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AGORA É QUE SÃO ELAS:

A NARRATIVA INTERARTES DE PAULO LEMINSKI

Cláudio José de Almeida Mello


claudiomello10@gmail.com

RESUMO: Este artigo apresenta uma ABSTRACT: This article presents a


análise literária e interartes do romance literary and interarts analysis of the novel
Agora é que são elas, de Paulo Leminski, Agora é que são elas, by Paulo Leminski,
focalizando sua relação com a música, focusing on its relation to music,
suscitada a partir do prólogo do livro e, enhanced by the prologue of the book
também, das performances realizadas and also by the performances
durante a ação. Pretende-se mostrar que accomplished during the action. We aim
há no romance um alto nível de at showing that there is a high level of
elaboração estética que envolve uma aesthetic elaboration which involves
homologia estrutural entre o processo de structural homology between the
composição e o jazz, evidenciada em composition process of the text and jazz
procedimentos comuns em ambas as music, made evident by common
mídias, como as colagens, a procedures employed by both media,
desconstrução temporal, a relativização such as collage, temporal deconstruction,
dos momentos de tensão e contradição. relativization of moments of tension
Esses elementos, em destaque na and contradiction. These elements,
narrativa do autor paranaense, estão em foregrounded within the author’s
sintonia com a atitude pós-moderna de narrative, are attuned with the
questionamento das estruturas, normas postmodern attitude of questioning
e verdades dogmáticas. structures, rules and dogmatic truths.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura paranaense. Estudos interartes. Literatura e música.


Pós-modernismo.

KEY WORDS: Literature from the state of Paraná. Interarts studies. Literature and
music. Postmodernism.

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The rule of musicians is to express oneself with honesty,
emotion and mind. The spirit of Jazz is independence,
freedom and improvisation. Tradition and innovation
represent, through improvisation, vital and complementary
power into the Jazz World...

Zuza Homem de Mello – Free Jazz Festival Pamphlet, 1994

Introdução

Conhecido quase que somente como poeta, Paulo Leminski (1944-


1989) foi também músico, compositor, tradutor e ensaísta, um “bandido que
sabia latim” (VAZ, 2001). Talvez por essas atividades, somadas a uma disposição
voraz pelo conhecimento e pela cultura, sua obra é marcada pelo pluralismo,
por uma visão aberta da linguagem mais do que um simples instrumento, um
medium que forma, transforma e deforma (e que é) a própria realidade. Assim,
temos em Leminski a recusa irreverente dos limites impostos pela tradição
conservadora e pela academia, geralmente abandonando a distinção de gêneros,
e, às vezes, de artes.
É o que acontece em Agora é que são elas, romance que se poderia
chamar de prosa poética e musical, pois nele a narração, cuja linguagem é
colocada em evidência em sua dimensão poética, aparece imbricada com
conceitos musicais. A obra tem um prólogo, que traz uma instrução nesse
sentido: “As duas músicas cantadas neste romance-fuga são Watch What
Happens, de LeGrand e Gimbel, e A House Is Not A Home, de Burt Bacharach
e Hall David. Devem ser imaginadas na voz de Ella Fitzgerald, tal como Ella
as imortalizou em duas insuperáveis performances” (LEMINSKI, 1999, p.
5). É como se a leitura acontecesse durante uma performance musical, o que
altera a recepção dessa obra mixmedia. Numa atitude pós-moderna de
desconstrução de paradigmas, a obra põe em risco a integridade da forma
mesclando não só gêneros, mas também artes.
Esta análise pretende mostrar que o jazz é usado na criação dessa
obra não só tematicamente, mas como parâmetro para a sua composição, o
que permite considerar uma homologia estrutural entre Agora é que são elas e o
gênero jazz, em geral, e as canções que aparecem na obra (além das duas
citadas, há também Until the Real Thing Comes Along, também cantada por Ella

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Fitzgerald), em particular. Essa relação interartes afronta a tradicional distinção
entre gêneros em âmbito estético e, na trama narrativa, desmascara a realidade
aparente, lógica, racional mas desumanizada, para criar esteticamente outra
perspectiva não normatizada ou padronizada, incorporando a desconstrução
das normas (do mundo) na própria estrutura da obra e da linguagem, tal
como acontece no jazz.
O recorte para demonstrar essa homologia situa-se em pontos
essenciais para a compreensão desse fenômeno crítico e autocrítico,
apresentados abaixo: as colagens, que são um um processo surrealista de
desautomatização da realidade; a desconstrução temporal, mostrando que a
própria organização do tempo é um construto da racionalidade humana,
portanto passível de questionamento; a dessacralização dos momentos de tensão
como desmascaramento da realidade aparente; e a aceitação da contradição
em oposição à verdade absoluta. Tudo isso revela uma visão de mundo que
questiona as normas impostas para a vida humana, incorporada na própria
estética da obra.

