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Org. Silvio Ruiz Paradiso

CONFISSÕES
Antologia Poética de
Thomás Aquino dos Reis

© Copyright 2021, Silvio Ruiz Paradiso (organizador).


1ª edição
ISBN: 9798746064202
Imprint: Independently published
Sumário
APRESENTAÇÃO..............................................................................5
THOMÁS AQUINO DOS REIS ..........................................................8
I. CONFISSÃO ................................................................................15
II. TRANCAS....................................................................................16
III. ESCURIDÃO ..............................................................................17
IV. FLORES ......................................................................................18
V. OSTENSÓRIO .............................................................................19
VI. O TOLO, O MORTO, O AMANTE E O POETA ........................20
VII. CALA-TE!..................................................................................22
VIII. SORRISO? ...............................................................................23
IX. LUTO ..........................................................................................24
X. POETISA......................................................................................25
XI. ÁGUAS ......................................................................................26
XII. CONSCIÊNCIA DE SI ..............................................................27
XIII. CAÇADOR DE DEUS ..............................................................28
XIV. AVANTE ..................................................................................29
XV. ÁUREA .....................................................................................30
XVI. MORTÓRIO.............................................................................32
XVII. COMENDAS FÚNEBRES........................................................33
XVIII. GENEALOGIAS ....................................................................34
XIX. CARTAS DE AMOR ................................................................35
XX. IDA SEM VOLTA ......................................................................36
XXI. PELOS......................................................................................37
XXII. GRANDE HORA ....................................................................38
XXIII. RASCUNHO..........................................................................39
XXIV. EGÉRIA.................................................................................40
XXV. ECUMÊNICO .......................................................................41
XXVI. LIMBO ..................................................................................42
XXVII. ESPELHO .............................................................................43
XXVIII. LIRISMO .............................................................................44
XXIX. LUA CHEIA EM HAIKAI .......................................................46
XXX. ISABEL ...................................................................................47
XXXI. PÁTRIA .................................................................................48
XXXII. VIAGEM ..............................................................................49
XXXIII. NO FUNDO DO RIO ..........................................................51
ESPECTRO .......................................................................................53
SOBRE O ORGANIZADOR ............................................................55
POSFÁCIO......................................................................................57
APRESENTAÇÃO

"O tempo veste um traje diferente para cada papel


que desempenha em nosso pensamento".

