Você está na página 1de 514

COLECÇÃO

COMPENDIUM

Chiado Editora
chiadoeditora.com
Um livro vai para além de um objecto. É um encontro entre duas pessoas
através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a
Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação
de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe tudo
quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio
para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

chiadoeditora.com

© 2013, Ricardo Marques e Chiado Editora


E-mail: info@chiadoeditora.com

Título: Na teia do poema


Coordenação editorial: Marisa Mendes
Composição gráfica: Rita Costa – Departamento Gráfico
Capa: – Departamento Gráfico

Impressão e acabamento: Chiado Print


1.ª edição:

ISBN:
Depósito Legal n.º
RicaRDo maRques

Na Teia
Do Poema

Chiado Editora
PRÓLOGO AO LEITOR

TEIA

Estas letras são as aranhas inesgotáveis


Do sonho. Vejo-as tecerem a teia onde entro,
E me deixo apanhar pelas leis do verso. Como
Se entre mim e eles não estivessem as flores,
Com as suas pétalas seguras pelo frio
Que se soltou da primavera. Às vezes, queria
Deixar estas páginas, e entrar pela porta
Da vida; mas sei que continua fechada,
Atrás de mim, enquanto não chego ao fim
Do livro. Como se o fim não fosse o princípio,
E tudo recomeçasse, na teia do poema.

Todo o caminho começa com um passo ou, se


quisermos, neste caso, com um poema. A imagem da teia
de que este texto fala é não só uma boa metáfora para a
própria estruturação do poema enquanto coisa, mas um
excelente motivo para aquilo que aqui nos ocupa, a
análise da obra poética judiciana por meio das relações
intertextuais que ela tece. Desta forma, se podemos
entender o poema como uma coisa na acepção de
Heidegger, um objecto cuja percepção e características
dependem da inserção num dado momento cronológico

5
RICARDo MARQuES

e espacial, a verdade é que um poema, no seio da obra


poética de Nuno Júdice, não é tão somente essa abertura
no espaço e no tempo de que o filósofo alemão fala. o
poema é aqui uma estrutura de que Júdice é o arquitecto,
e onde a matéria empregue são “letras”, “aranhas ines-
gotáveis/do sonho”, um casa onde ele também “entra”,
como homem de letras do seu tempo, e onde tudo sempre
recomeça, “como se o fim não fosse o princípio” de um
novo poema.
Tenho como objectivo, tal como o título indica,
percorrer um caminho pela poesia de uma das vozes mais
originais e singulares da poesia portuguesa contem-
porânea. um caminho tumultuoso, nem sempre linear,
por vezes pantanoso e por vezes epifânico, como a
própria poesia do autor nos ensina sobre a vida e revela
ser. Por outro lado, e como qualquer caminho com as suas
dificuldades e tentações de atalho, apontaremos, sempre
que pertinentes, aqueles que não ousámos nem ousa-
remos trilhar.
Numa altura em que abundam teses de reflexão
conjunta sobre autores da nossa poesia mais recente e em
que um novo cânone de autores revelados na década de
70 começa a ser formado e estudado nas escolas, penso
serem pertinentes estudos mais aprofundados acerca do
contributo de cada um desses autores para a revitalização
da nossa tradição. Este trabalho que agora se publica
resultou de um estudo mais abrangente e completo sobre
um deles, Nuno Júdice, naquilo que foi a minha tese de
doutoramento, defendida no ano de 2010 na Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas. Com esta reformulação
do meu trabalho, pretendo assim que este se torne mais
acessível não só ao público estudante como a todos os
que gostam de poesia de uma forma geral.

6
NA TEIA Do PoEMA

Adentrando-me um pouco mais no que temos em


mãos, e como dizia, este trabalho tem como leitmotiv a
intertextualidade, uma vez que é um dos mecanismos que
encontram mais ampla aceitação neste autor. No entanto,
foi minha decisão retirar a este livro as partes que consi-
dero de maior teorização acerca do conceito, favorecendo
aquelas de maior contacto com o poema e a sua análise, o
que acabou numa restruturação mais ou menos profunda
da tese e que, a meu ver, em tudo facilita a leitura. A
ordenação original do capítulos foi igualmente modificada,
tendo dividido o livro em duas grandes áreas – diálogos
dentro e fora da literatura (entendendo, claro está, este
conceito, não só numa acepção lata do “universo literário”
como também dos escritores que o compõem e com os
quais Júdice dialoga). Como adenda, apresenta-se um dos
anexos da tese (a entrevista ao poeta). Por último, outra
decisão foi a de actualizar as bibliografias, tendo adicio-
nado tudo aquilo que Nuno Júdice publicou (apenas no que
toca à poesia) até ao fim de 2012, ano em que se celebra
40 anos de vida literária. o mesmo se aplica às traduções
da sua obra poética.
Sem mais delongas, passemos então à fruição
estética que este poeta nos propõe. Façamo-lo da melhor
forma – com um poema que poderia resumir aquilo que
Nuno Júdice faz com as palavras, um exemplo daquilo
que constitui, com toda a certeza, uma das obras poéticas
mais harmónicas e coerentes do nosso tempo, voz atenta
ao presente e eco de uma tradição:

7
RICARDo MARQuES

Trabalha agora na importação


e na exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias.
Podia ser um trabalhador
por conta própria,
um desses que preenche
cadernos de folha azul com
números
de deve e haver. De facto, o que
deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe
acontece quando se encosta
ao viro, no inverno, e chuva cai
do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol
e exportar as nuvens.
Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas,
de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um
escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que
passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu;
e fixa, na dureza da noite,
o bater das asas, o azul, a sábia
interrupção da morte.

8
1. INTRODUÇÃO
NUNO JÚDICE: “O MECANISMO
FRAGMENTÁRIO DA IDENTIDADE”

“[The] sense of identity provides the ability to experience one’s


self as something that has continuity and sameness, and to act
accordingly.”
Erik H. Erikson

“A poet is the most unpoetical of anything in existence,


because he has no identity – he is continually informing and filling
some other body”
John Keats

A identidade de um poeta, bem como de um


determinado movimento ou corrente literária, é sempre
de difícil, senão impossível, determinação. Etimologi-
camente, a palavra aponta para a continuidade e con-
sistência de características pessoais que Erikson, um dos
mais conceituados psicólogos da identidade do século
XX, refere na citação que pomos em epígrafe. No
entanto, e no caso particular que aqui temos, nenhuma
perspectiva sobre a identidade deste poeta poderia estar
completa sem uma reflexão crítica sobre o objecto que a
determina – a sua obra, ou o tal corpo de que Keats
igualmente fala. Nesta reflexão, temos evidentemente de
convocar conceitos limítrofes – a tradição e a genealogia,

9
RICARDo MARQuES

bem como a influência e a memória – que, problema-


tizados, ajudam, de uma forma mais coesa, a perceber
onde esta poesia se situa e o que a define.
uma identidade tem a ver com a inserção numa
tradição que a funda, seja por rejeição declarada, seja por
acolhimento deliberado. Esta atitude, por sua vez,
permite estabelecer uma genealogia de autores, facto a
que Nuno Júdice (NJ) não é alheio:

Se a lei da gravidade é o que puxa os corpos para o centro da


terra, o que é que nos puxa para o centro do poema? […] Essa força,
para mim, tem um nome: imagem. E aqui encontro o que talvez seja
a minha tradição: o “ut pictura poesis” da Arte Poética de Horácio,
a frase que não deixa de se repetir na minha cabeça e que me obriga
a nunca deixar que um poema caia no simples formalismo.1

Este testemunho é, quanto a nós, de grande impor-


tância na abordagem da poética judiciana. Em primeiro
lugar, o apostolado da imagem que o autor defende,
quando fala da sua própria poesia, reflecte-se na grande
maioria dos seus poemas. Estes combinam assim uma
ideia que vai ser posteriormente desenvolvida por palavras,
mas onde a primeira ocupa um lugar primordial. Por outro
lado, a formulação horaciana da “ut pictura poesis” a que
Júdice se junta vai influenciar muitos dos poemas onde a
imagem (a representação mental de uma realidade sensí-
vel) que descreve se encontra nas formas mais variadas,
desde outras obras de arte (e aqui podemos dizer este autor
em particular interessa muito a poesia ecfrástica)2 até às
coisas banais do quotidiano. Assim, e por imagem, quere-
mos aqui equivaler a apreensão, num poema, de uma
realidade sensível, ou a sua representação mental.
_________________________________________
1
Nuno Júdice, in “Apontamentos para uma tradição pouco
genealógica”, Românica – Revista de Literatura do Dept. de
Literaturas Românicas – FLUL, nº7, Lisboa, 1999, p. 251.
2
Sobre a ekphrasis, falaremos dela mais aprofundadamente
num outro ponto da nossa dissertação, quando pusermos em diálogo
as obras de arte plásticas e visuais e os poemas em que este autor as
invoca e convoca.

10
NA TEIA Do PoEMA

Em suma, penso que o seu primeiro livro de poesia


remete ab ovo para aquela que foi a sua produção poética
até aos nossos dias. Nele encontramos as referências a
outros artistas, expresso, por exemplo, na descrição da fase
final da vida de Maria Pleyel, pianista romântica, em
“Segundo poema sobre a morte”, passando pela descrição
ecfrástica de quadros, como o de Eugène Boudin em “Praia
de Tourgeville” ou o de Matisse em “Matisse (período
Fauve)”, assim como uma perspectiva metaliterária em
“os Corredores do Poema” (“E o poema é esta casa/
abandonada, o rosto belíssimo de imagens mortas”3) e em
excertos de quase todos os poemas4. Há, pois, um diálogo
intertextual muito acentuado que, gradualmente, se vai
impôr em toda a obra poética de Nuno Júdice. A referência
a elementos literários e artísticos exteriores torna-se uma
marca que é tanto uma justificação estilística como uma
forma de respiração na sua poesia.

Poderiamos igualmente dizer que a atmosfera


romântica (e até ultra-romântica) dos seus primeiros
livros está patente não só nos temas escolhidos para
glosar, como igualmente no estilo usado e nas referências
a que se alude. Várias são as variantes desta regra. A
recorrência do tema da morte5 – “o arquétipo da Morte”
______________________
3
Poesia Reunida, 2000, p. 86. Daqui em diante, designaremos
este volume por PR.
4
“A poesia é o teatro, diz-me uma voz interior. Representar-
-me/ em cada poema, montar-me uma personagem, uma acção, um
ambiente” (PR, 72), “o poema/é uma enumeração de lugares, uma
experiência do mito, a constantação/ do absoluto!” (PR,75) “ouvi
esta palavra: deus. Ela surge em relação recíproca/com o poema de
que eu próprio faço parte” (PR, 78), ”o poema transforma a
realidade. Ela é a fingida memória do poeta” (PR, 84), apenas para
citar alguns.
5
Remetemos para a tese de Egídia Marques Souto, “Morte e
Metamorfose na Poesia de Nuno Júdice” (Cf. bibliografia final) para
uma notável visão da sua poesia desta perspectiva. É de notar igual-

11
RICARDo MARQuES

(PR, p. 113), a temática amorosa, enfatizada por um estilo


apaixonado avassalador (“Subitamente surge, tem o teu
rosto”, PR, 188), o tema da noite e da solidão, com
contornos de ambiência gótica ( novamente um excelente
exemplo o “Segundo poema sobre a morte”, PR, 68),
bem como o “eu” romântico, a subjectividade através da
qual todas as coisas do mundo são percepcionadas, de
que o tempo, a sua passagem e a mudança é um natural
desenvolvimento. outro aspecto que se pode caracterizar
de herança romântica é o tom de muitos dos seus poemas,
que ficam a dever ao que se convencionou chamar
“Conversation Poem”, e que nasceu com “To a Nightin-
gale” de Samuel Coleridge6. Este tipo de composição
caracteriza-se pela informalidade com que se dirige a
uma dada audiência, num tom de conversação, e que tem
sempre uma intenção subreptícia séria, apesar dessa
mesma coloquialidade.
_______________________
mente que numa das entrevistas, em apêndice, o autor refere que
“Desde pequeno que tenho o fascínio pela morte” (Anexo III, p. VI),
talvez por ter vivido a infância próximo de um cemitério, e rodeado
de idosos (Cf. “Le langage poétique”, in Un chant dans l’épaisseur
du temps suivi de Méditation sur des ruines, Paris, Gallimard, 1996,
pp.7-14 [originalmente publicado in Les Cahiers de la Villa Gillet, nº1,
Lyon, Circé, Novembre 1994].
6
Também nos parece que este autor foi importante para outros
escritores da geração de Júdice, nomeadamente José Agostinho
Baptista, cujo lirismo romântico usa muitas vezes a metafóra do
“albatroz” de “The Rime of the Ancient Mariner”, para transmitir a
ideia paralela da inexorabilidade da morte e da transitoriedade da vida,
que se leva a cabo como uma tarefa. Veja-se, por exemplo, de um dos
últimos livros – «Fecho a porta, o rosto, as cortinas./ Deito-me de lado,
de frente, de costas para uma/ insónia de açucenas perdidas./ Ninguém
me diz onde moro,/ que porto é este, onde já não se despedem os que
se amavam./…/ Caminhei em vão./ Não encontrei o ouro, o albatroz,
a alquimia.// Deitei-me e adormeci/ de lado, de frente, de costas sobre
as feridas./ Disse adeus e desci as escadas do exílio, sem/ mais amor
na minha vida.» («Lisboa» in Quatro Luas, Lisboa, Assírio e Alvim,
2006, pp.21-24). Também podemos ver ecos deste “albatroz” na poesia
de Charles Baudelaire, que na segunda parte de Fleurs du Mal,
intitulada “Spleen et idéal”, tem precisamente um poema sobre
“L’albatros” (Cf. bibliografia final).

12
NA TEIA Do PoEMA

Do primeiro livro, sobressaem, três poemas, a nosso


ver, “Stephane Mallarmé”, “Hölderlin” e “o Movimento
da obsessão”. os três poemas em questão são simbólicos
de uma atitude ultra-romântica em que, pelo estilo
empregado e temáticas tratadas, Júdice se vai inicial-
mente filiar. Paralelamente, os dois primeiros são simbó-
licos de uma atitude face à poesia, que tanto um autor
como outro (Mallarmé e Hölderlin) vai adoptar.
A presença de Mallarmé confirma-se igualmente na
fortuna crítica que o ensaísta Júdice lhe devota, em
alguns livros sobre a transição da poética do século XIX-
-XX7. De Mallarmé, Júdice apodera-se do conceito de
imagem, já definido atrás, mas, por outro lado, é também
importante o conceito de musicalidade que a sua poesia
nunca deixou de ter, a procura da perfeição da palavra
poética no confronto entre som e sentido. Desta influên-
cia dá conta, por exemplo, Carlo Vittorio Cattaneo, ao
recensear o livro de 1981, Um voo de Igitur num copo de
dados8, sem, no entanto, diminuir a singularidade da obra
de Júdice, já então com uma década de produção:
Já no título deste livro, Nuno Júdice nos faculta uma chave
mallarmeana de leitura e, ao mesmo tempo, a sua contraversão […]
os nexos com Mallarmé, neste livro afirmados a partir do título, não
significam que haja sempre coincidência entre os dois poetas. Por
exemplo, não descobrimos no poeta português a obsessão
mallarmeana do não-ser e do silêncio; pelo contrário parece-me que
Nuno Júdice confirma mais uma vez a «obsessão» por um fluxo
contínuo de palavras que quebre o silêncio.

____________________________________________

7
Podemos referir como um dos melhores exemplos O Processo
Poético, Lisboa, Imprensa Nacional, 1992, onde há uma parte
inteiramente dedicada a este período e suas influências nas décadas
subsequentes (cf “A metáfora na poesia francesa de transição dos
séculos XIX e XX”, pp. 9-44).
8
Curiosamente, Nuno Júdice não inclui esta obra no cânone
que reúne em PR, 2000.

13
RICARDo MARQuES

Efectivamente, o primeiro livro tem um poema cujo


título é “Stephane Mallarmé”. o poema começa com uma
citação deste autor simbolista, que o coloca no início da
vida, aos 24 anos, quando publicou o seu primeiro poema
importante – “L’azur”9. o estilo, com sobejas perguntas
retóricas, reticências, algumas exclamações, com
temáticas e lugares soturnos, é caracteristicamente ultra-
-romântico:
Acabou um poema escrevendo: “Estou obcecado. o Azul! o Azul!
o Azul o Azul!”
A nativa agonia…a revolta inútil e perversa…fugir…Hoje,
dominado
por sentimentos contraditórios, com a grande consciência da minha
inutilidade,
hesitando perante todas as coisas, eu pergunto – quem me ouvirá?
Quem?
[…]
Num outono lamentoso
chegarei a esta conclusão – que me abandonaram a mim próprio…à
lucidez
dolorosa do espelho…à nostalgia múltipla das lágrimas…Por que
não
me ouvem? Para onde fugir na revolta inútil e perversa?

Resta-me um grande ódio das palavras. o nojo do poema, dos gestos


habituais da frase…e o não poder falar de cada palavra que o verso
invoca…e uma vontade de resistir…de ficar no poema como em
lugar nenhum…
[…]

Ele era um poeta da tristeza e da sombra, das flores vaporosas,


do azul das corolas…Tudo nele se ordenava para um fim alto e
secreto…
Depois de o lerem, tudo lhes parecia inocente e covarde…a precisão
extrema…

____________________________________________
9
Veja-se a tradução portuguesa recente de José Augusto
Seabra, bem como o seu elucidante prefácio. Cf. Poesias de Stephane
Mallarmé, Lisboa, Assírio e Alvim, 2005.

14
NA TEIA Do PoEMA

Este poema vai assim, ao partir de uma citação de


Mallarmé (“um poeta da tristeza e da sombra, das flores
vaporosas/do azul das corolas”), relacionar a obsessão
pelo cultivo do poema que acima se referiu (“a precisão
extrema”) com a obsessão da inevitibilidade da morte
(“Para onde fugir na revolta inútil e perversa?”), não só
por parte do simbolista como igualmente do autor
português. Parece haver aqui um confronto da volati-
bilidade da vida exterior, relacionada com uma escapa
impossível ao seu fim, por oposição à vida eterna que o
poema promete, que se relaciona com o seu aperfei-
çoamento obsessivo.
o azul, “cor uníssona”10, aqui mencionado, tem
também na obra de Júdice uma grande importância sendo
uma cor que se usa em primeiro lugar como metáfora
celeste e sobretudo sinedoquicamente tanto para definir
o céu, como para a qualidade de se ser infinito. Pensamos
que a importância que esta cor vai ter ao longo da sua
obra se relaciona sobretudo com este legado simbolista,
derivado em grande parte à influência de um dos seus
grandes nomes, Stéphane Mallarmé11. Esta sugestão é
reforçada pelo universo simbolista sugestivo dos seus

_______________________
10
Cf. Poema “A Árvore” (PR, 2000, p. 180).
11
Albert-Marie Schmidt defende que esta cor é uma metáfora
sobretudo apolínea em Mallarmé, o que acontece igualmente em
Nuno Júdice: “Respectant le vocabulaire mallarméen, on peut donc
dire que l’Azur évoque l’Être, dans la lumière solaire, les Fleurs,
avec une rapidité, une simplicité, un bonheur qui sont, pous le poète,
consterné par les lentes transes de as création nocturne, une raillerie,
un reproche. Inspiré par un désespoir de qualité nouvelle, Mallarmé
déplore la hantise de l’Azur, l’ironie de l’Azur”. Como reforça em
outro passo – “L’Azur, c’est pour lui le suprême Artiste dont les
prestiges faciles produisent les magnificences de la Nature […]”. (in
Albert-Marie Schmidt, La Littérature Symboliste (1870-1900),
Collection “Que sais-je?”, Paris, Presses universitaires de France,
1963, p. 12.).

15
RICARDo MARQuES

primeiros livros quer pelo conteúdo quer pela estética dos


poemas, filiados claramente na atitude “poético-pictórico-
-musical” de que falava o romântico Jean-Paul no que
toca à escola simbolista12. outros usos podemos encon-
trar num livro mais tardio, num poema intitulado
“Receita para fazer azul”, que Júdice salienta como um
dos seus poemas preferidos13 sobre o uso de qualquer
coisa do quotidiano para escrever. Por outro lado, como
pigmento aparece também bastante nos quadros a que
alude, especialmente quando o mar está implicado. Veja-
-se, a este propósito, as descrições do litoral de “A Praia
de Tourgeville” (A Noção de Poema) ou dos cavalos
azuis do quadro de uccelo em “Em Florença” (Raptos)14.
Fazendo um paralelismo com um nome contemporâneo
conhecido, também Sophia de Mello Breyner Andresen
apresenta nos seus poemas essa mesma obsessão com o
azul, com as mesmas conotações que tanto Júdice como
Mallarmé lhes dão. Vemos isto não só através do mar, a
sua paisagem poética por excelência, mas igualmente nas
referências ao céu e à qualidade de infinito tanto de um

__________________________________________

12
Cf. Fernando Guimarães, “Simbolismo: a procura da origi-
nalidade”, in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, Lello & Irmão
Editores, Porto, 1992, p. 17.
13
Cf. Revista Ler, 2005, p. 80.
14
um dos mais conhecidos especialistas sobre a simbologia da
cor nos estudos culturais, Michel Pastoreau, refere o azul como a cor
por excelência da cultura ocidental, exemplificado vários tipos de
funções e significados para a mesma, o que demonstra a sua
versatilidade (desde uma cor aristocrática até à dos jeans que
usamos). Assim, e tendo em conta a poesia judiciana, é importante
salientar que Pastoureau conota o azul com o Romantismo,
nomeadamente através do motivo da “flor azul” de Novalis em
Heinrich von ofterdingen ou da cor em Werther de Goethe. (Cf.
Michel Pastoureau, Dicionário das Cores do Nosso Tempo, Lisboa,
Editorial Estampa, 1997, pp. 23-24).

16
NA TEIA Do PoEMA

quanto de outro, e que nos é vedado. Vejamos o poema


“Bebido o luar”15:

Bebido o luar, ébrios de horizontes,


Julgamos que viver era abraçar
o rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,


Não são nossos os frutos nem as flores,
o céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,


Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver

Hölderlin, por seu turno, será referido no título de


três poemas – um retratando o artista enquanto jovem e
outro, presente no livro Líra de Liquen, de 1985.16
Enquanto o título do primeiro é simplesmente “Höl-
derlin”, o deste último tem um subtítulo – “Hölderlin, os
poemas da loucura”, apontando desde logo para a última
parte da sua vida, onde a solidão e o isolamento do
mundo foram elementos importantes no desenvolvimento
da demência de que mais tarde sofreu. um terceiro
poema é “Arte poética com citação de Hölderlin”, em que
Júdice vai buscar a metáfora da rosa, desenvolvida num
dos poemas holderlinianos, para assemelhar a construção
do poema. Assim, estamos aqui presente um autor cuja
vivência personifica o paradigma da escrita romântica,

______________________________________________
15
Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do Mar, Lisboa,
Editorial Caminho, edição definitiva de Luís Manuel Gaspar e Maria
Andresen de Sousa Tavares, 2003, p. 82 (1947).
16
PR, 2000, pp. 256-7.

17
RICARDo MARQuES

como o seu próprio paradigma de escrita17. o género pelo


qual ficou amplamente conhecido e no qual mais se
celebrizou foi o da elegia. Pensamos que o interesse de
Nuno Júdice por esta forma de escrita, que as suas
múltiplas elegias comprovam podem encontrar uma raiz
neste autor18. Em Hölderlin, tal como em Novalis, o
mistério da essência da escrita é outra das temáticas que
une os dois autores, sobretudo na antevisão da poesia
enquanto “casa”, e que terá repercussão em outros
autores de poesia em língua portuguesa, como é o caso
de Sophia de Mello Breyner Andresen (Cf. “Casa Bran-
ca”, Poesia, 1944; “Casa”, Geografia, 1967 ou “Habi-
tação”, Ilhas, 1989, entre outros).

______________________
17
Não tanto da sua própria poética, que apesar de ser contem-
porânea do que de melhor se escreveu no Romantismo alemão, é
essencialmente classicizante. De notar igualmente que esta
característica bem romântica do exagero sentimental, isolamento e
solidão do mundo está presente em outros poemas judicianos ainda
na década de 70, nomeadamente o do primeiro livro, sobre a pianista
Maria Pleyel, que já tivemos oportunidade de referir. Cf. Poesia
Reunida, pp. 68-69.
18
Como o denota Maria Teresa Dias Furtado, “A herança
poética de Hölderlin marcou e continua a marcar a literatura europeia
e ainda hoje é objecto de estudo em todo o mundo. Nela encontramos
as raízes da poesia moderna, de que fazem parte a dicotomia palavra-
-silêncio, a busca das razões do dizer poético, o confronto da
realidade actual com os seus precedentes culturais. A utopia através
da escrita continua a ser uma constante na poesia contemporânea.
Neste espaço não cabem referências à recepção holderliana na poesia
portuguesa, mas não podemos deixar de mencionar a sua projecção
em poetas como Sebastião da Gama, Vitorino Nemésio, Sophia de
Mello Breyner Andresen, Fiama Hasse Pais Brandão e Nuno Júdice”.
(in Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000, p. 14). um
outro poema, bastante erotizante, onde podemos ver esta forma ser
retomada reside em “Elegia com variação romântica”, do livro
Raptos, em que a variação referida e homenagem são às “mulheres
loucas”, que “Dispo […] no meu poema”. (PR, 2000, p. 879).

18
NA TEIA Do PoEMA

Em “o Movimento de obsessão”19, o sujeito poético


(quase vozeando as razões do autor e as características da
sua poesia) ganha primazia e o poema é todo construído à
sua volta, muitas vezes por oposição a outros, que se
enumeram, e terminando com uma definição de poesia (“o
poema/ é uma enumeração de lugares, uma experiência do
mito, a constatação/ do absoluto”):
Sigo a corrente contínua da inspiração […]
Tenho um processo convulso de composição. São vastos e árduos
os meus domínios. Li as insólitas escritas dos místicos. Dei-me a um
exercício
inquieto – reconstruir estados de alma, variações do rosto, a própria
direcção de um olhar. Foi assim que perdi a fé. o equilíbrio excessivo
do sofrimento evitou-me a dúvida. Conheci pintores e poetas. Vi
crepúsculos indecisos de França. Vi Poitiers de uma janela de
comboio. Comi
na Acrópole com Charrin e os gregos. Vi Luis Borges, à chuva,
recitando
Verlaine junto à Source. Respeitei o sentido unívoco
da pontuação. Guardo as minhas obscuras
esperanças num cálice papoulado de gin.
[…]

Podíamos aqui fazer uma ponte importante para com


Mallarmé e aquilo que alguns autores defendem relativa-
mente ao poema como culto de uma obsessão, ou que a
cultivaram obsessivamente no seu lado gongórico, de
forma a tornarem-no um objecto perfeito. Aqui, o tal
“movimento obsessivo” do título judiciano segue esta
tradição, defendendo que aquilo a que depois se vai
chamar um poema é o resultado do seu aprofundamento,
do trabalho ao nível da imagem e da estrutura (nunca
perdendo assim, de perto, a etimologia grega da palavra
“poesia”).

_____________________________________________

19
PR, 2000, p. 75.

19
RICARDo MARQuES

Para além disso, este poema estabelece desde início


uma genealogia indirecta de autores e de referências que
depois na sua poesia se espelham, como é o caso de Jorge
Luis Borges, ou da influência de autores de língua francesa
nos seus primeiros livros (explicada, em parte, pela sua
formação académica em Filologia Românica). Falamos
desta influência não só no que diz respeito aos poetas que
escreveram em francês, mas igualmente no que toca a
artistas plásticos como Eugéne Boudin, logo no primeiro
livro20.
Ler hoje estes e os restantes livros de poemas que
Júdice editou nos anos 70 constitui, por outro lado, uma
experiência estética interessante à luz das mudanças que
o contexto sócio-cultural português sofreu entre o fim e
o início da década.21 Quando começa a escrever, o estilo
do autor é declaradamente diferente do que se escreve
para a época. Disso dá conta Teresa Almeida, no seu
conhecido e feliz entróito à Poesia Reunida do autor:
Lido nos longíquos anos setenta, o primeiro livro de Nuno
Júdice tinha a força de uma provocação: proclamava o triunfo
absoluto da poesia sobre o mundo, o seu carácter sagrado, a sua
dimensão sobrenatural num mundo onde a ausência de Deus se fazia
sentir. Trazia consigo um universo imaginário, aparentemente
caótico, barroco na sua pujança, decadente nas suas preferências,
complexo na sua singularidade. Dificilmente poderia ser integrada
nas tendências que se desenhavam no momento.22

_____________________________________________
20
Dele falaremos mais tarde; Este poema encontra-se in PR, pp.
63-64. os exemplos são demasiados para serem referidos numa nota.
Fá-lo-emos no decurso deste trabalho, com os elementos a que
aludiremos.
21
No que toca aos seus primeiros livros, e tendo em conta a sua
publicação num tempo em que o regime salazarista ainda subsistia,
agonizante, “1400 metros de altitude” poderia ser lido à luz da guerra
colonial que então grassava (PR, 2000, p. 87).
22
PR, 2000, p. 35. outro poema, já fora do contexto ditatorial,
mas retratando-o, poderia ser “Em Lisboa (anos 60)”, in PR, 2000, p.
202.

20
NA TEIA Do PoEMA

Por outro lado, e em outro lugar23 referindo-se à


poesia que aparece nos anos 70 em Portugal, o ensaísta
Nuno Júdice vai buscar a epígrafe de Rui Diniz24 que
constitui a própria citação de início do seu primeiro livro
de poemas25, para assim tentar justificar a ausência de
uma poética coesa sobre a poesia que surge então, e em
cuja geração está claramente imiscuído. Diz então dela:
Afirmação que se encontra ainda no momento genético da
poesia de 70, ela comporta um certo dom/tom profético, dado que o
decurso da década irá verificar essa ausência teórica – ainda que os
poemas se procurem substituir ao raciocínio estético. Paralelamente,
porém, o desenvolvimento de uma crítica dominada pelo formalismo
e pelo estruturalismo explicará esse fechamento do poema à teoria.
A utopia de uma ciência da linguagem – e também, da própria
linguagem poética – determinou esse silêncio, para o qual deixa,
hoje, de haver motivo. A explicação já não constitui, hoje, um
obstáculo para a imaginação.

Efectivamente, a citação de Rui Diniz parece ser


apanágio dos melhores poetas surgidos neste período, e
no qual se inclui Júdice. António Franco Alexandre
(AFA) ou João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ), apenas
para citar alguns nomes poéticos consagrados da sua

_________________________________________

23
Nuno Júdice, O Processo Poético, Lisboa, INCM, 1991, pp.
164-165.
24
A epígrafe em questão é a seguinte – “A arte, diz-se, põe hoje
problemas de sua teoria no própri oacto de sua invenção. Põe-se a si
mesma em causa no interior de si mesma; procura no gesto com que
se cria, definir-se, postular-se, explicar-se de forma mais próxima de
si; mais correcta porque elimina o processo de dicotomia
estabelecido pela existência de dois ofícios: o teórico e o prático, e
mais verosímil porquanto é por um gesto de invenção (mas
apresentado aqui com grande honestidade e clareza), que elabora a
sua teoria, as suas axiomias, porquanto é ainda praxis a sua
teorização”. (PR, 2000, p. 55).
25
PR, 2000, p. 55.

21
RICARDo MARQuES

geração26. Tanto AFA como JMFJ cultivam uma poética


essencialmente narrativa, cujos exemplos recentes
podíamos apontar como sendo, no primeiro caso, Fábula,
de 2002, ou Museu das Janelas Verdes, do mesmo ano,
para o segundo. Tanto num como noutro, a estratégia
narrativa da sua poesia processa-se de maneira diferente,
não encontrando na imagem o seu étimo ou essência de
onde parte. No caso de António Franco Alexandre, é na
linguagem que a poesia radica, plasmada em inúmeros
jogos que um poema vai desenvolvendo, resultando num
discurso “fragmentado, sincopado, construído à base de
colagens, de remendos”, como lembra Luís Miguel Nava27.
em folhas de acetato me proteges
floresço em avenida litoral
breve serei semente um céu e a terra
plantado azul e sopro de marés

as palavras fechadas com o jeito


que a boca tem ao ver-se
retratada
quase um sabor razão acidulada

me persegues de nomes, me retratas


igual ao branco hotel onde regressa
a não lembrada sombra do verão

e pousam de ouro em água o só


engano breve
das rosas e da neve despertadas28.

___________________________________________
26
Não falaremos aqui de outros exemplos paralelos desta
geração, como José Agostinho Baptista, uma vez que a sua poesia
se filia numa outra tradição, que poderíamos dizer lírica e pessoal,
enquadrada por um grande cunho autobiográfico. Cf. artigos sobre
a poesia deste escritor in Fernando Pinto do Amaral, 1990 e Gastão
Cruz, 2008.
27
Luís Miguel Nava, “António Franco Alexandre”, in Ensaios
Reunidos, Lisboa, Assírio e Alvim, 2004, p. 280.
28
António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa, Assírio e Alvim,
2000.

22
NA TEIA Do PoEMA

Já a linguagem poética de Fernandes Jorge apresenta


uma mistura de referências pessoais e históricas, de onde
se salienta um intenso diálogo com as outras artes, dando
a esta poesia um cunho de hermetismo codificado e,
também a ele paralelo, de laivos intelectualizantes:
22

Quero falar de Amadeu,


talvez nascido a 11 ou 12
de novembro. Era 1919 e
tinha já então muito de

velho. As mulheres gostaram


dele (seduzindo-o na sua
própria vida de cigano) e
do outro lado da montanha

percebiam como sabia de


crisântemos, azuis (do
mesmo azul das dunas).

Ainda o visitam, mas o


tempo de Amadeu é agora
uma ilha perdida de Bocklin29.

Voltando a Júdice, e ainda no que toca ao estilo dos


primeiros livros e da sua comparação diferenciada e
semelhante com outros poetas surgidos no mesmo
período, também Gastão Cruz30 subtrai o caso da poesia
judiciana das demais “soluções discursivas”, apontando
uma genealogia que se filia nos distantes românticos e no
próximo fulgor de Herberto Helder:
__________________________________________

29
João Miguel Fernandes Jorge, Sob Sobre Voz, Lisboa,
Moraes, 1971.
30
Gastão Cruz, A Poesia Portuguesa Hoje, Lisboa, Plátano,
1973, pp. 207-08 (refundido mais tarde numa segunda edição, pela
Relógio d’Água, 1999, e ainda uma terceira in A Vida da Poesia,
Lisboa, Assírio e Alvim, 2008).

23
RICARDo MARQuES

Para Nuno Júdice, em A Noção de Poema (1972), as frases,


mesmo quando relativamente estritas, ligam-se profundamente entre
si, constituindo linearmente a grande frase que é todo o poema. Mas,
por vezes, são já vastas, narrativas ou descritivas, retoricamente
construídas, numa linha de arquitectura que reconduz a Whitman ou
a Blake, ou, mais proximamente, a Herberto Helder: […] Nuno
Júdice, ao decidir-se abertamente por uma solução discursiva, parece
ter querido furtar a poesia portuguesa aos perigos, não raro aliciantes,
de resto, de um discursivismo híbrido. A anulação de alguns
problemas de leitura, que deriva da adopção de esquemas já bem
assimilados, não limitará, porém, o alcance da proposta?

Por último, também outro crítico da altura, o poeta


e professor universitário, Joaquim Manuel Magalhães,
falando sobre uma mudança discursiva na poesia dos
anos 70, a que correspondia o “efectivo aparecimento de
uma nova geração” marcada essencialmente pelas “ultra-
-passagem do medo sintáctico do discursivo, do medo
lírico do confessionalismo e da rasteira limitação, em
nome de um ouvidinho musical ou de um olhinho
experimental, das explosões declarativas”, refere como
exemplos máximos dessa nova geração, entre outros, o
nome de Al Berto31, mas igualmente, num passo mais à
frente, a dos outros nomes que acabámos de ver:
__________________________________________
31
Citamos por completo e por conveniência, o parágrafo de
Magalhães – “A inflexão da poesia publicada durante a década
seguinte [anos 70], que corresponde ao efectivo aparecimento de
uma nova geração, determina-se numa ultrapassagem do medo
sintáctico do discursivo, do medo lírico do confessionalismo e da
rasteira limitação, em nome de um ouvidinho musical ou de um
olhinho experimental, das explosões declarativas. Contra a
necessária, na altura, rarefacção do sentimento, do enunciado e do
imaginário, surge na poesia mais recente um ímpeto renovado de se
contar, de assumir, por máscara ou directamente, um discurso cuja
tensão é menos verbal do que explicitamente emocional. Assim,
irrompe uma explicitação dos lugares do corpo, uma afirmação dos
desejos e das intenções, uma narração dos confrontos com a odem
do lugar, ligados a um discurso mais empenhado em declarar do que
em sintetizar ou em visualizar. Daqui, igualmente um novo impulso

24
NA TEIA Do PoEMA

Esta mudança discursiva fica, em meu entender, ligada à


alteração processual que, no início dos anos 70, é perspectivada
naqueles que são dos maiores responsáveis da viragem qualitativa
que esta geração pode representar, João Miguel Fernandes Jorge,
Nuno Júdice e António Franco Alexandre32.

Sobre a poética da altura, e sobre estes autores que


começaram a publicar a sua poesia na década de 70, diz
Joaquim Miguel Magalhães que se caracterizaram por
dois vectores essenciais:
– a valorização justa de dois nomes subrepticiamente esque-
cidos como os mais representativos qualitativamente da década
anterior, Herberto Helder e Ruy Belo;
– a ultrapassagem dos dois movimentos que se pretendiam
assumir como dominantes: o primeiro, ligado a nomes da Poesia 61;
o segundo, ao grupo provincianamente auto-denominado de Poesia
Experimental.

o próprio autor, como vimos atrás, repele o


movimento depois conhecido como Poesia 61 por este
representar uma certa aridez e preocupações que a Júdice
não interessavam. Por outro lado, já o seu estilo pessoal
de escrita poética se distanciava do que o grupo de Poesia
Experimental cultivava. Quanto aos nomes citados no

_____________________________________________

ideológico, pelo qual o político regressa ao claramente exprimido.


Não já o da odem burocrática do neo-realismo, mas o da agressão,
da sexualidade, da droga, da desordem. Disso é exemplo, entre os
mais recenetemente aparecidos a obra de Jorge Falorca ou de Paulo
da Costa Domingos, ou de Al Berto”. Cf. Joaquim Manuel
Magalhães, Os Dois Crepúsculos – Sobre Poesia Portuguesa Actual
e Outras Crónicas, Lisboa, A regra do jogo, 1981, p. 258.
32
Cf. Joaquim Manuel Magalhães, Op. Cit., 1981, pp. 258-9.
Fernando Pinto do Amaral, num recente verbete de uma História
Literária sobre a poesia da contemporaneidade, refere Nuno Júdice
como “um poeta absolutamente decisivo para um entendimento dos
anos 70”. (Cf. Óscar Lopes et Rosa Maria Martelo (eds.), História
da Literatura Portuguesa – As Correntes Contemporâneas, vol. 7,
Lisboa, Alfa, 2002, pp. 424-425.)

25
RICARDo MARQuES

primeiro ponto, pode-se dizer que Júdice assume o segun-


do como seu mestre, muitas vezes, bem como uma admi-
ração pessoal por ele33.

Sobre o aparecimento de Nuno Júdice, ainda


Joaquim Manuel Magalhães disserta do seguinte modo,
num outro lado –
Aquele que desta geração mais epígonos já viu continuarem-
-lhe os processos, talvez por ter sido também um fértil continuador,
Nuno Júdice, publica A noção de poema. Até Última Palavra: Sim!,
entre um mau gosto talvez procurado, uma intensificação da tradição
gótica, um discurso a que descobriram íntimas relações com o
romantismo e uma vocação narrativa dos mais explectivos pântanos
internos, ele usa o lugar-comum, a viagem alucinada e a
magnificência verbal como, na linha de Herberto Hélder, não seria
fácil persistir.34

Também no número 9 da revista Colóquio/Letras


(Setembro de 1972), recenseando o seu primeiro livro de
poemas, se lhe refere como um poeta discursivo, com
poemas que “oscilam entre o movimento da poesia e a
reflexão quase crítica ou quase filosófica, com cuidadosa
escolha de palavras, que não permite ao poema degenerar
em prosa”35.

o Pavão Sonoro é um curto livro desse mesmo ano


(1972) que parece aprofundar esta reflexão sobre o
fenómeno poético que o interessou desde o início. Mais
do que ser um livro em separado, parece mais uma conti-
nuação do que o precedeu, como se um complementasse
___________________________________________
33
Veremos mais à frente alguns depoimentos do próprio autor
sobre o assunto.
34
Op. cit., p. 263.
35
Cf. Yvette K. Centeno, “[Recensão crítica a ‘A Noção de
Poema’, de Nuno Júdice]”, in Colóquio/Letras. Recensões Críticas,
n.º 9, Set. 1972, pp. 80-81. [sic].

26
NA TEIA Do PoEMA

o outro. Se um trata a noção de poema, o outro como


anverso da medalha do signo linguístico saussuriano, vai
tratar especificamente do seu significado. A seguinte arte
poética, pertencente a este livro, parece-nos ser corolário
do que dizemos. Sendo primeiro exemplo cronológico de
um poema metapoético, “Arte do Poema”36 é então
bastante importante por ser o primeiro de uma série de
poemas com esta temática, que analisaremos a devido
tempo nesta tese. Nele temos uma proposição inicial dos
elementos que que compõem aquilo que conhecemos por
poesia:
Eu pensava que escrever era uma escolha rigorosa de temas
determinados,
e mais – que a progressão no poema, sem confundir um tema e outro,
pelo contrário iria estabelecer uma rigorosa separação. Entre,
por um lado, o interior dos sons, e por outro o rebordo exterior
do sentido, evoluindo este último segundo os efeitos próprios dos
sons
em cada diversa sensibilidade.
Assim, estabelecidas as múltiplas zonas “poéticas”, eu poderia
designar
o que está escrito,
e assim mesmo irá ficar,
como um estudo de poética – ou “arte do poema”.

Neste poema, o tempo desempenha desde logo um


importante papel, na medida em que há uma constatação
da separação entre duas estéticas fundamentais. uma, no
presente da constatação de uma estética passada (dada
sobretudo pelos verbos no pretérito imperfeito “pensava”
e pelo condicional perifrástico “poderia designar”, “iria
estabelecer”) e outra, num dado tempo passado em que
se escrevia a pensar que a poesia era outra coisa. Esta
distinção dos dois tempos é dada pelo conector “Assim”,
___________________________________________

36
PR, 2000, p. 103.

27
RICARDo MARQuES

opção abundante em Nuno Júdice, que utiliza esta palavra


sobretudo como princípio retórico no sentido de concluir
uma ideia, separando o poema em dois. “uma escolha de
temas determinados”. Desta forma, esta “arte do poema”
é resumida nos últimos quatro versos do poema, em
especial na expressão “múltiplas zonas poéticas”, a defi-
nição com que Júdice aparece para definir os elementos
do poema, que ele enumera nos versos anteriores. Por um
lado, o poema fala dos dois niveis que constituem “os
sons” e “os sentidos”, este último determinado pelos
“efeitos próprios” do primeiro. Por outro lado, um poema
é visto como “uma escolha rigorosa de temas seleccio-
nados” que se desenvolveriam ao longo da composição.
Aqui, os temas parecem então ser assemelhados aos
assuntos do poema, a linha que une as imagens e metá-
foras sobre as quais o poema assenta.
o poema conclui com uma auto-reflexão, que de
certa forma se assemelha à concretização propriamente
dita da poética que advoga e que está escrita ao longo do
poema: “assim mesmo irá ficar [no poema]” “como um
estudo de poética – ou arte do poema”.
Se, em primeiro lugar, a sua poesia parece rejeitar
uma “estratégia de depuração”, de que fala Manuel
Gusmão para caracterizar o que ficou designado mais
tarde por “Poesia 61”, esta mesma tendência para
delapidar a fim de dar mais pujança ao texto regista-se
progressivamente na chegada àquilo que poderia designar
como a maioridade do poeta. Esta tendência regista-se na
crescente atenção dada às formas fixas, curtas e
condensadas. outro dos aspectos que começam a fazer
denotar uma entrada na maioridade desta poesia parece
ser a consistência de certas temáticas, como por exemplo

28
NA TEIA Do PoEMA

a que diz respeito à “Zoologia”37 ou à “Botânica”, e mais


recentemente, à “Gramática” (A Matéria do Poema).
Passados os anos 70, os livros dos anos 80 começam
a mudar um pouco as temáticas abordadas, nomeada-
mente o tema da morte, que começa a apaziguar-se para
passar a ser uma referência velada, mais implícita
(sobretudo através da metáfora da “sombra”, e sob a
égide simbolista da “água” ofeliana38), invocando um
outro tema caro a Júdice: o do binómino tempo-memória,
que o acompanha até à poesia dos nossos dias. Este é,
efectivamente, um dos vectores poéticos intemporais da
poesia ocidental, e aquele que está na base da escrita
poética de Júdice. uma subtemática onde este aspecto se
revela bem é na passagem do tempo, em tudo a ver com
passagem das estações, motivo a que este poeta sempre
volta, especialmente a partir dos anos 8039. Da temática
____________________________________________
37
No que toca a este aspecto, o autor declara a Egídia Marques
Souto que o que mais lhe interessa nestes poemas sobre os animais
é a tentar peceber o lado animalesco do ser humano, retratá-los de
forma antropocêntrica (Cf. entrevista em anexos finais da tese de
mestrado referida na bibliografia, 2007).
38
Cf. artigo “Mnemónicas para Nuno Júdice: uma poética da
água”, de Luís Miguel Nava, uma recensão a propósito da sua obra
Enumeração de Sombras, 1989 (in Colóquio/Letras. Notas e
Comentários, nº121/122, Lisboa, Jul. 1991, pp. 220-224). Veja-se
igualmente a presença da água e da morte nos versos seguintes, do
poema que analisaremos, “‘ulisses’, uma página” – “A morte é uma/
mulher nua entre as estátuas do parque; uma/mulher nua a cavalo
numa máquina de escrever;/o sexo das algas que a maré descobre,/
entre as últimas palavras do poema e do corpo,/ que as ouve,
amarrado ao mastro do verso.” (PR, 2000, p. 437).
39
o ciclo da passagem do tempo, verificado na passagem das
estações, é um tema que deu azo a muitos poemas judicianos, seja pelo
ciclo propriamente dito, seja pela analogia do tempo passado com as
várias estações e alturas do ano. Exemplos são dois poemas sobre o
“Inverno”, p. 404 e p. 1086 (também em Cartografia das Emoções,
p. 158 e “Numa tarde de Inverno”, p. 159) “Prosa de Inverno”, p. 478,

29
RICARDo MARQuES

obsessiva da morte, da solidão, do abandono (de si e do


mundo) passamos então para uma progressiva aceitação
do mundo e do seu movimento, para usar o título do
volume de poemas de 1996.40 As figuras descritas e
referenciadas deixam igualmente de ser violentas, margi-
nais e excessivas – do mesmo modo que as imagens, para
se começar a atender mais ao que se passa no quotidiano
mais banal. uma outra variante desta mudança abarca
uma poesia menos politicamente empenhada, que nos
últimos livros retorna.

Também a partir dos anos 80, Teresa Almeida vê em


Júdice uma tendência, através dos autores que decide
convocar e aludir, para reescrever uma poética do amor41:
Teoria Geral do Sentimento [1999] fala de Emily
Dickinson e de Virginia Woolf, mas também de ovídio e

__________________
ou “Itinerário do Inverno”, “um inverno em Lisboa”, p. 709, “ode a
uma noite de Inverno”, p. ; “Corte de corrente no campo, no Inverno”,
p. 785; também dois poemas intitulados “Primavera”, p. 521 e p.
984, “Variação sobre a Primavera”, p. 623, “um Requiem na
Primavera”, p. 944 , “Bucolismo: o Verão”, p. 499 o outono,
referido em “A construção do ser” de Cartografia das Emoções, p.
157 – ‘o outono, com a sua melancolia, empresta um estranho/
perfume da terra ao espírito”, conotando esta poesia com a
maturidade e o seu ensimesmamento que daí decorre – “Carta de
outono”, p. 323, “As quatro estações: o outono”, p. 429. Sobre as
estações, de um modo geral, Cf. “As quatro estações”, p. 349,
“Estação morta”, p. 292; “Apontamentos para uma estação”, p. 384).
De O Estado dos Campos, 2003, pp. 24-25, “uma ode por entre as
estações”.
40
Veja-se igualmente a sua definição para a função da poesia
no mundo actual, que usa esta mesma palavra – “ Escrever poesia,
no mundo actual, é uma forma de conservar o que, em cada dia,
vamos perdendo; o ser no tempo, a identidade do eu na dissolução
do sujeito devorado pelo movimento do mundo“ (in As Máscaras do
Poema, Lisboa, Aríon, 1998).
41
PR, 2000, p. 42.

30
NA TEIA Do PoEMA

Byron, como se agora fosse necessário renovar a tradição


amorosa da poesia ocidental”. Se, a início, a forma de o
convocar é arrebatada e apaixonada, num exacerbo ultra-
-romântico verificado nas inúmeras de interjeições,
reticências e exclamações dos seus longos poemas
narrativos dos anos 70, nota-se uma progressão mais
calma, mas não menos apaixonada, na forma de tratar o
objecto amado. Esta temática afirma-se cada vez mais na
sua poesia como “a fonte da vida” que pretende iluminar
a poesia que vai escrevendo, como o próprio define no
poema que dá título ao livro de 1997, “Fons Vitae”42:
[…] Nem há outros assuntos
quando nos encontramos, e me começas a falar,
como se fosse o coração a única
fonte do que dizemos

A escrita feminina43 parece igualmente fascinar


desde sempre este escritor, atingindo um dos seus pontos
mais interessantes no deveras intertextual “Mulheres”44.
Aqui podemos ver como a cada figura invocada (figura
ou personagem literária) corresponde um acto simbólico
e/ou respectivo(s) símbolo(s):
_____________________________________________
42
PR, 2000, p. 874. Sublinhados nossos.
43
usamos aqui o termo parcialmente na acepção, ainda que
polémica, de Helène Cixious (“The Laugh of the Medusa”, 1975 in
Feminisms: An Anthology of Literary Theory and Criticism, revised
edition, 1997), como contraponto a um discurso centrado no homem.
Neste poema, a chamada “écriture féminine” traduz-se exactamente
nessa referência única a mulheres, ainda que nos afastemos da
definição de Cixous no que toca à importância dada ao “corpo” como
meio essencial de distinção entre mulher e homem.
44
PR, 2000, p. 435. É de notar que esta apetência por querer
tratar o sexo feminino está também presente nos seus romances, de
que são excelentes exemplos os dois últimos romances, O Enigma
de Salomé e Os Passos da Cruz, o primeiro invocando a figura
bíblica do título e a segunda uma história romanceando as memórias
de uma freira seiscentista.

31
RICARDo MARQuES

A bela Kate com os braços nas folhas.


Rose Dassonville com o outono nos braços.
Miss Smolen com a garganta arranhada pelos vermes.
Fanny owen embalsamada na dúvida do amante.
Mulheres: a vossa hesitação tremente
suspende o tempo. um fluxo natural
hesita, como a borboleta no túmulo de antígona.
A seiva do prazer seca num símbolo de lábios
Quando um cisne se afoga no lago da emoção.
Miss Tilda, Jenny, Alice, Hilda:
um naufrágio de palavras num mar convulso,
de marés rápidas como o ritmo das respirações;
e tu, Emily,
cujo coração desaparece na linha do horizonte:
não esqueçais a pobre Lily Dale,
a fada sem estrelas nos olhos
no gesto de onda de um sono eterno.

o seu interesse por convocar o sexo feminino nos


seus textos poéticos plasma-se em caminhos diversos,
demonstrando uma paleta ampla de graus de intertex-
tualidade para com as figuras invocadas. É o caso, que
veremos, directamente através do título, em “Virginia
Woolf” (Teoria Geral do Sentimento) ou ainda em “Fanny
owen” (Lira de Líquen), onde é seleccionada uma parte
da vida da escritora como objecto de escrita, optando-se
por adoptar como voz narrativa no poema a da própria
figura literária45. Apenas para nos reportarmos a outra figu-
____________________________________________
45
“Escurece. No campo, onde as minhas mãos/não colhem as
flores do outono, ouço/o esvoaçar de um pássaro. Eu sou o corpo/desse
pássaro a puxá-lo para terra – mas/ele insiste em subir, em procurar o
rebordo/das nuvens…Desisto. E pergunto: “Por/que me tiram ainda a
imagem do paraíso?/Que amor é este que me agarra à noite, aos/braços
secos da madressilva, à febre da me-/mória? Por que insistem em que
eu respire?/Em que os meus lábios anseiem a humidade/vaga de uns
dedos cruéis? oh!, por que te/ouço, sempre, murmurando-me o nome,
com a/boca em sangue, sem olhos, com os braços/comidos pelos
vermes – por que te ouço,/ainda, pedindo-me que regresse de onde
nunca/parti? ouvindo-te com o vento, com o voo/breve de folhas
efémeras, no inverno, à noite?” (PR, 2000, p. 260).

32
NA TEIA Do PoEMA

ra a que este poema alude, Emily Dickinson vai ter um


poema a si dedicado, como também analisaremos, mas
apenas indirectamente referida com uma citação de início,
já que o título é “A ciência do Amor”. Esta gradação
acontece não só para com as figuras femininas, mas
também com as outras figuras que o seu texto poético
invoca, como teremos oportunidade de verificar46.

Por um lado, e como se pode observar por este


poema, Nuno Júdice resgata figuras conhecidas da
cultura e da literatura ocidentais (Emily Dickinson,
Antígona, Rose Dassonville, entre outras, neste caso)
apenas como símbolo de um determinado sentimento ou
acção ou, no caso das escritoras, de um determinado
estilo de escrita. Aqui o trabalho de resgate dessa figura
é um trabalho que poderíamos caracterizar de alusão,
quando o que se invoca é símbolo e significado de algo
mais ou de citação, quando a alusão é transcrita do seu
lugar de origem, do texto original. Por outro lado, a
invocação de uma figura feminina acontece também por
sinédoque, quando não é propriamente a figura o alvo da
relação intertextual, mas sim o que a figura representa ou
produziu. Para além deste poema, um bom exemplo disto
acontece num texto que analisaremos mais à frente
intitulado “um soneto de Florbela”47. Neste poema, esse
______________________
46
Falamos tanto de figuras das artes literárias tão diversificadas
como Hölderlin, Stéphane Mallarmé (A Noção de Poema),
personagens como Hamlet (Um Canto na Espessura do Tempo), bem
como de nomes das outras artes como Matisse (A Noção de Poema,
Lira de Líquen) ou Cézanne (“No atelier de Cézanne” in Linhas de
Água), apenas para citar alguns exemplos. Há igualmente o convocar
directamente figuras mitológicas (orfeu, Narciso, Vénus, …) e
históricas ( D. Pedro e D. Inês, ovídio, Francisco de Aldana, …).
47
Cf. Cartografia das Emoções, 2001, p. 97. Dele falaremos
no capítulo 2, intitulado “outros diálogos dentro da Literatura
Portuguesa”.

33
RICARDo MARQuES

texto que o título invoca não só é pretexto para o que


Júdice irá desenvolver no conteúdo, como se irá relacionar
directamente com a temática desenvolvida. Assim, aqui
poderíamos pensar o texto florbeliano como hipotexto ou
texto-fantasma do de Júdice, nas acepções de Riffaterre
que estudou nas suas obras mais importantes.48
Também outro tipo de literatura parece ter um lugar
especial na produção judiciana – a chamada literatura
tradicional49. Esta aparece sobretudo nos livros mais
recentes do poeta, ele próprio um interessado neste
género de literatura50.
_______________________________________________
48
Cf. Para os dois termos, Michael Riffaterre, La Production
du texte, Paris, Éditions du Seuil, 1979, p. 80 e Idem, Semiotics of
Poetry, p. 91, respectivamente. o cerne daquilo que Michael
Riffaterre defende, no domínio da intertextualidade, está
precisamente na ideia de que todo o texto literário, contrariamente
àquilo que prescreve Aristóteles na sua Poética, não é mimética da
realidade, isto é, não é referencial. Assim, ao conferir ao texto
literário o seu carácter não-referencial, bem como usando noções de
silepse, “hipograma” e “agramaticalidade” para fundamentar esse
carácter, o trabalho de Riffaterre vai ser importante para o domínio
da intertextualidade porque vai mostrar que todas estas
características são apenas observáveis do ponto de vista do final da
cadeia de comunicação de um texto literário – o leitor, e apenas a
este, o “intérprete” ou “decifrador”, caberá mostrar a solução da
“charada”, o que se esconde nas palavras que estão ali dispostas
linearmente, bem como os seus vários sentidos de interpretação.
49
Por “tradicional” entendemos todo o tipo de literatura que é
produzida, ratificada e mantida pelo povo (por oposição à literatura
popular, que se distingue da anterior por ser apenas local, isto é, por
não ser ratificada por um número importante de pessoas). Neste tipo
de literatura incluimos desde os provérbios até aos contos e lenga-
-lengas, bem como as quadras populares.
50
Tendo sido um dos fundadores de um instituto de
investigação de Literatura Tradicional (IELT), sediado na Faculdade
na qual é professor (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas), este
autor tem igualmente vários ensaios e artigos publicados sobre a
temática. o seu interesse vai sobretudo para o conto maravilhoso e
as suas variantes, como a fábula (veja-se o BI do Capuchinho
Vermelho de 2003 ou O Fenómeno Narrativo, de 2005, ambos co-
-editados pelo IELT). os poemas que registam referências directas

34
NA TEIA Do PoEMA

os aspectos religiosos da sua poesia vão igualmente


acentuar-se no decurso dos anos 80, mas deixando
claramente de ser uma temática religiosa por si só, para
começar a ligar os conceitos inerentes à religião (Deus,
os Anjos51, e episódios e figuras da Bíblia) à preocupação
essencial da sua poesia – o fenómeno poético52. Assim,
Júdice escreve “Salmos”53 que quase nunca são directa-
__________________________
a este tipo de literatura são, apenas para citar os livros mais recentes,
“Flos Sanctorum”, “Conto de Fadas” e “Literatura Tradicional” (A
Matéria do Poema, p. 41, p. 66, p. 75) e “Conto de Fadas” ( O Breve
Sentimento do Efémero, p. 81). Também de PR, “Romance de Cordel
do Banqueiro Suicida e da Cómoda D. Maria” (p. 863).
51
Anjos: “o Anjo pródigo“ PR, p. 356), “Bucólica com ícones
e anjos”; “o meu anjo barroco” (O Estado dos Campos, 2003, p. 64
e p. 85, respectivamente), “Angelus” (Cartografia das Emoções,
pp.70-71; “Anjo da Guarda”, p. 15 (Pedro, Lembrando Inês, 2001,
p. 15).
52
Na “1ª morada poética” do livro inicial, o poeta vai reter a
figura tutelar de Deus e relacioná-la à feitura da Poesia, mostrando
que a necessidade de a escrever se equivale à mesma necessidade
metafísica de todos nós – “a sua primeira morada poética” (Cf. PR,
2000, p. 181.). Por outras palavras, a sua “1º Morada Poética” parece
assemelhar a prática da poesia a uma devoção religiosa, relacionado-
-a com a demanda da dimensão metafísica do humano, consoante o
poema com esse título de um dos seus primeiros livros: “Ei-lo. É
deus,/ é o movimento que me leva até ele e me devolve a mim…/e
em todos estes fluxos eu soltava-me às golfadas,/até ao vazio final,
até ao próprio centro”.
53
São vários os poemas com este título. De PR, crono-
logicamente: “Abdicação.Salmo” (p. 227), “Salmo” (p. 286, p. 363),
“Salmo que o amor interrompe (p. 386). Também outros poemas
ecoam esta ligação religiosa na equivalência do poema a uma oração,
nomeadamente dois “Credo” (p. 304 e p. 504) e “Aparição” (p. 490).
Curiosamente, os “salmos” vão desaparecendo da sua poesia a partir
dos anos 90 (Em Cartografia das Emoções, temos uma “oração”, p.
57 e um “Cântico (fragmento), pp. 11-12), passando a mostrar
aspectos mais generalistas (“o Espaço de Deus” ou “Fé” in As
Coisas Mais Simples, pp. 71-73 e p. 42, “Teologia” de Cartografia
das Emoções, pp. 55-56 e “Enigma Teológico” de o Estado dos
Campos e ainda “Soma Teológica” de Geometria Variável, por
exemplo.) e “milagres” – (“Milagre”, PR, p. 823; “Breve Milagre”,
A Matéria do Poema, 2008, p. 23).

35
RICARDo MARQuES

mente sobre religião, pegando apenas de empréstimo o


tipo de composição para tratar outro assunto. Por outro
lado, Júdice vai buscar episódios da Bíblia54, especial-
mente os que se centram na figura de Cristo55 e de Deus56
(“o sétimo dia”, PR, 2000, p. 508; “Apocalipse”, O Breve
Sentimento do Efémero, 2008, p. 73), começando muitas
vezes por aludir a este assunto para depois divergir e
dissertar sobretudo sobre aspectos pessoais. É isto que
acontece em outros poemas de leve relação intertextual
com a religião, normalmente apenas invocada com o
paratexto inicial (o título do poema). Ao fazê-lo, Júdice
forja uma relação com o seu leitor que muitas vezes é
revista à luz do conteúdo do poema57. É o que acontece em

__________________________________________
54
um deles, “Babel e Sião”, talvez de influência camoniana,
deu origem a um poema com este nome em Geometria Variável (p.
61) e a uma alusão a esta história em “Terra Prometida” de A Matéria
do Poema (p. 99). outros episódios tratados por Júdice centrar-se-
-ão à volta da morte de Cristo e da criação do mundo por Deus ( vd.
notas seguintes).
55
(“Última Ceia”, “Ressureição”, a sua relação com Madalena
– “Cristo e Madalena”), “Calvário” e “Et Ressurexit” (ambos de O
Estado dos Campos, pp. 103-104 e 105-106).
56
“Deus” é precisamente o nome de um poema de Júdice, pre-
sente in PR, p. 531; “Génesis”, de O Estado dos Campos, 2003, p. 13.
57
Estamos aqui perante aquilo que Hans Robert Jauss teorizou,
já em 1966, acerca do “horizonte de expectativa” (Cf. H. R. Jauss, A
Literatura como Provocação, Lisboa, Vega, 1993 ou Pour une
esthétique de la recéption, Paris, Gallimard, 1978 para um
desenvolvimento adequado). Segundo este teórico, o interlocutor de
uma mensagem literária espera já do seu autor ou de um tipo de obra
uma determinada estrutura externa e interna, que, em grande parte
devido à prática paródica que impera nos tempos que correm, é posta
em causa, abrindo espaço para o campo da ironia. Como leitores
esperamos que “Salmo” seja um poema religioso para descobrirmos
que o conteúdo não vai de encontro ao paratexto inicial, na acepção
de Genette deste termo. o mesmo acontece, de resto, com muitos
sonetos e outras formas fixas na poesia de Nuno Júdice, e um pouco
por toda a poesia deste autor. os seus títulos, por um lado, resumem
de forma paródica o que o poema vai tratar (“Arte Poética com citação

36
NA TEIA Do PoEMA

poemas como “Fragmento Teológico” que é, no fundo,


mais uma das suas múltiplas artes poéticas, como
veremos analisado mais à frente58. um outro eixo que
passa pela relação entre a sua poesia e a religião está nas
artes pictóricas. É frequente verificarmos o seu fascínio
pela arte eminentemente religiosa, tendo poemas que são
“trípticos” e outros que tratam da representação de Cristo
e de outras figuras, na arte59.
No entanto, a temática religiosa, sobretudo na
indagação fundamental do homem sobre a existência de
Deus, é algo que a sua poesia também trata, ainda que
sempre de uma maneira indirecta e irónica, de abordagem
similar à ironia socrática60. Disso é um bom exemplo o
poema “Angústia”61, presente num dos últimos livros, ou
ainda “Deduções Analíticas”62, que usa ironicamente esta
metodologia científica para tentar perceber algo comple-
tamente antitético em relação à ciência:

_____________________________
de Hölderlin” (PR, 2000, p. 834) ou “Pastoral em tom elegíaco” ( PR,
2000, p. 245) ) e, por outro subvertem o intertexto convocado neste
paratexto – veja-se, por exemplo, “Divina Comédia” que em quase
nada tem a ver com a obra de Dante (PR, 2000, p. 783).
58
De modo diferente, em O Estado dos Campos, tem Nuno
Júdice um poema em que fala sobre o mar através da religião,
“Enigma Teológico” (p. 152).
59
De entre os poemas em que isto acontece, podemos falar em
“Cristo e Madalena ( um quadro de Albert Eldelfelt)” e “Exposição”
in, respectivamente, PR, 2000, p. 926-27 e p. 822 ; o “Tríptico” em
três partes – Cristo Anónimo, Cristo Morto, “Ecce Homo” de
Cartografia das Emoções (2001, pp. 119-122) é também
paradigmático.
60
Apresenta vários exemplos desta postura – Por exemplo, num
título como “Iconoclastia”, PR, p. 841 ou “Viático Profano” e “o
Evangelho segundo quem o traduz” (in, respectivamente, A Matéria
do Poema, 2008, p. 47 e p. 48).
61
Geometria Variável, 2005, pp. 36-37.
62
As Coisas Mais Simples, 2006, pp. 101-102.

37
RICARDo MARQuES

os sentidos, com os seus traços lineares,


são cinco como os quatro elementos mais
o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto,
que nasce da ideia do homem
de que falta sempre qualquer coisa para atingir
a perfeição. No entanto, se os sentidos
não conseguem abarcar o conjunto das sensações
que o mundo sugere, é porque
o corpo está abaixo do espírito na capacidade de
aderir a todos os segredos da natureza; e
só um raciocínio capaz de ir além da superfície
dos elementos poderia iluminar
a raiz do problema que é deus.

[…]

E vejo que não tem solução: deus é esta limitação


de sentido que atinge o infinito e a perfeição
de que ele é feito. Como falar de infinito
quando não sabemos, sequer, onde é o seu
princípio? E por que aspiramos à perfeição
quando é no absoluto que nenhum de
nós, alguma vez, atingiu, que ela se
manifesta? Tudo isto se resume
numa linha de eternidade; e logo a
apago, quando abro a janela e a luz do dia
entra pela casa.

De um modo geral, e para usar as palavras do crítico


de poesia contemporânea, Jean-Claude Pinson, é de notar
aqui, no decurso de 30 anos de poesia judiciana, aquilo
que podemos designar de uma passagem de um para-
digma de escrita romântico, centrado num “eu” intenso
que relaciona e desenvolve imagens fortes e pungentes,
para um estilo mais depurado, não inteiramente clássico
(na forma, por exemplo, continua a sua narratividade,
ainda que mais limada e contida) mas inteiramente
“textualista”63. o seu foco de interesse cada vez mais pa-
__________________________________________
63
Jean-Claude Pinson, Habiter en poète: essai sur la poésie
contemporaine, Paris, Editions Champs Valon, 2001, p. 13 – “Penser
la poésie contemporaine, en sa pointe la plus actuelle, c’est donc

38
NA TEIA Do PoEMA

rece preocupar-se com a forma a dar à construção-poema,


de que o último livro, O Breve Sentimento do Efémero, é
um exemplo claro. Aqui temos um volume constituído
inteiramente por sonetos, cuja novidade assenta na
inclusão de imagens do manuscrito original, ao lado de
cada um dos poemas.
Assim, e apenas percorrendo os títulos dos volumes
de poesia, há entre “a noção de poema” (1972) e “a
matéria do poema” (2008), por exemplo, uma diferen-
ciação que não será, talvez, muito grande no pressuposto
de que faz escrever ambos os livros, e que ao título
assiste. Dito por outras palavras, a afinidade de objectivos
entre escrever sobre “a noção” e “a matéria”, é concor-
rente e concomitante no caso deste poeta. No entanto, a
inicial invectiva do primeiro livro é diametralmente
diferente da técnica empregada no livro de 2008. Assim,
no livro de 1972 temos o poema enquanto objectivo
último de reflexão poética no sentido de se acercar, pelos
próprios poemas que preenchem o volume, do que
significa poesia64. Já no livro de 2008, a matéria é
encarada como a própria noção de poema que o primeiro
livro questiona65.
________________________
d’abord tenter de penser la situation qui est aujourd’hui la sienne au
moment où s’estompent ses anciens amers sous l’effet d’une mise
en question des deux paradigmes (‘romantique’ et ‘textualiste’) qui
jusque-là en réglaient le jeu”.
64
Não podemos perder de vista a epígrafe inicial deste livro,
do poeta Rui Diniz, em que se defende que qualquer significado do
que é poesia apenas vale pela própria palavra poética, pelo poema e
sua leitura. Como diz Diniz, “[…] é ainda praxis a sua teorização.”
(PR, 2000, p. 55).
65
Como é dito no poema que dá nome ao livro de 2008, a
matéria que “os poetas trabalham” é “uma substância das coisas que
não/ se perde quando as asas da beleza/ lhe tocam”. É de salientar
aqui a visão da poesia enquanto técnica, matéria que é “trabalhada”,
bem como o factor que a salienta de tudo o resto – “ a beleza”, que
não é intrínseca mas depende do olhar de quem a vê, personificada
no verbo usado – “tocada”. (p. 124).

39
RICARDo MARQuES

A poesia de Nuno Júdice é, de uma forma geral, uma


poesia de contrastes, a diversos níveis. Em primeiro
lugar, na forma do poema há uma variação entre uma
estrutura discursiva, com outra, uma estrutura contida e
depurada, plasmada muitas vezes apenas numa estrofe.
o estilo narrativo verifica-se desde os primeiros livros,
mas é nos últimos que a convivência entre estes dois
paradigmas se verifica mais.66 Ainda no que toca à
estruturação externa do poema, verifica-se um recurso
tanto a formas tradicionais (a quadra, por exemplo, bem
como outras da literatura tradicional portuguesa) como a
formas fixas, com particular destaque para o soneto67. Em
ambos os casos há, muitas vezes, o aproveitamento
simples de formas fixas, como a ode e a elegia, convi-
vendo de perto com a subversão de outras, especialmente
o soneto e o epigrama.
Também os títulos dos volumes de poemas apontam
quase sempre para esta forma de tensão e convivência
entre duas tendências – a da estabilidade e a da
instabilidade, a do poema e da sua construção, a da tese
e da sua antítese. Temos exemplo disso, já notado antes,
em As Regras da Perspectiva, ou, mais recentemente em
Geometria Variável ou Cartografia das Emoções.
Poderíamos igualmente designar a maior parte da
sua produção poética como obedecendo a uma estrutura

______________________________________________
66
Veja-se, a título de exemplo, a poesia do livro de 2008, A
Matéria do Poema, onde não só temos poemas pequenos e de uma
só estrofe, como “o Silêncio”, outros igualmente pequenos, mas com
um estilo narrativo como “Conto de Fadas” e outros longos e mais
narrativos como “A Mala do Poeta”, que mais tarde iremos ver.
67
A propósito desta forma fixa, o poeta reflecte sobre o
processo de escrita de sonetos num intróito a um dos últimos livros
de poesia, O Breve Sentimento do Efémero, referindo que segue um
modelo académico e estabelecido, que pretende depois imitar.

40
NA TEIA Do PoEMA

silogística68, concretizada em três fases de escrita – a


proposição do tema/assunto, servida não só pelo estilo
narrativo a que já fizemos referência, como pelo léxico
utilizado, o seu posterior desenvolvimento, de onde
sobressaem os conectores de linguagem (“Assim”,
“então”, “a certa altura”) que prolongam a história que o
poema narra até a uma conclusão, a terceira parte do
silogismo, por vezes irónica. um poema que pode
exemplificar a forma como isto acontece é em “A cigana
de Murillo”69.

A analogia é uma das formas através da qual Júdice


se apropria do espaço exterior, usando-a para criar uma
afinidade com o leitor no sentido do reconhecimento dos
elementos concretos do poema ( uma casa, uma flor, um
livro) e que mais tarde são poeticamente subvertidos para
tratar um outro assunto mais sério ou importante ( o amor,
o próprio poema).70 Se a nível temático e imagético é
importante a recorrência da figura retórica da analogia71,
também a paródia, por meio da ironia, é, precisamente,
________________________
68
Entendemos “silogismo” na acepção fiel à etimologia grega
(significando “cálculo” ou “raciocínio”, que se estabelece pela
conexão de duas ideias (premissas) cujos elementos apontam para
uma conclusão. A teoria silogística foi grandemente aplicada pelos
mais conhecidos filósofos da Antiguidade Clássica, nomeadamente
Aristóteles, que a teorizou em Analíticos Anteriores (Cf. Órganon –
III. Analíticos Anteriores, Tradução e notas de Pinharanda Gomes,
Lisboa, Guimarães Editores, 1987).
69
Veremos este poema em pormenor mais à frente, na parte
sobre intertextualidade exoliterária.
70
Esta tendência tem vindo a ser assinalada um pouco por todo
o corpo de críticos contemporâneos, com particular destaque para
Fernando Pinto do Amaral, 1990, ou Maria Graciete Gomes da Silva,
2008, que usam a palavras “analogia” para se referirem exactamente
a Nuno Júdice, nos seus artigos (“entre a ironia e a analogia” e “entre
a adversativa e a analogia”, respectivamente – Cf. Bibliografia final).
71
Diversos são os artigos que referem a analogia como elo de
leitura fecundo em Nuno Júdice, como visto numa nota anterior (Cf.

41
RICARDo MARQuES

um aspecto fundamental da poética judiciana, ligando-se


aos poemas sobretudo a nível do conteúdo72. Penso estar
conotada a presença deste princípio retórico com os
núcleos vanguardistas do início do século XX, especial-
mente os futuristas e o seu princípio de interdis-
ciplinaridade dentro na feitura de uma obra de arte73. No
seguimento desta, há que referir a pastiche como um dos
processos retóricos mais importantes neste poeta.
Constatamos a sua presença em todas as esferas de
diálogo intertextual (endo e exoliterário), concentrando
Júdice o seu esforço poético no retrato alternado da vida
__________________________
artigos sobre o autor na bibliografia final, nomeadamente Maria
Graciete da Silva, 2008). Para uma definição e reflexão do processo
analógico na poesia contemporânea, remetemos para o nosso artigo
“A proporção e a semelhança – da Analogia na Poesia Contem-
porânea,”in Letras & Ciências – As Duas Culturas de Filipe
Furtado, Lisboa, Caleidoscópio, 2009, pp. 138-149, bem como,
complementando, para a nossa análise do poema “Poética com arte
analógica” (in PR, 2000, p. 952), mais à frente neste trabalho.
72
São, efectivamente, conceitos-chave em Nuno Júdice. Por
“paródia”, como já referimos no nosso capítulo “Em torno do
conceito de intertextualidade”, compreendemos o eco transformado
que nos diz Linda Hutcheon, Op. Cit., p. 7, “parody … is imitation
with a critical difference, not always at the expense of the parodied
text.” ou ( Vd. bibliografia final). Para um desenvolvimento
adequado sobre o conceito de paródia, Margaret Rose e Simon
Dentith (Vd. bibliografia final). Encontramos igualmente no livro de
Carlos Ceia, O que é afinal o Pós-modernismo?, uma teorização
sobre a Paródia no sentido de isolar criticamente o conceito (Carlos
Ceia, Op. cit., 1998, pp. 50-52), que o catedrático confronta com
outros termos-limítrofes, como faz Mary orr no que toca à noção de
“intertextualidade”. (Vd. Bibliografia final). usamos, na análise da
poesia de Nuno Júdice o conceito acima transcrito de Hutcheon.
73
Na sua voracidade e opção pela velocidade, o Futurismo, de
acordo com o manifesto fundador de Marinetti (1909) defendia este
ideal de ligação entre as várias artes, tentando espelhar a nova
realidade e dinamismo das máquinas, resultando, por exemplo, na
produção em massa de colagens ou de poemas em que se imiscuiam
elementos gráficos diversos como a letra de imprensa. É de notar
que Nuno Júdice tem igualmente um livro sobre a Poesia Futurista
(Cf. bibliografia final).