Colagens

No romance, o narrador autodiegético, cujo nome não é mencionado,


está em uma festa, à noite, e conhece uma moça chamada Norma. Não fica
claro se esta é a mesma Norma que se torna sua namorada e é filha do
personagem Vladimir Propp, o qual, se em alguns momentos coincide com a
personalidade histórica homônima no que diz respeito à autoria de um sistema
de análise do conto maravilhoso, em outros se confunde com Sigmund Freud,
ao utilizar o sistema de análise literário em um tratamento psicanalítico do
narrador, pois Propp, além de linguista, é seu analista. O narrador sai da festa,
mas resolve voltar. Encontra a casa, mas o mordomo, que o havia servido,
informa que a festa seria na noite seguinte. Como estava chovendo, o narrador
aceita a oferta de pouso do criado, e durante a noite ele tem sonhos que se
confundem com a realidade. A ação, absolutamente confusa, desenrola-se
nessa festa, que muitas vezes parece estar apenas na mente do narrador,
enquanto acontece uma guerra interplanetária, em que a Terra, mais
especificamente o próprio narrador, é o próximo alvo. Em certa altura, o
narrador conhece uma menina também chamada Norma, pivô da guerra.
Sem entender o que acontece na festa, ele presencia o assassinato daquela
primeira Norma em um ritual, o que acontece na última sexta-feira de cada
mês, pois ela sempre ressuscita.

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Como se pode perceber, o enredo é fragmentário, não segue a
causalidade no nível da trama e, no plano temporal, tem uma sequência nada
linear. Construída com capítulos e subcapítulos bastante curtos – nas 163
páginas são 31 capítulos que também se subdividem –, a narrativa, ao justapor
fragmentos desconexos, desconstrói a percepção normatizada do mundo, dando
à obra uma marca surrealista.
O processo de colagem envolve outro sistema sígnico, a música, já a
partir do prólogo, interferindo na leitura da obra na medida em que vincula a
criação e a recepção de uma arte à outra. Leminski cria um termo literário-
musical para o gênero de Agora é que são elas, “romance-fuga”, cuja análise é
iluminada pela aproximação com o jazz, forma musical a que pertencem as
canções citadas.
O jazz manifestação de origem popular norte-americana, cujas raízes
são os negro spirituals, o rag time, o boogie woogie e o blues (HOBSBAWN, 1990).
Essas formas foram criadas por negros escravos no underground da sociedade,
em grande parte desvinculadas da música européia. Após a libertação dos
escravos, em 1863, os negros analfabetos não conseguiam boa colocação no
mercado de trabalho, e os que se reuniam em grupos musicais não sabiam ler
textos escritos nem partituras, tampouco conheciam a teoria musical. Como
não existiam registros escritos do que tocavam, imperavam a tradição oral, a
improvisação livre, a criação espontânea, se bem que a partir de um
conhecimento adquirido. Conforme Nestor Oderigo (1980, p. 118), “En el
fértil terreno de la invención melódica, estos creadores no estaban exentos de
tradición. Los respaldaba un folklore riquísimo, evolucionado a lo largo de
más de dos siglos y medio, y entre cuyas características fundamentales se
encuentran dos firmes puntales de la música nueva: la improvisación y la
variación”.
Nesse sentido desvinculado da música ocidental europeia, criada sob
padrões rígidos, o jazz possui um processo de colagem chamado de takes,
fragmentos que se justapõem, muitas vezes improvisadamente (CASE; BRITT,
1988). Amante do jazz, Julio Cortázar observou que os takes diferem do
ensaio musical por não avançarem para o futuro, buscando a perfeição; eles
são um procedimento de fragmentação, interrompendo o andamento para
recomeçar; nesse sentido, são inacabados, levando à conclusão de que em sua
criação está sua própria crítica. Na estrutura da linguagem dos takes está a
busca pelo novo, busca que atesta a autoconsciência de sua precariedade; e é,
portanto, tão crítica quanto autocrítica, fenômeno que levou Davi Arrigucci
Júnior (1995, p. 41) a concluir que “Pela invenção, a linguagem do jazz funde