O tempo veste um traje diferente para cada papel


que desempenha em nosso pensamento. A frase do físico
John Wheeler, de forma latente, acompanhou-me ao
longo da leitura dos poemas de Thomás Aquino dos Reis.
Acompanhou-me porque o nome deste poeta português,
de coração baiano - ouso dizer - reportou-me ao tempo
de outros poetas, a saber: o heterônimo de Pessoa,
Ricardo Reis; o italiano Tomás de Aquino, teólogo e
filósofo, cujas reflexões tiveram relevância para a
reintrodução da filosofia aristotélica no contexto medieval
e, ainda, o poeta árcade Tomaz Antônio Gonzaga. O
nome de fato me levou a pensar neles.
Todavia, ao conhecer os poemas de Thomás Aquino
dos Reis, foi para outro universo que fui conduzida.
Primeiro, surpreendi-me com o trabalho do
desassossegado pesquisador, Silvio Ruiz Paradiso, que
trouxe à luz a fortuna crítica voltada à produção do autor.
Para além de detalhes da vida, os quais descreveu Rute
Garcia, em Poetas Portugueses na Bahia (1968), Paradiso
permitiu conhecer o pensamento crítico voltado aos
poemas de Aquino dos Reis, por exemplo, as
considerações de Lima (2010) sobre o estilo conciso e
objetivo de suas composições.
De tal forma, quando iniciei a leitura primeira dos
poemas, meu olhar já estava orientado. No entanto, para
minha satisfatória surpresa, os textos me levaram para um
outro universo, o qual já mencionei, mas não descrevi, e mais, de investigar mais sobre este poeta que, não fosse o
agora sinto que preciso descrevê-lo, a fim de contar sobre trabalho do pesquisador, ficaria perdido no tempo.
este poeta ainda pouco conhecido.
De amor, todos os poetas falam, todos em geral Claudia Vanessa Bergamini
elegem uma musa, Aquino dos Reis também o faz, porém, Rio Branco, 20 de janeiro de 2021.
com uma dor tão latente que permite pensar que a dor
também seja nossa. A musa eleita é real, mas impalpável,
somente se pode senti-la de forma devastadora. A musa é,
pois, a Morte, que transita por todo o livro e está deitada
na cama, ‘no corpo estraçalhado, no cadáver da mulher’.
A saudade que ele expressa da mãe parece ser um
grito de socorro por ela ter partido e o deixado. O eu-lírico
se reveste de dor para falar do luto, da solidão e do desejo
de trancar-se. A morte precoce da esposa é divisor de
águas. Se a ela ele dispensa poemas de afeto e saudade,
é porque as palavras impressas na poesia merecem a
suavidade que a vida não lhe ofereceu. De tal modo, o
eu-lírico anseia pela escuridão do aposento para nela
poder se sentir mais próximo de sua Isabel. Vida e poesia
se mesclam? Eu poderia negar, caso não tivesse
conhecido a biografia de Aquino dos Reis, acreditando
que seus poemas fossem apenas simulacro da dor. Isso
não me foi possível, haja vista que a morte rodeia os
poemas, a dor toma o eu-lírico, a dúvida o sufoca e a
religião se faz presente. Sorrir é o ‘lacre falso da alegria’,
de uma vida sem muitos motivos para sorrir.
Fechei o livro com a sensação de ter conhecido o
poeta de um tempo passado que me colocou face a
face com dores do presente, afinal, o eu lírico se achegou
a mim, tocando-me a partir do convite que ele faz em um
dos seus poemas: ‘tateia e lê meus textos’. Assim o fiz. E
finalizei a leitura com vontade de ler mais, de desvendar
Áurea e Thomás se estabelecem em Salvador,
SOBRE O AUTOR:
capital baiana, precisamente num casarão na Avenida
THOMÁS AQUINO DOS REIS Sete, no Campo Grande. Em meados de fevereiro de
1937, a partir de contatos com o padre Manoel Ruiz
Era 28 de maio de 1926 e um golpe de estado Gonzales, Áurea consegue lecionar no Liceu Salesiano
liderado pelo general Gomes da Costa, em Braga, de Salvador, enquanto Thomás vai cumprindo as
desencadeou uma revolta sem precedentes, obrigações educacionais, na mesma escola. Sobre isso,
culminando com a queda da I República e iniciando o Pe. Gonzales cita o nome de ambos em carta
uma ditadura. Dona Áurea da Conceição Reis e Dom endereçada ao arcebispo da época, Dom Antônio de
Miguel Hurtado Reis, casal tradicional do Bonfim, Souza Oliveira: "[...] há ainda, na comissão preceptoral,
freguesia portuguesa do concelho da região do Porto, uma professora portuguesa e católica, de nome Áurea
mudavam-se às pressas da casa 2904, na Rua da da Concepção [sic] Reis, mãe de um dos alunos do
Misericórdia. A freguesia do Bonfim, conhecida pelas liceu, de nome Thomás Aquino, cujos dotes literários se
indústrias, era alvo direto dos militares, o que motivou evidenciaram no último concurso cultural [...]"
uma debandada de moradores – entre eles, a família (GONZALES, 1954, p.X).
Reis.
D. Aurea, grávida de cinco meses, 25 anos mais
nova do que o esposo, era professora no Liceu
Alexandre Herculano, enquanto Dom Miguel, um militar
afastado (GARCIA, 1968). O casal deixou a freguesia,
regressando apenas dois anos depois. Durante o breve
“exílio”, no município de São João da Madeira, em 16
de setembro do mesmo ano, no hospital distrital, Dona
Áurea dá à luz o único filho do casal, Thomás Aquino
dos Reis.
Em 1936, pouco tempo depois da primeira
comunhão de Thomás, Dom Miguel morre por isquemia,
o que leva Dona Áurea e Thomás, com pouco mais de
Thomás Aquino dos Reis em jantar oferecido em sua homenagem
10 anos de idade, a partirem para o Brasil, em dezembro pela Congregação dos irmãos da Misericórdia (1995). Fonte:
de 1936, no navio Porto Castelo. A viúva, ainda Arquivo familiar.
enlutada, vende as posses e jóias, antevendo iminente
guerra na Europa.
O concurso cultural a que Padre Gonzales se casaram no ano seguinte, em 1948, na Igreja de Santo
refere foi o "III Concurso de poesia do Liceu Salesiano de António da Barra. Ele, com 22 anos e ela, com 19.
Salvador", em que Thomás Aquino dos Reis, com apenas Em 1950, aos 24 anos, formou-se médico,
15 anos, ganha o primeiro lugar entre os alunos do tornando-se, anos depois, psiquiatra, exercendo a
secundário. Abaixo, o poema vencedor intitulado profissão na Santa Casa de Misericórdia. Paralelamente,
“Egéria”, a partir da reprodução original: escrevia poemas e contos, muitos dos quais
desapareceram após a sua morte.
A presença da religião é constante em sua
poética, ainda que de forma crítica, contrastando em
muito com sua vida particular. Muito católico, Thomás
Aquino dos Reis era devoto de S. Antônio e S. Lourenço,
santos cujas imagens e medalhas sempre estavam
presentes entre os cômodos da residência da família,
como atesta a escritora Rute Garcia, em Poetas
Portugueses na Bahia, v.1 (1968):

