabelecido que lhe quises- locutores no universo da escrita literária:
sem impor por ser mulher, negra, caipira – co-
Eu não decidi escrever um livro não, o li-
mo ela dizia. Mas o fato a ser destacado é que vro se escreveu sozinho. Porque eu escrevi
Ruth Guimarães deu passos seguros e firmes uma coisa e outra, e quando eu fui para
rumo à sua realização como escritora e realizou São Paulo, fui procurar os artistas. Veja só
seu projeto de vida: escrever sempre e morrer que atrevimento! Eu tinha dezessete anos,
velha. fui pra São Paulo, fui trabalhar, e gostava
de escrever, e fiz uma visita a Abner Mou-
Não obstante essa longevidade, a auto- rão do Correio Paulistano, defunto Correio
ra é ainda pouco conhecida, confirmando a ló- Paulistano. O Abner Mourão leu o que eu
gica de silenciamento sistêmico que atravessa a escrevi, com aquele jeitão dele, botou os
autoria negra no Brasil. De fato, logo após o dois cotovelos em cima da mesa, da cáte-
lançamento Água funda ficou submerso em dra dele, de trabalho, e falou pra mim as-
sim: “Foi a senhora mesmo que escreveu
águas paradas. Isso pode ser verificado obser- isso aqui?” Então aquele mesmo me espori-
vando a circulação restrita da obra através do ou, né? Claro que fui eu que escrevi, e con-
tempo e a incipiente fortuna crítica dedicada à siderei como um grande elogio: foi a senho-
autora. ra mesmo que escreveu isto? E publicou, e
Na 3ª edição de Água funda (2018) há publicou. (GUIMARÃES, 2008, s/p).
um apêndice com um apanhado, àquela altura,
atualizado, da fortuna crítica da autora, que Essa dúvida, essa latência: foi a senhora
totaliza o restrito conjunto de 27 títulos. Des- mesmo que escreveu isso aqui?, aciona um dispo-
tes, 21 são notas de divulgação publicadas em sitivo conhecido e hoje mais facilmente identi-
jornais durante o ano de 1946 a 1947, princi- ficável, pois o tempo presente se sustenta no
palmente na imprensa carioca e com menor tempo passado, por outras pavimentado: por
força na paulista. Isso indica que o livro da es- esse questionamento acerca da legitimidade pa-
critora estreante foi inicialmente bem recebido, ra produzir literatura já passaram Carolina Ma-
ou bem divulgado. No entanto, depois desse ria de Jesus, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves,
momento primeiro, a obra cai em um esqueci- Conceição Evaristo, entre muitas outras. Antes
mento profundo. Na cronologia crítica apresen- delas, Ruth Guimarães se movimentou como
tada, um novo registro só irá aparecer em água abrindo caminho entre as rochas fixas,
2003, com a publicação do Dicionário de Escri- criando condições de possibilidade para o nosso
toras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho, que presente, respondendo altivamente a velha e
traz um verbete dedicado à autora. No univer- constante pergunta: você sabe qual é o seu lugar?
so acadêmico, a minha tese de doutorado Sabia, e publicou. Atuou em direções
(Miranda, 2019) é a primeira tese brasileira a plurais dentro do campo da palavra. Junto à
analisar Ruth Guimarães. literatura, consolidou também uma trajetória