42
NA TEIA Do PoEMA

e da obra do objecto de estudo. No referido poema


“Hölderlin” temos um exemplo de um pendor mais
biográfico, uma amálgama de referências a factos da vida
do poeta alemão, descrita com o carácter deformativo da
paródia e a sua subversão de sentido, mas sem um grande
cariz de crítica corrosiva que a paródia tem. Trata-se
apenas uma forma de intertextualidade passiva, que pega
em características definidoras de um objecto (neste caso
de um poeta e de apontamentos da sua bio-bibliografia)
e pretende transformá-lo ou “transmutá-los” poetica-
mente num novo texto. o mesmo se passa no poema
“D.A”, que veremos, em que Júdice fomenta um diálogo
com a poesia e a vida da poetisa Delmira Agustini,
chegando ao ponto de a parafrasear, e entrando já no
domínio da citação.74

Quanto à ironia, o filósofo Kierkegaard dizia que


que esta aparece quando os contrários se manifestam
sobrepostos num mesmo texto75. Efectivamente, a obra
___________________________________________
74
Ainda no domínio da pintura, podemos referir os dois poemas
que veremos sobre Matisse como outros exemplos de pastiche, bem
como a “Cena mitológica”, poema em que Júdice dedica cada uma
das nove estrofes do poema às sete musas patronas das artes – em
cada uma das estrofes vão ser enumerados aspectos simbólicos que
identificam a musa em causa. (Cf. Capítulo “Nuno Júdice – a partilha
poética dos mitos”).
75
Nas palavras de William MacDonald, da universidade de
New England, referindo à própria maneira de abordagem científica
de Kierkegaard e os seus fins: “All of this play with narrative point
of view, with contrasting works, and with contrasting internal
partitions within individual works leaves the reader very disoriented.
In combination with the incessant play of irony and Kierkegaard’s
predilection for paradox and semantic opacity, the text becomes a
polished surface for the reader in which the prime meaning to be
discerned is the reader’s own reflection”. Cf. <http://plato.stanford.
edu/entries/kierkegaard >(acedido em Fevereiro de 2009). De
assinalar que a sua primeira grande obra é um tratado sobre a ironia
socrática que teve uma grande influência no trabalho de filósofos

43
RICARDo MARQuES

judiciana passa em muito por uma referência irónica e


intenção paródica, estabelecendo assim uma relação
intertextual de natureza jocosa, que estimula a parti-
cipação do leitor. Esta tendência verifica-se, antes de
mais, no plano da forma, na subversão de uma forma fixa,
mas igualmente no plano do conteúdo, começando pelos
paratextos como um título. Apenas para citar um
exemplo, o livro de 2006, As Coisas Mais Simples, parece
uma investida sobre a realidade mais banal e simples,
mas na verdade, ao entrarmos na matéria do poema,
vemos que é até um livro bastante complexo e que
estabelece nexos de leitura para com outros dos seus
livros.76 Por outro lado, este contraste na sua poesia
regista-se na convivência antitética com esta intenção
mais humorística e irónica em certos poemas com um
outro tipo de poesia, menos apolínea e mais melancólica.

Ao nível do uso da palavra, também o barroquismo


inicial, tão apegado a uma tradição ultra-romântica, de
adjectivos, substantivos e expressões vivas e trabalhadas,
regista uma grande evolução para a linguagem empre-
gada nos volumes publicados mais recentemente, que
contrasta assim enormemente com uma simplificação
lexical. Veja-se, a esse propósito, e pensando nos pintores
com que Júdice dialoga, a linguagem de um dos dois
longos poemas que analisaremos sobre Matisse, nomea-
_________________________
idealistas como Schelling, Fichte ou Hegel, cujos trabalhos irão ser
a base do pensamento romântico, movimento caro a Júdice. Veja-se,
para mais detalhes, a obra de Kierkegaard que incluimos na biblio-
grafia final.
76
Lembramos aqui o “mise en abyme” de que falava Lucien
Dallenbach (Cf. “Autotexto e Intertexto”, bibliografia final), e que
se pode plasmar no último poema desta colectânea, um poema
narrativo de várias estrofes e página profeticamente intitulado “A
teia da vida”. (As Coisas Mais Simples, 2006, pp. 111-126).

44
NA TEIA Do PoEMA

damente o que se encontra no livro inicial, e o curto


poema sobre outro pintor como “Caspar Wolf”, dos anos
80, ou, mais recentemente, de Linhas d’Água, “No
Atelier de Cézanne”. Paralelamente, e à medida que a
forma do poema se foi depurando e virando para uma
estruturação do mesmo com um progressivo recurso a
formas fixas77, são verificáveis mais jogos de palavras,
sejam eles quiasmáticos, sejam eles a nível da exploração
da ambiguidade da própria palavra, servindo esta última
a intenção paródica a que aludimos atrás. um bom
exemplo temos em Rimas e Contas, de 2000, “Soneto,
contando-se”78:
Começa o poema como sempre começa:
um verso na página ainda por encher
de uma imagem que me surge na cabeça,
com um sentimento que se tem de dizer.

Continuo em busca de rima e de ritmo,


mesmo que sem eles pudesse passar:
a poesia nasce de outro logaritmo,
e pode mesmo viver apenas do ar.

Mas está no teu corpo o seu pensamento,


com a música e o fôlego do amor.
És tu, ausente e viva, sempre, minha amada,

quem sopra entre as estrofes um doce lamento:


prazer e pranto que registo com rigor
nos catorze versos desta forma acabada.

_______________________
77
Veja-se, a este propósito, o número de sonetos constante de
livros com menos de uma década como são O Estado dos Campos
ou Rimas e Contas, com o seu livro inicial, onde impera o verso livre
em grandes secções dentro de um livro. Por outro lado, também se
nota uma aproximação à quadra, apesar de esta já se notar desde os
primeiros livros.
78
PR, 2000, p. 1063.

45
RICARDo MARQuES

Exceptuando a irregularidade do verso, este soneto


tem a particularidade de seguir de perto as características
formais desta forma fixa, tal qual foi formulado no
Renascimento e evoluiu até aos nossos dias. Assim, os
catorze versos desenvolvem o assunto da própria escrita
do soneto, já apontada na subversão animista do verbo
reflexivo do título – “contando-se”, apontando para a
ambiguidade entre um significado matemático e de
narração/descrição de um acontecimento. Assim, a
primeira estrofe é expositiva do assunto a desenvolver,
situando o sujeito poético a começar a escrever o poema,
com a “imagem” e o “sentimento” que tem na cabeça. De
seguida, a segunda estrofe vai confirmar o que se disse
atrás (repare-se no uso do verbo “Continuo”), mostrando
o poeta a continuar em busca de outros elementos perti-
nentes ao poema – “rima e ritmo”, mesmo que estes sejam
secundários ou menos importantes para o poema existir.
A conjunção adversativa que inicia o primeiro
terceto vem quebrar este ritmo, introduzindo uma contra-
posição de ideias no poema que vai continuar até ao fim.
Esta consiste no facto de ser a imagem da mulher amada,
“ausente mas viva”, que vive no poema, sendo o seu
“pensamento”. É ela que, dessa forma, estando na cabeça
de quem escreve, mas ausente fisicamente, faz construir
as estrofes do poema entre o “prazer” de ser lembrada e
o “pranto” da sua ausência real. os dois versos finais
apontam assim para um claro assumir da escrita poética
por detrás de quem escreve este soneto, registando assim
“com rigor,/ nos catorze versos desta forma acabada”, a
tese de que um soneto se constrói (outra variação do
verbo do título) apenas pela imagem de um sentimento,
isto é, pela memória.
Estamos, em suma, perante um soneto “a contar” a
sua própria história, com um exemplo claro. Júdice

46
NA TEIA Do PoEMA

apresenta um soneto que fala de si próprio, sendo este


poema a sua exemplificação e, ao mesmo tempo, o seu
próprio tratado de composição.
um processo muito importante em Júdice e que se
relaciona não só directamente a nível lexical como
também a nível da estruturação dos versos é o encaval-
gamento. Este processo ganha particular destaque no
quadro dos seus primeiros livros, visto estes apre-
sentarem um estilo mais narrativo do que nos últimos
volumes. Este processo, provocado uma ruptura ou
cesura do verso, ajuda e intensifica determinadas
associações e a saliência de pressupostos retóricos, de
termos e expressões, criando assim um movimento
rítmico mais acelerado. o encavalgamento cria igual-
mente um movimento ondulado no poema, centrado-o no
verso e acelerando o seu ritmo. Este serve o pressuposto
da ironia, sempre presente na poesia judiciana, sobretudo
no que diz respeito ao uso das formas fixas. Encontramos
um bom exemplo no poema “Eros Pedagogo”79, que
analisaremos na parte sobre a presença da mitologia nos
seus textos poéticos. Como veremos, é um poema escrito
em catorze versos mas põem causa o próprio pressuposto
formal desta forma fixa – enquanto a mancha gráfica
obedece à maneira petrarquista, a nível do conteúdo, por
meio do encavalgamento, vai-se filiar na tradição shakes-
peareana. Vejamos a parte final:
[…]
Deixa que os seus braços te prendam
como os ramos da árvore que floresce.
Por vezes, é do céu que o amor desce,

__________________________________________

79
PR, 2000, pp. 413-414.

47
RICARDo MARQuES

mesmo que para ele as almas ascendam.


Agradece, então, essa arte divina
que te faz cantar o que te ensina.

A nível de conteúdo temático, como veremos, esta é


uma poesia questionadora, axiomática até. No entanto, a
questão principal é a própria questão da essência da
poesia80. Este é o seu enigma, para usar uma palavra-chave
na procura judiciana da verdade poética. Se muitas vezes
a feitura do poema o preocupa explicitamente, o que se
verifica nas inúmeras artes poéticas e poéticas que
abundam nos seus livros, por um processo analógico e,
muitas vezes, irónico, também implicitamente isso aconte-
ce para com outras disciplinas e elementos do quotidiano.
São assim várias as linhas temáticas, os estilos e as
formas que compõem o corpus desta poesia, a sua
verdadeira identidade. No entanto, como vemos em
Claudio Guillén81 e para usar a expressão que dá título a
uma das suas obras, entre o “diverso” podemos entrever
o “uno”. Este é a exigência da procura da essência da
palavra poética, numa reflexão multívoca e polifacetada
sobre o poema, a última razão e preocupação desta
poesia, como constataremos de seguida.

___________________________________________

80
A quantidade de poemas explicitamente sobre a arte poética
é, como veremos, imensa, sendo aliás a linha temática que
claramente sobressai, ainda mais se lhe juntarmos aqueles poemas
em que implicitamente está a falar da arte literária e poética. (Cf.
Capítulo “As coisas do Poema e o Poema enquanto Coisa”).
81
Cf. Claudio Guillén, Entre el uno y el diverso: introducción
a la literatura comparada, Barcelona, Tusquets, 2005 [1985].

48
PARTE I

DIÁLOGOS COM
A LITERATURA
1. DIÁLOGOS COM A LITERATURA

1.1 O universo literário em Nuno Júdice

A simultaneidade entre poeta e crítico é algo que


vem desde Baudelaire, aquele que foi visto como o
primeiro poeta modernista, e que acreditava também ser
função do poeta a de desenvolver a crítica literária82. No
caso português, bem como em outros casos de outras
tradições literárias do ocidente, muitas vezes os críticos
de poesia são os próprios poetas83, quer pela produção de
textos críticos e volumes de crítica onde essa mesma
posição crítica sobre textos poéticos é veiculada84, quer
pela escrita de textos metapoéticos e que, por isso, se
encontram nesse limiar que existe entre a poesia e a sua
crítica.
______________________
82
Da sua actividade de crítico, salienta-se a reverência a poetas
seus contemporâneos como Poe, de quem fez várias traduções.
Publicou ainda dois livros de artigos críticos, nomeadamente
Curiosités esthétiques (1868) e L’Art romantique (1869).
83
No que toca à poesia portuguesa contemporânea, e sem
procurarmos ser exaustivos, mas abrangentes, podemos referir os
exemplos de Fernando Guimarães, Gastão Cruz, Nuno Júdice, Pedro
Mexia, …
84
Apesar de tudo, não é assim tão linear a sobreposição destas
suas duas actividades no caso judiciano, uma vez que muitos dos
tópicos sobre os quais Nuno Júdice versa não se limitam ao campo
da poesia. os melhores exemplos do que se refere são, em diversas
fases da sua vida ensaística e por ordem cronológica descendente, O
Fenómeno Narrativo, 2005, Viagem por um Século de Literatura
Portuguesa, 1999, O Texto no Conto Medieval, 1991 e A Era de
Orpheu, 1981.

51
RICARDo MARQuES

É o que acontece na obra poética de Nuno Júdice. o


poeta português estabelece um profícuo diálogo com a
teorização da poesia na própria poesia que escreve,
mostrando obsessivamente através de diversas alegorias,
comparações e metaforizações, uma verdadeira poética
ou tratado da sua poética, para além do que é um poema.
Vemos, neste sentido, o seguinte texto, intitulado “Linha
2”, e que se inclui no livro Linhas de Água85: “o poema
é o espelho do poema. Ao escrevê-lo, atravesso a página,
como se atravessa o vidro do espelho, e entro num mundo
de que só consigo sair quando chego ao fim do poema.”.
É de notar que todo o livro onde este poema se encontra
funciona dentro do seu trabalho poético como uma
espécie de tratado onde expõe poeticamente aquilo que
pretende para ele ser um poema.86 Composto de 28
poemas, um terço dos quais são “Linhas” (de 1 a 10), que
se vão enumerando, é mais através da figura da ave (seja
ela a fénix de “Epigrama com fénix”, seja ela a “ave do
inverno que levanta voo” de “Linha 5”) que a metáfora
da construção do poema se dá neste livro, sobretudo se
considerarmos o seu último poema, “Linha 10”87, uma
_____________________
85
PR, 2000, p. 1036. Também podemos relacionar Linhas de
Água com o jazigo de Keats, que diz “Here lies one Whose Name
was writ in Water “, apontando para a transitoriedade e efemeridade
da poesia e da vida dedicada a ela (como a de Keats) perante a
inexorabilidade da morte.
86
Esta ideia já tinha sido observada por Teresa Almeida, no
prefácio à sua Poesia Reunida, quando diz “Poder-se-ia dizer que o
livro Linhas de Água nasceu para teorizar a nova fase da obra de
Nuno Júdice. Está concebido como uma arte poética onde se
encontram os fundamentos teóricos de uma poesia que não se deixa
de pensar, sabendo à partida que o seu enigma nunca poderá ser
completamente desvendado”. (PR, 2000, p. 41). Mais reforça esta
linha de teorização poética dentro do próprio poema o facto de
metade dos poemas deste livro estarem escritos em prosa, como se,
efectivamente, de um tratado poético se tratasse.
87
PR, 2000, p. 1060.

52
NA TEIA Do PoEMA

história alegórica sobre a construção do ninho, que depois


é relacionada com a própria construção deste livro de
poemas. Como uma teia cujos fios ou, para usar uma
palavra cara a este livro, “linhas” de urdidura chegam ao
fim, o motivo da ave é logo retomado a início:

Ainda os pássaros: construiram o ninho no fim do outono


passado, quando se anunciavam as grandes chuvas do inverno e o
céu os empurrava já para o sul. Ali ficou, a desfazer-se com a
humidade, com as palhas a serem arrastadas pelo vento par fora das
telhas. Com o princípio da primavera, porém, voltou a ser habitado:
e o casulo recompõs-se, enquanto os homens arranjavam o telhado,
por cima do ninho, sem darem sequer por que, por baixo dos seus
pés, uma outra vida renascia.
Talvez a trepadeira o tenha escondido dos seus olhos, e
impedido que o tivessem destruído. De facto, a vida natural insiste,
para além de todas as forças, e muitas vezes é só do acaso que ela
depende. Então, lembro-me do poema: como esses pássaros, os
poetas insistem em construí-lo, apesar da sua precária natureza: e
ali, na beira do telhado, onde o céu e a terra parecem confundir-se
quando o brilho do sol lhe bate, a imagem do ninho obriga-me a
recitar o poema, para que as linhas se juntem, no fim, e a figura da
ave levante voo de dentro das palavras.

Em segundo lugar, importa referir que este seu


diálogo é estabelecido igualmente tendo em conta a sua
própria carreira literária, acabando por ter um forte
“pendor auto-reflexivo”88. É paradigma disso o poema
seguinte, onde está uma reflexão crítica e poética sobre
o seu próprio processo de escrita ao longo dos tempos.
Chama-se “Registo Manual”89 e está presente num dos
seus últimos livros de poesia, A Matéria do Poema:

___________________________________________
88
Expressão cunhada por Manuel Frias Martins, num artigo
sobre a poesia de Júdice. Cf Bibliografia final.
89
Cf. A Matéria do Poema, 2008, p. 100.

53
RICARDo MARQuES

Comecei por escrever com a caneta de tinta


permanente, que sujava os dedos; passei para esfereográficas
que riscavam o papel; troquei-as por uma sólida triumph
de teclado hcesar, que fazia doer o dedo
com que a martelava; e passei daí para o azert de uma olivetti
de batida mais leve, para que o poema se fosse tornando
mais pesado, com o virar do rolo
a cada cesura; e o verso tornou-se um intervalo
entre dois ruídos, com o seu silêncio pontuado
pelo bater da tecla no papel. Por fim, o computador trouxe-me
ao qwertz; mas quase voltei
a ouvir o riscar da caneta no papel, ao olhar
para o ecrã e descobrir o vermelho a sublinhar
erros nascidos da pressa do poema, que tinha de corrigir
na rasura abstracta do ecrã.[…]

Nesta primeira parte vemos Júdice a relacionar a


escrita de um poema com o seu próprio registo que,
ironizando desde logo o título, cada vez menos vai sendo
manual. A cada elemento enumerado, concomitante com
uma evolução cronológica linear, vai corresponder uma
característica negativa, que o poeta trata poeticamente
(vv. 8-10). É de notar que o autor tem sempre o cuidado
de mostrar o efeito que cada um desses métodos de
escrita do poema tem no poema em si, chegando ao
último elemento (o teclado “qwertz” de um computador
normal) com uma referência ao seu início. Na parte
seguinte e final, naquilo que é uma estrutura de poema
típica neste autor, o poeta recolhe todos os elementos,
com as suas diferenças e características enumeradas
anteriomente, para revelar aquilo que para além de tudo,
é mais importante e é seu denominador comum:
[…] Com o tempo, foram mudando
as tintas, as canetas, as máquinas; e só o poema continuou
a ser o mesmo, feito à medida dos dedos que aprenderam
a passar da tinta ao teclado, do hcesar ao qwertz, passando
pelo azert, e do verso ao verso, nos versos
e reversos do papel.

54
NA TEIA Do PoEMA

Assim, apesar de todos os métodos de escrita, para


este autor a vontade de fazer poesia continuou imutável
e latente, ao longo dos anos (“só o poema continuou/ a
ser o mesmo”). os últimos versos desenvolvem esta
ideia, enumerando novamente os diversos meios de
escrita que nos versos anteriores resumiu num só (“as
tintas, as canetas, as máquinas”), meios esses que são
sempre feitos “à medida dos dedos”, já que dependem
sempre desse “registo manual” “do verso ao verso, nos
versos/ e reversos do papel”. Vivemos, como lemos no
poema de Júdice, num momento em que o mundo está
contaminado por um grande avanço das novas
tecnologias, e a “escrita manual no ecrã do computador”
é o paradigma de hoje.
Ainda no livro A Matéria do Poema, há outras
poéticas implícitas, que se relacionam com outros
assuntos e esferas temáticas secundárias, de acordo com
as variantes dos títulos. Assim, e em primeiro lugar,
vemos no poema “uma Poética no sótão”90 a forma como
Júdice vai tomar como pretexto ou imagem poética uma
ida a um sótão para pensar o fenómeno poético, a sua
forma de ver e fazer a sua própria poética:

No meio de coisas velhas procuro o que


é novo. Em cada fim vejo um princípio;
e todos os cacos se voltam a colar,
mesmo quando faltam pedaços, ou não
se sabe a que parte pertence a outra.

É assim com o poema: faço-o com as


palavras velhas, as que estão cheias de
bolor, as que foram atiradas para um canto
do dicionário. Algumas, não sei o que
querem dizer; outras, disseram tantas vezes
o mesmo que já perdi o sentido do que
dizem. Mas quando as colo, no verso,
o que ouço tem sempre um outro sentido.
____________________________________________

90
A Matéria do Poema, 2008, p. 104.

55
RICARDo MARQuES

Este poema, por exemplo, não tem


nada de novo. As palavras são fáceis,
os sentidos são óbvios. E é por isso
que ando, no meio dele, à procura de
coisas novas; e ao chegar ao fim,
vejo um princípio, e sei que tudo se volta
a colar, como se nada aqui faltasse.

um poema situa-se sempre entre dois grandes


momentos temporais, o passado, onde algo que se passou,
e o presente, onde o poema sobre esse apontamento do
passado é feito. É o que parece ser defendido aqui. Para
transmitir essa ideia, este poema segue uma das formas
mais constantes de estruturação temática que vimos
pautar a poesia de Júdice: tese, confirmação e aplicação
prática, correspondentes a cada uma das estrofes do
poema. Assim, enquanto a primeira estrofe expõe uma
ideia geral (o poema é sempre feito com coisas velhas),
a segunda já vai tratar apenas da aplicação da teoria da
primeira estrofe na escrita particular da poesia judiciana.
A última estrofe vai remeter directamente para o poema
em questão. A conclusão que se tira é a de que é a viagem
ou escrita do poema, espelho de coisas velhas e procura
de coisas novas, que realmente interessa, já que quando
se chega ao fim, há sempre um novo poema que parece
querer despontar.
Assim, e para não sairmos deste livro, a poesia
actual de Nuno Júdice é uma “poética da simplicidade”
sem simplismo, como podemos ver ecoado numa das
suas últimas poéticas91:

__________________________________________

91
A Matéria do Poema, 2008, p. 11.

56
NA TEIA Do PoEMA

Quero que o meu poema fale de barcos e de azul, fale


do mar e do corpo que o procura, fale de pássaros e
do céu em que habitam. Quero um poema puro, limpo
do lixo das coisas banais, das contaminações de quem
só olha para o chão; um poema onde o sublime nos
toque, e o poético seja a palavra plena. […]

os versos iniciais deste poema são claros quanto à


poética dos seus últimos livros. Como temos vindo a
perceber pela mais recente poesia deste autor, são as
coisas mais simples, as literaturas menos depuradas
(veja-se o exemplo do recurso sistemático às estruturas e
temas da literatura tradicional) as estruturas mais
depuradas (o soneto, em particular, mas também o dístico
ou a quadra) os elementos, temas e formas que,
respectivamente, mais lhe vão interessando nos anos mais
recentes. Por outro lado, só aqui, “num poema puro e
limpo […] onde o sublime nos toque, e o poético seja a
palavra plena” o sujeito poético encontra as armas contra
“o lixo das coisas banais” que o quotidiano menos feliz
ou apolíneo parece teimar em tentar contaminar e
conspurcar. os versos que se seguem vão glosar,
efectivamente, esta ideia apolínea do encontro da poesia
como se do encontro com a vida se tratasse, usando para
isso do princípio retórico preferido pelo autor, a imagem:

[…] É este poema


que escrevo na página branca como a parede que
acabou de ser caiada, com as suas imperfeições
apagadas pela luz do dia, e um reflexo de sol
a gritar pela vida. E quero que este poema desça
às caves onde a miséria se acumula, aos bancos onde
dormem os que não têm tecto nem esperança,
às mesas sujas dos restos de madrugada, às
esquinas onde a mulher da noite espera o último
cliente, ao desespero dos que não sabem para onde
fugir quando a morte lhes bate à porta. E canto
a beleza que sobrevive às frases comuns, às

57
RICARDo MARQuES

palavras sujas pelo quotidiano dos medíocres,


aos versos deslavados de quem nunca ouviu
o grito do anjo. E digo isto para que fique, no
poema, como a pedra esculpida por um fogo divino.

Nesta última parte do poema, vista que está a


proposição inicial do estilo de escrita pretendido para si
e dos elementos que com ela pretende convocar, o poema
vai ser dominado, como se disse atrás, por uma pretensão
repetitiva, e por isso reiterante e quase obsessiva por parte
do sujeito poético, no sentido de imortalizar o poema
pretendido para que ele se distinga do tal “lixo das coisas
banais” que o início do poema vai afastar. Vejamos como
isso acontece. Por um lado, não se pretende uma escrita
perfeita, mas um poema que seja reflexo da própria
imperfeição da vida, da sua vivência (vv. 9-11). A sua
função, enunciada logo de seguida (vv. 11-18), é a de ser
um “canto” de esperança (v. 13) “na espessura do tempo”,
para usar o título de um dos seus livros, contra os tempos
do “desespero” (v. 15) e de “miséria”(v. 12), numa
tentativa de suavizar o próprio paradoxo da vivência que
é o seu término inevitável com a morte (vv. 16-17).
A ontologia da literatura é, por outro lado, o tema-
-alvo de “Nova Teoria da Literatura”92, onde Júdice, como
se vê, assume essa mesma atitude de reflexão poética logo
no título, jogando mais uma vez com o conteúdo do poema
e o seu próprio propósito enquanto poeta:
o que é a literatura? Não é apenas essa vibração
que vejo nos teus olhos e me obriga a descrever
as oscilações da sua cor no instante entre a manhã
e a tarde, quando a Primavera te contamina com a sua
luz; nem o riso que os teus lábios me devolvem,
no ciclo de maré em que todas as falésias
______________________________________________

92
Geometria Variável, 2005, pp. 118-119.

58
NA TEIA Do PoEMA

me conduzem a ti. Posso dizer que a literatura


é tudo, e é o nada que alimenta esse tudo quando
nos sentamos à beira do ser, e o amor nasce da sua
circunstância; ou pode ser a sombra que a morte
esconde, num acaso de Inverno, para que as palavras
que digo a libertem do seu esquecimento. A literatura
é esta memória de azeitonas e laranjas no verão
da infância; é a queda do velho, quando o outono
se aproxima, e fico a saber que em breve uma cadeira
ficará vazia no átrio da casa; é o teu corpo em mim,
completando memórias e libertando imagens; é
a mesa cheia no instante da vida, com
os seus pratos a transbordar de sonho e os copos
cheios com o rumor transparente do tempo. Não
é preciso aprendê-la; alimenta-se de acasos,
move-se com as asas do silêncio; canta com
a música de um movimento amado. Encontra-a
quando não a espero; e vou ao seu encontro
quando o teu olhar se cruza com o meu. Está
aqui, em cada passo que dou, dura e frágil como
a flor do campo, que se renova quando a colhemos,
e vive para sempre na mão que a oferece.

De um modo geral, esta ”nova teoria” sobre o que é


a literatura vem mostrar que ela é apenas válida quando
baseada no real, na relação do poeta com os elementos
da natureza, expressando aquilo que o poeta sente dentro
de si, na esteira de Rilke e da sua “respiração das coisas”
quando fala da forma de se conectar ao mundo pela
poesia93. Como a famosa definição pessoana de mito, a
literatura é “tudo e nada” (vv. 7-8) – tudo o que vemos à
nossa volta, todos os elementos da nossa vida, que são,
no fundo, esses “nada” de que fala, pelo carácter ínfimo
que têm (como o expressa o poeta brasileiro Manoel de
Barros). Por espaço exterior vão sendo enumerados vários

_________________________________________
93
Cf. Primeira elegia de Duíno. usamos a seguinte tradução
espanhola – Rainer Maria Rilke, Elegías de Duino/Los Sonetos a
Orfeo – (Edición de Eustaquio Barjau), Madrid, Catedra, Colección
“Letras universales”, 2007 [1986].

59
RICARDo MARQuES

exemplos. Em primeiro lugar, o amor, platonicamente


exemplificado com a temática dos olhos e aquilo que eles
sugerem ao sujeito poético (outros elementos corporais,
sugerindo um amor mais físico do que espiritual, também
se vão seguindo, como é exemplo os lábios). Por outro
lado, a literatura também é feita de pequenos aponta-
mentos da nossa memória (“azeitonas e laranjas no verão
da infância”), como se através da literatura fosse
actualizada a nossa lembrança dessas coisas ínfimas, que
mais ninguém se lembra. Assim, deduzimos que a
instância de que esta “nova teoria da literatura” tem como
mais importante é o tempo, cuja angústia de passagem é
expresso na literatura. “Tudo e nada”, é flor de campo
“dura e frágil”, que sempre vive nas veias de quem tem
a vontade de a ler (“renova quando a colhemos”) ou o
dom de a querer escrever (“oferecer”).
Encontramos no poema “Gramática”94, do volume
Fonte da Vida, uma narrativa e, simultaneamente, uma
descrição poética daquilo que compõe o processo de
escrita, e de como se deve escrever:
Com que gramática se escreve? A
de um luar antigo, por onde voaram
as aves nocturnas em busca
de alvorada? A de uma sintaxe matinal,
emprestando ao verso o soletrar
luminoso das vogais? ou a dessa tarde
que deixou nos lábios o sabor
de alavras secas como as folhas
do outono?

Aprendi essas gramáticas nos


compêndios da imaginação; decorei
as suas regras com o fervor obscuro
das mnemónicas doentes; repeti
____________________________
PR, 2000, p. 868.
94

60
NA TEIA Do PoEMA

os seus exemplos em estrofes


vazias como as caixas amontoadas
num sótão de infância.
“Terá valido a pena esse
trabalho?”, perguntas-me. De facto,
não sei que resposta te poderei
dar. os livros – arrumados nesse
canto do infinito em que nunca
nos havemos de encontrar; as frases,
sem ligação, como se a vida
as tivese desfeito
no moinho da eternidade

Então, pergunto, eu, de que corpo


és a sombra sem rosto, o pulso
sem emoção, a queixa sem a música
de um murmúrio?

Em primeiro lugar, podemos estabelecer neste


poema uma distinção entre quatro partes que concorrem
no objectivo de definir o momento poético. A primeira
parte, correspondendo à primeira estrofe, ocupa-se,
assim, do sentimento que leva a escrever a poesia,
interrogando-se constantemente sobre esse processo. Por
analogia, é posta nos elementos matinal, vespertino e
nocturno do dia, uma correspondência de três senti-
mentos diversos que levam à urgência de expressá-los
através da escrita, bem como das palavras (“gramática”)
que as podem expressar (são eles, respectivamente, o
sentimento de felicidade e o da passagem do tempo com
a meia-idade, e o tempo negativo da espera pela morte).
Em segundo lugar, a estrofe seguinte subdivide-se
em duas ideias em relação a esta “gramática”. Por um
lado, é claramente defendida a “imaginação” como aquilo
que serve qualquer gramática da escrita, que lhe é
anterior, num duplo trabalho de “decoração” e de “repeti-
ção” de processos linguísticos, verbos importantes nesta
parte. Por outro lado, o sujeito poético vai-se questionar

61
RICARDo MARQuES

quando à validade e finalidade de todo esse trabalho,


pergunta a que não sabe dar resposta e que opta por
contrapôr com uma tripla pergunta retórica, apontando
metaforicamente para a única conclusão – a escrita e, em
particular, a poesia, é um “nada” (“sombra sem rosto”,
“pulso sem emoção”) mas ao mesmo tempo um “tudo”
que vale a pena a corporização do seu trabalho.
De um modo geral, a estrutura temática do poema
pode-se resumir às várias perguntas e respostas que ao
longo dele vão dando uma ideia de qual é a gramática da
escrita e se vale a pena a sua escrita: “Com que gramática
se escreve? (v. 1), “Aprendi essas gramáticas nos
compêndios da imaginação” (vv. 10-11), “Terá valido a
pena esse trabalho?” (vv. 17-18), “De facto, não sei que
resposta te poderei dar” (vv. 18-20). A resposta que se
adivinha é que é o poema a sua própria gramática que
vale por si (“os livros […] as frases”).
Sobre a inspiração, conceito muito associado aos
poetas, vai Nuno Júdice discorrer num pequeno poema
de uma só estrofe intitulado “Contra o sublime”, onde
ainda vai opor duas ideias importantes relativamente à
construção de cada um dos versos de um poema95:
_______________________
95
PR, 2000, p. 800. Curiosamente, em Geometria Variável,
2005, pp. 17-18, Júdice tem um poema que se intitula “Defesa do
Sublime”, conotando, de forma diferente, este sublime com o lugar
do poema. Também sobre a inspiração temos o poema “Conversa
com a minha musa”, de Cartografia das Emoções, 2001, p. 152, que
encontra eco em “Musa”, de Geometria Variável, p.121, já que na
musa da inspiração vai Júdice concretizar as próprias características
que ele, como poeta, manifesta na sua poesia, uma arte de dizer e de
fazer. outra “Musa” encontramos em O Breve Sentimento do Eterno,
p. 61, desta feita mostrando de outra forma a simultaneidade entre o
poeta e a sua musa que dá a inspiração – “Sabes o que sei, e só eu
sei o que sabemos”. Ainda sobre a inspiração, também escreveu um
longo poema intitulado “Ensaio sobre a inspiração”, presente em As
Coisas Mais Simples, de 2006, pp. 68-70.

62
NA TEIA Do PoEMA

A inspiração irrita-me: os seus voos,


as vozes, os velos dourados de um orvalho
divino. Por vezes, fragmentos, ou versos
inteiros como ramos já floridos,
nascem do nada: tronco algum os segura,
e nenhuma terra recolhe as suas folhas. Mas
vivem esse instante de rosa, teimam
em brilhar na obscuridade com o que o espírito
os afasta. Mais tarde, tento recuperá-los,
como se fossem raízes, ou pedaços de madeira
intactos por entre as cinzas. É
uma arqueologia inútil; e um cansaço
de éter empurra-me para o poema.

Há desde logo a construção de uma tomada de


posição relativamente à “inspiração” (“irrita-me”), aos
seus efeitos para a concretização do poema, que parece
ser posta numa relação de semelhança com o adjectivo
polissémico “sublime”. Aqui a acepção passa por dar-lhe
um significado “divino”. Pensamos haver aqui alguma
ironia da parte de Júdice, na medida em que a própria
frase discursiva que corre os três primeiros versos do
poema, e onde defende esta ideia, regista uma propo-
sitada aliteração consonântica do “v”.
Desenvolvendo esta ideia contrária à inspiração e
naquilo que é uma imagem do poema enquanto árvore
(que aparece em outros poemas96), o sujeito poético
concretiza na prática o que quer dizer. Diz-se que às vezes
“versos/inteiros como ramos floridos” podem aparecer
“do nada”, e viver metafisicamente, sem nada que as as
prenda à terra, isto é, sem ser necessário que cresçam para
__________________________________________

96
Veja-se todos os poemas que compõem o ciclo “Botânica”,
ciclo a que já fizemos menção. Também a árvore se identifica com
o ser humano, naquele que é o símbolo mais conhecido para este
elemento vegetal (Cf. Chevalier et Gheerbrant, Op. cit. , 2002), em,
por exemplo, “Árvore”. (PR, 2000, p. 180).

63
RICARDo MARQuES

atingir esta perfeição de verso elaborado ou trabalhado.


A esse momento efémero em que nascem e vivem, e em
que “brilham na obscuridade”, o autor chama o “instante
de rosa”, símbolo de um produto elaborado e perfeito da
natureza, mas que é perecível e fenece rapidamente.

Aqui retomamos novamente o “sublime”, plasmado


no próprio verso que aparece do nada e é perfeito, na
própria rosa. Dada a sua existência fugaz, se o poeta tenta
recuperar esses versos como produto da inspiração, “é
uma arqueologia inútil” e tem de se contentar com o
próprio poema que fica. Assim, a tomada de posição
deste poema é “contra o sublime”, a inspiração que
fornece produtos acabados (“divinos”) de beleza, mas
que depois não vai ser possível recuperá-los ou repeti-los
isoladamente do poema.

64
2. O POETA E O UNIvERSO POéTICO

2.1. A poesia

Para Nuno Júdice, o carácter singular da poesia tem


em primeiro lugar um razão eminentemente linguística97:

É a criação linguística que está no centro do que se pode


chamar a diferença da poesia em relação a outras formas de
expressão: criação que passa por um processo de transferência dos
mecanismos de apreensão do mundo através da linguagem para o
interior dela própria, criando um metasistema linguístico de que a
retórica é uma das codificações possíveis.

De acordo com seguinte poema, toda a arte vem


radicar exactamente ao princípio poético da linguagem,
lembrando a lição de Jakobson relativamente às funções
_______________________
97
Cf. Nuno Júdice, As Máscaras do Poema, Lisboa, Arion,
1998, p. 63 (sublinhados do autor). Do mesmo modo, em “Modos
Desconhecidos do ser”, poema do seu livro inicial, é desde logo
assinalada a importância da voz, já que “A poesia é teatro, diz-me
uma voz interior. Representar-me/ em cada poema, montar-me uma
personagem, uma acção, um ambiente.”. Vemos aqui um diálogo
claro entre a Poesia e o Teatro, ambos palcos de representação de
uma voz. Este poema constitui, em Júdice, uma poética interessante
e importante, visto os vários “modos desconhecidos do ser”
assumirem uma estratégia polimorfa, consoante vemos no diálogo
intenso com diversos “homens da palavra”, como cunhou Gastão
Cruz – “os poemas de Nuno Júdice são, frequentemente, histórias
cujo tema é o próprio dizer e cujas personagens são todas aquelas
que usam as palavras – os teóricos e os professores, os oradores, os
filósofos, os poetas, escritores, autores”. (in A Vida da Poesia,
Lisboa, Assírio e Alvim, 2008, p. 299).

65
RICARDo MARQuES

dentro da comunicação verbal, em particular, na litera-


tura98. o poema em questão é “A Arte é Poética”99:

Brilhos, fulgores, opacos de escrita,


desvios para os dois lados da margem
sem transposição de limites…

As ambíguas violências da paisagem, o reflexo do mar


nos vidros, tudo o – não especificamente poético – que retome
o poema, o desenvolva para além dele,
para o outro lado do sono, da respiração.

Repito: “brilhos, fulgores…”, e através do verso assim recomeçado


é a minha própria voz que ouço e me atinge.
Diversa, no entanto, da voz inicial.
E essa outra, imaterial e abstracta,
pertence à própria conclusão de um pensamento estético,
de uma metafísica própria,
que me suportam e transcendem.

Este é um exemplo explícito de um poema auto-


-reflexivo judiciano, que se vai pensar dentro de si
próprio. As duas primeiras estrofes vão falar de todos os
aspectos usados para desenvolver, de uma forma
concretizável, a ideia ou tema por detrás de um poema.
A terceira e última estrofe retoma metapoeticamente o
início da primeira, chegando-se à conclusão de que essa
palavra que se repete é a mesma “voz” que antes a disse.
___________________________________________
98
Segundo este teórico, a função poética é a função mais
importante da comunicação verbal, da linguagem, sendo a função
mais importante na ciência literária. No entanto, o estudo da poesia
não se pode confinar apenas ao estudo da sua função poética:
“Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia
ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação
excessiva e enganadora. A função poética não é a única função da
arte verbal, mas tão somente a função dominante, ao passo que, em
todas as outras atividades verbais, ela funciona como um constituinte
acessório, subsidiário. (in Roman Jakobson, Linguística e Comuni-
cação. São Paulo, Cultrix, 2005, pp. 127-128).
99
PR, 2000, p. 116.

66
NA TEIA Do PoEMA

A diferença, porém, é que ao ser relida no poema, esta


“voz inicial” desprende-se de toda a realidade da pessoa
que a escreve, ganhando uma “metafísica própria”, que
vai assim não só transcender o sujeito que escreve como
igualmente provar a existência desse próprio sujeito.
Júdice leva-nos a concluir que a arte é poética
porque exprime uma voz que existe, tem uma dimensão
ontológica (“imaterial e abstracta”), mas vai ultrapassar
a própria existência do ser que a produz, ganhando um
estatuto de “pensamento estético” que será anterior ao
sujeito que antes o pensou100.

2.2. Definições judicianas de poeta

Nuno Júdice vai mostrar, através dos poemas que


veremos de seguida, diversas concepções de poeta, bem
como formas de encarar e caracterizar a pessoa que
escreve poesia. Ainda que não seja o primeiro poema
cronológico, “o poeta”101 é um excelente ponto de partida
para começar:
______________________________________________
100
Há aqui um reiterar da ideia do filósofo pós-marxista Jacques
Rancière, que define a arte como “a divisão ou distribuição do
sensível”, na obra com o mesmo nome (Cf. Le Partage du sensible.
Esthétique et politique, Paris, La Fabrique, 2000). Adoptando uma
postura interdisciplinar, nesta obra tenta-se demonstrar que todas as
artes são práticas miméticas do “agir” humano, relacionando assim a
realidade sensível e política com a arte, o sentimento estético – Le
régime esthétique des arts est celui qui proprement identifie l’art au
singulier et délie cet art de toute règle spécifique, de toute hiérarchie
des sujets, des genres et des arts. Le régime esthétique des arts
n’oppose pas l’ancien et le moderne. Il oppose plus profondément
deux régimes d’historicité » ( Cf. Op. Cit., pp. 31-35). Assim, toda a
arte é poética porque esta voz anterior de que o texto judiciano fala
exprime mimeticamente a acção humana.
101
PR, 2000, p. 1026.

67
RICARDo MARQuES

Trabalha agora na importação e na exportação. Importa


metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta
própria, um desses que preenche cadernos de folha azul com
números de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que
tem é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao viro, no inverno, e chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater das asas, o azul, a sábia interrupção da morte.

Nuno Júdice coloca neste poema uma definição do


que é ser poeta, em particular do que é o próprio enquanto
poeta, mostrando ao mesmo tempo o seu método de
aproximação ao objecto poético. A primeira frase, decla-
rativa, estabelece desde logo a relação analógica do
trabalho de poeta com qualquer outra actividade profis-
sional onde não exista lugar à inspiração, e que se
desenvolve até ao fim do poema. Assim, o poeta trabalha
“na importação de metáforas e na exportação de
alegorias”, o que significa que o produto dos seus versos
é uma transformação daquilo que absorve do mundo
exterior. Também Júdice faz isso com o seu poema sobre
o poeta. A metáfora do trabalhador “por conta própria”,
vai mais longe, ao relacionar a escrita de versos com o
preenchimento matemático de “cadernos de folha azul
com números/ de deve e haver”, de dever palavras e de
ter um vazio de frases.
A metáfora seguinte, que se torna alegoria, é
relacionar o poeta com “o trabalhador do tempo” porque
“importa sol” e exporta nuvens”. Mas, como o poeta diz
na sua metáfora final, “a sua/ prática confunde-se com a
de um escultor do movimento”, porque o seu trabalho
sobre o tempo é o de fixar um instante, suspender um
gesto ou fixar um bater de asas, isto é, eternizar pelas

68
NA TEIA Do PoEMA

palavras que deve um momento que se perderia na


espessura do tempo (vv. 9-12). Assim, o poeta é aquele
que faz uma “sábia interrupção da morte”.
Também “Arte Poética”102, no seu volume de 1996,
O Movimento do Mundo, fala do papel do poeta:
o ar está cheio de palavras; e
até as que se perdem contra o fundo
de muros, as que caem no outono
como as folhas das árvores, as
que se afogam no pântano das indecisões,
deixam no ar o seu eco. Assim,
o poeta segue um destino de coleccionador
ao recolhê-las, mesmo essas
cujo murmúrio se confunde com o vento,
e prendê-las à página, onde se agitam,
estremecendo com o sopro da voz,
ou adquirem a dureza do mármore, brilhando
apenas quando a luz do verso
as toca.

Aqui a definição de poeta é a de um “coleccio-


nador”, que prende à página as palavras que andam pelo
ar, mesmo aquelas que se vão perdendo por inúmeras
razões (“no pântano das indecisões”, “caindo no outono”,
“contra o fundo de muros”) e as “cujo murmúrio se con-
funde com o vento”, as que são praticamente inaudíveis.
o poema termina então com o que acontece às palavras
depois de fixadas na página (onde o poeta as torna um
poema), numa alegoria dos outros elementos que o
compõem um poema – “o sopro da voz” (som), “a dureza
da mármore”(sentido), e da sua elevação posterior num
verso de um poema – “brilhando/ apenas quando a luz o
verso/ as toca”.

______________________
102
PR, 2000, p. 644.

69
RICARDo MARQuES

Numa “Reflexão sobre a Eternidade”103 também


encontramos uma definição de poeta, entrecruzada com
uma referência mitológica. o poema é composto por duas
partes, subdivididas pelo autor :
1
o Futuro é sombrio.
E apesar disso Cassandra, de cujos seios eu bebo,
sorri em rigorosa simetria com a leve
abertura dos meus lábios.
o movimento manual do pintor,
que ali exerceu a sua arte subtil.
No eixo da composição – a prodigalidade
natal e perpétua do corpo, etc.

Numa primeira parte parece o autor apresentar as


bases desta “reflexão”: “o Futuro é sombrio”, convo-
cando a deusa mitológica Cassandra como contraponto
(“E apesar disso”) desta afirmação, já que esta deusa tem
o dom de saber o futuro. Pertinente é aludir-se ao facto
de o poeta, que sofre influência desta deusa (“de cujos
seios bebo”), ter também ele características proféticas
quando fala (vv. 3-4):
2.
No entanto, sou um poeta.
Alguém que possui o dom de comparar
e que, perante realidades diversas, entrevê
a luminosidade distante do Idêntico.
oxalá eu viva até amanhã,
e durante uma hora contemple o longíquo sol
e a temerária compreensão do horizonte.
A morte agarra-me pelos cabelos.
Ó mulher terna: os teus favores pouparão o que escrevo.
o último dos tempos ouvir-me-á sobre a sua própria voz
acessória e material.

__________________________________________

103
PR, 2000, p. 186.

70
NA TEIA Do PoEMA

A real definição está então aqui na segunda parte. o


poeta tenta encontrar, no meio de todas as coisas
superfluas, aquilo que é Idêntico (a “luminosidade”).
Apenas a morte vai calar fisicamente o poeta (vv. 16-17),
mas a sua voz continuará sempre para além dela (vv. 18-
-19). Assim, o poeta, nesta definição é aquele que se
equivale a um Deus (Cassandra) por ter qualidades de se
eternizar atrás da escrita.
No entanto, um poeta, no entender de Júdice, pode
igualmente ser “o artesão da sombra”104, cognome que
Júdice acolhe e trata no poema de Teoria Geral do
Sentimento com esse título:

Debaixo dos meus pés, os mortos confundem-se


com a terra. As pedras metem-se por entre os ossos,
a humidade corrompe os tecidos que os envolvem
apressa a decomposição dos metais. Esses mortos
ainda falam. No entanto, não os ouço, quando
passo por cima deles, e prefiro distrair-me com as aves
que cantam, com o vento que faz saltar as folhas
do outono. os meus pés podem, então,
pisá-los; e os meus passos abafam o seu choro, que
também se confunde com o murmúrio do vento. Mas
o que ouço, sempre, é esta voz que sai do silêncio
dos mortos. Tenho-a dentro de mim; tento agarrá-la
com os dedos do poema, fixá-la no verso para que
não volte a incomodar-me: e ela foge, mete-se
pelos buracos da terra, esconde-se com as raízes
mais fundas. No entanto, não sei
quem são estes mortos. Limito-me a pisá-los, quando
atravesso os adros, os terreiros, os baldios
de onde fugiram os rebanhos. Como
um pastor de sombras, levo atrás de mim todas
as suas vozes – ou, apenas, a voz única que as minhas
mãos moldam numa paciência de artesão. Já não sei quem
me encomendou este trabalho. um dia, a mulher
de olhos roxos pediu-me que não a esquecesse; e
desde então colecciono vozes, procuro a memória
do seu seio no barro do inverno, evito pisar
a terra, à noite, quando a sua imagem me aparece
por entre o halo da névoa.
_________________________________________

104
PR, 2000, p. 982.

71
RICARDo MARQuES

Como se lê, o poema em questão assenta na temática


da morte, com a sua metaforização em “sombra”. o poeta
é então visto não só como “artesão da sombra”, como
também com o epíteto sinónimo de “pastor de sombras”,
que regista a memória do presente que se torna passado
com o esquecimento e a morte, como exemplifica com
“a mulher de olhos roxos”, já de si uma imagem da morte
eminente de fundo simbolista. Aqui, a paisagem descrita
é claramente gótica, no melhor da tradição romântica do
locus horrendus, plasmada na invocação de vários
elementos desta linha, nomeadamente através dos
aspectos de lugar (“adros, terreiros, baldios”) e de tempo,
quer cronológico quer atmosférico (“com o vento que faz
saltar as folhas/ do outono”, “o murmúrio do vento”,
“névoa”). É de notar igualmente um reforçar desta ideia
com a aliteração do som consonântico “s”, apontando
para uma passagem do vento como metáfora de uma
cadente passagem do tempo.
o poeta, neste poema, é então uma espécie de
homem escolhido para lembrar e relembrar, sendo o seu
destino encarado como “um trabalho”, um homem que
tem dentro de si “a voz que sai do silêncio dos mortos”105
e que tenta ingloriamente fixar no poema para que não
oincomode mais e possa esquecer. o seu “trabalho” é, na
verdade, assemelhado a um “trabalho de Sísifo”, coleccio-

_______________________________________

105
Sobre a inter-relação entre a escrita e o silêncio (igualmente
sinónimo da morte) que a faz escrever, como uma espécie de “ritual”
antagónico de escrita, lembramos um passo de outro poema com este
mesmo título (“Ritual”), presente em O Movimento do Mundo
(1996): “[…]oh/ Silêncio que grita cada uma das transições/ da
alma: dá lugar ao verso, para que dele/ brotem as antigas flores da
primavera – e/ o riso estranho que acompanha a morte”. (in PR,
2000, p. 646).

72
NA TEIA Do PoEMA

nando as vozes” das imagens sobre as quais lhe ocorre


escrever.106
“Sob o tampo do Poema”107 é um poema de um dos
livros de início que mostra uma concepção de poeta
próxima das figuras góticas e românticas dos primeiros
livros, de que é exemplo, como vimos, a figuras literária
de Hölderlin. As referências negras despontam, desde
logo, nos primeiros versos, com a reunião de elementos
vegetais com conotações fúnebres como “cipreste” ou de
elementos naturais como “o vento frio”, que, no seu
conjunto, se conjugam para deixar passar uma atmosfera
distópica e, até, algo fantástica:
Da última vez, não reparou já no escuro cimo
do cipreste. o vento frio puxava-lhe para cima
do chapéu negro. Punha os óculos, apoiava-se ao muro.
Do outro lado um sinistro oceano impunha-lhe a vocação,
o sonho; bebia os pequenos barulhos terrestres
como quem se despede. Começou, finalmente, a reparar
na espessura das suas próprias mãos. o trabalho de segurar
a caneta sobre o papel gastara-lhes a pele. Levantou-as
à altura dos olhos e, através delas, viu o escuro traçado
do horizonte. Ficou assim; foi assim que o encontraram
os vorazes animais da morte. Mas a boca mexeu-se ainda
durante dias e noites sucessivas: “Poesia…poesia”.

um elemento central deste poema, que caracteriza


o sujeito poético invocado, é o das mãos, com uma
“espessura” que se adivinha fina, gasta pelo “trabalho de
escrever. o escritor parece aqui identificado com um
_____________________________________________

106
Poder-se-ia fazer um paralelo com o poema “Poema
(arredores)”, presente em A Partilha dos Mitos, onde é verda-
deiramente tratada de uma forma dura uma memória de uma mulher
morta “na plenitude da idade” – “A brancura/ dos ossos, em contraste
com a terra argilosa, / com a erva, com a parede arruinada, faz-me
lembrar/ leite, papel, cal,/ e também as tuas mãos – frias. […]” (PR,
2000, p. 242).
107
Nos Braços da Exígua Luz, 1976, in PR, 2000, p. 201.

73
RICARDo MARQuES

herói romântico, que cultiva uma obsessão pela escrita


de poesia, obsessão essa que eventualmente o leva à
morte (repare-se na terrível perífrase “os vorazes animais
da morte”), ao que parece “sob o tampo do poema”. o
poema parece ser então a descrição do paradigma do
escritor romântico, ao narrar a sua loucura final perante
a feitura obsessiva de poesia.

2.3. O que é o poema?

Sem esquecer o étimo grego da palavra poesia


(poiesis), um poema é sempre uma construção para Nuno
Júdice, uma casa, se assim quisermos instituir uma
variação novalesca, lugar onde é fácil entrar mas de onde
não sabe como sair, como se fundisse o plano da escrita
do poema com o plano biográfico. Basta, para tal,
prender-se “a uma coisa simples. Pode / ser o teu rosto
naquele vidro, que eu vi/ e não mais esqueci. // Faço do
tempo um parapeito. E/ debruço-me nele, à tua espera,
sentindo / na madeira o calor do teu peito. // Ergo na areia
um castelo de enigmas. E / fecho-te na sua torre, a castelã
que me ensinou / a entrar sem saber por onde sair. / (Mas
para que hei-de sair/ de onde quero ficar?)108.
Encontramos neste metapoética uma primeira
variante dessa ideia de poema enquanto construção, numa
extensa alusão ao quotidiano que utiliza a alegoria e
assemelha a construção do poema (relacionando assim à
etimologia grega, como se disse) à construção efectiva e
literal de uma casa. o resultado é uma “Poética (variante
com construção civil)109”:
______________________
108
o poema é “Construções”, in Geometria Variável, 2005, p. 60.
109
Cartografia das Emoções, 2001, p. 75.

74
NA TEIA Do PoEMA

Escrevo por entre andaimes,


ando por entre versos. uma ideia de
construção de palavras e tijolos. o muro
do verso separa-me da vida; mas
subo o escadote da estrofe, espreito
o outro lado – e vejo-te.

Pareces calma, com o teu vestido


amarelo, e o sol a entrar-te pelos
cabelos. Eu vou a reboque do tempo;
e tu, com os pés assentes na terra
do campo, podias ser mais uma dessas
flores que crescem, nesta
estação, amarelas como o teu vestido.

Começo, então, a tirar os


andaimes. As vogais aguentam-se, com
o seu reboco de gesso e
consoantes. Abro-te a porta. Tu,
entras no poema; e ficamos aí os dois,
ouvindo a sua música.

Mais uma vez, o poema final é aqui visto como não


contendo as regras iniciais e normativas (as fundições do
edifício, neste poema) que o estrutura, que é a face
externa dessa mesma “construção” que é o poema. Que
compõe, então, este edifício? Em primeiro lugar, o poema
é construído com esses “tijolos e palavras”, que cimen-
tam num “reboco de gesso de vogais e consoantes” um
muro (limiar) que separam a “vida” da “poesia”. A
estrofe-escadote permite ver o “tu” poético do outro lado
do muro, no fundo o “objecto do poema” e elemento da
vida sobre o qual se escreve ou “constrói” o poema. A
segunda estrofe descreve este objecto amado com uma
metaforização de base natural, como “flor amarela”, tal
como a cor do vestido que este enverga.
Resta apenas ao sujeito poético “abrir a porta” do
poema, isto é, concluí-lo, para que esse “tu poético” entre
e, numa referência última ao ritmo e prosódia como

75
RICARDo MARQuES

condições essenciais da atemporalidade e resistência da


construção, “ficamos aí os dois,/ ouvindo a sua música”.
o poema em quadras “Metáfora em Frankfurt”110
vem na continuidade desta poética, partindo de um
encontro casual na cidade alemã para glosar esta temática
do poema enquanto construção (civil). Este poema, como
os outros, aproxima esta concepção judiciana de poema
à do poeta Novalis (a poesia enquanto casa do ser):

Dois dos andares estavam em construção.


os operários entravam no elevador
em cada um dos andares em construção.
o porteiro nem os olhava, como
se não existissem andares em construção.

Assim, avanço ao longo do poema que


tem ainda duas estrofes em construção.
E os meus olhos não param quando os versos
por acabar me indicam que o poema
ainda está em construção.

Mesmo quando o poema está em construção


o poeta anda por dentro dele como
se tudo estivesse já acabado: estrofes,
versos, ritmos, e a própria construção
do mundo que está por dentro do poeta.

Mas não é pelo facto de dois andares


ainda estarem em construção que
o elevador deixa de parar nos andares que
estão acabados. o edifício, como o poema,
não depende de dois andares para funcionar.

Nem quando os operários ainda entram e saem


dos andares em construção pelo elevador;
nem quando o poeta ainda não decidiu se
duas das estrofes estão acabadas,
embora tenha chegado ao fim do poema.

______________________
110
PR, 2000, pp. 825-26.

76
NA TEIA Do PoEMA

Estamos perante uma poética dentro da própria


poética (uma metapoética), numa construção de espelho
que reflecte sobre si própria. o mais interesse na feitura
desta poética é que a estrutura externa do poema vai
acompanhando tudo aquilo que a estrutura interna vai
dizendo, quase como se fosse um exercício simultâneo
de tese e aplicação prática, característica que acontece,
em diferentes graus, em quase todas as artes poéticas de
Nuno Júdice. De um ponto de vista literal, a história aqui
relatada prende-se com um sujeito poético, colado à
figura do escritor, que visita o poema, “ainda em cons-
trução”, com os olhos, analisando todas suas carac-
terísticas, mesmo sem estar acabado (veja-se em especial
a terceira estrofe). Assim, e aproximando-se do fim da
“visita”, isto é, do poema, a conclusão que tira é que o
escritor tem sempre a liberdade de andar pela sua
construção mesmo que ela não esteja completamente
feita, mesmo que “os operários ainda entrem [e saiam]/
dos andares em construção”. Muitas vezes o fim do
poema é ditado, como se vê na estrofe final, mesmo
quando o escritor não o dá por findo, aparentemente
deixando “as duas estrofes em construção”.
“Relatório”111 vai ser uma poética implícita, que usa
novamente a analogia com a casa como princípio mais
importante de construção. A poesia é aqui assumida como
uma “casa”:
Faço o inventário dos móveis esta casa vazia,
com um caderno de escola, enchendo as linhas
com um desenho minucioso de palavras:
um armário de almas, uma cadeira de balouço,
um aparador de ecos, uma mesa sem pernas,
um espelho sem sombra, um ângulo interrompido
na cesura do verso, uma estante de imagens.
__________________________
111
A Matéria do Poema, 2008, p. 90.

77
RICARDo MARQuES

Levo esta lista ao notário; e peço-lhe que


risque os objectos inúteis, para que o caderno
sirva para alguma coisa. Mas ele pede-me que
substitua as palavras pelos objectos. Então,
ponho a alma no armário, balouço o corpo na
cadeira, grito no abismo do aparador, faço
andar a mesa, olho-me no espelho do verso,
e tiro da estante todas as imagens.

“Que casa é esta?”, pergunta-me o


empregado. Digo-lhe que as salas são
as estrofes, que os muros são feitos com
o tijolo dos versos, que um gesso de rimas
preenche os interstícios. Só não sei indicar
a rua, o número, a cor das paredes. É uma casa
que não existe, embora seja a minha casa.

E esvazio-a de móveis, de objectos, de palavras,


até ficar apenas com o poema que a construiu.

o poema acima transcrito vai descrever de forma


analógica e metafórica o processo de escrita da poesia
judiciana. É um poema-construção em que a estruturação
pensada da poesia deste autor se desenvolve à volta da
ideia de “casa”, como em outros momentos. A início, na
primeira estrofe, temos assim uma casa vazia, que se vai
enchendo no caderno onde o poema vai sendo escrito,
através do inventário de vários elementos que compõem
a casa-poema (vv. 4-7). Todos os elementos enumerados
vão ser novamente convocados na segunda estrofe, que
funciona assim como desenvolvimento, e como espelho,
da primeira. Se na primeira estância temos a enumeração
de todos estes elementos ambíguos (isto é, respeitantes a
um campo semântico da “casa” e em simultâneo ao
campo semântico do “poema”), na segunda temos a
introdução de mais uma acção ficcional nesta narração
(“Levo esta lista ao notário; e peço-lhe que risque os
objectos inúteis“) que faz com que os elementos sejam
novamente referidos, mas numa relação dos mesmos com

78
NA TEIA Do PoEMA

a pessoa que faz o poema, como se fosse assumida a


decoração da casa-poema como obra sua (repare-se no
uso dos verbos na primeira pessoa do singular – ”Ponho”,
“faço”, “olho-me”).
Desta forma, a conclusão desta história proposta e
desenvolvida, respectivamente, na primeira e segunda
estrofes, vai aparecer daqui para o final, começando com
a interpelação do “empregado” da conservatória. À per-
gunta de que tipo de “casa” seria aquela, o poeta descre-
ve-a numa continuação da analogia para com os elementos
visíveis de um poema (“salas=estrofes, Tijolo=versos,
Rima=gesso”). A última questão, porém, que a existência
desta casa coloca é a sua própria ontologia. Apesar de lhe
reconhecer validade e de ser o sítio onde sempre retorna
(“embora seja a minha casa”), o poeta sabe que ela não
existe verdadeiramente, que a poesia é construção, como
diria a etimologia da palavras (poiesis), mas não uma
construção como as outras. o dístico final vem recolher
todos os elementos distribuídos anteriormente (móveis,
objectos, palavras), tentando provar que o poema é uma
casa que se basta a si própria, que existe apesar de tudo
aquilo que se lhe acrescente ou decore.
“Até ao fim”112 é outro poema onde Júdice pretende
responder à pergunta essencial da (sua) poesia: o que é o
poema e quais os mistérios do seu processo de criação:

Mas é assim o poema: construído devagar,


palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. o que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. […]

__________________________________________

112
Pedro, lembrando Inês, 2001, p. 25.

79
RICARDo MARQuES

A primeira palavra do poema, “Mas”, aponta-nos


desde logo para uma criação abrupta, num aparecimento
do poema ex-abrupto, criação que se separa de tudo o
resto e que pode brotar de vários lados113. Assim, uma vez
a criação surgida, o mais difícil parece ser acabá-lo (vv.
3-4), uma vez que a dinâmica da escrita revela ter uma
vontade própria – “não sei […] até, se/ o poema quer
acabar”. o resto do poema aponta para a resolução deste
problema, isto é, do que é preciso para que um poema
termine –
[…]Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

Por outras palavras, Júdice advoga aqui que nunca


devemos esquecer de voltar o poema para o real de onde
ele parte (o amor sentido pelo objecto poético – “tudo o
que/ não é preciso dizer”), nomeadamente com o senti-
mento, neste caso particular, que sente por quem o faz
escrever o poema. Só assim o próprio corpo que faz
escrever funde-se com o corpo da poesia (“deito-o na
cama/ da estrofe, dispo-o de frases/ e de adjectivos até te
________________________________________

113
A conjunção coordenativa adversativa “mas” é de extrema
importância na poesia narrativa e lírica de Nuno Júdice. Sobre ela,
entre outras (também o “assim”) falamos no capítulo introdutório –
“Nuno Júdice e o mecanismo fragmentário de uma identidade”.

80
NA TEIA Do PoEMA

ver/ tu/ o mais nu dos pronomes”), numa atitude de con-


substanciação que em muitos outros poemas de Júdice
está em evidência.

Presente em A Condescendência do Ser, o poema


“Teoria do Poema”114 vem constituir, como o nome
indica, um desenvolvimento metapoético ou poética do
poema dentro do próprio poema, num grau mais elevado
do que os últimos analisados por nós, de uma verdadeira
“teorização” tout court sobre o poema:
um ritmo próprio regula a invenção das imagens
que, sob a ilusão nascida da sua existência,
transmitem um nexo oculto. Ao escrever, então,
não me limito a designar realidades do mundo
aparente, antes dou uma ordem diversa aos elementos
que a tradição me legou e que, através
do sopro da imaginação, me sugerem o poema.

o primeiro elemento a que se alude parece ser a


inspiração, que não vale apenas por si mesma, isto é, a
inspiração apenas molda, no poema, as imagens “que a
tradição me legou”, todas as metáforas que a leitura de
outros escritores e de outros artistas nos fazem imiscuir
depois a nossa escrita numa geneologia que os segue. o
estilo vai ser o segundo elemento de que esta “teoria do
poema” fala. Aqui, é-nos dito que o estilo é “uma marca
individual da linguagem”, ou seja, um uso particular das
imagens que uma tradição ou geneologia, como vimos,
nos lega. Este pode oscilar entre uma tendência mais
contida e convencional, e outra mais sentimental, qual
“manifestação de loucura”:

________________________________________

114
PR, 2000, p. 308.

81
RICARDo MARQuES

[…] Não
se pense, porém, que essa “inspiração” determina,
de forma absoluta, aquilo que escrevo: não só
uma disposição anterior me impõe a frase literária
como também o “estilo”, essa marca individual
da linguagem, me integra numa expressão
mais vasta de sentimentos e ideias, na corrente
humana de uma procura de outra verdade – que
a língua vulgar é incapaz de reproduzir. Nalguns,
o verniz das convenções dissimula o esforço
autêntico, a alma ou, por outras palavras, a
revelação divina que o poema manifesta; em outros,
pelo contrário, é aquilo que se designou
por “génio”, particular manifestação da loucura,
que imprime um ânimo profundo às palavras
devolvendo-lhes, num raro brilho, a sua significação
primeira. Então, elas deixam ver uma parte
desse todo invisível que é a Criação; nada
ensinam: e não se pode, com rigor, falar de
conhecimento, de compreensão de um objecto
específico. Vemos a luz sem fixarmos a fonte,
banhamo-nos na água sem tocarmos o fundo.

A ideia que transparece no poema de Júdice é a de


que, independentemente das ideias e metáforas que uma
determinada tradição nos lega, bem como depois o estilo
empregado, num tratamento pessoal da linguagem com
nos expressamos, tudo aquilo que criarmos vai ser
sempre “invisível”; o poema é sempre obscuro no fim,
de nada serve as palavras que o tentam iluminar. Por
outro lado, não há nenhuma forma de conhecimento a
retirar dos poemas, em que todas as palavras juntas “nada
ensinam”. Apenas nos podemos deleitar com a sua
própria presença nas nossas vidas, com a sua leitura.
Assim, e de um modo geral, esta “teoria do poema” vai
marcar uma posição muito vincada em relação à própria
utilidade da poesia para conhecer o mundo; ainda que de
nada sirva, mas a sua presença é essencial.
“Génese”115 é um poema que está igualmente
presente neste livro, e em que o autor relaciona o ciclo

82
NA TEIA Do PoEMA

do dia com a própria criação do poema, daí o título, de


clara índole bíblica:
Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista ( isto é, céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura – a luz incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. o poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por um acaso cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso,
com o sol a querer romper.

o poema judiciano vê um poema como a instância


de onde tudo parte e que tudo “ilumina”, e que, como
produto e sua génese, “conta como tudo é feito:/menos
ele próprio”. Esta força do poema, ao mesmo tempo
centrípeta e centrífuga, é dada com a analogia feita com
o sol da manhã. Este prossegue pelo dia adentro (“sobe/
com as névoas que o dia arrasta”) e imiscui-se na
natureza. Assim, um poema é aqui reiterado como lugar
do invisível no visível das coisas mundanas, presente em
todas elas e explicando, ao mesmo tempo, as relações que
entre elas se podem estabelecer.
Como deixámos já assinalado atrás, quando falámos
de Platão e dos poemas judicianos que retomam a teoria
platónica do amor, veremos de seguida como não só a
própria “Alegoria da Caverna” serve para pensar o senti-
mento amoroso como igualmente o fenómeno poético,
nomeadamente qual a ontologia e a função do poema. o
texto em causa intitula-se “Alegoria da Caverna”116:
____________________
115
PR, 2000, p. 302.
116
PR, 2000, p. 1027.

83
RICARDo MARQuES

Todos os cadernos servem para que neles se escreva qualquer


coisa, como um poema. E é preciso que um caderno esteja aberto
para que a página obrigue o verso a avançar até ao fim da linha,
passando a outro verso, até completar a estrofe. um poema, então,
nasce do vazio que se faz quando se abre um caderno. Não tem no
seu princípio qualquer outra razão; a não ser que a tua imagem se
tenha metido no meio, entre a memória e o caderno, deixando na
página uma sombra que tento apagar com o poema, como se ele a
pudesse absorver, transformá-la em versos, estendê-la até ao fim da
estrofe.

um poema precisa de viver. E, para isso, não pode estar à sombra


de qualquer coisa, mesmo que essa sombra nasça da tua imagem.
Tenho de apagar um deles: poema ou imagem; e deixar que o
caderno se feche quando a decisão ficar tomada, para que dentro dele
fique o registo dessa noite em que foi preciso decidir entre a memória
e a palavra. No entanto, ao acabar o poema, esquecendo-me por
instantes do seu princípio, tudo volta ao mesmo: e tu estás comigo,
isto é, a tua imagem desce-me da memória para o caderno, alastrando
pela página até ao fim do poema.

E é como se o poema existisse por essa única razão: fixar a tua


sombra.

Vemos como Júdice abre este texto com uma


afirmação sentencial que nos versos seguintes vai ser
desenvolvida à volta da ideia da poesia como obra do
acaso, de a sua construção não ser totalmente pré-
-determinada (“nasce do vazio que se faz quando se abre
o caderno”). No entanto, a excepção acontece quando o
sujeito amado aparece em forma de lembrança (“ima-
gem”), e faz eclipsar, com a sua “sombra”, o próprio
espaço do poema na página em branco. usando um
processo de dedução frequente nas construções poéticas
deste poeta, o resto do poema vai confirmar esta permissa
e estruturar-se a partir dela. Assim, o sujeito poético vê-
-se obrigado a escolher entre “poema ou imagem”, se
quer que o seu poema viva para além da sombra que a
“imagem” projecta sobre ele. A conclusão final, apesar
de tudo, é a de que ambas as coisas não são incom-

84
NA TEIA Do PoEMA

patíveis, já que ao acabar o poema o ser amado volta


outra vez à memória, e desce daí “para o caderno”,
sobrepondo-se a ele. Desta forma, o poema só existe, para
este sujeito poético, com um propósito: o de “fixar a
sombra” que desce da sua memória da imagem do sujeito
amado para o caderno.
o poema “Para escrever o poema”117 é uma com-
posição cujo título aponta desde logo para o que vai ser
desenvolvido. Não se trata aqui de uma receita para fazer
o poema, mas é antes uma fixação daquilo que realmente
importa para a sua feitura:
o poeta quer escrever sobre o pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

o poeta quer escrever sobre a maçã:


e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

o poeta quer escrever sobre uma flor:


e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras


para o pássaro não fugir.

____________________________________________
117
A Matéria do Poema, 2008, pp. 52-53. Pensamos haver aqui
uma ponte com um autor de estilo muito próximo de Nuno Júdice
no que toca ao ludismo com que muitas vezes trata as suas
metapoesias. Falamos do americano e laureado Billy Collins (1941)
e em particular do seu poema “Introduction to Poetry”, que
reproduzimos de seguida: “I ask them to take a poem/and hold it up
to the light/like a color slide/or press an ear against its hive.//I say
drop a mouse into a poem/and watch him probe his way out,/or walk
inside the poem’s room/and feel the walls for a light switch.//I want
them to waterski/across the surface of a poem/waving at the author’s
name on the shore.//But all they want to do/is tie the poem to a chair
with rope/and torture a confession out of it.//They begin beating it
with a hose/to find out what it really means. Veja-se atrás para mais
um exemplo da sua poesia, quando damos um exemplo de poesia
narrativa na parte final do capítulo 1.2. “A poesia contemporânea –
uma poética de tempo e de espaço(s)”.

85
RICARDo MARQuES

Então, o poeta chama pela serpente


para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe


para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta


quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra


porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor


escorre por entre os versos.

Em primeiro lugar, há que aludir à estrutura externa


do poema. Com uma aparente simplicidade e paralelismo
estrutural, o poema vai falar daquilo que poderíamos
interpretar como sendo o desejo forçoso do poeta em
querer fixar num poema determinados aspectos banais do
quotidiano da natureza (“um pássaro”, por exemplo),
relacionando as suas características normais (“voar”,
neste caso) com a escrita do poema (“o pássaro foge-lhe
do verso”), e contrapondo esse desejo artificial à
naturalidade da escrita do poema, em que nada deve ser
forçado. Desta forma, é natural, por exemplo, que mesmo
que o poeta “faça uma gaiola de palavras” para aprisionar
o pássaro, este não cante “quando o fecham na gaiola”:

E quando o poeta pousou a caneta,


o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

o poeta voltou a pegar na caneta,


escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

86
NA TEIA Do PoEMA

o poema termina com a defesa do “pousar a caneta”


perante a página, e simplesmente deixar o exterior ditar
o poema. Assim, e depois de ver o mundo exterior e não
estar apenas à espera que o poema surja do nada, o poeta
já pode voltar a pegar na caneta e escrever o que viu, isto
é, construir o seu poema.
Menos explicitamente, mas igualmente uma poética
em forma de receita parece ser o poema “Recitação, no
espelho definitivo”, presente em As Inumeráveis
Águas118. Este poema desenvolve-se narrativamente
numa sequência lógica, começando por relatar a história
do confronto do escritor consigo próprio, com a sua
própria voz de escritor:
Eu tinha começado por repetir tudo o que já sabia.
o processo não é novo e a sua eficácia depende do grau de
desenvolvimento da
consciência que quem escreve tem de si próprio. Se eu me
perguntasse
“conheço-me”, e a seguir respondesse afirmativamente, estaria
perto desse estado.
Mas não me perguntei nada,
e antes disso não tinha qualquer resposta. […]

Após essa proposição de início, que acontece com


muitos escritores, e em que se repete o que se sabe e
parece haver um estranhamento do que se escreve, o
escritor começa a aperceber-se de um estilo e de uma
nova forma de escrita totalmente pessoal (“uma nova
época de Prosa”), ao mesmo tempo que toma consciência
de que na escrita há uma tradução dos gestos do dia-a-
-dia, como se fosse uma “repetição mecânica”, em que
as mãos dão uma ajuda fundamental:

______________________
118
PR, 2000, p. 156.

87
RICARDo MARQuES

[…]
Vi então que os meus gestos eram a repetição mecânica deles
próprios.
Mas, enquanto se sucediam, algo instalava uma diferente disposição
dos seus elementos verbais (ainda que subjectivos), insinuando uma
nova época de Prosa. E a compreensão geral surgiu.
Era tempo para que ela se formasse no interior do cérebro,
o envolvesse (“tentacularmente”).
Daí para a frente tive tudo nas mãos. As mãos faziam
com que eu escrevesse, davam-me de comer, vestiam-me,
dispunham os diversos elementos sobre um tabuleiro abstracto
que alguém disse ser “eu próprio”.
E é por isso que já não digo nada. É por isso que eu estou aqui,
sem me mexer, de pé e batido pelo vento,
de mãos nos bolsos e sem dizer nada.

uma vez dominado, “com as mãos”, um processo


de escrita que o mantivesse vivo, o escritor podia então
encontrar a sua voz “que alguém disse ser ‘eu próprio’”.
os versos finais parecem mostrar uma decisão do sujeito
poético, uma vez dominado o processo de escrita, de nada
então dizer, nem fazer com as mãos, como se “no espelho
definitivo” tudo o que pudesse produzir com elas não
importasse.
o último poema de O Pavão Sonoro é intitulado
simplesmente “Poema”119 e vem no seguimento do que o
livro trata: a arte poética. Ele constitui uma aplicação
prática de um outro anterior, já analisado:
Em um novo poema sobre a morte, sem me ter ainda convencido de
que, embora morto, algo permanecia no meu ser que participava da
Vida e do movimento inúmeral dos objectos batidos pelo vento,
afirmei que a Poesia me acompanhava.
Como se a Poesia fosse algo que eu nomeasse fisicamente…que
tocasse…
E ao constatar uma impossibilidade objectiva, fiz uma experiência
que a confirmou definitivamente: li tudo o que tinha escrito.

_________________________________________

119
PR, 2000, p. 108.

88
NA TEIA Do PoEMA

Foi como se não tivesse lido nada. Sem me dar conta sequer
de um estilo, de uma gramática,da própria língua…Foi
como se não soubesse ler.
Ao apresentar a narrativa exacta do que aconteceu, descubro
que também aqui não tenho nenhum objectivo, nenhum
pretexto, nenhum facto que justifique o poema. Mas ele
existe apesar disso. E é por isso mesmo que, sem arte
poética e sem argumentos, o apresento e mantenho.