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aspectos díspares, combina elementos heterogêneos, concilia o aparentemente
inconciliável, explorando a porosidade do espaço, rompendo a crosta da
aparência em que se detém a percepção amortecida pelo hábito”.
Como se vê, há no jazz um processo de desconstrução surrealista da
realidade sensível homólogo ao que se verifica em Agora é que são elas. No
romance, além do enredo fragmentário que revela o caos “ questionando a
falta de lógica do mundo empírico”, o narrador manifesta o tempo todo o
desejo de “[...] mandar Norma, todas as normas, pelos ares [...]” (LEMINSKI,
1999, p. 119). Para ele, a “lógica morreu” (p. 140), pois ela é estrutura puramente
abstrata, desvinculada da vida (p. 153).
No jazz, isso faz parte do próprio processo de composição: “[...] essa
música que, como se viu, se submete à autocrítica constante nos takes
inventivos, contém uma carga demolidora, capaz de quebrar a rotina, a
mesmice, de rebentar o ramerrão asfixiante que envolve a média burguesia
[...]” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1995, p. 42). De uma maneira geral – tanto no
jazz como em Agora é que são elas – o processo de colagem implode as aparências,
na medida em que opera uma desrealização da realidade construída pelo
homem, portanto histórica, datada, relativa, mas apresentada como absoluta,
seja na História oficial, seja nas normas para convivência em sociedade, ou
ainda nos padrões para a criação artística.

Desconstrução temporal

Outro elemento identificável nas estruturas de Agora é que são elas e


do jazz é a desconstrução da linearidade temporal. No primeiro, isso se dá
pelo rompimento da sequência do enredo. Em muitas partes, intui-se que as
ações estão “fora de ordem”, de tal modo que o tempo, plano essencial para
a composição literária, é ele próprio problematizado. Isso acontece, por exemplo,
quando o narrador volta para a festa:

O velho criado pôs a cabeça na fresta da porta entreaberta.


- Está perdido, cavalheiro?
- Não lembra de mim? Acabo de sair daqui.
- Perdão, senhor?
- Eu acabo de sair da festa. Mas voltei.
- Que festa?
- A festa que estava havendo aí quando eu saí.
- Mas, senhor, a festa vai ser amanhã à noite. (LEMINSKI, 1999, p. 23)

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No jazz, a desconstrução da linearidade temporal se dá pelo uso dos
takes, que criam, em vez de uma sequência, uma espécie de espiral; não há
uma linha evolutiva sobre a qual os motivos se desenvolvem, mas uma variação
sobre um mesmo tema. Os improvisos tão característicos do jazz corroboram
para a ruptura temporal, tendo em vista que em qualquer momento pode
aparecer uma tênue alusão a uma melodia antes apresentada, para
imediatamente ser abandonada em prol de outra sugestão que pode ter
aparecido antes ou depois da primeira, rompendo com a lógica linear.
É o que acontece na interpretação de Watch what Happens por Ella
Fitzgerald: cotejando a música com a partitura da música, que vem
acompanhada da letra, percebe-se que Ella começa a cantar pelo meio da
música, para depois iniciar a letra “correta” – ao menos era a esperada, tanto
que, na audição da gravação de uma interpretação ao vivo, quando ela chega
no início da letra original, a plateia ri, admirando a invenção dela. Esse desvio
é um take, uma improvisação em relação à música original. Esse trecho, na
letra da partitura vem assim: “Cold, no I won’t believe your heart is cold /
maybe just afraid to be broken again” (GIMBEL; LEGRAND, 1988); porém,
Fitzgerald canta: “Cold, no I won’t believe your heart is cold / maybe not too
warm from a lonely night” (GIMBEL; LEGRAND, 1996).

