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Marcelo SANTOS*
Nos Exercícios de admiração, Emil Cioran (2011) compõe perfis que acabam
por cumprir a função de autorretrato, ao projetar na admiração pelo outro um diálogo
consigo mesmo. A partir da ideia de um “exercício de admiração”, pretende-se
perceber as imagens em torno da poeta, romancista, contista e cronista política
Adalgisa Nery, entendendo que a imagem de musa construída a tantas mãos,
desdobra-se, no caso de Adalgisa, em produção de uma subjetividade aglutinadora
do desejo coletivo dos admiradores, e ainda de uma outra subjetividade específica
UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes – Escola de
*
O rosto da musa
Falei vampirismo. Mas poderia associar a isto uma outra metáfora explorada
mítica e psicologicamente na literatura: a relação entre Pigmalião e sua criatura.
Estou me referindo ao mito segundo o qual Pigmalião, rei de Chipre, se
apaixonou se casou com uma estátua, que ele mesmo esculpiu. Também estou
me referindo à utilização arquetípica do mito como foi feita por Bernard Shaw
na peça Pigmalion, que o homem é o artífice e escultor da alma da mulher que
ele escolhe. (SANT’ANNA, 2015, p. 322).
Quando Adalgisa apareceu foi como se outro sol esplendesse e o dia subisse
mais. Era criatura duma beleza feérica. Magra, tinha a face fina e comprida que
os olhos ocupavam – serenos, dramáticos, severos. Eram do mesmo castanho-
claro dos cabelos e toda ela era claridade e elegância. Aqueles seus olhos, seu
equilíbrio, sua boca e seu longo pescoço eram o que aparecia em todas as figuras,
principalmente as femininas, pintadas pelo marido. Por curioso fenômeno ela
que influenciava era também influenciada pelas imagens que se desdobravam da
sua forma perfeita e cabeça divina no sem-número de telas do pintor – porque
em pessoa dava de si a impressão de não ser como as outras e os outros mas
ela própria uma estilização como as personagens dos quadros florentinos e
suntuosos de Ismael.
Ela se apresentava como figura desprendida das alegorias do marido. [...] Sua
beleza mais que humana era realçada pelo porte imperial de sua cabeça [...] E
aparecia luminosa. Tinha alguma coisa das matemáticas, das geometrias, das
abstrações – era centro, linha, curva, ângulo, bissetriz e ponto estequiométrico –
estequiométric’Aldagisa! (NAVA, 2004, p. 269).
Nesse lugar vazio do nome, Murilo Mendes (1994, p. 295) evoca o nome
fantasmal de Berenice no poema “O amor sem consolo”:
Berenice, Berenice,
Existes realmente? És uma criação da minha insônia, da minha febre,
Ou a criadora da minha insônia, da minha febre?
Berenice, Berenice,
Por que não terminas tua crueldade, dando-me a palavra de vida,
Ou por que não começas tua ternura, impelindo-me ao suicídio?
Mais que humana, musa antes de Eva, criação e criatura, Adalgisa é também
nova deusa mexicana na pintura com palavras de Diego Rivera, em carta de 18 de
junho de 1945:
Adalgisa, eres en el Sur de América lo que fué Walt Whitman en el Norte [...]
engendradora de la poesía entera de nuestro tempo. Pero como tú eres mujer,
una mujer maravillosa, puedes subir más rápido y más alto por los rayos de
luz y caer al más profundo de las entrañas oscurecer y penetrar más. [...] El
hombre contempla, comenta, se transforma, inventa a veces, pero como eres
mujer, tu poder creativo, su genio, engendra. Así la madre de los dioses, de lo
todo construído, Tonantzin, era mujer. Ahora, entre nosotros, su nuevo nombre
es Adalgisa.3
3
Tradução da carta de Diego Rivera depositada no Arquivo de Adalgisa Nery, Série Correspondência
Pessoal – Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa e citada no livro
de Ana Arruda Callado (1999, p. 56): “Adalgisa, és no Sul da América o que foi Walt Whitman
no Norte. [...] engendradora da poesia inteira de nosso tempo. Mas como és mulher, uma mulher
maravilhosa, podes subir mais rápido e mais alto para os raios de luz e baixar até o mais fundo das
Essa dobra no próprio tempo, esse desdobramento em musa que inspira e musa
inspirada, fez com que sua voz poética e sua verve de ficcionista fossem recebidas
com fascínio e certo espanto.
poetas de quem Adalgisa foi próxima, e dos quais algumas leituras podem tornar
próximos. Contudo, a poesia de Adalgisa parece marcada por uma singularização
do sujeito que provoca uma tensão constante; tensão não observada, por exemplo,
se contrastarmos com o ritmo mais regular e faustoso da poesia de Schmidt: em
Adalgisa, versos instáveis, que sobrepõem o alongamento prosaico à contenção
lírica das enumerações estão contrapostos a certa constância da temática da
subjetivação desdobrada, o que torna seus primeiros livros homogêneos nessa
mitificação de si e do mundo.
Por outro lado, o lado que mais nos interessa, a poesia de Adalgisa vai
apresentar, correlata à dramatização de si e do mundo, a dramatização da dupla
imagem, do reflexo, em que o desdobramento da musa mostra uma musa gêmea,
duplicada, vista em “Gêmea comigo”:
que a profira; com elas não seriam também possíveis sem uma subjectividade
que as ancore [...]”