Se a função da poesia é algo que não se consegue


perceber logicamente, também é difícil encontrar uma
justificação válida para a feitura de poesia. É neste
princípio que reside o centro temático deste poema. o
sujeito poético utiliza uma estrutura tripartida para
perceber que a única arte poética é a ausência da própria
arte poética, ou a ausência da nossa percepção da sua
presença, como é dito nos últimos três versos do poema.
Assim, primeiro é-nos relato um acontecimento particular
(“em um novo poema sobre a morte”), que despoleta uma
tese (“afirmei que a Poesia me acompanhava”).
Registando-se uma “impossibilidade objectiva”, e tal
como se o espaço do poema fosse um laboratório, o
sujeito vai experimentar uma hipótese para rebater essa
aparente objectividade, “li tudo o que tinha escrito”. Ao
fazê-lo, e ao reparar que “foi como se não tivesse lido
nada”, constata que estava enganado objectivamente, mas
certo de um ponto de vista subjectivo: “[…] ele existe
apesar disso. E é por isso mesmo que, sem arte poética
ou argumentos, o apresento e mantenho”.

2.4. Como nasce, como se escreve e como se faz


o poema? Notas para uma poética judiciana

Poeta do concreto, das coisas que existem no


exterior, Júdice tem um poema que usa a analogia como

89
RICARDo MARQuES

processo de identificação com uma outra construção


quotidiana e banal, mas dando-lhe uma direcção final
diferente. Através de uma relação analógica de vários
elementos da natureza – as sementes, as ondas, as aves –
com a arte de fazer um poema, o autor vai mostrar que
elementos o constitui. Assim, é adequadamente chamada
“Poética com arte analógica”120:
É verdade que não sei ainda como começar
o poema de cada vez que o começo; nem sei
como escrevê-lo, de cada vez que o
escrevo. É verdade que estou longe
dessa verdade essencial que está no fundo
de cada poema, como a semente
está longe da raiz, ou o fruto se afasta
do ramo na queda irreversível de cada novo
outono. As leis do verso, que
procuro à medida que a estrofe se vai
construindo, não são nunca evidentes; nem sei
como traduzir em linguagem lógica esse
ritmo que nasce e morre como as ondas, sob
o influxo das marés. Avanço, então, pela
areia das palavras até esse limite de
água em que os pés se afundam; e vejo,
quando recuo, que a espuma cobre os meus
traços. Também no poema, quando o termino,
aquilo que nele ficou de mim se desvanece sob
a música e o vento de uma voz subterrânea,
ou líquida; e o que fica, no fim, é
esse voo de aves marinhas sobre a baía,
o enegrecer das falésias com a tarde,
uma ressaca de inverno na beleza
melancólica do fim.

A identificação do espaço do poema com o espaço


marítimo é desde logo evidente aqui, encontrando
diversas pontes para com outros poemas seus que
convocam a temática marítima, nomeadamente “Arte Poé-

_________________________________________

120
PR, 2000, p. 952.

90
NA TEIA Do PoEMA

tica com marinha”. Apesar de haver aquilo que se designa


como “uma verdade universal” que assiste a feitura do
poema quando este está concluído, depois de “esculpido”
todos os elementos que estão a mais121, a verdade é que
o poema, quando começa a surgir e a ser trabalhado (“na
cabeça”122), não remete logo para uma maneira de o
começar (vv. 1-3), como se necessitasse que a passagem
ao papel fosse condição essencial à sua sobrevivência, à
sua conclusão através do trabalho de reescrita e
depuração (também a raiz está longe do fruto, como ele
refere analogicamente). As imagens do poema judiciano
parecem indicar poeticamente esta semelhança dos dois
processos – o “ritmo das ondas” que não se sabe como
traduzir “em linguagem lógica” , a “areia das palavras”
que avança até a água, através das marés, não a
submergir, isto é, participa do seu processo de escolha.
o que fica, então, quando o poeta termina o poema?
Acabando com as imagens convocadas por analogia, fica
a imagem “melancólica do fim” (=o tempo de
definhação) de uma praia (=poema) no crepúsculo, com
as aves a levantar voo sob a falésia. o que se ouve, o
poema, traduz-se numa voz “subterrânea e líquida” que
é a do próprio mar.
Demonstrar como se constrói um poema é o
objectivo do poema seguinte, que parece indicar uma
receita para assim o obter. o seu título é o adequado
“Como se faz o poema” e está presente em Geometria
Variável, que é igualmente um título que tenta resgatar a
ideia de polissemia de caminhos para a palavra poética:
_______________________
121
Segundo o autor defende relativamente ao trabalho de poeta,
inspirado no de Ruy Belo, cuja depuração implica que o verso se
torne límpido, escorreito e de fácil leitura, ainda que esteja por detrás
muito trabalho (Cf. “ Apontamentos para uma tradição pouco
genealógica” in Românica – Revista de Literatura do Dept. de
Literaturas Românicas – FLuL, nº7, Lisboa, 1999, p. 252).
122
Cf. Artigo referido na nota anterior

91
RICARDo MARQuES

Para falarmos do meio de obter o poema,


a retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não
precisa de requintes nem de fórmulas. Apanha-se
uma flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as
pétalas são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se
no jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,
basta um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da manhã enche o quarto de azul. Então,
a flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o poema. Para que ele nasça, a flor precisa
de encontrar cores mais naturais do que essas
que a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu
rosto – a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,
deito essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para as folhas, como a seiva que corre pelos
veios invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,
e o que tenho na mão é este poema que
me deste.

o título deste poema é precisamente a pergunta a


que Nuno Júdice responde num curto, mas importante
ensaio, de 2004, em que, junto de outros teóricos e nomes
contemporâneos da nossa literatura, o poeta responde da
seguinte maneira123:

Seria simples chegar aqui se o poema fosse pura


forma; no entanto, ele é sobretudo uma substância, feita
dessa matéria em que misturam sonho e presente, passado
e futuro, o raro e o comum, tudo apresentado de um modo
totalmente construído para não deixar espaços em branco,
isto é, para não permitir que faltem peças ao edifício, mes-
_________________________________________
123
Nuno Júdice, “Como se faz um poema?”, Relâmpago, nº4,
Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, 1998, pp. 67-68. (Sublinhados
nossos.)

92
NA TEIA Do PoEMA

mo que, tal como no edifício real, ou no puzzle, mão


estejam visíveis nem os gestos, nem a sequência, nem a
chave, de que a disposição final da imagem é um
resultado.

Tomando desde já o fim deste testemunho, podemos


dizer que o anterior poema de Geometria Variável se
constrói à volta da “disposição final da imagem” da flor,
que toma assim o lugar metafórico do poema, o objecto
da reflexão do poema. Partindo desta relação de seme-
lhança, o poema vai sendo concebido à volta da enu-
meração dos vários elementos que compõem uma flor e
influenciam o seu desenvolvimento, que são assim
assemelhados ao próprios elementos e concepção de um
poema. Desta forma, o poema “não precisa de retórica”,
pois trata-se de uma “coisa simples” como uma flor, mas
que não é simples forma – é uma flor especial e difícil de
encontrar, “de sílabas”.
Continuando esta construção alegórica, o sujeito
poético enumera aquilo que é preciso para que flor/
poema “não morra” e para que “nasça”. Estas duas acções
são importantes porque, cada uma à sua maneira, são
forças que mantém o poema/flor vivo, contribuindo, no
fundo, para a sua feitura. Assim, e para não morrer (visto
tratar-se de uma flor de sílabas, mero léxico) é preciso
instigar-lhe laivos de imaginação (vv. 8-12), de encontrar
na natureza algo que o sustente. Neste caso, é aqui que
entra o papel de um terceiro elemento, o tu poético. É este
que não só estimula a imaginação, como se vai con-
substanciar no papel propriamente dito da imagem que
faz escrever. Numa palavra, e para usar a metáfora do
poema, é a “seiva que corre pelos/ veios insensíveis da
alma”. o produto final, isto é, o poema-flor só é, assim,
viçoso e vivo, e só assim se mantém, quando o objecto

93
RICARDo MARQuES

amoroso está presente; daí os versos com que o poema


acaba, defendendo que o poema sai sempre das mãos do
sujeito que o faz escrever, como uma folha que é colhida
e dada por ele ao poeta. Por último, não podemos deixar
de assinalar o princípio do poema, já que, como acontece
em muita da poesia de Nuno Júdice, é ali que reside a
proposição inicial e, simultaneamente, o resumo de tudo
o que será dito a seguir. Neste caso, ao remeter para fora
do campo da retórica tudo aquilo que diz respeito ao
modo de construir um poema (veja-se o primeiro verso),
está-se exactamente a dizer aquilo que o poeta faz com
este poema – a escrever uma poética dentro do poema,
mostrando que só o poema pode reflectir adequadamente
sobre o fenómeno poético. Como diria atrás, num outro
poema metapoético analisado por nós (“ não tenho
nenhum objectivo, nenhum /pretexto, nenhum facto que
justifique o poema. Mas ele /existe apesar disso.”)124
Em último lugar, no poema “Resposta com Arte
Poética”125, Nuno Júdice vai desenvolver aquilo que
diferencia a escrita de um poema de outro tipo de escrita,
mas de uma forma mais directa:
Pergunto como se escreve o Poema. E a resposta possível é escrever
o poema. Ele demonstra a sua possibilidade, como se não houvesse
nada antes ou depois dele. Assim, o poema pode ser construído de
um modo que evita todas as ambiguidades da prosa ou da filosofia,
que transporta dentro de si a chave que é preciso abrir para que um
sentido surja – mesmo que o sentido seja aquilo que menos interessa
ao poema. No entanto, sem ele, de que serve escrevê-lo? o que
importa é dizer o que de outro modo não pode ser dito. Escrever o
poema, então, é dizer o que é essencial, distinguindo entre o nada e
o tudo que está em cada poema. Sim: há um ponto de partida. o teu
rosto, as tuas mãos, ou um ramo de árvore que se partiu com o
temporal, ou ainda esse pássaro que nasceu de dentro de um telhado

____________________________________________
124
PR, 2000, p. 108.
125
O Estado dos Campos, pp. 20-21.

94
NA TEIA Do PoEMA

em ruína, como se a casa abandonada fosse o ventre do mundo


celeste. Nada disto, em si, tem um valor para além daquele que eu
lhe dei, ao olhar o mundo, e escolher uma ou outra de entre as suas
imagens. Agora, no poema, elas são outra coisa. Fugiram da sua
própria realidade, como o pássaro que saltou do telhado; e mesmo
que tu existas, com o teu rosto e as tuas mãos, ou a casa continue
ainda mais abandonada, com o inverno que chega, é o poema que dá
uma outra forma ao amor, ao campo, às aves ao que tu me disseste,
como se não fosse preciso mais do que isso para que a vida possa
continuar. Assim, escrevo. E não volto a perguntar como se escreve
o poema?

Este poema, como vemos, constitui uma resposta a


uma pergunta essencial da poesia, que se confunde com
a sua própria essência – o que está por detrás de um
poema e como é o seu mecanismo de feitura. Num artigo
que temos já vindo a dar algum relevo, pela sua impor-
tância, refere Júdice que o poema vale por si, é como o
“minotauro do labirinto”. Daqui, portanto, entendemos
que a poesia, no entender deste poeta, é algo cuja função,
resposta e preocupações começam e acabam na (in)fini-
tude do próprio poema (Ele demonstra a sua possibi-
lidade, como se não houvesse nada /antes ou depois
dele”), na polissemia de significados em que ele se pode
plasmar. Num limiar “entre a prosa e a filosofia”, o
poema, em última instância, é um texto que serve para
reflectir sobre si próprio, pega nas imagens da realidade
segundo os quais se rege (vv. 15-20), e transforma-as,
dando-lhes “uma/outra forma”. Assim, para compreender
o poema, basta escrevê-lo para que exista; “E não voltar
a perguntar/ como se escreve o poema”126.

__________________________________________

126
Veja-se o que dizemos sobre esta questão na análise de
“Texto para uso didáctico”.

95
RICARDo MARQuES

2.5. Qual o sentido, função e propósito do


poema?

Para Nuno Júdice, a escrita da poesia, nos dias que


correm, tem a ver com uma espécie de subversão da
linguagem que pretende ser uma revolta contra o caos do
mundo127:
Escrever poesia, no mundo actual, é uma forma de conservar
o que, em cada dia, vamos perdendo: o ser no tempo, a identidade
do eu na dissolução do sujeito devorado pelo movimento do mundo.

Na sua poesia há uma tendência para se preocupar


exactamente com o fenómeno poético neste sentido da
sua própria função e valor para o leitor mais anónimo.
“Axioma poético”128 é um poema que vai tratar daquilo
que está para além do poema, mas que assiste a sua
concretização, isto é, o sentimento que o poeta traz
quando faz o poema, e o que dele pensa depois de feito:
Há duas hipóteses de sentido para
além da que o poema indica: a primeira,
diz respeito ao que eu sinto;
a segunda, ao que eu penso do que
sinto. Mas a outra hipótese, a que
não está na primeira nem na segunda
possibilidade, é a que fala do que
eu penso do que sinto e, por outro
lado, do que eu sinto do que penso. Se
não sei, ao certo, qual delas é mais certa,
é porque aquilo que é mais certo é
o incerto, e quanto mais incerto mais
o sinto como certo. Chego, por isso,
a uma conclusão: a terceira hipótese
decorre das duas primeiras, e o que
penso faz-me senir que só sinto
porque penso, embora também
pudesse pensar que só o sinto por
não haver sentido sem sentimento.
____________________________________________
127
As Máscaras do Poema, Lisboa, Aríon, 1998, p. 52.
128
A Matéria do Poema, 2008, p. 120.

96
NA TEIA Do PoEMA

É de notar desde logo a dualidade (quase pessoana)


entre “o que eu sinto” / “o que penso do que eu sinto”,
dupla sob a qual este poema assenta e que transmite,
metapoeticamente, a própria ideia de metapoesia. Assim,
são dadas ao leitor estas duas acepções de sentido do
poema: o sentimento que tem por base o poema e a
metareflexão sobre esse mesmo sentimento.
É igualmente de assinalar como a estrutura externa
se vai desenvolver de acordo com o paradigma que temos
vindo a assinalar em Nuno Júdice, numa dimensão estru-
tural tripartida, herdeira do legado clássico silogístico.129
Pensamos que este é igualmente um bom exemplo da
própria estética deste autor que, como dissemos e temos
vindo a comprovar, está num limiar entre a feitura do
poema e a reflexão sobre a sua construção.
Ecoando “as hipóteses de sentido” que este poema
desenvolve, está um outro poema, que se relaciona
tematicamente com o tema do livro onde está inserido (A
Matéria do Poema) e, concomitantemente, com o tema
da meta-poesia em Júdice. Chama-se “o Sentido do
Poema” e tem uma nova “alegoria botânica”, de feição
agrícola, como neste livro vimos que acontece num outro
poema130:
Há um sentido nas frases em que o verão passa,
e que vai espigando na seara do poema – para
que um dia a ceifeira do outono o colha com
a sua foice mais sombria, deixando vazio o campo
e cinzento o horizonte. Mas vou abrindo,
com o arado do poema, os sulcos de onde outros
sentidos irão nascer; e espero que o Inverno
passe, e voltem os primeiros pássaros da
___________________________________________
129
Veja-se a análise do poema “A Poesia Clássica”, por nós já
analisado no capítulo
130
A Matéria do Poema, 2008, p. 117. Será analisado mais à
frente.

97
RICARDo MARQuES

primavera com o canto matinal em que desperta


a natureza. E vejo a ceifeira pousar a foice,
tirar o chapéu de palha para que os seus
cabelos se confundam com o amarelo
das flores, e beber a luz solar com os seus
olhos ávidos de azul. Já não é a deusa
que transporta ao colo a morte; nem
a sombra que empurra, com os seus braços
de gelo, o carro do dia para ocidente. Estende
no chão o linho do instante; e é nele
que celebro a missa do poema, para
que não se perca o sentido das frases
em que o verão permanece.

Novamente Júdice usar um processo analógico para


mostrar a construção de um poema como o acto de
semear uma seara. A metaforização do espaço agrícola,
com os seus rituais respeitando o ciclo das estações, vai
começar por ser alvo de glosa e de relação. Assim,
também o ciclo das estações parece passar pelo poema,
que começa e acaba com a palavra “verão”, numa alusão
clarificada pelo desenvolver dessa temática temporal.
o “verão” amadurece o sentido de um poema-seara
que mais tarde o outono vai ceifar (na figura de uma
ceifeira, lugar retórico para significar a passagem do
tempo), acabando como todos os poemas e todas as
searas, “deixando vazio o campo / e cinzento o hori-
zonte”. No entanto, a posição que aqui se advoga é uma
poética do prolongamento do “verão” ou frescura dos
versos, para que dele vão “saindo outros sentidos” e que
assim a ceifeira possa concretizar os seus desejos de
renovação apolínea (“beber a luz solar com os seus/ olhos
ávidos de azul”). Assim, agindo dessa forma, a dita
renovação plasma-se na ceifeira, bem como no poema,
como transformação e renascimento, quase como que a
passagem do tempo (aqui simbolizada pelo transporte
“do carro do dia para o ocidente”) parasse num deter-
minado ponto fixo, um “instante” (exemplificado no

98
NA TEIA Do PoEMA

pousar da foice anteriormente feito em nome da


renovação). o poema termina então com uma celebração
ou comunhão do poema com este “instante” (a palavra
“missa” ilustra bem esta opção), o momento retirado do
tempo no qual o poema, para sempre ser eterno (repare-
-se no verbo com que termina – permanecer e nunca ser
“ceifado”), tem de encontrar a sua base.
Assim, e de um modo geral, a palavra “sentido”,
neste poema, adquire uma polissemia de significados,
não querendo Júdice significar com isso que tratará
apenas de uma hermenêutica do poema neste poema. o
sentido do poema em questão é o de defender uma
poética polissémica de sentidos, para que assim o poema
não se esgote num só sentido literal e vá assim sendo
imortalizado constantemente, à medida que este se for
lendo em diversos tempos.
o poema “Coincidência”131, que narra de uma forma
poética uma história aforística sobre a verdadeira função
da poesia, enquadra-se igualmente nos seus poemas sobre
a função da poesia:

uma vez, na rua, cruzei-me com um apanhador


de conchas. Tinha os olhos feridos pelo sal, as mãos
abertas pelo ácido das marés, os lábios gretados
por versos inacabados. Recitou-me fórmulas
do campo; anunciou-me a verdade de antigas
profecias. olhei para cima, e o céu continuava
azul, como se nada se passasse. Mas ele
abriu o cesto das conchas e um movimento
de caranguejos mostrou-me o fundo da
existência. Talvez eu estivesse a falar
com um morto; ou as suas palavras me
distraíssem do verdadeiro significado
das coisas. “Para que serve a poesia,
afinal?” E continuou o seu caminho,
para que eu seguisse o meu, como
se nunca nos tivéssemos encontrado.
___________________________________________

131
As Coisas Mais Simples, 2006, p. 26.

99
RICARDo MARQuES

Mais uma vez, e tal como vimos atrás em “Como se


faz um poema”, temos uma história alegórica para tratar
o fenómeno poético, em particular a sua função, o que
justifica desde logo a “coincidência” de que o título,
lembrando as “Correspondences” de que Baudelaire fala.
Aqui, o apanhador de conchas parece ser um sinónimo
do poeta que escreve os seus versos, como o apanhador
apanha as conchas132. os “olhos”, “mãos” e “lábios”, com
que, respectivamente, olha o mundo, o escreve depois no
poema, e através deste o diz oralmente, são elementos
que apontam desde logo para o poema enquanto ofício
ou trabalho prático, mais do que de inspiração. Acu-
mulando com a ideia de poeta, este “apanhador de
conchas” é igualmente assemelhado a uma espécie de
profeta cansado e experimentado (vv. 4-6), que através
do produto do seu ofício (as conchas/os poemas)
demonstra o fundo da existência, o que está na base da
vida. A conclusão que se tira deste encontro (que também
pode ser visto como um encontro do poeta consigo
mesmo) é a de que não se sabe verdadeiramente qual a
função da poesia, se ela “distrai do significado das
coisas” ou se, por outro lado, serve para esclarecer os
mistérios da “existência”.
o subtema da metodologia aplicada à feitura de um
poema constitui uma poética em forma de história
alegórica no poema com o título “Poética (alegoria)”133,
incluído no livro Linhas de Água, e que se seguida
veremos, em duas grandes partes:
______________________
132
outras similitudes do poeta são com “exportador e
importador de conceitos”, “escultor” ou “artesão da sombra”, como
se pode ler na parte em que analisamos os poemas onde Júdice dá
uma noção de “poeta”.
133
PR, 2000, p. 1059. Podemos ver aqui um eco da poética de
Cesário Verde, especialmente no que toca à estrutura de descrição,
tão característica de Verde. Vd. “o Sentimento de um ocidental”, e
as próprias palavras de Nuno Júdice no capítulo “outros diálogos
dentro da Literatura Portuguesa”.

100
NA TEIA Do PoEMA

À tarde, ao entrar em casa, com os olhos


carregados do sol que bate nas pedras, fa-
zendo rebrilhar o chão, o interior torna-se
obscuro como o sentido do poema. Avanço,
então, como se não soubesse o caminho; e
quase não reconheço móveis, ângulos de es-
quina, portas que não se vê se estão abertas
ou fechadas. A partir de certa altura, porém
os olhos habituam-se: e tudo surge nítido,
familiar, com os objectos nos lugares em
que deviam estar. Isto não quer dizer que
se reaja como antes: as mãos ainda procuram
apoios, e uma sensação de vertigem acompanha
a localização das coisas.

Nesta primeira parte, temos a proposição da


alegoria, construída através da metáfora do encandea-
mento da luz da tarde quando se entra em casa. A casa,
símile do poema, é, ao início, ao entrar nela encadeado
(“olhos carregados de sol”, uma expressão metafórica
que designa o encadeamento e que pode significar a
embriaguez de uma ideia, exterior ao poema, e que
depois este vai desenvolver), obscura, como se não se
conhecesse um lugar que em tudo nos é familiar. Isto,
porém, só começa a acontecer “a partir de certa altura”,
quando se começa a ver melhor, mas ainda se precisa de
apoios para “a localização das coisas”.
[…] Depois, ao voltar
a sair de casa para a rua, onde a força do sol
aumenta como o meio-dia, a cegueira é inversa,
com os olhos ofuscados – tal como, ao sair do
poema, o mundo parece empurrar-nos para dentro,
e nos exclui de uma claridade que se tornou
inútil. Com efeito, também o cego profeta
dispensa os olhos para adivinhar o destino;
e a leitura do poema, por vezes, substitui
o conhecimento da vida, a que também se chama:
a visão do mundo.

101
RICARDo MARQuES

Feito que está o poema, e se voltamos outra vez à


rua, metáfora da vida quotidiana e do espaço exterior,
ficamos ofuscados, mas por uma claridade que agora é
inútil, estamos com o poema dentro da nossa cabeça e é
a luz agora mais importante. A parte final do poema (vv.
21-25) remata-o com chave de ouro, isto é, com um
exemplo exterior à história narrada anterioramente e que,
neste caso, relaciona o papel do poeta com um profeta
cego à maneira de Rei Édipo, a personagem da tragédia
de Sófocles cuja cegueira auto-imposta fá-lo ver mais do
que com os olhos. Aqui, a visão como símbolo do
“conhecimento da vida” não é necessária à premonição
do destino, dispensada pela “leitura do poema”, uma
visão do próprio mundo.
Por último, e como vimos, este poema constitui um
excelente exemplo do modelo de construção silogística
que impera na poesia judiciana, bem como do estilo
narrativo da grande parte dos seus poemas. Para mais, é
de notar a alegoria que se constrói sobre um assunto
metaliterário e que joga com a ambiguidade do campo
lexical da palavra “visão”, nas suas múltiplas cambiantes
e acepções.

2.6. As poéticas e artes poéticas: a palavra no


poema

[…]
Por vezes à noite há um rosto
Que nos olha do fundo de um espelho
E a arte deve ser como esse espelho
Que nos mostra o nosso próprio rosto
[…]
Jorge Luis Borges, “Arte Poética”134
__________________________________________
134
In Jorge Luis Borges, Obras Completas 1923-1949 (1ºvolume),
Lisboa, Círculo de Leitores, 1998 ( incluído originamente no livro de
1923, O Fervor de Buenos Aires).

102
NA TEIA Do PoEMA

Na obra poética de Nuno Júdice, muitas vão ser as


outras poéticas e artes poéticas que estabelecem, logo no
título, uma relação com um elemento exterior onde se
inspiram e onde vão buscar a imagem ou a ideia que “não
deixa cair o poema no formalismo”, como Júdice defende
na sua afirmação a que já aludimos135. Este subnúcleo é
de especial importância na medida em que aponta para
elementos intertextuais mais ou menos explícitos, e que
se diluem no poema.
É o que acontece com o seguinte núcleo temático
dentro das suas poéticas e artes poéticas que falam sobre
a importância da palavra no poema.. Em todas estas
poéticas podemos verificar, em primeiro lugar, como os
elementos naturais são aqui um subtema recorrente,
servindo como ligação à realidade referencial e concreta,
cujo poema irá desenvolver através do recurso a essa
imagem.
No que diz respeito à importância da palavra em
poesia, pensamos que o curto poema que se segue
transmite exactamente esta ideia, com o recurso a um
elemento do quotidiano – a pedra. Sendo precisamente
esse o seu título (“Pedra”), está presente em Meditação
sobre Ruínas:
A pedra escreve-se em torno
do nome. um banco de pedra serve
de assento a quem escreve,
com esse nome, a pedra. os lábios
não a atiram quando dizem:
pedra. Nem a pedra rola
na boca, como a palavra.

___________________________________________

135
Cf. Românica, 1999, p. 251.

103
RICARDo MARQuES

A pedra é um elemento primordial, sob o qual


assenta a construção do mundo, de um mundo136. Tam-
bém o mesmo se passa aqui, na primeira acepção de
pedra que Júdice parece entrever no poema, isto é, como
fundadora de um mundo que o poema explora, o seu
elemento mais básico ( “escreve-se em torno/ do nome”).
No entanto, a palavra poética nunca poderá ser asse-
melhada a uma pedra, visto que esta é fria, muda, como
o mundo que a constrói – “apenas serve de assente a
quem [a] escreve”. Já a primeira serve para ser dita e rola
na boca de uma maneira diferente, na sua afisicalidade.
Podemos então fazer aqui um paralelismo com a poesia
de João Cabral de Melo Neto, que na sua “Educação pela
Pedra” faz a distinção entre a educação que a palavra, a
formação faz, e aquela que o pedra ou o mundo exterior
(metonimicamente através do contexto “sertão”) com-
plementa ou lhe é anterior. Por outro lado, parece haver
aqui um reforçar da ideia de que “no poema, o poeta tem
de ser um escultor”, como diz Júdice num artigo a que
temos vindo a fazer referência137.
Em outro poema138, incluído num dos últimos livros
publicados, há uma alusão que faz referência à impor-
tância de escolher as palavras certas para um poema, de
lhes destinar o seu lugar, que fazem o poema funcionar:
Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.

Essas palavras são duras como os objectos


que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.

__________________________
136
Cf. Chevalier et Gheerbrant, Op. cit., pp. 510-14.
137
Românica, Lisboa, Cosmos, 1998, p. 252.
138
“o lugar das coisas”, in Cartografia das Emoções, 2001, p. 20.

104
NA TEIA Do PoEMA

Tento incendiá-las quando escrevo, como se


o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de sílabas.

Então, atiro sobre as palavras outras palavras,


água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a voz
não fique queimada nesta paisagem negra.

Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,


artigos, preposições, para que só as palavras que indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.

Pouco importa que as frases percam o sentido. o


que fica são os nomes das coisas, para que as coisas saiam
de dentro delas e as possamos ver nos seus lugares.

A palavra verdadeiramente poética é vista logo a


início como “exacta”, “dura” (como uma pedra, como diz
no poema anterior e como assemelha na segunda estrofe).
No entanto, é como força ígnea que o poema se distingue
nesta composição poética, conotada psicanaliticamente
com o fogo inicial que forma um dado mundo, com
óbvias conotações para com o mito grego de Prometeu
que rouba a “centelha divina”. Como pedras que se
friccionam e que se incendeiam “quando escrevem”, o
poema é o espaço temporal em que “se atiram pedras
sobre pedras”, ao que se juntam os outros elementos do
concreto (ar, vento, terra/pó), numa identificação final do
poema como um “axis mundi”139 perfeito. Desta “paisa-
gem negra”, o que sai é então o poema, matéria forjada
no fogo como metal duro, composto dos advérbios,
adjectivos e outros sólidos elementos (vv. 13-15) que lhe
dão corpo e servem para “nomear” (“só as palavras que
_____________________________________________

139
Na acepção da omphalos grega, de Delfos, e de outros
lugares-centro do mundo epifânicos, de onde este emana( Cf. Mircea
Eliade, O Sagrado e o Profano, Lisboa, Edições Livros do Brasil,
2000).

105
RICARDo MARQuES

indicam as coisas”). Desta feita, o intuito do poema não


é reunir frases com sentido. É sim que a reunião dos seus
vários elementos faça sentido, para que as coisas
transcendam a sua própria finitude (“saiam de dentro de
si”) e as possamos ver brilhar na sua polissemia (“as
possamos ver nos seus lugares”).
Sobre o que é verdadeiramente poético fala Júdice
no seguinte poema, um “Texto para uso didáctico”,
começando por tratar as palavras enquanto instrumento
com que o poeta vai fazer a sua composição140:

Assim, o que um poeta


faz com as palavras, ao
tocá-las com os dedos,
não é só
o que o músico faz com os sons
ou o pintor com as cores.
As palavras,
cuja composição espessa cimenta
o cérebro e lhes dá peso,
não se reduzem às matérias visual
e acústica respectiva-
mente da cor e do som.
A queda desamparada
do sentido para dentro de um
pequeno espaço de escrita,
assim como a súbita relação
estabelecida entre esse facto
e a minha consciência dele, desde logo
ampliam o horizonte expressivo
do poema.
E se o raciocínio e o gesto, em parte,
não entram nele,
não quer isto dizer que uma (outra)
razão, talvez mais profunda,
o inspire e penetre.
É que ela não se manifesta
expressamente pois, pelo contrário,
só no seu aspecto oculto
e “longínquo” se revela
– imediatamente –
o Poético.
_____________________
140
PR, 2000, pp. 159-160.

106
NA TEIA Do PoEMA

um texto com intuitos didácticos tem a função de


instruir, de acordo com o étimo grego. Este poema
transforma-se então em mensagem literária com dois
interlocutores – para um leitor imaginado, por um lado,
que pretenda perceber de onde vem a poesia pelas
palavras de um poeta e, por outro, para o próprio poeta
que faz o poema, no sentido de o lembrar do que é preciso
reter na escrita de um poema. Neste metapoema, Júdice
parece então fazer uma poética dismistificadora do
fenómeno poético em si, perpassando uma consciência
aguda da feitura da poesia como um método, mais do que
o resultado de uma inspiração. Nesta dismistificação,
começa então Júdice por reflectir sobre as palavras que
se usam em poesia, fazendo uma analogia para com
outras “escritas” (a visual e a musical, nomeadamente141)
que usam outro tipo de palavras. As palavras, aqui servem
para “dar peso” ao poema, numa metaforização que tenta
conotar a materialização da mancha gráfica com a
presença física da palavra. A expressão do poema,
segundo o que nos é dito neste texto, não se coaduna
apenas com o sentido e o som que as palavras lhe
emprestam, como deixou claro Paul Valéry142. Apenas na
relação do artista (isto é, o ser que o escreve – “a minha
consciência dele”) com a sua obra143.

A conclusão (ou didáctica prescrita desde o título),


como atrás vimos em outro poema, parece ser a de que

____________________________________________
141
Sobre o entrecruzar destes três tipos de texto – textual, visual
e musical – daremos conta no próximo capítulo, em que veremos
que autores de outras artes vai Júdice convocar na sua poesia
(perspectiva exoliterária sobre a literatura).
142
“o poema é uma longa hesitação entre som e sentido”.
143
De acordo com a máxima latina – “opus artificem probat”
(“A obra mostra o artista”).

107
RICARDo MARQuES

“toda a arte é poética”, isto é, a poesia, na acepção daquilo


que está para além do palpável e físico (daí, metafísico e
artístico) está na base de todo o tipo de textos que se
relacionam com arte: “só no seu aspecto oculto e longíquo
se revela o Poético”. Assim, “não são apenas as palavras”
que interessam numa obra, é a consciência do seu autor
perante a obra feita, de que há um sentimento (“uma
(outra) razão que o inspire e o penetre”) por detrás dela.
A palavra poética enquanto apaziguadora do sujeito
parece ser o tema principal do poema “Poética”, incluído
originalmente no livro As Regras da Perspectiva144, de
1990. o tom imperativo, que encontra nos verbos
(“tenta”, “esquece”, “puxa”) a sua melhor expressão, vem
dar desde logo ao poema o seu carácter de “poética” tout
court, isto é, a dogmatização de uma atitude poética. Esta
“Poética” reveste-se de um cariz algo sombrio, onde o
léxico escolhido pelo autor (silêncio, solidão, sombras e
despedida são as palavras fortes deste poema, enfatizado
pela ressonância do som “s”) apontam para o universo da
morte, literal e metafórica, e dos seus efeitos no universo
da escrita. Vejamos uma primeira parte:

No silêncio, tenta que a respiração


de um deus toque os teus sentidos; e
então, devagar, esquece as cores do dia,
os risos das mulheres que o pesado
reposteiro da memória obscurece, a forma
de um seio na breve queda da noite.
Entrega as emoções à mortalha solar
do verso – sem o remorso de uma
despedida. A solidão tornou visível
esse rosto com que a alma se disfarça
e separou-o de ti – para que o procures
num labirinto de sombras. Puxa o fio
dos sentimentos; chama por aquela
que a monotonia das manhãs designou
a um destino de ausência. […]
___________________________________________

144
PR, 2000, p. 412.

108
NA TEIA Do PoEMA

A poética em questão defende uma poesia, isto é, a


sua escrita, como bálsamo para a conciliação connosco
mesmos. o contexto temporal de início do sujeito poético
traduz-se na díade “noite/silêncio”, palavras com que
inicia e acaba a primeira longa frase poética, que se
desdobra do primeiro ao sexto verso, servida por
sucessivos encalvagamentos. o poeta, então, está só, e
tal condição leva-o à memória (“pesado reposteiro”,
“labirinto de sombras”, vv. 9-12), provocada por uma
ausência (vv. 13-15). Desta forma, a escrita dessas
“emoções” é o único caminho aqui defendido como
devolvendo o ser à vida e ao presente, ao invés da morte
e do passado (vv. 6-9). Vejamos a conclusão:

[…] os caminhos
do campo não coincidem com esse rumo
a que as palavras habituam o ser: uns,
desembocam na margem de um rio sem
imagens – a vida, dizem!; outros,
acabam subitamente como certas linhas
na mão em que toco. Atalhos, é como
vem nos dicionários. Palavras que nos
levam mais depressa até esse horizonte
onde nunca pensámos chegar.

Nesta segunda e última parte do poema é precisa-


mente como viagem ou travessia (“caminhos do campo”)
que se vê a passagem da vida. Esta subdivide-se em dois
caminhos essenciais: os de uma via segura, directa ou
principal (a vida cronologicamente linear) e os da poesia
ou do recurso à palavra poética (“atalhos”) que “levam
mais depressa até esse horizonte/onde nunca pensámos
chegar” o que pode equivaler, por outras palavras, à
própria imortalização para que a poesia, depois de escrita,
aponta e que, de certa forma, se contrapõe ao primeiro
caminho, à finitude da vida.

109
RICARDo MARQuES

De um modo geral, é de uma poética da solidão e


dos efeitos da morte como estímulo para voltar a
escrever, bem como no centro desta relação, a função da
memória na feitura de um poema, tópico amplamente
glosado noutras poéticas do autor. Esta “morte” que o
sujeito poético invoca implicitamente e que lhe provoca
a “Solidão” é o que o vai fazer resgatar ao “labirinto de
sombras” (a memória) a imagem do objecto amado.
Há, neste autor, uma preferência pela metapoesia
com uma clara referência ao real de onde ela parte, ou,
se quisermos, uma “Poética natural”145, título de um
poema de um dos seus últimos livros:

Com os olhos do verso procuro a palavra


que, na terra de sílabas e fonemas,
arrasta a cesura, como quem lavra,
congeminando frases e teoremas.

Abstracto, o poema solta-se do berço,


como voam gaivotas, velas, asas de moinho,
e acaba em quadra seu movimento inverso
em música de cisco, nas palhas de um ninho.

Concreto, pousa o seu baraço de rimas,


como, na procissão, o relapso penitente.
Mas reza; e os seus lábios, como limas,
dão-lhe uma cor de sinestesia dolente.

Mas um poema não vai buscar as suas flores


ao velho canteiro da retórica cega,
onde a estrofe é um enunciado de dores
em morna ladainha de cegarrega.

A inspiração roda nas mós de cada vogal,


até se desfazer em alcofas consoantes
que deito ao vento, na tarde outonal,
como nuvens brancas em céus brilhantes.
__________________________________________

145
Geometria Variável, 2005, p. 25.

110
NA TEIA Do PoEMA

E é nesse horizonte que colho a única flor


que ao poema vem dar ritmo e sentido,
com as pétalas da vida e o pólen do amor
que em mim vestem o teu corpo despido.

Novamente encontramos nesta “poética natural”


uma presença de um terceiro elemento que serve de
chave ao poema, e que apenas se começa a revelar nas
três últimas estrofes, com a conjunção adversativa a ter
aí um papel determinante. Todo o poema vai antes enu-
merar todas as características de um bom poema, que
oscila entre uma ontologia concreta (segunda estrofe) e
um outro lado abstracto (terceira estrofe).
o “mar”, como bem notou, por exemplo, Teresa
Almeida na sua introdução à Poesia Reunida deste
autor146, é uma variação ou subtema de um topos recor-
rente na sua obra, e que generaliza no elemento “água”147.
Desta feita, temos um poema em que ele reaparece, nesta
“Arte poética com marinha”:148
Como um contentor, o poema despeja as palavras:
as palavras metidas em estrofes, amontoadas ou arrumadas
umas sobre as outras. um contentor de palavras
cai do convés do poema para o mar, onde ainda
flutua por algum tempo, antes
de se afundar no silêncio da
memória. um gasto excessivo: palavras que se deixam
arrastar pelas correntes do fundo; outras que as algas
devoram; frases que se estendem, como cordas podres,

____________________________________________
146
Cf. Introdução à Poesia Reunida, 2000. Também no artigo
de Nava sobre um dos seus livros de poesia (Cf. Bibliografia final).
147
Também outros o notaram, nomeadamente o malogrado
poeta Luís Miguel Nava , no estudo por nós referido várias vezes.
148
PR, 2000, p. 774. Há aqui igualmente uma alusão à poética
medieval, ainda que apenas como referência simples ao tipo de
composição, normalmente uma cantiga de amigo, cuja temática se
ligava à água. Para mais informações, veja-se <http://www2.fcsh.
unl.pt/edtl/verbetes/B/barcarola_marinha.htm >.

111
RICARDo MARQuES

nos azuis dourados dos corais. os guindastes do porto


não erguem estes contentores; também não os encontram nos
grandes armazéns do discurso, onde os letreiros indicam um
conteúdo preciso e os despachantes da gramática os abrem
para verificação. Mas um poema, no fundo do mar, não deixa
que o examinem. Não serve a ninguém; e só a memória
o traz à tona, por vezes, em dias mais escuros, ou por
altura dos temporais de setembro. um poema representa o nada
dos fundos, a extensão sem imagem do abismo, o salto
luminoso de um peixe-voador. Por isso, podeis procurá-lo
no fundo dos molhes, na névoa de um farol, ou no lixo
das areias, sob o refluxo da maré.

Como se vê, esta é mais uma “poética do poema”,


um tipo de texto poético que simultaneamente é
metapoético e que Júdice alia a elementos do quotidiano,
narrando depois uma história. o tipo de poética que é
feita é explicada desde logo pela segunda parte do título
(“marinha”), de que o conteúdo do poema vai ser
revelador (“porto, cais, despachantes, fundo do mar”,
entre outros elementos). Desta forma, a alegoria é aqui
dada por um contentor (=poema) que se lança ao mar
onde flutua e onde submerge no silêncio (=memória). o
mundo real, os leitores (=porto) não o conseguem
resgatar dali, nem podem ficar retidos nos “grandes
armazéns do discurso”. Apenas vêem a luz do dia em
momentos disfóricos (=dias mais escuros). Apenas o
próprio mar o pode devolver à terra, só a memória o pode
passar a escrito, como se se tratasse de um “salto/
luminoso de um peixe-voador”. outra forma de ele vir a
lume, de ser passado a escrito, é dado pelos versos finais,
com “o refluxo da maré” – como não tem matéria ou
substância palpável (“representa o nada dos fundos”),
pode ser encontrado num resto de paisagem marinha,
num local menos importante: “no fundo dos molhes, na
névoa de um farol, ou no lixo/ das areias”.

112
NA TEIA Do PoEMA

Esta arte poética, em suma, parece dizer aos seus


leitores que os poemas, como os mitos na conhecida
acepção pessoana, são “pequenos nadas que são tudo”
sem corpo material, e que dependem da memória, quer
através de resgate próprio, quer por lembrança invo-
luntária, para que possam ser passados à escrita, e assim
ganhar o corpo que lhes falta.
Como se sabe, uma ode é uma composição poética
que pretende tratar um assunto de uma forma sublime e
digna, quer pelo tom encomiástico, quer pelo estilo
elaborado, tendo sido cultivada, desde a sua criação na
Antiguidade Clássica, por grandes nomes da literatura
ocidental como Píndaro ou Horácio. A “Arte poética em
forma de ode”149 judiciana é um longo poema narrativo
onde, logo no primeiro verso é assumida a intenção do
sujeito poético para com este poema, estando assim
estabelecidos os parâmetros da sua homenagem (“Cons-
truo uma arte poética sobre a palavra que recorto/ da
página, e inscrevo no horizonte da analogia”). A analogia
vai, assim, ser uma figura retórica importante daqui para
a frente, uma vez que a narração em forma de ode é toda
feita a partir da palavra enunciada, a “noite”, analogi-
camente aludida em outros contextos e paisagens:

um sol vermelho envolve-a com a sua aura, até que


tudo desaparece do outro lado da Terra, e fico só
com a noite. Talvez a noite seja essa palavra; e o
que é absurdo é que ela me tenha aparecido durante
o dia, rodando a esfera do espírito até à escuridão,
substituindo o eivo da terra pelo eixo da treva.

_______________________
149
As Coisas Mais Simples, 2006, pp. 103-107.

113
RICARDo MARQuES

Desta forma, nesta síntese de contrários que é a arte


poética, Júdice continua a oposição estabelecida entre
“noite” e “dia”, falando da opacidade da própria palavra
“noite”, que ultimamente nada quer dizer. o poema acaba
por transcender tudo isso, na sua “imobilidade”:
[…] E ficou apenas a noite, sobre o chão da
sua palavra, desterrada dos homens que a procuram, e
se vêem condenados ao dia, como se o sol lhes
pertencesse para sempre. Então, das suas vozes
sem ressonância nem intensidade, eu recolhia
as palavras inúteis – as que não traduziam
nenhuma queixa, as que se limitavam a indicar
um desalento sem qualquer emoção por trás,
no gesto formal de quem se resigna. E
com essas palavras fiz o poema que descreve
a sua imobilidade, sustentando na coluna
vertebral do presente, sem nada para trás,
sem qualquer futuro. […]

A última parte deste poema vai aprofundar o seu


cariz metapoético, invocando uma metamorfose das
mulheres que amou e cantou, “adormecidas” no passado
e restituídas pelo poema, em anjos, figura asexuada (e
indefinida) que se suspende no tempo (e no poema) à
espera da “noite”:
[…] Então, dediquei-me ao trabalho da estrofe,
esculpindo o seu rebordo com um cinzel de som,
e arrancando as sílabas excessivas, as vogais
eufóricas, uma cor de consoantes. Procurei
um poema a preto e branco, para descobrir nele
o contraste mais amplo, e ver ressurgir
da penumbra o perfil luminoso da amada. A vida
emergiu da sombra dos vidros, e uma respiração
antiga encheu o espaço entre as cesuras com
o seu ritmo brando, restituindo ao verso a sua
medida exacta, até ao limite da prosa.

114
NA TEIA Do PoEMA

2.7. Outras analogias poéticas

Vejamos agora, para terminar, outro tipo de analo-


gias metaliterárias na obra poética deste autor. Se, por um
lado, Júdice vai buscar, sobretudo aos elementos con-
cretos da natureza, a substância que faz escrever o poema
sobre o próprio poema, por outro, o poeta português passa
a ideia da poética como uma receita “omoleta”, que
também veremos, remete ainda para esta esfera gas-
tronómica, aprofundado a relação do poema com o
quotidiano, tratado-o como se dele fizesse parte, como
“coisa natural” (“Poética com filtro natural”)150.
“Alegoria Botânica”151 é um primeiro exemplo do
que se acabou de dizer. o título é, assim, um típico título
deste autor, em que o substantivo do título resume o
princípio retórico que está na base da construção do
poema (assim, temos aqui uma alegoria, como pode-
ríamos ter uma elegia ou um soneto, como em outros
caso) e em que o adjectivo a ele associado caracteriza o
tipo de elementos que o poema convoca, dando assim a
especificidade das imagens do poema (aqui o tipo de
alegoria é botânica porque os elementos utilizados são da
natureza):
____________________________________________
150
Podemos aqui estabelecer uma ligação entre o poema
judiciano e o “Dasein” de Martin Heidegger. o “ser-no-mundo” ou
o “Ser-aí” deste filósofo pressupõe, como se sabe, uma relação de
inerência entre o ser concreto (o homem, para Heidegger, ou o
poema, no nosso caso) e o seu contexto espácio-temporal (o mundo,
o eterno contexto de onde o poema nunca poderá sair). Para um
aprofundamento adequado destas ideias, vd. Gianni Vattimo,
Introdução a Heidegger, Lisboa, Instituto Piaget, 1996 ou Pierre
Trotignon, Heidegger, Lisboa, Edições 70, Colecção Biblioteca
Básica de Filosofia, 1982 [original francês de 1965].
151
A Matéria do Poema, 2008, p. 122. outros são os poemas em
que há uma analogia de um elemento vegetal ao poema. Em
“Metamorfose”, de Geometria Variável, 2005, p. 34, vai haver uma

115
RICARDo MARQuES

Há elementos lógicos na composição do poema


que rompem o equilíbrio clássico. Enterro
no chão os versos mais longos, como estacas,
e ato-os uns aos outros com um fio de
imagens que parece não acabar. Quando começa
a chover e a terra fica lamacenta, os versos
afundam-se, criando raízes. Na primavera
poderei colher dos seus ramos as flores que
há-de nascer, e limpá-las-ei de folhas
para as pôr no jarro da retórica. Também podia
tirar de cada flor as pétalas como se fossem
sílabas, e fazer um herbário de sons. Mas
estou no campo da poesia; e fiquei preso
nesta cerca de versos, de onde não sei como
sair, vendo a noite chegar com o fim da estrofe.

__________________________
analogia com a árvore, com a metamorfose de árvore em poema – “A
árvore permanece, sobre/ o outono e o Inverno, com a sua ânsia
primaveril; e/ eu deito-me à sua sombra, que me aquece,/ ouvindo o
canto que a terra me ensina”. De uma forma mais completa no que
toca à analogia do poema a uma árvore, ainda que implícita, é
“Poesia”: “Esta árvore entrou no meu corpo, com as suas raízes/de
fogo; devorou-me a alma, com os ramos acesos da/inspiração; corroeu
cada recanto do meu ser, com as/folhas brancas da sua ânsia; e em
cada primavera deu/a flor mais inesperada, com a música das suas
pétalas,/e o brilho da imagem que se abre quando o olhar/procura o
centro da corola. É uma árvore que não seca,/nem precisa de água; que
não perde folhas e flores,/apesar de invernos e outonos; que partilha o
dia/com a noite, quando procuro a sua sombra, e é a sua luz/que me
enche. Podia ser uma árvore de ar livre; mas/também cresce nos
quartos mais obscuros, nas salas/onde se acumula o fumo e a
respiração de quem vive,/nas caves onde a luz não entra. Cortaram-
-lhe em vão as/raízes; em vão tentam apagar o seu fogo: nasce do/ser
o húmus que a alimenta; corre nas veias a seiva/que a percorre. Mas
não cresce sozinha; e é em ti que/encontra a sua terra mais fértil, no
frio do inverno,/o ar que a envolve, quando a tua ausência a asfixia,/a
água que as suas flores bebm, na aridez do estio. Tu,/com os teus dedos
de hera, os teus lábios de pólen/e o doce musgo de palavras com que
envolves o seu/tronco. Árvore partilhada, abrigando as aves do
amor,/deixo que os seus ramos se estendam sobre nós,/com o seu canto
de nuvem, e o seu eco de floresta.”

116
NA TEIA Do PoEMA

“omoleta”152 é um poema alegórico, que vai buscar,


como o título indica, a um aspecto do quotidiano, para
falar do que compõe um poema:
Quando se misturam gema e clara,
se transforma o branco em amarelo e o amarelo
em branco, e a púrpura do meio se confunde
com um raio de sol, invento um canto
para que o ovo se não quebre. Então, vejo-o
ficar suspenso no equilíbrio do poema. De
um lado, dá-lhe a luz do sol; do outro, a palidez
da lua rouba-lhe o brilho. Gira
sobre si próprio: e a sua rotação sobrepõe-se
ao movimento da terra. Depois, com um gesto brusco,
parto-o: para que a gemada se espalhe pelo chão,
e o som do poema se misture com os seus pedaços
– aliterações duras como as cascas, vogais
divididas pela simetria do ovo.

o poeta começa por metaforizar a noção de poema


através da figura de uma omoleta que apresenta uma fusão
perfeita da gema e da clara. Todo o campo lexical que
desenvolve neste poema vai nesse sentido. Assim, o
equilíbro do poema situa-se no momento em que,
concomitantemente, ele emite luz (gema-sol) e a perde
(clara-lua) (vv. 6-8), sendo, como um ovo, o seu próprio
eixo de rotação (vv. 8-10), vive apenas em si e por si
próprio. os restantes versos deste poema vão continuar a
história alegórica, com a junção de um elemento adicional
que compõe também o poema (o som), assemelhado ao
“gesto brusco” de partir um ovo e caracterizado como
“aliterações duras como as cascas” protagonizadas por
“vogais” que se dividem pelo poema (ovo).

______________________________________________

152
PR, 2000, p. 819.

117
RICARDo MARQuES

“Poética”153, como o nome indica, é um curto poema


de O Movimento do Mundo que trata de analisar, através
de um poema, as complexidades da poesia, plasmando-
-se em recomendações de normas para a sua escrita:
Evitem o modelo grego: a perfeição das linhas,
a limpidez do mármore, o azul do mar. No fundo, é
onde o corpo se deixa contaminar pelas cores
baças do amor que a luz nasce, como um caule
de inverno; e é por dentro do fruto que a chuva
apodrece que a vida insiste.

Ainda que se trate de uma poética, texto eminen-


temente normativo, este poema é um pouco mais
dogmático do que a média dos poemas judicianos, que
tendem mais a expôr ideias e narrar eventos, que depois
se vão relacionar com a temática do poema. Aqui se
advoga, desde logo, que se deve “evitar o modelo grego”,
paradigma esse que consiste na proporção, na perfeição,
e na clareza que os dois primeiros versos aludem (e que
estão igualmente na base da procura renascentista em
resgatar, nas letras e artes, este passado antigo). o que
deve substituir, por seu turno, este paradigma de poesia
é a contaminação com a vida e as suas irregularidades e
contrariedades naturais, seja pelo amor que nasce de onde
menos se espera (vv. 2-5), seja pela força da permanência
e desejo do “fruto” em maturar, face à adversidade além-
-casca (vv. 5-6). No fundo, este é um poema que expõe a
ideia de que a boa poesia não só é feita de uma estrutu-
ração interna e externa que almeje a perfeição e a
proporção. Tem de fluir naturalmente da vida, das expe-
riências contraditórias da sua vivência154.
_______________________
153
PR, 2000, p. 643.
154
Pensamos que esta falência do poema perante a vida está
presente em outros poemas de sua autoria, como por exemplo em
“Amor” de Meditação sobre Ruínas, “um poema, dizes, em que/ o

118
NA TEIA Do PoEMA

Em O Breve Sentimento do Eterno, Nuno Júdice tem


uma outra “Arte Poética”, um soneto composto, por
indicação do autor em página paralela, a 26 de Dezembro
de 2004. A metáfora que domina a ideia poética por trás
do poema é a de um presente embrulhado:
Há um motivo de seda nas cordas
do coração. Puxo-o devagar, com os dedos
da alma, e o que aparece na mão
são coisas simples, confissões, segredos.

Mas se visto com essa seda a tua


imagem, o que os meus dedos tocam
é mais real do que a vida, e tem
o teu corpo, os teus lábios, a tua voz.

Desfaço, assim, o embrulho da estrofe,


e deito fora os cordéis da retórica,
o papel das figuras, a cola da música.

É melhor assim, quando o poema fica


às escuras, no silêncio da casa, e me
deixa ouvir os teus passos, tão junto a mim.

A construção a que assistimos neste poema é


eminentemente alegórica, como normalmente Júdice faz.
Estabelecida a relação de semelhança nas duas primeiras
estrofes do poema, em que os vários elementos do sentido
literal do poema (seda, cola, cordéis) se equivalem aos
vários elementos constitutivos de um poema (coração,
música, retórica). A presença do tu poético é assim
determinante, como o é em outros poemas, para a sua
conclusão, mostrando sempre que mais importante que a
vida textual é a vida real, a que o ser amado vive. A
estrofe final traz uma nova metáfora para explicar este
__________________________
amor se exprima, tudo/ resumindo em palavras.// Mas o que fica/nas
palavras/daquilo que se viveu?//um pó de sílabas, o ritmo pobre
da/gramática, rimas sem nexo…”. (in PR, 2000, p. 568)

119
RICARDo MARQuES

sentido final: o melhor poema é como uma casa às escu-


ras e no silêncio, fazendo com que o sujeito oiça melhor
os passos do ser amado.
o metaliterário poema “Poesia”, do livro Teoria
Geral do Sentimento, de 1999155 vem exactamente ecoar
esta ideia (o papel da memória como potencializador da
escrita da poesia), criando uma analogia do poema com
o espaço exterior e dialogando com uma outra poética
sua, “Arte poética com melancolia”, que teremos
oportundidade de verificar mais adiante. Vejamos como
se processa essa alusão à memória dentro do poema:
o passado servia-me de alimento. A memória dava-me
o fogo de que eu precisava – mesmo que esse fogo ardesse
no lume brando da imaginação. As árvores, os pássaros,
os rios, eram imagens que não passavam da literatura,
como se fossem apenas as árvores do poema, os
pássaros de um canto melancólico, os rios por onde
corre o tempo da filosofia. Agora, ao lembrar-me
de tudo isso, enquanto bebo devagar este copo de
solidão, não reconheço o cenário; como se um vento
tivesse varrido as árvores, um outono tivesse expulso
os pássaros, um inverno tivesse desviado os rios. o
que vejo, neste espaço em que entro pela porta que
me abriste, é mais simples do que tudo isso: tu, com
o rosto apoiado nas mãos, e os olhos que me trazem
todas as certezas do mundo. Guardo comigo, então,
a tua imagem. Vivo cada instante que me deixaste. E
no tempo que nos separa voltam a crescer árvores,
cantam outros pássaros, correm os rios do amor.

o começo do poema estabelece as fundações do


poema em três eixos importantes: o passado, a memória,
e a imaginação, urdidos numa teia que tem como pano
de fundo uma analogia com a feitura do poema como
processo alquímico e gastronómico (vv. 1-3). A imagem

______________________________________________

155
PR, 2000, p. 1015.

120
NA TEIA Do PoEMA

é o ingrediente do poema que de seguida se menciona,


tripartida em três elementos diferentes (“árvores, pássaros
e rios”). Estes, por sua vez, irão relacionar-se com o
estado do sujeito poético no presente (“bebo um copo de
solidão”) ao escrever o poema, numa outra paisa-
gem/cenário. Estas imagens são então suspensas pela
presença da imagem mais importante que faz escrever o
poema – o tu poético, que neste passo é lembrado (“Vivo
cada instante que me deixaste”). o tempo que existe entre
os dois e que os separa (que é, no fundo, o espaço do
poema), vai ser o espaço do poema em que todas as
outras imagens secundárias voltam, ecos do passado e do
encontro com o objecto amado. Assim, no poema é
possível que a lembrança do “tu” faça “voltar a crescer
árvores”, “cantar outros pássaros” e “correr os rios do
amor”.
“Poética com filtro natural”, presente em O Estado
dos Campos156, vai ser um outro poema onde se defende
uma maneira de conceber um poema com uma arte mais
próxima da vida, da realidade natural, que mas não passa
do que pela reunião, igualmente vista em outros poemas,
com um ser que se ama:
Se eu me quisesse libertar deste peso de ar livre, do azul
que me prende às irregularidades do horizonte, da própria linha
do infinito que insiste em que eu não o compreenda, teria
de fazer versos segundo a prosódia antiga. A disciplina da arte,
entendida de acordo com os velhos tratados, é
uma obrigação que me procuro impor, de cada vez que penso
uma arte poética; mas é apenas para a por de lado logo que
o poema toma conta de mim, e um fluxo de novas impressões
se atravessa no meu espírito, como abstracto enxame,
fazendo-me ceder a tudo aquilo que se designa por “vida”.

__________________________
156
O Estado dos Campos, 2003, pp. 36-37.

121
RICARDo MARQuES

A construção de um poema, de acordo com o que se


defende nesta poética, só é possível numa dupla atitude
face às regras e normas de escrita. Em primeiro lugar,
estas devem ser respeitadas, uma vez que nelas radicam
os princípios segundo os quais se deve escrever bem. No
entanto, e assim que o poema começar a ganhar conteúdo
ou corpo, depressa estas regras devem ser postas de parte,
para assim se escrever um poema mais próximo daquilo
que Júdice define aqui como “vida” (vv. 5-10). o poema
vai assim tentar ser mais próximo da vida, mas como
espaço e tempo àparte da própria vida (mas a ela
mimética, como diria Aristóteles), é lugar onde “o
ponteiro insiste em correr/ ao contrário”:
[…] Mas
a sua brevidade inquieta-me, e dou com o tempo a passar
neste mostrador onde o ponteiro insiste em correr
ao contrário. Prefiro, por isso, dedicar-me
a contar quantas rosas terão florescido, esta manhã, na nossa
ausência – e quem as terá colhido desse quintal para onde
entrámos, numa outra primavera, contando cada pétala caída
dos lábios do amor. Espero que elas se juntem no húmus do
inverno, para que a nova primavera as faça renascer, juntando
as gotas que se amontoaram no seu recipiente para encher o
cálice da memória com a tua imagem. É assim que vou
passando o tempo, coleccionando os cromos do instante
neste caderno da alma a que emprestaste o teu sorriso; e
folheio as suas páginas, sem pressa, sabendo que tu, onde
estiveres, me acompanhas nesse trabalho. Basta que os
outros se afastem, deixando-nos a música da solidão que
nos aproxima; depois quando esse murmúrio se tranforma
nas frases do amor, e uma descoberta de corpos nos
empurra para a navegação do ocaso, bebemos o filtro
que restitui a alegria a quem provou a dor da ausência: tu,
fechando os olhos, como se o cansaço te vencesse; e eu,
tocando as tuas pálpebras, imateriais como um graal
de névoa. Podemos então adormecer, sabendo que o sonho
não nos irá separar até acordarmos, de novo,
descobrindo a luz comum da madrugada.

122
NA TEIA Do PoEMA

A preferência por um poema que abandone os


princípios que o regem, para estar mais próximo da vida,
é ratificada logo a início desta segunda parte (“Prefiro,
por isso…”). A imagem utilizada a início, no sentido de
transmitir esta ideia, começa por ser uma rosa, flor
perfeita que com o “húmus” do inverno vai renascer na
primavera. o poeta parece não passar de um “colec-
cionador de cromos do instante” num “caderno da alma”,
metáfora do próprio poema, onde está sempre presente o
ser amado, mesmo que seja como imagem ou lembrança
na ausência física.
Semelhante a esta poética “com filtro natural”, é
“Arte Poética (explicação)”157, onde o amor é asse-
melhado à mais prática e importante das poéticas, quer
do poema quer da vida real, corporizando as duas num
só ente (o tu poético) e num só sentimento (o amor):

Distingo desejo e amor, como se as duas coisas


não tivessem nada a ver uma com a outra; por
entre as palavras abstractas, os conceitos
difíceis, as citações dos clássicos, os teus olhos
fechavam-se de sono e os teus cabelos ficavam
mais claros, como se os iluminasse
por dentro a luz baça do conhecimento. Para te acordar,
perguntei que relação podia haver entre a vida
e o poema. A dúvida não era possível: com efeito,
para os teóricos, a poesia é pura imitação, e nada
do que está nas palavras tem a ver com a matéria sensível,
com o real, com tudo aquilo que nos rodeia. Mas
a tua resposta foi o contrário do que eles dizem,
como se vida e poesia participassem da mesma
natureza. Devia ter corrigido. São as certezas científicas
que fazem avançar o mundo, e não os erros em
que continuamos a insistir. Sim, dir-te-ia, é
dessa oposição entre a vida e o poema, dessa realidade
absoluta da linguagem, construída contra os nossos
hábitos, os lugares comuns do quotidiano, a
banalidade dos sentimentos, que a essência do estético
se pode afirmar. Mas os teus olhos demonstravam-me
o contrário de tudo isto. Contra o que eu próprio pensava,
cedi à sua lógica. Contra o amor, até as leis da poética
são absurdas.
______________________________________________

157
PR, 2000, p. 903.
123
RICARDo MARQuES

A arte poética em questão reflecte sobre a dupla


“Vida” e “Poesia”, tentando chegar a uma conclusão de
síntese entre as duas, que tratará aqui da realidade de uma
e de outra. É de assinalar aqui a presença de dois discursos
em alternância, como se o estilo de escrita deste poema,
na abordagem deste problema, se deixasse contaminar por
princípios filosóficos. Assim, assistimos, no decurso do
poema a um raciocínio lógico-dedutivo a duas vozes, que
se fundem na do sujeito poético, e que no fim põem em
causa este mesmo princípio de aproximação à questão
filosófica que o poema-poética coloca.
Parte-se assim do pressuposto de que, para escrever,
há que prestar atenção ao que os especialistas defendem
como referente da escrita poética (nomeadamente a
definição da poética mimética aristotélica e horaciana,
apesar de com conotações finais diferentes referentes ao
conceito de imitação), isto é, que a “poesia é pura
imitação” do real (ou “matéria sensível”, como o poema
coloca). Desta forma, o sujeito poético começar por
apresenta esta tese como válida, consubstanciando uma
posição lógica em relação ao que é objecto referencial
em poesia, até porque “são as certezas científicas/ que
fazem avançar o mundo, e não / os erros em que
continuamos a insistir”. No entanto, e após a inquirição
desse mesmo objecto da escrita, o “tu” poético que o “eu”
ama (aqui “adormecido” poeticamente por Júdice pelos
princípios de uma retórica tão abstracta e oca que até
distingue o conceito de “amor e desejo”), este demonstra,
com a sua presença metonimicamente dada pelos plató-
nicos olhos como espelho da alma (“Mas os teus olhos
demonstravam-me/ o contrário de tudo isto”) que a
oposição Poesia e Vida é tão falsa como a que inicial-
mente se propõe entre Amor e Desejo.

124
NA TEIA Do PoEMA

Por último, como síntese desta dialéctica ou expli-


cação final da poética o verso final é claro: “Contra a lei
do amor, até as leis da poética/são absurdas”. o sujeito
constata, na sua concretização prática e pessoal da
“Vida”, que a “Poesia” não apenas a pretende espelhar,
como está presente em tudo o que diz respeito ao domínio
do “Amor”.
outra “Poética”158 de O Movimento do Mundo,
parece tratar o fenómeno poético no seu processo de
feitura numa analogia que é feita com o processo
iniciático de “atravessar um túnel”:
Atravessa o túnel do verso,
ouvindo a água gotejar das cesuras:
música de antigas chuvas,
que atravessam as idades e as rimas,
deixando nos lábios o ritmo
de uma óbvia monotomia. Como
se tudo fosse imcompreensível,
finge perder-te à saída, quando a luz
de um sentido te ofusca; depois,
recupera a direcção certa: mesmo
que haja outras para além dessa, e
outras invisíveis no lugar que deixaste. Mas
não olhes para trás: o que ficou, é
o irrecuperável; e nenhum rumo
te transporta de regresso à origem, como
nenhum dos braços futuros te restitui
o amor revelado num primeiro abraço.

Tal como no poema anterior, há uma extensa


analogia, que se pode denominar de alegórica, entre a
viagem do verso e a viagem por dentro de um túnel que,
de um ponto de vista psicanalítico, poderíamos carac-
terizar de iniciática. Ao atravessar o túnel do verso
(atravessando igualmente “as idades e as rimas”), há
como que uma suspensão da vida, necessária para pensá-
_____________________________________________

158
PR, 2000, p. 693.

125
RICARDo MARQuES

-la no escuro do sítio. Do outro lado, e após esta expe-


riência temporal, ultrapassa-se também uma fase que fica
simultaneamente no passado e no papel, num tempo
“irrecuperável”, para o qual se recomenda “não olhar
para trás”. A luz pode ofuscar quando se sai,
metaforização dos vários caminhos possíveis (alguns
“invisíveis”) que temos perante nós, mas é necessário
recuperar a direcção e o rumo, não esquecendo que
apenas após essa prova podemos ter a certeza de que,
como Camões escreve a propósito do mundo (“E, afora
este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor
espanto: Que não se muda já como soía.”), a própria
mudança efectuada pela passagem no túnel muda-nos de
forma a não voltarmos a ser quem fomos. E aquilo que
fomos marca-nos para sempre, como determina o fim
desta “poética” da poesia e da vida: “nenhum dos braços
futuros te restitui/ o amor revelado num primeiro abraço”.
outro curto poema, adequadamente intitulado
“Breve Poética”159 apresenta-se na esteira dos últimos
poemas que temos vindo a analisar, mostrando um cariz
talvez menos normativo e mais descritivo do que é
poesia, isto é, tratando mais dos seus aspectos formais do
que da forma de a escrever:
os dons da poesia: sons
que se traduzem em imagens,
abstractas ou naturais
como invisíveis
corais.

É próprio do discurso poético que este apresenta


ambiguidades no significado das palavras, de forma a dar
a ideia comparativa de uma metáfora sobre a qual o poe-
___________________________________________

159
PR, 2000, p. 1018.

126
NA TEIA Do PoEMA

ma se constrói. A palavra-chave, neste sentido, desta


“breve poética”, é a última palavra do poema, “corais”.
A tese que este poema defende é clara e temo-la visto em
outros textos poéticos deste autor; a boa poesia (“os dons
da poesia”) é composta de textualização metafórica de
um aspecto concreto do real (as “imagens”) e da música
das palavras escolhidas (os “sons”). Essa textualização
pode ser explícita ou implícita, pode acontecer através de
uma associação “natural” e simples, ou “abstracta” e
ousada, mas é sempre poesia quando une estes dois
aspectos. Assim aponta a palavra “coral”160, simulta-
neamente dando a ideia do organismo vivo, no fundo do
mar, que se materializa no poema como imagem, e outra
acepção da palavra que aponta para um conjunto de
vozes, apontando assim para um significado ligado ao
som.

Assemelhando-se a um descritivo de uma receita


(veja-se os verbos utilizados – “pego”, parto”, ligados a
substantivos culinários – “frasco”, “licor”), no poema “o
Silêncio”161 desconstrói-se a forma de constituir um
poema, apontando ao mesmo tempo, e paradoxalmente,
para o seu começo se situar no “silêncio”, palavra do
título:

______________________________________________
160
É inevitável pensar a ligação deste poema ao de Sophia de
Mello Breyner Andresen, “Coral”, que dá nome ao mesmo livro de
poesia de 1966 – “Ia e vinha/ e a cada coisa perguntava/ que nome
tinha”. Poetisa da ligação dos elementos ao ser, este poema
concretiza o ser como permanentemente inquieto na sua indagação
às coisas e aos mistérios da vida, como tantos outros dos seus
poemas.
161
A Matéria do Poema, 2008, p. 22.

127
RICARDo MARQuES

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,


e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntou o que significavam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Defende-se aqui que a essência da poesia não se


encontra na palavra, mas no silêncio que a envolve. o
poema funciona de um modo circular, acabando e
começando precisamente com a ideia de silêncio, no
primeiro e último versos. A memória vai novamente ter
um papel fundamental, conservando algumas das pala-
vras que daí saem e que se transformam em “remorsos”,
enquanto outras são guardadas imediatamente para
depois o poeta tentar dar-lhes um significado ou sentido.
No entanto (“mas”), o silêncio é majestoso sobre todos
os ruídos (“poéticos”) que as palavras, no seu conjunto,
formam, até imperar novamente sobre tudo o resto –
“inteiro, sem nada por dentro”.
o poema “Metafísica”, o poema que abre O
Movimento do Mundo, apresenta-se como uma poética
sobre a ontologia do poema e as múltiplas questões que
a sua existência põe, nomeadamente como se escreve e
qual a sua função.
Às vezes, um verso transforma o modo como
se olha para o mundo; as coisas revelam-se
naquilo que imaginação alguma as supôs; e
o centro desloca-se de onde estava, desde
a origem, obrigando o pensamento a rodar
noutra direcção. o poema, no entanto, não
tem obrigatoriamente de dizer tudo. A sua
essência reside no fragmento de um absoluto

128
NA TEIA Do PoEMA

que algum deus levou consigo. olho para


esse vestígio da totalidade sem ver mais
do que isso – o desperdício da antiga
perfeição – e deixo para trás o caminho
da ideia, a ambição teológica, o sonho do
infinito. De que eternidade me esqueço,
então, no fundo da estrofe?

A tese que aqui se defende, muito directa e proli-


xamente, é a de que um verso tem o poder de transmitir
uma espécie de conhecimento absoluto (como o sujeito
diz: “esse vestígio de totalidade”) que nos faz olhar para
o mundo de uma maneira completamente diferente
daquela que até o termos lido tinhamos. Assim, o poema,
e o verso em particular, é aqui entrevisto como o lugar
do estímulo da própria capacidade de imaginar, (onde as
“coisas se revelam naquilo que imaginação alguma as
supõs”), isto é, mostra quase um outro mundo que não
conseguiriamos imaginar sozinhos. No entanto, nessa
construção de palavras que é poema (“a sua essência
reside no fragmento de um absoluto”), essa mundi-
vidência apenas se revela exactamente por nós, os
leitores, o querermos (já que a totalidade, para pegar nas
palavras do “eu” poético, foi “levado por algum deus”,
aqui sinónimo da perfeição, totalidade ou infinito). A
atitude final do sujeito poético define a sua posição
metafísica em relação ao poema – desiste de ambicionar
o infinito da perfeição, impossível, como se vê, de
alcançar, pela escrita de um poema, acabando com a
dúvida final e questão fundamental que coloca a poesia
– afinal, quando se acaba de escrever um poema, o que
permanece da sua “essência” fragmentária, da sua
perspectiva contida de uma mundividência muito maior
e mais absoluta, isto é, da vida, em último caso.
Por outro lado, e na seguimento daquilo que
dissemos atrás acerca das variações das suas poéticas,

129
RICARDo MARQuES

também se verificam subtemas ligados a outros autores,


nomeadamente autores que o influenciaram e que estão
sempre latentes e representados na sua poesia, não tanto
a um nível de estrutura interna, mas na doutrinização da
sua própria estética de escritor. É o caso de “Poética com
citação de Baudelaire”162 e, como depois veremos, de
“Arte Poética com citação de Hölderlin”:
A construção da frase passa por vários campos
(semânticos, entenda-se). Lavrados por canetas
de aparo duro, rasgando os sulcos da sintaxe;
e semeados de palavras, como sementes, de
onde irão nascer novos sentidos. Mas não
gosto destas frases construídas segundo as
regras conhecidas. Deito-lhes fogo, com o
fósforo do verso, e vejo o incêndio alastrar
por toda a página, até iluminar o horizonte
da estrofe. E avanço por entre cinzas, com
o mapa da gramática, até entrar na floresta
da memória, ouvindo um murmúrio
de folhas segredar-me o código do poema.

Repare-se, neste poema, na importante presença dos


substantivos, que funcionam como eixos interpretativos
de toda a construção poética (“mapa”, “floresta”, “fósfo-
ro”). De notar ainda a aliança destes nomes com a sua
correspondência paradigmática, fazendo com o poema
possa ser lido de uma forma conotativa, como se de uma
poética da poesia se tratasse (“gramática”, “memória”,
“verso”, respectivamente). os versos iniciais são desde
logo metafóricos – vv. 1-3, estabelecendo um paralelismo
dos campos do mundo agrícola, onde se semeia para
crescer, para criar ou produzir algo, com os campos
(“semânticos”) da própria criação do poema, que também
são “semeados”, “lavrados” e de onde saem sempre “no-
__________________________________________

162
Geometria Variável, 2005, p. 76.

130
NA TEIA Do PoEMA

vos sentidos”. A adversativa “Mas” estabelece, no entan-


to, um afastamento declarado do próprio sujeito perante
o poema escrito segundo estas “regras conhecidas”. É
preciso “incendiar” os versos, até se tornar um incêndio
que controle toda a estrofe, isto é, imolar o poema de
todos os elementos que o constróem para que depois este
só deixe a “cinza” de onde o verdadeiro significado
(“código”) do poema pode surgir. Este “código” do
poema, ou a sua leitura e hermenêutica, tem sempre de
ser achado através da combinação de todos os elementos
que Júdice enumera; seguir as regras da sua construção
para depois as esquecer e deixar o poema explodir nos
seus vários significados.
“Arte poética com citação de Hölderlin” é um
poema em que o símbolo da rosa serve de base às
imagens que o poema judiciano explora, construindo, no
mesmo passo, uma mundividência particular relativa ao
poema lírico, como se através de uma rosa arquitectasse
uma poética do próprio fenómeno poético. Assim, é-nos
dito, na primeira estrofe, que:
o poema lírico nasceu de uma roseira. Não
digo que fosse a rosa de cima, aquela que todos
olham, primeiro que tudo, pensando
em cortá-la para a levarem consigo. É
a rosa nem branca nem vermelha, a rosa pálida,
vestida com a substância da terra
a que toma a cor dos olhos de quem a fixa, por
acaso, e ela agarra, como se tivesse
mãos abstractas por dentro das suas folhas.

A imagem em que Júdice pega, logo nesta primeira


estrofe, é eminentemente comparativa entre o “poema
lírico” e a rosa, remetendo para o intertexto holderliano
para que o título refere163. Desta forma, a relação de
semelhança que entre os dois elementos se estabelece é
muito forte, dotando igualmente de uma feição sines-

131
RICARDo MARQuES

tésica as palavras que o poeta usa para descrever um e,


paralelamente, o outro. Todo o vocabulário que daqui
para a frente é utilizado tem sempre dois referentes ou
significantes: o poema e a rosa, num diálogo de signi-
ficados ora imaginativo, ora literal, respectivamente.

De um modo geral, um poema é então aqui visto


como uma rosa pouco brilhante, visível e perfeita, quer
na sua forma, quer na sua cor. No entanto, ele tem a
capacidade de atrair (“agarrar”) as pessoas pela sua
beleza, “como se tivesse /mãos abstractas”. Proposto que
está o tema de mais esta arte poética, o poema de Júdice
continua esta ideia de fusão entre “rosa” e “poema”, com
a alusão a outras palavras do campo lexical do primeiro
substantivo. Assim, o sujeito poético diz:
Colhi esse poema. Meti-o dentro de água,
como a rosa, para que flutuasse ao longo de um rio
de versos. o seu corpo, nu como o dessa mulher
que amei num sonho obscuro, bebeu a seiva
dos lagos, os veios subterrâneos das humidades
ancestrais, e abriu-se como o ventre da
própria flor. Levou atrás de si os meus olhos,
num barco tão fundo como a sua própria morte.