Thomás Aquino dos Reis tinha uma biblioteca


particular invejável. Na antessala, sobre o
grosso umbral de pedra sabão, havia duas
imagens católicas. Do lado esquerdo Santo
Antônio e do lado direito São Lourenço, seus
dois santos de devoção. Ainda que vivesse
Fonte: Reprodução/o organizador. há muitos anos em Salvador, evitava desviar-
se da fé católica em detrimento das religiões
negras, muito praticadas ali. Tinha, no
Já na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 21 máximo, um fetiche pequeno, em forma de
anos, conheceu a esposa, Isabel Andrade, em evento sereia, a Iemanjá dos africanos, pendurada
realizado pela universidade. Isabel era estudante de ao lado da porta, abaixo das duas figuras
católicas (GARCIA, 1968, p.27).
Serviço Social, filha de Luís Felipe de Andrade,
engenheiro civil, e Dona Augustina dos Santos.
Aliás, era a biblioteca particular o cômodo de
Incentivada pelo esposo, inicia-se também a vida
inspiração do autor, considerado por ele o mais
literária, a partir de poemetos, compilados na antologia
importante da casa, como ele mesmo revela em
post-mortem Flores Brancas (1978). Thomás e Isabel se
entrevista ao O Diário Bahiano em 18 de maio de 1968:
É ali [na Biblioteca] que permaneço grande A poética de Thomás Aquino dos Reis é de
parte do dia, com meus quatro verbos-vícios: linguagem simples, concisa e objetiva. O uso
ler, escrever, beber e fumar. Gosto de ficar do verso livre permite que os sentimentos
sentado lendo Poe, Shelley, Pessoa, Espanca, impregnados em sua estética autoral,
Augusto dos Anjos, Quental, olhando para a caminhem livremente pelos poemas. Há
Remington [a máquina de escrever], ora com constante apelo a uma semântica e léxico
gim, sabe, eu adoro gim...ora com esse meu negativos, tétricos e fúnebres, quase sempre
cachimbo, sempre esperando a chegada de traduzindo o modo de seu eu-lírico enxergar o
alguma inspiração (O DIÁRIO BAHIANO, 1968, mundo: pessimista e insubmisso. [...] Há casos
p.4). de poemas com conteúdo sexual e erótico
[...]. Machismo e patriarcalismo enraizados
Foi na década de 1970 que as tragédias afloram inconscientemente de seus poemas.
[...] Quanto aos microcontos conhecidos,
chegaram com tudo na vida do poeta. Sua mãe, Dona seguem a mesma linha estética da produção
Áurea, morreu em agosto de 1970, vítima de poética, com exceção da presença de uma
insuficiência respiratória. Mas foi um ano depois, que a fina camada de ironia [...].
maior de todas as tragédias abateu a vida de Thomás
Aquino dos Reis: sua esposa Isabel, com apenas 42 Ainda há inúmeros textos perdidos do autor luso-
anos, morreu em casa, dormindo, devido a um baiano, bem como muitas lacunas sobre sua vida. De
rompimento de aneurisma. Pouco tempo depois, o antepassados cristãos-novos, curiosidade pelo
poeta abandona a profissão médica, devido ao ocultismo, e até mesmo relações homoafetivas
aprofundamento da depressão e luto que jamais foi (GARCIA, 1968), na vida e obra de Thomás Aquino dos
superado. Reis ainda há muito o que se descortinar.
A principal obra poética de Reis foi Confissões Thomás Aquino dos Reis não teve filhos e, em seus
(1981/Reeditada em 2021), uma antologia com 30 últimos anos, marcados por uma vida extremamente
poemas (escritos ao longo da vida), marcados pelo antissocial, isola-se em sua casa, em Salvador. O poeta
pessimismo, melancolia e recorrentes imagens da português morreu aos 71 anos de idade, ao cometer
esposa falecida e da mãe. Na reedição, de 2021, foram suicídio por ingestão de rodenticida, na noite de 1º de
acrescidos três poemas (n. XXIV, XXXI e XXXIII) novembro de 1997.
encontrados a partir de pesquisas de acervos pessoais e
literário. Além da poesia, escreveu micro-contos, sendo
apenas dois conhecidos: “O Espectro” (1973) e “A Referências
Carta” (1986). Sobre sua obra, a professora e crítica
literária, Dra. Rosa de Lima (2010, pp.12-13) pontua:
DIÁRIO DA BAHIA. Entrevista com o poeta Thomás Aquino dos
Reis. In: O DIÁRIO BAHIANO. Jornal impresso, n. XXI, Salvador: I. CONFISSÃO
Bahia. 1968. p.4.
Eu confesso
GARCIA, Rute. Poetas Portugueses na Bahia, v.1. Factum a Deus Todo-Poderoso e aos meus irmãos, que pequei.
Preterita, 2010.
Pequei ao acreditar no Pecado,
GONZALES, Pe. Manuel Ruiz. Ofício Eclesiástico à Dom Antônio em bispos estúpidos e obesos,
de Souza Oliveira. Arquidiocese de Salvador: Bahia, 1954. párocos efeminados e obscenos
e reverendos com capangas abarrotadas de vinténs.
LIMA, Rosa de. Os poetas portugueses da diáspora In:LIMA,
Rosa de. Tópicos Lusófonos da Crítica Literária: PETA: Pequei ao acreditar na Graça,
Portugal/Brasil, 2010. pequei ao acreditar na Misericórdia
de uma falsa irmandade de gente vil e mendaz.
Eu confesso
que um dia amei o céu
por medo de ser lançado ao Inferno.
Mas não foi minha culpa.
Minha máxima culpa.
Foi culpa do Deus Vaidoso e Tirano
que testemunhou minhas juras matrimoniais
e, em um ato sádico-sacral,
deixou-me órfão de amor.
Eu confesso
a Deus, ainda, Todo-Poderoso,
que Ele, ao me criar, foi o Grande Pecador.
II. TRANCAS III. ESCURIDÃO

Se eu pudesse Percebo-me a vagar pela casa,


trancaria todas as minhas portas e janelas, cômodo por cômodo
as portas que murmuram, assoprando as centenas de velas,
as janelas que choram. os milheiros candeeiros,
Se eu pudesse as muitas lamparinas.
me trancaria, a fim de ninguém cruzar os meus Tudo é noite.
batentes. Tudo é breu.
Ninguém entraria, ninguém sairia. Tudo é treva.
Se eu pudesse Umbra.
trancaria as próprias trancas
e teria a certeza de estar na mais absoluta comoção, O meu aposento é congênere da Morte
aquela que se veste em luto e pranto. Na escuridão fico mais próximo de tua alma, Isabel.
Tranca-me, ó solidão.
IV. FLORES V. OSTENSÓRIO

Flores não devem ser dadas Comove-me a fé alheia,


às mocinhas apaixonadas o crer no inconcebível,
ou à noiva relutante. confiar no que não se vê
e admitir o que pode não existir.
Flores têm cheiro de morte, Por que ao olharem para a reluzente custódia
de egoísmo e de má-sorte, veem um Deus, e eu vejo o nada, o vazio?
de suborno delirante. Deus aparece a todos
ou escolhe os Seus benditos?
Como pode alguém amar Quem crê, torna-se escravo da fé?
ao cortar a flor do roseiral Quem vê, torna-se escravo do credo?
em nome de passageira paixão? Bendito sou eu, que no ostensório não vejo nada!
Como pode alguém amar
ofertando algo cheio de espinho
pronto à degradação?

Flores são homenagens ao Ceifador.


Boas para apaziguarem infelizes ancestrais
em tumbas, jazigos, campas sepulcrais.
O Poeta é o Tolo que enlouqueceu.
VI. O TOLO, O MORTO, O AMANTE E O
É o Morto que esqueceu.
POETA É o Amante que adoeceu.

