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As Ondas, de Virginia Woolf – uma obra literária modernista

Segundo J.A. Cuddon, o modernismo literário representa o rompimento consciente das regras
anteriormente estabelecidas, o que revela novas maneiras de observar a posição e função do
Homem no universo e várias experiências com a forma, estilo e linguagem, acrescentando uma
grande complexidade na estrutura de certa obra e conceitos como a autorreflexão e a
fragmentação.

Dá-se, então, uma rejeição dos fundamentos clássicos tais como o uso de narrador, o fixo e
estável “eu” e o enredo progressivo e linear, sendo substituídos pelo uso do discurso indireto
livre, pela sobreposição de personagens, pelo fluxo de consciência, pela junção de formas, pelo
uso de simbolismo e alusões e pelos múltiplos narradores ou vozes.

Virginia Woolf foi um dos rostos desta corrente, que pontificou no início do século XX.

Nascida a 25 de janeiro de 1882, a autora cresceu de forma abastada, tendo sido educada e
influenciada profissionalmente pelo seu pai, Sir Leslie Stephen, que era escritor, ensaísta e
editor. A sua paixão pela literatura e pela escrita, combinada com a forte definição dos ideais
intrínsecos em si, resultaram em obras literárias inovadoras e brilhantes, com a abordagem de
temas controversos para a altura em que se inseriam (tais como a homossexualidade e o
feminismo).

De acordo com Eric Warner, a escrita de Virginia Woolf predomina "(…) by the opposition
between order and freedom, security and promise, value and discovery, stability and
movement (…)", refletindo, de certa forma, o seu próprio estado mental e psicológico, afetado
pelo período assombrado por guerras e morte em que se inseria.

A autora distingue-se até à atualidade pelo seu uso excecional do monólogo interior, do lirismo
intenso e do fluxo de consciência, este último com maior destaque e com a finalidade de
centrar a sua escrita na realidade individual, visível no excerto: "I see a ring,’ said Bernard,’
hanging above me. It quivers and hangs in a loop of light." " I see a slab of pale yellow,’ said
Susan, ‘spreading away until it meets a purple stripe. " " I hear a sound’, said Rhoda,’ cheep,
chirp; cheep, chirp; going up and down." " I see a globe,’ said Neville,’ hanging down in a drop
against the enormous flanks of some hill."

Este excerto foi retirado da obra ´As Ondas´, considerada das mais experimentais da escritora
e o ápice do Modernismo, pois Woolf tentou dar uso a todas as suas inovações e aspetos
modernistas com o intuito de expressar a sua realidade enquanto pessoa individual e
enquanto uma das impulsionadoras desta nova corrente literária.

´As Ondas´ consiste num romance desafiante que não oferece personagens claramente
delineadas. Jinny, Rhoda, Susan Bernard, Louis e Neville, o grupo de seis amigos que
constituem as personagens principais, falam alternadamente, de uma forma que toca
profundamente o leitor devido à sua autoconsciência.

Apesar do romance não ser composto por capítulos, consegue-se facilmente distinguir que
existem nove partes que descrevem o procedimento do crescimento de cada personagem,
refletindo-se nas seis vozes inseridas na obra. No início de cada parte, são apresentadas
descrições líricas das ondas debaixo do sol e as histórias opostas das seis personagens evoluem
em uníssono com o movimento do sol e do tempo.
A técnica da narrativa descontínua é representada pela irregularidade dos movimentos das
ondas, que reflete e contrasta diretamente na inconstância da vida.

Tais características rompem completamente o estereótipo dos romances tradicionais,


atestados de personagens dramáticas cujas ações traduzem-se num simples efeito direto de
alguma causa, privando a identidade de qualquer noção abstrata.

A representação das personagens modernistas em ´As Ondas´ vai ao encontro dos monólogos
interiores de cada uma delas. A ordem destes monólogos concerne com as relações afetivas
das mesmas, como por exemplo: Susan está apaixonada por Bernard, então é comum esta ter
uma fala posterior ao rapaz em questão.
Outro aspeto importante é a ordem de aparição das personagens: As raparigas falam
principalmente depois dos rapazes e, surpreendentemente, falam menos, o que critica
indiretamente a conceção do género predominante na época da escritora.

Obras modernistas têm ainda a característica de usualmente ocorrerem a um estilo de


linguagem repleto de simbolismos, incluindo a utilização de metáforas, com o objetivo de
diferenciar as imagens comuns. Tal não passou despercebido a Virginia Woolf, que recorreu a
´As Ondas´ como título metafórico que alcança acorrentar diversos significados:

O mais percetível seria a visualização das ondas como símbolo da vida inconstante, impossível
de definir como linha certa, aproximando-se mais com uma curva, que representa uma onda.
Nesta obra, as seis personagens formam seis ondas. Existe uma evolução das suas
mentalidades com o decorrer do tempo e das várias fases por que passam no desenrolar da
ação (a infância, a juventude, a idade adulta e, finalmente, a morte), fazendo sobressair o
processo de vida instável e indefinido. À medida que crescem, as personagens tornam-se mais
conscientes desta mesma instabilidade e tal encontra-se simbolizado também nas ondas
descritas no romance. Rhoda é um perfeito exemplo quando diz: "Let me pull myself out of
these waters. But they heap themselves on me; they sweep me between their great shoulders;
I am turned; I am tumbled; I am stretched, among these long lights, these long waves, these
endless paths, with people pursuing, pursuing.".