Momentos de tensão

O romance de Leminski é marcado pela dessacralização das normas,


inclusive das normas literárias, por isso o largo uso da paródia. Percebe-se um
procedimento em que as ações são narradas com uma certa seriedade, mas
nos momentos de tensão, de desfecho da cena, acontece uma subversão, o
que vem romper com a causalidade da literatura “séria”, como acontece no
casamento do narrador com a Norma da festa (aquela que se confunde na
narrativa com Ella Fitzgerald).

Se alguém tem alguma coisa a dizer contra este casamento, fale


agora ou cale-se para sempre.
E todos realizaram aquele nosso mais fundo desejo infantil. Um
gritou:
- Eu tenho, reverendo! Essa mulher é uma vagabunda!
- Ela trepou com o noivo antes do casamento!
- Ela já é casada!
- Ela tem um amante!

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- Ela cobra um absurdo pra chupar um pau!
Foi com muita fleugma que virei a cabeça para olhar a massa dos
fiéis, donde saíam aquelas vozes.
Nisso, uma voz gritou:
- Esse cara é viado!
- A mãe dele está na zona!
- Vi ele de sacanagem com a menininha lá fora!
- Ele tem filho com tudo quanto é mulher!
[...]
O padre pulou como um tigre, e gritou para o sacristão:
- Protege o Santíssimo, o cibório, o ostensório, o turíbulo, o cálice e a
patena, que eu vou mostrar a esses filhos da puta o que acontece pra quem
não respeita a Casa do Senhor. (LEMINSKI, 1999, p. 108-9)

Observe-se que não é possível enformar o enredo, pois o clímax é


carnavalizado, conforme o conceito de Bakhtin (1999). A quebra do momento
de tensão análoga a essa, existente no jazz, presente em todas a manifestações
musicais que lhe deram origem, é operada pelo processo da sincopação, em
que os acentos se antecipam, se atrasam ou se suspendem. Esse processo,
também presente nas outras músicas citadas em Agora é que são elas, é a base
de Until the Real Thing Comes Along, executada apenas pela voz de Ella e pelo
piano de Ellis Larkins (CAHN, 1994). Como não há nenhum instrumento de
percussão marcando os tempos fortes, tem-se a impressão de que a melodia
está flutuando, pois, enquanto o instrumento dá uma leve sustentação rítmica,
carregada de improvisos, Fitzgerald constrói frases sincopadas, como acontece
na primeira vez que ela canta o título da música (quarto verso). Isso contrasta
com a música erudita ou clássica de origem europeia, que tem uma marcação
intermitente, executada de maneira regular.
Em pesquisa realizada com alguns dos maiores intérpretes do jazz
(dentre eles o Oliver Creole Jazz, o Hot Five de Armstrong, o Red Hot
Peppers de Morton, o Quinteto de Charlie Parker), James L. Collier (1995)
apurou que o jazz não pode ser colocado dentro de um esquema rítmico fixo,
pois os músicos alteram seu andamento, muitas vezes imperceptivelmente
para os ouvintes, e talvez inconscientemente, com propósitos musicais,
mostrando que a dessacralização dos momentos de tensão que caracteriza o
processo de sincopação é inerente ao ritmo do jazz.

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Contradição

A estrutura de composição de Agora é que são elas é constituída sob a


ótica da contradição, aspecto que também pode ser verificado na comparação
com o jazz, no qual esse fenômeno é essencial.
Forma musical voltada para si mesma, o jazz é construído por um
parâmetro tonal ou melódico inicial, que os músicos passam a desconstruir
com variações improvisadas, substituindo-o por um novo parâmetro que,
entretanto, também é provisório, haja vista esse constante retorno. Em A
House is not a Home, aproximadamente no meio da música, Fitzgerald faz isso
quando canta os seguintes versos: “When I climb the stairs and turn the key,
oh please / Be there still in love with me” (DAVID; BACHARACH, 1996).
Nesse ponto ela foge totalmente não só do esquema melódico, como também
do rítmico, ao fazer uma variação da estrutura que vinha sendo seguida, para
em seguida voltar ao esquema anterior.
Dessa maneira, o fazer musical – construído em um esquema rítmico
que já é baseado no contraponto e foge à regularidade das normas “ chama a
atenção para si, para a estrutura da própria composição, passando, portanto, a
ser tema. Há uma contradição essencial aí: esse projeto de construção, assim
concebido, é um projeto de (auto) destruição. Como Arrigucci Júnior (1995, p.
42) observou em análise da relação entre o jazz e a poética de Cortázar, “Ao
atingir o ápice da invenção, a linguagem musical [do jazz] atinge também o
ponto extremo do risco, à margem do abismo, uma fulguração instantânea,
ameaçada pela dissolução no caos, num equilíbrio precário, o ponto mais
próximo do absoluto a que aspira”.
Uma parte que exemplifica esse ápice da invenção é o final the A
House is not a Home, em que Fitzgerald faz uma colagem – totalmente fora da
estrutura melódica, harmônica e rítmica, um take, enfim –, um solo de blues
(“[...] Without a man, a man, a man [...]”), como se fosse um instrumento de
sopro, tão comum no jazz, como os dois últimos versos (“[...] A house is not
a home / Without a man”) (DAVID; BACHARACH, 1996).
Outra contradição unindo música e literatura vem do prólogo, em
que Leminski forja uma obra multimídia, interartes, ao aludir à expressão
citada, “romance-fuga”. Ainda no aspecto em pauta o autor dessacraliza a
literatura, pois, paradoxalmente, associa um gênero literário (romance) cuja
característica formal é ser inacabado e uma forma musical (fuga) marcada
pela disciplina, como se vê na seguinte definição :