Abracei esse poema. Estendi-o na areia


das margens, tapando a sua nudez com os ramos
de arbustos fluviais. Arranquei os botões
que nasciam dos seus seios, bebendo a sua cor
verde como os charcos coalhados do outono. Pedi-lhe
que me falasse, como se ele só ainda soubesse
as últimas palavras do amor.

(Metáfora contínua de um único sentimento).


_____________________________________________
163
o poema em questão, de tradução da responsabilidade de
Paulo Quintela (in Poemas, 1954), intitula-se “A rosa” : Suave irmã!/
onde irei buscar, quando for Inverno,/ As flores, para tecer coroas
aos deuses? Então será, como se eu já não soubera do Divino,/ Pois
de mim terá partido o espírito da vida;/ Quando eu buscar prendas
de amor aos deuses,/ As flores no campo escalvado,/ E te não achar.

132
NA TEIA Do PoEMA

No decurso da primeira para a segunda estrofe desta


parte vemos como a identificação/fusão entre significante
(“rosa”) e significados (“flor” e “poema”) se vão progres-
sivamente plasmando numa ideia de corpo físico,
invocando aquele que poderá ser o objecto e um terceiro
elemento deste corpo do poema – o “tu” poético. Como
exemplificação, podemos ver a substituição de verbos
que ocorre no primeiro verso de cada uma das estâncias
– de “colher” o poema a “abraçá-lo”, este último pen-
dendo mais no sentido de uma ligação à fisicalidade e à
matéria do próprio poema.
Novamente de assinalar é também a presença de um
dos elementos fundamentais em Júdice (a “água”),
claramente ligada à sensibilidade e emotividade. Embora
sendo vital para a viçosidade e sobrevivência do poema
(vv. 12-16), vai servir aqui como metáfora da própria
passagem do tempo e do retorno ao passado, através da
memória, mostrando como é pessoal e finito o olhar do
poeta para o passado que depois é posto no papel (vv. 16-
-18). o produto do poema (“abrindo-se como o ventre da
própria flor”, “em botões que brotam dos seios”),
alimentado que é pela “seiva subterrânea do passado”,
terá sempre como étimo o sentimento que o faz escrever,
o amor, de que o poeta se lembra no poema (vv. 21-23).
É esta a arte poética que aqui se propõe. o verso final,
disposto à parte e entre parêntesis, parece então reforçar
esta ideia, sendo a chave desta citação de Hölderlin sobre
a fusão corpo da rosa/ corpo do poema. Se no poema
holderliano a rosa é identificada como o “espírito da
vida”, de onde toda a existência, até a do próprio poema,
brota, o poeta vem mostrar, com a sua citação com-
parativa do autor alemão, como esta comparação se
equivale à “Metáfora contínua de um único sentimento”,
o amor que, como o poema, “nasce de uma roseira”.

133
RICARDo MARQuES

Na continuidade temática deste poema, um outro,


intitulado “Setembro”164 e presente em Líra de Líquen,
continua a relação da escrita do poema com a passagem
do tempo, elaborando um diálogo comparativo com o
mês do título e a feitura da poesia:
A poesia dá-se bem com este mês,
cuja medida se assemelha à do verso – dias
partidos ao meio, deixando a alma indecisa
numa evocação de gastos sentimentos. Mas é
no campo, ao poente, saboreando o cheiro doce
dos frutos que apodrecem na terra, como algas
mortas, que uma voz insistente me chama – poesia?
Quem, por detrás do seu rosto sonoro e
abstracto? Memória que a noite depressa apaga…

É comum a analogia, quer na poesia portuguesa,


quer noutras tradições poéticas, das estações e dos meses
do ano com o ser humano e o seu próprio ciclo de
idades165. Mais uma vez, é da memória de uma voz e da
vida que se fala neste poema, de que o verso final é um
claro exemplo. Como em muitos outros poemas de
Júdice, a leitura deste poema deve então ser feita
sobretudo através de uma linha conotativa, mais do que
através de um sentido denotativo166. Há aqui uma
profunda reflexão poética acerca da chegada a meio da
vida (como a Setembro, numa leitura literal), confun-
dindo-se com a própria chegada ou recorrência à voz da
poesia, que o sujeito do poema ouve (“que me chama”).

___________________________________________
164
PR, 2000, p. 261.
165
Veja-se aquilo que dizemos sobre a passagem do tempo
ligado às estações do ano neste poeta, de que falámos atrás, no
capítulo “Nuno Júdice – o Mecanismo Fragmentário de uma
Identidade”.
166
Cf. Roman Jakobson. Essais de Linguistique Générale,
Paris: Les Éditions de Minuit, 1963 .

134
NA TEIA Do PoEMA

As perguntas finais relacionam-se com a própria função


da poesia, a que podemos recorrer em “Setembro”, mas
que não serve para evitar a inexorabilidade da morte.
Assim, o pensamento, ideia ou preocupação que assiste
a feitura da poesia é “memória que a noite depressa
apaga”.
Já “Arte poética com melancolia”167 parece ser uma
poética nascida para teorizar um importante aspecto da
sua poesia ulterior, aquela que se refere ao retorno à sua
própria origem, em múltiplos cambiantes, como o da
memória da infância. Assim, e na continuidade daquilo
que vimos em “Setembro” com a passagem do tempo e a
chegada ao meio da vida, o que abre este poema é a
preocupação com o relato de algo que radica nas suas
emoções e que teve lugar no passado:
Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo
como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem
as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita
primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro
palavras de dentro do que penso e do que faço, como
se elas pudessem viver aí, peixes verbais no
aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem
da terra, nem trazem consigo o peso da matéria;
quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem
o mesmo sangue com que se faz viver as emoções,
e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas,
estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me
das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo,
de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e
vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços
a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É
então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das
palavras que te descrevem, hesita numa das entradas
do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome
com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra
portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens
inúteis que me separaram de ti.
__________________________________________
167
PR, 2000, p. 895.

135
RICARDo MARQuES

Assiste-se, ao longo deste poema, a uma estru-


turação lógica das ideias postas em confronto (tese,
antítese e síntese), uma metodologia que temos bastas
vezes visto neste poeta. A metáfora alude novamente à
passagem das estações, ao papel da memória no resgate,
para o poema, do que se foi (“tento apanhar esses resto
de tempo,/de vida que se perdeu numa esquina de quem
fomos”) ligada a uma possível e provisória definição de
poesia (vv. 15-16). A parte final do poema, a partir desta
indagação ontológica perante a poesia (v. 16), acrescenta
então o elemento decisivo que a ela responde, traduzindo-
-se ao mesmo tempo naquilo que faz ou promove a
própria escrita de poesia: o objecto amoroso, o ser amado.
Se no início tinhamos um sujeito a “sobrepor o mundo à
linguagem”, mostrando que as palavras que o compõem
eram uma espécie de conteúdo dentro do continente
(“peixes verbais dentro do aquário do ser”), agora temos
o objecto concreto que as palavras tentam descrever,
fantasticamente “entrando no verso”. o efeito deste
súbito aparecimento, motivado pela memória e simbo-
lizado pelo sussurro iniciático do nome do ser que se
ama, é purgativo, eliminando todas as coisas acessórias
dentro do próprio poema e que “me separaram de ti”:
“sílabas e frases, por entre as imagens/inúteis”.

136
3. DIÁLOGOS COM A LITERATURA
PORTUGUESA

3.1. Luís de Camões e o fingimento lírico


judiciano

É desnecessário dizer que a figura tutelar de Ca-


mões, bem como a sua obra, tem tido uma repercussão e
aceitação enormes, sendo hoje uma referência cultural
reconhecida em todos os quadrantes da vida cultural,
aquém e além fronteiras. No que toca aos poetas
contemporâneos, inúmeros são os estudos a ele devota-
dos, e que denotam as múltiplas formas como esta figura
e a sua obra tem sido vista, usada e transformada, numa
relação intertextual que varia entre a subversão maliciosa
e a intenção paródica e de análise literária168. No caso do
poeta Nuno Júdice, esta é uma das mais importantes
linhas de leitura da sua poesia, que o autor subscreve
abertamente, tendo já escrito diversos testemunhos sobre
isso. No seguinte trecho encontramos assim mais uma
pista para a identidade e tradição de Júdice, onde se
denota bem o gosto pela ironia subtil que começámos a
analisar no subcapítulo anterior:
_______________________________________________
168
Não pensamos ser importante para esta tese referir com
minúcia e exaustão os inúmeros estudos publicados sobre Camões,
quer do ponto de vista biográfico, quer da sua obra . Para uma ideia
dos livros mais recentes publicados sobre este tópico e a recepção

137
RICARDo MARQuES

Sou um dos que aprenderam o português pela mão de Camões


[…] Se nalgum partido estou inscrito, por isso, é no PC – não aquele
em que estão a pensar, mas no partido de Camões; e nem o Pessoa
me fez renegá-lo, com as suas críticas bem injustas ao único que lhe
poderia fazer, e faz, alguma sombra, nesta nossa literatura
portuguesa. Tive também a ajuda de Jorge de Sena para puxar
Camões para o século XX, nas análises que lhe fez […] mas
sobretudo no modo como ele incorporou na sua poesia o mito
camoniano […]169

Nesta breve citação temos estabelecido por Júdice


um canône de autores que, a nosso ver, em tudo se
relacionam não só com a forma como escreve, como
também pelos temas e preocupações da sua poesia. Em
primeiro lugar, e visto o depoimento ser exactamente
sobre esse poeta, Camões é apontado como uma influên-
cia maior do seu trabalho170. No entanto, a referência de
Sena neste contexto é pertinente, visto este poeta ter
influenciado Júdice na forma como traz a ekphrasis para
o interior da sua produção poética, não só por este o
“puxar o Camões” para a contemporaneidade da sua

________________________
camoniana nos poetas contemporâneas, recomendo o volume nº4 da
Revista de Literatura Românica. (Cf. AA.VV., Românica, Lisboa,
FLuL, 1995, pp. 63-81, 127-137), bem como a revista de poesia
Relâmpago, no número especial dedicado ao poeta. (Cf. AA.VV.
Relâmpago, nº4, Lisboa, Fundação Luis Miguel Nava, 1999).
169
Nuno Júdice, “Camões, Sempre”, in Relâmpago, nº20, Abril
de 2007, p. 148.
170
Podemos ver isso claramente em outros lados. Por exemplo,
nos Cadernos de Serrúbia, 1998, quando fala da poesia portuguesa,
ou no intróito ao seu O Breve Sentimento do Efémero, de 2008,
quando volta a incluir-se na genealogia directa deste poeta
renascentista, neste último caso como modelo definidor daquilo que
é o soneto clássico e que ele academicamente tenta imitar: “[…]os
meus sonetos sao escritos à mão e não em computador[…]” porque
“o soneto, de certo modo, tem esse lado académico […] há um
modelo qualquer à sua frente”. (Cf. O Breve Sentimento do Efémero,
2008, p. 10).

138
NA TEIA Do PoEMA

escrita171. outro apontamento pertinente consiste na


alusão a Pessoa. Apesar de no confronto que estabelece
entre Camões e Pessoa este sair sempre a perder, a
referência de Júdice é importante e plasma-se quer
explícita quer implicitamente na sua poesia. Deixa-lo-
-emos para mais tarde, quando analisarmos a presença de
Pessoa na poesia judiciana.
Para já, e quanto a Camões podemos então desde já
referir que as referências poéticas directas a este poeta se
encontram sobretudo nos seus livros mais recentes, o que
nos leva a perceber que este parece ser uma linha
temática e estilística que esteve sempre presente na sua
escrita mas que só mais tarde se assume e se convoca
com uma referência intertextual directa.
A primeira referência cronológica de Camões surge
no poema “Camoniana”172, presente num livro dos anos
90, Um Canto na Espessura do Tempo. Este poema é, de
facto, um poema “camoniano” pelo intertexto convocado,
as “Endechas a Bárbara escrava”. À semelhança do que
acontece no texto de Camões, o poema é todo ele
construído por Júdice à volta de uma mulher cujo nome
_________________________
171
Veja-se igualmente o que diz Júdice, ao terminar o seu artigo
sobre a sua tradição de escrita, a propósito de um colóquio
comemorando conjuntamente Jorge de Sena, Ruy Belo e Vitorino
Nemésio – “São estes poetas que aqui hoje se celebram. Três
caminhos – mas uma única genealogia. A das letras.” (Românica,
nº7, 1998, p. 253). outra tradição parece o poeta encontrar num
poema que não analisaremos, “Poetas”, presente em O Estado dos
Campos (pp.135-136), cujos nomes enumerados são Camões, Garrett
e Antero com que em outros pontos da sua vida literária se cruzou,
como vemos no caso do primeiro, veremos no caso do segundo e
tendo feito um livro sobre os sonetos do terceiro. Ainda neste livro
podemos ler implícita a figura de Camões, nomeadamente no uso de
arcaísmos, por parte de Júdice, que o próprio poeta renascentista
utilizou (“soía”), e pelo tema a eles associado – o amor. Falamos de
“Dor e Amor” in O Estado dos Campos, 2003, p. 137.
172
PR, 2000, p. 462.

139
RICARDo MARQuES

se conhece por Bárbara. Segundo se estudou do pouco


que se sabe e muito se desconfia, esta mulher era uma
escrava em que Camões pegou para enaltecer, jogando
com a sua condição de cativa para arquitectar um poema
glosando o conceito e considerando-se, ele próprio
“cativo da cativa” de condição (“Esta cativa/Que me tem
cativo,/Porque nela vivo/ Já não quer que viva./Eu nunca
vi rosa/ Em suaves molhos, /Que pera meus olhos/ Fosse
mais fermosa”).
Pegando na descrição de mulher feita no poema
camoniano, e já com alguns séculos de permeio de crítica,
o estilo de Júdice é maioritariamente interrogativo numa
primeira parte do poema, dirigindo a mesma pergunta três
vezes à mesma mulher eternizada por Camões, de uma
forma gradativa:

Quem és tu, bárbara, que moras


num poema que se estuda nas escolas
e se lê em recitais,
– tu que te limitaste a ser amada
por um poeta que, se calhar, mais
não te deu em troca do amor
do que esse poema que tu, se calhar,
nunca chegaste a ouvir? Quem és,
ó mulher mais real do que esse
poeta que te cantou, e de cuja vida
ninguém sabe nada – a não ser
que te amou, e te deitou nesse
poema em que ainda vives, e respiras,
como no dia em que ee o escreveu
lembrando-se do teu corpo, e dos
teus lábios, e dos dias, ou noites,
que contigo se passaram? Quem és,
mulher real e sonhada que habitas
todos os poemas que esse poema
inspirou, e todos os sonhos que
nessa bárbara encontraram uma imagem
precisa e definitiva?
[…]

140
NA TEIA Do PoEMA

Como se pode ver, o poema põe o pouco que se sabe


da vida de Camões em jogo, mostrando que, afinal de
contas, tal como na “Autopsicografia” pessoana também
Camões pode ser acusado por Júdice de “fingir comple-
tamente” quando põe a hipótese que esta mulher possa
nunca ter existido, sendo apenas uma súmula de um ideal
inalcançável de mulher que os poetas renascentistas
glosaram até à exaustão. É de notar, no entanto, que tal
fingimento difere do de Pessoa, uma vez que a impor-
tância da corrente neoplatónica na concepção do amor
era tão forte que tal questão de fingir o amor por uma
mulher por cuidados de rétorica era prática bastante
aceitável e comum durante o Renascimento.
Voltando ao poema judiciano em questão, há que
salientar igualmente o apontamento metacrítico do início
(vv. 2-3), como se o sujeito poético se colocasse clara-
mente nos tempos de hoje para se propôr a falar de algo
do passado literário que granjeou fama e fortuna,
defendendo a importância do poema e de quem nele é
descrito e subvalorizando não só quem o escreveu (“ó
mulher mais real do que esse/ poeta que te cantou”) como
a mulher real que o inspirou e fonte posterior de inspi-
ração (“ mulher sonhada que habitas/ todos os poemas
que esse poema/ inspirou).
De seguida, numa segunda e última parte deste
poema, o interlocutor mantém-se mas o tom muda para
o imperativo, girando à volta de três verbos – “Volta-te
nesses versos […] diz-nos o teu nome […] e adormece,
depois […]”:
[…] Volta-te
nesses versos, para que te vejamos
o rosto, e diz-nos o teu nome – o nome
autêntico, e não esse que o poeta
inventou para te chamar num poema

141
RICARDo MARQuES

que de ti só guarda o segredo;


e adormece, depois, esquecendo
o que de ti disseram, e os comentários
de que foste pretexto, e as imagens
em que, cada vez mais, foste perdendo
a tua, e única, imagem.

Esta parte vem confirmar o que se disse anterior-


mente sobre a real importância do poema camoniano.
Após todos os comentários, leituras e estudo feitos do
mesmo, apenas uma coisa reside incógnita, o real
referente do poema, isto é, a identidade da mulher
invocada, como alusão à eterna dialéctica entre aquilo
que se (d)escreve e aquilo em que isso se baseia, o real.
Assim, todos os comentários, leituras e estudos fazem
com que Bárbara seja uma imagem de imagens, morando
apenas no poema.
Só mais tarde, em Rimas e Contas, livro inédito que
foi incluído em Poesia Reunida, irá Camões ser retomado
tematicamente em dois poemas. o primeiro deles, “o
conceito de metáfora com citações de Camões e
Florbela”173 parece, desde logo, pelo título, ir ao encontro
daquilo que Teresa Almeida refere como sendo objectivo
de Júdice a partir dos livros dos anos 90 – o de se
debruçar sobre os escritores que se filiam numa tradição
de escrever sobre a temática amorosa.
Transforma-se a imagem no objecto visto:
amada no ramo pousada, ave e memória,
peças espalhadas num lugar sem história
que o poema arruma sem nada ter previsto.

Deito essa imagem num velho travesseiro


toco-a com os dedos de um verso antigo
e digo-lhe: “Amo-te ainda; vem comigo!”,
quando ela me oferece o seu corpo inteiro.
__________________________
173
PR, 2000, p. 1087.

142
NA TEIA Do PoEMA

Nada do que aqui está tem um fundo


na realidade em que nasce esta linguagem;
o verso engana em cada imagem

e só dentro dele faz sentido o mundo.


Por isso te escondo aqui, figura desejada,
e tudo o resto pouco mais é do que nada.

o poema em questão parece ser então um tratado


teórico com exemplo sobre o conceito de metáfora. Em
primeiro lugar, devemos ter em consideração que o
conceito de metáfora aponta para uma realidade paralela
ao referente real que nos circunda. o próprio poema, por
outro lado, é uma realidade paralela que usa como
referente o real sensível e empírico, uma construção que
é uma imagem do real que temos do mundo. Repare-se,
neste sentido, no uso enfático da palavra imagem, sendo
a palavra que mais se repete neste poema. Assim, o
poema judiciano vai ser ele próprio uma exemplificação
do que é uma metáfora, “transformando”, logo a início,
“a imagem no objecto visto”, glosando desde logo o
primeiro verso de um poema camoniano conhecido. Esta
fusão plasma-se na “amada”, situada num “lugar sem
história” (que é o próprio lugar do poema), que numa
segunda estrofe vemos “oferecer o seu corpo inteiro”,
naquilo que é uma metáfora da subjugação ou sacrifício
que a imagem ou metáfora faz perante o poema enquanto
construção.
Após esta (ir)realidade descrita, a ante-conclusão
(vv. 9-12) é clara – “se nada aqui tem um fundo / na
realidade” e “só dentro do verso faz sentido o mundo” é
porque a linguagem poética, neste poema apresentada sob
o conceito de metáfora, é sempre um outro mundo que o
poema cria, ou a tal realidade paralela de que falámos a
início. Só resta então concluir com a própria imagem/

143
RICARDo MARQuES

metáfora criada por Júdice, que é escondida no único


lugar onde é possível ela existir, porque “tudo o resto
pouco mais é do que nada”.
o poema seguinte está ainda presente no livro
inédito da Poesia Reunida do autor, Rimas e Contas, e
intitula-se “Poema de Tonalidade Camoniana”.
Espalho nesta página os teus cabelos
Prendo-os, um a um, com a agulha do verso.
Amoleço-os com a água da memória.
Limpo-os de humidade com a música do mar.

Depois, levanto a página à transparência


do céu; e os teus olhos aparecem-me, abertos,
com a mesma luz que o amor lhes dava,
numa secura de pálpebras extasiadas.

Assim, construindo o que o tempo destrói


neste caderno de exercícios e lembranças
vejo que nada costuma ser como o que dói:
tudo ser feito de esquecimento e mudanças.

o título desde logo aponta para uma intertex-


tualidade explícita, não assumindo, porém, completa-
mente a citação camoniana, que mais tarde vai aparecer
no último verso. Este é, na verdade, um poema com
certos tons ou laivos camonianos, a começar pelo tema:
a mudança com a passagem do tempo e os seus efeitos,
mas é, ao mesmo tempo, um típico poema judiciano
sobre o fazer da poesia.
Logo na primeira estrofe é convocado um símbolo
muito aludido e descrito nos poemas camonianos, o
cabelo do ser que se ama. Através de uma metaforização
das acções praticadas pelo sujeito poético, vão sendo
referidos os vários lados da prática poética, do que é
necessário para escrever um poema – “a música”, a
“memória”, “a agulha do verso”. Em seguida, na segunda
estrofe, o símbolo é mudado para outro tão camoniano e

144
NA TEIA Do PoEMA

renascentista quanto o anterior – os olhos. Aqui é-nos


dada, através deles, uma referência de tempo passado
apolíneo (em que “os teus olhos aparecem-me, abertos/
com a mesma luz que o amor lhes dava,”) por oposição
ao que se passa neste momento da feitura do poema.
Esta ideia é confirmada na última estrofe, em que se
começa por resumir nos dois versos iniciais tudo o que foi
feito para trás, funcionando igualmente como sinédoque
do que é a própria poesia (vv. 9-10), para depois concluir
com uma ideia diferente do soneto camoniano, referido no
verso final. Afinal, o tempo pode passar, mas “construindo
o que o tempo destrói” através do poema, pode-se iludir o
tempo e a dor da sua passagem.
Penso ter “Variação Camoniana”174, poema que
seguidamente se analisa, uma linha temática que continua
os últimos poemas por nós referidos. Tal como em
“Camoniana” e “Poema de Tonalidade Camoniana”,
Júdice vai estabelecer uma linha intertextual com o
soneto camoniano “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, também num soneto que se torna um jogo de
palavras entre a polissemia dos verbos “mudar” e “ficar”,
resultando muitas vezes também numa construção
quiasmática:
Se estas mudanças são como outras
que foram o que já antes tinham de ser,
que mudanças serão, agora que tudo
permanece do que mudou, e não é?

ou será apenas o que fica a imagem


do que mudou, sabendo que entre
mudar e ficar não há-de ser que mude,
quando todo o ser o é sem mudar?

________________________
174
Geometria Variável, 2005, p. 83.

145
RICARDo MARQuES

Assim, mudo o ser que não mudou


só para que tudo fique sem mudar;
e ao ver o que mudou, volto a ser

o que sempre fui, sabendo que só


mudando havemos de ficar, e só
ficando seremos o que vai mudar.

A variação para a qual o título aponta é assumida


nas possibilidades da explicação de uma permissa inicial,
desenvolvida da primeira para a segunda estrofe. A ideia
que se coloca em questão é a da ontologia da mudança, a
de qual é o seu verdadeiro ser, se tudo o que vai mudar
mais tarde será substituído por novas mudanças. A
hipótese que se dá é a de que talvez isso se explique
porque o que fica do passado é apenas uma imagem desse
mesmo passado (vv. 5-6). Assim, o núcleo do ser que é
objecto da mudança parece não sofrer com a mesma,
apesar de ele mudar.
Nos tercetos plasma-se a conclusão prática destas
hipóteses. Só mudando se pode ver a imagem do que se
foi. Permanecer (“ficar”) só será possível num lugar fixo
em que se olha para trás, para o passado do que se foi e
esperar a mudança que há-de vir. Conclui-se então que a
identidade da mudança é o devir da permanência, a
constante demanda por ela, uma vez que está tudo sempre
a mudar, “a tomar novas qualidades”.
“Relendo Camões”175 vai constituir mais um comen-
tário ao poema camoniano sobre a mudança, promovendo
desde logo uma “releitura” de Camões:

___________________________________________

175
O Estado dos Campos, 2003, p. 129.

146
NA TEIA Do PoEMA

Vejo ainda coisas por dizer: em cada mudança


não somos já quem costumávamos, e quando mudamos,
é quem fomos que fica ainda por mudar. um ser pode
ser tudo o que quisermos, se o tempo o deixar;
mas não será outro se entre ontem e hoje
se não souber transformar: pois é o desejo,
mais do que a fortuna, que faz com que sejamos
amanhã o que hoje não esperamos ser; a não ser
que o amor nos prenda à sua sorte constante. Então,
de dentro da alma, o sereno rosto procura novas
inquietações; e o teu riso o desperta de entre dias
e estações, convidando-o para a vida que é assim:
feita de mudança, quando tudo vai ficar;
e insistindo em ser o que tinha de mudar.

Esta “releitura” é desde logo confirmada pelo pri-


meiro verso, que funciona aqui como intróito – “Vejo
ainda coisas por dizer”. Aquilo que, ao reler o soneto de
Camões, Júdice sente que ainda falta dizer prende-se com
a forma como se muda ao longo dos tempos. A sua tese é
a de que é o desejo (por oposição à riqueza e à fortuna)
que estimula uma mudança para o ser que desejamos. o
efeito é ainda amplificado se tivermos “a sorte constante”
do amor, uma vez que a sua presença, sob a forma do ser
que se ama, convida a permanecermos a seu lado, apesar
da essência da vida ser a mudança.
É de notar, por fim, a estruturação do poema. Este
começa por um conceito geral, partindo de uma ideia lida
num poema, para depois a particularizar num sujeito
poético, e voltar a generalizar, como ratificação final da
tese defendida, com os últimos dois versos.
“Análise literária” é um poema de Júdice que vai ser
uma outra “análise” de um poema camoniano, nomea-
damente uma canção intitulada “Junto de um seco, fero
e estéril monte”. Esta é igualmente a forma como começa
o poema, uma espécie de crónica de leitura intertextual:

147
RICARDo MARQuES

Lendo o poema que começa “junto de um


seco, fero e estéril monte”, o que vejo é o rosto
dessa que vivia em Lisboa, e cuja memória era cara
ao poeta que vai lembrando os seus “claros
olhos”. Sobre essa imagem, posso
compreender a dor que o poeta sente, distante
dela, e tendo perante si
um desterro que o irá afastar, para sempre,
da mulher que amou. E ao imaginar o que ela
fazia, e o que estava praticando, “onde,
como, com quem, que dia e que hora”,
não sei se aquilo que o atormentava era o ciúme, ou
a angústia de quem perde a vida e a felicidade,
ao deixar para sempre essa amada cujo “doce
fingimento” o sustentava.

o poema camoniano é das mais célebres canções do


exílio deste autor, onde o sujeito poético continuamente
expressa a sua saudade pela mulher amada, indagando o
que esta estaria fazendo enquanto ele era forçado a estar
separado dela. Desta forma, e salientado a imagem criada
por Camões para aludir à imagem da mulher amada –
“claros olhos”176, Júdice pega neste tema da separação no
exílio e disserta sobre ele, analisando contempo-
raneamente o que seria estar longe da mulher que amou.
Para além disso, ao citar passagens do próprio Camões e
relacionando com a amada, tenta adivinhar se o que este
quereria realmente dizer com as alusões de ciúme era
literalmente isso ou apenas uma desculpa para algo mais
geral em relação à sua vida – “a angústia de quem perde
a vida e a felicidade”.
Numa segunda parte do poema, vai ser o “doce
fingimento” da canção camoniana, de que é acusada a
mulher amada, a pedra-de-toque para uma relação que
____________________________________________
176
o tema do olhar como espelho da alma, aqui mais uma vez
relacionado com a doutrina neoplatónica, tão importante para os
renascentistas, e que encontra depois no ocidente uma longa tradição.

148
NA TEIA Do PoEMA

Júdice estabelece com outro autor que já vimos (Fer-


nando Pessoa), marcando a diferença entre o que é real e
o que se pode fingir, mesmo em literatura. Por analogia,
podemos igualmente pensar numa extrapolação para a
dicotomia entre o que fica na literatura e aquilo que passa,
como escreve Júdice:
[…] o que sei
é que um sentimento não se finge; e ao escrever
a canção nona, o poeta serve-me de argumento
contra o fingimento do outro, para quem a dor
é exercício de retórica, mesmo que pareça
deveras real. Assim, avanço contra moinhos e
teorias, passando sobre biografias inventadas
e nomes imaginários, até chegar
à imagem dessa cujos “claros olhos” o tempo
não escureceu, e me olham ainda,
para que eu interrogue o enigma da sua
transparência. Por isso mesmo, sinto
a sua falta: e pergunto o que pratica,
“onde, como, com quem, que dia e que hora”,
essa que o poeta amou “junto de um seco, fero
e estéril monte”, sem saber o que amanhã me
iria trazer, até hoje, neste sentimento
de uma canção de Camões.

No fim, e como diz o poeta “o que é sentimento não


se finge”, e o que conta para a literatura e para ele é a
“imagem dessa cujos ‘claros olhos’ o tempo/ não
escureceu”, não a biografia ou nome da pessoa em causa
( se realmente existiu). uma leitura (e análise) do poema
continua a aludir sempre a isto, e é o que “hoje” é
intemporal no poema. Assim, este poema torna-se uma
“análise literária” muito personalizada e muito literária,
visto Júdice tentar explicar metáforas renascentistas (“os
claros olhos”) e passagens linguisticamente ambíguas (“o
doce fingimento”), relacionando igualmente com outro
poema de Fernando Pessoa (“Autopsicografia”).

149
RICARDo MARQuES

“Na sequência de Camões”177, de Cartografia das


Emoções, é um poema cujo título aponta desde logo para
a relação com este escritor renascentista:
“Manda-me Amor que cante o que a alma sente”, e
foi assim que escreveste. As obrigações do amor, e aquilo
que nasce de dentro da alma, são o essencial de
uma vida. A não ser que se considere, por outro lado,
a própria poesia. Esta, impondo a solidão a quem
escreve, obrigá-lo-á a resistir aos impulsos do
coração. ouço-te: “Por que não estás comigo?, por
que te afastas quando preciso de ti?” E respondo-te
com o poema. É verdade que verso algum substitui
a presença de quem ama junto da amada; nem
esse vazio que sentes poderá ser compensado
pelo que digo que Amor me manda cantar. Sim:
esta outra amante que me põe as mãos sobre
a página, e me encosta os lábios ao ouvido. “Escreve,
diz-me, para que eu ouça nas tuas as minhas
palavras.” Mas és tu que eu quero: tu, cujos lábios
não precisam de me falar ao ouvido para
que eu os sinta, mesmo que Amor me mande que
em verso ponha o que nunca foi cantado.

Mais uma vez estamos perante um poema judiciano


que se propõe comentar um texto camoniano. Ao con-
trário de outros poemas, porém, em que esse comentário
é efectuado no sentido da interpretação do texto ou verso
de Camões, aqui a citação usada no primeiro verso serve
apenas de pretexto para uma outra reflexão sobre o
sentimento amoroso, “na sequência da de Camões” no
poema “Manda-me Amor que cante docemente” a que
essa citação alude.
o que Júdice começa por encenar aqui é uma
aparente conflitualidade entre o fazer da poesia como
essencial para a sua vida, e o Amor, com as suas
necessidades e obrigações que “nascem dentro da alma”.
______________________
177
Cartografia das Emoções, 2001, pp. 36-37.

150
NA TEIA Do PoEMA

Assim, e por um lado, a feitura do poema impõe a solidão


a quem a faz, sendo o seu produto final apenas o próprio
poema. Por outro lado, o sujeito poético sabe que nenhum
poema ou verso substitui o ser amado, nem aquilo que o
sujeito sente. A culpa, segundo ele, tem de ser atribuída
a uma “outra amante” (o Amor, enquanto sentimento) que
o estimula a escrever, para expressar por palavras o que
se sente. No fim, a decisão do eu poético é claramente
assumida e definida pelo verbo usado (“Mas és tu que eu
quero”), naquilo que é uma preferência dada ao que se
sente, por oposição ao que se diz sentir pela poesia,
mesmo que seja verdade.
Acabamos assim o poema com uma contraposição
entre o Amor enquanto sentimento, praticado pela poesia,
e o amor que é sentido na prática, fisicamente junto do
ser amado. Pensamos que estamos igualmente perante
uma alusão clara ao platonismo praticado por Camões e
outros poetas da sua época, que sentiam exacerbada e
distanciadamente o Amor que escreviam através da sua
poesia, sem muitas vezes o terem concretizado na prática,
o chamado amor físico. Fernando Pessoa pode nova-
mente ser visto aqui como um interlocutor possível
sobretudo naquilo que é definido pelo famoso verso “o
poeta é fingidor” de “Autopsicografia”. Efectivamente,
o poeta pode ser um fingidor, mais do que um ser que
verdadeiramente sente aquilo que escreve.
o poema judiciano “o Amor é”, presente em
Geometria Variável, vai ser, como o título desde logo
alude, uma tentativa de explicação do sentimento,
explicitamente invocando um soneto camoniano muito
difundido “Amor é um fogo que arde sem se ver”:

151
RICARDo MARQuES

Ferida que não dói,


a palavra que não precisa de ser dita,
um olhar suspenso dos teus olhos,
respirar o ar em que respiras,
dizer o teu nome
e ouvir nele a tua voz,
esperar-te em cada instante
em que sei que me esperas,
dar-te a alegria que me dás,
ver-te chegar num eco de ave,
e deixar que me prendas
com o teu gesto mais suave,
sentir-te, só, ao pé de mim,
e sentir-me tão só longe de ti,
saber que existes em mim
como sei que existo em ti,
a flor de fogo do teu corpo,
e beijar essa flor.

Tal como no último poema judiciano, este vai


funcionar como uma hipótese que depois se completa
diferentemente. Desta feita, os versos da estrofe única
que é o poema vão ser, quase todos, hipóteses comple-
tadas pelo título, ora com dois elementos antítéticos
colocados em contraponto (“a palavra que não precisa de
ser dita”) ora uma conjugação de elementos lexicais afins
(“respirar o ar que respiras”). o primeiro exemplo, no
verso inicial, é uma paráfrase paródica do verso inicial
do soneto de Camões. Neste poema, e para além deste
jogo linguístico, há igualmente subversões ao nível da
sintaxe, auxiliadas pelo uso do quiasmo (“Sentir-te só, ao
pé, de mim/ e sentir-me tão só longe de ti”), que reforçam
o tom antitético que o soneto quinhentista quer passar.
Há igualmente uma clara gradação no poema
judiciano, que vai dos elementos mais simples, como um
“olhar” ou “o teu nome”, até terminar na ideia mais geral
e concreta, que é o desejo e a sua consumação, trans-
mitidas metaforicamente através de uma flor. Assim se
conclui que “o amor é […] a flor de fogo do teu corpo,/

152
NA TEIA Do PoEMA

e beijar essa flor”, o que é um apontamento mais explícito


do ponto de vista carnal do que o poema camoniano.
Continuando no jogo intertextual com este soneto
camoniano, outro poema judiciano parece ainda mais
desenvolver a ideia das antíteses que o Amor é e provoca,
em “Fogo que arde sem se ver”178. Neste poema, o título
constitui desde logo citação do primeiro verso do soneto
quinhentista, de que as aspas são exemplo. o poema
inicia in media res, com o sujeito poético pondo em causa
a declaração do título do poema sobre o amor. Parale-
lamente, vem pôr em causa a conclusão do poema de
Camões, influenciada pela ideia neoplatónica que
vigorava no século XVI e que fazia os poetas escrever
sobre a importância superlativa da alma:
Aquilo que oiço não me esclarece: então
é isso que entendes por amor, como se fosse
a mais simples das coisas – desde
que, na sua formulação, não entrem os
sentimentos? Algo de abstracto, sem os
corpos que dão forma ao próprio
conceito?

De seguida, vai mais além, quase fundindo a opinião


do sujeito poético com a do próprio autor, fazendo uma
reflexão pessoal sobre os “tímidos versos” de Camões e
comentando assim essa ideia neoplatónica. No entanto,
e para o sujeito poético, o amor é um conceito que não
pode ser dito de outro modo que não seja artificialmente
tratado por “eufemismos e metáforas”, através da
“hesitação fria das palavras”:
_____________________________________________
178
Cartografia das Emoções, 2001, pp. 36-37. Esta é uma
expressão que vai ecoar por alguns poemas de Júdice,
nomeadamente “Soneto”, poema de amor onde a segunda estrofe,
numa apóstrofe ao objecto amado, apresenta a seguinte variação –
“Conta-me o que está lá por dentro [o segredo/ que o teu amor tem
guardado]/ antes que me deixes entrar; e ensina-me a chegar ao
centro/ onde arde um fogo sem parar”. (PR, 2000, p. 824).

153
RICARDo MARQuES

Camões, nos sonetos, tratou


disso; e tenho pena de os ter
levado tão a sério, a esses tímidos versos,
carregados de eufemismos e metáforas.Porém,
pode dizer-se o amor de outro modo? E poderá
ele ser ensinado, o amor que só se aprende
na dúvida dele próprio, escondendo as
emoções, e também as fraquezas, com a hesitação fria
das palavras que o declaram?

Para o sujeito poético, porém, o amor que sente para


com o objecto amado é diferente do que o poema
camoniano conclui. o amor que ambos sentem é
explicado no próprio poema criado, que não substitui o
ser amado (“ A tua ausência tem/ a forma desses catorze
versos”). Assim, a conclusão antitética que o poema
camoniano defende sobre a definição do amor só pode
ser válida visto ser na ausência do sujeito amado que o
próprio amor, enquanto coisa hiperbólica, se define
porque não é consumado:
Agora, porém, o amor
é outra coisa: esta entrega que nos prende,
esta renúncia que se diz sem o ser, este ir
de um para o outro enquanto se volta a página
e o poema te substitui. Então, não é
outra coisa o que Camões nos disse; e ao explicá-lo,
levando a sério oposições e antiteses, toda
a contradição se desfaz. A tua ausência tem
a forma desses catorze versos; os teus lábios
ardem nas suas rimas; os teus dedos enchem o vazio
entre cada estrofe, obrigando-me a contar
por eles sílabas, quadras e tercetos, enquanto
a chuva cai – água e fogo nos teus braços,
música de piano que toca sem ver.

Por fim, e presente em “História de Arte”179, está


uma outra forma de tratar a figura literária de Camões –
______________________
179
Geometria Variável, 2005, pp. 42-43.

154
NA TEIA Do PoEMA

através da sua própria biografia. o texto em questão,


verdadeiramente interdisciplinar, tem a particularidade
de ser um poema sobre um aspecto particular da história
de arte portuguesa, mas que Júdice entretece com alusões
à literatura (na figura de Camões, sobretudo) e a aspectos
sócio-económicos da época.
Em primeiro lugar, há que salientar a dedicatória do
poema, uma vez que aqui encontramos o primeiro cruza-
mento interdisciplinar do poema. Ao dedicar o poema a
Victor Manuel Aguiar e Silva, colocando-o em epígrafe,
provoca Júdice desde logo a estranheza no leitor que
conhece o teórico, por ser um poema com um título
filiado num tipo de arte diferente daquela onde este
professor se celebrizou ( a literatura). Assim, com estes
dois dados, vamos ler uma primeira parte do poema:
Para Victor Manuel de Aguiar e Silva

Quando sequeira pintou “a morte de camões”, estava longe


de imaginar que os seus restos teriam destino idêntico aos
do poeta. o tibre, inundando a igreja onde o enterraram,
devastou sepulturas e confundiu todos os ossos, que foram
juntos em comum sarcófago. o que ele também não
soube é que essas cinzas se iriam juntar às do seu
quadro, queimado pela multidão em revolta, no incêndio
das tulherias.

Encontramos aqui uma primeira explicação desta


epígrafe. Sendo sobre um quadro alusivo a Camões, cuja
vida depois Júdice relaciona com o pintor romântico
Domingos Sequeira, podemos avançar com a hipótese se
este ser um poema encomiástico para com o camonista
Aguiar e Silva. Posto isto, e após avançar com este facto
histórico, Júdice prossegue o poema com o início da
narração imaginada, e que parte deste mesmo facto:

155
RICARDo MARQuES

Tudo isto estava longe do seu espírito quando


ouviu o pintor gerard dizer-lhe que reconhecia nele a mão
de um verdadeiro artista. Sequeira apreciou o elogio; e, em carta
ao irmão, pediu-lhe o favor de uma encomenda de duas caixas
de laranjas, das melhores, e de pele fina e das mais doces, e
também de tangerinas, para obsequiar o amigo, a
quem ele falara das uvas de lisboa, que eram melhores do
que as francesas. Na conversa, gérard dissera-lhe que o
melhor modo de as mandar vir seria em bagos soltos, envolvidos
em algodão; e é provável que laranjas, tangerinas, e uvas
tenham chegado, de lisboa, à mesa do pintor gérard,
para que ele saboreasse a sua pele fina, e as mais doces,
junto de sequeira, a quem a “morte de camões” serviu
de motivo. […]

Nesta segunda parte temos a inclusão de um novo


elemento na história, o pintor romântico François Gérard,
que conviveu com Sequeira quando este se exilou em
França no decurso da “Vilafrancada”. o próprio narrador
do poema remete para a esfera do “provável” que certos
eventos se tenham passado (vv. 17-18). o que nos
interessa salientar aqui, analisando esta parte em cotejo
com a primeira, é a forma discursiva e fluída como Júdice
estrutura o seu texto poético, numa segunda parte que se
torna uma narrativa decorrente da primeira. Por um lado,
é de notar os vários elementos que revelam uma fusão do
modo lírico com o narrativo, nomeadamente nos
elementos de ligação entre frases (“ Tudo isto estava [...]
quando”, por exemplo), tornando a acção mais enca-
deada. Por outro lado, note-se a estrutura em espelho
desta segunda parte (esta parte acaba e começa com a
referência a “sequeira”, e repete no princípio e no fim a
mesma forma de descrever as frutas), bem como a marca
da sinestesia na descrição das frutas.

156
NA TEIA Do PoEMA

[…]No entanto, se ele soubesse que os seus ossos teriam


o mesmo fim que as cinzas do poeta, talvez não tivesse
desafiado o destino; a não ser que confiasse nas ninfas do tibre,
como o poeta acreditara nas tágides. um inverno, porém, o tibre
passou por cima das suas ninfas, tal como o tejo afogou as tágides;
e se inundações e terramotos os aproximaram depois da morte,
também no exílio partilharam a mesma saudade de lisboa,
embora sequeira se lembrasse de uvas, laranjas e tangerinas,
e camões, das mulheres, as de pele fina, e das mais doces.

Neste excerto, há um claro retomar do facto


histórico dado logo a início, sobre a coincidência das
duas mortes em circunstâncias anacronicamente
semelhantes. Continua aqui a narração dentro do poema
(“no entanto”, “porém”), e a estrutura em espelho. o final
é concebido no registo irónico tipicamente judiciano,
justapondo as duas vidas de Camões e Sequeira sobre as
quais o poema assenta e tem como referente uma obra de
arte que os une. Se, por um lado, a alusão a Camões,
através das Tágides é ligada a um facto biográfico de
Sequeira, que acabou os seus dias em Itália, onde passa
o rio Tibre, o tema do exílio vem à tona nos últimos
versos, bem como as frutas que anteriormente se
descreveram, numa descrição ambígua que retoma a
sinestesia e dá-lhe contornos animistas (a mesma saudade
de lisboa/embora sequeira se lembrasse de uvas, laranjas
e tangerinas/ e camões, das mulheres, as de pele fina, e
das mais doces”).
Em suma, Júdice vai buscar um aspecto histórico
particular que depois desenvolve numa ficção, tudo num
jogo a três tempos que relaciona três vidas de três artistas
diferentes. Este poema é um bom exemplo de como
Júdice funde o real concreto com uma história imaginada,
misturando no mesmo passo um poema com uma
narrativa cronologicamente irregular. o poema coloca a
questão das relações interartes e da anacronia das

157
RICARDo MARQuES

tradições180, como temos vindo a defender neste trabalho.


Neste sentido, é igualmente de salientar neste poema a
colagem, que em muitos poemas judicianos acontece, de
elementos referentes a uma disciplina, e de outros
referentes a outras, mostrando uma rede intertextual que
não se formula apenas nos moldes de um sistema, mas
fundindo vários ao mesmo tempo. Deste modo, o poema
acaba sendo uma teia de ligações para diversos domínios
do saber, que ali se condensam.

Assim, sendo este poema uma história, é também ele


a verdadeira “história de arte”, por sinédoque, que o título
manifesta. É a história, no sentido de ficcionalização, das
várias histórias paralelas que não ficam registadas na
história da história de arte.
Podemos então constatar que o poeta é retomado
essencialmente de duas formas – na relação estabelecida
com o conteúdo (temáticas e assuntos abordados na poesia
camoniana) e no que toca à sua vida. Em primeiro lugar, o
tema do amor, omnipresente na poesia judiciana, assim
como na de Camões, encontra nos versos deste último um
caminho intertextual, que é glosado ora de forma explícita
com citações directas, ora num quadro de alusão mais ou
menos velada, mas sempre perceptível. Em segundo lugar,
é desenvolvendo o tema da mudança que Júdice encontra
uma outra forma de trazer Camões para a sua poesia,
apesar de este constituir um tema que se encontra um
pouco por toda a produção do poeta contemporâneo.
____________________________________________
180
Lembramos aqui o formalista Tinyanov e a sua defesa do
sistema inter-relacionado de sistemas que para ele era a Literatura.
Para este autor, há uma distinção entre sincronia e diacronia na
evolução e desenvolvimento da Literatura, sendo que a obra literária
evolui como sistema literário independente do sistema que era a
Literatura, primordialmente influenciado por factores sócio-culturais,
isto é, extra-literários. (Cf. Todorov, 1979, bibliografia final).

158
NA TEIA Do PoEMA

Finalmente, é a própria figura de Camões que surge


imortalizada por Júdice nos poemas que lhe dedica181. É
de notar que o poeta renascentista é uma figura cuja vida
se encontra, em muitos passos, deveras mitificada, e esse
material tem sido alvo de vários romances e histórias
populares. Júdice, tal como no tratamento dos mitos
portugueses e clássicos que veremos de seguida, selec-
ciona aspectos da vida desta figura literária que mais
tarde se imortalizaram com a sua obra, dando azo ao seu
desenvolvimento através da imaginação poética.

3.2. Fernando Pessoa e o fingimento retórico


judiciano

“o jogo [ a partir dos anos 70] já não é o da


sinceridade dentro do fingimento, como em Pessoa, mas
o do fingimento dentro da sinceridade”182

Num seu outro depoimento183, verdadeiro aponta-


mento metacrítico do autor, gostaria de encontrar uma
outra pista para a tradição poética de Nuno Júdice, dada,
desde já no capítulo anterior, sobre a presença camoniana:
____________________________________________
181
Não analisado por nós nesta parte é o poema “A respiração
do exílio” (PR, 2000, 570-71), onde se faz referência ao poeta
português precisamente através de um apontamento biográfico – o
do seu exílio por decreto real, na sequência de uma luta com um
nobre. Camões aparece logo no segundo verso do poema como
exemplo de um poeta disfórico do exílio. Para um desenvolvimento
adequado acerca das tangências entre literatura e exílio, bem como
exemplos das várias perspectivas acerca do exílio, por parte dos
escritores, vd. Claudio Guillén, O Sol dos Desterrados: Literatura e
Exílio, Lisboa, Teorema, 2005 (original espanhol de 1995).
182
Nuno Júdice, O Processo Poético, IN-CM, 1991, p. 160.
183
Nuno Júdice, “Clearly Campos: Yes, claro”, in A Viagem
das Palavras, Lisboa, Edições Colibri-IELT, 2005, pp. 37-45.

159
RICARDo MARQuES

Nos últimos versos de um poema que deu o título a


um livro dos anos 70, O mecanismo romântico da
fragmentação, encontro a presença de Álvaro de Campos
como um modelo tutelar da minha poesia:
Acabado de escrever o que, saí de casa;
a passo atravessei a rua, sem olhar para o lado esquerdo,
encostei-me à montra do infinito e pedi:
uma caixa de fósforos.
Ao acender o cigarro eu acendia o horizonte;
e, por detrás dele, a própria face oculta da Terra!

Em frente dessa montra da tabacaria do infinito, não


sou uma excepção: Campos é, sem dúvida, o heterónimo
de Pessoa que mais influenciou ou serviu de paradigma
à poesia portuguesa do nosso século XX.184
_____________________________________________
184
Op. Cit., p. 37 [sic]. De uma forma mais lata, Júdice vai em
outro lugar, referir a influência deste autor para a poesia do século
XX, descrevendo o universo pessoana através de uma comparação
arquitectónica: “Há, como é evidente, um fenómeno que desvirtua
qualquer juízo sobre o nosso século: Fernando Pessoa. A sua obra
pode funcionar como um terramoto que deitou abaixo muito do que
está antes de depois dele. os heterónimos funcionam um pouco
como a Baixa pombalina, cada um deles sendo as artérias principais
de uma ideal Cidade da poesia construída a régua e compasso na
cabeça de um grande Arquitecto do universo pessoano. É uma cidade
que tem o defeito de ter edifícios demasiado altos, que tapam muito
do que há para ver à sua volta; e que funciona em circuito fechado,
fazendo com que muitos dos que lá entram acabem por se perder
num labirinto que tem como Minotauro o próprio Sujeito. Deixemo-
-los andar lá por dentro de cabeça perdida em busca de mais
heterónimos em flor” ( AA.VV., Cadernos de Serúbia, Porto,
Fundação Eugénio de Andrade, 1998, p. 41). Também no livro que
aqui é dado como exemplo – O Mecanismo Romântico da
Fragmentação, encontramos um poema que pode ser lido à luz desta
relação intertextual com Pessoa, através de Campos. Falamos de
“Em terra”, em que esta ligação é estabelecida com a enumeração
de lugares (“Edimburgo, Belfast, Newcastle”), e com a descrição de
uma paisagem marítima de viagem, bem ao gosto das famosas odes
de Campos (“Atravessou o cais de mãos vazias nos bolsos”) ( in PR,
2000, p. 177).

160
NA TEIA Do PoEMA

Em primeiro lugar, a importância de Fernando


Pessoa para Nuno Júdice revela-se na forma como a
figura literária tem sido figura de relevo na sua prosa
ensaística. Em 1986, Nuno Júdice edita A Era de
Orpheu185, para mais tarde retornar a ele em O Processo
Poético (1992), ou ainda, mais recentemente, em Viagem
das Palavras (2005). Em todos estes casos, há sempre
um reiterar do lugar singular que o poeta detém para a
poesia do século XX, em especial na figura de Álvaro de
Campos, o heterónimo que sempre o acompanhou até ao
fim da vida.
As referências veladas e explícitas a Pessoa e
heterónimos são efectivamente fáceis de encontrar na
poesia judiciana186. Pode-se igualmente afirmar que o seu
próprio estilo inicial, discursivo e torrencial como a crítica
da época viu e incluiu no contexto de outros escritores
surgidos nos anos 70187, se contamina de influências
futuristas deste heterónimo, expressas no elogio do cosmo-
politanismo e nas inúmeras exclamativas interpelativas,
mas com um estilo e nexo próprios de Júdice –
____________________________________________
185
De modo análogo, o ensaísta Nuno Júdice vai igualmente
ter projectos paralelos, como pesquisar sobre o futurismo, e em
especial a poesia futurista do Algarve, produzida entre 1916 e 1917
(Cf. Poesia Futurista 1916-17, A Regra do Jogo, Lisboa, 1993).
186
uma que podemos adiantar, de um poema que não iremos
analisar, está no poema “o Mar em Durban”, onde há duas
referências a Pessoa, ainda que o poema não seja explicitamente
sobre ele. (Cartografia das Emoções, 2001, pp. 102-105).
187
Veja-se, a título de exemplo, Gastão Cruz (A Poesia
Portuguesa de Hoje, Lisboa, Plátano, 1973) e a sua comparação com
um autor da geração de Júdice – João Miguel Fernandes Jorge: Nos
poetas que, de 1970 para cá, publicaram os seus primeiros livros,
vamos encontrar soluções profundamente diversificadas. Enquanto
João Miguel Fernandes Jorge, nomeadamente em Para Outro Tempo
e Porto Batel, aparentemente abdica de controlar todos os nexos do
discurso, o que conduz a uma como que flutuação sintáctica e vai
inscrever-se entre as várias tentativas de construção de um novo

161
RICARDo MARQuES

Como iniciar o canto, a homenagem às cidades imprevisíveis


do continente/fulgurativo? […] as gramáticas oficiantes de uma
memória ocidental limitaram o meu génio […] iniciarei pois um
canto requisidor ao alcance do século. Palavras,/ solicitação
aventureira da exigência, curva do erro! […]Eis contra quem
proponho o contágio temporal do poema. Atento/ À autoridade
divina, esperando o refluxo dos ventos litorais […] elogiando a
intenção paranóica/ do poema, o desespero enfático da solidão, a cor/
espaçosa da genealogia […] Poema! – suspende o impulso ártico da
nomeação! Tu bordarás a descrição/ púrpura e uma flor libertadora/
ordenarás a extensão nomenclatura da imagem/ Não te detenhas no
estuário reversível da metáfora! Cumpre o espírito emissário das
hierarquias outonais/ Regressam já as aves indicativas do idioma.
Elas/ dizem: «Está próxima.»/ Ei-la – a cidade.188

Demoremo-nos neste poema, o primeiro do seu


primeiro livro publicado e que resulta um pouco profético
no quadro da sua poesia posterior, com tanto de narrativo
e alegórico. Em primeiro lugar, é de assinalar que aqui o
título é “Apogeu da Gramática”, o que denota logo uma
opção estilística por parte do autor, em privilegiar a
“gramática” como lugar central para a noção de poema,
tão em voga na altura. A “homenagem” enunciada no
primeiro verso é então ao “poema” ( que, como temos
visto ao longo da análise dos seus poemas, é o arquitema
judiciano por excelência). o poema é a composição
libertadora da nomeação e impositora da imagem, a ideia
que claramente deve estruturar o poema e que este
desenvolve.

___________________________
discurso poético dos últimos anos 60, Nuno Guimarães e Nuno
Júdice opõem-se diametralmente, o primeiro com o seu constru-
tivismo minucioso, que leva às últimas consequência toda a
experiência desenvolvida nese sentido por alguns sectores da poesia
dos anos 60, o segundo tentando operar uma espectacular
recuperação daquele discurso que há onze ou doze anos parecia sem
futuro e que afinal talvez o tivesse.” (p. 218).
188
PR, 2000, pp. 57-58.

162
NA TEIA Do PoEMA

Vejamos agora manifestações explícitas da presença


de Fernando Pessoa nos seus poemas. o primeiro poema
que explicitamente dialoga com Pessoa aparece apenas
nos anos 90 em Um Canto na Espessura do Tempo
(1992):
onde tu estás, sem teres nunca voltado de parte nenhuma,
Sem vontade de partir para onde nunca chegarás, porque aí
é já ontem, encontro-me contigo. Mandas-me sentar: e ambos,
à mesa de um dos cafés da Eternidade, escrevemos cartas que
Nunca ninguém irá receber. Mas tu ris-te, sabendo que Ele,
o inCógnito, as está a ler, e também possivelmente a escrever,
Através de ti, para um outro que tem o teu rosto e as tuas mãos,
E no entanto não és tu, e me está a olhar, agora. E tu dizes-me:
É um fantasma! E ris-te mais, nesse limbo onde começa a descer
um crepúsculo a que, em outro lugar, se chamaria a Morte: mas que
Tu sabes ser mais do que a morte e, ao mesmo tempo, uma vida
A que ninguém ousará aspirar.
E fazes um silêncio, pensando naquela a quem escreveste as
Cartas que nunca ninguém leu além de ti, nem ela própria, que
Tu olhavas, num escritório cheio de sol e de vento, pensado em
Barcos e em velas, enquanto ela pensava no que tu sentirias por
Ela, sem saber que o que tu sentias só ela o podia sentir, nesse
Reflexo de um tempo onde ela seria, apenas, a sombra de alguém
Que poderia ter sido. (E essa súbita sombra turva a tua sombra,
Que eu olho, e me assombra.)

11 de Junho de 1985
lisboa

A figura aqui evocada é a do escritor Fernando


Pessoa, sendo esta a única vez que se lhe dirige
directamente. A data referida é importante, já que esse foi
o ano em que se celebraram os 50 anos da morte do poeta,
e Junho foi o seu mês de nascimento. Vários são os
aspectos relacionados com Pessoa a que Júdice alude,
para assim estabelecer a sua relação intertextual com o
escritor. Por um lado, a presença do símbolo “cartas”
aponta para o emprego que Pessoa teve em vida, que
estava relacionado com o trabalho de escriturário (vv. 15
e 16). Por afinidade semântica, há igualmente aqui uma

163
RICARDo MARQuES

relação com a literatura e a escrita, pelas quais este autor


verdadeiramente se imortalizou. Pegando num exemplo
de cartas a quem Pessoa escrevia supostamene a alguém,
Júdice faz aqui um trocadilho com a palavra “sombra”,
para dar a entender, por um lado, o “fingimento” que o
autor de “Autopsicografia” sabia ser subjacente a quem
quer que se dedicasse à literatura. Desta forma, e tentando
perceber onde o autor se encontra, o sujeito poético
confronta-se com Pessoa num lugar imaginário que é “o
café da Eternidade”, colocando este último “nesse limbo
[…] a que em outro lugar se chamaria a morte”, que é a
eternização através daquilo que se escreve, aquilo “que
tu sabes ser mais do que a morte e, ao mesmo tempo, uma
vida /a que ninguém ousará aspirar”.
Na continuidade desta ideia de “sombra” como
súmula da própria vida de Pessoa, que nunca se soube
muito bem onde esteve e sempre criou outros “eu” para
efectivar a sua existência, há uma última glosa da sombra
que o próprio Pessoa constitui para os escritores que
vieram depois (ideia já dada, de resto, no tratamento
superlativo de Pessoa nos versos “…uma vida/a que
ninguém ousará aspirar”), e nos quais Júdice, através do
seu sujeito poético, se tende a incluir – “[…] a tua
sombra/ que eu olho, e me assombra”. Esta ideia remete,
desde logo, para a “ansiedade da influência” que as
teorias psicanalíticas que Harold Bloom tem vindo a
desenvolver sobre o cânone e a tradição189.
Num outro poema, em Meditação sobre Ruínas
(1994), existe outra referência explícita a Pessoa, nomea-
damente à figura de Álvaro de Campos e à composição
assinada por este heterónimo intitulada “Tabacaria” de
1928. o poema em questão intitula-se “Clearly Campos
(citação)”:
____________________
189
Cf. Bibliografia final.

164
NA TEIA Do PoEMA

Só uma vez
o amor interrompeu a frase;
só uma vez
o rio transbordou a margem;
só uma vez
os astros se apagaram;
só uma vez
ouvi o silêncio dos ventos.

o acaso não conjuga as coincidências:


resolve-as
numa troca de olhares
que os amantes julgaram
eterna.

E desço esta página


até ao fim da rua
em vão.

A tabacaria
fechou, nessa tarde,
só uma vez.

– a última vez.

Em primeiro lugar, é de assinalar que o título do


poema vai ser paráfrase e paródia do título de um poema
de Campos (“Clearly non-Campos!”). Convocado que
está este intertexto, o poema judiciano vai ser não só
sobre a mudança (veja-se a segunda estrofe), mas
igualmente sobre a despersonalização de Pessoa nos
heterónimos. Se juntarmos esta referência do título à do
conteúdo, notamos que este é um poema “clearly” de
Campos visto este convocá-lo duas vezes. Por outro lado,
e quanto ao conteúdo, este poema continua na tradição
da poesia sobre a poesia ou sobre o universo poético, de
que a parte final é claro exemplo – “desço esta página/
até ao fim da rua”. Assim, as coisas fixas e imóveis que
são a Tabacaria e a rua, também símbolos do que é real e
se passa fora do sujeito poético, fecham, “uma última
vez”, com a morte que também é o fim do poema, numa

165
RICARDo MARQuES

fusão do que é real e imaginado, que abundantemente


acontece na poesia de Júdice.
A referência ao texto de Campos vai ainda mais
longe, se nos detivermos mais atentamente no conteúdo
de ambos os poemas e os cotejarmos. A “citação”, aliás,
a que o título do poema judiciano alude, está presente,
em Campos, na última estrofe do poema deste, acerca da
passagem inexorável do tempo. Assim, os versos “Quatro
vezes passou a estação falsa/ No falso ano, no imutável
curso/ Do tempo consequente”, relacionam-se directa-
mente com a primeira estrofe de Júdice, onde “só uma
vez” é uma expressão convocada quatro vezes para referir
quatro breves acontecimentos no decurso do tempo,
confirmando o que se diz de seguida sobre o “acaso” – a
única possibilidade de resolver as coincidências de um
breve momento como é uma troca de olhares, e de assim
o eternizar.
Já “Turismo” é um poema que aparece no livro
Teoria Geral do Sentimento, em 1999. Mais um poema
narrativo de Júdice, este vai ser uma reflexão sobre vários
tipos de “turismos” que parte de um acontecimento
quotidiano e cómico para depois reflectir igualmente,
parodiando, sobre o fenómeno heterónimo pessoano.
Vale a pena transcrever por completo o poema em
questão, antes de o pensar criticamente.
Em madrid, nas descalzas reales, duas japonesas
perguntavam a que horas começava a visita. No inglês estropiado
do guia, a resposta nada tinha a ver com a pergunta: que a visita
era em grupo, e em espanhol – o que,
para as japonesas, era secundário. o que elas queriam
era saber quanto tempo durava a visita. o programa estava traçado,
ao minuto, e o autocarro esperava-as.
Há quem se ria disto, como o empregado
do bar, no aeroporto, ao ver passar um bando de japneses,
de mala e máquina fotográfica às costas, à chegada

166
NA TEIA Do PoEMA

de um avião. Mas não são apenas


os japoneses que andam em grupo. Eles são é mais visíveis do que
os outros – por causa do ar sério, da máquina fotográfica e do mapa
para que olham, quando procuram o caminho do monumento
seguinte da excursão.

De facto, nunca andei em excursão com japoneses, nem com


o fernando pessoa. Mas imagino que ele também viajaria em grupo:
o próprio
e os heterónimos, com o campos a levar a máquina fotográfica, o
reis a carregar
os livros e o caeiro a arrastar as malas. Chegariam os quatro a uma
cidade,
com todo o ar de quem tem um programa a cumprir, mesmo que não
soubessem o seu destino. Em madrid é que as coisas que
complicariam
– por causa da língua. o pessoa
talvez falasse em inglês, embora ninguém o percebesse (a pronúncia
de durban é uma chatice); o campos poderia arriscar
o espanhol – com o reis a rir-se dele; e o caeiro, esse, com a língua
de campónio,
confudir-se com um galego e levá-los, a todos,
ao prado (e vejo-os aos quatro, embasbacados, em frente
da maja desnuda).

As japonesas das descalzas reales foram-se embora


sem fazer a visita. Mais tarde fui dar com elas, numa esplanada,
a comer hamburguers e beber coca-colas. Na mesa ao lado, um
bando de heterónimos atacava-as com os olhos. Elas
riam-se, sem perceberem que a coisa era séria,

até porque estava fora do programa.

o que Júdice faz, numa atitude paródica, é ir buscar


todos os heterónimos mais conhecidos de Pessoa e
confrontá-los, com as suas características próprias, numa
imaginária visita a Madrid e ao Prado (veja-se a antepe-
núltima estrofe). Assim, este texto acaba por ser um
poema sobre o turismo ou viagem dentro da alma
(lembre-se “Eu não viajo, evoluo”, de Bernardo Soares)
que foi Fernando Pessoa. É de notar igualmente a alusão
a estas características de Pessoa e dos heterónimos
apontarem para os textos que Pessoa produziu, em seu

167
RICARDo MARQuES

nome e em nomes dos outros. A título de exemplo, nos


versos “Chegariam os quatro a uma cidade,/ com todo o
ar de quem tem um programa a cumprir, mesmo que não
/ soubessem o seu destino”, nota-se a presença da atitude
pessoana face à vida190.
Penso que o próximo poema, presente em A Matéria
do Poema, de 2008, sobre Álvaro de Campos, Fernando
Pessoa e, sobretudo, sobre a arca por este deixada, vem
na continuidade temática do poema anterior. Intitula-se
“A Mala do Poeta”191:
o Álvaro de Campos pensou em arrumar a mala. Andava sempre
de viagem, e por isso a mala não saía de ao pé da cama, e era para lá
que ia a roupa de que ele iria precisar quando desembarcasse do
outro lado da Terra, se fosse para lá, ou mais perto, se por
cá ficasse. Tavira, Glasgow, Londres, Cairo, e sabe-se lá que mais,
com rapazinhos louros ou sem eles, ou ao menos com essa
Cecily que, posso confirmar, o ajudou a fazer a mala da última
vez que embarcou para Lisboa, e tão bem a fez que ele não voltou
a abri-la. Arrumar a mala; e todas as malas de viagem, só para
não ter de pensar do que é que me estou a esquecer, quando
vou para qualquer lado; e aquilo de que não me esqueci,
de certeza, foi de meter na mala que arrumei
o Álvaro de Campos, o da edição branca, que é aquela
de que me sirvo porque é nela que está o melhor Álvaro de Campos,
metido na mala da Ática pelo Casais Monteiro e pelo Gaspar
Simões, que sabiam o que faziam, mesmo que a mala nem sempre
estivesse arrumada como devia ser, mas é isso que dá sabor
a quem tem de abrir malas que não lhe pertencem, e ver
que há meias que não estão certas, que uma gravata não condiz com
a camisa, e que quem precisa de aspirina para a dor de cabeça afinal
tem é pastilha elástica de uma loja de conveniência, que apareceu
no embrulho não se sabe porquê.
[…]

___________________________________________

190
Veja-se esta atitude, com, por exemplo, no seguinte poema
de Pessoa – “Já não me importo/Até com o que amo ou creio amar./
Sou um navio que chegou a um porto/ E cujo movimento é ali estar.
[…] só me não cansa/o que a brisa me traz/ De súbita mudança/ No
que nada me faz.”.
191
A Matéria do Poema, Lisboa, 2008, pp. 90-91.

168
NA TEIA Do PoEMA

Estamos perante uma glosa poética da acção banal


de “arrumar a mala”. É um acto que a desenvolve até ao
pormenor, desde a acepção mais comum de arrumar
papéis, livros e poemas, até ao seu próprio exemplo de
poeta, falando, em último caso, da arte de fazer o poema.
Pelo caminho, Júdice convoca um intertexto famoso,
nomeadamente citando um verso do poema com o
mesmo nome de Álvaro de Campos (“Mais vale arrumar
a mala”). Por outro lado, há aqui uma grande ironia
implícita na forma de tratar a figura literária de Pessoa,
nomeadamente a sua arca:
Mais vale, dizia o Campos, arrumar a mala; mas por que é que ele
não falou nisso ao Pessoa? É que se o Pessoa soubesse que o Campos
pensava que as coisas deviam estar arrumadas, talvez tivesse
arranjado tempo para arrumar a arca. o problema do Pessoa é que
não viajava de arca atrás dele, porque se o fizesse teria de arrumar a
arca, como se arrumam as malas. odes no lugar das odes, sonetos
com sonetos, e cada heterónimo no seu sítio, sem nada a tirar nem
acrescentar. Mas ao contrário da mala do Campos, a arca do Pessoa
ficou para que os outros a arrumassem, e não têm faltado
arrumadores porque a arca é grande, e cabem lá dentro muitas mãos.

Assim, a conclusão é a de que em poesia, a sua, a de


Pessoa ou a de qualquer outro poeta, o que conta não é
tanto arrumar tudo racionalmente num poema; a sua
essência é, ela própria, a de dessarumar tudo, e com esta
teorização sobre a poesia, acaba Júdice o seu poema –
Eu é que não preciso de meter a mão na arca, porque basta-me aquela
edição com o cavalinho do Almada, e quantas vezes não montei
nele para correr à desfilada, sem sela nem treino, por esses campos
que o Campos abriu, de cada vez que fechava a mala e partia
de ao pé dele. E ainda bem para nós, que não temos de escolher
entre a mala e a arca, nem temos de arrumar nada porque, nestas
coisas da poesia, a arte está na arrumação com que o poeta
desarruma tudo.

169
RICARDo MARQuES

Este texto é um excelente exemplo de como neste


poeta os três níveis propostos de análise dos intertextos
(endo, exo e extraliterária) são categorizações de
conveniência hermenêutica, já que podem muitas vezes
intercruzar-se. É o que acontece, neste poema, não só
convocado um intertexto literário (o poema de Campos)
como igualmente um intertexto extraliterário, do
quotidiano banal e reconhecível por todos (a editora Ática
e os seus directores).
Ainda no que se refere a Fernando Pessoa, e a
Campos em especial, há mais três citações em livros
recentes. São elas O Estado dos Campos, de 2003, e o
poema em questão “Arredores”192, bem como “Exa-
me”193, em Geometria Variável, de 2005, e “Exercício de
leitura básica numa sexta-feira 13”, presente num livro
dos anos 90, A Fonte da Vida194.
No primeiro destes poemas, o tema é a passagem do
tempo, mais especificamente na forma como os arredores
da cidade de Lisboa, onde Júdice cresceu, foram
aglomerando os seus próprios arredores. Temos assim um
poema com uma irónica alusão ao aurea mediocritas
horaciano, encabeçado com uma epígrafe/citação de um
poema de Álvaro de Campos – “Domingo irei para as
hortas na pessoa dos outros”. A proposição inicial é clara
e exemplificativa dessa atitude subversiva, tão própria
desta poesia:

No tempo em que havia quintas e hortas em Lisboa, e


se ia para lá aos domingos, eu ficava em casa. E em
vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de
apanhar couves e ordenhar ovelhas, lia
poemas que falavam das quintas e das hortas de Lisboa […]

____________________________________________
192
O Estado dos Campos, 2003, pp. 90-91.
193
Geometria Variável, 2005, p. 99.
194
PR, 2000, p. 930.

170
NA TEIA Do PoEMA

Visitei, assim, quintas


e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e
soube por eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de
Lisboa,
que hoje já não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou
as quintas
em prédios e as ovelhas em automóveis […] Não me arrependo […
]
Hoje […] ficaram os poemas
que ainda me levam a passear às quintas e hortas que já não existem,
onde apanho couves e ordenho ovelhas por entre prédios
e automóveis.

o sujeito poético vai assim confessar que, tal como


Pessoa que optou por se desmultiplicar em vários, não
vivendo uma única vida, a vida que os livros e poemas
destes dois autores deram às hortas e ovelhas imaginadas
lá fora são a única vida que realmente resiste à morte, daí
o seu não-arrependimento pela opção tomada.
“Exame”, o segundo exemplo da intertextualidade
com Álvaro de Campos, é mais uma manifestação da
forma como um exemplo banal e corrente, como é um
exame escolar, serve para convocar algo da esfera
literária, como é o poema em questão:
Saiu no exame o álvaro de campos. Saiu o vapor
a caminho da barra. Saíram as gaivotas (gritos de piratas
no bater das asas). Saíram com ele os complementos
directos à moda do porto, frios, com verbos pendurados
do torpor; analisem-lhe as frases com uns óculos abstractos,
de grandes armações metálicas, com os nexos da sintaxe
desfraldados na ponta do mastro. Juntem todos os substantivos
no convés, e deixem-nos baterem-se uns contra os outros,
espadachins do acaso, até jazerem trespassados,
envoltos em sangue, sob o sol sensual do adjectivo. E
não o obriguem a vomitar os advérbios; não lhe peçam
para limpar interjeições, para desempoeirar a pontuação,
para esfregar o chão da estrofe com os panos do dicionário.
o álvaro de campos só vos pede para que o humilhem
e que lhe batam. Façam-no gritar as concordâncias
do sujeito e do predicado; verifiquem para que lado
gira o volante: para a direita do aposto, ou para a esquerda

171
RICARDo MARQuES

do continuado. Depois, como um compasso que gira,


e fechou o círculo, escrevam o fim
na folha em branco do exame.

Neste poema é interessante a imagem que Júdice


desenvolve, muito realista, trazendo para uma prova de
exame todos os elementos de um poema que lhe serve de
hipotexto (a “ode Marítima” de Campos) descontruindo-
-o, subvertendo, numa análise cuidada do seu estilo de
escrita, a que não deixa de ligar comparações com coisas
quotidianas (vv. 3-5), facilmente reconhecíveis por quem
o lê. o estilo imperativo com que Júdice dá ordens ao
leitor é então em tudo semelhante ao estilo do poema do
heterónimo.195
o último exemplo, presente no livro dos anos 90196,
é elaborado à volta do heterónimo Álvaro de Campos,
constituindo uma glosa do poema “Ao volante do
Chevrolet pela estrada de Sintra”. o poema judiciano, de
título “Exercício de leitura básica numa sexta-feira 13”,
acaba por ser uma meditação acrónica surreal197, estranha
e até fantástica198, construída quase toda no sentido de
subverter as convenções de tempo e espaço, sob a égide
da futurista velocidade deste heterónimo pessoano. um
bom exemplo está na parte inicial:
________________________
195
A título de exemplo, veja-se os seguintes versos da referida
ode de Campos – “obrigai-me a ajoelhar diante de vós!/ Humilhai-
me e batei-me! / Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa! / E
que o vosso desprezo por mim nunca me abandone, /Ó meus
senhores! ó meus senhores! […].
196
PR, 2000, pp. 930-931.
197
Veja-se a nossa introdução sobre a identidade do poeta, nesta
parte sobre as manifestações intertextuais endoliterárias,
erelativamente ao seu pendor surreal.
198
Falamos aqui nestes adjectivos na sua acepção todoroviana
de introdução do sobrenatural num quadro realista, e num contexto
conhecido do leitor, o que é o caso (Cf. Tzetvan Todorov, Introdução
à Literatura Fantástica, Lisboa, Moraes, 1977).

172
NA TEIA Do PoEMA

Ao volante, no periférico
de saint-germain-en-laye, pela estrada engarrafada, enquanto as luzes
se acendem, e à minha frente um condutor sai do carro
para tirar o rádio do porta-bagagens, dou comigo na estrada
de lisboa para setúbal, já a chegar à curva de azeitão. […]

Este poema é um bom exemplo da maneira paródica


como muitas vezes Nuno Júdice retoma o texto primário,
apropriando o estilo do escritor de partida, para depois
mimetizá-lo de uma forma pessoal199. Vejamos dois
exemplos de modificação. Em primeiro lugar, é de
registar a substituição de “periférico” pelo “Chevrolet”
original. Já quanto ao heterónimo, a pista intertextual
aparece apenas na parte final do poema em “o caminho
que leva de sintra a Álvaro de Campos”. Transcrevemos
o resto do poema, que contém ainda um outro diálogo
intertextual com a figura de Gil Vicente:

[…] No periférico
interior, ainda antes de versalhes, um ar de luzes decadentes
limpa o ar da poluição parisiense e traz de volta
essa curva de azeitão, já longe de lisboa, onde o carro hesita
antes de se meter na curva, como se preferisse entrar
em azeitão – mas para fazer o quê, em azeitão? Enquanto que aqui,
a caminho de saint germain-en-laue, não tenho nada que
hesitar: versalhes, para a direita, não me chama ( já vi
o palácio e luís XIV, desde “os três mosqueteiros”, não faz
parte das minhas relações). Pelo contrário, em saint germain-en-laye
há o liceu internacional onde, daqui a pouco, vou
ouvir gil vicente. ouço-o em francês, em português, em franco-
-português, e até, em brasileiro – mas de que outro modo poderia
ouvi-lo num liceu internacional, a esse gil vicente, que se ficou pelo
português e pelo castelhano, se não contarmos com o galego e
com o latim de sacristia? ouço-o, e enquanto o ouço dou mesmo
essa curva de azeitão, a fugir da arrábida, mesmo que o meu destino
possa ser setúbal onde não há nenhum liceu internacional, onde não
se ouve gil vicente em língua nenhuma, e onde nenhum condutor,
no periférico que vai de versalhes a saint-germain-en-laye, sai do
carro para tirar o rádio do porta-bagagens, na estrada engarrafada
que nunca poderia ser a estrada deserta que os chevrolets tomavam
para engarrafar o caminho que leva de sintra a álvaro de campos.