O Tolo
sonha os desejos,
clama verdades,
vive impossibilidades.

O Morto
clama os desejos,
vive verdades,
sonha impossibilidades.

O Amante
vive desejos,
sonha verdades,
clama impossibilidades.

O Poeta
escreve o Viver,
escreve o Sonhar,
escreve o Clamor.

Viver
Sonhar
Clamar

Desejos
Verdades
Impossibilidades
VII. CALA-TE! VIII. SORRISO?

Se não for somar, cala-te! O sorriso é quase sempre


Use teu dedal dourado e a fina agulha prateada, o lacre mais falso da alegria,
acasala-lhes uma linha preta o adorno mais barato da felicidade.
e sutura os lábios, cerzindo tuas palavras.
Se não prestas a ser boa conselheira, Os dentes deveriam se desalinhar do sorriso
sê boa bordadeira da própria boca. e entrar como colunas semiovais
Cala-te! no pescoço dos mentirosos.
IX. LUTO X. POETISA

O ventre é o nosso primeiro caixão (Para A.V)


e o nascer, o levantar de sua tampa.
Ao ganharmos o mundo, na luz do parto, Ave, minha propícia poetisa
o relógio dispara, em regressiva contagem. que no mês do luto
Viver é morrer constantemente. foi cuspida de um ventre
A cada instante, na poeira do nordeste brasileiro,
a cada suspiro. faço-me teu guia aos rios de Caronte,
Soluço, Deleite. cheios de dor e tristeza,
Choro, Riso. em uma sinergia de mortificações d'almas
Gozo e cochilo. e da augusta vontade de viver na escuridão.
Morremos para os outros, Não a umbra dos mortais, mas a escureza dos poetas.
morremos para nós. Teus dissabores líricos são unguentos para o vazio meu
Viver é morrer dolorosamente numa parceria de contrições e poesias.
pela dor da traição, Ave, minha propícia poetisa,
pela dor da rejeição. fausta mestra
Viver é morrer vagarosamente aeronauta
sem um motivo para seguir. Ave.
Viver é se enlutar diariamente
à espera do derradeiro retorno
a um ventre de madeira.
XI. ÁGUAS XII. CONSCIÊNCIA DE SI

As águas que curam,: Consciência de si


a que desce quente da ducha, Custa dolorido, caro soldo,
a que ferventa o chá, pois desvela lídima verdade
a que despenca da cachoeira, que, afiada como punhal,
a que caminha pelo rio, perfura a alma pelas costas
a que dança no mar, que, um dia, foi motivo dos abraços mil.
a que escorre dos olhos, Consciência de si
a que brota dos poros numa noite de amor. descerra os olhos,
liberta-nos da cegueira.
Mas nos faz pária neste mundo
de mentiras teatrais.
Consciência de si
é uma escolha da razão
que nos dá cadeira cativa
ou no retiro forçado
ou em perfídia reunião.
XIII. CAÇADOR DE DEUS XIV. AVANTE

ERA um caçador de Deus, (para R.M)


queria saber onde Ele estava. Avante!
Batia em todas as portas Piava na alvorada a sentinela dos pampas
tentando encontrá-Lo. celebrando o nascer do novo dia.
Meu prazo?
Era a vida. Avante!
Cantava a borrasca ao dedilhar os galhos da
SOU um caçador de Deus. pitangueira ,
Quero saber onde Ele está. sob o véu de nova geada.
Bato em todas as portas.
Tento ainda encontrá-Lo. Avante!
Meu prazo? Escrevia a poetisa, com a pena da garça alva,
A Eternidade. que, um dia, voou nas planícies do Cruzeiro do Sul.

Agora como espectro Avante!


vejo que tudo é em vão, Avante!
que o mundo dos mortos Avante!
tal qual o dos viventes
é pura farsa e ilusão.
Mas, Dona Áurea, sem querer
XV. ÁUREA
uma linha descuidou
ponta reta, toda à mostra
(Para Áurea da Conceição Reis)
para o norte apontou.
Aquela falha, da cadavérica figura,
Na poltrona velha, da silente saleta,
atenção chamou de imediato.
grande batalha se configurava,
O Ceifador sentou ao lado,
sem flâmulas alçadas, sem brasões,
puxava o fio à prova.
sem soldados, sem canhões.
A luta iniciava em sorte
Reino versus Reino guerra travava.
com a agulha de minha Mãe
De um lado, o da vida,
e a foice da velha Morte.
minha Mãe, já anciã,
A senhorinha apressava-se em o bordado terminar.
este reino comandava.
O Thânatos, mais rápido, foi
De outro, o da morte,
puxando a ponta a desmanchar.
o Ceifador, a Carta XIII,
Uma tentava o coser.
a Caveira afamada.
A outra, descosturá-lo.
Dona Áurea descansava,
Mas, só uma ganhou a guerra.
vestido creme, de tema frugal
Quando a linha toda esticou,
sobre o colo, seu bordado
o desenho de minha santa Mãe
fronha, lenço, toalha
no arco do ar, lentamente, desmanchou.
linha, agulha e um bornal.
Os aviamentos da costura
Na cadeira ao fim da sala,
no chão gelado despencaram.
de capuz preto e gadanha,
O tempo de Dona Áurea
Dona Morte balançava
foi, enfim, finalizado.
com valisa recheada
Era a Morte agora que sentava,
de tesoura e navalha
na poltrona se aninhava.
toda lã e linha que via,
Começou a costurar um vestido de presente
ofegante, desfiava.
para a chegada de minha Mãezinha
A senhora minha mãe
que no Hades jaz presente.
toda em paz, com zelo, só bordava,
atenção dava à bainha
que com fita arrematava.
XVI. MORTÓRIO XVII. COMENDAS FÚNEBRES