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Forma de escrita contrapontística imitativa e disciplinada estabelecida no
século XVII, resultando do ricercare, da canzone e formas afins do
Renascimento. Em sua mais pura forma, uma fuga tem um número
determinado de partes ou vozes e obedece a princípios razoavelmente
estruturados. Baseia-se num curto motivo melódico, chamado sujeito ou
tema, que é exposto inicialmente na tônica para a primeira voz
desacompanhada. Esse tema é imitado por outra voz, que corresponde à
resposta [...]. Se houver mais de duas vozes, as vozes restantes introduzem
o sujeito, o contra-sujeito e a resposta, até que todas as vozes tenham
entrado na devida ordem. (MARTINS; ISAACS, 1985, p. 139)

A estrutura lógica de um hipotético “romance-fuga” seria racional,


bem equilibrada, com começo, meio e fim, um tema claro, tudo obedecendo
a uma tradição, com um sentido de imitação. Entretanto, o que se verifica é o
contrário, ou seja, a aproximação entre essas duas formas, romance e fuga, é,
em si, uma contradição, uma anti-norma, exatamente como acontece na
estrutura de Agora é que são elas.
Ainda no amalgamento das duas artes, no romance há uma
personagem que canta as citadas músicas: “Norma cantava. E então vi Norma.
Vi no sentido mais pleno de ver. Ver como quem nasce, como quem goza e
morre” (LEMINSKI, 1999, p. 32). Todavia, as instruções do prólogo são
claras: as músicas “Devem ser imaginadas na voz de Ella Fitzgerald [...]”
(LEMINSKI, 1999, p. 5), sugerindo uma aproximação absurda, pois Fitzgerald
é uma jazzwoman, aquela que com suas “[...] insuperáveis performances”
executou as músicas. A execução no jazz tem um papel importantíssimo por
causa do improviso, da inspiração e da emoção do momento, que obviamente
fogem a normas. Fruto dessa contradição, surgem em Agora é que são elas os
momentos de êxtase em que o narrador transporta-se para outra dimensão,
irracional:

Andei até a parede, bati, e comecei a apalpar, procurando a luz,


vivendo naquela voz, como se vive dentro de uma vida, por quanto tempo
não consigo determinar nem com precisão aproximada: no escuro e no
silêncio, tempo é coisa muito relativa.
Quando consegui sair do quarto, desci uma escada e desaguei no
grande salão, o salão da festa passada, a que não houve, o salão da festa que vai
haver, e, que, provavelmente, quem sabe.
A voz enchia o ambiente como um dia.
(LEMINSKI, 1999, p. 31)