173
RICARDo MARQuES

Seria interessante equacionar o que num dos últimos


livros de Júdice diz acerca destes dois autores (Fernando
Pessoa e Camões), num poema que dá pelo nome de
“Complexos”200. Este poema é simultaneamente uma
alusão ao momento actual da língua portuguesa no mun-
do, e esses dois autores são referidos como sinédoque não
só da Literatura em Português como, ainda mais
importante, da Língua Portuguesa. Nele se subverte a
noção do português ser a maior língua do mundo, com a
mistura da própria língua do sujeito poético que se vê ao
espelho e constata que a sua é igual a qualquer outra
língua. Ainda que empenhadamente201 irónico, o poema
vai tratar esse assunto de uma forma séria.

3.3. O discursivismo de Ruy Belo

outro autor que importa ressalvar especialmente na


tradição judiciana é Ruy Belo, que aparece na sua poesia
tanto de uma forma autobiográfica como numa glosa dos
seus poemas. Num congresso celebratório em que fez
uma intervenção importante202, Nuno Júdice falou assim
do malogrado poeta:
__________________________________________
199
usamos aqui “Paródia” na acepção de repetição modificada,
isto é, de uma mimese com “critical difference”, como Linda
Hutcheon refere no seu livro fundamental para a teoria da paródia
(Cf. bibliografia final, Linda Hutcheon, Uma Teoria da Paródia;
Lisboa, Edições 70, 1989 (original em Linda Hutcheon, A Theory of
Parody: The Teachings of Twentieth-Century Art Forms, New York:
Methuen, 1985).
200
A Matéria do Poema, 2008, p. 102.
201
A palavra “empenhado” é usada aqui na acepção de “enga-
gé”, que denomina, como se sabe, a literatura com preocupações
sociais.
202
AA. VV., Românica, nº7, Lisboa, Cosmos, 1998, p. 252.

174
NA TEIA Do PoEMA

Lembro-me da primeira vez que me vi perante um


poeta com a sua poesia – precisamente aqui, na
Faculdade de Letras de Lisboa. Era Ruy Belo que, se bem
me lembro, por intervenção de Maria de Lourdes
Belchior, apresentava a sua poesia. Terei tido, então, a
primeira intervenção pública num acto cultural, fazendo
uma pergunta a Ruy Belo. Era, talvez para o libertar desse
Minotauro que é o público – sobretudo nos instantes do
silêncio que se sucederam a uma leitura. Durante anos,
Ruy Belo prometeu responder-me a essa pergunta – sem
nunca o ter feito. Isso só quer dizer que ambas, pergunta
e resposta, era coisas de segundo plano. o que conta é o
poema.

São três os poemas que directamente o convocam –


um de Geometria Variável intitulado “Variações com
pássaros e versos de Ruy Belo”203 e, outro, um longo
poema que acaba o seu livro de Poesia Reunida, de
2000204 – “Carta sobre uma antiga partitura”, de que
teremos oportunidade de falar mais adiante. Neste mesmo
volume, mas indirectamente referenciado, aparece Ruy
Belo enquanto personagem da trama poética e musical
intitulada “Tema com Variazoni”205.
Para já, vejamos o primeiro poema, do livro de 2005:
Eu queria olhar os pássaros
pelas proposições de ruy belo: vê-los
nos galhos das árvores, como frutos
de verão. E queria colhê-los,
como se cada asa fosse um verso,
para fazer este poema voar
“com uma referência ao coração”.

____________________________________________
203
Geometria Variável, 2005, pp. 38-39.
204
PR, 2000, pp. 1109-1112.
205
PR, 2000, pp. 394-5.

175
RICARDo MARQuES

Assim, poderia contar as pulsações


do poema como quem conta as sílabas;
e ver as palavras juntarem-se
como os pássaros do outono, varejando
com a “inúmera mão” do poeta
natureza e filosofia, folhas
e aves caindo da sua música.

E estenderia os olhos dos pássaros


nesta folha, abertos como a alma das árvores
no outono, para lhes roubar o amor
que os pássaros levam para lá do horizonte
para onde as nuvens os empurram. Contá-los-ia
pelos dedos de ruy belo, nessa forma
complicada que “não se dá bem na poesia”.

Depois, devolvo aos pássaros os seus


olhos, e ao poeta os seus versos; mas guardo
o amor que sobrou sob os ramos das árvores
de onde os pásssaros partiram, deixando vazio
o lugar em que os amantes se encontram,
vendo “que os pássaros emanam das árvores”
quando o seu silêncio enche o campo.

E nestes pássaros de ruy belo também


“eu passo e muda-se-me o coração”.

É de notar desde logo uma presença intertextual


pouco comum em Júdice, no que toca ao conteúdo do
poema. Falamos da prática da citação, já anunciada pelo
título, mas desta vez incorporada directamente no texto
judiciano, através de versos do poeta de A Margem da
Alegria. o poema de Belo com o qual estabelece esta
estreita intertextualidade (grau forte), está no volume
Homem de Palavra, de 1970, e intitula-se “Algumas
proposições com pássaros e árvores que o poeta remata
com uma referência ao coração”. Deste poema, para além
do diálogo, em forma de alusão, estabelecido com o
título, também são citados três versos deste poema.
Pegando um pouco atrás nesta ideia de “propo-
sições”, expresso no título de Belo, Júdice usa a sua

176
NA TEIA Do PoEMA

primeira estrofe para igualmente propor o que pretende


retirar do poema de partida, manifestando o seu interesse
em trazer os pássaros para este poema para que “ele voe
/ com uma referência ao coração”. Partindo daqui, a
referência metafórica ao “coração” é glosada ao longo do
poema (nos olhos da terceira estrofe, por exemplo),
traduzindo-se na sua ideia central. Logo na segunda
estrofe, numa equivalência que veremos comum em
Júdice, é equiparada a árvore onde os pássaros poisam ao
próprio poema e à sua construção. Este obedece a um
ritmo silábico certo (“pulsações”), constitui-se num
desenrolar de palavras poisados nos versos (“como os
pássaros do outono”), distribuídas pela “inúmera mão”
do próprio poeta. Após estas duas primeiras estrofes de
proposição e desenvolvimento da mesma, Júdice, numa
outra variação sobre os pássaros, vai buscar os seus olhos,
como espelho da sua alma livre e que buscam o horizonte
(na sua acepção platónica, portanto), querendo “estendê-
-los” na folha do seu poema no sentido de serem o
veículo do amor à poesia (o coração, novamente) que o
seu poema tenta transmitir, tal como Belo, numa forma
imprecisa e complicada, “entre a natureza e a filosofia,
que não se dá bem com a poesia”.
As últimas duas estrofes concluem esta ideia e
fecham o poema, respectivamente, com um apontamento
irónico e citação final de Belo. Posta que está uma visão
do mundo (os olhos dos pássaros) onde os versos de Belo
foram uma proposição importante, resta apenas ao poeta
“devolver os versos a ruy belo”, e ficar com o amor que
os pássaros deixaram de sobra no poema, como conclu-
são a tirar dele. Assim, Júdice acaba esta homenagem a
Ruy Belo, confessando sentir também esse amor ao ler o
poema deste autor. Tal como este em relação aos pássaros
do seu poema , “…muda-se-me o coração”, “passando”
os olhos por ele.

177
RICARDo MARQuES

“Tema com variazoni” é um poema de temática


italiana e uma paródia intertextual desde logo pelo título
– quer ao tipo de composição referente à música quer na
alusão a novas “variações”, como no título de Geometria
Variável. À semelhança de “Carta sobre uma antiga
partitura”206, convocam-se vários elementos diferentes de
um quotidiano vivido pelo poeta e que poeticamente são
forjados numa amálgama de imagens, num poema
próximo do leitor e metapoético:
uma tarde, em berna, lendo ruy belo – não sei porquê –
lembrando-me de um túmulo de uma portuguesa que foi morrer
a pisa, pus no giradiscos a “dido e eneias” do
purcell, deixando que o canto saísse pela janela
e contaminasse os campos que, nessa primavera, estavam
azuis e verdes – flores e relva – com vacas a correrem
à frente de um cão. Não havia nada a ligar a ópera
inglesa, o poeta português e a portuguesa de pisa, a não
ser a que as próprias circunstâncias de um acaso
de tarde estabeleceram, e no entanto uma imagem única
se sobrepunha a essas, a que se poderia dar o nome de poesia
se a poesia não fosse algo de abstracto numa paisagem que
nada tinha a ver com um sentimento preciso – a melancolia
de uma breve primavera entre campos e prédios, susceptível
de trazer até mim a tão vaga imagem da mulher antiga
com a música de purcell.

Como é usual nos poemas de Júdice, especialmente


naqueles em que o seu estilo narrativo mais se nota –
como é o caso – os versos iniciais vêm anunciar todos os
elementos do quotidiano que irão preencher a estrutura
do poema. Assim, cada elemento que, neste poema, é
enumerado como numa história que se torna alegoria (Cf.
vv. 1-7), vão todos ter uma correspondência mais
metafórica e menos literal quando são novamente referi-
___________________________________________
206
PR, 2000, pp. 1109 – 1112. Publicado originalmente in
Hífen, nº13. Iremos ver este poema com mais pormenor na parte
seguinte, sobre a intertextualidade exoliterária nos seus poemas.

178
NA TEIA Do PoEMA

dos no decurso do poema, como confirmação, e no fim,


como conclusão. Assim, e deixando o contexto por ora
(as vacas, o cão e a primavera nos campos) são de três
tipos os intertextos aqui convocados – uma ópera (texto
musical), um poeta ( texto literário) e uma personagem
histórica (texto histórico-social). Como o próprio diz,
numa atitude que não só traduz uma reflexão metapoética
dentro do próprio poema como atesta a finalidade do
mesmo, “não havia nada a ligar” estes elementos, e foi
só através da magia e do encontro da poesia que esta
junção se fez, estimulado por um contexto referido como
melancólico. (vv. 13-16). o sentido que tem esta mistura
intertextual, porém, começa a deixar-se entrever para
além da poesia, mostrando Júdice ainda mais um
intertexto famoso, numa alusão velada ao quadro “A
tempestade”, do renascentista Giorgione,
E tudo começa a fazer um sentido: a primavera,
a cor dos campos que se enchem de obscuros pólenes
e de pássaros negros que esvoaçam numa
expectativa de tempestade, e onde uma rapariga
se senta, subitamente, na relva,
compondo um quadro rústico a que falta, no entanto, o soldado
de Giorgione para que reencontre a pureza inicial
de um obscuro mito. o mistério, digo, faz-se com estes reencontros
que não têm uma explicação precisa; eles surgem de imagens
que guardamos dentro de nós, num recanto de alma,
e que um dia se abrem inesperadamente. Sei, no entanto, que
não é só o motivo pessoal da memória de um poeta, nem
a tentativa de reconstituir a figura de uma portuguesa
morta em itália, nem o canto sacrificial de dido na ópera
de purcell, que me levaram a escrever, agora, este poema. […]

Para além da poesia, há o que a memória do poeta


invoca, a junção do quotidiano no poema. Assim, é-nos
asseverado que nenhum desses textos, nomeadamente
através da sua reconstituição poética, é a verdadeira causa
“que me levaram a escrever, agora este poema”, a dispo-

179
RICARDo MARQuES

sição das referências é cumulativa e aleatória, e só pelo


verso o poeta os pode imaginar juntos. A conclusão,
paródica, de Júdice presta-se, então, a esclarecer porque
diz isto, confirmando a sua pertença ao próprio poema
que fez, numa sinceridade, um pouco forjada para com o
seu leitor, e reunindo todos os elementos que havia
dispersado pelo poema, que “sem o verso, não teriam
tradução” –
[…]De
resto, nenhum poema terá uma razão imediata – e mesmo
aqueles que nascem de um episódio concreto depressa nos levam
para uma zona abstracta de confluências interiores
de impressões e gestos que, sem o verso, não teriam tradução.
Assim, o soldado de Giorgione sai do quadro onde o pintor
o fixou e, trazendo atrás de si o cão que, séculos depois,
afugentou as vacas do pasto de wittigkofen, pergunta-me
pelo ruy belo – sem que eu possa responder, ocupado a escrever
este poema e a tentar explicar à portuguesa enterrada
em pisa por que é que, precisamente, foi a ária de dido
numa ópera de purcell que a trouxe até junto de mim.

“Poema sobre uma antiga partitura” detém, logo à


partida, uma afinidade musical com o poema anterior –
“Tema com variazoni”. Este é um longo poema a contar
um episódio factual – o contexto da escrita de um poema
(Júdice) sobre outro poema (Gottfried Benn) que por sua
vez era escrita sobre uma partitura de Chopin –
entretecido com um poema esquecido na gaveta, e só
então publicado. o que salta logo à vista desta extensa
composição poética, para usar o vocabulário musical de
Júdice, é o seu cariz, a nosso ver, autobiográfico, tendo
em conta os depoimentos e entrevistas que mais tarde deu
e que estabelece como bastante provável que o que aqui
se conta tenha efectivamente acontecido207. Vejamos o
começo do poema, onde, tal como numa história, esse
contexto é apresentado na primeira pessoa, incluindo uma
primeira auto-reflexão crítica:

180
NA TEIA Do PoEMA

Escrevi um dia um poema sobre o poema de


gottfried benn sobre chopin. Datei-o da “chambre 12,
hotel d’athènes, paris, 4 de abril de 1967”, e
de tudo isto só o dia estava certo. Estivera, no entanto,
nesse hotel, aí por julho de sessenta e cinco,
com o luís miguel cintra, e por isso lhe dediquei
esse poema. o resto, era o tique da época: o snobismo
intelectual de que falara o boris vian, tal como o
silva melo o citara num artigo do “juvenil”:
[…]

Após uma primeira citação directa do seu esquecido


poema sobre Chopin, Júdice vem depois disso assim
tentar perceber as razões que o levaram a esquecer o
poema que escreveu, apontando duas no segundo pará-
grafo: a impassibilidade perante ele por parte de Ruy
Belo, e o facto de o tema tratado não estar muito em voga
na altura em que escreveu o poema:
Nunca publiquei esse poema. Corrigi-o, uma vez,
de leve; mas lembro-me de o luís miguel cintra me ter dito
que o mostrara ao ruy belo; e que o ruy belo
mantivera um silêncio perplexo depois de o ler. Teria
sido por isso que não o publiquei? É verdade que
o escrevi a partir de gottfried benn; e que
dissera de chopin: – “Amante sem forças
havia quem dissesse da força do/ que amava”. Mas o amor
em 67, não era um assunto que se tratasse em poesia;
[…]
________________________
207
Deixamos, no entanto, espaço aberto à total veracidade do que
se conta neste poema, bem como em outros poemas onde o tom
autobiográfico é uma linha de leitura pertinente. De acordo com
Philippe Lejeune, um dos maiores estudiosos do género autobio-
gráfico, entre escritor e leitor existe um “pacto autobiográfico” que se
estabelece, remetendo depois este subgénero literário para o domínio
da ficção. (Cf. Le pacte autobiographique, Paris, Seuil,1975, num
modelo revisto em obras seguintes) Isto pressupõe que a escrita da
vida por si próprio (auto-bio-grafia), inclua sempre um pouco de
invenção ficcional e uma selecção pouco parcial, especialmente
quando a memória falha e apesar das melhores intenções. Encontramos
eco do que dizemos, por exemplo, em André Gide: “Les Mémoires
ne sont jamais qu’à demi sincères, si grand que soit leur souci de
vérité: tout est toujours plus compliqué qu’on ne le dit. Peut-être
même approche-t-on de plus près la vérité dans le roman”. (Cf.
André Gide, Si le grain ni meurt, Paris, Gallimard, 1972, p. 278).

181
RICARDo MARQuES

Detendo-se mais de perto no poema em si, o poeta


Júdice continua a especular sobre as razões que o levaram
a adiar a publicação desse poema. É importante salientar,
nesta parte, como a figura de Jorge de Sena, como já
dissemos, parece revelar a sua importância para a
formação literária de Nuno Júdice. Assim, posto de parte
o poema, Júdice refere que partiu em busca de uma
linguagem poética própria que traduzisse as suas reais
preocupações para com a escrita poética, uma poética que
não seguisse só as tendências e “snobismos” de escrita
de então:
Por outro lado havia gente a mais neste poema sobre
música.[…] vinham
de poemas do jorge de sena, que eu juntava a gottfried
benn, neste velório em torno de chopin: […] Assim, pus
de lado este poema que convocava os fantasmas; e dediquei-me
a outro tipo de escrita em que, como chopin fazia, […] também eu
procurava que os dedos tocassem o teclado com a sugestão
musical de chopin; e repetia o seu exemplo […]
a fusão dos dedos com o próprio piano […]

Chegado a meio do seu poema, e como que


aproximando-se de uma conclusão e possível explicação
para o adiamento do poema de 1967, Júdice vai então
prestar-se a reunir algumas das razões que até então
adiantou, de que deduz ainda novas elacções generalistas,
construindo uma estrofe inteira de um diálogo interior,
interrogativo. A parte final deste poema autotextual de
Júdice vem assim dar continuidade a esse estilo interro-
gativo, que, prosseguindo, mais respostas dá e explica-
ções encerra do que, efectivamente, coloca :
Ainda hoje não sei por que não publiquei
esse poema. Seria por causa do silêncio perplexo do ruy
belo? Por causa da alusão biográfica, a essa estadia
num hotel d’athènes que há muito deixou
de existir, no longíquo verão de 65? ou pelas

182
NA TEIA Do PoEMA

referências literárias, que podiam ter um eco de plágio,


como se a poesia, como disse o lautréamont, não fosse
uma sequência de ecos e plágios? […]

Mas hoje, neste poema sobre música e partituras, […]


Como poderia escrever um outro poema
sem me lembrar deste, um esquecido texto de 67, datado
de 4 de abril, quando a primavera corria por dentro da alma
sem lá deixar mais do que o vento vazio que limpava o
céu da cidade universitária, que era então
todo o céu do mundo? Resto de que dissipada
adolescência? Crítica de que amores vagos, inquietações
sem objecto, lembranças sem memória? […]

um último apontamento sobre a localização, decerto


pensada, do poema em questão, no livro a que pertence
– Poesia Reunida. Naquilo que a nosso ver é um
verdadeiro epílogo autobiográfico de toda a sua obra
poética, condensada no livro que este poema finda, o
poema não era inédito nem recente à altura da publicação
deste volume de poemas208, o que salienta a intencio-
nalidade da sua inclusão como texto final. Desta forma,
podemos concluir que estamos perante aquilo que
consideramos ser um belo poema autobiográfico, que
decerto não passou despercebido a Júdice, que o decidiu
incluir como conclusão em chave de ouro das linhas de
leitura mais importantes da sua poesia – a poesia e as
outras artes, os aspectos biográficos, as referências
literárias, nomeadamente a que nos serviu de ponto de
partida e que reforça a sua tutelaridade na poesia
judiciana, Ruy Belo.

__________________________________________
208
Publicado originalmente na revista de poesia, entretanto
extinta, Hífen, no seu número 3, já de 1988, um número temático
sobre “poesia e outras artes”. (Cf. Hífen – Cadernos Semestrais de
Poesia, outubro 1988 / Março 1989, Porto).

183
RICARDo MARQuES

É tempo agora, estabelecida que está uma possível


genealogia de escritores para a poesia de Júdice, de ver
outras figuras e personagens literárias que compõem a
sua complexa teia poética intertextual, numa “sequência
de ecos e plágios”, para usar a sua própria citação (e
prática declarada) de Isidore Ducasse, o Conde de
Lautréamont, autor de Os Cantos de Maldoror.

3.4. Outros diálogos dentro da literatura


portuguesa

Já dissemos que a poesia de Nuno Júdice mantém


uma profícua relação intertextual para com a literatura
simbolista e decadentista, especialmente no que toca aos
seus primeiros livros209. o caso do escritor Cesário Verde
é aqui pertinente. Num artigo conjunto de vários poetas
portugueses, datado de 1986, sobre a presença de Cesário
Verde na sua produção poética, Nuno Júdice testemunha
em favor da influência de Verde na sua própria poesia,
encarando a escrita deste poeta finissecular como uma
presença mais implícita do que explícita na sua produção
poética, especialmente nos livros que, como veremos,
refere, ambos dos anos 80:

____________________________________________
209
no sentido de dar alguma consistência ao nosso trabalho,
não falaremos de Camilo Pessanha, apesar de o considerarmos uma
figura importante na poesia de Nuno Júdice, sobretudo no que toca
à imagética sinestésica e aquática ( esta última tão importante e
desenvolvida, como se sabe, em Clepsidra) que se ligam depois à
preocupação com a musicalidade dos versos. um poema de Júdice
onde há uma citação deste autor simbolista e se desenvolve esta
gramática estilística encontra-se em Geometria Variável, p. 100 ,
intitulado “Eclosão Estival”.

184
NA TEIA Do PoEMA

Há obras que se vão lendo por obrigação; outras,


continuam a dar-nos o prazer de descobertas ou re-
-descobertas quando as lemos ou as retomamos. Para
mim, Cesário está no segundo caso, embora não seja
poesia que eu procure com frequência. Mas é uma
memória dela que por vezes a minha escrita (re)utiliza
nalguns poemas de A Partilha dos Mitos e de Lira de
Líquen, devendo sublinhar neste último livro o gozo de
rimas fortes que, em última análise, julgo filiarem-se na
luminosa dureza do ritmo de Cesário.210

Se podemos considerar verdadeira esta afirmação de


Júdice, já nos anos 80, no sentido de confessar a sua
filiação no “gozo das rimas fortes” e na “luminosa dureza
do ritmo” que Cesário Verde empregava nas suas
composições poéticas, não é menos verdade que a sua
influência, quanto a nós, não fica por aqui. o poema que
veremos de seguida, presente no livro A Matéria do Poema
e com o título e subtítulo “Cesário Verde (variante sem
burguesas), vai ser uma paródia ao poema “De tarde” de
Cesário, implicando uma relação intertextual que se revela
bastante forte e presente nos mais pequenos pormenores:
_____________________________________________

210
Sobre a sua influência, quanto a Júdice, na literatura
portuguesa que se lhe seguiu, veja-se o parágrafo seguinte: “É este
aspecto [a luminosa dureza do ritmo de Cesário], de resto, que penso
constituirá a contribuição d’ O Livro na transição da escrita
romântica para a escrita do nosso século: desembaraçando a
linguagem literária de uma adjectiva moleza, a que nem um Camilo
escapa, e dando – o que um Garrett por vezes conseguira – a cada
palavra um valor próprio, fazendo com que o poema se construa a
partir do jogo de sonoridades que impõem um sentido (semântico e
musical) ao verso, ao contrário do processo ultra-romântico de
subordinar à tensão (e intenção) emocional o jogo verbal, reduzido
assim a um mero fundo ilustrativo.” ( in Nuno Júdice, “Cesário Verde
visto hoje por poetas portugueses”, Revista Colóquio/Letras.
Inquérito, nº93, Set. 1986, p. 111 ).

185
RICARDo MARQuES

Naquele piquenique de deusas, serviram


ambrósia e sanduíches de cisne, com
molho de via láctea à mistura. Vénus,
de véu na cabeça, desatou-o; e os seus
cabelos derramaramse pelo copo, para
que Vulcano se engasgasse, ao beber,
e Marte lhe batesse nas costas, fazendo
inchar mais ainda a sua corcunda. Mas
quando a pálida Diana, num crescente
de lua, tirou a saia, e os sátiros saíram
de dentro das pregas, todos olharam
para o lado, e foi a coisa mais bela da
merenda: os seus seios soltos, e os doces
melões, servidos na bandeja do céu.

Em primeiro lugar, o subtítulo é indicativo daquilo


que será a subversão do poema de Cesário. Se a primeira
linha do poema cesariano aponta para um “piquenique de
burguesas”, bem ao gosto da época, aqui a reunião é das
deusas. A descrição dos elementos do poema vai efectiva-
mente ao encontro do quadro impressionista que Cesário
“pintou” no seu poema. Assim, e se Júdice mantém o estilo
descritivo e as qualidades sinestésicas da descrição, em vez
das cesarianas “talhadas de melão, damascos, e pão-de-
-ló”, temos as judicianas (e divinas) “ambrósia e sanduí-
ches de cisne”, bem como a presença de outros deuses,
nomeadamente Vulcano, Marte e os sátiros, em vez dos
convivas burgueses. Por outro lado, ao invés do desfecho
semi-erotizante com sugestivo “ramalhete de papoulas” a
enfeitar “os dois seios como duas rolas”, que seria “o
supremo encanto da merenda”, temos aqui um desfecho
bem mais explícito, com o retorno dos melões, “servidos
na bandeja do céu”, que os últimos versos sugerem, como
tendo sido “a coisa mais bela da merenda”.
outro poema de Júdice que se refere a este de Cesário
é “Piquenique sem Cesário Verde”211. Desde já o título é
_____________________________________________

211
Geometria Variável, 2005, p. 122.

186
NA TEIA Do PoEMA

irónico, uma vez que ao não convocar determinadamente


no seu poema este autor e o poema “De tarde”, o autor
alerta o leitor precisamente do contrário, o que o poema
mais tarde irá provar, logo a início:
Com o dia encoberto, de manhã, vou
para o campo com o Cesário; e num prado
de versos levantam-se rolas e perdizes,
como imagens, batendo as asas
com a música que espanta as ovelhas.

E num canto mais verde, que


as árvores protegem do céu, vejo
a mulher que me espera, nesse
almoço sobre a relva que nenhum pintor
sonhou, e eu desenho com palavras.

Seguro-lhe a cabeça nos meus


braços, e ela repousa num fragmento
de amor, que as flores da primavera
envolvem numa grinalda esculpida,
enquanto Cesário se afasta e ficamos sós.

Este poema convoca mais indirectamente que o


anterior o poema de Cesário Verde. Em primeiro lugar, e
como em muitos poemas de Júdice, vamos ter aqui a
presença imaginada do escritor finissecular como metá-
fora da própria poesia que o autor escrevia . Por outras
palavras, Júdice descreve ao longo do poema uma
situação espacial passível de ser encontrada na poesia de
Cesário (“vou/ para o campo com o Cesário”), nomea-
damente ao poema (“De tarde”) a que o título já nos vem
aludindo. outro elemento que reforça esta ideia de
intertextualidade para com o poema cesariano advém do
uso, por parte de Júdice, de uma palavra-chave deste
poema (“rola”) que no primeiro serve de metáfora para o
seio da mulher amada. Aqui a intenção é claramente
paródica, preferindo Júdice ligá-lo a uma outra, de
afinidade lexical – “perdizes”, que é assemelhada poeti-

187
RICARDo MARQuES

camente a imagens que fogem do “prado” dos versos,


deixando o sujeito poético aparentemente só.
A segunda estrofe vem, por outro lado, aprofundar
a ligação do sujeito a um canto específico da paisagem,
usando Júdice de uma alusão a um quadro de Manet
(Pequeno Almoço na Relva, de 1863) para sugerir a
nudez da mulher do poema através da nudez da mulher
do quadro romântico, ainda que a primeira seja mais
favorecida que a segunda (vv. 8-10). Pensamos que esta
citação implícita de um exemplo artístico coevo de
Cesário pode igualmente ser uma alusão ao autor em
cujos poemas quase “pintou” autênticos quadros com as
suas sinestesias e metáforas campestres. o poema acaba
assim com o sujeito a tomar a cabeça da mulher amada
nos braços “enquanto Cesário se afasta” e o poema acaba
com o sujeito e mulher a sós.
Assim, podemos ver que, no caso de Cesário, a sua
influência vai mais para além da estruturação rimática e
rítmica dos seus versos. A sua poesia, especialmente
apeladora aos sentidos, policromática e, daí, de tom
impressionista (quase pitoresca), vai ser alvo de retoma
por parte de Júdice, que também o usa para a sua própria
relação intertextual com autores do mesmo período e de
outros tipos de arte, nomeadamente este último caso do
quadro de Manet, que mais tarde irá retomar numa outra
composição.
Ainda no que toca ao século XIX há, desde já, a
referir Camilo Castelo Branco, visto ser uma das
primeiras figuras literárias a aparecer na sua poesia. o
autor não terá sido decerto uma influência predominante
nesta poesia, mas a homenagem é-lhe prestada em “A
Noite Camiliana”212, poema que é eminentemente narra-
___________________________________________

212
PR, 2000, p. 197.

188
NA TEIA Do PoEMA

tivo e que não iremos transcrever. Aqui vão-se entre-


tecendo elementos do fantástico com elementos biográ-
ficos de Camilo, quase como se Júdice resumisse, num
só parágrafo, toda a história deste escritor, apenas
recorrendo a três personagens ( Camilo, a mulher Ana
Plácido e o filho Jorge). Em primeiro lugar, a narração
começa in media res, com uma intervenção de Camilo,
em que o nome da mulher é subvertida por Júdice, num
estilo muito camiliano de tornar nome em adjectivo – “
– Corrijamos o teu estilo, minha plácida Ana, dizia
Camilo. Ana enchia duas tijelas com tinta vermelha. ‘o
sangue dos teus cães’. Nas escadas, Jorge uivava”. De
seguida, o discurso, caótico, vai evoluindo através de
símbolos negros (“corvo” talvez seja a mais forte,
apontado na direcção de Edgar Allan Poe) numa
atmosfera em tudo agreste e disfórica que tem um
desfecho trágico, com o suicídio de Camilo. Pensamos
que há aqui duas personagens principais a funcionar
como metáfora dos dois elementos da vida de Camilo,
centrada no acto de escrever – Ana Plácido e o amor, a
fonte de inspiração e cúmplice do acto da escrita (“Ana,
nua, ia para baixo da árvore e montava no cavalo.
Esporeio-te de romântica convicção.”) e a inocência
pueril de Jorge, incompreendendo o “sangrento” ofício
do pai, quase como símbolo do público leitor, e que o
levaria à miséria e loucura, culminando com a tragédia
(-Pai, pai, o estranho apelo desse teu mundo perturba-me
e dói-me […] Fez-se a tragédia. Antes ouviu-se o choro
de duas mulheres. Pouco depois, um navio sulcava o
campo. – Ó sangrento arado, disse Jorge”).
Almeida Garrett vai ser um outro autor oitocentista
convocado por Júdice. o soneto “Garrett e Joaninha”213
______________________
213
PR, 2000, p. 1082.

189
RICARDo MARQuES

ilustra uma relação entre o próprio escritor Garrett e


a personagem criada por ele em Viagens na Minha Terra,
mas inclui ainda mais um terceiro elemento intertextual,
logo na primeira estrofe:
A voz outonal traz notícias da morte. Não
a ouço, porém. o vento abafa o que diz,
quando se ergue, na várzea de santarém,
onde Garrett foi fidalgo e aprendiz.

Da janela do paço, ao nascer do sol,


respirou o ar fresco das margens do rio;
e onde morreu afogado um rouxinol
foi só o rosto da amada que ele viu.

“Vem ter comigo, não me esqueças”,


diz-lhe; e ela do fundo da alcova,
resiste a fazer-lhe promessas,

afunda-se no lençol, como numa cova,


e espreguiça-se num vagar de gazela,
fazendo nele subir o desejo por ela.

Estamos perante um poema complexo, que funde


vários tempos e camadas narrativas num só. Júdice anali-
sa o que sentiu Garrett no Vale de Santarém, pondo-se na
sua própria figura ao imaginar uma história envolvendo,
ao que parece, a criação da personagem Joaninha. Tendo
em conta o par enunciado no título do poema, o assunto
deste soneto parece então ser a memória que assistiu à
criação da personagem Joaninha da obra garrettiana,
quando este se confrontou com a janela na Várzea de
Santarém, durante o passeio que deu origem à obra.
Assim, a primeira alusão disfórica situa-se no primeiro
verso da primeira quadra, levando a crer que este tratará
quer da morte literal quer do esquecimento. Aqui o autor
situa Garrett na Várzea de Santarém, onde foi “fidalgo e
aprendiz” subvertendo o título de um outro autor –
Francisco Manuel de Melo e a sua peça de crítica à

190
NA TEIA Do PoEMA

fidalgia conservadora do século XVII – O Fidalgo


Aprendiz, de modo a igualmente aludir ao “dandismo” de
Garrett. A segunda estrofe vai ainda encontrá-lo a
continuar a ignorar a morte (v. 7) por meio da memória,
neste caso, do rosto da amada. o poema acaba então com
o desejo impossível de Garrett pelo objecto amado que
ali lembra, após um apelo frustrado e metafórico (v. 9)
para que ela não o esquecesse.
“Na mesa de Pascoaes”214 é outro poema, de
Geometria Variável, em que um escritor pouco lido hoje
em dia é convocado, Teixeira de Pascoaes. Como poeta
metafísico que foi, e ocupado pelas questões filósoficas
em torno do ser, este é um poema judiciano que celebra
essas mesmas preocupações, ao dissertar sobre a questão
essencial do que somos:

ouço a água do rio correr por dentro


do vento que a tua voz me trouxe. Filosofia,
jornais, a dúvida abstracta dos alemães,
entre subir e descer a calçada, diluem-se
na chávena que arrefece, enquanto
homens de fato antigo tiram o chapéu,
ao passar por entre as mesas.

“Há quanto tempo não vem aqui


o Poeta?” Conto pelos dedos as décadas:
um fragmento de nada, no decurso
da eternidade. Então, para quê pensar
sobre o tempo, o destino, a incerteza
que nos envolve? Foi ontem mesmo que
ele aqui esteve, por trás desta montra
para o largo da igreja, saboreando o gosto
dos invernos de província, de gente
escura e noites de gelo, no campo.

___________________________
Geometria Variável, 2005, pp. 40-41.
214

191
RICARDo MARQuES

Mas esta tarde, com a filosofia


a aquecer as mãos, deixo que a memória
de uma velha tertúlia se apague, como
o cigarro no cinzeiro que o empregado
me trouxe. o fumo que ainda fica, porém,
espalha-se no ar, como esta ideia de que
o ser é algo entre o que somos e o que
perdemos. Podia afastar esse fumo com
a mão, fazendo com que esta ideia se
dissipasse; mas preferi guardá-la para
uma conversa futura, neste ou em outro café.

Assim, num intervalo de tarde em que


ocupámos a mesa vazia onde as sombras
continuavam antigas discussões, o
tempo parou, por um instante. Só
o rio continuou no seu curso, animando a mulher
que vendia bolos à entrada da ponte. o
quotidiano destas terras, digo, não é
nunca efémero; e um dia futuro,
alguém empurrará as sombras que
deixámos, naquela mesa de café,
prolongando uma conversa interrompida.

o poema de Júdice ficcionaliza um encontro entre


si e o poeta de Amarante, na mesa de um café que, devido
aos elementos enumerados, tudo faz crer que se situa
nesta cidade minhota (a ponte da última estrofe, as
calçadas da primeira). Tomando o tempo como uma
instância relativa, sem identidade (tal como o fumo que
sai do cigarro que acende e que, devido à sua tangibi-
lidade, não apresenta um “ser físico”), o sujeito poético
refere que não interessa há quanto tempo o poeta não
aparece ali – o que é eterno na identidade de um poeta é
sempre a obra que nos deixa, nunca o corpo de que se
separa – “a sombra continua antigas discussões”. Assim,
esta ordem de contrários pela qual se rege o poema vai
encontrar outros sentidos em que se desenvolve (tanto no
exemplo inicial do rio que corre como no do fumo de
cigarro a que já aludimos). Da mesma forma, e acabando

192
NA TEIA Do PoEMA

o poema com essa mesma ideia de sombra, tal como não


interessa que o tempo passe pelo poeta, o mesmo tempo
irá unir as duas sombras, “prolongando uma conversa
interrompida”.
Florbela Espanca é uma escritora com a qual Júdice
procura estabelecer vários tipos de nexos. Já vimos atrás
o seu “soneto com citações de florbela e camões”, e agora
é tempo de ver “um soneto de Florbela”, presente em
Cartografia das Emoções215:
um dia, num café, ouvi uma mulher dizer
o poema de Florbela Espanca que começa “Eu quero amar,
amar perdidamente…”; e enquanto ela o dizia, eu
tentava ouvir na sua voz a voz de Florbela. Mas essa mulher
tinha a voz rouca, o que talvez se
devesse ao facto de ser professora,
e ter de gritar nas suas aulas, de manhã para
que os alunos a pudessem ouvir. Nesse tempo de inverno, e
de turmas grandes, era preciso forçar a voz para
que o degelo se fizesse, e as crianças entrassem
nos números e na gramática. Por isso, a mulher
que dizia o poema de Florbela
fazia com que fosse, ela própria, o
poema de Florbela. E é assim, ainda hoje, que a ouço:
dito, numa antiga tarde de inverno, por uma mulher
que o recitava como se estivesse a
ensinar um bê-a-bá da vida a quem, no café, não esperava
ouvir, entre a leitura do jornal e a conversa em voz baixa,
a mais elementar das verdades. o desejo de amar,
amar perdidamente, como Florbela, numa perdida esquina
da memória.

A vida de Florbela Espanca está envolta, como se


sabe, numa espiral de acontecimentos trágicos, pautados
por situações que não pôde controlar. A sua poesia denota
muito esta carga negativa, que teve origem, na maior
parte dos casos, nos assuntos do coração. Assim, o poema
_____________________________________________

215
Cartografia das Emoções, 2001, p. 97.

193
RICARDo MARQuES

judiciano sobre “um soneto de Florbela”, dos mais conhe-


cidos, fala exactamente dessa arrebatamento sentimental
de que o poema em questão vai ser veículo bem como,
por sinédoque, quase toda a sua melhor produção poética.
o momento que o autor serve para descrever o
impacte que este poema tem na sua própria vida vai ele
buscá-lo a um episódio quotidiano, com uma professora
de voz rouca a recitar o poema num café, “numa antiga
tarde de inverno”. Se inicialmente o sujeito procurou
encontrar na voz que recitava a própria voz de quem o
escreveu, a verdade é que a leitura é tão bem feita (“como
se estivesse a ensinar um bê-a-bá da vida”, por ser
professora do tempo “das turmas grandes”) que o poema
se funde etereamente com aquela voz.
Este poema acaba então por ser mais sobre “a mais
elementar das verdades” que Florbela, de modo apaixo-
nado, tornou seu num poema e ao mesmo tempo por ele
se eternizou, mostrando o poder que um poema pode ter
na vida de alguém.
“Egito Gonçalves”216 é um outro poeta contem-
porâneo que os seus poemas convocam, e um dos seus
poemas intertextuais que denotam mais sentimento:
Há poetas que passam com a calma do seu tempo.
outro cavalgam as épocas e as ervas, levando com eles
um apocalipse de sentidos. E há poetas que ficam,
e fixam, sobre a sela da eternidade, o horizonte
do verso.

Há poetas que quase não querem que se dê


por eles. o seu tempo é o do ourives, e o seu brilho
o das palavras. Vê-lo-emos, um dia, martelando
o ouro de cada sílaba com o cinzel da voz.

__________________________________________

216
O Estado dos Campos, 2003, p. 132.

194
NA TEIA Do PoEMA

Mas os poetas que dizem o poema, com a certeza


dos seus versos, deixaram-nos o luminoso sorriso
do vento. No verão dos seus lábios não morrerá um bater
de pálpebras entreabertas pelo sol.

um poeta é todos esses – mesmo o que deixou


o lugar vazio no café da memória, quando disse – “até logo”,
e deixou que acreditássemos nele.

Como podemos comprovar pelo tom elegíaco do


poema, estamos perante uma composição judiciana
encomiástica em que o visado é o poeta do título. o
poema parece ter sido feito, como a última estrofe aponta
eufemisticamente, como homenagem, no tempo que se
seguiu à sua morte, ao poeta que foi. Assim, e tendo em
vista a estratificação proposta anteriormente, temos aqui
um poema com um grau forte de intertextualidade,
começando pela evidência do título e o subsequente
desenvolvimento. A forma de caracterizar o poeta em
questão parece a início demonstrar uma estruturação
antitética, e por isso do tipo oposicional, entre o que Egito
Gonçalves é enquanto poeta versus o que os outros são.
Egito Gonçalves foi um poeta que se pode situar
numa segunda vaga do Modernismo na poesia portu-
guesa, especialmente nos anos que se seguiram à cisão
da revista Presença. A sua geração é a de Sophia e de
Eugénio de Andrade, que foram mais tarde, juntamente
com Ramos Rosa, projectados como epígonos do grupo
geracional a que pertenceram, tendo todos os outros sido
mais ou menos eclipsados por estes. É o caso de Egito.
Júdice parece referir-se exactamente a isso no seu poema,
cujos versos iniciais das duas primeiras estrofes são os
exemplos mais paradigmáticos. Paralelamente, a outra
ideia que Júdice associa a Egito é a da sua tendência para
a depuração, quer com a metáfora de “ourives” quer com
a imagem do martelo e do cinzel (que Júdice aproveita

195
RICARDo MARQuES

para outros poemas). Por último, a penúltima estrofe


explora a ideia da eternização da obra de um poeta, que
assim pode ver eternizado “o luminoso sorriso do vento”.
Chegados ao fim do poema, vemos assim como a
aparente antítese não existe, e que tudo aquilo de que se
falou antes acerca dos poetas se encontra personificado
no homenageado Egito Gonçalves. Poeta activista,
ourives da linguagem e, ao mesmo tempo, de perfil pouco
público.
Bernardim Ribeiro é uma outra figura da literatura
portuguesa com a qual Júdice dialoga. Mais do que
apenas presente na sua poesia, este diálogo acontece em
outros momentos da sua vida académica, tendo, entre
outras coisas, escrito um extenso artigo sobre a obra mais
conhecida do escritor renascentista (Menina e Moça) no
seu livro de ensaios As Máscaras do Poema. um
pormenor importante acerca deste autor está no facto de
ter sido o introdutor do bucolismo na nossa poesia
renascentista, sendo esta a primeira novela de temática
pastoril publicada na Península Ibérica (1554)217. o
poema que lhe dedica tem precisamente como título o
nome do autor218:
o rosto rasgado numa rusga,
as roupas rotas por uma raiva de raios,
o rio rubro de um rugido de rompante:

réu, rei, réprobo,


raiz de um raro rancor
no rumo do ressentimento,
rasga o regaço da rapariga
roubada
ao ramo do rouxinol.
_______________________
217
Nuno Júdice, As Máscaras do Poema, Lisboa, Arion, 1998,
pp.71-85.
218
PR, 2000, p. 716.

196
NA TEIA Do PoEMA

Tendo em conta o quase total desconhecimento que


temos da vida de Bernardim Ribeiro, Júdice constrói o
seu poema à volta de suposições com os poucos factos
que temos. Assim, se na primeira estrofe temos uma
descrição agreste de alguém que intuimos ser o escritor
renascentista, culminando no primeiro verso da estrofe
seguinte, a segunda estrofe será mais dinâmica e reflecte
aquilo que parece ser uma relação com a obra que o
celebrizou, tanto a nível das personagens (“a rapariga /
roubada / ao ramo do rouxinol”) como do ambiente
bucólico aludido (“rio”, “ramo do rouxinol”).
É de notar o estilo de Júdice neste poema, que opta
por um jogo consonântico que serve o que quer trans-
mitir. Por outras palavras, o poeta adoptou claramente
uma aliteração da consonante “r”, enfatizando a aspereza
e as imagens fortes que o poema transmite através do
conteúdo. Em primeiro lugar, reforça a dinâmica do
movimento descrito nos útimos três versos (“rasga o
regaço da rapariga”), a enumeração cumulativa e contra-
ditória de “réu, rei, réprobo”, bem como a caracterização
da personagem de início (“o rosto rasgado numa rusga”)
e os sons da natureza (“o rio rubro de um rugido de
rompante”).
Também Jorge de Montemor, coevo de Camões e
duas gerações mais novo que Bernardim Ribeiro, foi
objecto da escrita de Nuno Júdice. Este celebrizou-se,
sobretudo, tal como Ribeiro, pela edição de uma obra de
temática pastoril, de seu nome Diana. o poema judiciano
em questão está presente no volume Cartografia das
Emoções, e tem como título o nome do escritor:

197
RICARDo MARQuES

A meio de um conto, falou nos incuráveis


de amor. uma seita, um grupo de amigos, ou apenas
alguns raros que, nesse tempo, se perdiam
pelos campos do sonho. Como se o mundo se reduzisse
à formosura das amigas, à inconstância dos
sentimentos, à ilusão de que o amor é tão
eterno como o resto das coisas humanas. Ele próprio,
um incurável de amor, morreu junto
a Milão, por um assunto de amores; e jazem,
não se sabe onde, os seus ossos. Morreu acaso
no inverno, quando a neve cobre a paisagem
e o sangue é uma mancha obscena por
entre o branco? ou sob as névoas primaveris, quando
morrer se torna uma contradição com a vida
que renasce da terra? Mas sabemos que serviu Barbara
Fiesca, a quem dedica o seu livro; e é tudo o que
sabemos até essa morte que o curou de amores,
mesmo que não tivesse sido essa a cura
que ela esperava.

Este poema está presente num livro que é um mapa-


-itinerário sobre o mundo das emoções, em particular
sobre o Amor. A invocação de um autor como este, que
ficou conhecido, para além dos feitos literários, por ser
inconstante e indeciso nos amores, adquire assim uma
especial pertinência no contexto da escrita deste poema,
pelo que acaba por se centralizar no tratamento deste
aspecto biográfico de Montemor.
Desta forma, a primeira referência ao autor é feita
como acusando-o de se referir aos “incuráveis de amor”
num dado conto quando a sua própria experiência de vida
o podiam incluir aqui. Esta referência de Montemor é
desenvolvida nos versos seguintes, onde acusa estas
pessoas de viver perdidos “pelos campos do sonho”, com
a ilusão de que “o amor é tão eterno como o resto das
coisas humanas”.
Daqui para a frente, no desenrolar do poema, o
sujeito poético vai contra-atacar esta acusação de Monte-
mor, reflectindo sobre a sua própria morte num decurso

198
NA TEIA Do PoEMA

de um duelo em Milão, em 1561, que teve como causa


divergências amorosas. Esta reflexão pauta-se por pensar
em que altura do ano ela aconteceu, tendo em conta os
efeitos causados na paisagem circundante (vv. 10-15).
o poema termina com mais um facto biográfico que
ratifica a sua existência devota aos assuntos do coração,
deixando, assim, de lado, as especulações sobre a sua
morte. o que é facto é que, neste últimos anos de exílio
em Milão, serviu a Viscondessa Barbara Fiesca, e que é
a ela que dedica a edição da sua novela Diana em 1560.
Tudo o que pode especular sobre isto é que se a morte “o
curou de amores”, talvez não tivesse sido essa “a cura
que ele esperava”.
Vasco Mouzinho foi um escritor setubalense que
viveu entre os séculos XVI e XVII, e que deixou como
obra mais conhecida Discurso Sobre a Vida e Morte de
Santa Isabel Rainha de Portugal (1596). o título do
poema de Júdice no qual fala deste escritor vem, em
primeiro lugar, pegar nesta obra e subverter o título do
livro do autor quinhentista, demarcando uma ligação
intertextual muito forte com a mesma. Neste sentido, a
própria denominação do tipo de poema (“comentário”)
denota uma relação metaliterária com a obra. Assim, o
que Júdice nos apresenta é um “Comentário de “A vida e
a Morte de Vasco Mouzinho de Quevedo”219:
____________________________________________
219
PR, 2000, p. 203. Veja-se o excelente artigo de Maria Lucília
Pires sobre a obra de Quevedo em questão, intitulado “o Discurso
sobre a vida e morte de Santa Isabel rainha de Portugal de Vasco
Mouzinho de Castelbranco”: “Trata-se de uma biografia poética da
Rainha Santa, composta em oitavas de versos decassílabos
organizadas em seis cantos. uma obra relativamente breve que terá
ficado, segundo declaração do autor na dedicatória ao duque D.
Álvaro de Lencastre, «defraudada de dois ou três cantos que lhe
cortei», apontando um motivo meramente literário para este corte.
A supressão desses cantos não afecta a estrutura da obra, que nos

199
RICARDo MARQuES

Assim
eu mesmo lamentando te seguira. um rosto
consente a sua memória mudada de penas,
em pena tanta. Como, de sua morte vendo
a hora, o cisne docemente canta e chora.

E já que
entre as folhas e flores da margem o per-
dido olhar evoco, tudo quanto vejo são tor-
mentos; por eles consumirei meu canto, e
por teu nome prazeres e contentamentos de
furor forçado choro.

Juntamente
foge logo o riso que, largo, em teus lábios
vi. Entre os ramos da verde e fresca planta
o fio de água se funde em rio de lágrimas.
Amor que um canto celebra, em outro só mágoas
e tristezas igualmente gera.

Nunca mais
certo de alegrar-me, busquei mil vezes gos-
tos que cantasse. Mas a quem triste se opõe
e triste nasce já gostos acabaram. Na verde
hera do triste velho abrigo assim canta
a suave

canção. Canta e chora comigo juntamente.

Vistos que estão os autores portugueses que Nuno


Júdice convoca na sua poesia, continuemos a análise dos
diálogos judicianos com a literatura da Antiguidade
Clássica no próximo capítulo, passando depois à
literatura estrangeira, produzida no Renascimento e
Maneirismo e terminando nos séculos XIX e XX.
____________________
apresenta um relato conciso do percurso biográfico da Santa
entrecortado por vários discursos líricos […]”. (Acedida online em
Maio de 2009 in http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3469.pdf e
publicada originalmente in Via Spiritus : Revista de História da
Espiritualidade e do Sentimento Religioso. Porto, Centro Inter-
-universitário de História da Espiritualidade da universidade do
Porto, Instituto de Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras do
Porto, volume 10, 2003, pp.173-182).

200
4. DIÁLOGOS DENTRO DA
LITERATURA ESTRANGEIRA

4.1. A Antiguidade Clássica: “A poesia clássica”

Júdice estabelece um intenso e atento diálogo com


muitos dos autores que escreveram na antiga Grécia e
Roma220. o seu interesse mantém-se desde os primeiros
livros, chegando até aos últimos, como é exemplo esta
sua hermenêutica em “A poesia clássica”221, título de um
poema de A Matéria do Poema:
Esvazio uma colheita de estrelas na eira
do infinito, onde as velhas deusas do oriente
as limpam do seu fogo. No fim do trabalho,
ficam a secar, à espera que o moleiro
venha, com o seu saco de vento,
e as leve para o moinho. As mós do sonho
reduzem-nas a este farelo de luz que os poetas
põem no alguidar das palavras, para
que as musas preparem a massa
da inspiração. E enquanto espero que
o forno aqueça, olho para o céu
vazio de estrelas, onde um cometa,
com o rasto único da madrugada,
escreve o princípio do poema.
________________________
220
Tão diversos quanto: Propércio, por exemplo, em “Iimitação
de Propércio” (PR, 2000, p. 290), Virgílio, por exemplo, referido em
“Estação morta”, PR, 2000, p.292 ; Heraclito em “Sobre um
fragmento de Heraclito”, PR, 2000, p. 345; “Sobre um episódio de
Tácito”, PR, 2000, p. 461; uma referência à epístola grega em
“Sequência” (PR, 2000, p. 728), entre outras.
221
A Matéria do Poema, 2008, p. 123.

201
RICARDo MARQuES

Através de vários elementos da poesia clássica, vai


Nuno Júdice estabelecer uma relação da feitura do poema
com uma actividade prática – a cozedura de um pão,
como se fosse uma receita, relacionando-se assim com o
poema “Relendo Pérsio” que veremos à frente.
Tendo em conta, comparativamente ao corpus de
poemas analisado, os poemas que lhe dedica ou que nele
são inspirados, podemos depreender que ovídio é um
autor que interessa a Nuno Júdice. Em vez de celebrar
este autor pelas várias obras importantes que nos deixou,
entre elas Metamorfoses ou A Arte de Amar, Júdice
prefere ligar o autor à temática que preocupa Júdice desde
o início: a do exílio222. Assunto antigo223, é normal datar-
-se o seu tratamento literário precisamente com este autor
latino que, por causas políticas, foi afastado de Roma por
Augusto e posto, até ao fim dos seus dias, numa zona
inóspita do Império Romano, o Ponto Euxino, na actual
Roménia. No primeiro poema de Júdice que analisa-
remos, o poeta latino é então imaginado naquele local,
numa história narrada na terceira pessoa – “ovídio,
escrevendo do Ponto Euxino”224:
_________________________________________

222
Não nos devemos esquecer, no entanto, que ovídio é uma
figura fundamental na transmissão posterior dos mitos da
antiguidade clássica à cultura ocidental, uma outra temática
importante na poesia de Júdice. Devido à extensa referência a este
escritor latino, podemos pensá-lo, através de Metamorfoses, como
uma possível fonte secundária, e até primária, de leitura desses
mesmos mitos. Sob o título de “Metamorfoses”, publicou Nuno
Júdice pelas Éditions du Murmure, em 2008, a metamorfose de Deus
num pássaro ( cf. Bibliografia final).
223
Sobre o exílio, Júdice tem dois poemas, um logo do primeiro
livro e outro de Meditação sobre Ruínas. Em PR: “Exílio” (p. 61) e
“A respiração do exílio” (p. 570). Neste segundo, a figura tutelar de
ovídio aparece logo no segundo verso, entre outros nomes literários
prostrados pelo exílio – Dante e Camões.
224
PR, 2000, p. 911.

202
NA TEIA Do PoEMA

Queixa-se de que a recompensa pelos versos é o


exílio. Amigos, homens e mulheres, e o próprio
Imperador, expulsam-no do seu convívio. Senta-se
num lugar amaldiçoado pelas musas e pela
divindade. Respira sem gosto, sentindo na boca
o sabor amargo da vida. Se não tivesse talento,
se os deuses não o tivessem recompensado
com o favor das amantes, o riso fresco da mais bela
das amigas. Porém, vive entre povos sublevados;
ouve o ruído das espadas, e corre por entre ruas
de sodados e rameiras, sem um sítio para se
abrigar. Joga o soldo da posteridade contra
o tédio dos companheiros. A sobrevivência –
eis o que empurra os seus braços, e reprime o
lamento dos seus lábios. Sabe que o futuro
não existe. Assim, escreve: “Desculpa-me,
peço-te, perdoa este excesso de terror…” Como
se o naufrágio não fosse completo, e alguém,
dos que o abandonaram, o pudesse ouvir.

É inegável a humanidade com que nos é descrita a


figura de ovídio. Júdice assemelha-o ao poeta maldito,
que por causa dos seus dons de escrita vai ser punido, tal
como o mito grego de Prometeu que tentou roubar a
centelha divina. Assim, o começo do poema vai ao
encontro desta ideia. o poeta, no local de exílio sente-se
abandonado por tudo e por todos, banido e amaldiçoado,
sem qualquer alento de viver. Para dar esta ideia, Júdice
recorre uma vez mais a imagens fortes e de laivos
hipalágicos, das quais se salienta – “Respira sem gosto,
sentindo o sabor amargo da vida” e “A sobrevivência – /
eis o que empurra os seus braços, e reprime o/ lamento
dos seus lábios”. É clara, assim, a antítese entre o
momento actual disfórico e o passado glorioso. Quanto
ao futuro, como é narrado, “sabe que […] não existe”. o
poema judiciano parece então acabar com o fechar da
ligação em relação ao título – “escrevendo”, mostrando
o autor a escrever uma carta que nenhuma amigo irá
receber, aludindo a algum princípio de loucura – “[...]

203
RICARDo MARQuES

escreve […]como se […] alguém,/ dos que o aban-


donaram, o pudesse ouvir”.
No segundo poema sobre o autor latino, “A ilha de
ovídio”225, é novamente retomada a questão do seu
exílio. Deste pequeno poema podemos dizer que se trata
de um complemento do primeiro, mostrando o poeta a
falar novamente para si na terceira pessoa. Aqui é descrito
o sentimento disfórico sentido, numa relação estabelecida
com a descrição negativa do próprio local de exílio
(“Aqui”):
Aqui, o vento e a chuva
falam com o mar. ouço-os,
sem entender o
que dizem. Mas no fundo,
onde os relâmpagos não
chegam para iluminar o
horizonte, a tua voz conversa
com as sombras, como no dia
em que chegaste.

Já Pérsio foi um autor etrusco que viveu no primeiro


século da era cristã e que se destacou por ser adepto da
doutrina estóica, presente em muitas das composições
poéticas, de índole satírica. Nuno Júdice fala sobre este
autor num longo poema narrativo intitulado “Relendo
Pérsio”226, onde também estabelece um diálogo com um
outro autor a que já fizemos extensa referência dentro da
obra de Nuno Júdice, Fernando Pessoa:
o Pessoa nunca leu Pérsio, senão teria sabido que,
para o poeta etrusco, os poetas têm isto de belo: reclamam-se de cem
vozes, e para os seus poemas desejam cem bocas
e cem línguas, nem que seja a de um pobre actor trágico,

_____________________________________________
225
PR, 2000, p. 556.
226
Cartografia das Emoções, 2001, pp. 85-86.

204
NA TEIA Do PoEMA

curvando-se sob a dicção atormentada do palco. “onde iremos


parar? E quantas vezes terás de ouvir o poema para satisfazer a ânsia
da tua garganta?” os que preferem o doce
estilo nobre, porém, terão de esperar que a névoa cubra a colina
helicónia; e o fumo dos metais em fusão enrola-se ao longo dela,
arrastando os guinchos do porco que o camponês conduz
ao sacrifício das musas.

Esta primeira parte do poema começa com a referida


alusão a Pessoa no sentido de ter sido este um poeta de
muitas vozes ou de muitas caras, bem como de mais do
que uma língua. Apesar disso, é feita uma distinção entre
ele e Pérsio porque este último sabe que isso é uma coisa
que os poetas têm de belo. Assim, são aqui postos em
confronto dois estilos de escrita – um estilo nobre,
cultivado e cuidado, e outro mais pragmático e directo,
onde ecoam várias vozes.
A estrofe seguinte alarga o seu campo à esfera da
reflexão sobre o poema, introduzindo uma metáfora
campestre para a sua feitura:
Assim, o poema é feito no forno onde cozem os primeiros
pães; e nenhum deus corrige as suas imperfeições, não se arriscando
a que os seus dedos se queimem na côdea queimada. Debaixo dela,
porém, a inspiração fermenta.
“Falas como te vestes, diz-me Pérsio, calculando
a aplicação das palavras ao tabuleiro da estrofe; e não adianta corrigir
os vícios, quando a culpa se sobrepõe ao jogo.” Então, prefiro
falar do que é essencial: esse fumo que se desprende da lenha
ainda húmida, e que deixa ver, nos seus intervalos, o rosto
da amada. Aqui, uma única língua me basta: a que uso neste verso
que arrasta o sentimento até à última fibra do coração. Atento,
perscruto o fundo dos olhos que me espreitam de entre o fogo,
imagem que traduz esta relação comum.
Podia explicar melhor: mas de tão usada, a metáfora gastou-se, e
quando lhe toco queimo as mãos, como sucede aos deuses.

o poema é assemelhado aqui a um pão acabado de


cozer a que não se corrige (nem “nenhum deus”) as
imperfeições, sob pena de provocar uma queimadura. No

205
RICARDo MARQuES

interior do pão e do poema, o que constitui o seu núcleo,


“a inspiração fermenta”. Imaginando Pérsio a acusá-lo
de fazer um poema com palavras demasiado cuidadas
(vv. 15-17), o sujeito poético decide então remeter-se ao
que é mais importante, usando para isso de outra
metáfora bucólica – o rosto da amada, formado a partir
do fumo que a lenha dissipa. Paralelamente, chega à
conclusão que apenas “uma língua lhe basta” para lhe
cantar aquele rosto, acabando o poema com um
comentário mordaz à própria metáfora criada (num estilo
satírico que alude ao de Pérsio). o poeta podia então
“explicar-se melhor”, mas deixa o poema (ou o pão)
acabado de fazer, imperfeito e com uma metáfora gasta,
porque se lhe for tocar “queimo as mãos, como sucede
aos deuses”.
Também no livro As Regras da Perspectiva, de
1990227, há um poema cujo título reúne dois versos do
autor romano – “A noite está comigo, os seus corcéis/ a
terrível pureza do seu nada”228. De um modo geral, Júdice
fala aqui do papel da memória no contexto da passagem
do tempo (“as cinzas da memória”), especialmente na
parte final da vida (“Inverno”), bem como do mistério da
sua passagem, ao deixar tudo o que existe viver “desses
restos obscuros/ de uma indecisa origem”. A pureza da
noite de que fala o título é assim, neste quadro, uma
equivalência à limpidez do “silêncio do verso”, à
ausência de limites que o universo e o objecto amado que
se recorda estimula a vida (“acorda-me do torpor da
vida”). o papel do sujeito poético é aqui claramente
assumido com o vocativo “Digo”:
___________________________________________
227
outros apontamentos sobre a cultura clássica há a salientar
nesta obra de Júdice. Dela deu conta Júlia Silva, num precioso artigo,
“A presença clássica em As Regras da Perspectiva de Nuno Júdice”
(in Humanitas, 1995, Volume XLVII, pp. 1047-1056).
228
PR, 2000, p. 408.

206
NA TEIA Do PoEMA

Digo: um dia de dezembro é branco


nos olhos da mulher que arrefece, à noite,
nas cinzas da memória. Não a conheço;
embora o seu corpo me traga a queixa
que invocam os pássaros deste inverno; pranto
que não atravessa o limiar do canto.

Digo: é antiga a decepção de um olhar


sem o brilho da manhã, do caule sem a esfera
da flor, de um estuário em que não correm
os ventos do largo. No entanto, o coração
que a treva não assuste contra o conforto
no silêncio do verso.

Deus é preferível à devastação dos oráculos;


então, o eco da sua voz rompe os limites do espírito
que o sonha. uma cratera da antiguidade oferece
o seu lume à corrupção do ser. os dedos da terra
puxam as raízes que adivinharam o horizonte; e
um abraço as rouba a uma respiração de astros.

o ritmo dessa obstinação atormenta a alma


das fontes. Digo, por isso: A natureza
vive desses restos obscuros de uma indecisa
origem. Como os teus olhos, o universo enreda-me
numa indefinição de limites; e o seu curso
sem repouso acorda-me do torpor da vida.

Platão, por outro lado, é um outro autor que está


bastante representado na obra poética deste escritor,
principalmente no que toca às ideias que se aproveitaram,
a partir do Renascimento, sobre aquilo que mais tarde se
designou por Platonismo. Pegando na ideia de superio-
ridade do mundo das ideias sobre o mundo concreto, a
espinha dorsal desta doutrina, Júdice aproveita sobretudo
das suas concepções, a noção de “Amor platónico”, de
que fala num poema com este título em Geometria
Variável229, e a qual relaciona com Petrarca e a sua amada
Laura:
________________________________________

229
Geometria Variável, 2005, p. 62.

207
RICARDo MARQuES

Quando me falaste do sentimento em Petrarca


e da imagem ideal da mulher na sua poesia, lembrei-me
dos seus esforços para contrariar o vivo desejo,
mantendo o amor no que ele considerava o plano
abstracto de uma visão angélica. Mas não sei se foi
a mulher que ele amava que o
fez tomar consciência da sua prisão
terrestre, como se fosse no céu que os corpos se
encontrassem ou as almas mantivessem o impulso
que os olhos exprimem, quando o brilho do reencontro
os ilumina, ou se acaso a filosofia e a consciência
de uma condição mortal do ser lhe trouxeram
a dúvida que arrefece o fogo do coração,
fazendo-o tremer de frio ao calor da chama
mais doce. uma ou outra coisa, o que sei
é que todas as metáforas se desvanecem perante
o que vi nos teus olhos, quando me falaste
do sentimento em Petrarca.

Aqui, o sujeito poético começa por dirigir-se a um


dado interlocutor, num estilo que podemos inicialmente
rotular de monólogo interior. Através desta apóstrofe faz
uma breve incursão no que é aceite por todos como o
“amor platónico”. Para o sujeito poético, Petrarca apenas
o usou como tentativa de afastamento do amor físico, que
temia, preferindo uma falsa “visão angélica” da mulher
que amou, Laura. Após uma divagação um tanto
especulativa sobre os motivos que o possam ter levado a
isso – a influência da mulher amada ou a consciência da
inexorabilidade da morte – o poema termina com a
inversão da importância dos olhos no caso particular do
sujeito poético. É no fim do poema que ele diz que
nenhum amor intocável e espiritual ( ou textual – “todas
as metáforas”) é tão importante quanto aquilo que os
olhos reais do sujeito amado transmitem, mesmo “quando
me falaste/ do sentimento em Petrarca”.
Continuando neste tema dos olhos, de inspiração
platónica e muito importante em Petrarca, podemos
encontrar referência ao autor toscano num outro poema

208
NA TEIA Do PoEMA

de Júdice, nomeadamente “Poema”230, onde o poeta


mantém um diálogo com a musa do autor, Laura:
Mil paixões transformaram-se numa simples
árvore; o fogo que parecia arder para sempre apagou-se
com o vento da tarde. “São as falsas impressões
de quem não aprende nem comunga com os outros”,
dizes. Podíamos discutir isso noutra altura, respondo. Mas
tu, Laura, a quem Petrarca convenceu de que a
eternidade é mais importante do que o instante presente,
não prossigas esta conversa. o paraíso, que as tuas
palavras me trazem, com a sua imagem de anjos presos
nas várias posições de uma arte sem regras, é um
bosque de nuvens secas. Falemos antes do purgatório; e
das suas breves pausas, do prazer que as tuas mãos me emprestam,
e destas viagens até ao fundo dos teus olhos, para te
roubar os pensamentos mais fundos.

Este poema dirige-se metaforicamente a Laura,


como já aludimos. Mais uma vez encontramos um sujeito
poético que se antetiza perante o amor demasiado
espiritual que a teoria do amor platónico de Petrarca
difundiu. Laura serve aqui como apóstrofe simbólica
desta mesma ideia, mostrando que foi o poeta italiano que
lhe prometeu a eternidade deste tipo de amor perante o
amor carnal e terrestre, que se intui passageiro, “instante
presente”. Simultaneamente, este parece ser um poema
sobre o efeito da passagem do tempo na concepção que
cada um tem do amor. Assim nos é dito “ o fogo que
parecia arder para sempre apagou-se/ com o vento da
tarde”. Desta forma, e como lição de uma vida que
“chegou ao outono”, mais importante que a eternidade e
o paraíso que o amor espiritual promete, é antes o
“purgatório” e o amor presencial e físico “que as tuas
mãos me emprestam”, onde os olhos do ser amado ape-

__________________________________________

230
Cartografia das Emoções, 2001, p. 79.

209
RICARDo MARQuES

apenas servem para “viajar até ao seu fundo”, e con-


cretizar, adivinhando os seus “pensamentos mais
profundos”. Tal como o poema anterior, estamos então
perante um poema subtilmente erótico, defensor de um
amor mais carnal que espiritual, que apenas ensina o
“outono da idade”.
Por último, Platão será o cento de um último poema
pouco mais antigo sobre o amor platónico. Aqui, Júdice
vai juntar ainda a este escritor, numa tentativa de “uma
definição do Amor”231 vários autores que tentaram esta
mesma aproximação ao tópico do amor platónico através
dos seus poemas – Quevedo e Garcilaso. De notar ainda
que esta invetiva poética de Júdice encontra eco
autotextual em “Amor é”, já anteriormente analisado por
nós, em que o poeta português revela ainda uma relação
intertextual para com Camões (v. 10), que igualmente
bebeu desta fonte petrarquista a lição platónica. Vejamos
agora o referido poema:
A água e o fogo juntam-se, num soneto de quevedo, para
tratar do amor, mais precisamente, do seguinte topos de petrarca: o
amante que sofre com a junção, na amada, dos dois
opostos que são lume e pranto. o poeta une-os para melhor
apresentar
as suas qualidades contrárias; e não é só porque tenha de obedecer à
tradição, e menos ainda ao fim da segunda elegia de garcilaso que,
diverso, entre contrários morria. De facto, o que o determinou
a escrever esse poema foi o conhecimento do amor, e o ter
visto as lágrimas que correm pelo rosto de quem ama, quando o amor
não arde232 o suficiente para as apagar nesses olhos maltratados.

___________________________________________
231
Cartografia das Emoções, 2001, pp. 32-33.
232
Luís de Camões – “Amor é fogo que arde sem se ver”

210
NA TEIA Do PoEMA

Na teia deste poema, vemos como Júdice convoca,


logo a início, um soneto de Quevedo e, no decurso desta
parte, uma elegia de Garcilaso de la Vega, poetas que
viveram e escreveram, como Camões, no século XVI. o
soneto em questão parece ser “Definiendo el amor”,
muito parecido com o soneto camoniano sobre os
sentimentos contraditórios do Amor (“Amor é fogo que
arde sem se ver”), mas pode igualmente ser “Amor
constante más allá de la muerte”, em que a referida
oposição entre água e fogo se regista. A elegia de
Garcilaso é, como indicada, a segunda, dedicada a Juan
Boscán, poeta catalão do Renascimento espanhol, que
acaba precisamente com essa ideia da antítese que
provoca o sentimento amoroso. No entanto, Júdice faz
aqui a distinção entre o que se escrevia apenas para
respeitar uma tradição herdada (neste caso de Quevedo
por Garcilaso, poeta mais velho que ele, mas poderiamos
fazer aqui nova ponte com Camões e outros poetas do
Renascimento português), e aquilo que se escrevia
porque verdadeiramente se sentia (vv. 7-8). No
desenvolvimento poético desta ideia de contrários, Nuno
Júdice vai pegar precisamente nesses dois elementos,
“água” e “fogo” e constrói uma imagem assente em
“lágrimas” e “amor que não arde”, ligando-os ao
sentimento de disforia amorosa. Continuando na estrofe
seguinte, notamos logo a início um eco de Correia
Garção233, para transmitir uma ideia de leitura atenta e
crítica do soneto de Quevedo:

.
_________________________________________
233
“Converso com os livros, isto é, com os mortos”, como já
referimos na nossa introdução a esta tese.

211
RICARDo MARQuES

Converso com quevedo acerca disto. Como se manifesta o sofri-


mento do amor?
o simples desejo, diz-me, poderá determiná-lo: e o coração acender-
-se em fumo e chamas. Posso aceitar o conceito, saber que a vida
tem, para connosco, imperativos que resultam no desgosto ou no
prazer, em cinza ou em centelha. Mas o que ele não me explica é a
razão por que, contigo, tudo se torna mais simples.
os teus lábios podem ser a sinédoque do poema; mas os teus seios
não se limitam a metáforas da expressão amorosa; e o teu corpo nada
tem a ver com retórica, nem sequer se transmuta em ave, num
impulso neoplatónico, como se as palavras tivessem de roubar
a substância ao poema só porque os outros as usaram, as gastaram,
as despiram da matéria que envolve os sentimentos.

Esta estrofe vem introduzir um elemento novo na


dedução lógica através da qual o poema se constrói, no
sentido de perceber interiormente o que é o Amor na
mundividência destes poetas renascentistas (lembramos
o título do poema judiciano). Este elemento é o próprio
objecto amado do sujeito poético, que parece vir pôr em
causa o que aqueles escreveram – “Posso aceitar o
conceito […] Mas o que ele não me explica é a razão por
que,/ contigo, tudo se torna mais simples”. A estrofe
acaba com a concretização prática desta ideia, transmitida
por alusões às diferenças entre o uso meramente retórico
de metáforas para falar do corpo do objecto amoroso, e a
sua concretização prática – “o teu corpo nada tem a ver
com a retórica”. Quanto aos “outros”, “despiram [as
palavras] da matéria que envolve os sentimentos”.
Assim, meu amor, ao tocar a tua pele, ouvindo correr
as fontes da mais antiga das emoções, toco o próprio instante
do relâmpago. Depois, sei que o poema te irá vestir de hipérboles,
enrolar os teus cabelos em fios de anáfora, espalhar o teu
sorriso pelo mais tópico dos símbolos. Deus, diana, lua, ou
qualquer ninfa de uma vaga mitologia – serás a mais secreta
das imagens. Mas és tu; e o que verso algum poderá esconder é
esse amor que corre por dentro dele, e o alimenta, como
um vento divino nas encostas do espírito. Então, abro a cama da
estrofe; e deito-me contigo nessa comparação, ouvindo o roçar de
lençóis dos dois termos da figura, enquanto não chegas para sacudir,
com a realidade do teu riso, o pó da poesia.

212
NA TEIA Do PoEMA

o poema conclui assim com a inversão da dualidade


amor carnal/amor espiritual que os poetas renascentistas
tanto desenvolveram. Enquanto estes escreviam mais sobre
o amor espiritual no sentido de perceber o que era o
sentimento, em Júdice, o que temos é primeiro “o toque
da tua pele” (o amor físico), para depois o poema poder
vesti-la de “hipérboles”, “anáforas”, ou “qualquer ninfa de
uma vaga mitologia” (amor espiritual e, se quisermos,
textual). Nos últimos versos, vemos então qual a definição
do amor a que o poema se propõe falar – a do que o sujeito
sente pela amada, demonstrando que a consusbtanciação
do amor espiritual, isto é, apenas a sua concretização
prática para além do poema, é o meio perfeito de encontrar
essa mesma definição, como se quissesse unir esses dois
contrários (amor físico e amor espiritual), “sacudindo,/com
a realidade do teu riso, o pó da poesia”.
Por último, e ainda no que toca a esta concepção de
amor em Platão, Júdice escreve um importante e longo
poema intitulado “um diálogo de Sombras”,234 apon-
tando o título para uma relação com outro texto platónico
importante na obra poética do autor português. Nele
podemos encontrar várias referências intertextuais de
vária ordem:

o amor, na sua dimensão platónica, toca-me


o espírito. Analiso as suas implicações, o êxtase cortado
no instante da contemplação, o percurso místico
por entre emoção e reflexão. No entanto, será esse, de facto,
o verdadeiro conceito do amor? É que, ao ler
os clássicos, não encontro mais do que erros
no anacronismo das épocas. o que seria o sentimento
para um homem da Antiguidade? Por que lutaram
gregos e troianos se não tivesse estado em jogo o corpo
de uma mulher, mesmo que outros interesses, de acordo
com a teoria de Marx, os tivessem empurrado uns contra os outros?

_____________________________________________

234
Cartografia de Emoções, 2001, pp. 30-31.

213
RICARDo MARQuES

E que faziam no meio de tudo isto os efebos socráticos,


os guerreiros espartanos com os seus amigos, e todas
as falas de homens e mulheres nas tragédias recitadas
em anfiteatros varridos pelos ventos do Mediterrâneo? Hipólito,
Antígona, Édipo, bacantes e sibilas, trocando imprecações
e argumentos…

Numa primeira parte do poema, podemos ver a


exposição da tese de Platão, e a sua posterior renúncia
por parte do sujeito poético. Por meio de várias interro-
gações retóricas, onde invoca diversos factos e figuras da
cultura clássica, Júdice vai pensar qual será o verdadeiro
conceito de amor, mostrando que a motivação daquelas
sociedades seria mais o amor físico (“o corpo/ de uma
mulher”) do que propriamente “outros interesses”, imis-
cuindo parodisticamente um elemento da cultura contem-
porâna, a teoria marxista do materialismo por oposição
às ideias. o poema prossegue com a particularização
desta teoria do sujeito poético no seu caso pessoal:
[…] Eu, porém, sentado num muro que dá
para a falésia, enquanto a corrente empurra as gaivotas
para o largo, evoco os meus amores platónicos. Todas
essas que guardei na memória, para que habitassem poemas
e versos, juntam-se agora nesta tarde de calor, e perguntam-me
por que limitei o amor à inacção da alma. As suas imagens
vacilam com a tarde, como se o sol as abandonasse; e
dou-lhes o sorriso triste das figueiras mortas, para que o levem
para os seus túmulos de sombra. o amor, digo-lhes, não é
o abraço mental que nenhum remorso ressuscita; e
o silêncio deste dia de verão, em frente do mar, afasta-vos
de mim. No entanto, cada uma de vós, amei-vos: e
se vos esqueço é porque penso na teoria platónica, e a ponho
em causa, abandonando a caverna onde habitei
convosco. Aqui, ao sol, mesmo que seja este sol do fim
do dia, é outro o meu amor. Helena, Dido, Eurídice,
as mais feridas das mulheres amadas, e também outras,
Laura, Beatriz, Margarida, as que deixaram o seu nome
no coração do canto, tomam o vosso lugar – ó amigas
desencontradas – e é com elas que falo de Platão,
para ver se chegamos a uma conclusão.