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longa no jornalismo, tendo sido colunista dos A epígrafe de Água funda transcrita aci-
principais veículos da imprensa paulista, como ma, com acentos de “moral da história” proje-
a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, por ta a narrativa ao campo do universal. Parado-
anos. Foi também muito presente no mundo xalmente, a inscrição serve de abertura a uma
editorial, firmando-se principalmente no cam- narração localizada, circunscrita a uma topo-
po da tradução – traduziu, preparou e prefaci- grafia específica. Referências circunstanciais às
ou diversas obras da literatura do cânone mun- cidades de Itajubá, Cruzeiro, Maria da Fé, So-
dial1. Na universidade, foi uma pesquisadora ledade, Queluz e Caraguatatuba reforçam que
dedicada aos estudos da cultura popular e do o enredo se passa na região do Vale do Paraíba,
folclore, considerada por Antonio Candido mas a espacialidade é especificamente inscrita
“uma autoridade nos estudos da cultura popu- aos arredores da Fazenda Olhos D’água. Des-
lar”, tema que lhe rendeu diversos livros. Além tarte, o romance parte do universal totalmente
da literatura, pesquisa, tradução, e jornalismo, aberto, a um lócus altamente enraizado.
Ruth Guimarães também dedicou-se à docên- Universalidade e localidade, ou ainda,
cia, tendo sido professora de diversas escolas e cosmopolitismo e regionalismo, segundo o pen-
universidades pelo interior de São Paulo. samento de Antonio Candido, coaduna a dialé-
A trajetória intelectual de Ruth Guima- tica central da literatura brasileira. Essa chave
rães se aproxima em alguns domínios da expe- conceitual foi, de fato, a principal fonte inter-
riência de Maria Firmina dos Reis, sua anteces- pretativa requisitada pelos críticos em seus co-
sora, autora do primeiro romance publicado mentários sobre Água funda. A abordagem re-
por uma mulher no Brasil – Úrsula (1859). As- gionalista sustentada por Candido (e reproduzi-
sim como a autora de Água funda, Firmina es- da através da pequena fortuna crítica da auto-
treou com um romance, também único. Igual- ra), apoia-se em alguns elementos compositivos
mente longeva, Maria Firmina dos Reis morreu do romance: a linguagem no entre-lugar do po-
três anos antes (1917) do nascimento de Ruth pular ao erudito; o recorte do local e da popula-
(1920). Duas gerações de mulheres negras. Du- ção circunscrita à especificidade de um territó-
as romancistas. Dois romances. Maria Firmina rio; a incidência de figuras lendárias que com-
dos Reis – autora do primeiro romance abolici- põe o folclore brasileiro, como a Mãe de Ouro,
onista brasileiro; Ruth Guimarães – a primeira enquanto instância mítica responsável pela re-
romancista negra publicada depois da abolição lativização do livre-arbítrio dos sujeitos.
da escravidão (Água funda, 1946). Ambas atu- Contudo, a potência ficcional do roman-
aram na imprensa e foram professoras, além de ce pode ser melhor captada através de outro
terem escrito em gêneros literários diversos. acesso, capaz de enxergar nela as fontes que
Assim como nossa precursora do roman- vislumbrem sua matéria-prima decolonial. Dis-
ce, Ruth Guimarães também criou, em sua fic- tante da perspectiva epistemológica que lê
ção, uma forma de pensar a nação, produzindo Água funda como obra regional, busco uma
uma narrativa cujo sentido profundo se desta- outra margem do rio, capaz de realçar os traços
ca no contexto dos intérpretes do Brasil, ou diaspóricos da ficção de Ruth Guimarães. Com
ainda, da própria literatura modernista. efeito, entre o regional e o universal, a ficção
parece dialogar mais com a geografia simbólica
da diáspora negra, na forma que assumiu no
O romance Água funda território brasileiro. Tal perspectiva pode ser
percebida nos três pilares constitutivos do ro-
“Estas coisas aconteceram em mance: no tempo, no espaço e na experiência
qualquer tempo e em qualquer parte. O certo é que acontece-
dos sujeitos.
ram. E, como sempre se dá, ninguém apreendeu nada do
seu misterioso sentido”. A narrativa de Água funda é toda con-