O meu velório é um recital de falsidade Velório inóspito de combatente


um covil de gente hipócrita, que ainda finge amizade. murmurinhos aos cantos. Patentes
O meu caixote de madeira histórias de guerras mal contadas,
que abraça meu eu-defunto desfile de barretas de praças,
é mais sincero que essa gente apática broche enferrujado,
de um luto vagabundo, fitas carcomidas pelo tempo.
toda corja cerimonial, O General agora frio
abutres de minha saudade. era o dobro encorpado
Todos corvos de minhas memórias. no caixão vagabundo de pinho,
Que se fodam! Gente esnobe. oitenta quilos de Oficial pesado,
O único choro sincero deste dissimulado museu dois quilos de comendas e medalhas
é o da vela amarelada restando peso em remorso, culpa e pecado.
Essa, que nunca me conheceu.
XVIII. GENEALOGIAS XIX. CARTAS DE AMOR

Para que procuras meus antepassados? Escrevo sob a luz de um pequeno candeeiro,
Por que reviras minha história? luz fraca, amarela e melancólica
Não te metas a criar uma árvore com branca pena, ainda com a gotejada de sangue
de família, brasão e heráldica. da garça real.
Deixe-me facilitar teu trabalho: Escrevo sobre nossos dias de paixão,
descendo da desgraça de Adão, das vezes que fomos felizes e
sou filho do dilúvio dos encontros memoráveis.
e do bezerro de Arão. No tinteiro, mergulho a ponta da pluma para registrar a
nossa história de amor.
O pequeno lume sobre a verdade então me mostra
o vazio, o hiato,
sem letra, sem verbo,
papel branco, virgem, limpo e triste.
Há anos a folha é morta
XX. IDA SEM VOLTA XXI. PELOS

As malas que levei ao além-túmulo (Para T.S.O)


tinham de tudo:
Lembrança, Medo e Saudade. Meu peito, como um livro em braile,
As malas que levei ao além-túmulo desafia tua língua a ser dedos,
foram etiquetadas pela Morte, a tocar, acariciar e me arranhar.
despachadas no desalento d’Alma. Tateia e lê meus textos
Alma soturna e infeliz feitos de pele, feitos de pelos.
por você ter partido antes de mim.
As malas que levei ao além-túmulo,
tingidas de sangue, ornadas em linfa,
pintadas com violência,
brocadas por pincéis de lâmina
que pincelavam meus pulsos retalhados.
As malas que levei ao além-túmulo
chegaram junto a mim no Purgatorium
e, atormentado por não te encontrar,
percebi que, com o meu rompante ato
imprudente, desejo te acompanhar.
As malas que levei ao além-túmulo
pesaram nas movediças areias do Sheol.
Eu afundei em minha própria viagem desgraçada.
Agora, sem roteiro e sem retorno.
Você, nas praias do firmamento em Piedade
e Eu, nos mangues da Culpa...
Na imortalidade.
XXII. GRANDE HORA XXIII. RASCUNHO

Nesta noite em cama nova Sou a Mãe de duas filhas.


tua nudez me convida, Maternidade, que pavor!
sedas, cordas, nós, Uma se chama Loucura e a outra se chama Amor.
uivos, flores, fantasia. Deram-me neto, sem título, sem nobreza.
Apogeu da grande hora Criança magra, esguia. Ciúmes era seu nome.
o tilintar do sino avisa Não valeu nem ao menos, a poesia de antemão.
que a língua pendular Achei que teria uma neta. Me enganei em velha idade..
marca o tempo da visita. Sonhava com uma bela menina, de nome Felicidade.
Agora avó desacreditada,
A seiva que verte da boca, cada epístola desta casa, cada foto eu rasgava.
Mapeando teu pequeno corpo O testamento rascunhado, todo ele, picotei.
numa cartografia do deleite e de amor, Essa família monstruosa, com dor, eu rejeitei.
revela que o gozo...enfim chegou. Esqueçam-me, decalquem-me da memória.
Me enganaram, que eu teria outra história.
Que decepção!
Sou a Mãe de duas filhas
Frutos de uma traição.
XXIV. EGÉRIA XXV. ECUMÊNICO

Sitiada em uma ilha no meu peito, As chamas da pira rezavam.


a jovem Egéria põe-se a chorar. Era a Inquisição.
Pergunto: Por que choras em teu leito? Duas peças incandescentes lá brilhavam,
Choro para que teu poema saia a navegar. me chamaram a atenção

Lágrima em Lágrima inunda minh’alma Um crucifixo de ferro soldado


que dos poros brota em transpiração. de famoso artesão.
Versos livres morrem em água calma Uma estrela de Davi, logo ao lado,
e, em mar bravio, viram inspiração. de um tal de Salomão.

Em meio a ossos encarvoados,


decidem se abraçar
do encontro inesperado,
coriscos a voar.

Fagulhas e Lampejos. Enfim, a combustão.