A construção de uma voz poética, por vezes pendular entre o eu e o mundo, o
eu e a outra, tantas vezes figurando a cabeça que profere uma voz analista do corpo,
vão criando um rosto de humores instáveis, no espectro que vai da onipotência do
sujeito à impotência, da distância emocional à melancolia.
Em artigo sobre A mulher ausente, segundo livro de Adalgisa, publicado em
1940, Mário de Andrade (1972) assinala a presença maior das rimas, o que, segundo
o poeta, marcaria uma maior adoção de ritmos universais, menos singulares que
os do primeiro livro, o que é notável se percebemos que essa marca formal tem
consequências temáticas: torna-se mais constante o interlocutor, a segunda pessoa
nas dramatizações poéticas de Adalgisa. Concordando com Mário, a relativa
ausência da mulher é sinalizada pela composição de ritmos menos subjetivizantes,
mas também por essa abertura ao outro (tu), como aparece em “Retrato”, poema do
livro seguinte a A mulher ausente, Ar do deserto (1943):
mas trazendo temas mais universais, originários, esotéricos, como formula Octávio
Paz (1993, p. 141-142, grifo do autor):
A singularidade da poesia moderna não vem das ideias ou das atitudes do poeta:
vem de sua voz. Melhor dizendo: do sotaque de sua voz. É uma modulação
indefinida, inconfundível e que, fatalmente, a torna outra. É a marca, não do
pecado, e sim da diferença original. [...] O poema expressa realidades alheias
à modernidade, mundos e estratos psíquicos que não só são mais antigos como
impermeáveis às mudanças da história.
Por essa escolha, tal poesia se alia a certa tendência do eterno no moderno
dentro de nosso modernismo, representada por Murilo Mendes e Jorge de Lima, a
partir do final dos anos 1930, e também pelos primeiros livros de Vinicius de Moraes,
pela obra de Cecília Meireles, entre outros projetos poéticos menos ocupados em
continuar o prosaísmo ou a ruptura das gerações anteriores. Contudo, essa é uma
fase da poesia de Adalgisa que se configura aliada a um tom elegíaco assumido a
partir de Canto da angústia (1948). Nesse livro, a dramatização das vozes constrói
cenas de despedida, como em outro poema intitulado “Retrato”:
[...] seu último livro mais sistemático, Soi-même comme un autre, que já traz
inscrita no seu belo título a questão da identidade (Soi-même) e de uma invenção
da identidade através das figuras da alteridade: comme un autre, insistindo tanto
na dimensão metafórica como também ética dessa invenção. [...] À “exaltação
do Cogito” se opõe um Cogito“quebrado” (brisé) ou “ferido” (blessé) como o
escreve Ricoeur no prefácio a Si mesmo como um outro. Mas essa quebra é,
simultaneamente, a apreensão de uma unidade muito maior, mesmo que nunca
totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece, em cada ação, em cada
obra, entre o sujeito e o mundo.
sem retoque (NERY, 1963), pela qual os assuntos públicos passam pelo crivo com-
batente: voz política, incisiva, que Adalgisa constrói em suas análises.
Quando Adalgisa publica Neblina, seu romance de 1972, cuja capa reproduz
a famosa pintura de Di Cavalcanti sobre Adalgisa, essa imagem aparece com uma
segunda cabeça sobreposta à garganta. Aqui, o drama da voz, que avança na sua
poesia, aparece na figuração da “cabeça gêmea” que fala ao corpo da personagem
morta: “Acuada e confusa, ouvi as advertências e os ensinamentos da minha cabeça
gêmea que, de olhos quase cerrado, insistia em monologar com a minha voz.” (NERY,
1972, p. 8). A personificação da cabeça gêmea descolada do corpo é crucial para se
compreender o tema do exame de si mesma que perpassa o romance Neblina, mas
também a assunção mais programática da voz sem sujeito que predomina no último
livro de poemas de Adalgisa (NERY, 1973), Erosão. Usando versos menos longos,
com maior constância de rimas, essa voz sem fonte, dessubjetivada, é pontuada
por imagens acéfalas espalhadas no livro. Erodidos o corpo e o sujeito, a voz surge
dessa morte, como mostra o poema “Mulher”:
SANTOS, M. The unfolded muse: paths from the self to the other in the works of
Adalgisa Nery. Itinerários, Araraquara, n. 42, p. 111-126, jan./jun. 2016.
morte. Eu posso naturalmente parecer outro, mas então é o eu social que muda, por exemplo na dupla
identidade tida pelos documentos falsos ou ao aparelhamento das redes de espionagem – o eu social
e não o eu “real” que não muda nunca. O problema volta aqui em torno do sentimento verdadeiro
ou ilusório da unidade do eu, da qual nos asseguramos que é irredutível e que constitui um dos fatos
indiscutíveis da existência humana.”
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, S. Por uma moral da ambiguidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
BLANCHOT, M. Uma voz vinda de outro lugar. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
CALLADO, A. A. Adalgisa Nery: muito amada e muito só. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1999. (Coleção Perfis do Rio).
GAGNEBIN, J.-M. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
NAVA, P. O círio perfeito. Cotia: Ateliê Editorial; São Paulo: Giordano, 2004.
POE, E. A. O retrato oval. In: ______. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2011. p. 278-282.
ROSSET, C. Loin de moi: étude sur l’identité. Paris: Les Éditions de Minuit, 1999.
Recebido em 31/10/2015
Aceito para publicação em 20/12/2015