214
NA TEIA Do PoEMA

Chegados ao fim deste poema, percebemos o porquê


do título. A teoria exposta num primeiro momento do
poema serve de base a um posterior “diálogo de sombras”
com os seus próprios fantasmas amorosos do passado,
com as quais não chegou a concretizar o amor que sentiu
por cada uma (“ó amigas desencontradas”). A situação
temporal descrita (“o fim da tarde”) pode então ser vista
como a do começo do fim da vida, conotação que aparece
na maior parte dos poemas deste autor. Assim, mais do
que um diálogo com essas “sombras”, parece ser um
ajuste de contas, como se despedisse delas para sempre,
à luz da teoria platónica exposta no tratado “Alegoria da
Caverna” – “[…] dou-lhes o sorriso triste das figueiras
mortas, para que o levem/ para os seus túmulos de
sombra”. Como se continuasse o seu diálogo anterior
com a cultura clássica (e renascentista), na parte final do
poema assistimos a uma enumeração de várias mulheres-
-tipo que são símbolo do sentimento amoroso. o denomi-
nador que as une nesta alusão conjunta é que “deixaram
o seu nome/ no coração do canto”, e por isso é com elas
que o sujeito poético decide dialogar (“para ver se
chegamos a uma conclusão”) sobre o que é verdadei-
ramente o amor, e, mais literalmente, ao fim do próprio
poema.
Platão, por outro lado, é ainda convocado indirec-
tamente através da sua “Alegoria da Caverna”, em dois
poemas de Nuno Júdice. Em primeiro lugar, num texto
que constitui uma vez mais uma poética fragmentária
para a sua poesia, precisamente com este título235 e em
____________________________________________

235
Falamos de “Alegoria da Caverna”, (PR, 2000,p. 1027).
Analisaremos este poema mais tarde, aquando da análise dos poemas
com uma perspectiva metaliterária, uma vez que o conteúdo aponta
directamente para esta temática.

215
RICARDo MARQuES

segundo lugar num poema mais recente, o último de


Geometria Variável – “Regresso à caverna de Platão”236,
cujo título parece apontar desde logo para um diálogo
interno na sua poesia. Neste poema, Nuno Júdice encena
um conflito entre a poesia e a filosofia, que acaba por ser
um tratado poético intertextual e que serve ao mesmo
tempo de comentário ao próprio texto de Platão:
No conflito entre o poeta e o filósofo,
ensina Platão que não se deve fixar o sol
porque, depois de o fazer, ofuscados
pelo brilho intenso, não nos habituamos
aos objectos comuns, e assim nos perdemos
das coisas reais, após a revelação
da verdade celeste.

É então que o homem, ainda com o peso


da luz no espírito, tacteia em roda, procurando
a saída, e encontrando apenas as sombras,
que o empurram de um para outro lado,
como um simples boneco, fechando-o
para o mundo inteligível, de que sente
a nostalgia e o desejo.

Por um lado, o filósofo compreende


esta situação, e desenvolve um raciocínio
cujo encadeado dialéctico o conduz a uma
alegoria: prisioneiro, expulso da luz
pelo excesso de luz, o homem sente mais
profundamente a sua miséria, agora que
descobriu a obscuridade e os limites
do mundo, na gruta que o prende. É aqui,
no entanto, que o poeta perturba
a lógica do pensamento.

Com efeito, o poema corresponde à luz


do sol, com a sua plena revelação do absoluto,
sem provocar a cegueira. Pelo contrário,
é nele que nos movemos à vontade, sem precisarmos
de sair do mundo para descobrir a sua evidência;

__________________________________________

236
Geometria Variável, 2005, pp. 130-131.

216
NA TEIA Do PoEMA

por outro lado, as suas imagens são um reflexo luminoso


de tudo o que, na realidade, nos parece incompleto
e sombrio. “Então”, diz o poeta,
“para quê fixar o sol, se as minhas palavras
reproduzem a sua luz?”

“Por isso”, responde o filósofo, “não tens lugar


na minha república. Não convém dar a vista
aos cegos, quando a minha função é guiá-los,
nem dizer-lhes que o sol está ao alcance da mão,
quando é através de mim que o devem
atingir.”

Por vezes, o conflito de interesses


sobrepõe-se à razão; e, no erro do filósofo,
a sombra do mundo impede que a luz da verdade
se imponha no espírito, fazendo com que
a falsa dialéctica se desenvolva até ao seu fim
mais absurdo.

o poema obedece a uma cuidada estruturação


concatenada (um pressuposto que, como já vimos
abundantemente, está presente na maior parte dos poemas
judicianos) em que a cada estrofe corresponde uma
função dentro da tese que o próprio poema pretende
defender. Desta forma, a primeira estrofe vai ter como
função a exposição deste conflito (“entre poeta e
filósofo”), estabelecendo desde logo essa ligação inter-
textual com o texto platónico incluído n’ A República. A
segunda estrofe, aliada estruturalmente à primeira, serve
depois para confirmá-la com a aplicação prática no dia-
-a-dia dos homens. Assim, e pegando na antítese “luz-
-sombra”, Júdice começa por falar da “luz” enquanto
metáfora da realidade e do conhecimento, nomeadamente
dos seus efeitos perigosos, do seu “peso”, que pode
ofuscar a realidade. Após uma terceira estrofe que fala da
função apaziguadora e lógica do filósofo neste contexto
(“desenvolve um raciocínio/ cujo encadeado dialéctico o
conduz/ a uma alegoria”), na quarta estrofe, a mais

217
RICARDo MARQuES

importante do poema, vai Júdice assentar a função da


poesia, do poeta e do poema. Este é então uma imagem
do próprio sol, de onde não é preciso sair para ver a
realidade porque é um espelho da mesma. Assim, é a
“plena revelação do absoluto/ sem provocar a cegueira”.
A estrofe seguinte vai ser a reprodução de uma fala de
um filósofo (que pode ser ou não Platão, devido à alusão
à “república”) como resposta à de um poeta, reproduzida
imediatamente na estrofe anterior. Este confirma que o
que um e outro fazem é diferente, e que o poeta apenas
quer “dar vista aos cegos”, enquanto o filósofo pretende
guiá-los pela razão. A última estrofe vai concluir que o
filósofo erra as suas premissas pela ilusão que é a razão,
levando a antítese, falsa, entre “a luz da verdade” e a
“sombra do mundo” a níveis absurdos, quando na
verdade é o próprio poema o maior exemplo da forma
como os dois se podem, como nos é dito no próprio
poema, fundir num só.
Em suma, Júdice parte da dialéctica “luz-sombra”
para falar de uma outra, entre “Realidade-Metafísica”, a
antítese verdadeiramente premente quer para um poeta,
quer para um filósofo, que delas se ocupam de modos
diferentes.
Por último, as teses platónicas de que temos vindo a
falar são ainda revisitadas num poema intitulado
“Platão”237, presente originalmente em Um Canto na
Espessura do Tempo, e onde parece fazer uma profunda
reflexão, à luz das teses platónicas, sobre a passagem do
tempo, à antítese entre presente e passado. Assim, come-
ça-se por dizer que:

___________________________________________
237
PR, 2000, pp. 445-446.

218
NA TEIA Do PoEMA

Cada um de nós guarda, algures,


o retrato de alguém que já não tem
rosto nem voz, e não o empresta
a ninguém, nem que nos peçam, como
se nada fosse, essa imagem sem passado.

Então, dizem, para que serve guardar,


numa gaveta fechada, a própria vida?
Que excessivo pudor obriga a apagar
o próprio nome que, uma vez, foi
sinónimo de uma perdida felicidade?

Ainda não se lhe responda,


a pergunta mantém-se, por algum tempo,
no espírito que ela atormenta; e talvez
os olhos deixem a inquietação
transparecer – numa hesitação de brilho.

A nostalgia não tem uma figura


precisa; o corpo que lhe deu forma,
outrora, não pode restituir o sentimento
que só se teve por ter sido efémero;
e nenhum diálogo traduz a sua existência.

No entanto, ouço, é no intervalo que


a memória separa quem fomos do presente
que nos atrai, sem que nada se oponha à
sua vertigem, que as mãos abstractas dessa
que o silêncio envolve nos puxam para si,
– arrancando-nos à estagnação do ser,
à melancolia de um visão de espelho,
ao peso dos céus baixos que oprimem a alma, e
roubam aos reflexos um súbito eco do divino,
entreabrindo apenas a possibilidade do regresso.

o diálogo judiciano com Platão é, assim, uma


óptima porta de entrada para o capítulo seguinte, onde
veremos a presença de autores da época renascentista na
poesia de Nuno Júdice, e que viveram numa altura em
que as teorias do filósofo grego conheceram uma intensa
recepção e crítica.

219
RICARDo MARQuES

4.2. A época renascentista: entre as tradições


espanhola, inglesa, francesa e italiana

Como já temos vindo a dizer, o Renascimento e ao


Maneirismo são épocas fundamentais na poesia de Nuno
Júdice. Por um lado, é de notar que esta é a época em que
o soneto (petrasquista e inglês) se torna a forma fixa por
excelência desta época de ouro para a poesia ocidental.
Assim, passando por alusões a Shakespeare e ao Quixote
de Cervantes, são múltiplas as formas de actualizar as
obras e os autores deste período.
Antes porém, é de assinalar que uma obra funda-
mental, quer para a obra poética quer para a formação do
próprio autor, foi a Comédia de Dante, e que, sendo
escrita no início do século XIV, situa-se na transição entre
o Renascimento e a Época Medieval. Num texto em que
fala da linguagem poética238, o autor reflecte acerca da
influência que a descoberta do Inferno teve para ele com
a leitura em criança do texto de Dante (sobretudo esta
parte sobre o inferno), e que, segundo parece, é uma linha
de leitura determinante para muito daquilo que ele
escreveu, especialmente nos primeiros livros, com
inúmeras referências à morte. Igualmente interessante é
a referência à leitura de uma outra obra da Antiguidade
Clássica, a Eneida que, como já vimos239, parece ser mais
um testemunho quanto à importância da literatura desse
período:

___________________________________________

238
“Le langage poétique”, in Un chant dans l’épaisseur du
temps suivi de Méditation sur des ruines, Paris, Gallimard, 1996, pp.
7-14 [texto originalmente publicado in Les Cahiers de la Villa Gillet,
nº1, Lyon, Circé, Novembre 1994].
239
Cf. Capítulo anterior, sobre o seu diálogo com a Antiguidade
Clássica.

220
NA TEIA Do PoEMA

J’ai un souvenir d’enfance très précis […] Je suis assis dans


l’escalier de la maison de ma grand-mère, et je lis un adaptation pour
enfants de l’Ênéide. […] Je lis, donc, cette Ênéide, qui m’a donné
envie de demander, le Noël suivante, la Divine Comédie – et, surtout,
l’Enfer, dont la lecture a aggravé les peurs du péché et de la nuit qui
m’empêchaient de dormir, surtout à l’approcher la minuit, lorsque
les ombres semblaient se réveiller dnas cette chambre tournée vers
l’église et le cimetière où, cependant, je me promenais sans problème
toute la journée […]

Começaremos, assim, por analisar um poema


judiciano onde podemos ver um diálogo particular com
Dante e a sua Divina Comédia240. o poema em questão
tem exactamente este título241, e relega para segundo
plano qualquer conteúdo relativo à obra clássica. o que
Júdice faz, numa atitude claramente paródica e por meio
da ironia, é a sua recontextualização com aspectos
modernos e citadinos:
De automóvel até ao paraíso,
buzinando à passagem dos anjos,
pedindo cigarros aos santos
que se encostam às nuvens, com o ar
de não fazer mal a uma mosca,
ouvimos rádio: música ordinária,
com letras banais, e pelo meio
anúncios de coca-cola e electrodomésticos,
como se ainda se precisasse disso
no paraíso! Mas quando se chega
à portagem, e nos pedem o dinheiro
certo, é que é pior; nada de cartões
de crédito, nem de notas, nem sequer
aceitam moeda estrangeira. A virgem
da portagem, a primeira
das onze mil, estende o ticket e espera:
mas não temos trocado para lhe dar. Então,
o reboque de S.Pedro dá-nos a volta
_______________________________________________
240
Dante é igualmente evocado como poeta do exílio em “A
Respiração do Exílio” (PR, 2000, pp. 570-71), juntando-se assim a
Camões e ovídio.
241
PR, 2000, p. 783.

221
RICARDo MARQuES

ao automóvel. Nada a fazer: para trás,


pela circular do purgatório, entre
bairros de lata e vendedores
ambulantes, a música acabou. Agora,
depois de boletins de trânsito e previsões meteo-
rológicas, a notícia
celeste: foi cortado
o caminho do paraíso!

Há assim duas acepções do que é inferno, purgatório


e paraíso. Baseando-se nas acepções metafísicas de
Dante, Júdice vem aqui assemelhar a viagem através
daquelas esferas com uma viagem de carro cheio de
precalços. os sujeitos poéticos deste poema parecem
então ir no seu automóvel em direcção ao paraíso, numa
auto-estrada que, pelos elementos descritos, parece
atravessar o céu ao lado de nuvens. A travessia (infernal,
como se pode perceber pelos vv. 6-10) em nada se
assemelha à descrita pelo escritor italiano, mas convoca
motivos da sua obra e outros religiosos (“o reboque de
S.Pedro”), que depois relaciona com elementos do
quotidiano das estradas – “a virgem da portagem”, “o
purgatório feito circular”. o desfecho é ambíguo e
cómico, com a inevitabilidade da chegada ao paraíso.
De seguida, porém, veremos uma referência
judiciana menos esperada, o poeta místico S. João da
Cruz, que viveu na segunda parte do século XVI (1542-
-1591). o poema de Júdice que o retoma intitula-se,
precisamente, “Homenagem a S.João da Cruz”242:
Quando colhi os frutos daqueles ramos
que nunca deram sombra, a noite desceu
depressa, sem poente nem crepúsculo: a noite
que já estava dentro de cada fruto
e se fazia mais espessa de cada vez que os meus lábios
___________________________________________

242
PR, 2000, p. 529.

222
NA TEIA Do PoEMA

tocavam a ácida casca. Que noite


começou então? Não foi, sem dúvida, a noite
áspera do choro e do canto; nem a noite piedosa
que antecede a madrugada; nem sequer
a noite única do sonho e da insónia, confundindo-se
no curso sonâmbulo dos corpos que o torpor amante
contamina. Noite sem fim – porque
não teve um princípio – e definitiva no olhar
cego de um reflexo sem memória: dando
o nome às coisas que nunca o tiveram; e roubando
substância a esses nomes – essa noite
anda pelo meio de mim, entre quem sou
e quem julgo ser, impedindo-me de ver cada um
dos lados em que estou. Noite, então,
que caiu onde sempre esteve: amada, desejada,
repudiada repetição do que escrevo
quando escrevo – chamando, apenas,
a chama que não vejo nesse obscuro desejo.

Este poema em homenagem a S. João da Cruz


retoma um motivo importante da sua poesia mística, a
noite. o símbolo da noite é aqui tomado sobretudo
metaforicamente, como na poesia daquele místico,
referindo-se à escuridão da alma, a perda de fé, e, em
última instâcia, a própria morte. Se resgatarmos aquilo
que ele diz no incipit ou epígrafe de um dos seus poemas
mais conhecidos, “Noite Escura”, podemos inclusive
conotar a passagem da noite com o “caminho da negação
espiritual” que este refere, uma passagem que leva a alma
ao mais “alto estado de perfeição/ que é a união com
Deus”243. Posto isto, o poema que Júdice elabora tanto
pode ser dirigido a si como a S. João da Cruz, analisando,
do seu ponto de vista, aquilo que lhe transmite o percurso
do próprio místico espanhol até à “perfeição”. o tema da
noite escura tem igualmente uma repercussão grande na
poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, onde é
sempre um espaço de solidão e de vazio, face, por exem-
plo, ao espaço apolíneo do mar:

223
RICARDo MARQuES

No ponto onde o silêncio e a solidão


Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.244

Por outro lado, “noite escura”, no contexto da teolo-


gia mística em que podemos incluir São João da Cruz,
tem conotações com o conhecimento e a memória, como
refere Chevalier e Gheerbrant245 que também Sophia e
Júdice ecoam246:
[…] a noite simboliza o desaparecimento de todo o
conhecimento distinto, analítico, exprimível; mais ainda, a privação
de toda a evidência e de todo o apoio psicológico. Por outras
palavras, como obscuridade, a noite é própria para a purificação do
intelecto, enquanto que vazio e despojamento dizem respeito à
purificação dos desejos e afectos sensíveis, e até das aspirações mais
elevadas.
_____________________________________________
243
Sobre o tema da noite como experiência na poesia, veja-se
o capítulo “The night of the unrevealed”, do livro de Carlos Ceia,
2002 (cf. bibliografia final).
244
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia, edição
definitiva de Luís Manuel Gaspar e Maria Andresen de Sousa
Tavares, Lisboa, Caminho, 2003 (1944). Veja-se igualmente o
aturado estudo de Carlos Ceia sobre a presença da noite na poesia
de Sophia de Mello Breyner, com uma longa explicação do papel de
São João da Cruz nesta poesia. (vd. Carlos Ceia, “The night of the
unrevealed” in Op. cit., 2002).
245
Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, Dicionário dos
Símbolos, Lisboa, Teorema, 2002, p. 474. Negritos dos autores. Já
os Hinos à Noite de Novalis parecem, segundo estes autores, ser um
triunfo sobre o tempo. (idem, ibidem).
246
Podíamos ainda acrescentar outro nome, caro a Sophia e a
Júdice, nomeamente o poeta Rainer Maria Rilke, que desenvolveu
um conceito de noite próximo ao dos místicos, como podemos
comprovar logo na sua primeira Elegia de Duíno – “oh! E a Noite,
a Noite, quando o vento cheio de espaço dos mundos /nos desgasta
a face – , a quem não restaria ela, a ansiada,/ a das desilusões suaves,
que a cada coração solitário/ espera penosa”. (Cf. Rainer Maria
Rilke, Poemas, As Elegias de Duíno, Sonetos a Orfeu, (Prefácios,
Selecção e Tradução de Paulo Quintela), Porto, Asa, 5ª edição, 2003,
p. 171).

224
NA TEIA Do PoEMA

Assim, e de um modo geral, a noite deste poema é a


travessia de uma vida de escritor “que caiu onde sempre
esteve: amada, desejada,/ repudiada repetição do que
escrevo”, como se o desejo da chama do dia (= a
iluminação, a perfeição) fosse o seu único guia.
Cervantes é um dos autores com mais do que uma
referência na obra poética de Nuno Júdice, como já foi
referido. Cronologicamente falando, podemos assinalar,
em primeiro lugar, “o vento assobiando nos ossos de
Cervantes”247 e outra em O Estado dos Campos intitulada
“Sancho Pança faz companhia a Dulcineia”248. Vejamos
de que forma o primeiro exemplo glosa a figura literária,
vendo depois de que forma os dois poemas intertextuais
se cruzam:
Ninguém põe limites ao vento: nem
os moinhos de vento, nem Dom Quixote. Mas
um cavalo corre à desfilada por dentro do vento;
e a sua crina enfunada transforma o cavalo
num barco louco, de velas abertas como as velas
do moinho. É então
que Dom Quixote se senta na proa do barco. A sua lança
rasga os flancos do vento, e uma chuva de sangue
abre um sulco na terra por onde passaram
os ventos e os cavalos do inverno.

Nunca soube distinguir um barco


e um cavalo. A única diferença está nas ondas que
empurram o barco e nos quixotes que empurram
os cavalos. o espírito do vento habita-os: as ondas relincham
com uma alegria de nortada; e os quixotes cravam as esporas
nas velas do moinho pensando que são os flancos
do cavalo. É então
que o moinho se ergue com um relincho
de barco; e as suas patas cravam-se nas ondas, como se
o moinho fosse um barco equestre.

____________________________________________
247
PR, 2000, pp. 881-82.
248
O Estado dos Campos, 2003, pp. 99-100.

225
RICARDo MARQuES

o vento, ou o “espírito do vento” é, como vemos


desde já, o elemento mais importante deste poema,
servindo de base à sua construção metafórica. Se de um
ponto de vista estritamente simbólico podemos dizer que
a obra de Cervantes se conota mais com o elemento “terra”
(nomeadamente pelo contexto físico extremenho) Nuno
Júdice vai antes aludir ao primeiro elemento, que depois
liga semantica e analogicamente aos moinhos de vento de
Quixote, bem como a outro símbolo importante na sua
obra, o cavalo onde monta e faz a sua viagem. uma última
elaboração poética de Júdice vai ser a relação das velas do
moinho onde bate o vento com um barco cujas velas são
alvo do efeito do vento. É assim que “[…]Dom Quixote
se senta na proa do barco” até porque a distinção entre um
meio de transporte e outro, para o universo da poesia e na
mente de Quixote, não é importante (“Nunca soube
distinguir um barco/ e um cavalo[…]” ). o “espírito do
vento” é sim o que mais importa.
Aproveitando esta relação com o mar, Júdice elabora
uma última inflexão da metáfora para relacionar a outra
personagem importante desta obra, a amada de Quixote,
Dulcineia:
um mar de quixotes alastra pela terra. os cavalos
fogem à sua passagem; os ventos curvam-se perante
as suas ondas. Entrego-lhes a dulcineia branca de todos os sonhos
do vento. os seus seios que incham com os ventos
do sul; o seu ventre por onde sopram os ventos circulares
dos trópicos. A jovem dulcineia que todos os moinhos
possuíram com os seus braços de vento; a dulcineia enlouquecida
como as éguas batidas pelas velas dos moinhos. os seus olhos
que empalidecem com a agonia de Dom Quixote.

o amor de quixote e dulcineia é o mar


em que esses barcos naufragam, os recifes em que as velas
do moinho se rasgam, o muro em que se precipita
uma desfilada de cavalos.

uma bátega de pássaros


no coração da terra.

226
NA TEIA Do PoEMA

Esta tripla variação (moinho, mar e cavalo) da


metáfora do vento vai por fim ser reunida na penúltima
estrofe, onde se fala do amor de Quixote e Dulcineia,
levando a concluir que o que Júdice fala é da própria
criação poética – “uma bátega de pássaros / no coração
da terra”. Em última instância, e já relacionando o
conteúdo deste poema com o seu título, encontramos
igualmente uma equivalência metafórica da passagem do
vento como passagem do tempo (“o tempo assobiando
nos ossos de Cervantes”), trazendo a morte, mostrando o
carácter passageiro da vida e da criação literária.
Vejamos agora de que forma a relação entre
D.Quixote e Dulcineia é tratada no segundo poema atrás
mencionado, e como encontramos aqui desenvolvida a
referência, denotada logo pelo título, a um outro perso-
nagem desta obra, Sancho Pança:
Há um verso de Schiller em que, “como um herói
o sol termina o seu curso”. Volto este verso ao contrário,
despejando-o da analogia romântica, esvaziando-o
da hipérbole; e o que fica no fundo do copo
é um astro poente, um D. Quixote com asas de Ícaro,
erguendo a lança de plástico contra o céu. No entanto,
nos seus olhos, quantos sonhos ainda ardem! Ajudo-o
a descer do cavalo (o velho Rocinante de pêlo gasto)
e levo-o até à taberna onde iremos esvaziar outros
copos. Fala-me do seu amor por Dulcineia; e quando
a voz rouca se empastela, insulta-a – “a minha dama
coroada de flores murchas!” Digo-lhe que não; e chamo-a,
a essa Dulcineia que se esconde por trás do balcão,
para melhor se rir do ébrio cavaleiro. Ela traz
mais vinho; e Dom Quixote despeja-o no cálice
do capacete, bebendo-o pelo frontal. “Que rio
é este que me enche? Por que não me puxas
para o teu colo, ó amarga donzela? E não impedes,
com a tábua de salvação dos teus braços, o
naufrágio em que me perco?” Porém, Dulcineia
não o ouve. A sua alma não precisa de interrogações
poéticas; e muito menos o seu corpo se satisfaz
com o luxo das metáforas. Cubro-a com o veludo
dos segredos; e aconselho-a a sair da taberna,

227
RICARDo MARQuES

até ao campo, onde o outono nos fará pensar


no destino dos servos. “E ele?”, pergunta-me,
“Deixemo-lo dormir. No seu sonho, mil
Dulcineias rodarão as saias, à sua volta, como
as velas de uma planície de moinhos; e ele,
como um herói, terminará o seu curso”. Ela
puxa-me pela mão; e um novo combate começa.

Em primeiro lugar, a citação de Schiller, subvertida


por inversão por Nuno Júdice, aparece a início como
desfecho de todo o percurso ou travessia de Quixote da
obra cervantina, que o poema judiciano vai narrar
poeticamente através de uma alegoria onde entram os
outros personagens. Assim, nas primeiras linhas do poema
parece haver uma inclusão do próprio poeta no poema
(veja-se “Volto este verso ao contrário”, por exemplo249),
que mais tarde, ao lermos o resto da composição judiciana
e tendo em conta o desfecho e o título do poema, podemos
juntar à própria voz de Sancho Pança. Dom Quixote é
então visto como um “astro poente” que chega ao fim do
seu curso, símbolo de uma época que já não existe, e cuja
função dentro da obra (“combater moinhos de vento”) vem
exactamente encaixar-se nessa impossibilidade. Adicio-
nalmente, a história que Júdice narra aqui alegoricamente
do sono e sonho em que “o herói” mergulha depois de “ter-
minar o seu curso” numa taberna, vai equivaler-se ao único
fim possível para um cavaleiro que busca o impossível
durante a sua jornada. Assim, também poetica e alegori-
camente faz Júdice sair Sancho Pança e Dulcineia daquele
lugar ( ambos mais materialistas e cujas almas como diz o
sujeito poético, “não precisam de interrogações poéticas”),
deixando o “astro poente” começar novo combate.
_________________________________________
249
Indicia este verso uma espécie de “mundo às avessas” não
a nível temático, mas a nível estilístico, o que é importante na medida
em que é como se a “ansiedade da influência” de Bloom não se
concretizasse em Nuno Júdice sempre sob a forma de contra-
-estilização de todas as formas poéticas conhecidas e elaboradas no
tempo, mas sim incorporando-as.

228
NA TEIA Do PoEMA

Shakespeare250 é figura incontornável da poesia


ocidental e Júdice apresenta vários ecos directos da sua
influência. Por um lado, a presença de “ofélia”,
sobretudo na caracterização das mulheres disfóricas, num
sentido pré-rafaelita, dos seus livros iniciais, e por outro
lado, através das próprias ideias do bardo inglês,
sobretudo no que diz respeito à ontologia do ser.
Desta forma, as três “Quadras com citações de Sartre
e Shakespeare”251 constituem um poema que utiliza estas
duas figuras da cultura ocidental no sentido de convocar
uma reflexão sobre o ser humano, preocupação filosófica
que tanto o existencialista Jean-Paul Sartre, para a
filosofia tout court, como o escritor William Shakespeare,
no domínio prático da literatura que escreveu, perso-
nificam. As três quadras apresentam apenas citações
glosadas e incorporadas destes autores, mas com um grau
baixo de intertextualidade, e que, como tal, não vai ser
alvo de nossa exploração:
Qualquer coisa que acontece em qualquer altura:
o que pode ser e o que há-de acontecer,
mesmo quando se vive a noite mais escura
entre o ser e o nada, entre ser e não ser.

o amor é ave perdida numa alvorada


é essa definição que ninguém conhece:
o deus cego com a voz atordoada
de quem tudo sabe e tudo sempre esquece.

Persigo um sonho de asas que nunca voam


no teu corpo vago, ó mulher inquieta:
e espero pelas palavras que nunca soam
na tua resposta tensa entre o arco e a seta.

______________________________________________
250
Shakespeare é ainda referido em “A noite do porto” (PR,
2000, p. 782) e em “Condomínio” (A Matéria do Poema, 2008, p. 57).
251
PR, 2000, p. 1000. Sartre é alvo de um artigo de Júdice. Este
analisa-o tendo em conta o seu gosto pela poesia – “Sartre, leitor de
poesia” é o título da comunicação (Cf. bibliografia final).

229
RICARDo MARQuES

A situação inicial do “eu” poético é a de confusão


identitária e disfórica (“mesmo quando se vive a noite
mais escura”), apesar de esperança (“qualquer coisa pode
acontecer em qualquer altura”). o tu poético, que se
funde no sujeito amoroso, é o terceiro elemento
convocado e a chave do próprio poema de amor, sobre
quem ele é e a quem é destinado (“ó mulher inquieta”) e
onde o sujeito apenas encontra a sua própria identidade.
A visão que o sujeito parece ter do amor é expressa na
segunda estrofe, com a metáfora da ave que ele vai
perseguir com o nascimento da alvorada (aqui em
oposição à noite disfórica e de perda de identidade), e que
se vai consubstanciar no corpo da mulher amada. A
resposta, isto é, a correspondência amorosa (veja-se a
imagem do cupido, no fim do poema) apenas reside,
assim, inaudível, no sentimento do ser amado – “espero
pelas palavras que nunca soam/ na tua resposta tensa
entre o arco e a seta”.
o mesmo desenvolvimento sobre o ser parece
acompanhar e motivar o poema “Hamlet”252, que acaba
precisamente com a citação mais conhecida da famosa
obra shakespeareana:
Há uma altura, antes de acordar, em que
sonho e realidade se confundem. Por vezes,
o sono impede que se faça essa distinção,
de outras vezes, julgamo-nos metidos
na vida sem saber que ainda não saímos
do limbo nocturno. Em todos os casos,
sentimentos e emoções sobressaltam
o corpo; movemo-nos para um e outro lado
com a angústia da dupla existência; nada
dominamos das acções que, no entanto,
sofremos como se algo nos tivesse arrancado
da cama. Durante o pequeno-almoço, pensando
__________________________
252
PR, 2000, p. 425.

230
NA TEIA Do PoEMA

nisso, já pouco resta de qualquer coisa


da noite. Nem as pessoas, nem as palavras,
nem as imagens, nos atormentam com a intensidade
de há pouco. Porém, é como se nos faltasse
alguma coisa de nós. E, durante o dia, repetimos
gestos que não sabemos a quem se dirigem;
ouvimos frases de que não percebemos
o sentido. E não sabemos, de facto,
onde encontrar uma explicação para esse
deambular entre ser
e não ser.

Júdice parece trazer para a esfera do quotidiano o


problema central do “ser e do não ser” que Shakespeare
propõe através do famoso solilóquio de Hamlet na peça
homónima. Assim, entre ser e não ser, ou seja, tomado
aqui na oposição existencialista entre existir e não existir,
está uma mesma situação (o sonho) que entre o tempo da
noite e o tempo do dia parece mudar de ontologia. Por
outras palavras, se durante a noite sonhamos e temos a
percepção vívida de que aquilo existiu ou acordamos com
a sensação que aquilo que sonhámos foi real, já a
vivência do dia e as horas que se sucedem negam estatuto
real aos sonhos, ainda que onírico, quando nos esque-
cemos do que sonhámos e vemos que aquilo não foi real.
Assim, concluimos com Júdice, através de Hamlet, a
ideia de que a identidade do sonho é “esse deambular
entre ser e não ser” para o qual, “não sabemos, de facto,
onde encontrar explicação”.
Ainda no que toca à peça Hamlet de Shakespeare, e
como deixámos entrever trás, há um outro poema
judiciano, de A Matéria do Poema, que vai falar de outra
personagem, ofélia, relacionando-a com as ninfas da
mitologia grega, “ofélia e as ninfas”253:

_____________________________________________
253
A Matéria do Poema, 2008, p. 13.

231
RICARDo MARQuES

Na beira do rio, as areias escurecem, pedindo


o lodo do outono; e por trás dos ramos, as
ninfas dormem, ébrias de sono. Não querem
que as acordem; nuas, encostam-se umas
às outras, como se ao dormirem perdessem
o desejo que as faz relincharem, como potras,
enterrando os pés nos olhos que as descobrem.

Mas o rio não corre; e na água parada, uma


transparência de frio deixa ver o corpo de
náiade de uma inquieta ofélia. No seu rosto
onde a vida morre só os lábios são vermelho
sangue, e ainda a puxo para terra, com redes
de pescador, para a estender nas pedras
que lhe rasgam a pele, num último estertor.

o sol acorda as ninfas; e todas acodem


em torno da morta, gritando que se erga;
nos seus olhos lívidos, porém, só se fecha
uma porta. Quem ficou por trás dela?,
pergunta sem resposta. Mas dou a volta
à casa, abro a janela; e é ofélia que me
recebe, acordada, renascida e pura camélia.

A água é um elemento primordial na poesia de Nuno


Júdice, que se relaciona com o feminino e com a
passagem da morte para a vida. Este poema parece vir
reafirmar e observar o seu gosto por convocá-la. o
motivo central é ofélia, personagem shakespeareana que
assim alude a esses dois símbolos (o feminino e a morte),
tendo-se suicidado no decurso da loucura de Hamlet. o
momento que o poema regista é o de observar precisa-
mente o corpo boiando no rio que “não corre”, como
podemos ver na segunda estrofe. o sol, presente na
última estrofe, outro elemento importante e que renova o
seu carácter apolíneo, por oposição ao da água, vem ser
convocado como catalisador do que existe na natureza e
é vida, fazendo acordar as ninfas e mantendo ofélia
“dormindo”. o poema acaba com uma alusão à planta
com que se conota ofélia e cujo nome rima com o seu

232
NA TEIA Do PoEMA

(Camélia) e, simultaneamente, com uma confirmação do


papel que tem o escritor ao mostrar que consegue
“ressuscitar” quem quiser pela sua escrita (uma casa
baseada na memória do poeta e onde, neste caso, ofélia
se apresenta para o receber).
Também no poema “A varanda de Julieta”254 parece
continuar esta mesma relação intertextual para com
Shakespeare, e em particular a peça Romeu e Julieta,
num poema que está presente num livro que trata deste e
de outros amores impossíveis, como o que dá título à
colecção, Pedro, Lembrando Inês:
uma vez, entrei em Verona para não
entrar em Veneza. Entre o vê de Verona e o vê
de Veneza optei por ver Verona. Gostei da
coincidência das consoantes na janela
de Julieta; e sei que em Veneza não ouviria
o vento da vingança, nem provaria o veneno
de uma volúpia que só em verona se
desvanece com a vida. Não há canais em
Verona, como em Veneza; nem há janelas
em Veneza, como em Verona; mas Julieta
espreita a rua, da janela que é sua, e se
ninguém diz a senha que só ela sabe, agita
o lenço molhado pelas lágrimas que as
nuvens bebem, levando-as de Verona até
Veneza, onde a chuva as deita nos canais.

_____________________________________________

254
Pedro, Lembrando Inês, 2001, p. 22. “Meditação Veneziana”
é um outro poema em que podemos ver Veneza de uma forma irónica
e contemporânea, convocada por uma epígrafe do dramaturgo e
libretista Hugo Von Hofmannsthal (1872-1929) – “o tempo tem
canais tão obscuros como os da cidade;/ apesar das pontes, ouve-se
o ruído da água contra as paredes/ e as fundações das casas; e sabe-
-se que uma corrupção/ antiga não cessa quando temos os pés em
terra. Então,/ talvez valha a pena pensar no que ficou para trás, e/ ir
ao encontro do que está em frente como se fosse o que,/ há pouco,
parecia não existir a não ser num fundo vago da memória”. (PR,
2000, pp. 650-51).

233
RICARDo MARQuES

Através deste poema vemos outro bom exemplo de


como Júdice vai dotar um poema, aparentemente sobre
um aspecto quotidiano como “a varanda de Julieta” da
peça shakespeareana, de uma intenção metapoética.
Baseado numa história verdadeira, de uma viagem
que o próprio autor encetou, Júdice constrói uma paródia
comparativa entre as duas cidades, tendo por base a
coincidência de ambas as cidades começarem pela
mesma consoante – “v” (“Gostei da/ coincidência das
consoantes na janela /de Julieta”), e criando uma
aliteração constante deste som (que aparece igualmente
em outros poemas). Assim, o poema resulta numa paródia
linguística centrada na personagem de Shakespeare ( com
uma amálgama de elementos relacionados com a história
de Julieta com Romeu – “vento da vingança”, “veneno”,
“volúpia”), tudo baseado num apontamento do seu
próprio quotidiano, numa “varanda” de “verona”.
John Donne é um poeta inglês que viveu entre o
século XVI e XVII, e que ficou conhecido tanto pelos
seus sermões, como pelos seus poemas erotizantes. o
poema de Júdice que a ele se refere está no livro
Geometria Variável e tem o título “Sphera Mundi”255.
Júdice dedica este poema a Giulia Lanciani, especialista
italiana em literatura portuguesa:

Numa sexta-feira de mil seiscentos e treze, caminhando


para oeste, john donne imaginou que a alma do homem
é como a esfera, rolando sobre a sua própria inteligência,
como se o vento a empurrasse atrás dos seus passos. Posso
entender esta imagem como se de uma sombra se tratasse
e ao olhar para trás, vendo o caminho já percorrido, talvez
alguns pedaços dessa alma tenham ficado nas bermas

________________________________________________

255
Geometria Variável, 2005, p. 80.

234
NA TEIA Do PoEMA

onde os cães vadios os hão-de encontrar, disputando-os


numa ânsia de esfomeados. Mas o que importa é o centro
da esfera; e este, que reflecte o rosto do homem, como
um Cristo na cruz, sangra. Talvez daí possa vir a nascer
o conhecimento da vida, isto é, o que determina o
movimento para oeste, onde o sol se há-de pôr, e a maré
nocturna começa a encher, num anúncio de temporal. E
então, como se fosse um outro princípio, os pedaços
da alma juntam-se, enchem todo o espaço da sombra,
e logo se dissipam, como névoa, quando o último
sol desaparece no horizonte, como o deus que john
donne viu morrer, ao caminhar para oeste, levando
atrás de si, num peso de esfera, a sua própria alma.

A “sphera mundi” ou “esfera do mundo” de que se


fala aqui é metáfora e imagem para a alma humana, posta
no seu contexto de existência (“mundi”) e cujo
movimento é estimulado por “a sua própria inteligência”.
Partindo desta símile, posta no pensamento de Donne e
suscitada por um passeio empurrado pelo vento, o res-
tante poema será um desenvolvimento desta comparação.
À medida que o tempo passa (imagina Donne pela mão
de Júdice) pedaços do ser (da alma) vão-se dispersando
pelo caminho, deixando o centro da esfera (o rosto) a
sangrar. Mas é precisamente com essa passagem do
tempo que advém “o conhecimento da vida”, ainda que
essa passagem leve inevitavelmente à morte (“o
movimento a oeste”). A morte então é o momento em que
um novo princípio começa, em que “os pedaços da alma
se juntam”, “dissipando-se como névoa”.
Assim, o que temos neste poema é uma temática
metafísica sobre a existência humana, que assim funciona
como alusão velada ao próprio estilo de escrita de John
Donne, que mais tarde foi incluído nos “Metaphysical
Poets”, muito pela escrita dos seus sermões, na parte final
da sua vida, eivados de símiles e comparações como a de
Júdice.

235
RICARDo MARQuES

“os epitáfios de Marot”256 é um poema judiciano


onde o escritor quinhentista Clément Marot (1496-1544)
foi, assim, directamente convocado logo pelo título.
Famoso, entre outros escritos, pelos seus epitáfios, Júdice
vai dialogar com este estilo de composição, simulando
uma composição típica daquele escritor, que desdobra em
várias personagens. o final, tal como no final de um
epitáfio, é paródico:
Aqui jaz Jane Bonté, espírito de bondade
a perder a “boutade”; e um homem douto
cujos escritos ninguém lê, melhor o fora;
e jaz o argentário ( ninguém o deplora);
jaz o médico que aos vermes, para couto,
deixou o corpo; jaz Caterine Budé, jovem
e bela e branca – tudo isto para quê?
E jaz ainda Coquillart, de brasão armado,
jaz o bispo que as bexigas benzeram
de sinais estranhos, e João Vitelo
ceifado na infância pelo ágil cutelo;
jaz o papa Guion que não foi rei
nem papa, um Pai Nosso lhe sirva
de capa; e um que foi corno e bobo;
e jaz o irmão André, que pregava mal,
e Pierre de Villiers, que nunca pregou.
Ao farsante ela o abocanhou; peçam por ele,
que vos fez rir (ninguém o chorou
a não ser o poeta Clément Marot).

“Exercício de Interpretação”257 é uma composição


poética que faz convocar Leandro Fernandéz Moratín,
poeta e dramaturgo espanhol que viveu entre os séculos
XVIII e XIX, muito desconhecido em Portugal,
começando por uma citação deste autor: “A bela que
prendeu com gracioso rir/ o meu terno coração, alterando
a sua paz,/ inimiga do amor, inconstante, fugaz,/ inspira-
-me uma paixão que não quer sentir”. De Júdice temos a
__________________________________________
256
PR, 2000, p. 310.
257
PR, 2000, pp. 917-918.

236
NA TEIA Do PoEMA

informação que esta quadra faz parte do poema “Para


uma jovem francesa”. o poema de Júdice é então um
interessante “exercício de interpretação” deste poema,
onde se misturam vários outros elementos paralelos,
como é o caso do contexto do escritor, e imiscuindo-se o
próprio autor, no fim, no relato, de uma forma que já é
comum nestes poemas intertextuais.258 Para tal, e numa
primeira parte, o sujeito poético começa por aludir ao
conteúdo do poema que põe em epígrafe:
Jogou com os adjectivos: são eles que, na frase, alteram
a sua paz, trazendo uma inquietação a quem está habituado
à ordem normal da gramática. Com efeito, aqui, onde tudo
tem o sentido preciso da construção clássica, esse terceiro
verso altera as coisas, perturba a razão lógica, obriga a
que se procure o que está antes, ou depois, do que é
dito, pois é dessa concordância que depende o que o poeta
quer dizer.

Júdice traça um caminho pelo poema, que é feito na


senda dos adjectivos do mesmo, lembrando que a sua
disposição frásica no poema deveria, pelas correntes da
época em que o autor vive e escreve (o neoclassicismo),
corresponder a uma “construção clássica”, a que os dois
primeiros versos, de resto, obedecem. Esse terceiro verso
que salienta Júdice vem, efectivamente, perturbar o
seguimento dos versos, já que caracteriza a mulher amada
de uma forma nada clássica, e bem mais romântica. Desta
forma, é natural a dedução seguinte:
[…] Assim, o poema já não é totalmente perfeito;
há algo, nele, que subverte as regras; e para além disso
nota-se que a perturbação nasce da imagem que o motivou,
aquilo a que se dá o nome da inspiração, e que neste caso
tem a figura de uma estrangeira, a jovem francesa, sem que
___________________________
258
Veja-se, a este propósito e a título de exemplo, a nossa
análise de “As Meninas de Avignon”, na parte em que trataremos os
seus textos que convocam outros de outras artes.

237
RICARDo MARQuES

saibamos sequer quem ela é, além do facto de ter sido


bela. Então, dá-se o nome de pré-romântico ao poeta,
isto é, o que ele sente já nada tem a ver com
a harmonia clássica, com as paixões a preto e branco de
outrora, como se o coração pressentisse as mudanças
culturais, e soubesse adivinhar os caminhos que a
literatura sugue, no seu curso de rupturas e influências –
rio de palavras que dependem das margens, certas ou
agrestes, por onde as águas correm. É, digamos, um autor
de transição; mas não é isso, de facto, o que interessa nele.

Ao conotar o poema com a imperfeição, demonstra


Júdice que os poemas apenas são imperfeitos já que, se
seguirem regras “a preto e branco” que os conotam com
certas escolas ou correntes artísticas, não pertencerão a
uma escola determinada. É o que se passa aqui, com este
poema e, por sinédoque, com este autor. É um “pré-
-romântico” (tal como Bocage, com quem poderíamos
fazer uma ponte literária), que se situa numa transição entre
duas grandes escolas e demonstra que a literatura é maior
do que isso – “rio de palavras que dependem das margens,
certas ou / agrestes, por onde as águas correm”. Numa
parte seguinte do poema, porém, centra Júdice o essencial
deste poema, deixando a filiação literária do seu autor:
[…] É, antes, o retrato breve dessa jovem francesa:
que terá ela feito, ou dito, para que o seu coração se
alterasse? Que riso terá ele ouvido? Que gesto de mãos, e
de olhos, o terão obrigado a sobressaltar-se, como se
nunca outra mulher, até então, lhe tivesse provocado o
mesmo efeito? Vejo as datas da sua vida: que
idade teria quando a encontrou? Trinta, quarenta anos? Antes
ou depois dessa guerra que inspirou a pintura mais
negra de Goya? No poema, porém, nada lembra outros combates
que não sejam os do próprio coração, como se fosse essa a
única guerra que os poetas conhecem. Ele contra ele
próprio, a sua lucidez branca de racionalista contra os
desacertos do próprio coração.

238
NA TEIA Do PoEMA

Entramos então aqui numa parte que especula sobre


o contexto da criação do poema, partindo sempre dos
elementos que o compõem. É igualmente de assinalar
aqui uma citação da guerra da independência espanhola
(1808-1814), datas que balizam dois momentos sócio-
-culturais distintos em Espanha e que inspiraram quadros
como o que é referido como o mais “negro” de Goya – e
talvez um dos mais famosos, aquele sobre a Insurreição
do dois de maio de 1808, intitulada “Los fusilamientos
en la montaña del Príncipe Pío”259. Posteriormente, e
pegando neste motivo do combate, Júdice volta a falar
do autor em questão e do seu particular lugar face ao
período literário em que escreve, mostrando que também
dentro dele havia um combate entre a razão (Neoclas-
sicismo) e aquilo que sentia (Romantismo). uma dúvida
assola, então, o sujeito poético:

[…] Poderei compreendê-lo?


Justificar este poema, que não diz mais do que diz, ou
devo, pelo contrário, remetê-lo para esse limbo de autores
sem escola, que se limitam a anunciar os grandes períodos
de afirmação estética? ou apenas nada: limitar-me a ler
o poema, como se fosse hoje, e a sentar-me no meio dos
dois, o poeta e a francesa, servindo de intérprete ao que
um e outro, possivelmente, não souberam como dizer.

Nesta parte final, Júdice assume a voz de “intér-


prete”, de terceiro elemento “no meio dos dois” que, por
outras palavras, se traduz na sua própria escrita do
poema, trazendo-o para a actualidade, e dizendo, com o
seu poema, aquilo que o próprio espanhol não disse,
porque não pôde pela moral da altura, com o seu poema
apaixonado.
_______________________
259
o pintor Goya irá ser visado num outro poema, que
analisaremos mais à frente – “Autópsia”, de Cartografia das
Emoções (pp. 91-92).

239
RICARDo MARQuES

Vemos assim como num poema Júdice consegue não


só subverter a própria noção de poema (fazendo mais
aquilo que se poderia designar como comentário
metaliterário) como a noção de escola literária, vendo a
literatura como um todo a que muita gente pertence. Pelo
caminho, e num apontamento inter-artes, remete-nos para
um intertexto visual famoso (o quadro de Goya) que se
encaixa no tempo de vida de Moratín. o mais importante,
assim, é o próprio poema que fica e que pode ser lido hoje
em dia como um simples poema de amor entre um
espanhol apaixonado e uma francesa que não lhe
corresponde, independentemente do contexto ou de quem
o escreve.

4.3. Diálogos poéticos nos séculos XIX e XX

Para além do seu verificado interesse em estabelecer


ligações intertextuais com autores do Renascimento e dos
séculos XVII e XVIII, podemos afirmar que Nuno Júdice
estabelece um diálogo ainda mais intenso com a
produção artística do século XIX e XX, em especial no
que toca ao período finissecular. Escritores, escultores e
pintores, que produziram as suas obras tanto num século
como em outro são alvo da sua poesia. o Romantismo,
em primeiro lugar, e com especial saliência para o dos
artistas franceses e ingleses, foi uma influência decisiva,
de que já demos conta atrás com inúmeros exemplos,
especialmente no estilo de escrita dos seus primeiros
livros dos anos 70. o que nos propomos agora fazer é
analisar, relacionando com os princípios intertextuais que
formulámos, os poemas em que essa relação ou diálogo,
na linha de Bakhtine, se verifica.
Desta forma, vejamos desde logo os poemas que os
românticos ingleses são retomados, começando por

240
NA TEIA Do PoEMA

William Blake (1757-1827). o título do poema em que o


poeta de Songs of Experience é referido evidencia logo
um grau forte de intertextualidade que pretende
estabelecer, como que impondo, como forma de leitura
do seu poema, uma homenagem ao poeta inglês –
“Homenagem a Blake”260:

No tempo do excesso, aprende a pestilência.


Faz passar o desejo sobre os ossos e a eternidade.
o caminho da incapacidade conduz ao bordel.

Tigre, tigre, bramindo em Braille


Nas florestas da noite,
Que imortal mão ou ai
Pôs freio à tua terrível simetria?

Ó Rosa, insecto
que muge na cama
invisível, voa
a descoberto

sobre o vento
do amor que roeu
a púrpura secreta
da tua vida

Memória, virgem enterrada


na brisa, suspiro de orvalho
na melancolia do leste:
vem aqui! ardente
como um espelho de sol,
e desfecha o teu arco
no coração dos amantes.
____________________________
260
PR, 2000, p. 441

241
RICARDo MARQuES

um corvo branco
uma pomba negra,
um pavão sem cor
e um macaco sem rabo:

mistérios estéreis
no leite da criança
afogada no leito.

Esta homenagem de Júdice a Blake pauta-se por ir


traduzir passagens da sua poesia mais conhecida, bem
como de aforismos, mas num resultado final parodístico
que poderíamos denominar concretamente de “pastiche”
e que já temos vindo a assinalar em outros poemas, ainda
que forma indirecta261. Assim, e de modo exaustivo, a
primeira estrofe transforma “the road of excess leads to
the palace of wisdom” em “o caminho da incapacidade
conduz ao bordel”, a segunda estrofe traduz “Tyger!
Tyger! burning bright/ In the forests of the night/ What
immortal hand or eye/ Could frame thy fearful
symmetry?”, a terceira o poema “The sick rose”, a quarta
usa citações de “Memory, hither come” e a quinta alude
à parte final do poema “The Marriage of Heaven and
Hell”. Estamos então, mais do que um poema, um
exercício poética ou uma transducção, na acepção que já
vimos de Lubomil Dolezel, resultando numa amálgama
ou pastiche intertextual, que tem uma clara intenção
paródica e, paralelamente, encomiástica262.
______________________________________________
261
Cf. “A vida e a morte de Vasco Mouzinho da Silveira”,
poema de Júdice analisado no capítulo anterior.
262
o termo mais correcto deve ser mesmo “pastiche” porque,
como vimos, a diferença em relação à paródia é que esta tem uma
intenção crítica (Cf. Hutcheon, 1985 e Dentith, 1999, na bibliografia
final). o autor tem no início de uma pastiche intitulada “Rimbaud
Inverso” (e que constitui um livro inédito publicado no fim de Obra
Poética (1972-1985) ) uma epígrafe onde ironicamente diz “A
Pastiche é um pastis”, bebida francesa conhecida.

242
NA TEIA Do PoEMA

“Byron abandona o país”263 é novamente um poema


sobre um dos poetas românticos mais conhecidos.
Presente em Teoria Geral do Sentimento, constitui mais
um exemplo da forma como neste livro interessou ao
poema conjugar uma série de referências a poetas e
escritores que se relacionam directamente com uma
tentativa de aproximação ao fenómeno do Amor, e que
tentaram desenvolver esta temática.

Este poema, mais do que o retrato contextualizado


de Lord Byron a abandonar o seu país de origem, é
constituído por uma profunda (e alusiva) reflexão acerca
do seu próprio caminho enquanto pessoa e poeta desde o
nascimento até à sua morte, bem como, de uma forma
mais lata, sobre o paradigma e marco literário que foi o
Romantismo, com a figuração de outras personagens e
acontecimentos históricos importantes e coevos:
Desprezando a moral e os costumes de uma época inteira, partiu
para oriente, para os lugares onde secretamente os românticos
conspiravam. Amou a irmã. E muitas das suas cartas, depois que a
deixou, reflectem o desejo de voltar, isto é, uma inclinação
obscura para o passado do qual, no entanto, sempre se afastou.
Apontado como alguém a desprezar, sofrendo o ataque de todos
os espíritos virtuosos, nunca se importou com eles, e seguiu
o caminho que a si próprio apontou – a exaltação na condenação.

o retrato que temos aqui de Byron é de um


romântico no sentido mais literal do termo. Levou uma
vida de excessos, incluindo o incesto, por isso a sua
presença na Inglaterra do início do século XIX era
indesejável. Assim, o poema de Júdice começa com a sua
partida “para oriente”, seguindo o que muitos outros ro-

__________________________________________
263
PR, 2000, p. 915.

243
RICARDo MARQuES

mânticos faziam, na procura das raízes da antiguidade


clássica e do exotismo que não encontravam no seu país
de origem. Byron, no entanto, é visto no resto do poema
como um espírito continuamente insatisfeito, e um
amoroso inconstante:
Nada, no entanto, o satisfazia. E embora tivesse tido, atrás de
de si, a polícia de dois países, partiu para a grécia procurando
a excitação no combate, uma morte heróica, um largo espaço
por túmulo. Em veneza, no palácio mocenigo, foi amado por muitas
mulheres. outrora, perante o espanto indignado dos lordes
e das puritanas, defendeu o povo de londres, cuja miséria
lhe era revoltante. Nunca, como coleridge ou wordsworth, descreu
da revolução, ou sequer a atacou. E sentiu dolorosamente a queda
do império francês, a restauração do antigo regime, a violenta
derrota do povo e dos teóricos. Mais tarde partiu para oriente.
Preparou em itália uma conjuração contra os habsburgos – cuja
tirania se prolongava, combatida pelos carbonários e pelos mais
esclarecidos entre os trabalhadores. Tinha, no entanto, um ideal
aristocrático – e criticou um amigo, hobhouse, por se juntar
aos proletários. Sendo republicano, o seu estilo tinha o tom
sublime dos antigos discursos. E falava, nas noites de bebedeira,
para a multidão dos seus servos e amigos. Cansou-se, por fim,
de uma vida de certo modo inútil. Partiu para a grécia, onde
os massacres provocavam a repulsa da europa contra as tiranias.
Doente, ainda se imaginou lutando, em delírio. Não se sabe,
ao certo, onde foi enterrado. Talvez na vasta superfície da arcádia.
E sobre o seu túmulo ainda hoje o vento uiva, na solidão
desabrigada da planície, entre os arbustos estéreis e as oliveiras.

Chegados ao fim do poema de Júdice, constatamos


que o que o que ele fez foi uma descrição minuciosa de
vários factos da vida do poeta inglês que, efectivamente,
partiu para a Grécia e foi lutar ao lado dos gregos pela
independência face ao império turco, onde perdeu a sua
vida aos 36 anos. Assim, este poema acaba assim por ser
uma amálgama das várias lutas que travou em vida, onde
desfilam algumas das personagens com que se antago-
nizou (Hobhouse, por exemplo) ou que apoiou. Por
último, as circunstâncias da sua morte (mais do que da
sua vida de excessos) aliás, ajudaram muito à sua

244
NA TEIA Do PoEMA

mitificação posterior que, como se vê pelos últimos


versos deste poema, ainda hoje não se sabe onde ocorreu,
onde repousa o seu corpo, “talvez na vasta superfície da
arcádia”. os dois versos finais corroboram esta ideia,
com a identificação do possível local do seu túmulo com
uma paisagem tipicamente romântica (locus horrendus),
igualmente conotada com a solidão, quem sabe o único
elemento constante da vida de Byron.
Em “Relendo Shelley”264, outro poema que vem
reforçar o diálogo que a poesia judiciana estabelece com
os poetas do Romantismo inglês, também o título é
bastante revelador, a priori, da atitude tomada no
desenvolvimento do assunto do poema. o primeiro verso
é ainda mais específico no que toca a aludir ao intertexto
que é convocado, Ode to the West Wind:
Na “ode ao vento leste”, Shelley desejaria ser
como uma folha humana, arrastada pelos ares, por entre
as aves e a chuva que o outono mistura quando o
seu cinzento invade os céus, e nos lembra que a natureza
se assemelha a nós, no seu destino mortal. Porém,
tal como morre, renasce; e esta diferença atinge-nos
quando, na primavera seguinte, nos apercebemos
de que o tempo tingiu com a sua tristeza o ânimo
que devia cantar com a água das fontes, ou
reverdecer como os ramos secos. Em vão olhamos
para os campos, à nossa volta, esperando que
a sua luz nos empurre para dentro da vida. Mas a secura
invernal prolonga-se na alma; e um frio continua
a soprar de leste, como esse vento antigo que Shelley
cantou. E vejo estas coisas acontecer como
o resultado natural do tempo. De um lado, nada muda,
___________________________________________
264
As Coisas Mais Simples, 2006, pp. 85-86. Percy Bysshe
Shelley será alvo de mais um poema, longo e que por isso não
analisaremos, intitulado “um estudo campestre”, que começa com
uma citação de dois versos deste autor (“The secret Strenght of
things/which governs thought”) de um poema sobre o Monte Branco,
“Mont Blanc: Lines written in the Vale of Chamouni”.(Cf. O Estado
dos Campos, 2002, pp. 114-118.).

245
RICARDo MARQuES

como as águas do lago que nenhuma onda agita,


ou os olhos que reflectem o breve azul do meio dia;
do outro lado, os dias e as estações não cessam
o percurso que temos de acompanhar, subindo
as escadas que nos parecem sem fim. E suspendo
a respiração, ouvindo um sopro que me acompanha:
poema, ou murmúrio de quem? E é como se me
acompanhasses, de novo, e não estivesse ainda longe
essa primavera de que a tua ausência me afasta.

o poema de Júdice vai ser uma reflexão acerca da


passagem do tempo e a presença inexorável e fatal da
morte, que apenas as lembranças de um passado menos
disfórico parcialmente subtrai.
o elemento “ar”, a que no poema se alude com o
“vento” dos poemas de Shelley, funciona aqui como
elemento-chave dessa ideia, simultaneamente catalisador
do tempo e sinédoque da sua própria passagem. Se
Shelley, segundo a releitura de Júdice, tenta assemelhar
a natureza ao ser humano, com a metáfora da “folha” que
o vento arrasta, Júdice rebate esta comparação com a
evidência de que, ao contrário da natureza que se renova
sempre com o ciclo das estações, o ser humano não morre
e renasce logo a seguir. Assim, “a secura/ invernal
prolonga-se na alma; e um frio continua/ a soprar de
leste”, situação metafórica para a chegada da velhice, que
o sujeito poético vê como “o resultado natural do tempo”.
o ser humano, presente na natureza que sempre muda e
nunca morre, faz uma espera muda pela morte (“como as
águas do lago que nenhuma onda agita”, “subindo as
escadas que nos parecem sem fim”). A única forma de
colmatar ou atenuar esta pressão sobre o ser humano
reside então na memória e nas lembranças, ouvindo-se
ténue como um sopro (“poema ou murmúrio de quem?”),
fazendo com que a juventude em que o ser amoroso ainda
acompanhava o sujeito poético ainda estivesse a ser
vivida nesse momento final da sua vida (“essa primavera
de que a tua ausência me afasta”).

246
NA TEIA Do PoEMA

Gerard Manley Hopkins (1844-89), um dos poetas


postumamente mais importantes do modernismo inglês,
tem um poema sobre a santa Margaret Clitherow,
posteriormente oficializada mártir da Igreja Católica.
“So/ To the death with Margaret Clitheroe”, por seu
turno, é um poema judiciano cujo título é a citação directa
de dois versos do poema de Hopkins:

Com lágrimas e rosas, Margaret Clitheroe


sai do poema de Hopkins. Não segue o conselho
que a manda ficar em cada estrofe
de mãos postas, como quem reza: e
os seus lábios não murmuram lamentos
nem ladainhas. Estão secos; estão
mortos. Margaret nem o seu nome já pode
dizer.

Ninguém sabe onde está Margaret


Clitheroe, a não ser que está neste poema
de Hopkins. Porque teria o seu nome
de ficar aí, se ela há muito deixou a terra
das palavras, a água dos versos, o vento
das rimas? Mas um eco se arrasta, como
um choro inerte, nesse nome que
se repete quando Hopkins escreve Margaret
Clitheroe.

Talvez seja só este som que se tornou


imortal; nem a mulher, cujo corpo não tem
dedos nem olhos, nem as raízes que dele
se alimentaram, respondem por uma vida
de que não se sabem os limites. Mas
a figura nasce, de novo, sempre que
vejo, no fim da estrofe, o nome de
Margaret Clitheroe.

Pode ser que de tudo isto sobre apenas


o naufrágio do Deus que ela quis
servir. Hopkins, uma noite, procurando assunto,
mais não fez do que apressar o caminho
que a levou à morte. Morreu na intenção
de obedecer ao destino desse Deus; e morre
nos lábios que, sem o saber, a matam
de cada vez que uma boca reza por
Margaret Clitheroe.

247
RICARDo MARQuES

Este poema vai-se centrar no interesse de Hopkins,


padre anglicano que procurava inspiração em temas e
figuras da Igreja Católica para os seus poemas, em
resgatar a figura da mártir que ficou conhecida por “Pearl
of York”. Assim, Júdice começa por dizer que, mais do
que querer retratá-la e à sua morte no seu poema,
Margaret “sai do poema de Hopkins” porque ganha nova
vida e assim se eterniza com estes versos (“Ninguém sabe
onde está Margaret/ Clitheroe, a não ser que está neste
poema”). Todas as estrofes do poema de Júdice vão,
assim, remeter para o universo do seu brutal assassinato,
seguindo uma estrutura paralela, nomeadamente no que
toca ao fim, que acaba sempre com o nome da mártir.
Pelo caminho, são diversas as passagens que carac-
terizam esta mulher, sobretudo no que se refere à sua
arreigada fé, que lhe custou a sua morte (veja-se a última
estrofe para dois exemplos).
“W.B. Yeats in Rapallo”265, como o nome indica, é
um poema sobre a estadia do poeta irlandês naquela
comuna italiana da província genovesa, pouco antes da
sua morte, onde publicou dois dos últimos volumes, The
Black Tower (1928) e The Winding Stair (1932):
A janela fechada não exala barulho. uma luz estranha
atravessa o ar. ouço-me, de súbito, contra um fundo de
ruídos diversos. os objectos saem do quotidiano torpor,
e uma voz surge enquanto a luz, matinal, parece lembrar
que nada é como antes foi.
E se resolvo sair da cadeira, onde estou
e escrevo, para me aproximar da fugaz precipitação
luminosa, já esse gesto me afasta em direcção
ao movimento da vida. Encontro o que é presente,
e me implica, até por fim voltar as costas
ao raciocínio e à própria poesia. o que antes foi,

___________________________________________
265
PR, 2000, p. 50.

248
NA TEIA Do PoEMA

e se perde na descida para o instante agora vivido,


é, porém, o que me atrai e dispersa.
Por quanto tempo ficarei ainda no turvo charco
da memória?
(Mas o seu objectivo era descobrir
estados de espírito imortais nos desejos mortais,
uma esperança imperecível nas nossas ambições
fúteis…).

Júdice parece fazer de Yeats o sujeito poético deste


poema, que assume assim a voz narrativa até aos últimos
quatro versos do poema, em que essa voz muda. Naquilo
que constitui uma auto-reflexão poetizada de Yeats
elaborada pelo poeta português, assistimos, no poema, a
uma espécie de acerto de contas do poeta consigo
próprio, num balanço final da vida. Sacudido por uma
“luz estranha que atravessa o ar” e por uma voz que
entretanto surge, Yeats levanta-se da sua cadeira e
ingressa no mundo das lembranças, no “turvo charco da
memória”, de que não sabe, interroga-se, quando sairá.
Como leitores do poema judiciano, e do nosso ponto de
vista de espectadores omniscientes, somos assim postos
na cabeça de Yeats a lembrar-se de algo para um poema.
Nos últimos quatro versos do poema, a intervenção
parece ser do próprio escritor que o escreveu, que adopta
assim uma atitude hermenêutico-reflexiva relativamente
às palavras de Yeats ( e, de certa forma, apontando para
o “mise en abyme” de que já falamos266) que acaba de
escrever, num movimento de estranhamento e distan-
ciamento do próprio texto. Este comentário final vai no
sentido de interpretar aquilo que Yeats fez ao longo da
sua vida, com a escrita da sua poesia – a de ir ao passado
na busca do que é eterno nos estados de espírito, e encon-
trar algo de válido nas futilidades que ambicionamos.
______________________
266
Lucien Dallenbach, “Intertexto e Autotexto”, 1979. (Cf.
bibliografia final).

249
RICARDo MARQuES

“Casa Guidi Windows” é, simultaneamente, o título


de poema de Nuno Júdice e de um poema em duas partes,
de 1851, de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861)
inspirado nas lutas independentistas da Toscânia de então.
Tem este título porque foi das janelas da Casa Guidi, onde
habitava com o poeta Robert Browning, que Elizabeth
Browning testemunhou ocularmente os acontecimentos
que pautaram esta sublevação da província italiana. o
poema é uma longa narrativa começada in media res, não
só pelo estilo empregue por Júdice, como igualmente pela
mancha gráfica. Semanticamente não há grandes
parcenças com o poema de Elizabeth Browning:
«Sei agora que devo morrer». E, acrescentando algumas
palavras inconvenientes, saiu da sala. Elize deitou-se no chão,
esperando que R. o. a pisasse, o que este fez durante algum tempo,
e marcando-lhe as costas e o peito. Mas Elize não reagiu, antes
suspirou, por vezes, deixando adivinhar um insólito prazer na
prolongada tortura. ouviu-se então um tiro. Correram ao quarto de
Alma, que jazia por terra com uma poça de sangue a escorrer da
cabeça e da garganta. Elize beijou-a nos lábios e nos seios, bebendo
o sangue. R.o., sem se mover, assistia a esses preparativos de morte.
«Comê-la-emos», disse Elize. Levaram-na para a cozinha, onde a
cortaram aos bocados, depois de Elize ter beijado demoradamente
todas as partes do corpo de Alma. «Não achas estranho que uma
mulher se mate com um tiro?» perguntar-me-ia R.o. mais tarde. «A
sua carne sabia a um fruto divino». Não lhe ouvi mais nada sobre
Alma, nem sobre os insólitos destino e morte de Elize. ouvi dizer
que ela se refugiara no litoral, onde vendeu o corpo às passageiras
tripulações de fétidos cargueiros. A doença consumiu-a, até ao estado
em que a vi nas imediações do velho mercado de escravos. os
farrapos que lhe cobriam o corpo deixavam adivinhar um antigo
esplendor, e os descontrolados movimentos da cabeça e dos
membros não me impediram de notar o belíssimo brilho dos seus
olhos. Pagámos-lhe um copo de aguardente, na taberna do cais, e
enquanto a insultávamos e lhe mexíamos nos seios, ela murmurava
incoerentes maldições com voz rouca. Ao trazê-la para o ar livre,
devolvendo-lhe espaço e a mobilidade, reparei nos seus braços, que
tanto amei, devorados pela infecção. Nessa noite bebi a água fétida
dos esgotos, e contei esta história aos sinistros habitantes do lodo.

250
NA TEIA Do PoEMA

Também Paul-Jean Toulet (1867-1920), poeta


francês que se distinguiu pelas suas Les Contrerimes,
obra reunida postumamente mas que o autor foi
publicando em diversos locais ao longo da vida, se filia
na lista de autores convocados pela poesia de Nuno
Júdice. o poema judiciano em questão não adianta nada
ao original, constituindo sim uma tradução de uma
daquelas composições poéticas, “A 1ª das contrarimas de
Toulet”267:
Abril, cujo odor dá ensejo
Ao renascente prazer
Tu revelas do meu desejo
o secreto parecer.

Ah, derrama o mito a Mirtilo,


A íris a Desdémona:
De uma rosa anémona
Se me abre o negro pistilo.

Tanto o poema de Toulet como o de Júdice são duas


contrarimas perfeitas268. De um modo geral, este poema
coaduna-se com a tendência erotizante de grande parte
da poesia de Júdice, aludindo neste “negro pistilo de uma
rosa anémona” uma comparação da corola da flor com a
vulva da mulher. o mesmo se passa com o poema
seguinte, do escritor britânico D. H. Lawrence.
___________________________________________
267
PR, 2000, p. 247. o original em francês: “Avril, dont l’odeur
nous augure / Le renaissant plaisir,/ Tu découvres de mon désir/ La
secrète figure.//Ah, verse le myrte à Myrtil,/L’iris à Desdémone:/
Pour moi d’une rose anémone/S’ouvre le noir pistil.” (in <
http://www.florilege.free.fr/toulet/les_contrerimes.html#1 > Acedido
em Fevereiro de 2009).
268
Isto porque, nas duas estrofes, há a presença de uma rima
certa (cruzada na primeira estrofe, interpolada e emparelhada na
segunda), bem como de uma métrica alternada (8-6-8-6), dando ao
poema uma sensação de balanço e de simetria.

251
RICARDo MARQuES

D. H. Lawrence (1885–1930) é um outro escritor e


poeta que acaba convocado para a teia intertextual de
Júdice num dos livros mais recentes. Poeta polémico que
abordou questões que causaram celeuma nos meios
literários do início do século XX, é actualizado por Júdice
através da selecção de um poema em particular, “The
Figs”. o poema judiciano tem, precisamente, esse título
– “os figos de D. H. Lawrence”, mas a sua relação com
o texto de partida é apenas de alusão, uma vez que os
caminhos por que segue o texto de chegada (o poema
judiciano) não vão tentar citar ipsis verbis o poema de
Lawrence, apenas desenvolvê-lo nas suas partes
temáticas mais importantes. Assim, o poeta português
começa por tratar hermeneuticamente um aspecto do
mesmo, que é convocado e tratado pessoalmente por
Júdice em outro sentido:
Lawrence aconselhou a que se partisse um figo
em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora
a casca.269 Deste modo, pensava ele, a sociedade não veria
com maus olhos o gesto de cortar o figo, e de o
saborear lentamente, como quem lê um poema. Mas
nem todos os figos se podem comer desta maneira; e,
no caso dos figos verdes, o melhor é tirar-lhes a pele a
partir de cima, sem que ela se desprenda completamente
do fruto; e só depois de comer a parte de cima, é que
chegará o momento em que só vai ficar um pouco de figo
a segurar a casca. Nessa altura, pode-se arrancá-la, e acabar
de comer o que sobra, para que a refeição fique completa.

____________________________________________

269
No original de Lawrence, lê-se o seguinte: “The proper way
to eat a fig, in society,/ Is to split it in four, holding it by the stump,
And open it, so that it is a glittering, rosy, moist, honied, heavy-
-petalled four-petalled flower. // Then you throw away the skin/
Which is just like a four-sepalled calyx /After you have taken off the
blossom with your lips.”

252
NA TEIA Do PoEMA

Num primeiro momento do poema, Júdice parece


então fazer um comentário que tem por base uma relação
estreita com o texto de Lawrence, acabando por parodiá-
-lo, incutindo ainda um cunho pessoal, ao comparar a
forma lenta de comer um figo ao acto de saborear um
poema. os versos seguintes vão então desenvolver esta
ideia de uma forma literal, mas com uma leitura que pode
ser conotativa (em que os figos verdes se equivalem a
uma poesia que ainda não está madura). o poema
prossegue então com uma variação sobre a árvore de
onde vêm os figos:
De facto, Lawrence também admite esta solução (e
aceita que se coma também a casca); mas teremos
de ir mais longe do que ele, o que significa
que se deve também pensar na figueira. E se, ao comermos
o figo, a árvore nos agarra a alma com os seus ramos
ásperos, obrigando-nos a afastar as folhas para ver como
é que se pode fugir debaixo dela, o sabor que fica na boca
lembra a imagem da mulher primitiva, com o seu ventre redondo
como o dos figos de S. João, os primeiros, que se colhem
com um gesto só, ficando inteiros na mão. Então, a mão
torna-se um prolongamento da figueira, e começo a pensar
que talvez possam nascer folhas de figueira nos braços,
como se estes fossem ramos, e que essas folhas servirão para
tapar os figos que irei colher, mantendo a sua frescura.

Em alternativa, poderei transformar o tronco da figueira


num corpo de mulher nua; e essas folhas irão vesti-la. Mas o figo
que tenho na mão far-me-á sentir os seus seios macios, fazendo
com que, ao tirar a casca do figo, a mulher saia de dentro dele,
e eu possa chegar à mesma conclusão de Lawrence sobre
as múltiplas formas de comer um figo.

Júdice cria duas imagens relacionadas com o acto de


colher e comer o figo que, no fundo, se complementam
no significado que pretendem transmitir. A imagem do
prolongamento da árvore no ser humano que colhe os
figos, numa espécie de metamorfose vegetal deste último,
de junção ao elemento de onde provêm os figos e, em

253
RICARDo MARQuES

segundo lugar, a transformação do tronco desta árvore no


corpo da mulher nua, de forma a que esta mão que colhe
o fruto vá sentir várias partes daquele corpo.
Como se comprova pela leitura deste poema, a
conotação dos figos e da sua ingestão é de uma alusão
erótica muito forte, tendo uma sugestão sexual sub-reptí-
cia, tal como no poema de D. H. Lawrence nos é dito.
Júdice vai, em suma, glosar este aspecto da simbologia
daquele fruto, ao mesmo tempo que dialoga com o poeta
inglês.
Delmira Agustini foi uma poetisa uruguaia finis-
secular (1886-1914) cuja poesia, de laivos simbolistas,
se pauta por ser eminentemente amorosa e até erotizante.
o poema que Júdice lhe dedica (“D.A.”270) vai funcionar
como uma espécie de homenagem, começando por
glosar, ao mesmo tempo, um dos muitos poemas dela
(“Hacia la primavera”) e partindo daí para uma reflexão
sobre a sua pessoa. De notar, em primeiro lugar, a
epígrafe, da autoria da poetisa, que em tudo se relaciona
com o conteúdo do poema (“ A forma é um pretexto, a
alma tudo!”):
Cantou a iniciação da ave, o voo
que incendiou uma primavera vibrante,
as torres prateadas de um castelo
febril. Mas não acabou o poema: como
se a voz desmaiasse no limiar
da frase; ou o poema celebrasse, apenas,
a transmutação do riso em choro.

Prendeu às páginas em branco a rosa


amarela. Viu as duas pétalas de ouro caírem,
numa volúpia de outono e murcharem
na melancolia da sombra. Beijou
perfis inacessíveis; arrancou as raízes
sonâmbulas de um desejo de treva; e
bebeu a luz dos cimos, a água negra
de um pântano celeste.
____________________________
270
PR, 2000, p. 659.

254
NA TEIA Do PoEMA

Como dizer-lhe que a amo? Que


as minhas palavras respiram nos seus lábios
fechados? Que um vento sublime acalmou
no crepúsculo do seu peito?

o sentimento é aquilo que de mais importante assiste


a poética desta autora, como se comprova uma vez mais
pela epígrafe, que defende, à maneira de Platão, a
submissão do corpo à alma. Estruturalmente, o poema
divide-se em dois momentos: um correspondente às duas
primeiras estrofes, em que é então efectuada esta carac-
terização da escritora por parte de um dado sujeito
poético, a que se segue uma terceira e última estrofe onde
o mesmo sujeito poético assume uma reverência à
escritora, demonstrada através de várias interrogações
retóricas. A ideia da morte, no entanto, vai ser entendida
(visto a autora ter morrido muito nova) como corte
abrupto da sua voz, levando a que “não acabasse o
poema”. Tal impedimento não foi suficiente para que o
sujeito poético não continuasse a amá-la apesar do “vento
sublime ter acalmado/ no crepúsculo do seu peito”. Há
assim uma dupla leitura desta estrofe final; não só
podemos ver aqui a passagem de testemunho, a conti-
nuidade da alma de escritora na reverência de um escrito,
como igualmente, de uma forma mais literal, declaração
de amor à maneira de Delmira Agustini, exacerbada e
sentimental, de uma vida terminada subitamente (fazendo
lembrar o tom arrebatado de uma poetisa do seu tempo,
e igualmente cara a Nuno Júdice, Florbela Espanca).
Leopoldo Lugones (1874-1938), poeta coevo de
Delmira Agustini e da mesma nacionalidade é objecto de
um poema de Nuno Júdice. Este intitula-se “Lugones” e
está presente no livro Meditação sobre Ruínas:

255
RICARDo MARQuES

Só a poesia inspira a poesia,


como in vino veritas;
se a metáfora varia
as imagens são pretéritas.

o poeta ilude a hora,


o dicionário fica inconcluso.
Mas tudo o que se ignora
deixa o homem confuso.