Era o amor herege, entre um hebreu e um cristão.
XXVI. LIMBO XXVII. ESPELHO

No limbo nada se resolve, O espelho


nada acontece. prova extrema coragem,
Enquanto nada existe, atesta hipocrisia,
apenas o nada aparece, pondera apreciação,
diante do que antes poderia ser tudo. confirma preconceitos.
Entre lá e cá, existe o limbo, E no apreciar do corpo nu,
o mundo das coisas vagas, as curvas, as doenças e as marcas da paixão
o mundo do nunca, julgam a si mesmo,
o mundo do perdido, punindo-nos em contrição.
o mundo do nada. Na fina camada do tempo
que nossa cópia descortina
púbis, cicatrizes, rugas, estrias
no reflexo desse mundo Outro
nos questiona: o que é real?
Senão o espelho
que quando vilipendiado
em violento borrasco de um soco
mil cacos do vidro prateado
mostra a verdade sobre nós.
Somos estilhaços de mentira
De ilusão e falsa estima.
XXVIII. LIRISMO

O Lirismo...
Dizem que somente os verdadeiros poetas são dignos
dele.
Mas o que é o lirismo?
Convenção humana,
invenção de retalhos filosóficos,
anáforas, métricas, rimas,
antíteses, elipses, sonoridade.
Que tolice! Que bobagem!
Lirismo na verdade
é ardor. É paixão.
Entusiasmo e emoção.
É ódio, descrença,
o choro do bebê,
a blasfêmia contra Deus,
a oração aos santos mártires,
vociferar uma traição.
Tudo é poesia.
Quem disse que não?
O lirismo é sentimento
e sentimento é humano;
É do velho, da criança
da professora, do aluno
da puta, do santo.
O Lirismo
Dizem que somente os verdadeiros humanos são dignos
dele.
XXIX. LUA CHEIA EM HAIKAI XXX. ISABEL

Uivo de macho apaixonado Isabel, Elisheba.


Deus é meu juramento.
Sexta-Feira, Meia-noite, Lua cheia Por onde anda a mulher que ainda amo?
Na vigília da sepultura, em quietude e oração,
Gemidos de lobos depravados sigo pelos tempos, em meridianos e paralelos
esperando tua volta, esperando o reencontro.
Onde estás, que não te escuto?
Não vejo a tua silhueta, tampouco a tua sombra!
Não sinto teu cheiro de erva-doce.
Com tua imagem, não consigo mais sonhar.
Tua presença se resume a fragmentos da memória,
a rastros de lembranças de um percurso tão feliz.
Tua imagem eternizada no oratório do meu peito,
Oferendas do meu amor: círios, flores, incensos,
novenas, turíbulos e sinetas.
Minha mente já cansada, de idade avançada,
obliterando a cada passo
numa vida baseada no deslembrar,
ao leitor aconselha com seriedade
cada segundo com quem amamos em vida
vale mais que o perpétuo tempo da saudade.
Meu tempo é agora, Isabel.
E tu és meu juramento.
XXXI. PÁTRIA
XXXII. VIAGEM
Minha pátria não é esta,
de fronteiras e freguesias;
Minha pátria é a ânsia, E respirei.
o silêncio, o medo e a vergonha. E parti.
Não é o país de doutos literatos, Lutei em vigília, mas me entreguei ao exício.
nem de venerados colonizadores. E de repente, quando mal percebi,
Minha pátria é gleba de embuste, já estava fora do meu corpo,
país déspota, em pleno astral, no mundo ancestral.
comunidade de engodo, E neste sonho neoplatônico,
de derrota e ceptismo, meu corpo etéreo voejava pela vastidão,
terra de logro. galgando estrelas e planetas, orbes outras,
O meu berço é uma fraude, em uma visão prodigiosa de um Cosmo só meu.
da língua de erro crasso, Minh'alma pela primeira vez, adentrava a escuridão sem
da ausência de uma fé. medo,
de bandeira deteriorada, num universo salpicado de luzeiros,
de hino de letra magoada. faroletes de um caminho imortal.
Minha pátria não tem rei, Nesta viagem, em que atravessei as Plêiades,
nem governo, nem lei. mergulhei em planetas habitados,
É pátria de um demônio cruzei os quatro mundos.
usurpador, sem mandato. Coesxistindo no ontem, no hoje e no amanhã.
Nação sem alma Perdia-me no tempo. Perdia-me em quem eu era.
Minha pátria é meu vazio, Amálgama de corpos celestes.
Minha pátria é um hiato. E em um rompante, caí.
Caí, como os anjos rebeldes,
ruí como um cometa.
E no colapso da queda, meus sentidos se
desabrocharam:
senti máscaras africanas sobre minha fronte,
contemplei cada um dos arcanos do tarô,
ouvi sinetas tibetanas, tocando em contínuo tilintar.
XXXIII. NO FUNDO DO RIO
De mim exalavam odores de sândalo e mirra,
enquanto minha boca sentia a lembrança do maná.
No fundo desse rio havia seixos dourados
Em êxtase, adormeci, acolhido pela aurora boreal,
e pequenas pérolas do rosário,
que me embalava como feto em ventre virgem, num
que minha amada mãe
total silêncio,
desfiava entre os dedos da fé.
de estreito, alvo e não estranho recinto.
O rio abrigava os cartuchos vazios
Eu era uma fagulha ovular.
da antiga espingarda de meu pai
Transmigrei.
e os enferrujados pregos que meu avô artesão,
E vi a luz, das frestas do aparelho genésico de minha
ora entortava em seu labor.
mãe,
E lá no rio, no fundo dessas águas familiares,
que se expandiu concomitantemente com meu choro.
afundavam as minhas memórias.
E respirei.
Turbilhões de vozes e rostos,
E regressei.
de promessas de felicidades
e segredos de (des)amores proibidos.
Águas que ensoparam os panos do meu parto,
me confirmaram no batismo,
lavaram a alva roupa de minha comunhão,
cozinharam as ceias de meus poucos natalícios
e banharam meu tenro corpo naquele funeral.
Este rio, cuja nascente é os olhos de Nzuzu, a Deusa de
África,
serpenteando os campos idílicos,
a desembocar no mar de Chipre,
é a única testemunha de minha história.
E é no fundo deste rio, que repousa minha pequenina
caveira
atormentada em angústias
desejosa em ser encontrada
e enfim, seguir em paz.
No fundo deste rio fiz minha morada
desde aquela pesca-emboscada,
ESPECTRO
na certeza que seria anjo,
(Miniconto, de 1973)
mas, por ser fruto de uma infidelidade
tornei-me silêncio,
Eram três da manhã. Os ponteiros em L do
relógio de cordas apresentavam o ápice da
desmemória
madrugada. Sozinha em casa, deitada na cama, suava
e
frio. Morosa, levantou-se. Sentiu que pisara em algo, mas
desencanto.
ignorou.
Acendeu a luz do banheiro. Estava descalça e
sonolenta, cambaleando rumo à cozinha. A penumbra
do ambiente permitiu identificar alguns poucos objetos.
Foi tateando até pegar um copo. Abriu a torneira e o
encheu.
O assoalho do cômodo ao lado estalava.
Parecia que alguém lhe fazia companhia. Virou-se e viu
o espectro, todo deformado, sem cabelos e sem os
olhos.
De sobressalto, o terror invadiu cada centímetro
do seu corpo, que imobilizado, paralisado em agonia,
permitiu ao copo cair, estraçalhando-se.
O coração não aguentou tal horrenda visão.
No chão, centenas de cacos.
Na cama, o cadáver da mulher, morta em
estado de pânico. Nunca tinha despertado.
SOBRE O ORGANIZADOR