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Linda Hutcheon (1991) identifica uma recorrência a essa contradição
em romances pós-modernos que se apropriam da história ou de personalidades
históricas para desconstruí-las; abusando da auto-reflexividade, seu foco de
interesse é o processo de enunciação narrativa, que atua nas convenções da
literatura, história e teoria para subvertê-las. Como no jazz, não se propõe um
novo paradigma que possa substituir o antigo, apesar de ser um marco na
busca de algo novo.
Pode-se associar, portanto, o recurso à contradição de Agora é que são
elas àquilo que Linda Hutcheon (1991, p. 19) identifica em obras de arte pós-
modernas, “[...] um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois
subverte, os próprios conceitos que desafia [...]”. Ignorando a distinção entre
artes – imbricando música e literatura –, a obra do poeta curitibano radicaliza
o processo de renovação do gênero romance, sempre inacabado (BAKHTIN,
1990). Em lugar da seriedade da literatura, Agora é que são elas coloca o humor,
a linguagem coloquial, até mesmo de baixo calão. Uma possibilidade de vida,
uma linguagem, enfim, que não faz sentido. “E daí?, fazer sentido não é tudo
na vida, já dizia minha tia” (LEMINSKI, 1999, p. 139). Como no jazz: a
aceitação da ambiguidade criada pela improvisação, pela variação sobre um
tema, provoca a aceitação de outras possibilidades, a relativização.

Considerações finais

É no bojo dessas considerações estéticas que situamos a temática de


Agora é que são elas: para falar da vida, para tematizar a essência da relação
entre os homens, o romance problematiza as normas dos sistemas: a análise
formalista proppiana, a psicanálise, as normas em geral, usurpadas para
explicitar o absurdo de pensar as possibilidades da vida restritas a estruturas
pré-estabelecidas, tal como o personagem Propp a concebe.
Para falar da vida é preciso permitir que a sua desordenação esteja
na forma da obra literária, como quer Theodor Adorno (1970), e não só
tematicamente. Por isso, na obra do autor paranaense o tempo físico é
desprezado; não há causalidade – em seu lugar, o ato gratuito.
Essa ruptura, tal como acontece no jazz, explicita em Agora é que são
elas a postura de questionamento da padronização lógica que enfeixa as relações,
para o que a linguagem, recuperando sua dimensão poética, solta-se das amarras
das rígidas convenções sociais, a fim de questionar a percepção imediata do mundo.
A homologia estrutural verificada entre Agora é que são elas e o jazz
ilumina a estrutura profunda do romance, desde o prólogo, que instaura uma

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obra interartes sui generis, ao aludir às performances da jazzwoman, as quais,
fundidas ao romance, passam a ser como um quadro, insubstituível. E o “leitor-
ouvinte” que aceitar o jogo e ouvir as músicas citadas terá uma obra
intersemiótica e interartes, uma nova realidade.
Do mesmo modo, os improvisos de jazz, a fuga a esquemas rítmicos
rígidos, as variações sem causalidade são recursos que subvertem a lógica,
substituindo a razão pela intuição e emoção. Dessa maneira, “Visto como
linguagem de busca e rebelião, o jazz adquire uma função desautomatizadora
da percepção do mundo e, nessa medida, transforma-se num instrumento de
indagação metafísica. Quebrando os hábitos perceptivos, desmascara o mundo,
revela o real” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1995, p. 42). A concretização disso
está em um momento belíssimo da obra, em que a música leva o narrador a viajar
num êxtase para uma outra dimensão da realidade, impossível pela via racional:

E daí comecei a ouvir aquele som, uma coisa doce vinda de algum lugar e de
toda parte ao mesmo tempo, uma voz, sim, era uma voz, uma voz de
mulher, em algum lugar no espaço e no tempo, uma mulher cantava, e
coisas além do meu entendimento queriam que eu estivesse ali, escutando,
como se ouvir aquela voz pudesse ser a razão de ser de toda uma vida, aquela
voz doce que parecia iluminar a meia-noite com todas as vias-lácteas de que o céu
é capaz. (LEMINSKI, 1999, p. 24-25)

Em suma, o jazz funciona para o narrador como o romance (e o


jazz) pode funcionar para o leitor: uma purificação, uma forma de ilusão que
desmascara a realidade.

REFERÊNCIAS
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contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 4. ed. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad.
Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Editora da Unesp : Hucitec, 1990.

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GIMBEL, Norman, LEGRAND, Michel. Watch what Happens (partitura vocal).
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Artigo recebido em 15 de julho de 2010.


Artigo aceito em 18 de setembro de 2010.

Cláudio José de Almeida Mello


Doutor em Letras pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho.. Professor Adjunto de Literatura Brasileira da UNICENTRO – Universidade
Estadual do Centro-Oeste.

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