1 Ruth trabalhou para a editora Cultrix por anos, com traduções de obras do francês, alemão e latim.

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centrada em um lócus único e fixo. Mas tal es- sentido possível dentro do mundo bipartido e
pecificidade, antes de regionalizar o romance, dicotômico da plantation: a ficção de Ruth Gui-
inscreve o gesto narrativo na tensão constituti- marães dá vazão à alteridade, algo que rompe
va (e transtemporal2) da sociedade brasileira: a com a lógica unilateral colonial – baseada na
Casa Grande e a Senzala – um paradigma humanidade como imanência do homem bran-
transnacional por definição, parte do “sistema- co.
mundo colonial-moderno” (MIGNOLO, 2005), Memórias da plantation é a tradução
que inscreve o nome do Brasil no atlas da mo- para o título da escritora, teórica, psicóloga e
dernidade. Esta sim, a “particularidade” do artista interdisciplinar afro-portuguesa Grada
lócus do romance: poderia ser qualquer lugar Kilomba Plantations memories: Episodes of
onde houve escravidão, posto que seu foco narra- Everyday Racism (2010), livro que também é
tivo e núcleo de sentidos é “retirado do sítio uma performance. De acordo com Kilomba,
por excelência da diáspora africana nas améri-
cas: o latifúndio monocultor” (CRUZ, 2011, p. Existe um medo apreensivo de que, se o/a
503), nas palavras de Adélcio de Souza Cruz. colonizado/a falar, o/a colonizador/a terá
que ouvir e seria forçado/a a entrar em
No romance, esse território se expande, uma confrontação desconfortável com as
contrai e se refaz através do tempo, de modo verdades do ‘Outro’. Verdades que supos-
que o texto narra a transição das temporalida- tamente não deveriam ser ditas, ouvidas e
des do engenho colonial para o princípio da in- que “deveriam” ser mantidas "em silêncio
dústria moderna, porém, filtrando nesse tempo como segredos". Gosto muito dessa expres-
são, “mantidas em silêncio como segre-
uma terceira temporalidade, formada dos resí- dos”, pois ela anuncia o momento em que
duos persistentes de pretéritos mal resolvidos, alguém está prestes a revelar algo que se
aquilo que permanece e é elástico. Em minha presume não ser permitido dizer (o que se
pesquisa (MIRANDA, 2019), elaborei o concei- presume ser um segredo). Segredos como a
to de espiral-plantation para explicar e traduzir escravidão. Segredos como o colonialismo.
Segredos como o racismo. (KILOMBA,
a dimensão dessa permanência, que confere ao 2008).
romance um lugar de relevo dentro do aporte
semântico dos estudos da colonialidade.
É exatamente o espaço (real e depois Água funda poderia ser pensado como
residual) da plantation que o narrador e as per- um romance que traz à superfície as memórias
sonagens do romance articulam como organis- da plantation. Em muitos momentos, o narra-
mo vivo no tempo. Vista pelo paradigma da dor conjectura acerca dessas “Verdades que
plantation, a epígrafe ganha outra dimensão. supostamente não deveriam ser ditas, ouvidas
Senão, vejamo-lo: Estas coisas aconteceram em e que “deveriam” ser mantidas "em silêncio
qualquer tempo e em qualquer parte. O certo é que como segredos"; enunciando-as para um ouvin-
aconteceram. E, como sempre se dá, ninguém te que não tem fala, que está lá, no texto, para
apreendeu nada do seu misterioso sentido. escutar a(s) história(s): “o moço”, cuja presença
Em qualquer tempo, porque o paradig- retórica performatiza a escuta, sem a qual a
ma da colonialidade atravessa temporalidades fala jamais ganharia o estatuto de romper o
da nação. Em qualquer lugar, onde há ex- silêncio.
senhores e ex-escravos. Aconteceram – desta- Plantation é um lócus que articula o
cando o dado do real, porque nem todas as ex- tempo colonial e a experiência negra aos terri-
periências históricas (principalmente as dos tórios onde houve exploração da mão de obra
não-brancos) são vertidas em arquivo. Desta- africana no sistema americano de monocultura
que-se ainda que a perspectiva universal que voltada para exportação. Plantation, pensada
fundamenta o dito na epígrafe conjuga outro como o epicentro de uma plataforma que inter-