Silvio Ruiz Paradiso é natural da cidade de São


Paulo, SP, nascido em novembro de 1981, e, como bom
escorpiano, sempre teve envolvimento com questões
artísticas, como desenho e literatura.
Formado em Letras anglo-portuguesas, é professor
universitário desde 2010. Fez pós-doutoramento na
Universidade de São Paulo, abordando como corpus a
Literatura Africana, tema este que percorreu seu
mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Lecionou no Centro Universitário de
Maringá e na Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia, sendo líder do grupo de Pesquisa sobre Literatura
e Cultura Africana. Desde 2013 escreveu 12 livros
didáticos para as áreas de Letras/Literatura.
No campo da crítica literária, em 2014 lançou o
livro Letras Diaspóricas: tessituras literárias entre Brasil e
África (Virtual Books), em coautoria com o professor Dr.
Sérgio Paulo Adolfo (UEL).
Em 2019, lançou Religião e Religiosidade nas
Literaturas Africanas: um olhar em Achebe e Mia Couto
(ed. Becalete), seu segundo livro de crítica literária. Em
2020, foi coautor, com Bruno Monteiro Gonçalves, do
livro Judaísmo e a Literatura Fantástica: mitos semitas
através dos contos de Ana Shuá.
Como autor literário, em 2016, lançou sua primeira
coletânea de contos – Rua das Mercês e outros contos
(2016, CEOS editora), sendo diplomado pela Academia
de Letras do Brasil/Suíça ALBS, recebendo a Medalha de
Mérito Litero-Cultural Euclides da Cunha (grau
acadêmico). Em 2016, recebeu a medalha de
POSFÁCIO
“Qualidade Literária” da Câmara Brasileira de Jovens
Escritores, pelo conto “Feliz Dia dos Pais”, na coletânea Silêncio
Contos Fantásticos (2016). No mesmo ano, recebeu a Secreto
segunda medalha, pelo conto “O Jogo do Bicho”, Sagrado …
de Thomás Aquino dos Reis
publicado na coletânea Contos do Vigário (2016), da
CBJE. Em 2018, reeditou “Rua das Mercês e Outros
Contos”, em uma segunda edição, com quatro novos Morte, perda, dor.
contos (Amazon). Seu último trabalho foi o livro infantil Mulher, mãe, mister.
"Davi e o Judaísmo" (2021.Becalete) escrito e ilustrado Fé, vida, amor.
por ele. Tais são os temas que saltam aos olhos dos leitores
de Thomás Aquino dos Reis reunidos nesta antologia de
Silvio Ruiz Paradiso. A partir do estudo crítico que
antecede todos os poemas e o miniconto final,
percebe-se que biografia e obra poética parecem
seguirem entrelaças – mesmo que se observem hiatos
que deixam o leitor à deriva da imaginação a respeito
do motivo, inspiração ou fundamento de tal verso.
Entretanto, sugiro ao menos três caminhos de leituras
críticas do texto: o sexismo temático, a objetificação da
memória e a poética do oculto.
A biografia do autor parece não deixar dúvidas
de sua heterossexualidade e do número de mulheres
presentes em sua trajetória – em particular as perdas
femininas desta vida masculina. Aos nos voltarmos para
os poemas, a sexualização do corpo feminino com tons
de erotismo, bem como o patriarcalismo enraizado de
cenas do cotidiano são nítidas em muitas passagens. As
reminiscências da esposa e da mãe são espelho da
sociedade machista da época em que o autor viveu –
ou melhor o “eu-lírico” vivencia, vivenciou.
O gênero das palavras e a construção de campo
semântico sexualizado contribuem para isso, mesmo Ave, minha propícia poetisa
que haja ambiguidade no enunciado: [...]
faço-me teu guia aos rios de Caronte,
Se não for somar, cala-te! [...]
Use teu dedal dourado e a fina agulha prateada, Teus dissabores líricos são unguentos para o vazio meu
acasala-lhes uma linha preta
e sutura os lábios, cerzindo tuas palavras. Enquanto em alguns momentos o poeta é o
Se não prestas a ser boa conselheira, escritor (dentre outros ofícios da vida), em outro
sê boa bordadeira da própria boca. momento a poetiza só existe em relação a alguém, ao
Cala-te! homem que sofre por ela - mesmo sendo fausta
maestra. Essa relação de sexismo temático é ampliada
Interessante notar que até mesmo a questão de em muitos momentos pelo uso de pronomes possessivos
ser poeta e poetiza são tratados de forma diferentes na que, de certo modo, manifestam o lirismo e, de outra
obra de Reis nos poemas O Tolo, O Morto e o Amante, maneira, exacerbam o feminino como posse do
Lirismo e Poetiza: masculino. Convém ainda mencionar que esse sexismo
temático com vias ao machismo e ao patriarcalismo
O Poeta naturalizados da época contextual do eu-lírico são
escreve o Viver, igualmente percebidos nas leituras que podem ser feitas
escreve o Sonhar, das poucas masculinidades evocadas em sua poesia:
escreve o Clamor.
[...] Eu confesso
O Poeta é o Tolo que enlouqueceu. a Deus Todo-Poderoso e aos meus irmãos, que pequei.
É o Morto que esqueceu. Pequei ao acreditar no Pecado,
É o Amante que adoeceu. em bispos estúpidos e obesos,
párocos efeminados e obscenos
e reverendos com capangas abarrotadas de vinténs.
O Lirismo...
Dizem que somente os verdadeiros poetas são dignos A padronização de uma masculinidade aceita
dele. socialmente é até mesmo evocada no poema
“homoerótico” do autor, intitulado Ecumênico. Salomão
e artesão parecem oferecer aos leitores um imaginário
de masculinidade viril heterossexual da forma mais Bendito sou eu, que no ostensório não vejo nada!
intensa possível. Tal evocação é acentuada pelo uso da [...]
rima em -ão que em português remete ao aumentativo
das formas gramaticais substantivas:
As malas que levei ao além-túmulo
Um crucifixo de ferro soldado tinham de tudo:
de famoso artesão. Lembrança, Medo e Saudade.
Uma estrela de Davi, logo ao lado, As malas que levei ao além-túmulo
de um tal de Salomão. foram etiquetadas pela Morte,
despachadas no desalento d’Alma.
[...] [...]