Celebrava os pombais
que lhe nasciam do peito,
tão fortes como os ais
que o tornavam suspeito.

“Farol glacial do inverno”271,


neste poema em que o meto
quis fugir do inferno
com um copo de cianeto.

Júdice começa por referir-se a uma situação geral,


defendendo, nas duas primeiras estrofes, várias ideias que
dizem respeito ao domínio da arte poética. De um modo
geral, argumenta-se com a expressão latina “in vino
veritas” que a razão primeira da poesia só pode radicar
nela mesma, e que é questionamento pessoal do homem
que pode levar até ela. Desta forma, mais do que um
poema sobre este poeta, a composição vai mostrar
Lugones a servir de paradigma a esta teorização, que
atinge um ponto máximo quando o sujeito poético
confessa, na última estrofe, “ neste poema em que o
meto”, após uma caracterização do escritor com um verso
do próprio – “Farol Glacial de inverno”, do poema “El Sol
_______________________
271
Farol glacial del invierno:/ cuando se paralice toda savia,/
y muera como un tigre el sol eterno,/ y temple el cierzo formidable
la gavia,/ y petrifique el boreal infierno/ en suplicio de mármol toda
la Escandinavia,/ tu ojo de pez antediluviano /coagulará en su
influjo maligno / la desolada extensión, en signo / de esplendor
soberano. Do poema “El Sol de Medianoche”.

256
NA TEIA Do PoEMA

de Medianoche”. os dois últimos versos vão remeter para


a morte do escritor, que terminou abruptamente por mão
própria, cansado que estava do “inferno” da vida.
uma referência importante para Nuno Júdice é a
imagem, como tivemos oportunidade de verificar pelas
suas próprias palavras, e em quase todos os poemas que
analisámos. No poema “uma caravela para Lezama
Lima”, é estabelecida uma alegoria de imagens fortes
para metaforicamente tentar descrever os últimos anos da
vida deste poeta, numa alusão clara ao pressuposto
retórico preferido deste autor cubano272:
A sua alma não era um cinzeiro. Apagava
as beatas em corais de esperma. Lavava os dentes
com o musgo das soluções crepusculares. Nunca
deixou de beber: até ao fim, quando a própria terra
vomitava os lagos na estagnação do outono. o seu cansaço
atravessava as nuvens grávidas com um sobressalto
de parto, arrancando-lhes o sangue de um soluço
virgem. Mas não chegava a sair da cadeira de balouço
do horizonte. Puxava as persianas da noite,
deixando o oceano às escuras, e ouvia o seu rugido
de ondas sonâmbulas.
Sabia que nenhum barco o levaria para parte
alguma. Fugia dos limites de si próprio, escondia-se
do fogo dos espelhos. As florestas formais da origem
inchavam com as chuvas da tarde; depois, um gotejar
de água inundava os ouvidos da terra. As grandes folhas
de metal verde e púrpura rasgavam a transparência
da noite, empurrando os corcéis enlouquecidos
para uma alucinação de falésias. A respiração fria
dos caules impedia um êxtase de marinheiros
loucos. um relâmpago de girassóis incendiava a moldura
dos lupanares, enfurecendo os enxames roxos do inverno.
Vou ao seu encontro por um caminho
de pinheiros. A linha direita das copas transforma-se
num sulco de cobra com a luz tropical. Arrancamos
os versos até à raiz, enchemos de estrofes as covas do vento.
_______________________
272
Foi o autor que disse, numa entrevista a Armando Alvarez
Bravo, que “a imagem é a realidade do mundo invisível” (vd.
Bibliografia final).

257
RICARDo MARQuES

A caravela deste poema surge como eufemismo para


o próprio poema enquanto coisa, como uma oferenda de
Júdice para o poeta cubano. Neste sentido, parece trans-
parecer no poema uma fusão poética da vida final do
autor visado com a poesia que escrevia, em que os
elementos biográficos parecem ser igualmente indica-
tivos desta fase final que o poeta português tenta retratar.
Veja-se expressões como “[…] não chegava a sair da
cadeira de balouço do horizonte”, “o seu cansaço”,
“nunca deixou de beber”, entre outras.
Na parte final do poema, mais concretamente nos
dois últimos versos, assistimos à junção dos dois poetas
para o encontro final, onde a oferenda é finalmente
concedida (e o poema concluído). A caravela, para pegar
na imagem judiciana do poema, pode finalmente partir:
“Arrancamos/ os versos até à raiz, enchemos de estrofes
as covas do vento”.
James Joyce é um outro autor a que Júdice faz
referência, escrevendo “uma página” sobre uma das suas
obras fundamentais, ela própria uma relação intertextual
com um dos mitos clássicos mais conhecidos, “ulisses,
uma página”:
Tendo escrito as palavras que, pensava ele,
seriam as últimas palavras, voltou ao princípio
do poema; e assim, se obrigou a continuar até
ao fim da estrofe, sem interrupção. A gramática
forçava-o a seguir as regras antigas, o espírito
não conseguiu fugir à contingência da forma – e,
prendendo-o à matéria verbal do poema, libertou-o
do pensamento, da abstracção, da própria ideia
que o conduzia – navegador do sublime. Mas
não fora isso que sonhou, um dia, quando se apercebeu de
que a linguagem poderia exprimir a sua pertur-
bação; nem encontrou outros modos de traduzir
a dúvida que, agora, o impedia de classificar
como “poético” ou “lírico” aquilo que escrevia.
“o canto não me satisfaz, procuro a totalidade.”

258
NA TEIA Do PoEMA

No entanto, essa voz não era a sua. Nela, ouvia


o eco que a humidade abafa, no outono; e o grito
longínquo de uma ave inquieta; e o murmúrio
de lábios que repetem o mandamento incompleto:
“deus…quem é deus?” Ele, se o soubesse, ocuparia
o vazio dessa voz. Nenhuma certeza substitui a
convicção do nada; nenhuma ressaca embranquece
os cabelos da madrugada. “Acreditai no ritmo”,
disse, como se alguém o ouvisse. A morte é uma
mulher nua entre as estátuas do parque; uma
mulher nua a cavalo numa máquina de escrever;
o sexo das algas que a maré descobre,
entre as últimas palavras do poema e do corpo,
que as ouve, amarrado ao mastro do verso.

Como se sabe, Ulisses é uma das obras incon-


tornáveis da literatura mundial, que Joyce escreveu numa
actualização da obra de Homero, trazendo a viagem de
ulisses para a Dublin dos anos 20 do século XX. o que
aqui nos é descrito por Júdice, em vez de uma página do
próprio romance, é uma página da escrita deste mesmo
livro, onde o sujeito poético, ao que tudo aponta, parece
ser a do próprio James Joyce. uma das características da
escrita do escritor irlandês, e que aqui é confirmada, é o
seu estilo torrencial, em que, ao correr do pensamento e
pondo em evidência todos os elementos do quotidiano
que os romances da época não faziam (naquilo que mais
tarde foi denominado adequadamente de stream of
consciousness), parece nunca terminar a escrita do livro
que já começara há algum tempo (veja-se os primeiros
nove versos). Assim, Joyce é visto assim como
“navegador do sublime”, isto é, um escritor que tenta
atingir a perfeição na escrita do seu romance, não
querendo qualquer classificação para ele (vv. 14-15 –
“[…] classificar como poético ou lírico aquilo que
escrevia./ o canto não me satisfaz, procuro a totalidade”).
Júdice assemelha esta mesma procura do Ideal com a sua
procura de se substituir a Deus. Assim, de todas as

259
RICARDo MARQuES

caracterítiscas mais importantes em literatura, aquela que


é entrevista como primordial parece ser o ritmo –
“acreditai no ritmo”, diz-nos, como aliás a obra que
deixou o comprova em diversas passagens. A imagem
marítima final funde o corpo do texto (metafísico) com
o próprio corpo da mulher amada (físico) numa fusão que
demonstra aquilo que, para Júdice, teria sido a própria
concepção de escrita para Joyce, nomeadamente a escrita
enquanto êxtase e prazer, no sentido de jouissance que
Barthes formulou em Le Plaisir du texte.
Antonio Machado foi outro dos escritores espanhóis
com que Nuno Júdice pretendeu estabelecer um diálogo,
com a escrita do poema “Hesitação”273. Como vemos nos
versos iniciais, o poeta português parece aludir aos anos
que o poeta andaluz passou em Segóvia, cidade do norte
de Espanha (1919-1932), naquilo que pode ter surgido de
uma das muitas viagens que o poeta encetou por diversos
locais da Europa:
No quarto de António Machado,
em Segóvia, há uma cama de ferro
e uma árvore detrás do vidro; há
uma cantiga debaixo da cama
e um choro dentro do caule; há
um rio ao longo do travesseiro
e um descampado de lençóis.

Nesse quarto, contando de um


a mil, com a tabuada dos dez,
contam-se os ventos que sopram
da serra; e se os ventos trazem a
chuva, conhece cada gota que bate
nos vidros, antes de nos trazer
aos ouvidos um choro por ninguém.

__________________________________________
273
Cartografia das Emoções, 2001, p. 83.

260
NA TEIA Do PoEMA

E se a cama está aberta, não é


porque alguém ali se deite. Que
sombras dormem naquela cama,
plantando segredos que a noite
esconde? Elas puxam, por vezes,
os cobertores da estrofe, abrigando-se
de visitas e comentários, hirtas flores.
Desfaço então a retórica da casa;
abro as janelas, puxo as cortinas
do verso, espreito, por entre as folhas,
ramos e frutos. E se Antonio Machado
me chama, de dentro, outras vozes
me chamam da rua; conto-as, uma contra
as outras, e não sei por onde ir.

Nuno Júdice estabelece em “o Gato e a Princesa”274


uma narrativa poética imaginada sobre o poeta Rainer
Maria Rilke, composta acerca da altura em que este poeta
universal escrevia, em Duíno, uma das suas obras mais
importantes, as Elegias de Duíno:
o gato de rilke saltava-lhe para o colo nas tardes
de inverno, em duíno, enquanto ele escrevia
as elegias. Miava, como um anjo, e rilke traduzia
essa música em estrofes que, depois, recitava,
de janela aberta para o mar. A princesa de thurn e taxis,
então, chamava o gato; mas ele não ligava à dona,
e preferia saltar para o armário, onde ninguém
o ia apanhar. rilke constipava-se; mas as elegias nada
contam do que se passava nessas tardes de duíno,
nem os incidentes domésticos, nem os problemas de
saúde. Têm, apenas, uma influência do gato: o seu
dorso negro, e os miados que dava, enquanto rilke
escrevia. um gato pode, com efeito, inspirar poemas
de fôlego, como esses de duíno. É verdade que o
castelo já não existe; e que o vento já não entra
pela janela em que rilke se constipou. De resto, não
sei se é possível, ainda, alguém recitar poemas por
uma janela aberta, para cima do mar que tem a cor
da tempestade. os deuses não moram, hoje, em nenhum,
céu; nem os anjos gritam por intermédio de um gato. A
razão, a lógica, o interesse, eis os motores do
quotidiano; e a única coisa que um gato pode fazer,
___________________________
274
Ibidem, p. 82.

261
RICARDo MARQuES

então, é passear no meio deles, de cauda encolhida,


sem nenhuma princesa de thurn e taxis a enxotá-lo,
de cima do armário, para não distrair o poeta.

A história que Júdice constrói aqui baseia-se em


factos e personagens reais, num jogo com a realidade que
é própria da ficcionalização que sempre acontece na
literatura, seja ela prosa ou poesia, e que acontece em
muitos poemas do poeta português. Por outras palavras,
nada nos garante até que ponto, efectivamente, Rilke tinha
uma relação tão forte com este gato. Para a posterioridade,
Rilke fez um poema intitulado “Gato Preto”, em que
descreve por meio de uma metaforização terna e, de certa
forma, animista, a relação que tinha com um gato preto
que não sabemos ser este. outra personagem real deste
poema foi a patrona de Rilke, a princesa de Thurn e Taxis
do título do poema, a quem Os Cadernos de Malte
Laudrigs Brigge foram depois dedicados e no castelo de
quem o poeta compôs as suas famosas elegias.
A figura central do poema, porém, é certamente o gato
preto. Júdice atribui-lhe a inspiração principal da
musicalidade dos versos “de fôlego” que Rilke escrevia
enquanto este lhe saltava para o colo, traduzindo assim
uma música que lhe vinha dos deuses, do céu. os anjos,
figura especialmente importante na poesia de Rilke e em
particular destas elegias, aparecem assim naturalmente
como metáfora celeste de uma realidade espiritual superior,
entrando por uma janela através da qual se imagina Rilke
a recitar os versos recém-compostos e a constipar-se.275 A
___________________________________________
275
os anjos, como dizemos na introdução a este poeta, são uma
figura constante na poesia de Nuno Júdice. em outro poema,
“Fragmento Teológico”, tem o autor um desenvolvimento do que
para ele são os anjos – “ o que é um anjo? uma forma do deus cuja
imagem/ me é inacessível?/ o reflexo da alma no espelho celeste/
da natureza? ou a pura luz de um olhar humano/ a quem foi dada a
visão do infinito? Figura do voo/ no instante vago da eternidade […
]”(PR, 2000, p. 303).

262
NA TEIA Do PoEMA

parte final do poema vem assim actualizar aquele mo-


mento no presente, ao dizer-se, entre outras coisas, que o
castelo entretanto desapareceu, o que efectivamente
aconteceu com o seu bombardeamento durante a primeira
grande guerra. os últimos versos do poema, irónicos, vêm
assim mostrar que o mundo em transformação que aquelas
elegias profetizavam já não é realmente o mesmo mundo
do início de século de Rilke, e tudo o que é espiritual está
esquecido ou renegado para segundo plano, como o
passear do gato por cima “da razão, da lógica e do
interesse” é acção denotativa.
Em outro poema parece Júdice estabelecer uma
ligação intertextual, ainda que mais indirecta, para com
este mesmo autor. Desta feita, é sobre o 16º Soneto a
orfeu, escrito em 1922 por Rilke. o título do poema
anuncia que será um “Comentário ao 16º Soneto a
orfeu”:
Sabes a que me refiro? Recebi a intuição
da metamorfose com um sentimento tardio de tédio;
e no entanto não deixei de escrever com as
palavras precisas que me indicaste, alterando embora a sua
ordem. Assim, tudo seguiu o curso mágico de um mundo
interior que se conhece na revelação última. E,
aceitando a libação dos mortos que precede a inesperada
imagem, impregnei-me do espírito matinal – a
ressureição, a música de um Todo que entra pelos ouvidos
da alma – as janelas abertas da emoção – e desenha
os traços da antiga serva. Ela, que a primavera levou
para o coração da terra, assustou-se com a eternidade,
recuou ligeiramente, empalidecendo, e evitou os braços
que a agarravam. Poderia eu segui-la? E trazê-la, devagar,
pelo secreto caminho da treva? Esvaziei, de um trago,
o copo da aguardente – e esqueci até o seu próprio
nome: sem reparar que esse rosto – os lábios brancos,
o silêncio do sorriso, a esquiva hesitação do olhar – se me
imprimira na memória para uma futura colheita
de estrofes.

263
RICARDo MARQuES

os Sonetos a Orfeu são a última obra de Rilke,


sendo vistos tradicionalmente pela crítica como um
complemento da penúltima e mais conhecida, Elegias de
Duíno276. Esta complementaridade, especialmente no que
diz respeito à forma dos poemas que os compõem, de
ambos os livros passa igualmente pelo facto de ambos
terem tempos distintos de execução. Enquanto a última
levou uma década a ser concluída, já a primeira demorou
apenas vinte dias, num rasgo epifânico. Tematicamente,
estes sonetos têm como objecto a passagem do tempo
pelas coisas, perante o olhar do ser humano, que também
sente em si esta passagem. Estes sonetos são assim a
celebração da poesia, daí a presença de orfeu com o seu
canto, da palavra poética que isto constata, e que é a única
válida missão do homem na terra e que é a sua forma de
amor fechado em si, intransitivo, perante todas as coisas.
o 16º soneto deste volume, que Júdice escolhe então para
comentar com o seu poema, tem como apóstrofe um
cão277, símbolo da consubstanciação do humano e do
animal, que está no mundo e olha para as coisas com
olhos inocentes, sem apreendê-lo. o homem apenas o
pode abarcar então com as palavras, mas ambos
participam do mesmo destino final.
_______________________________________________
276
Como nos diz o crítico Eustaquio Barjau, na sua
indispensável introdução à edição traduzida para espanhol destas
duas obras: “Con las Elegias de Duino Rilke deja atrás un estilo que
traduce una ascensión ardua y dificil; com Los Sonetos a Orfeo
adopta el estilo suelto y variado, aunque hermético y críptico, de la
poesia alemana de sus últimos anos […] Esta última obra es ‘un
regalo adicional’, algo así como ‘lo sobrenatural en la sobre-
abundancia’, escribe el poeta a su editor el mismo día en que termina
este libro […]” in Rainer Maria Rilke, Elegías de Duino/Los Sonetos
a Orfeo – (Edición de Eustaquio Barjau), Madrid, Catedra, Colección
“Letras universales”, 2007 [1986], pp. 41-42.
277
Cf. Rainer Maria Rilke, Op. cit., 2007.

264
NA TEIA Do PoEMA

A apóstrofe no poema de Júdice é incerta, e


relaciona-se livremente com o referido soneto de Rilke.
Júdice parece identificar, na figura do sujeito poético, a
do próprio orfeu, que se dirige a Eurídice (vv. 1-3),
dizendo que a sua ausência (“metamorfose”) não o fez
deixar de escrever, apesar de numa “nova ordem” de
palavras. Assim, a inspiração para escrever surgiu de uma
outra forma de amor intransitivo ( a mesma que Rilke
defende nas Elegias e que não tem objecto amoroso), de
uma focalização no próprio “mundo interior” onde ainda
retém a imagem da amada “que a primavera levou/para
o coração da terra”. o sujeito poético, através da me-
mória, vai assim conseguir recuperar o rosto e as outras
belas características da amada para “uma futura colheita/
de estrofes”.
Desta forma, vemos como um poema inicial de
Rilke, ele próprio com uma alusão à história mitológica
de orfeu e Eurídice, vai servir de base para Júdice se
relacionar não com o conteúdo propriamente dito do
soneto rilkeano mas com a trama deste mito, num
“comentário” em que funde os dois tempos da escrita (o
vivido e a sua lembrança) no mesmo contexto poético.
Virginia Woolf é outra das escritoras convocadas na
poesia judiciana. o enfoque do poema, cujo título é o seu
nome, é feito na sua morte/suicídio no rio (“as raízes de
março” do verso final podem ser vistas, de certa forma,
como biográficas, e o duo morte/água como uma alusão
ao mito ofeliano), funcionando ainda na forma de
monólogo. o discurso parece ser dirigido da escritora ao
seu marido Leonard Woolf, mas pode ser visto igual-
mente como para qualquer outro interlocutor (incluindo
a própria escritora, numa das suas muitas divagações por
que ficou conhecida), como se estivessemos a ler uma

265
RICARDo MARQuES

página de um dos seus romances. É de assinalar a disforia


das imagens e das paisagens, como se se transmutasse na
sua pessoa toda a carga negativa do local (locus
horrendus) confirmando o carácter romântico e exaltado
deste poema278:
“Se quiseres, serei
uma sombra por dentro de um rio: sombra
que possas confundir com os seres
fugazes do abismo; ou puxar para a margem,
como tronco vestido ainda com as folhas
do inverno.

Se quiseres, o vestido que te entreguei


numa vigília branca, e que a penumbra febril
da tarde usou para vestir o
horizonte, irá dançar contigo um último
baile, arrastando o teu corpo
para o espelho da noite.

Se quiseres, uma flor húmida


de treva abrir-se-à nos meus olhos para
que a possas colher, a intacta flor
de sangue que a terra não quis, nem o
puro azul contaminou de
alegria numa transparência de infinito.

Então, se quiseres, os nossos


corpos juntar-se-ão no fundo desse rio,
os seus lábios repetirão o amor
numa enunciação de madrugadas, os seus
braços confundir-se-ão com as negras
raízes de março”

uma das linhas temáticas que parece interessar mais


Júdice, como já tivemos oportunidade de analisar atrás,
é o Amor. uma metodologia de aproximação ao senti-
mento que parece começar a ter relevo neste quadro de
ideias acontece quando determinadas figuras que se cele-
_____________________________________________

278
PR, 2000, p. 912.

266
NA TEIA Do PoEMA

brizaram por tratar o tema do Amor aparecem invocadas


pelo autor, quer através do tratamento dos respectivos
textos, quer pelo tratamento destas figuras. É o que já
vimos através de escritores tão diferentes quanto Byron,
ovídio ou, mais recentemente, Woolf. Presente num dos
seus livros que mais falam sobre a temática amorosa dos
anos 90, Teoria Geral do Sentimento, o seguinte poema,
intitulado “A Ciência do Amor”279, consubstancia e dá
continuidade a esta mesma ideia, constituindo um
comentário da vida e da obra de Emily Dickinson280,
escritora a quem tanto não interessou especialmente a
temática amorosa, mas que indirectamente a convocou
nos seus múltiplos poemas fragmentários. Antecedendo
o poema de Júdice, temos uma epígrafe desta autora:
“Que amor é tudo o que há,/ é tudo o que sabemos do
amor”:
Não sabia senão a mais pequena parte do que há para
saber: sobre o amor, sobre a sua ausência; e sabia que,
para lá disso, nada mais se pode saber. No entanto,
perguntava: “o que se pode dizer do que não se sabe?”, ou “o
que se pode saber do que não se diz?” Sentava-se nas mesas
de festa, quando a festa chegava ao fim; ou descia ao
jardim, para lá da varanda de madeira, e via os pássaros
que andavam de volta das árvores, sabendo que em breve
nenhum pássaro cantaria de entre os ramos nus. Então,
entristecia; e podia sentar-se na terra, com um caderno

_________________________________________________

279
PR, 2000, pp. 893-94.
280
Repare-se no interesse de Júdice pela figura de Dickinson.
Concomitante com este trabalho, saiu o seu volume de tradução da
poetisa no ano seguinte, pela Relógio d’Água. Esta foi uma das
poucas autoras de língua não-francesa que Júdice traduziu, daí a sua
importância para o autor. outro poema, “Encontro Inesperado”, de
As Coisas mais Simples (pp. 99-100), parece ecoar um fragmento
poético desta autora que se intitula “Because I could not stop for
death”, mostrando, tal como em Dickinson, a chegada da morte
personificada em alguém que chega a uma estação.

267
RICARDo MARQuES

na mão, lendo em voz baixa os poemas que tinha escrito no


último ano, nos últimos anos, em toda a sua vida, embora
esse caderno não existisse, como também não existia ainda nenhum
último ano da sua vida, nem sequer uma vida. Não era,
porém, o que se pudesse chamar uma pessoa reservada;
conheciam-na como alguém que sabia rir, divertir-se – e
talvez suspeitassem que escrevia, mas não ao ponto de ser
alguém que pudesse guardar uma obra (pensavam),
e que tivesse pensamentos ou versos para deixar, como
herança, ao mundo futuro. Souberam isso depois da
sua morte, apenas, o que talvez tivesse sido tarde para ela.

Pouco sabemos da vida particular de Emily


Dickinson, fora o facto de ter sido uma reclusa dentro da
própria casa, tal qual a mundividência da sociedade
novecentista da altura procurava estabelecer para a
condição feminina. Este poema narrativo de Júdice
procura então fazer um retrato um pouco melancólico de
Emily Dickinson, especulando talvez sobre um
sentimento de tristeza que sente alguém que se sente
activo e é invisivelmente proibido de viver a sua vida. os
primeiros versos são indicativo disso, quando o poeta
relaciona a epígrafe com a vida da escritora, defendendo
que esta não conhecia a vida, não tinha experiência de
viver fora de casa. Para reforçar esta ideia, retira do
contexto da sua obra duas citações que reformula em
duas perguntas essenciais da sua vida e da sua obra
aforística (vv. 3-5). De seguida, há uma tentativa de
descrição de Dickinson enquanto pessoa atenta ao
mundo, num balanço entre uma tristeza que a fazia
devotar aos poemas e o saber rir e disfrutar a vida. No
seguimento disto, há uma certa ironização por parte do
autor (vv. 16-19) ao tentar descrever a forma condes-
cendente como muitas pessoas decerto olhavam a sua
produção poética (a poesia de uma mulher, note-se) sem
nunca lhe dar a importância que o futuro depois lhe deu
(vv. 20-22).

268
NA TEIA Do PoEMA

[…] É certo que, cerca de 1860, algo decisivo lhe sucedeu,


como escreveu um crítico: um desgosto de amor? um
sentimento de que perda? Algo que tivesse a ver com a ideia
de vida, a noção de existência? um “efeito de
conflagração”, acrescenta ele. uma vez, lendo um desses
poemas breves, como se me tivesse sido destinado (e, de
facto, tê-lo-á sido, como o são todos os poemas que, no
instante em que os lemos, se apropriam do nosso espírito),
senti que a distância não consta no decurso das vidas; que
a morte pode ser um simples episódio de que só nos
apercebemos quando nos falta a voz que invocamos, sob o
vento que empurra as janelas e as portas da casa; e que
um cansaço de ser empurra os versos para a brevidade do
conceito, para o chão, onde se confunde com as folhas e
as madeiras partidas do outono. Então, que importa esse ano
de 1860, mais os incidentes domésticos, mais a súbita
crise que a fez buscar contactos, leitores, intérpretes
para o seu enigma? uma pausa, um simples instante de
fraqueza no curso de planetas e emoções. Nada que não se
possa decifrar na palidez do rosto, na tremura dos lábios,
nas mãos ( é o que já não se vê, sob o lenço branco – os
dedos que rabiscaram todos aqueles papéis). E no fim
de tudo, fechando o livro, o que resta: perguntas
quase inúteis, como o que é que sabemos do amor?

Esta segunda parte do poema gira à volta de um


acontecimento para o qual os críticos não encontram
resposta; a forma como, subitamente a partir de 1860 a
sua produção poética se tornou mais intensa, princi-
palmente até aos anos 70 daquele século, quando
começam problemas de visão. Existem várias hipóteses
de explicação para o facto, mas o poeta desvaloriza-as a
todas (vv. 37-40), colocando a sua urgência de escrever
e publicar, bem como outras crises pessoais, como parte
da premência do tempo a passar, relacionando, para isso,
a imagem de uma casa com a do ser no tempo (vv. 32-
-37). Lembremos, por fim, que este poema se propõe
tratar, através de Emily Dickinson, uma autora que nunca
experimentou, segundo se sabe, quer o amor físico quer
os efeitos “da sua ausência (v. 2), d’“a ciência do amor”,
e que chegados ao fim do poema acabamos não com uma

269
RICARDo MARQuES

teoria ou uma resposta, mas sim com uma nova pergunta


(vv. 44-46). Afinal, a ciência do amor ou o que sabemos
dele reside no próprio sentimento, no próprio sentir, ainda
que ele próprio ou o seu objecto estejam distantes.
Blaise Cendrars (1887-1961) é outro poeta visado
pela poesia de Nuno Júdice. o poema “A tarde sem
fim”281, presente em Teoria Geral do Sentimento, começa
precisamente com uma citação do poeta de, entre outros,
Prosa do Transiberiano, que resume a sua condição de
poeta apátrida e viajante pelo mundo – “Du monde entier,
au coeur du monde”282:
Na estação de helsínquia, onde lenine esperava
o comboio do regresso, dou comigo, por
entre máquinas de jogo e copos de cerveja, a invejar
o bêbedo que abraça a rapariga gorda, de cabelos
longos e saia curta; e riem-se, como se o amor
se servisse naquele bar de consumo rápido, por entre
os comboios que partem e os que chegam. A esta
hora – o meio da tarde do verão finlandês – com
o calor que ainda entra pelas grandes portas
da estação de helsínquia, ouço a voz desse poeta
que sonhou todos os rostos que se perdem e se
encontram em todas as estações do mundo. No seu relógio,
a hora da patagónia confunde-se com a hora de são
petersburgo; a hora solar cai no centro da alma
que anda ao contrário, como o relógio do bairro
judeu de praga; e o poeta puxa as garrafas para
a sua frente, no balcão, para que os gestos bruscos do
bêbedo que se abraça à rapariga gorda não as façam
cair, sujando o lugar em que, no princípio deste
século que vai acabar como começou, lenine esperava
o comboio do regresso. É então que uma procissão de
cantores loucos atravessa o átrio; que as suas vozes
se juntam para invocar a santa joana dos abismos;
que um silêncio nasce, em volta do rapaz estendido
no chão, que agita o corpo nos sobressaltos sonâmbulos
do álcool. Por vezes, lenine sai da sua mesa para
espreitar esse corpo; os viajantes olham-no das janelas,
chamando-o de dentro do seu sono; e as mulheres
choram, lentamente, de trás dos balcões de vidro, como
se sentissem apodrecer as raízes da sua juventude. Talvez
seja por isso que esse poeta partiu; e que neste balcão
onde o bêbedo e a rapariga gorda se abraçavam, todos os
copos estejam vazios, como se o mundo inteiro os tivesse
bebido até ao fundo, na tarde sem fim de helsínquia.

270
NA TEIA Do PoEMA

Este poema vai ser amplamente encomiástico do


estatuto que Cendrars ganhou, ainda em vida, de poeta que
viajou primeiro dentro e depois fora da sua poesia283. Logo
após o início do poema de Júdice, é feita uma descrição
poética desta sua condição de viajante, quando nos é dito
que este é um poeta “que sonhou todos os rostos que se
perdem e se/ encontram em todas as estações do mundo”
(vv. 11-12). um pouco por todo o poema, como se vê nesta
transcrição do mesmo, são inúmeras as alusões implícitas
que se fazem à sua obra, fazendo crer que Júdice conhece
bem este escritor. Como exemplos, podemos referir “santa
joana dos abismos” como forma de alusão ao subtítulo de
Prosa do Transiberiano (Santa Joana de França), bem
como da referência à Patagónia, que para Cendrars era um
lugar mítico (“Já não há senão a Patagónia, a Patagónia
que convenha à minha imensa tristeza”, diz-nos no
referido livro).

A situação inicial do sujeito poético é a de


observação da cena no “café de Helsínquia”, imiscuindo-
-se algo fantasticamente (“dou comigo”) na gare dessa
cidade escandinava precisamente na hora em que outra
figura histórica importante (Lenine) se prepara para
regressar à Rússia, nomeadamente a São Petersburgo.
Adivinhamos estar no ano de 1917, antes da revolução
bolchevique de outubro, quando Cendrars já havia publi-

_____________________________________________
283
Como ele escreve, autobiograficamente, no fim de O
Panamá ou as Aventuras dos meus Sete Tios, “ESPERo.Gostava de
ser a quinta roda do carro/ Trovoada/ Dificuldades/ Em nenhum lado
e por toda a parte”. (in Blaise Cendrars, Poesia em Viagem (tradução
de Liberto Cruz), Lisboa, Assírio e Alvim, s/d, p. 75). Liberto Cruz
descreve-o perfeitamente neste papel, na sua introdução a este livro,
ao caracterizá-lo como “o poeta suiço que foi, no século passado, o
primeiro poeta cidadão do mundo”.

271
RICARDo MARQuES

cado A Prosa do Transiberiano em 1913. Esta é uma


estrutura típica na poesia intertextual de Júdice. o
domínio do fantástico vai pegar-se ao domínio do
histórico e do factual, deixando pistas ao leitor que,
assim, e no dizer de Borges284, completa a relação
intertextual. Por outro lado, nesta mistura dos dois
mundos narrativos, há um terceiro que emerge e que é o
da visão pessoal do poeta sobre a factualidade do que
ficou para a história, interagindo, como se viu, com as
personagens anónimas e conhecidas, que passaram pela
história. Assim, o contexto de início, plasmado aqui nos
sete primeiros versos, vai ser deveras importante para
estabelecer aquilo que o poeta pretende que o leitor do
seu poema saiba e imagine (a estação onde, efectiva-
mente, Lenine embarcou para a Rússia e um bêbedo e
uma rapariga gorda que podem ter existido e que são
usados para dar “cor local”). o resto do poema desen-
volve-se sob estas premissas, a que se juntam outros
elementos de cor local (“uma procissão de cantores
loucos”, por exemplo) que apenas servem para reforçar
a alusão ao verdadeiro tema do poema, que é o do
estatuto da poesia enquanto viagem, a sua forma de
escapar e de atravessar o tempo e o espaço (“tarde sem
fim”), metonimicamente convocados pela figura de
Cendrars, poeta-nómada.
outro poeta-nómada e diplomata francês que
importa aqui salientar na teia literária de Júdice é o pouco

____________________________________________
284
“The fact is that poetry is not the books in the library . . .
Poetry is the encounter of the reader with the book, the discovery of
the book.” (in Poesia, 1977). Vemos aqui igualmente um paralelismo
com as teorias de Angenot e outros, desenvolvidas à luz da
Sociocrítica, que consideravam ser determinante o papel do leitor no
fenómeno literário. (Cf. Capítulo “A Relação Interartes: Da Ekprasis
simples à Intermedialidade”).

272
NA TEIA Do PoEMA

conhecido Henry J. M-Levet (1874-1906), que morreu


precocemente, tendo deixado apenas um volume de dez
poemas, a que chamou, significativamente, Cartes
Postales (1902), espelhando o seu interesse por viagens.
o poema de Júdice estabelece uma ligação, em especial,
com o poema que dá pelo título “o Passeio dos
Ingleses”285:

Nos terraços dos casinos fechados, pintados


de branco, com vidros partidos nas grandes janelas,
a minha alma senta-se com Hitchens, num poema
de Levet; pedimos aguardente e vinho: e Hichens
mistura-nos, erguendo o cálice de laivos vermelhos
contra o céu vermelho. em outro mesa, a condessa
de Pienne, abrindo a caveira num esgar,
grita-nos: “Parece o outono” – e sentimos
uma certa paz em pleno coração de dezembro
[…]

Mais uma vez vemos Júdice a imiscuir-se num texto


literário anterior, no sentido de o comentar no acto de
fazer o seu próprio texto. A personagem em que se centra
é Hitchens, personagem desta “carte postale”, convo-
cando ainda outras personagens, uma que aparece logo
nos primeiros poemas do volume de Levet, Miss
Roseway (“Les Voyages – Tryptique” – I) e a condessa
de Pienne, que aparece apenas neste poema. Com ela vai
imaginar um encontro amoroso dentro do barco onde
veleja, em passeio por solicitação da condessa, que
depois é renegado. Como num sonho, o poema acaba
assim neste instante, sendo os últimos dois versos a chave
deste poema isto é, o que o fez suscitar:

___________________________________________

285
PR, 2000, pp. 289-290.

273
RICARDo MARQuES

Voltando-lhe as costas, dirijo os olhos para o horizonte:


faz nos que se afundou Miss Roseway, cartas de amor

vindas da Austrália, a recordação de um bridge a bordo,


na véspera da partida. A condessa de Pienne é um monte
de ossos aos pés da minha alma; vou à varanda. uma bóia
flutua com as ondas: “Sindbad”, marinheiros à deriva,
o pálido viajante: esquisitas memórias
que levo para a cama.

Passemos então agora à análise dos poemas metali-


terários de Nuno Júdice, no sentido de entender o que
estes dizem acerca da sua poesia e, claro está, da sua
“fragmentária” identidade enquanto poeta, naquela que é
o seu arquitema por excelência.

274
PARTE II
DIÁLOGOS FORA DA
LITERATURA
DIÁLOGOS FORA DA LITERATURA

1. A “kunstkamera” de Nuno Júdice

A minha relação entre a poesia e pintura vem de uma


frase que, ainda adolescente, li no Tratado de Pintura de
Leonardo de Vinci em que ele diz: “A pintura é uma coisa
mental”. Imediatamente traduzi este preceito numa
versão literária: “A poesia é uma coisa visual”. Julgo que
foi a partir da “arte poética” condensada nesta frase que
a minha poesia se construiu.286

Aqui se encontra condensada uma espécie de análise


autobiográfica e cronológica da sua relação pessoal,
enquanto poeta, com o domínio das artes ditas visuais. o
começo deste testemunho do poeta português remete de
imediato para a sua inclusão pessoal naquilo que
podemos denominar como uma “poética da imagem”,
estabelecida num outro texto cronologicamente anterior,
e onde claramente defende esta figura retórica como
aquilo que domina a sua poesia, a envolve e o faz
escrever.287 É nesta ideia que precisamente pega no
seguimento do seu testemunho:
___________________________________________

In Relâmpago, nº23, outubro de 2008, p. 122.


286

Cf. “ Apontamentos para uma tradição pouco genealógica”


287

in Românica – Revista de Literatura do Dept. de Literaturas


Românicas – FLUL, nº7, Lisboa, 1999, pp. 251-253. [sic].

277
RICARDo MARQuES

Nunca precisei de grandes reflexões teóricas para sustentar o


que me parece ser uma evidência – a imagem como fundo e centro
de cada poema; e logo no meu primeiro livro, A noção de poema, a
pintura serviu de contraponto a alguns poemas que têm como ponto
de partida quadros de Matisse, Dunnoyer de Segonzac, Eugène
Boudin, vistos numa viagem ao sul de França em Julho de 1968. [...]

Em seguida, temos uma enumeração de mais duas


possíveis e confessadas influência na tradição da escrita
ecfrástica, a que depois se juntam exemplos da sua
colaboração poética com artistas que usam a imagem
como base referencial do seu trabalho, como pintores,
escultores e fotógrafos288:
[…]Tinha também lido as Metamorfoses de Jorge de Sena; e
este livro este livro foi determinante para definir melhor esse
caminho, embora Sena se sirva do referente pictórico ou escultórico
para seguir outros caminhos, em que a presença de uma dimensão
histórica ou subjectiva alarga o horizonte do quadro referencial.
Também por essa altura o “Auto-retrato num espelho convexo” de
John Ashbery introduziu um elemento mais amplo, em que o jogo
estético e transformador do real me surgiu como uma “correcção” a
esse lado que, então, me parecia demasiado pessoal de Sena.

A invocação destes dois referentes (Sena e Ashbery),


traduz-se, efectivamente, na poesia que este autor
escreveu até hoje, mostrando dois caminhos essenciais
de escrita ecfrástica. Por um lado, Sena utiliza na sua
escrita ecfrástica uma aproximação por vezes parcial de
um elemento, que nem sempre trata ou descreve de forma
imparcial e directa ou literal, rementendo bastas vezes
para o seu universo pessoal, isto é, estabelecendo relações

____________________________________________
288
“Nunca deixei, desde então, de manter essa relação com a
imagem de onde nasceram livros com pintores como Jorge Martins,
Manuel Amado, Graça Morais, Júlio Pomar, escultores como Rui
Chafes; fotógrafos como Julie Ganzin, Gerard Castello-Lopes, Duarte
Belo, entre outros.” (idem, ibidem). Falaremos destes mais adiante.

278
NA TEIA Do PoEMA

do objecto aludido com a sua própria vida. Por outro lado,


Ashbery, para utilizar as palavras de Júdice, é um
verdadeiro “transformador do real”, entrando num jogo
de laivos surrealistas consigo próprio no processo desta
mesma transformação, recorrendo, por vezes, a imagens
ousadas. Como veremos nesta parte, a poesia ecfrástica
judiciana parece seguir, à vez, um e outro caminho.
Por fim, este depoimento acaba com uma alusão a
um último modo de, consubstanciado virtualmente num
blogue, mantido de 2006 a 2008, onde foi prolífero o
diálogo entre diversos quadros e a sua poesia:
Para além disso, há também o diálogo constante com
a pintura de outras épocas, e mantive durante três anos
um blogue em que era possível ver o poema em arti-
culação com o quadro. São, como é evidente, linguagens
diferentes – e o que na pintura é traço e cor precisa de
encontrar, no poema, uma correspondência com o som e
a palavra. Mas é essa correspondência para que Bau-
delaire e, depois, Rimbaud, apontaram, que me parece
um desafio estimulante e criativo para o poeta.

A última frase deste depoimento aponta claramente


para outros dois autores de referência para a sua própria
poesia, Baudelaire de Correspondances e Rimbaud. Sob
a influência do primeiro, a poesia judiciana tenta
transmitir essa mesma ideia baudelariana da ligação ou
correspondência entre o som e a palavras (que muitas das
suas reflexões metapoéticas, como vimos, advogam). No
segundo, é de assinalar que Rimbaud é alvo de uma
reflexão ecfrástica na primeira reunião de poemas, onde
inclui um livro, entretanto não re-editado na Poesia
Reunida de 2000, intitulado Rimbaud Inverso289.

279
RICARDo MARQuES

Antes de passarmos à análise propriamente dita dos


textos literários, dois parágrafos relativos às parcerias de
Nuno Júdice no domínio das outras artes, uma vez que
são de número assinalável290, bem como blogue de
poemas ecfrásticos que vimos na citação anterior.
No que toca ao primeiro conjunto de livros, nota-se
uma grande polifacetação na forma como dialoga com
diversos tipos de arte – dos desenhos e gravuras, passan-
________________________
289
Cf. Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa,
Quetzal, 1999 (1991), pp. 321-347. Este livro esteve disponível para
o público, durante um mês na Biblioteca Nacional, no âmbito de uma
co-exposição com a fotógrafa Maria José Palla, intitulada “o Breve
Sentimento do Efémero” (decorrente entre 23 de Janeiro e 23 de
Fevereiro de 2009).
290
Não iremos, no entanto, analisar todos estes livros em
pormenor, ainda que tal estudo se enquadre no âmbito da
intermedialidade na poesia de Nuno Júdice, numa perspectiva
intertextual exoliterária. A nossa tarefa neste “percurso intertextual”
passa pela referência e estudo de poemas onde exista um grau forte
e explícito de intertextualidade, não apenas o diálogo com
determinado pintor, fotógrafo ou escultor. Não só Nuno Júdice refere
que o que realmente lhe interessa é a intertextualidade mantida com
a “pintura” (Cf. Egídia Marques Souto, 2007), como num caso em
particular esse diálogo acontece em prosa poética (falamos de Jeux
de plage/Jogos de praia, com desenhos de Júlio Pomar, tradução de
Carlos Batista, Paris, Tête à tête, 2001). Para além disto, muitos
desses textos com extratextos ou paratextos artísticos situam-se
cronologicamente anterior aos parâmetros de análise que
estabelecemos como o seu cânone e que usamos abundantemente
(Poesia Reunida, 2000). A tiragem foi sempre pouco assinalável (30
a 50 exemplares) e normalmente a publicação aconteceu fora de
Portugal. Por último, no caso de Jeu de Reflets, 2001, este encontra-
-se amplamente estudado na tese de Egídia Marques Sousa
supracitada, para a qual remetemos; No que toca a Geografia do
Caos, 2005, e La Phrase et le monde, com fotografias de Julie
Ganzin, 1994, é nossa opção não estudar a fotografia na obra poética
de Nuno Júdice, pelas razões já indicadas (menos pertinente no
contexto da intermedialidade judiciana). Remeteremos, como se
verá, para estes textos, sempre que se torne pertinente no nosso
estudo, quer no que toca à intertextualidade exoliterária desta parte,
quer no que diz respeito ao diálogo extraliterário da parte seguinte.

280
NA TEIA Do PoEMA

do pela pintura e chegando à fotografia291. De entre todos


os seus interlocutores, devemos realçar o destaque que o
poeta português parece dar a Jorge Martins (1940-),
pintor e escultor português. Como exemplos, temos,
sobretudo, os quadros com que Martins colaborou na
edição original de Raptos e os extratextos da primeira
edição de Lira de Líquen:

Poema “o Viajante” de Lira de Líquen,


com gravura de Jorge Martins

291
No que diz respeito às capas dos seus livros de poesia, deve
ser realçado que todos os volumes editados pela Quetzal mantinham
uma relação ecfrástica com a poesia do volume correspondente
através de uma imagem, normalmente um quadro simbólico. São os
casos de A Condescendência do Ser, capa de Rogério Petinga,
Quetzal, Lisboa, 1988, Enumeração de Sombras, capa de Rogério
Petinga sobre gravura de Giorgio de Chirico, Quetzal, Lisboa, 1989,
Obra Poética (1972-1985), capa de Rogério Petinga sobre pormenor
de pintura de Carlo Carrá, Quetzal, 1991, Um Canto na Espessura
do Tempo, capa de Rogério Petinga, Quetzal, Lisboa, 1992,
Meditação sobre Ruínas, capa de Rogério Petinga sobre quadro de
Louis Janmot (1814-1892), Lisboa, 1994, O Movimento do Mundo,
capa de Rogério Petinga sobre pormenor de quadro de Caspar David
Friedrich, Quezal, 1996, A Fonte da Vida, capa de Rogério Petinga
sobre «Retrato da Princesa Golytsina» de Pyotr F. Sokolov (1791-
-1848), Quetzal, 1997; e Teoria Geral do Sentimento, capa de
Rogério Petinga sobre quadro de Christopher Wilhelm Eckersberg,
«Mulher no espelho», 1841, Quetzal, Lisboa, 1999. Também as
capas de outros livros mais antigos, e de outras editoras têm gravuras
de diversos artistas (Cf. bibliografia final).

281
RICARDo MARQuES

Mais recentemente, um pormenor (um dorso de


mulher) de uma gravura de Jorge Martins saiu na capa da
antologia de poesia judiciana amorosa publicada pela
Hipérion em 2008, Tú, a quién llamo amor.
outros artistas a considerar neste diálogo são os
pintores nortenhos Graça Morais (1948-), que desenhou
uma romã, símbolo da fecundidade, para ser incluída no
seu livro de poemas de amor Pedro, lembrando Inês292, e
Domingos Pinho (1937-), que tem um desenho seu ao
lado do “Poema de Amor” da primeira edição de Corte
no Ênfase, editado no fim dos anos 70 no Porto.
No que diz respeito ao blogue que, como vimos,
manteve durante três anos, podemos apontar desde logo
uma importante linha de leitura – trata-se de um arquivo
de poemas feitos com base numa imagem, escolhida pelo
autor. Para além disso, as imagens escolhidas são sempre
quadros ou fotografias de mulheres, sobretudo nuas ou
semi-despidas, muitas vezes atidas a um livro, lembrando
os misteriosos quadros sobre a leitura de Henri Fantin-
-Latour (1836-1904), bem como figuras femininas
famosas (Mata Hari, por exemplo) e menos conhecidas.
Como o autor refere,

A ideia do blogue é muito simples. É, no fundo, fazer um livro


com quadros e reproduções a cores […] A internet permite visualizar,
directamente, o quadro e imaginar a história que este conta. Mas, a
história que eu conto, não tem forçosamente a ver com a história do
quadro em si.293

__________________________________________
292
Cf. Bibliografia final. Também colaborou com o autor,
segundo a entrevista que lhe fizemos (em anexo), na ilustração de
dois contos infantis seus, e, mais recentemente, da Revista
Colóquio/Letras.
293
Cf. Egídia Marques Souto, Le Musée Imaginaire de Nuno
Júdice, 2007, Anexo I, pp. VI-VII.

282
NA TEIA Do PoEMA

Assim, o facto de constituir um blogue é muito útil


como satisfação da necessidade de “texto paralelo”
(como vemos na acepção de Genette294 para “hipertexto”)
na sua poesia ecfrástica. Por outro lado, Nuno Júdice
encontra aqui um modo mais fácil de fazer chegar os seus
poemas ao grande público, ao mesmo tempo que não tem
de obedecer às leis restritas de copyright no que toca à
reprodução completa ou integral de cada um dos textos
pictóricos com que dialoga, caso os fosse publicar num
volume de poemas autónomo295. Em terceiro lugar, esta
maior abrangência de público permite uma maior
interacção entre os leitores e Júdice escritor, princípio que
o poeta subscreve: “As pessoas precisam de dizer o que
pensam e, desta forma, têm uma oportunidade. No
início,havia muitos mais referências a pormenores dos
quadros. Mas agora [2007], os comentários vão mais de
encontro aos poemas, paráfrases dos poemas, emoções,
opiniões do que propriamente referências aos quadros”296.
De um modo geral, a nossa opção será então a de ver
detidamente, desde já, o domínio da Pintura e das Artes
Visuais e Pictóricas297, para depois passar para um diálogo
com a Música, outra arte presente, mas menos impor-
tante298. A divisão que faremos é entre os pintores e as
pinturas, de acordo com a importância que Júdice dá, em
cada poema, ora ao artista que está por detrás do texto
pictórico, ora ao texto propriamente dito.
Entremos então na sua galeria privada e imaginada,
na sua “kunstkamera”.
_______________________
294
Gérard Genette, Palimpsestes ou la litérature au sécond
degrée, Paris, Seuil, 1982.
295
Como o autor salienta, “[…] para uma editora, fazer este
tipo de livro é, praticamente, impossível. Representa um custo muito
elevado e não são muitas as que apostam nisso.” (Cf. Souto, idem,
Anexo I, p.VI)
296
Souto, Idem, Anexo I, p. VII.

283
RICARDo MARQuES

1.1 Os Pintores

Já afirmamos atrás, na esteira do que aliás Nuno


Miguel Nava já disse, que o percurso poético de Júdice
pode ser visto atrás da simbologia da água299, que é
elemento presente, directa ou indirectamente, em todos
os livros deste poeta. No caso dos pintores que os seus
________________________
297
Sobre as tangências entre a Poesia e a Pintura, podemos
referir o poema “o Desenho na Página”, de A Matéria do Poema, p.
92. Não iremos tratar a Fotografia na sua poesia, apesar de ser um
medium que cada vez mais se nota na sua obra, e cuja primeira
referência ocorre em As Regras da Perspectiva. Na colectânea PR:
“Fotografia (exterior)”,p. 423 e “Fotografia”, p. 828, ou, de forma
implícita, “Fevereiro”, pp. 857-858. De O Estado dos Campos, 2003:
“Pose de Estúdio”, pp. 87-88, “Fotografia de grupo”, pp. 88-89”, de
Cartografia das Emoções, 2001, “o chapéu de folhos, na cabeça de
Julie Manet”, pp. 96-97, “Retrato de adolescente” pp. 148-149; de
Geometria Variável, 2005, “Fragmentos de Ruído”, pp. 84-85; De
As Coisas Mais Simples, 2006, “Fotografia Branca”, p. 27,
“Revelação Perdida”, pp. 28-29. Ainda no que toca à fotografia, não
iremos igualmente tratar os poemas em que há apenas a referência a
pintores, sem se estabelecer um diálogo intertextual profundo, como
é o caso de “Fronteira” (PR, 2000, p. 929), onde se referem
“Brueghel, rubens, van gogh” [sic].
298
Para um exemplo do diálogo que acontece dentro da poesia
deste autor com a música, veja-se “Princípio de Retórica”, PR, 2000,
p. 380, analisado mais tarde nesta tese.
299
Cf. Luís Miguel Nava, “Mnemónicas para Nuno Júdice: uma
poética da água”, in Ensaios Reunidos, 2004, pp. 285-193. Este
autor, ao recensear o recém-saído livro de poesia Enumeração das
Sombras, advoga a importância deste elemento na poesia de Nuno
Júdice. É de assinalar igualmente que muitos dos aspectos marítimos
dos primeiros livros, bem como o tipo de convocação de elementos
a ele ligados (sobretudo a nível de sentimentos como a melancolia,
de personagens, como marinheiros) se devem relacionar, pelas
próprias palavras do autor, com as suas viagens, durante os anos 60
e 70, por França, em particular uma, como já vimos – “[…] logo no
meu primeiro livro, A noção de poema, a pintura serviu de
contraponto a alguns poemas que têm como ponto de partida quadros
de Matisse, Dunnoyer de Segonzac, Eugène Boudin, visto numa
viagem ao sul de França em Julho de 1968”. (Cf. Relâmpago, nº23,
Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, 2008, p. 122) [sic].

284
NA TEIA Do PoEMA

poemas convocam, parece haver uma obsessão contida


com este elemento, mas igualmente com outro – o céu, e
em particular as nuvens. É o que se passa logo no
primeiro pintor a que alude, no primeiro livro de poesia,
Eugène Boudin300 (1824-1898). Estes textos iniciais são
autênticos tratados da expressão plástica, como se, por
meio do poema, o olhar de poeta e do historiador de arte
num só se fundissem.

Eugène Boudin, “The Beach at Tourgéville-les-Sablons”, 1893,


National Gallery, Londres.

Sobre este artista, Boudin, podemos dizer que


começou a pintar sobretudo a partir da segunda metade
do século, tendo-se distinguido sobretudo por ser um
excelso pintor de temas relacionados com o mar, tendo
sido igualmente mestre em retratar o céu. É precisamente
sobre aquilo que o distingue que Nuno Júdice começa por
falar no seu poema, numa enciclopédica epígrafe:
“BouDIN, Eugène – Pintor do ar livre/ do céu e do mar,
____________________________________________
300
PR, 2000, pp. 63-64.

285
RICARDo MARQuES

foi o primeiro a procurar fixar / os aspectos de constante


transformação da natureza”. Este último verso da epí-
grafe, onde se define a identidade deste pintor, vai ser
importante na forma como mais tarde, no decurso da
análise do quadro, se faz ênfase em certos pormenores.
Assim, o poema de Júdice começa por uma estrofe que
se separa do resto:
Neste óleo sobre tela, assinado em baixo, à esquerda,
parece-me ver o excessivo amor com que, alguns dias, olho
o horizonte inteiro e as nuvens, como se chovesse, como se o rosto,
sob o peso da humidade, atraísse as suas próprias lágrimas.

Aqui, é sobretudo uma atitude contemplativa que


resume a forma de tratamento, uma vez que Júdice tenta
equiparar ou equivaler o olhar do pintor para o mar, que
depois passou para o quadro, com a forma com que o
poeta olha para esse elemento, relacionado-o com o seu
próprio estado de espírito. o poema segue com uma
descrição selectiva de certos detalhes naturais e humanos
(“a orla do mar”, “um grupo de mulheres”, “ondas, “voo
de gaivotas”, “velas”, “o mar”, “um homem”):
Na orla do mar, manchas negras e nítidas, um grupo de mulheres
contempla, em silêncio, em religiosa veneração, a espuma
embranquecida
das ondas que rebentam. Não longe de terra, e até à linha das falésias,
a leve impressão do voo das gaivotas, aves marinhas, sombras
velozes sobre
o branco escurecido das velas. E o mar, forma enevoada no cinzento
pleno do amanhecer de inverno, atmosferiza em vago e dor o
conjunto,
absorve cor, influencia indefinição. Já em terra, no canto inferior
esquerdo, um homem desatola um carro atrelado – e parece imóvel.
[…]

Se a descrição continua a relação com o próprio


estado de espírito disfórico do sujeito poético (repare-se

286
NA TEIA Do PoEMA

no uso de uma paleta de cores de índole negativa –


“manchas negras”, “branco escurecido”, e até hipa-
lagética – “atmosferiza em vago e dor”) , o que parece
começar a acontecer nesta atitude descritiva é a de prestar
atenção aos pormenores técnicos (“absorve cor, in-
fluencia indefinição”), numa atitude interpretativa que
parece imperar numa última parte do poema:
[…]
Revejo o pintor ao ar livre, pintando este quadro. Procurando,
na rigorosa imobilidade dos tons, o movimento natural da paisagem,
não precisou de psicologia, não recorreu à imaginação e ao sonho,
não imitou – reconstruiu um ambiente, perfilizou um horizonte,
fixou, sem liberdade de técnica, com mobilidade sugerida, a praia
de Tourgeville, o mar. A projecção de impressões sobre o solo, a
água,
o céu, a intensidade esbatida da luz, tudo o que é efémero,
aqui encontro – sem contrastes violentos, com solidão descendente.
Na origem, a ausência quase de desenho. A sóbria oposição de umas
a outras manchas, o litoral sem o difícil contorno dos rochedos,
formas extensas e assimétricas – isto é, uma arte intimista que,
recusando o barroco, assume a inteira claridade do seu próprio
desenho, recusa o desígnio e a estética, interessa-se, com sábio
misticismo, pela melancolia e pela tristeza, pela fúria tranquila
da composição, pelo estudo da alma e da paisagem, pela descoberta
da sombra e da cor, pelo movimento da realidade, pela pura ilusão.

A atitude adoptada aqui por Júdice é a de se afastar


do quadro e começar a dissertar sobretudo sobre a técnica
nele empregue por Boudin, tentando adivinhar a psico-
logia por detrás das opções do pintor. Assim, deixa de ser
um exercício descritivo para se tornar, cada vez mais,
num exercício interpretativo, como se se tratasse de um
historiador de arte. As conclusões são as de que “tudo o
que é efémero,/ aqui encontro”, “uma arte intimista” na
forma de ver aquela praia que transmite uma certa
“melancolia e tristeza”, plasmada numa rede de opo-
sições (“fúria tranquila”, “estudo de alma e paisagem”,
“estudo da sombra e da cor” “realidade e pura ilusão”).

287
RICARDo MARQuES

De um modo geral, este poema denota três grandes


momentos, equivalente a três diferentes atitudes por parte
de quem o escreve, no sentido de primeiro contemplar a
tela, para depois a descrever amplamente (fazer a
ekphrasis tout court) e, finalmente, passar a uma postura
interpretativa. É nesta última, ou através dela, que vemos
como a hermenêutica do quadro se equivale à do próprio
poema (e dos poemas judicianos destes primeiros livros):
uma poética intimista, eivada de contrastes e sentimentos
disfóricos, como a melancolia e a tristeza.
Matisse (1869-1954) é uma das primeiras refe-
rências feitas a um pintor que acontece na sua obra, tal
como o coevo Eugène Boudin, que vimos atrás. São,
aliás, dois os poemas que o referem directamente no
título – “Matisse (período fauve)”301 e “Matisse (esbo-
ços)”302. De um modo geral, e em ambos os poemas,
Júdice vai focar-se muito em especial em aspectos
biográficos e reais, que depois manipula poeticamente. É
de notar que uma técnica que veremos em ambos os
poemas de Júdice é a de imiscuir o discurso directo do
pintor no seu relato poético, naquilo que podemos
designar de “monólogo interior”. Estes apartes servem
sobretudo para comentar ficcionalmente o que o poeta
português vai descrevendo, usando para isso de citações
que podem ou não ser verdadeiras, mas que corres-
pondem às opções estéticas de Matisse. Vejamos, desde
já, o primeiro destes poemas, não só por estar crono-
logicamente primeiro, como aludir a uma primeira fase
da vida do pintor, o seu período fauve:
_______________________
301
PR, 2000, pp. 71-72.
302
PR, 2000, pp. 284-85. um outro poema, que não veremos,
mas que está no seu blogue ecfrástico, aparece no dia 22 de Maio de
2006, e é sobre “Matisse e a odalisca”, um poema que se refere ao
seu período obsessivo com as odaliscas, entre 1917 e 1941. (Cf.
<http://aaz-nj.blogspot.com/2006_05_01_archive.html> – acedido
em Junho de 2009).

288
NA TEIA Do PoEMA

Cedeu às tentações do talento. o “Saint-Tropez”, por exemplo – a cor


do Mediterrâneo, dos telhados, do campo, dos montes do outro lado da
baía, em Saint-Raphael. É um lugar que exige o regresso, um olhar
demorado, a consciência saturada de objectos desordenados, arrumados
aos pedaços.

os anos fauvistas de Matisse situam-se na primeira


década do século XX, entre os anos de 1904 e 1906, nas
vésperas do período que o tornou conhecido univer-
salmente303. Nesta altura pintou o quadro a que Júdice
alude. A frase com que o poeta português começa o seu
poema denota, efectivamente, que a pintura apenas surgiu
por acaso na sua vida; foi um talento a que “cedeu”,
quando esteve convalescente em casa e começou a
desenhar. Por outro lado, o fauvismo caracteriza-se por
estar na esteira do movimento modernista avant-garde da
década seguinte, ao romper com a tradição realista
pictórica no sentido de pintar com cores mais exuberantes
e vivas (daí a palavra “fera”, do francês “fauve”, que
expressa a agressividade pictórica desta paleta). o
mesmo fez então Matisse, que é visto desde logo como
um pintor que “rompeu com a tradição” (v. 6) em
diversos aspectos que se coadunam com as características
desta corrente – “recusou a perspectiva”, “libertou a cor”,
optando pela abstracção sobre um assunto ou tema, não
pela sua figuração, “deformando o desenho e a cor”. Em
suma, a técnica matissiana era a de sempre “operar uma
reconstrução”, para a qual era deveras importante nunca
esquecer o cunho pessoal do artista, a que tudo tem se se
subjugar (“A mão do artista”).

______________________________________________
303
Cf.<http://www.henri-matisse.net/biography.html# fauvism>
– Acedido em Junho de 2009.

289
RICARDo MARQuES

Henri Matisse, “Vue sur Saint-Tropez”, 1904,


Bagnols-sur-Cèze, Musée Léon-Alègre

o volume do corpo, em obras posteriores, veio no entanto a marcar


as harmonias periféricas de um movimento de reflexos. Rompendo
com a tradição, conservou ainda o sentido sombrio da composição.
um fogo que rói a planície, um sol, um porto com barcos.
Retratando-se a si próprio, com manchas, de impressão interior,
recusou a perspectiva, mantendo embora a tortura da alma, o
desgosto, o rosto contemporâneo de uma geração metódica. Desse
modo, chegou ele à libertação da cor, à expressão intensa
de superfícies sólidas, à regulação da obscuridade – como se a
sensibilidade se opacizasse, sugerisse influência, mudança,
semelhança. observando-se.
Deformou o desenho e a cor. Tomando um assunto, não o figurava
– o seu hábito de transfigurar o objecto guiou-lhe o gesto com que,
nas horas fluídas do sul, compunha o quadro. usando a folha
rectangular, ele observou que, mantendo-a horizontal, a
verticalidade do personagem produzirá uma outra impressão. E
acrescentou: “Será preciso, em ambos os casos, operar
uma reconstrução”. Disse ainda que sacrificaria um conjunto para
não deixar mais de uma linha, a qual reproduzirá o objecto.
Acreditava que nenhum elemento existe fora da influência dos
elementos que o rodeiam – a mão do artista, concluía genialmente,
deve reagir a essas influências.

290
NA TEIA Do PoEMA

A última estrofe marca uma viragem na descrição de


Júdice, dando ao poema um tom mais filosófico e
aforístico, com um comentário final mais detido ao
quadro em questão. Em primeiro lugar, e na continuidade
do que vimos anteriormente, há uma apologia da
mudança, que se justifica pela própria evolução da
“alma”. Naquilo que será um tema no poema seguinte,
Júdice propõe uma analogia para com outras esferas
artísticas (nomeadamente a música), radicando aí, nessas
outras linguagens, a “poética da intuição” que compõe
este “Saint-Tropez” de Matisse e que o poeta português
defende como estando na base do seu estilo. o pintor
francês pode ser visto então como “um descobridor da
ulterioridade”, como Júdice o caracteriza, na medida em
que ao rejeitar todos esses aspectos da tradição pretendeu
procurar a essência da pintura, o que está antes do próprio
objecto pintado:
A continuidade da coisa viva não se sustenta da sua imutabilidade.
A alma, preenchendo com rigor as formas de pensamento, evolui
na atmosfera opaca da metáfora. Cada imagem mental, dando
origem a grandes ordens de revelação, condensa as tempestades do
olhar na reconstituição do modelo. As sugestões do espaço, como
variantes musicais, ressoarão criadoramente na retina; a tela,
retendo nos seus ângulos a pureza secundária da aparência, fixará
o jogo das proporções na eternidade arbitrária das regras; e o
pintor, descoberta a ressonância inicial de um tom entrevisto,
dobrar-se-á às considerações da visão instintiva – e restituirá a luz
interior a uma cidade marítima.
Frente a uma pintura deste género, arrisco-me a formular uma
poética da intuição. Por afinidade – a memória de manhãs no
Vieux Port, a lírica tensão de um concerto frívolo para violino, o
espanto inumerável do espelho – eu exalto as talentosas inflexões
deste alterno autor – atmosferas surdas e tintas ensombrecidas, a
convenção do modelado e a energia da imagem, o canto preciso de
um descobridor de ulterioridade.

“Matisse (Esboços)” é um poema que, como se verá,


se complementa com o primeiro, sobre o período fauvista

291
RICARDo MARQuES

do pintor. Júdice destina cada uma das estrofes a um


aspecto particular do seu estilo, bem como uma carac-
terística da sua personalidade. No que toca à estruturação
do poema, Matisse é exactamente visto através de
“esboços” que vão descrevendo, como as pinceladas de
um pintor, a sua forma de ser, a sua perspectiva e
metodologias de aproximação ao quadro. Assim, cada
estrofe alude, entre outros aspectos, a um em especial, e
que domina o assunto tratado nessa estância. Vejamos a
primeira:
Baseava-se na noção de fuga, instante musical numa sequência
interior, daí partindo para a composição do quadro. os volumes
sobrepunham-se, acumulando a obscura tensão do temperamento:

Há, como se pode ver, um começo in media res, com


um pormenor matissiano importante – a noção de fuga.
Este termo, transposto para o seu contexto etimológico
(o léxico terminológico musical) define-se como carac-
terística principal das composições cujo tema vai sendo
desenvolvido com a sobreposição de vozes que ecoam o
tema e o modificam, até ao fim, quando se juntam, depois
da “fuga”. É de assinalar que esse mesma característica
matissiana que Júdice assinala é a própria forma estru-
tural que o poeta português escolhe para compôr estes
“esboços”. Cada estrofe será uma de muitas vozes, cuja
sobreposição e acumulação (v. 3) se juntam no fim. Por
último, vemos mais uma vez como Júdice utiliza o
discurso (ficcionado ou não) do próprio pintor para ir
ilustrando o que vai dizendo, numa estratégia narrativa
que tem como finalidade, muitas vezes, o comentário.
Disso temos um bom exemplo no início da estrofe
seguinte:

292
NA TEIA Do PoEMA

“ – o sul, planos, limites que ao olhar a própria luz fixa”, e


continuava, em intermináveis monólogos, interrompendo-se apenas
para escutar um súbito canto de cigarra. o crepúsculo sur-
preendia-o em plena congeminação. Preparava meticulosamente
o conjunto as linhas e as cores, só depois avançando
para a sugestão da figura. Levantava-se, olhava o horizonte
onde o último clarão se esbatia entre azuis e sépias,
e arrumava a caixa das tintas, a tela, o cavalete, regressando
a casa pela íngreme vereda, aproveitando para observar
a vegetação, os diversos tons da pedra na demarcação dos muros;

Nesta estrofe, Júdice começa a sua narrativa com um


esboço de final de tarde do pintor, em que este tentava
captar, em extremo isolamento e solidão, falando
sozinho, as cores do crepúsculo, mostrando a sua disci-
plina e ética profissionais, a sua atenção ao detalhe e ao
pormenor, numa palavra, o seu carácter observador da
realidade. Assim, a natureza ia-se revelando nos seus
quadros aos poucos, e de uma forma abstracta ia
chegando “à sugestão de figura” de que a estrofe fala.
Continuando esta pequena resenha biográfica, Júdice
encavalga o último verso da estrofe na seguinte, ligando
as duas por uma relação de adversidade, de que a palavra
“mas” é exemplo:
mas nem assim repousava. o peso dos objectos atormentava-o,
bem como o projecto a que devotara a sua vida: transformá-los,
e desse modo superar a sua própria concepção de ser. Afastara-
-se da cidade, começava a ficar solitário, dessa espécie de
comportamento que conduz à loucura ou, pelo menos, à doença; e
não via o fim do caminho, o ponto em que pudesse concentrar
as experiências acumuladas numa teoria coerente, conjunto
de explicações da vida e da arte. É certo que se propusera
um objectivo mais vasto: a chave do universo, digamos. Resumo
das cores e dos modelos numa trajectória inicial de “fonte”.

o que domina esta estrofe vai ser assim a carac-


terização da sua devoção única e persistente à pintura,
esquecendo-se de tudo o resto, de modo a tentar captar a

293
RICARDo MARQuES

realidade que via de forma a transformá-la, a “superar a


sua própria concepção de ser”, como igualmente vimos
no poema anterior. Assim, e segundo Júdice, este mesmo
isolamento prendia-se com o “objectivo mais vasto”, uma
missão pessoal, que era ir à etimologia da natureza
exterior, ir à sua essência ou, última palavra desta estrofe
(“fonte”). A estrofe seguinte vai assim neste seguimento.
Com o “eterno regresso a si, na interminável solidão da
pintura”, deixou quase de ser um ser humano para passa
a ser uma “imagem – apenas um objecto” no meio de
outros “aglomerados” presentes nos seus quadros:
Tornara-se, assim, um pólo de atracção para excêntricos
e peregrinos. Visitavam-no, procurando nele o fogo súbito
da reflexão, frases arrancadas a um discurso tosco, nas quais
fulguravam enigmáticos conteúdos. – “São os meus apóstolos”,
dizia – mais como desculpa, numa entoação desprovida
de orgulho ou de satisfação. E regressava a si, à interminável
solidão da pintura, à natureza, ao curso líquido das tardes. Assim,
não reparou que envelhecia. Talvez não se olhasse ao espelho,
ou o tempo gasto nos estudos para um auto-retrato o tivesse
distanciado da sua própria imagem – apenas um objecto,
um aglomerado outro dessas formas e cores que o obcecavam.

A estrofe final ganha um pendor mais reflexivo e


extra-narrativo, como se se tratasse de uma reflexão
própria e pessoal do própria autor Júdice. Assim, as
interrogações retóricas em elevado número, bem como
as reticências finais, apontam para as dúvidas relativas
ao fim de vida de Matisse, o que ainda pretendia alcançar
e se o seu sentido de missão utópica e substituta da
própria criação divina (“procurava o selo/ íntimo da vasta
abóboda”) teriam abrandado com o isolamento e com os
anos. o elemento musical e maternal da água fecham
assim o poema, numa conotação simbólica e certa da
própria morte:

294
NA TEIA Do PoEMA

Que sonhos teria tido nesse fim de vida? Penso, hoje,


que teria já ultrapassado a fase em que procurava o selo
íntimo da vasta abóbada. Sinais divinos, braços de árvore,
o rumor maternal das derradeiras águas – música vaga
na chama dos ventos…

De um modo geral, estamos perante dois poemas


importantes no contexto da produção ecfrástica de Júdice.
São dois poemas que, como vimos, adoptam temas
parecidos e que transversalmente acabam por se com-
plementar, especialmente no que toca à forma como se
aproximam, de um ponto de vista do conteúdo, da figura
de Matisse, assim como, já de um ponto de vista mais
retórico, da metodologia de aproximação poética ao seu
objecto.
Claude Monet surge, ainda mais directamente,
noutro poema judiciano, sendo a primeira referência
cronológica, na sua poesia, a este pintor. o poema é
“Femme À L’ombrelle, 1886”304, título do quadro con-
vocado, patente no Museu D’orsay, em Paris:
A Revolução nasce do chapéu de chuva de monet,
não por acaso, mas porque estava um dia de chuva. ou antes,
as nuvens que cobrem a parte superior dos dois lados
da tela tornam inevitável e evidente a aparição do chapéu de chuva
nas mãos da mulher. É que algures, por detrás daquilo que se vê
e é claro, uma sombra próxima, e de cuja transparência se faz
reflexo o poema, concentra as diversas tensões convergentes na
proximidade do temporal. Por que razão, perguntar-se-ia a
propósito, aquela mulher está ali, à espera da chuva, batida pelos
ventos e rasgada pelos arbustos? Também a impressão, que tenho
na minha frente, pouco transmite da cor original. Só um brilho,
sobretudo quando apenas entreabro a janela, não deixando entrar
um excesso de luz, se solta e bate na parede, sobre o tampo da
secretária em que escrevo, e momentaneamente
reproduz aquela figura solitária – agora que este adjectivo,
inesperado, aqui surge logicamente solicitado pelo poema.
Por fim, a própria parede se identifica com o horizonte:
para onde me dirijo, de certo modo sem a esperança
num próximo regresso.

295
RICARDo MARQuES

Claude Monet, “Femme à l’ombrelle”, 1886,


Museu D’orsay, Paris

Mais do que a descrição efectiva do quadro, através


de uma selecção de detalhes que pretendem tomá-lo
amplamente, estamos perante mais um exemplo, desta
feita explícito, de como o principal preocupação dos seus
vários tipos de poema parece sempre ser a própria poesia,
o mistério da sua criação. Estamos assim perante um dos
seus muitos poemas com dois planos narrativos, o
denotativo e referente ao quadro, e um conotativo e
referente ao poema. Nesta medida, o sujeito poético
confunde-se com o próprio autor, encontrando-se, ao que
parece, numa secretária a escrever este poema (v. 13). Em
primeiro lugar, Júdice começa por falar do chapéu que
faz a sombra, e da sua necessidade perante a chuva que

296
NA TEIA Do PoEMA

ameaça, que obriga a que Monet o pinte na tela. De


seguida, e complementarmente, especula sobre os
motivos que teriam levado o pintor a que pusesse a
mulher do quadro numa posição tão desconfortável, ao
vento e “à espera da chuva”. Para além do quadro, Júdice
sobre “uma sombra próxima” que anuncia o temporal e
que, por sua vez, encontra reflexo no poema, que não só
alude ao quadro como ao que está para além dele. Ao
passar desta “sombra” ao seu contraponto apolíneo, o
“brilho”, tão importante na pintura impressionista, que
vem, inesperadamente, da janela entreaberta, passa
igualmente o sujeito para o plano da vivência do poema
que então se escreve. Assim, o que aparece na parede é o
retrato feminino e “solitário”, iluminado de forma
inesperada por esta luz, e que, segundo o sujeito, faz a
parede identificar-se com o horizonte, aqui simboli-
camente como o fim da vida real e da vida do poema,
“para onde me dirijo, de certo modo sem a esperança/
num próximo regresso”.
Por outro lado, e ainda no que toca a este pintor,
parece estar contido no poema “Impressionismo”, uma
crítica ao mercado e universo dos museus, e da arte em
geral. Na verdade, o movimento impressionista é (como
não poderia deixar de ser num autor com uma larga
influência e formação francesa, e interesse em fazer
poemas sobre pinturas), um dos mais visados por Nuno
Júdice. “Impressionismo”305, presente em Geometria
Variável, disso dá conta, numa paródia ridicularizante em
relação ao estado da arte dos museus hoje em dia:

___________________________________________

305
Geometria Variável, 2005, p. 57.

297
RICARDo MARQuES

No Jardim de Monet, em giverny, os nenúfares


são uma ilusão de óptica para os americanos. A casa
de Monet, reconstruída para os turistas, é um centro
comercial onde se compram reproduções dos
nenúfares. E os nenúfares das reproduções
estendem-se pelos lenços com que as americanas
enfeitam as costas e pelas gravatas que os
americanos põem ao pescoço. os nenúfares
de Monet, nos lenços e nas gravatas que se
compram em giverny, não servem para fazer
cantar as rãs, à noite, no jardim de giverny;
mas uma ilusão de óptica passeia pelas ruas,
à volta da casa de Monet, quando os americanos
e as americanas, com as cores de Monet
nos lenços e nas gravatas, se transformam
em grandes nenúfares ambulantes, inundando
as ruas de giverny em grandes saltos de rãs.

Desta forma, através deste poema vemos como a


crítica implícita que o texto judiciano faz é ao próprio
sistema da arte, que vende os pintores e as escolas
pictóricas nos museus ou locais a eles associados,
ocasionando imagens como a dos americanos a passear
à volta da casa de Monet, com as lembranças compradas
nas lojas destes locais, como se eles próprios fossem
retirados de um quadro impressionista, fossem o próprio
movimento do “impressionismo”. Por outro lado, ao
intitular este poema de “Impressionismo”, o poeta Júdice
parece estar a dar uma pista para o estilo de enfoque que
não pretende para o seu poema, uma visão “impres-
sionista” e pouco realista, mas que é a dos próprios
turistas que apenas vêem aquilo que o impressionismo
foi enquanto corrente artística através de uma lente muito
pouco real, através dos objectos e lembranças que
compraram.