2 No sentido de que não está apenas na origem, pois se atualiza nas políticas do presente.

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secciona tempo, espaço, trabalho e violência na funda é a transição entre o engenho e a usina,
configuração de uma subcategoria humana – o ou entre o período escravo e a pós-abolição;
escravo – e de uma realidade social verticaliza- mas, para mostrar os estreitos limites dessa
da e cromática, sustentando o estado nacional. mudança, a narrativa ilumina o cotidiano de
Assim, a topografia onde as ações do romance uma comunidade atávica. Dessa forma, a expe-
se desenvolvem inscreve a ficção numa carto- riência da plantation – e depois a memória da
grafia da diáspora, ou ainda, num espaço naci- plantation – são elaboradas na ficção engendra-
onal cuja economia, epistemologia e organiza- das ao fundo, ao centro e ao redor de uma ideia
ção social dependia da existência do cativeiro. de Brasil profundo, em sua transparente colo-
Nesse sentido, o que foi lido como regional, no nialidade.
limite também pode ser observado como dicção Como ensinando a olhar através das
de um local transnacional, visto que tal estru- águas, o romance reflete a colonialidade
tura não se restringiu ao contexto brasileiro. (MIGNOLO, 2017) como dimensão constituin-
Água funda é uma narrativa dividida te do nacional, lógica subjacente à fundação e
em duas fases. Na primeira, a fazenda é um aos desdobramentos da sociedade brasileira.
núcleo escravista típico, com senzala, engenho, Desta perspectiva, relê-se o próprio no-
casa grande, escravos, senhores e crueldades. É me do lugar no qual a(s) história(s) se desenvol-
propriedade da Sinhá Carolina, cujas ações ve(m). Olhos D’Água pode tanto remeter a
protagonizam essa parte da história. Depois olhos que choram, ou aludir à nascente ou mi-
que a Sinhá vende a fazenda, começa a segun- na de água. Águas saindo do corpo, ou águas
da parte da narrativa, que corresponde ao tem- saindo da terra, o fato é que Água Funda se
po presente da narração. Agora o espaço onde junta às águas da diáspora negra.
existia Olhos D’água se tornara uma usina pa- Ruth Guimarães não foi apenas uma
ra beneficiamento de cana de açúcar, e o prota- mulher pioneira e longeva, resistente e audaci-
gonista da narrativa passa a ser Joca, empre- osa; ela também produziu uma elaboração esté-
gado da usina. Assim, Carolina e Joca vivem tica para a experiência histórica nacional de
tempos diferentes no mesmo (outro) espaço. colonialidade, através de sua maneira de narrar
O duplo fazenda/usina representa a pró- o tempo. A primeira romancista negra publica-
pria transição histórica pela qual o Brasil pas- da no pós-abolição, elabora esteticamente em
sou na primeira metade do século XX. Uma seu romance o conhecimento de que a ruptura
transição que modernizou os instrumentos, com os dispositivos coloniais que fundaram a
maquinaria e técnicas de produção, mas que nação não se deu à vera. Pelo contrário, segue
manteve as estruturas simbólicas, políticas e um ritmo constante, adaptável e renovável,
sociais do engenho bem vivas. Assim, a trans- como a água. Com efeito, a elaboração ficcional
formação da fazenda em usina em si já docu- da experiência histórica realizada no romance
menta aspectos temporais, tendo em vista que Água funda demarca que o paradigma históri-
deixa de ser parte do projeto agrário e escravo- co do pós-colonial não significa uma ruptura
crata e passa a integrar o novo padrão indus- real com a colonialidade, nem na perspectiva
trial. Mas, em Água funda, o tempo se conjuga do tempo, nem do espaço, nem dos sujeitos.
principalmente através dos sujeitos, das trans-
formações residuais em suas vidas. Os sujeitos Tudo ficou como dantes. Foi o mesmo que
Sinhá nunca tivesse existido. A gente passa
são vários, formam uma comunidade, e repre- nesta vida, como canoa em água funda.
sentam tipos sociais comuns à galeria de perso- Passa. A água bole um pouco. E depois
nagens coloniais: Sinhá, Senhor, mucamas, o não fica mais nada. E quando alguém me-
bugre, capatazes, caboclos. Depois, trabalha- xe com varejão no lodo e turva a corrente-
dores da usina de açúcar, tropeiros, imigrantes za, isso também não tem importância.
Água vem, água vai, fica tudo no mesmo
europeus, empresários. outra vez. (GUIMARÃES, 2018, p. 53).
Em suma, o foco das tramas em Água

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Referências

CRUZ, Aldécio de Sousa. “Ruth Guimarães”.


In: DUARTE, Eduardo de Assis. Antologia
Literatura e afrodescendência no Brasil. Belo
Horizonte, Ed UFMG: 2011, pp. 501-508.

D'ONOFRIO, Silvio Cesar Tamaso. O grupo da


Baruel e a intelectualidade paulista nos anos
1940. Tese de Doutorado. São Paulo: USP/
Programa de Pós-graduação de História Social,
2017.

GUIMARÃES, Ruth. Água Funda. 3ª ed. São


Paulo: Ed. 34, 2018.

GUIMARÃES, Ruth. Entrevista. Disponível


em: http://www.jornalolince.com.br/2008/set/
entrevista/ent_ruth.php. Acesso em 30. maio
2021.

KILOMBA, Grada. Plantation memories: episo-


des of everyday racism. Münster: Unrast, 2008.

MIGNOLO, Walter D. “A colonialidade de ca-


bo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte
conceitual da modernidade”. In: A colonialida-
de do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005. p. 71-103

MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Corpo de


romances de autoras negras brasileiras (1859-
2006): posse da história e colonialidade nacional
confrontada. 2019. Tese (Doutorado em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portugue-
sa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2019.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 6. ed. Belo


Horizonte, Ed. PUC Minas, 2017.
Como Citar:
RODRIGUES MIRANDA, F. Uma Romancista
negra intérprete da nação:: Ruth Guimarães em
“Água Funda”. Revista Cerrados, 30(57). https://
doi.org/10.26512/cerrados.v30i57.38289

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