Fagulhas e Lampejos. Enfim, a combustão. Compreende-se que, a partir de objetos


Era o amor herege, entre um hebreu e um cristão. figurativos ou reais, uma certa ambiência, atmosfera,
Stimmung – como bem nos lembra o crítico de arte Hans
Ulrich Gumbrecht - ou afetação é criada nos poemas.
A memória do eu-lírico parece ser muito evocada Essa espécie de diegese em sua poesia é concebida
ou insinuada com um procedimento comportamental por dois procedimentos que os franceses nomeiam de
comum a todo ser humano: a objetificação da mot-valise (aglutinação) e enjambement
recordação. Ou seja, os objetos de memória são (encavalgamento). Ou seja, um nome de objeto
recorrentemente apresentados aos leitores em muitos desencadeia a continuação do poema em si com suas
dos poemas de Reis - ora de forma metafórica, ora de várias semânticas, bem como é ponto crucial de início e
forma conotativa: fim do pensamento do poeta – aqui considero como
mot-valise, numa tradução literal, palavra-bagagem.
Se eu pudesse Em consonância com esta “palavra-bagagem”, o
trancaria todas as minhas portas e janelas, enjambement parece auxiliar o poema nessa espécie
as portas que murmuram, de continuidade da frase, do pensamento, da ideia que
as janelas que choram. não cabe somente em uma linha, mas que precisa ser
[...] expressa mesmo que encavalada, dando, assim ritmo, a
aura fabricada verbalmente no poema.
Quem crê, torna-se escravo da fé? Considero que esta antologia do autor baiano
Quem vê, torna-se escravo do credo? apresenta sobremaneira o não-dito sendo dito – o que
intitulo como uma poética do ocult/o/amento. Parece- [eu, eu mesmo ou, o eu, eu-lírico?] SOU um caçador de
me que essa relação de ocultar, dissimular tem uma Deus.
extrema relação com o místico (ou o religioso), a solidão
(o estar só) e os afetos afetados (o amor físico e O não-direcionamento do enunciado a partir de
sentimental interrompido pela perda). Porém, para não frases declarativas também trazem à tona um certo
alongar muito, contento-me em apenas mencionar essa ocultamento do tipo Para quem são estas questões/
poética por meio dos alguns procedimentos textuais. afirmações/ negações?:
As frases declarativas afirmativas e negativas
geralmente são frases da certeza do relato, da O sorriso é quase sempre
asseveração. Todavia, Reis parece colocar em dúvida a o lacre mais falso da alegria,
certeza do eu-lírico ao ocultar o sujeito das frases: o adorno mais barato da felicidade.

ERA um caçador de Deus, Os dentes deveriam se desalinhar do sorriso


queria saber onde Ele estava. e entrar como colunas semiovais
Batia em todas as portas no pescoço dos mentirosos.
tentando encontrá-Lo.
Meu prazo? E, talvez, o uso do imperativo com o emprego do
Era a vida. ponto de exclamação seja o maior sinal de poética do
ocultamento. Nele há não-direcionamento certo de
SOU um caçador de Deus. enunciado e igualmente identificação leitor-eu-lírico:
Quero saber onde Ele está.
Bato em todas as portas. Se não for somar, cala-te
Tento ainda encontrá-Lo. -
Meu prazo? Avante!
A Eternidade. Piava na alvorada a sentinela dos pampas
celebrando o nascer do novo dia.
Tais procedimentos permitem ao leitor identificar- -
se com o eu-lírico e tomar para si o que ali está sendo Todos corvos de minhas memórias.
dito: Que se fodam! Gente esnobe.
-
[ele para mim ou para o eu-lírico?] ERA um caçadorde Sou a Mãe de duas filhas.
Deus, Maternidade, que pavor!
Ainda há muita matéria a ser dita, mas sem querer
exaurir as várias possibilidades de leitura desta antologia
de Thomás Aquino dos Reis, apenas fica o convite para
desvendar mais e mais o silêncio secreto sagrado dos
poemas deste autor que, ao meu ver, são igualmente
uivo de macho apaixonado.

Dennys Silva-Reis
Rio Branco, 20 de março de 2021
Proof

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