Outra possível interpretação seria uma reflexão do tempo de transição cultural que ocorria no
século XX. As ondas representariam a revolução contra a convenção antiga, afastada pelas
“ondas” de fragmentação atuais da altura modernista. Seria ainda abrangida uma
representação dos conflitos entre os indivíduos e a sociedade, trazidos pela corrente artística.

Por fim, as ondas estariam relacionadas com a vida pessoal da autora, a própria incerta sobre a
vida instável, tal alistado com as suas experiências e traumas.

Finalmente, a época modernista desencadeou o problema da conceção do “eu”: seria este


apenas uma unidade, estável e constante ou algo fragmentado, instável e desconhecido? E
seria o mesmo formado por interação com segundos, ou não?

A literatura modernista responde, desenhando o “eu” com traços elusivos, fracionados e


descontínuos, resultado da perda de fé em pontos tradicionais que moldariam o indivíduo,
como a religião e a razão, tornando-se, então, mais racional e consciente das mudanças
inseridas no mesmo.
Ao escrever ´As Ondas´, Virginia Woolf pretendia mostrar a relação de seis diferentes pessoas
com características fundamentais da existência humana, tornando estas diversas facetas em
uma só pessoa completa, representada pela personagem de Percival.

Sergma Mabrouka, da universidade Ahmed Draia, retrata a autorreflexão e o autorretrato na


obra, dividindo o “eu” em:

 o “eu” dialógico

A personalidade de cada personagem é refletida por meio de variados monólogos, permitindo


ao leitor vê-los como indivíduos separados ou como apenas como um único indivíduo, pois
Woolf conseguiu desenhar e omitir os limites entre seus personagens.

A personagem de Percival tem a capacidade de conduzir todos os sentimentos e pensamentos


das personagens ao seu redor e criar um indivíduo e uma identidade completos. As outras
personagens sentem-se identificadas por ele de tal forma que parecem a sua "sombra".

Bernard é outra personagem unificadora, pois representa o individualismo das outras, sendo o
principal porta-voz do relacionamento das seis personagens. Ele é o “contador de histórias”
que resume a vida dos seus amigos e as reivindica como a sua própria história de vida. Bernard
diz: "...when I meet an unknown person, and try to break off, here at this table, what I call "my
life", it is not one life that I look back upon; I am not one person; I am many people; I do not
altogether know who I am--Jinny, Susan, Neville, Rhoda, or Louis; or how to distinguish my life
from theirs."

 o “eu” feminino

Virginia Woolf acreditava que a vida feminina não poderia ser retratada segundo as antigas
convenções pré-modernistas, pois o realismo clássico não teria a capacidade de representar a
mulher como ela o merece ser.

Assim, a autora decidiu caracterizar a versatilidade da mulher de acordo com as suas


personagens femininas.

O “eu” feminino de Susan expressa-se na sua rejeição à ordem, disciplina e restrições e no seu
relacionamento com a natureza: “ (...) I think I am the field, I am the barn, I am the trees; mine
are the flocks of birds, and this young hare who leaps, at the last moment when I step almost
on him. Mine is the heron that stretches its vast wings lazily; and the cow that creaks as it
pushes one foot before another munching; and the wild, swooping swallow; and the faint red
in the sky, and the green when the red fades; the silence and the bell; the call of the man
fetching carthorses from the fields--all are mine.”. Já Jinny tenta exprimir-se através do seu
corpo, dizendo: “ (...) I do not temper my beauty with meanness lest it should scorch me. I gulp
it down entire. It is made of flesh; it is made of stuff. My imagination is the body's. Its visions
are not fine-spun and white with purity like Louis' ... the infinite variety of women's dresses (I
note all clothes always) delight me. I eddy with them, in and out, in and out, into rooms, into
halls, here, there, everywhere, wherever they go... The torments, the divisions of your lives
have been solved for me night after night, sometimes only by the touch of a finger under the
table-cloth as we sat dining--so fluid has my body become, forming even at the touch of a
finger into one full drop, which fills itself, which quivers, which flashes, which falls in ecstasy.”.
Bibliografia:

As Ondas – Virginia Woolf

The Self in Virginia Woolf's The Waves - Sergma Mabrouka

Virginia Woolf’s The Waves: A Study on Modernism - Zhang Yanqing

Os fluxos da consciência de Virginia Woolf – Comunidade Cultura e Arte

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