298
NA TEIA Do PoEMA

“A origem do mundo”306 é simultaneamente um


quadro de Gustave Courbet307 e um poema de Nuno
Júdice sobre o mesmo. o quadro em questão, de 1866, é
uma representação realista de uma vulva, escondendo
assim no título da obra um eufemismo conotativo, que
Júdice escolheu manter no seu poema:

Não é difícil imaginar a perturbação de courbet


perante essa origem do mundo: o sexo entre as coxas
entreabertas procurando o olhar do pintor para que
ele o representasse, com o gesto mais realista,
em sessões de pose que, pode imaginar-se,
teriam sido longas e entediantes. o pintor, com efeito,
não podia distrair-se do seu objecto com pensamentos
alheios: o rigor do traço obriga-o a uma concentração
no trabalho, nas mãos, na exactidão da imagem. Pouco
importa que, em frente dele, as pernas se agitem,
por vezes, ou o modelo boceje, como se o desafiasse
a uma interrupção. os olhos, no entanto, contrariam
o resto – como se ocupassem o espaço da cabeça, o
espírito e, mais do que tudo, o corpo. Courbet, então,
terá respirado de alívio quando acabou o quadro. Essa
origem, destinada a um outro, não lhe pertencia; e
é verdade que ele apenas podia imaginar os motivos que
terão levado esse outro a pedir-lhe aquela obra, a
mais secreta das suas obras, para que tudo ficasse entre
um e outro, a não ser quando o tempo, levando-os a todos,
libertou a origem, do mundo de uma secreta parede.

___________________________________________________
306
Geometria Variável, 2005, p. 66
307
No seu blogue ecfrástico encontramos mais exemplos de
poemas sobre quadros de Gustave Courbet que não analisaremos,
nomeadamente “Mulher com papagaio”, publicado a 18 de Maio de
2006. (Cf. <http://aaz-nj.blogspot.com/2006_05_01_archive.html >–
acedido em Junho de 2009).

299
RICARDo MARQuES

Gustave Courbet, “A origem do Mundo”, 1866,


Museu d’orsay, Paris

Pintado como encomenda ao artista, o quadro


provocou imediatamente uma grande celeuma no mundo
das artes308. Tomando assim este referente pictórico e toda
a polémica que envolve este quadro, Júdice vai então
escrever acerca do momento efectivo da sua pintura,
especulando acerca do conflito que Courbet teria sentido
ao pintá-lo, entre os seus pruridos profissionais de pintor
e as demandas do corpo de homem. Daí se diga que
“Courbet, então/ terá respirado de alívio quando acabou
o quadro”, ainda que, “pode imaginar-se”, “as sessões de
pose teriam sido longas e entediantes”.
____________________________________________
308
E, ainda mais recentemente, em Fevereiro de 2009,
continuou a provocar, com a apreensão, em Braga, de vários
exemplares de um livro de Catherine Breillat (Pornocracia),
publicado pela Teorema e cuja capa tinha precisamente este quadro.

300
NA TEIA Do PoEMA

Após esta paródia estabelecida com o leitor, Júdice,


que nunca fala directamente do quadro, nem do que ele
apresenta ao espectador (usando assim abundantemente
a alusão, como se tomasse por garantido de que “origem
do mundo” está a falar), acaba o poema com um jogo de
palavras com o título, de onde não está imune uma crítica
velada ao mundo da arte (não só os motivos que estariam
po trás desta encomenda, como o próprio conceito de
posse, neste caso “da origem do mundo”).
Gustave Courbet é alvo de um outro poema de Nuno
Júdice intitulado “A bela irlandesa”309 e que tem por base
o quadro do pintor francês patente no Metropolitan
Museum of Modern Art, em Nova Iorque, e que dá pelo
nome de “Jo, la belle irlandaise” (1865-66):

A construção da beleza não é difícil,


quando o objecto se apresenta aos olhos de quem
o vê com a exactidão dos seus traços,
as linhas certas da memória, e um desfiar
de impressões por cada poro da sua pele. Por
exemplo, os dedos em que os cabelos
passam numa displicência de gesto,
enquanto a outra mão segura o cabo do espelho,
trazem consigo o oceano em que os sentidos
se perderam, numa procura de enseadas
e corais; e, noutro exemplo,
o olhar que segue a direcção da imagem, e
nos arrasta com a indicação segura
de que o caminho é este, sem desvios
nem demoras.

_____________________________________________
309
Cf. Relâmpago, nº23, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava,
out. 2008, p. 121. Publicado originalmente a 2 de Junho de 2006 no
seu blogue ecfrástico (<http://aaz-nj.blogspot.com/2006 _06_01_
archive.html> – Acedido em Junho de 2009).

301
RICARDo MARQuES

o que me distrai deste sonho, porém,


é a exigência do próprio poema. Vou somando
as palavras às palavras, como se através
do verso que elas formam o corpo da beleza
me surgisse, à transparência da música,
saído do espelho em que o rosto
se contempla. E este exercício ocupa-me,
enquanto ouço o tempo passar, trazendo
até mim o tempo deste instante, preso
aos dedos que agora separo, um a um,
para ver o que escondem.

Gustave Courbet, “Jo, la belle irlandaise”, 1865-66,


Metropolitan Museum of Modern Art, Nova Iorque

Como podemos ver, este poema parte da figuração


que o quadro sugere da beleza, com a presença de uma
rapariga a ver-se ao espelho e a afagar os cabelos, numa
atitude contemplativa e atenta, levemente preocupada310.

302
NA TEIA Do PoEMA

Começado com versos de tom aforístico e proposicional,


Júdice radica o motivo da vanitas no símbolo do espelho,
dizendo que a beleza é fácil de compôr quando temos o
auxílio de um espelho, como o do quadro, que nos
devolve a imagem. De seguida, dá dois exemplos, que
correspondem a dois pormenores do quadro. Em primeiro
lugar, os dedos penteando o cabelo (metaforizado na
figura de um “oceano” de caracóis), e o olhar, direc-
cionado para a imagem de si próprio. Assim, naquilo que
constitui uma linha de leitura paralela, o espelho aparece
aqui como uma falsa segurança, fazendo-nos indicar,
como na vida, “que o caminho é este, sem desvios/ nem
demoras”.

No entanto, e como é referido logo no início da


segunda estrofe (e parte do poema), tudo isso é só mera
vaidade, um “sonho”, de que o sujeito poético se
“distrai”, com a feitura do poema (no que parece então
ser uma nova consubstanciação do sujeito poético no
autor do poema). Assim, o verdadeiro “corpo da beleza”
que se reflecte no espelho, encontra o sujeito poético
nesse “exercício” de ir somando “palavras às palavras”,
sempre atento à música do seu conjunto (repare-se nas
enumeração das características de um poema). E a
verdadeira beleza está assim aqui, não no carácter fugaz
da beleza física, personificada na mulher do quadro, mas
sim na eternização da escrita do poema, que o poeta
metaliterariamente convoca com ele.
___________________________________________
310
De acordo com informação do próprio MET, a rapariga em
questão é Johanna Hiffernan, que viria a ser mulher do pintor. Na
altura deste quadro, era mulher de outro pintor, James Whistler, com
quem Courbet passou algum tempo em Trouville no ano em que a
pintou. o quadro é uma suposta alegoria da vaidade, havendo mais
três cópias, com ligeiras alterações. (<http://www.metmuseum.org/
toah/hd/gust/ho_29.100.63.htm >, acedido em Junho de 2009).

303
RICARDo MARQuES

Estamos assim perante um desenvolvimento ecfrás-


tico curioso e pertinente, no quadro das preocupações
poéticas do autor. Se, por um lado, o quadro é-nos
descrito nos seus pormenores mais significativos, sempre
tendo por base uma linha de leitura paradigmática e
sintagmática, já a partir de metade do poema, esse
desenvolvimento tende a seguir apenas um caminho, uma
preocupação metaliterária.
o pintor inglês John Constable, por outro lado, é
alvo de um longo poema em quatro movimentos, de um
dos seus últimos livros311. o título deste poema vai
convocar outro artista, Vivaldi, naquilo que se torna,
como o próprio título indica em “Variações inglesas de
Constable com As quatro Estações”. o primeiro
movimento intitula-se “o Castelo de Hadleigh: esboço
em tamanho natural”, o segundo “Estudo de Céu e de
Árvores”, o terceiro “Árvores em Hampstead: o caminho
da igreja” e o último “A baía de Shoreham com Maria
Bicknell e uma cabeça de rapariga, vista de costas, talvez
Emma Hobson”. Este é, assim, um poema que se filia no
grupo daqueles que registam uma intersecção do tipo de
referências que convocam (neste caso, musicais e
pictóricas). Ao adivinharmos, na sequência destes quatro
poemas, a presença constante e dialogante de Vivaldi,
ocorre pensar que Júdice combinou também a audição
dessa obra musical no decurso da sua escrita, tal como
acontece, por exemplo, no poema que fez ao retrato de
Manon Baletti por Nattier no que se refere à música
coeva de Scarlatti (tal como analisaremos mais tarde).

_______________________________________________

311
O Estado dos Campos, 2002, pp. 119 – 125.

304
NA TEIA Do PoEMA

Vejamos agora brevemente cada um deles à luz do


modelo de Valerie Robillard. Em primeiro lugar, pode-se
afirmar que há uma clara alusão, quer pelo título de cada
uma das partes quer por pormenores adiantados no
decurso do poema, aos intertextos pictóricos que Júdice
escolhe convocar. Por outro lado, cada um dos poemas
vai apresentar uma selecção pessoal e afectiva dos
elementos do quadro que o “re-apresentar” ao leitor, de
uma forma fragmentada, mas depois abrangente, como
se, através dessa metodologia, nos descrevesse o quadro
de forma completa. Como sempre, após essa selecção
inicial, o que o autor faz é a metamorfose poética do
próprio quadro, com uma chamada de atenção para a sua
experiência pessoal.
Desta forma, o primeiro poema é o seguinte:
Já num esboço a óleo, Constable descrevera a ruína de Hadleigh,
que dominava as colinas de Kent, o Nore e o Morth Foreland, numa
vista que se estendia até ao mar. o céu é tempestuoso; a situação
reflecte um estado de alma desolado, uma queda do ânimo até
esse ponto em que a tinta não encontra um objecto em que se
fixar. o oceano, aqui, inclina-se sob a torre que o tempo rompeu,
e insiste em erguer-se, como se a pedra não fosse perecível
quando o homem a não protege. Adivinho o vento que a atravessa,
de um lado ao outro. ouço-o, razendo o ruído da rebentação,
com a sua música atormentada, até se lançar contra as árvores que
cresceram da ruína, e cujas raízes se soltam da terra por
entre os muros que restam. Mas é o céu que impõe um contraste
nesta paisagem. Nuvens, omo gigantes de um antigo apocalipse
lutam contra si; procuram rasgar a linha que o horizonte teima
em conservar; e bebem uma luz que nasce da tempestade,
numa avidez de relâmpago. um vago refelxo ilumina o mar;
mas logo a treva destrói as formas, no limite entre a água
e a terra. […]

No primeiro quadro poético de Júdice, o quadro


pictórico aparece contextualizado, referindo-se que já
existe um outro “esboço a óleo” a retratar o mesmo
objecto. o que se segue é uma verdadeira descrição das
características românticas do quadro, sobretudo no que

305
RICARDo MARQuES

toca à disposição dos seus elementos naturais (“o céu


tempestuoso”, “o oceano”, “o vento”), mas igualmente a
torre, ruína solitária e simbólica, perante o cenário de
destruição (“torre que o tempo rompeu/ e insiste em
erguer-se”). o céu, na paisagem de Constable, é assim o
elemento mais importante, já que através das “nuvens,
como gigantes de um antigo apocalipse”, “impõe um
constraste”.
[…] Podia falar da utopia romântica. No entanto, sei
que não há aqui nada de construído. A morte afasta a ilusão
de cenário que um olhar desatento poderia imaginar. Conheci
este mar; toquei pedras tão frias como estas; arranhei-me
nos arbustos selvagens que me conduzem até junto da torre. E
ouvi os sinos dobrarem, ao longe, num eco de esmalte que
se solta dos confins que o olhar persegue, para além da
moldura. Talvez isto tenha a ver com o sentimento de
que falou o pota James Thomson: “os últimos confins
da sua melancolia”312. Resta-me esse dobre de finados na minha
cabeça; e vou buscá-lo a uma infância de ruas desertas,
casas fechadas com o frio, mãos metidas nas mangas
da camisola, janelas por onde a humidade escorre, num
tédio de tempo que não passa. Então, desço a rua até à
curva, sabendo que a estrada me é inacessível. o mundo
não pertence a quem não conhece a linguagem dos deuses;
e resta-lhes sentar-se no último banco da aldeia, sabendo
que nenhuma camioneta irá parar por sua causa. o que
esperava? Por quem esperava? Nunca o soube, até entrar
nesta torre e avistar, por entre as frestas do muro, a nesga
de uma claridade que nasce do outro lado da ruína, onde
te vejo, nesse espaço de onde nascem as gaivotas, com o
seu voo imóvel, desafiando o mundo, como tu o fazes.
_______________________
312
Regista-se aqui mais uma subtil relação intertextual entre
Júdice, John Constable e o poeta escocês James Thomson (1700-
-1748). Em primeiro lugar, pensamos que esta referência não é
inocente por parte de Júdice, uma vez que a poesia mais conhecida
deste autor se intitulada, tal como vimos para o subtítulo de Júdice,
“The Seasons”. Por outro lado, também Constable, num dos seus
quadros mais importantes, composto num turbulento ano após a
morte da sua mulher (“Salisbury Cathedral from the Meadows”,
1831), adicionou nove versos de Thomson como forma de enquadrar
o seu quadro. (<http://www.tate.org.uk/britain/
exhibitions/constable/ rooms/ 6-salisburycathedral.htm>, acedido
em Janeiro de 2009).

306
NA TEIA Do PoEMA

Numa segunda parte do poema, o ímpeto descritivo


é sustido com o reconhecimento do Romantismo do
quadro de Constable (“Podia falar da utopia romântica”),
como também do que está para além dele e que é
intemporal (“No entanto, sei/ que não há aqui nada
construído”). Júdice envolve-se então num processo de
reflexão do quadro no domínio pessoal do sujeito poético
que, à semelhança de muitos outros poemas, se pode
confundir com a voz do próprio autor (“Conheci este
mar/ toquei pedras tão frias como estas […]”). o
sentimento do “eu” textual é, neste sentido, comparado
ao descrito pelo poeta James Thomson (“os últimos
confins da/ sua melancolia”), naquilo que poderíamos
apelidar de uma complexização da teia de artistas
convocados pelo poema. Daqui até ao fim, registamos a
presença da morte, provocada pela memória de um
determinado acontecimento em criança313. o poema fecha
então com o “tu” poético a trazer o apaziguamento a este
cenário de devastação, após uma entrada simbólica na
torre em ruínas, e, assim, de novo no quadro, vislum-
brando o que está para além dele (“uma nesga/ de
claridade […] onde/ te vejo”).
Em suma, e se pensarmos nestes quatro poemas,
como uma sequência (tal como a obra de Vivaldi ou de
Thomson), podemos dizer que esta primeira composição
corresponde à ânsia de criança perante o futuro (“o que
esperava? Por quem esperava?”), que depois o próprio
futuro vem acalmar.

_______________________________________________
313
Podemos mais uma ver ler esta passagem à luz do que
sabemos acerca do fascínio pela morte que o autor já confessou em
diversos momentos, e que acontece desde os tempos de criança,
ainda no Algarve, onde foi sobretudo educado e esteve rodeado de
gente idosa.

307
RICARDo MARQuES

John Constable, “Sketch for Hadleigh Castle”, c.1828-9,


Tate Gallery, Londres

o segundo poema é sobre dois quadros, apesar de


explicitamente só referir um no título. “Double
Rainbow”, de 1816 e um dos muitos estudos sobre
nuvens e árvores de Constable. Como tal, vemos como
uma importante linha de leitura do poema judiciano
acaba por ser a côr azul, talvez a mais importante da sua
poesia, que é transversal aos vários aspectos enumerados
pelo poema:
Tudo tem a ver com uma previsão do tempo que há-de fazer,
não amanhã, nem do lado de fora de onde estou, mas aqui,
dentro de mim, onde um súbito pedaço de azul irrompe do
céu enevoado da minha alma; e desde, daí, até um fragmento
de paisagem onde vejo a água, por entre colinas e vegetação:
um braço de rio, cuja corrente adivinho, arrastando as horas
e os minutos, desde esse meio dia de setembro, com uma
aragem de sudoeste, e um ar pesado, trazendo chuva, até
esta noite em que procuro o quadro exacto desta composição.
Assim, o que eu sei é que nada é como foi, e o que foi

308
NA TEIA Do PoEMA

nada tem a ver com o que eu vejo. Este é um trabalho


subjectivo. A mão, que se protegia das gotas de uma chuva
grossa que molhava a tela, aproveitou as manchas do
instante para circundar de inquietação o cume das árvores.
uma simples sugestão; mas nada que permita supor o
duplo arco-íris que nasceu sobre o moinho de East-Berghof314,
carregado de tinta, de angústia, até se dissolver nesse
nada em que os arco-íris terminam. De facto, muitas
vezes segui essas cores puras que o céu desenha para
nos iludir; e descobri a curvatura do divino, na mais
metafórica das suas formulações. Foi aí que aprendi
o medo. Deus, esconde-se, não no cimo, mas na base
do próprio arco: um deus subterrâneo, despido, ferido
pelas garras de animais selvagens. Este arco-íris não
irá trazer o sol; nem o céu que ele afronta o irá vencer
numa apoteose de cirros e abertas, sob a protecção
dos ventos. Este céu parou; nenhuma ave canta, no
seu espaço; as folhas caem, em silêncio, roçando-me
o rosto com a sua passagem de anjo mortal. Porém,
procuro esse deus. Rezo-lhe, neste fragmento de
margem, para que o curso da água não signifique
o inelutável movimento das estações, e cada símbolo
perca a sua imagem. Como eu desejava não ver aqui
o que vejo; e não sentir que a minha mão acompanha
o gesto do pintor, com a água da chuva a escorrer-me
dos olhos, e uma sensação de impossibilidade no
espírito que foge ao tempo. Componho, então, uma
sombra sobre este azul; e tiro dela o teu corpo,
numa única nota luminosa, como se o rio não
corresse, sobre nós, e o pudéssemos ignorar.

Nos quatro primeiros versos, vemos como o sujeito


poético é desde logo projectado no referido quadro,
encetando um novo processo de identificação que
registámos antes. o “eu” faz a analogia do seu estado de
espírito com o quadro, distinguindo bem um e outro

____________________________________________
314
Há aqui decerto um erro de impressão, uma vez que a alusão
deve ser a “East-Bergholt”, de onde era originário John Constable,
bem como a mulher de Constable, Maria Bicknell (Cf. Anthony
Bailey, John Constable: A Kingdom of His own, London: Vintage,
2007).

309
RICARDo MARQuES

(“dentro de mim, onde um súbito pedaço de azul irrompe


do/ céu enevoado da minha alma”). A côr azul é então
vista de novo na água, num braço de rio e depois na
“chuva grossa que molha a tela”. Ainda que este percurso
referido constitua uma linha de leitura pessoal que nunca
deixa o quadro poético de Júdice, registamos diversos
momentos de fusão do pintor com o espectador/sujeito
poético/escritor. o comentário do “eu” poético é aliás
pertinente na sua ironia (vv. 10-12 – “Este é um trabalho
subjectivo”), como que referindo-se, paralelamente, ao
trabalho de pintor e ao seu, de comentador poético. Neste
contexto de ideias, outros aspectos são aludidos,
metamorfoseados pela pena de Júdice, sobretudo nas
passagens entre os vv. 12-18. Nesta parte, a leitura
metamorfoseada de Júdice passa pela referência a outro
quadro de John Constable que adivinhamos ser “Double
Rainbow”, de 1816. A figura do arco-íris é então referida
e desenvolvida até à conclusão, sendo plasmada como “a
curvatura do divino”, “que o céu desenha para nos iludir”.
Daqui passamos para uma ideia de Deus (“subterrâneo”),
que o sujeito poético procura, apesar do “inelutável
movimento das estações”. A parte final do poema acaba
o desabafo/confissão, com uma nota de esperança:
Apesar da passagem irrevogável do tempo, o “tu” poético
é a única coisa fora do sujeito poético que o pode fazer
esquecer a passagem do tempo. Repare-se na imagem,
herdada de Heraclito, dos últimos três versos – “o teu
corpo,/ numa única nota luminosa, como se o rio não/
corresse, sobre nós, e o pudéssemos ignorar.”

310
John Constable, “Estudo de Nuvens e Árvores”, 1821,
Victoria and Albert Museum, Londres

John Constable, “Double Rainbow”, 1816, Tate Gallery, Londres


RICARDo MARQuES

Já o terceiro poema destas “Variações” é muito mais


descritivo e mórbido no espaço de metamorfose sobre o
quadro. Logo a início, por exemplo, é-nos descrita a
verticalidade inclinada das árvores, assim como as
espécies, de onde se infere que “foram empurradas pelo
vento”, mas, já dentro do quadro, o sujeito poético diz
“sigo o muro que rodeia/ o cemitério até à igreja”:
Sei, ao vê-las, que as árvores foram empurradas pelo vento: freixos,
olmos, carvalhos; e ao longo dos troncos, sigo o muro que rodeia
o cemitério, até à igreja. o caminho é de terra batida. No
inverno, a chuva enlameia o seu centro; e é preciso aproveitar
musgo e erva para evitar que as botas se enterrem na água,
embora o melhor seja ir de carruagem, ouvindo o tilintar
dos ferros, e o ruído surdo das patas dos cavalos que marcam
o ritmo do andamento. Há, aqui, por outro lado, uma dimensão
profana. Troncos nus estendem-se para os lados, como pedintes,
suplicando uma presença que não surge. Talvez no céu,
onde a luz se anuncia, ela pudesse aparecer – se o caminho
não estivesse fechado, com a vedação de madeira a impedir
a passagem. A única forma de chegar à igreja, então, seria saltar
o muro, e atravessar o cemitério, onde as campas estão despidas
de flores, nesta época do ano, e as folhas que as cobrem nos
impedem de ler os nomes (ali o sepultaram, com a mulher). Depois,
a ireja está fechada. Não é possível espreitar o seu
interior, mas suponho que seja despojado, como sucede nestas
igrejas de província. Encosto o ouvido à madeira da porta. Queria
ouvir a música do órgão, os cantos de domingo, quando os
crentes se juntam à hora da missa; mas o que ouço é a música
das correntes de ar num interior desabrigado, e murmúrios
que nascem das fendas secretas da pedra, compondo um retalho
de frases numa linguagem secreta, de que apenas anoto o mistério.
É a morte que me recebe; e quem me chama são as almas
que estão do outro lado, presas da noite, pedindo-me que
não as espere, e regresse ao mundo dos vivos com o silêncio
que me emprestam. Respondo-lhes:”Não devia ter vindo aqui,
perturbar-vos; nem escutar a esta porta”. […]

Grande parte do poema descreve então esta trans-


gressão mórbida do quadro. Como orfeu a resgatar
Eurídice do Submundo, o sujeito poético enceta uma
visita macabra ao cemitério e às campas, onde interage
fantasticamente com os mortos, e de onde resgata, para
o mundo dos vivos, “o silêncio/ que me emprestam”. Pelo

312
NA TEIA Do PoEMA

caminho, é de notar uma nova alusão biográfica ao pintor,


adequadamente separada pelo parêntesis (“ali o
sepultaram, com a mulher”). o “eu poético” retoma o
“caminho das árvores” (ou seja, o caminho da vida),
concuindo que o fim está próximo (“ que a noite está/
para chegar”). É tempo de pensar “nos que deixei para
trás”, no esquecimento que o tempo traz e que “a noite”
e a “chuva do Inverno […] irá apagar”:
[…] E regresso ao caminho
das árvores, passando pelas campas anónimas, até encontrar
os meus passos impressos na lama, e ver que a noite está
para chegar. Ao longe, anunciam-se as primeiras luzes da
povoação. o fumo sai das chaminés; ouvem-se vozes,
um ladrar de cães, um bater de portas nas ruas estreitas. Mas
penso nos que deixei para trás; nas almas que a noite irá apagar,
quando a chuva começar a cair com força sobre o telhado da
igreja; e no que irá acontecer, neste inverno, às pedras que
cobrem os mortos, com as suas inscrições apagadas.

John Constable, “Árvores em Hampstead”, 1821,


Victoria and Albert Museum, Londres

313
RICARDo MARQuES

o quarto poema que conclui a sequência judiciana


pode ser vista como a mais complexa, uma vez que funde
três quadros de Constable num só poema. São eles “A
baía de Shoreham – à tarde”, “Mary Bicknell”(1816) e
“Cabeça de Rapariga, vista de costas” (1806). Em
primeiro lugar, a tendência geral do quadro vai do
universal para o particular, começando com a descrição
de um cenário tendencialmente disfórico, apesar de
extrema beleza. Já o segundo quadro fala sobre a mulher
do pintor:

John Constable, “Shoreham Bay – Evening sunset”, s/d,


Victoria and Albert Museum, Londres

314
NA TEIA Do PoEMA

John Constable, “Mary Bicknell”, 1816, Tate Gallery, Londres

o sol poente tinge o céu de vermelho. No imenso descampado,


homens e mulheres regressam do trabalho: pontos negros
e brancos sobre a tinta espalhada num suave gesto da
mão. Quero arrumar esta paisagem com os meus olhos;
dar-lhe um destino de espelho, escondendo formas e figuras;
e ver reflectido, no interior do quadro, o rosto amado, com
os cabelos presos a caírem sobre a gola branca
do vestido. Agarro-os, tiro o seu laço, e vejo-os derramarem-se
pelo pescoço, como a água negra do ocaso. É a hora de fogo,
que roubo aos deuses do incêndio e prendo no mostrador
do instante onde a vais buscar, om os teus dedos
de água, ouvindo um gotejar de desejo no limiar destas
colinas abertas como lençóis. […]

315
RICARDo MARQuES

Vemos logo nas primeiras linhas uma selecção de


um aspecto particular do quadro, imaginando Júdice o sol
a pôr-se ao mesmo tempo que as pessoas (“pontos negros/
e brancos”) regressam a casa. De seguida, naquilo que
parece ser uma nova fusão do pintor/sujeito poético/autor,
dá-se a primeira metamorfose poética, na qual o poeta
expressa uma vontade: “Quero […] ver reflectido, no
interior do quadro, o rosto amado”. Entramos então no
segundo quadro convocado, a mulher do pintor, mas
enformado ainda da paisagem de hora crepuscular do
primeiro (“É a hora do fogo […]”). Mais uma vez
assistimos ao “eu” poético transcender o quadro,
expressando o desejo de mudar um detalhe (os cabelos)
de Maria Bicknell (vv. 8-9).
[…]Descrevo-te o amor; e tu adormeces,
numa respiração branda, deixando-me nos braços o corpo da
noite, para que o guarde, até essa madrugada que só pertence aos
amantes, com a sua aura de incerteza. Então, os seus contornos
ganham o limite exacto de um fio de luz que te percorre a pele,
descobrindo os segredos que o teu sono me entrega. Devagar,
deito sobre ti uma toalha de murmúrios, até o som te cobrir,
e os teus lábios se abrirem num sorriso que apaga todas as
sombras, e restitui a esta baía uma luz matinal, como se o o seu fim
estivesse no princípio. Entro no seu mar; sigo um rumo
de astros, po entre os teus seios; e aprendo a navegação
em que nenhuma corrente é contrária, até ao fundo do
horizonte. Então, esvazio a paisagem de tudo o que não sejas
tu. um fundo ocre, contra a brancura das tuas costas. Sublinho
a linha do pescoço, que as aves atravessam, regressando das
mais antigas migrações, até esses beirais onde as esperam
os ninhos arruinados. Componho o teu perfil, sobre
esse voo; e roubo-lhe um bater de asas para te voltar,
de frente, até os teus olhos pousarem em mim, e nesse
encontro descobrir o indizível que nos une na difusa
vertiem dos sentidos. Com esta chave, abro os caminhos
do teu rosto; e fechas-me em ti, para não saires de mim.

316
NA TEIA Do PoEMA

Com a passagem da tarde para a noite, vemos então


o “tu” poético adormecido, numa correspondência
metafórica entre o seu próprio corpo e o corpo da noite.
Desta forma, e como um ciclo, chega então a “luz
matinal” da alvorada, como um “sorriso que apaga todas
as sombras” que o sujeito amado transmite, ao acordar.
Nesta contínua fusão de um corpo e outro, assistimos ao
que podemos designar como a consumação do acto de
amor, com o sujeito a entrar no mar onde “aprendo a
navegação […] até ao fundo do horizonte”. o verso
seguinte apresenta o terceiro e último quadro, com mais
um desejo manifesto do sujeito poético (“Então, esvazio
a paisagem de tudo o que não sejas/ tu”). Sempre tendo
por base a paisagem da baía, a que o subtítulo desta
variação quatro faz menção, a opção poética é novamente
pela mudança metamorfoseada pelos detalhes do quadro
(“para te voltar/ de frente, até os teus olhos pousarem em
mim”). o poema acaba depois com a referência à
importância que os olhos têm, agora com o sujeito de
frente, para a transmissão quase telepática do amor entre
ambos. É esta a verdadeira medida do amor, segundo o
sujeito poético, aquilo que os faz fechar dentro um do
outro: “com esta chave, abro os caminhos do teu rosto”.
De um modo geral, estamos perante um poema em
quatro movimentos, apontando assim para a procura
simbólica da perfeição concluída ou o fechamento de um
ciclo. os quadros seleccionados de Constable equivalem-
-se cronologicamente a determinados acontecimentos da
vida do pintor, que depois originam um processo de
identificação e metamorfose no autor que os faz (Nuno
Júdice). Como tal, a aproximação comentada tem tudo a
ver com o romantismo dos quadros, já que o sujeito
poético demonstra um exacerbamento, sob o signo da

317
RICARDo MARQuES

morte e da memória, do “eu”, bem como o plasmar dos


seus estados de alma na natureza (locus horribilis).
“No Atelier de Cézanne”315 é um poema de Linhas
de Água, que, como já vimos, é um livro que se ocupa
principalmente da teorização sobre o poema. Ainda que
esta visita ao “atelier” deste pintor possa ter esta linha de
leitura simples, isto é, a descrição de um espaço criativo,
Júdice parece assemelhar o lugar em que este pintor
pintava com o próprio espaço criativo que um poema
preenche:
As janelas fechadas tornam as paredes
azuis; com o sol, eram cinzentas.

A mesa com as maçãs já não tem as maçãs


antigas; só os copos e a garrafa são
os mesmos: o vidro não apodrece
com o tempo.

Mas as maçãs que ali estão podem


confundir-te com as que ele pintou: com
as janelas fechadas, ficam azuis
como as paredes.

A matéria conserva o espírito


que ali existiu, como se ele não
desaparecesse com o corpo que
habitou: perecível, porque
efémero.

Só o ar, que se deixa tocar como


um objecto, muda o sentido das coisas
entre um abrir e fechar
de janelas.

o que temos neste poema, desenvolvido sob


diversas formas, é um confronto entre as coisas pere-
cíveis e as que subsistem, num mundo constantemente
______________________
315
PR, 2000, p. 1037.

318
NA TEIA Do PoEMA

em mudança. o microcosmos do atelier, como já fizemos


alusão, é o espaço criativo que o poema é em si, usado
como sinédoque de um espaço ou mundo muito maior,
um macrocosmos. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
ocorre uma antítese entre o ser e o parecer dentro desse
mesmo espaço criativo, aquilo que aparenta ser pela mão
do artista e aquilo que realmente é visto pelo espaço
exterior. Disso nos dá conta logo a primeira estrofe, onde
aparece a metáfora fundamental do poema, a janela. o
poema vai-se estruturar tendo por base uma antítese entre
“janelas abertas” e “janelas fechadas”, que corres-
pondem, respectivamente, ao tempo efectivo de criação
artística e ao tempo da morte, do fecho do atelier. Todos
os elementos aludidos (paredes, maçãs) são influenciados
pela luz que pelas janelas passa, ganhando um estatuto
ontológico diferente. Apenas a “matéria” das coisas
parece conservar estes elementos, ainda que vistos por
uma luz diferente. Entre a criação e a não-criação, entre
a vida e a morte (artística), a última estrofe vem assim
culminar e confirmar esta ideia, com um trocadilho
linguístico com uma expressão fixa que exprime a
rapidez da mudança que um súbito elemento provoca.
Assim, “num abrir e fechar de olhos” torna-se “num abrir
e fechar de janelas”, que mudam o ar que corre no espaço
criativo do atelier e do poema.
Ainda no que toca ao Impressionismo e à pintura do
século XIX, Júdice tem um poema sobre o quadro de
Manet intitulado “Pequeno Almoço na Relva”, em que o
mesmo é referido implicitamente. o título do poema
reflecte precisamente esse intertexto, com uma re-
-localização contemporânea da primeira refeição do dia,
“Pequeno-Almoço na Cama”316:
______________________
316
O Estado dos Campos, 2003, p. 48.

319
RICARDo MARQuES

Tiro a alma do seu estojo de nuvem,


ponho-a no tabuleiro celeste,
e levo-o à cama, onde me esperas,
para um pequeno almoço divino.

Com os teus dedos de ninfa,


destapas o lençol de relva,
e deitas-te ao teu lado,
na terra quente do quarto.

Dividimos a alma, um pedaço


para cada um, e bebemos
o leite de nuvem, ouvindo
um bater de asas invisíveis.

Depois, arrumamos o tabuleiro,


voltamos a pôr a relva no sítio,
e esperamos que a alma nos
encha, ouvindo cair as aves.

Édouard Manet, “Le petit déjeuner sur l’herbe”, 1863,


Museu d’orsay, Paris

320
NA TEIA Do PoEMA

Intertextualmente falando, a relação deste poema


com o seu referente pictórico directo pode ser consi-
derada de grau fraco, já que não há uma descrição
efectiva do quadro de Manet. Há apenas alguns motivos
que aludem indirectamente ao quadro (“ninfa”, “lençol
de relva”), ratificando a linha intertextual onde se filia.
o poema de Júdice fala de um outro pequeno-almoço,
tomado na cama, com o sujeito amado.
Balthus, cujo nome original era Balthazar Klos-
sowski de Rola, é outro dos pintores a que Júdice presta
homenagem na sua poesia, numa “Carta de Balthus a
Antoinette de Watteville”317, que Júdice data de 1 de
Dezembro de 1933, quatro anos antes do casamento do
pintor com esta mulher:

A tela que preparo é feroz: uma cena


erótica. Mas não essas cenas triviais,
para consumo próprio; e nesse mais,
com a sinceridade a emoção contracena.

Quero declamar o trágico palpitante


de um drama da carne, quando pinto;
e aos gritos proclamar, exuberante,
as leis inabaláveis do instinto.

Volto assim ao conteúdo apaixonado


da arte. No quadro, uma lição de guitarra.
A rapariga ensina a menina a tocar;

depois, é na própria menina que agarra,


fazendo do corpo o instrumento amado.
E ambas se unem, com as cordas a vibrar.

321
RICARDo MARQuES

Balthus, “La Leçon de Guitarre”, 1934

Pegando no modelo de análise de Robillard, há aqui


uma referência directa ao intertexto pictórico aludido, o
quadro em que “a rapariga ensina a menina a tocar”
intitulado “Lição de guitarra” e o que Júdice propõe ao
leitor que imagine é uma carta onde o pintor descreve
selectivamente a pintura em que se ocupa, enviada para
a futura mulher. Centrando-se na guitarra que dá o nome
ao quadro, o pintor diz que prepara uma “cena erótica”
que reconhece “feroz”, mas que advoga de “sincero e
emotivo”, já que é apenas de um abraço de um corpo
amado, nu e despojado, que a tela espelha. Podemos
então ler denotativamente esta temática como a própria
paixão pela arte que o pintor sentia (“o conteúdo apai-

322
NA TEIA Do PoEMA

xonado da arte”), que assim é também traduzido na fusão


entre o pintor e a sua pintura. Aqui, a segunda estrofe
desta “carta” é central, onde o pintor fala meta-
foricamente das suas próprias razões para pintar (este e
outros quadros que, como foi provando, seguem uma
mesma gramática pictórica e temática).
Fugindo ao século XIX e XX, um poema sobre um
pintor, que se manteve inédito de qualquer volume de
poesia publicado posteriormente, foi “Caspar Wolf
(1735-1783)”318, pintor suiço que Nuno Júdice decerto
teve oportunidade de conhecer quando vivia em Berna.
Tal como o título indica, o poema vai funcionar como
uma narrativa imaginada em torno da figura deste artista
setecentista e das suas preocupações estéticas:
No centro da caverna, recolhe a luz que um outro
considerou perdida. Ela entra por uma estreita en-
trada, atravessa o espaço que o verniz conserva,
e bate-lhe no corpo – o centro, esse corpo pequeno
sobre a rocha, organizando as formas que apontam
invisíveis universos; e um céu azul e excêntrico,
ao qual associo uma memória mediterrânica de vento,
atrai o seu olhar que, assim, se afasta dos tú-
neis – de um caminho de uma descida interior, sem saída,
até ao lago negro de um gotejar de infinitos iní-
cios. Aí, não chegam já os brilhos de cima, nem a
sua imaginação recolhe os indícios de ser a que
atribui, a intervalos sem alma, o seu impreciso
equilíbrio. Precisaria de um caderno: recolha de
uma situação, ainda que efémera; esboços; de-
senhos; traços de atmosfera. Mas a obscuridade
impõe-se. o cair da tarde. E tudo adquire o tom idên-
tico ao seu silêncio: uma contaminação de treva
impede-o de reencontrar a saída. Dormirá até ao dia
seguinte, quando a luz regressar – naquele sono in-
deciso em cujas margens, num sulco de vigília, se
ouvem deslizar as grandes barcas de um sonho imóvel.

_______________________________________________

318
Revista Colóquio/Letras. Poesia, nº 95, Jan. 1987, pp. 72-73.

323
RICARDo MARQuES

uma das obsessões temáticas do pintor suíço, que o


celebrizaram, foram as paisagens suiças montanhosas,
resultando da sua paleta quadros onde o domínio da luz
e dos seus cambiantes eram um dos aspectos mais
importantes. A sua pintura parece assim preconizar a
preocupação romântica de representar as paisagens
bucólicas de forma objectiva e sublime, de acordo com a
categorização efectuada por Edmund Burke no seu
tratado estético Philosophical Enquiry into the Origin of
Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, de 1757319.
o poema de Júdice começa por realçar as preo-
cupações de Wolf sobre a luz, imaginando o pintor “no
centro da caverna, a tentar captá-la na sua efeme-ridade
crepuscular para que depois, previsivelmente, a possa
usar num quadro (o verbo “recolher” é de assinalar),
numa situação de extrema dificuldade e impossibilidade.
No entanto, o céu “azul e excêntrico” vai progres-
sivamente fazê-lo distrair do seu objectivo inicial,
fazendo desviar o seu olhar para o “negro lago” onde já
nenhuma luz se perscruta, enquanto o dia se encaminha
para a solidão da noite e da treva. Desta forma, ao pintor
não resta senão fica retido até ao amanhecer dos
primeiros raios, quando já poderá assim ver a luz do dia
e do caminho de regresso. De um modo geral, vemos
através deste poema como Júdice opta, por vezes, por
usar o facto biográfico e se apropria de uma característica
de um pintor para a desenvolver posteriormente num
poema, não aludindo sequer a nenhum quadro do mesmo.
Passemos agora dos pintores às pinturas, vendo, nos
três capítulos seguintes, os objectos da pintura poética de
Júdice: o retrato de mulheres, as naturezas-mortas e o
tratamento do par e do colectivo, respectivamente.
___________________
Segundo o autor, “o sublime” faz-nos ter medo, trata-se de
319

um adjectivo a aplicar quando algo é imponente e nos mete respeito.

324
NA TEIA Do PoEMA

1.2 As mulheres e os seus retratos

A arte começa, segundo Plínio, o Velho320, com o


retrato. A história mítica conta que Butades de Sycione,
mulher de Corinto cujo enamorado iria em breve partir
para o estrangeiro reparou, a dada noite, no contorno do
rosto do amado projectado à luz da vela, e decidiu
imortalizá-lo desenhando o contorno na parede321.
Por que razão são então as duas coisas indisso-
ciáveis? José Gil responde a isso dizendo que “o rosto
tem em si todas as formas do mundo”322, prosseguindo
com a afirmação de que a função do retrato, como vemos
desde a história de arte serve sempre para prolongar “a
imagem dos vivos para além da ausência da morte”323.
_________________________
Já o “pitoresco”, está entre o belo e o sublime, sendo digno de uma
paisagem que parece um quadro. (Cf. Edmund Burke, On the Sublime
and Beautiful, Vol. XXIV, Part 2. The Harvard Classics. New York:
P.F. Collier & Son, 1909–14; Bartleby.com, 2001. <www.bartleby.
com/24/2>. [acedido em Junho de 2009].
320
Cf. História Natural, XXXV, 151. (apud José Gil, 2005, p.
17).
321
São inúmeros os pintores e escritores que retomaram este
mito. Recentemente, no Museu Thyssen, em Madrid, este patente uma
exposição sobre “A Arte da Sombra” (de Janeiro a Abril de 2009),
onde pudemos observar vários exemplos de pintores de diversas
tradições que se interessaram por esta história, sendo que a exposição
terminava com um poema do contemporâneo espanhol Rafael Alberti,
que escreveu um livro dedicado à pintura (A la pintura, 1945).
322
José Gil, “Sem Título” – Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa,
Relógio d’Água, 2005, p. 19.
323
Idem, Ibidem. Para além de argumentar detidamente e
exaustivamente com alguns exemplos de autores que o referem, Gil
adianta mais um argumento, nomeadamente que “o adjectivo talvez
mais usado, na literatura sobre o retrato,para elogiar a obra feita, é
‘vivo’. […]”, parafraseando ainda uma expressão de outro pensador
sobre o assunto, Édouard Pommier (in Theóries du portrait – de la
Renaissance aux Lumières, Paris, Gallimard, 1998) – “ ‘É tão
semelhante que parece vivo. Só lhe falta falar’ ”. (Cf. Gil, Op. Cit., p.
20).

325
RICARDo MARQuES

o retrato poético de diversos tipos de mulheres tem


sido um motivo recorrente na obra poética de Nuno
Júdice. o seu intuinto vai tanto no sentido de prolongar
a vida de certas retratadas como de mostrar a vida poética
paralela que os seus olhos particulares observam em cada
uma. Como já referimos, no blogue que manteve durante
três anos, muitos dos poemas publicados partiam
exactamente de retratos de mulheres, conhecidas ou não,
cuja imagem era, a início, posta juntamente com o
poema. Vejamos assim e agora alguns exemplos, na sua
poesia, deste diálogo intertextual específico.
A Vénus de Urbino é um famoso quadro renas-
centista, datado de 1538, do pintor italiano Ticiano, que
é convocado em O Estado dos Campos, num poema que
tem por título “Ponto de Vista”324. o título é pertinente na
medida em que a perspectiva adoptada, a início, para
descrever o quadro vai ser a do cão que dorme em cima
da cama onde a deusa está:
Deixa-me ser esse cão na cama da vénus de urbino, à
espera que ela tire do sexo a mão esquerda e se volte
nos lençóis, para que toda a perspectiva do quadro se
altere. Então, serei eu quem ficará de frente para ela,
e não haverá motivo para que esteja virado sobre mim
próprio – eu, o cão da deusa – num sono hipnótico,
de costas para a menina ajoelhada para a janela, sobre
quem a ama se debruça, para que ela não tenha pena
do cão que ainda dorme. […]

Posta esta introdução irónica à forma como nos vai


ser descrito o quadro, o que Júdice faz de seguida é
começar a enumerar os vários aspectos referentes ao
objecto retratado, naquilo que se vai tornando uma aná-

_________________________________________

324
O Estado dos Campos, 2003, pp. 94-95.

326
NA TEIA Do PoEMA

lise dos motivos geométricos do mesmo. o triângulo,


figura primordial no contexto da pintura de perspectiva
renascentista, é assim a forma que Júdice mais alude.
[…] Quanto ao cotovelo direito
da deusa, metido na almofada, tem o ângulo necessário
para fazer sobressair o seio que, na linha que passa pelo
umbigo e vai ao encontro do seio esquerdo, desenha
um triângulo perfeito. De facto, soma-se ao triângulo
do braço; e acaba por remeter para o púbis, cujo vértice
se esconde sob os dedos que entram pelas coxas juntas,
como se pode ver pelo cruzar das pernas, abaixo dos
joelhos. No fundo, a pele de vénus é lisa, opondo-se
ao amarrotado dos tecidos – lençóis e vestidos das
mulheres do fundo; e mesmo ao pêlo do cão. Ah! Se
eu olhasse de frente para esta mulher nua, e soubesse
o seu nome – escondido pela designação da vénus de
urbino – poderia encontrar a porta que me faria entrar
pela superfície negra do fundo, para que a sua mão esquerda
saísse de entre as coxas, destapando-lhe o sexo, e o cão
me desse o lugar que lhe roubei, nesta alegoria de amor.

Ticiano, “Vénus de urbino”, 1538, Galeria Uffizi, Florença

327
RICARDo MARQuES

“Maria Zambaco, 1870”325 é o título de um poema


que testemunha a relação intertextual com um quadro do
pré-rafelita Edward Burne-Jones do mesmo título,
incluindo o ano em que ele o pintou. Assim, e para usar
a terminologia de Robillard, neste relação de grande
comunicação entre o texto de partida e de chegada,
vemos o sujeito poético a colocar-se no lugar de visitante
de uma exposição, num poema que podemos também ler
como apontamento autobiográfico. Como se estivesse a
contar ao leitor a história dessa mesma visita à exposição,
cada estrofe do poema irá tratar cada um desses
momentos, registando igualmente uma gradação emotiva
dos eventos narrados:
Levei-te à exposição do burne-jones: as mulheres
imateriais, pré-rafaelitas, enchiam as paredes. Nuas, vestidas,
novas, velhas, antigas, modernas, todas tinham flores
nas mãos, nos cabelos, nos seios, em qualquer
parte – é uma convenção de estilo, um sinal de época. Assim,
atravessei
contigo as salas do burne-jones, olhando mais
para ti do que para essas mulheres frias e distantes. uma única me
prendeu, porém: maria zambaco, modelo e amante, com
um cupido a puxar a cortina, por trás dela, e a seta do amor
pousada na mesa a que ela apoiava as mãos.

É verdade que os olhos de maria podiam ser os teus. Por isso, ao


ver
o postal que trouxe dessa exposição de burne-jones, dou por que
tu és quem me olha nos olhos dela. É certo que os olhos do postal
não têm a luz dos teus, nem encontro neles a inquietação
que está no fundo do teu amor; mas lembro-me de ti pelo modo
como ela inclina a cabeça, e agradeço a burne-jones ter pintado
esta mulher,
para que te traga de volta até mim, mesmo que só
na aparência desta imagem que o anjo destapa, sabendo
muito bem o que está a fazer.

____________________________________________

325
Cartografia das Emoções, 2001, p. 90.

328
NA TEIA Do PoEMA

Da primeira para a segunda estrofe, vemos como


Júdice igualmente passa da descrição poética imparcial de
uma exposição, coroada por um determinado quadro, para
uma relação desse mesmo aspecto, que sobressai do resto,
com a vida particular do sujeito poético. Assim nos diz que,
apesar de todas as diferenças entre uns e outros, “É verdade
que os olhos de maria podiam ser os teus”, e talvez seja
essa a explicação de se ter salientado aquele quadro de toda
a exposição de “mulheres/imateriais, pré-rafaelitas” (“dou
por que/ tu és quem me olha nos olhos dela”). A última
estrofe, por seu turno, vê o poema concluir de uma forma
comum em Júdice, isto é, com o encontro ou reunião
amorosa do sujeito poético e do objecto amado (que
também se encontra na exposição) a que se junta um
reiterar da metáfora dos olhos, os da mulher do quadro que
fazem lembrar, como se viu, os da mulher amada:

Eu é que não sei o que fazer a ferida daquela seta. Deixo-a sangrar,
enquanto tu olhas os quadros, e sigo-te por entre as mulheres de
burne-jones, tu, a que eu amo, e cujos olhos me fixam no olhar sem
fim de maria zambaco.

Edward Burne-Jones, “Maria Zambaco – 1870”,


Clemens-Sels-Museum, Neuss Alemanha

329
RICARDo MARQuES

um outro exemplo pertinente de retrato de mulher,


e que nos leva a uma visita que o autor fez à Rússia, é o
de «Retrato da Princesa Golytsina, Scherbatova de
nascimento»326, título judiciano irónico que parte do
próprio título do quadro de Pyotr F. Sokolov (1791-
-1848):

Frontispício do livro A Fonte da Vida, 1997, com uma imagem do


quadro “Retrato da Princesa Golytsina”, por Pyotr F. Sokolov

A princesa finge apoiar o cotovelo no


bordado, dando assim ao pintor um pretexto para
meter no mesmo quadro a princesa e o bordado:
ela, branca e inexpressiva, embora um esboço
de sorriso lhe aflore aos lábios; e o bordado, intro-
duzindo a cor no canto direito, onde adivinha
uma mesa, chamando-me a atenção do olhar que, no
_______________________________________________

326
PR, 2000, pp. 803-804.

330
NA TEIA Do PoEMA

entanto, luta para subir até ao rosto da princesa,


em busca de um sinal que nos permita estabelecer o
contacto, como se ela só estivesse à espera
que o chame para sair dali. Mas não: a princesa
Golitsyna espera, apenas, que o pintor Sokolov
acabe o retrato para pegar no bordado, pô-lo sobre
os ombros e ir até à sala, onde a esperam com
a água a ferver no samovar para lhe prepararem
o chá. Então, desfolhará as revistas de moda que
chegaram de Paris, e poderá escolher um outro
vestido, de cores vivas, como as do bordado. É que
o vestido com que Sokolov a pintou lhe acentua a
brancura da pele, que se prolonga do pescoço
para o busto e das mãos para os antebraços
sob a transparência da renda. Assim, o excesso
de luz retira a sensualidade ao corpo da
princesa Golitsyna, que só naquela noite,
no salão do palácio, poderá olhar-se nos grandes
espelhos de Veneza, depois de tirar o manto
de pele, e descobrir que a cor vermelha do novo
vestido a enche de fogo, fazendo com que o riso
lhe inunde os olhos, e me faça esquecer a imagem
que o pintor Sokolov pintou, e me olha,
convidando-me a imaginar o som do seu riso
numa noite gelada de um antigo inverno de Moscovo.

Mais uma vez estamos perante um poema judiciano


em que o poeta parte do quadro para uma digressão
poética que transcende a própria obra de arte, totalmente
subvertida no fim. Não estamos no domínio da paródia,
como vimos em muitos casos, especialmente no que toca
aos escritores, mas sim no da glosa metaliterária, uma vez
que o poema constitui um comentário. Cada verso de
Júdice vai-nos descrevendo a forma como o autor vê este
quadro, mais propriamente o retrato em causa, dando ao
seu leitor uma descrição detalhada e quase voyeurista da
mulher que o quadro retrata. Assim, o olhar de poeta “luta
para subir até ao rosto da princesa”, fixando-se neste
ponto como que hipnotizado. Apesar de parecer seduzido,

331
RICARDo MARQuES

a relação entre pintor e objecto é, como se disse,


subvertida, mostrando uma princesa que “finge”, e que
só está à espera que o retrato seja concluído para ir bordar
para outra sala. Para aqui chegar, terá de passar pelos
“grandes/espelhos de Veneza”, onde o poeta a imagina a
“tirar o manto/de pele” para descobrir um vestido
vermelho que lhe transmite ainda mais beleza. Esta opção
claramente poética por pintar a realidade de uma forma
alternativa corresponde a uma preferência do sujeito
poético que o próprio justifica; ele apenas o faz para
“imaginar o som do seu riso/numa noite gelada de um
antigo inveno de Moscovo” que o pintor obviamente não
conseguiu pintar, e que Júdice concretiza pela poesia.
Já vimos num poema anterior que Francisco de
Goya é um pintor visado na poesia de Nuno Júdice327. No
poema “Autópsia”328, presente em Cartografia das
Emoções, o poeta vai aludir à polémica dos quadros de
1797-1798 em que se pensa que o pintor retratou a sua
mecenas e possível amante María Teresa Cayetana de
Silva, duquesa de Alba. Estes quadros ficaram
conhecidos para a posteridade como Las Majas, uma nua
e outra despida. Tanto um como outro são descritos no
poema judiciano:

______________________________________________
327
o poema em questão é “Exercício de Interpretação” e
encontra-se in PR, 2000, pp. 917-918.
328
Cartografia das Emoções, 2001, p. 91.

332
NA TEIA Do PoEMA

As duas Majas, expostas lado a lado no Museu do Prado, Madrid

Limpo com um espanador a memória de


María Teresa Cayetana de Silva, duquesa de Alba, enterrada no
campo
de Santo Isidoro de onde foi exumada para autópsia, em 1945,
notando-se então a falta dos pés. Enterraram-na vestida, e
é assim que o corpo surge, na fotografia, com a mão direita visível,
e um
esgar de dor na caveira. A nudez, aqui, pertence apenas
à morte que lhe aconteceu antes dos quarenta anos – como
se a mais bela das mulheres de Espanha pudesse morrer,
de um dia para o outro, sem razão aparente. Falou-se
de veneno – mas o seu veneno era outro: a beleza. Nua sobre
almofadas,
no quadro de Goya,
os seios apontando os horizontes do amor,
e o púbis sobressaindo de entre as coxas, na linha do
umbigo, fixa-nos com os olhos desmaiados do prazer. A mão
que se vê no túmulo, segura aqui a cabeça; e o ricto
da morte é substituído por um sorriso de lábios fechados,
num desafio a quem por ela passa, como se alguém
pudesse resistir ao abismo que se abre sob o braço esquerdo, onde
se cruzam o tecido e o torso. […]

333
RICARDo MARQuES

Na primeira parte desta longa “autópsia”, come-


çamos por verificar um dado real que justifica a intenção
irónica do título do poema, o de ser, concomitantemene,
um comentário (sinónimo de “autópsia”) e referir uma
alusão à exumação efectiva do corpo por um des-
cendente, a meio do século XX. Neste sentido, é de notar
ainda a coloquialidade das expressões empregues
(“Limpo com um espanador a memória de […]”), bem
como a sensualidade da descrição da “beleza” da
Duquesa (v. 10), um aspecto que também se encontra em
outros poemas judicianos onde há lugar à descrição de
uma mulher, sobretudo se é objecto do sentimento
amoroso. um outro aspecto quotidiano a assinalar é, sem
dúvida, a morbidez da descrição de uma fotografia da
mesma mulher morta e mutilada, que constitui um par
antitético para com toda a jovialidade e frescura dos
referidos quadros em que aparece viva. Pensamos haver
aqui uma irónica referência à efemeridade da vida, à
vanitas romana, que admoesta todos que o exterior não
interessa, uma vez que a morte está sempre próxima.
Assim, o poema conclui com uma reflexão neste sentido,
suscitado por um novo e profético prescrutar para o corpo
ainda intacto dos quadros (“não/adivinha a mutilação
póstuma”) e onde a metáfora do princípio do poema para
a acção da escrita do mesmo (“Limpo com o espanador”)
é retomada sinonimicamente nos últimos versos (“limpo
o pó dos séculos”):

[…] Nua e vestida,


a duquesa de Alba está inteira: e olho para os seus pés,
onde cada um dos dedos, com as unhas perfeitas, não
adivinha a mutilação póstuma, para relíquia, ou
por simples descuido, o que não é grave, nalgum juízo
final os restos se hão-de colar, e María Teresa Cayetana de Silva
restituída ao seu esplendor, se apresentará com o argumento
com que a limpo do pó dos séculos: a beleza absoluta
do seu corpo, o mais puro sinal de que
merece a eternidade.

334
NA TEIA Do PoEMA

Estruturalmente muito semelhante é o poema


“Manon Baletti, retratada por Nattier (1737)”329, também
incluído neste livro, uma vez que se trata de uma
composição poética onde se imiscui um apontamento
intertextual situado a dois níveis; ao longo do texto, por
um lado, e logo a início, antecedendo-o numa epígrafe
(“…mostra-te então mais humano do que crítico; e/ assim
os teus prazeres serão maiores”). Quem profere esta
afirmação é Domenico Scarlatti, e Júdice explica a
relação entre um artista e outro logo a início do poema:
olhando o quadro em que Nattier te retratou,
em 1737, apeteceu-me ouvir um dos exercícios para cravo que,
um ano depois, Domenico Scarlatti compõs. Mas tu,
encostada ao espelho, sobre um fundo castanho, chamas
por mim; e eu, sabendo que
a composição exige um esforço atento
do espírito, finjo que não dou por isso e concentro-me na música
de Scarlatti. Não há nada melhor do que o barroco para ir de
encontro à tua beleza estranha.

Esta primeira estrofe serve, em primeiro lugar, para


introduzir os vários intertextos convocados – o pictórico
do quadro de que se irá falar, e o musical, que o próprio
quadro suscita. Nela é estabelecido desde logo um
diálogo directo e ficcional com Manon Baletti, a quem o
sujeito poético claramente se dirige. Paralelamente, é de
verificar um apontamento de arte poética quando se
defende implicitamente que para fazer o poema, texto
escrito, não pode haver interferência de outros tipos de
textos, nomeadamente o musical (“eu, sabendo que/ a
composição exige um esforço atento […]”). Há também
uma certa ironia na forma de dizer que ela é bela de uma
forma “estranha”, ao relacioná-la com a exclusiva aten-
___________________________________________

329
Idem, p. 88.

335
RICARDo MARQuES

ção à música barroca, também ela “estranha”. Este


apontamento sobre a beleza vai sugerir as estrofes
seguintes:
É verdade que não podias adivinhar que,
sob o impulso dessa música, eu te iria dedicar este poema,
e muito menos que o teu rosto,
sob os cabelos onde duas flores se confundem
com asas de borboleta, me obrigaria
a perder-me nos seus olhos, e do que
está no mais fundo da sua cor, entre o cinzento
e o verde.

Mas são os teus seios de onde, sobre


a renda branca do vestido, uma rosa cresce, que
me fazem despir-te a alma. Sim: o sinal,
no queixo, que não sei se é real ou se é
fingido, podia impedir-me de aceder a esse plano
para além da superfície, ou da
aparência. Porém, se o usas para acentuar apenas
um leve traço irónico nos lábios, é
porque a verdade está para além da máscara.

Nesta segunda parte, é de assinalar que o poema


assume claramente a sua natureza de comentário de uma
outra obra de arte, como se pode comprovar nas primeiras
linhas. Ainda na primeira estrofe, encontramos a razão
confessada para o fazer, que é novamente o olhar da
mulher do quadro, “entre o cinzento / e o verde”, “que
me obrigaria a perder-me”. Na segunda estrofe, porém,
outros aspectos, desta feita mais físicos, são descritos,
nomeadamente “os teus seios”, “o sinal,/ no queixo” e
“um leve traço irónico nos lábios”, enfatizando a beleza
singular da retratada.
Então, subo para o palco dos sentimentos
em que poderemos representar uma cena sem ter em conta
o espaço e o tempo. Eu, olhando-te como se
estivesses comigo; e tu, morta há três
séculos: falamos. Pedes-me que atravesse os bastidores
da eternidade, que empurre as sombras e o pó das

336
NA TEIA Do PoEMA

idades, e colha essa rosa que mal te oculta a linha


do seio. Hesito em fazê-lo: uma flor
murcha mais depressa do que o instante – como essas rosas
que ardem em cada lado do teu rosto.

“Para te indicar a posição das mãos, disse Scarlatti, aviso-te


que pelo D indico a direita e pelo M a esquerda: sê feliz”

Nestas últimas estrofes, iniciadas significativamente


pelo advérbio de tempo “Então”, regista-se um outro
momento de referência ao quadro, que se pode designar
desde já como metatextual. Assim, e continuando a
dirigir-se à retratada por Nattier, o sujeito poético assume
a escrita do poema sobre o quadro onde ela está como
“subir a um palco […] sem […] tempo nem espaço”, e
assim, de novo, com a distância “três/ séculos: falamos”.
A referência simbólica à colheita da rosa vai neste
sentido, bem como no da caracterização da flor como
efémera. o dístico final, pelo seu lado, serve de
conclusão irónica ao poema, com uma transcrição de um
discurso fictício de Scarlatti, como que, ao que parece,
quisesse ensinar Manon a tocar o instrumento que o
celebrizou, o cravo330.

_____________________________________________
330
Sobre este poema, diz o autor, numa entrevista com Egídia
Marques Souto, que “Foi uma relação casual que juntou as duas
coisas [o quadro de Nattier e a música de Scarlatti]. Foi a relação
com a exposição de Nattier, onde vi esse quadro e, depois, também
a época. É o mesmo século, o século XVIII. Nesse período, eu estava
também a ouvir muito a música de Scarlatti, que esteve na corte de
D. João V nesse mesmo século”. Daqui depreendemos que, como
em muitos outros poemas judicianos, a relação entre os vários níveis
intertextuais se processa de uma forma quase aleatória, numa junção
claramente decidida pelo autor.

337
RICARDo MARQuES

Jean-Claude Nattier, “Manon Baletti”, 1757,


National Gallery, Londres.

Bartolomé Estéban Murillo (1618-1682) foi outro


pintor que Júdice convocou na sua obra poética,
nomeadamente um quadro com uma cigana que deu
origem ao título de um poema, “A Cigana de Murillo”,
presente em O Estado dos Campos331. Aqui se descreve
um “encontro” entre o autor e a personagem do quadro,
num museu:
Atravesso a rua onde me espera a cigana de Murillo, com
o seu lenço de cor, e peço-lhe que me leia a sina. Ela não me ouve,
e continua com o sorriso irónico que se dirige a alguém
que não vejo, e cuja presença é mais importante para ela do
que eu, que me atravesso à sua frente muitos séculos depois
de murillo a ter pintado. No entanto, digo-lhe, é a mim
que tens de ler a sina, mesmo que eu saiba mais do teu futuro do
que tu alguma vez saberás do meu – não sei é nada da tua vida, nem
___________________________________________

331
O Estado dos Campos, 2003, pp. 92-93.

338
NA TEIA Do PoEMA

da razão por que sorris, com essa ironia que se dirige a alguém
que está no lugar onde eu estou, agora que atravessei a rua
e fui ter contigo, nessa paragem de autocarro em que esperas
um futuro que não sabes qual é, há tantos séculos atrás
do meu.

Nesta primeira estrofe, o sujeito poético encontra-se


em frente ao quadro, provavelmente num corredor onde
este se encontra exposto e começa por descrever esta
cigana física e psicologicamente. De notar, desde logo,
no estilo de abordagem ao quadro é a fusão do mundo
que este regista com o próprio mundo do observador (vv.
1-2). Igualmente importante neste contexto, e central para
o resto do poema, é o acto de pedir à cigana que “lhe leia
a sina”, uma vez que despoletará inúmeras extrapolações
filosóficas em relação ao verdadeiro tema do quadro, a
passagem do tempo. Júdice tenta assim, dar vida à
personagem pintada, esforçando-se para manter um
diálogo com ela, apesar de registar que “ela não me ouve,
/ e continua com o seu sorriso irónico que se dirige a
alguém/ que não vejo”. Posteriormente, o “eu” poético,
aqui possivelmente confundido com o autor, assume que
ainda que saiba mais dela do que ela sabe dele, a vida da
cigana será sempre um mistério, assim como “a razão por
que sorris”. A partir daqui, a acção de ler a sina remete
então o poema para a reflexão a que aludimos acima,
sobre os séculos que distam entre o sujeito poético e o
sujeito do quadro (vv. 12-13):
o que me dizes, porém, é que sou eu quem não sabe o que vai
ser o futuro, nem em que mãos o hei-de ler. No entanto, o futuro é
já amanhã, e depois de amanhã saberei o que se passou
ontem, para poder ler esse futuro anterior em que terei sido
aquilo que prevejo que fui. Assim, poderia dizer-te que andaste
pelas estradas de espanha, carregando o peso dos anos que
murillo desenhou na expressão com que me olhas, mesmo
que ainda sejas nova, e só o negro dos teus olhos anuncie
os temporais por que hás-de passar, na tua peregrinação por

339
RICARDo MARQuES

igrejas e bordéis, lendo as sinas de quem te possuiu. E se


o teu corpo é pó, é cinza, é o nada de que somos feitos
quando saímos do quadro de murillo, não é por isso que
és menos real para mim, que te olho deste lado da rua
que atravessei para ir ao teu encontro, embora
não seja para mim o teu riso.

Partindo da ideia deixada atrás, a segunda estrofe


aprofunda a reflexão pessoal, em tom especulativo, nunca
perdendo do vista a interrogação retórica em relação ao
quadro. Desta forma, o que já se fala aqui é da incógnita
do futuro, que nenhuma cigana pode ler nas mãos.
Complementarmente, também se diz que o futuro se
constrói todos os dias (“o futuro é já amanhã”), como que
lembrando que a vida passa depressa e se aproxima todos
os dias da morte, inevitável. Assim, a confusão preme-
ditada e poética entre os dois mundos, que já registamos
acima e que aparece em muitos poemas de Júdice, vista
à luz deste pressuposto filosófico incontornável, não é
assim tão importante no contexto linear do tempo, já que
também este poema poderá ser alvo do mesmo diálogo e
especulação que Júdice estabelece com a pintura barroca:
E se eu vou ter contigo, e tu pareces
fazer o gesto de sair do quadro para vires ter comigo, o
que isso quer dizer é que há desencontros em que os seres
se encontram – um, sorrindo há muitos séculos para
quem, fora do quadro, o olha; e outros, atravessando a rua
para nada, a não ser pedir a alguém que lhe leia a sina
que nunca ninguém há-de ler.

De uma maneira geral, o poema constrói-se entre


dois planos que se cruzam e que se auto-explicam. No
“desencontro dos seres” que se encontram poste-
riormente, de que fala esta última estrofe, este poema é
paradigma de uma tentativa de conciliar duas atitudes.
Por um lado, tentar analisar descritivamente o quadro de

340
NA TEIA Do PoEMA

Murillo, para depois partir para outras reflexões mais


amplas sobre a permanência da arte no tempo no contexto
da inexorabilidade da morte, que nos devolve, como
Júdice cita de Camões a meio do poema, “ao pó, à cinza,
e ao nada de que somos feitos”.

Bartolomé Estebán Murillo, “Menina vendendo fruta”, 1650,


Museu Pushkin de Belas Artes, Moscovo

o poema que de seguida analisaremos é mais um


exemplo da contínua influência que uma certa pintura
nórdica parece ter tido na escrita poética ecfrástica de
Nuno Júdice. o seu título é “Natureza Morta com
letras”332 e esteve presente originalmente na Teoria Geral
do Sentimento. o quadro em causa está presente no Mu-
___________________________________________
332
PR, 2000, pp. 923-24. Analisaremos e aludiremos a outras
“Naturezas Mortas” num próximo capítulo desta parte.

341
RICARDo MARQuES

seu Gallen-Kallela da Finlândia, da autoria do pintor Axel


Gallen-Kallela (1865-1931)333, e representa a mulher, Mary
Gallen, a bordar, com o cenário de Kalela (arredores de
Helsínquia) ao fundo, de que também fala o poema
judiciano:
Se mary gallén não tivesse pegado na caixa de costura,
nesse dia, é possível que nunca tivesse existido o quadro
em que ela desenha uma tapeçaria, um fragmento de bordado,
uma dessas almofadas que se põem nos sofás e ficam, como
objectos decorativos, até que o tempo e o uso as atirem
para o sótão. Também mary gallén foi parar a esse sótão:
imagino que a sua memória só exista em velhos álbuns
guardados em arcas, em cartas de amor escondidas em
gavetas que ninguém voltará a abrir, em flores secas,
colhidas numa tarde de passeios bucólicos, nos dias
infindáveis do verão finlandês. Mas o seu rosto mantém-se,
por detrás do véu negro que o encobre, e a atenção com
que fixa o tear quase nos faz esquecer a presença das
rosas, do lago, e da floresta, ao fundo, fechando a
perspectiva. […]

Akseli Gallen-Kallela, “Mary ompelee Kalelan kuistilla”, 1897,


Museu Gallen-Kallela, Kallela, Finlândia
_______________________________
333
Também no seu blogue, Nuno Júdice tem mais poemas
sobre quadros o pintor finlandês, nomeadamente “No atelier”, de 18
de Maio de 2006. ( <http://aaz-nj.blogspot.com/2006_05_01_
archive.html >, acedido em Junho de 2009.).

342
NA TEIA Do PoEMA

Nesta primeira parte do poema, podemos ver que a


atenção do poeta, para usar o modelo de Robillard, se vai
focar sobretudo num ponto seleccionado do quadro (e que
no fundo o domina), isto é, o próprio sujeito retratado.
Júdice sugere que o motivo para a pintura podia não ter
acontecido se não fosse um acaso do quotidiano da mulher
do pintor, partindo depois para uma digressão relativa ao
próprio esquecimento a que posteriormente foi votada
(“Também mary gallén foi parar a esse sótão”), quando a
morte pode apagar a memória dos vivos. Por outro lado,
parece igualmente haver aqui uma alusão à função da arte
como repositório permanente da memória, anulando a
efemeridade da passagem do tempo. Assim, também a
mulher do artista pode ver-se a si própria retratada para a
posteridade, mesmo que seja esquecida dos vivos à sua
volta, num quadro. Vejamos o resto do poema, onde se
desenvolve esta ideia e que acaba por o concluir:
[…] É verdade que também se vê o céu: e as nuvens
brancas sobre o azul contrastam com o negro do vestido de
mary gallén, de luto por si própria, agora que todo aquele
mundo desapareceu há precisamente cem anos, num dia
qualquer do verão de 1897, em que mary gallén não sonhava,
sequer, que alguém pudesse vir a escrever um poema sobre
ela, como se toda a sua vida se esgotasse no olhar do
pintor que a transforma, sobre um fundo de cores e figuras. É
verdade, porém, que mary gallén é, neste quadro, uma
presença talvez inútil, se considerarmos que ela olha para
dentro de si própria, obstinada como a luz eterna do verão
finlandês. Ela está absorta nas coisas que imagina, como se
nos quisesse expulsar de frente de si própria; e é por isso
que desviamos os olhos para o céu, ou que nos limitamos a
olhar para o bordado, a que falta encher a parte de cima, cujo
vazio contrasta com as rosas abertas, amplas,
cheias como a maré do lago que recebe a cor branca do céu
finlandês – o céu de há cem anos, vazio como os olhos de
mary gallén.

343
RICARDo MARQuES

Analisada que está esta “Natureza morta com


letras”, vejamos agora de que forma as “naturezas-
-mortas” aparecem na poesia de Nuno Júdice.

1.3. As naturezas-mortas

As naturezas mortas parecem fascinar este autor.


Muitos são os poemas que acompanham esta obra poética
que se dedicam a esta temática pictórica, seja apenas
como referência vazia ou alusão, seja pelo elementos
presentes no conteúdo do poema334. Na história da
natureza-morta, muitos têm sido os pintores que sobre ela
se tem debruçado, bem como outros artistas, como os
poetas335.
De entre os vários exemplos de “naturezas mortas”,
é de salientar um que fala de Josefa de Óbidos e de um
quadro frutal, “Natureza-morta com Espírito Santo”336:
________________________
334
Contam-se, de entre PR, e por ordem cronológica, “Natureza
morta” (p. 271), “Natureza morta” (p. 619), “Natureza morta com
marinha” (p. 669), “Natureza Morta com letras” (pp. 923-924),
“Natureza Morta” (p. 1006), “Natureza morta com algum
sentimento” (p. 1079). Nos livros mais recentes – “Natureza morta
com Espírito Santo” (sobre Josefa de Óbidos, in Cartografia das
Emoções, 2001, p. 87), “Natureza Morta com janela” ( in O Estado
dos Campos, 2003, p. 73) “Natureza morta com laranja descascada”
(idem, 2003, p. 74). Também indirectamente se fala nesta poesia de
natureza-morta enquanto conceito (Cf. “o Beijo”, in Geometria
Variável, 2005, p. 68 – “Teria começado por ser uma natureza morta:
as flores/ em ramo, deitadas no chão, e um fundo negro que realça/
o branco das pétalas […]”).
335
Para um desenvolvimento adequado da temática, que não
cabe aqui fazer, sugerimos a leitura de Sybille Ebert-Schifferer, Still
Life: A History, Harry N. Abrams, New York, 1998, Norman Bryson,
Looking the Overlooked: Four Esssays on Still Life Painting,
London, Reaktion Books, 1990 e Norbert Wolf, Still-Life, Cologne,
Taschen, 2009.
336
Cartografia das Emoções, 2001, p. 87. Segundo nos diz
Egídia Marques Souto (Cf. bibliografia final, 2007, p. 78), este poe-

344
NA TEIA Do PoEMA

Josefa d’Óbidos, “Cesto com cerejas, queijos e barro”, 1660-70,


Colecção Particular, Lisboa.

As cerejas de josefa de óbidos perdem a cor


por entre laranjas e romãs. Não há pássaros para as debicar
no céu do quadro; e se estendo a mão para colher uma delas, o
guarda do museu vem ter comigo: “É proibido tocar nas telas.”
Mas as cerejas estão ali a pedir-me que as apanhe; e que as coma,
antes que amadureçam demais, e comecem a impregnar de bolor
a casca das laranjas e das romãs. olho para as cerejas de josefa
com inveja do tempo em que ela as pintou: era o tempo
em que se podiam colher laranjas e romãs, e se sabia
que o seu tempo era diferente do tempo das cerejas; por isso, as
cerejas de josefa de óbidos já estão fora de prazo no tempo em que
se apanham laranjas e romãs, quando cada tempo tinha os seus
frutos, uns a seguir aos outros.

o estilo jocoso e encadeado de Júdice sobressai


desde logo neste início de poema. Começamos por uma
alusão selectiva dos elementos do quadro, numa descri-
__________________________
ma é na verdade um exercício de Júdice sobre um detalhe específico
do quadro “Cesto com cerejas, queijos e barro” (1660-70), visto
quando jovem, no Museu de Arte Antiga, sendo esse o pormenor que
para sempre recordou do quadro.

345
RICARDo MARQuES

ção que se centra nos frutos que lá estão retratados


(cerejas, laranjas e romãs), para depois o poeta começa a
divagar por assuntos mais contemporâneos. A primeira
digressão vai ao encontro da diferença entre os tempos
actuais, em que o quadro é exposto num museu, e os
tempos em que o quadro foi pintado, pegando-se nos
frutos do quadro para demonstrar que naqueles tempos
havia um maior respeito face à passagem do próprio
tempo (respeito esse que é dado por analogia com o
respeito pelo tempo da sua colheita). Após isto, Júdice
introduz assim uma outra premissa lógica, misturando
um facto biográfico com o próprio ofício de pintora:
[…] Juntá-los, no mesmo quadro, então, era um exercício
conventual, substituindo outros trabalhos para que ela não
tinha jeito: as orações e os sacrifícios, as missas e as penitências. o
que josefa talvez esperasse, ao meter as cerejas no meio das laranjas
e das romãs, era que a pomba do espírito santo descesse do paraíso
e as viesse comer antes que apodrecessem. Mas quem apodreceu
foi ela, quando o seu tempo chegou: número anónimo numa pedra
do claustro, por onde passamos, sem saber se as cerejas que ficaram
no quadro ainda lá vão estar amanhã, ou se a pomba vai descer,
finalmente, para as comer uma a uma, em memória de josefa de
óbidos.

Vemos, nesta conclusão do poema, uma passagem


do cómico leve para uma paródia macabra. Júdice
justifica o exercício de dispor os três frutos, no mesmo
quadro (ainda que anacronicamente no que toca ao tempo
de colheita), com uma distracção (“conventual”) do seu
ofício a tempo inteiro de “orações, sacrifícios, missas e
penitências”. Isto porque as cerejas já teriam apodrecido
caso esperassem a colheita das laranjas e romãs, o que
leva o sujeito poética a concluir, ironicamente, que ela
pensaria que “a pomba do espírito santo descesse do
paraíso/ e as viesse comer antes que apodrecessem”. o
poema acaba, assim, com uma brincadeira com este

346
NA TEIA Do PoEMA

verbo “apodrecer”, onde a digressão reflexiva se torna


mais profunda (a vida versus a morte, tão importante
neste autor), e onde o veículo para tal acontecer continua
a ser a pintora, já, ela própria, “uma natureza morta com
espírito santo”: “Mas quem apodreceu/ foi ela, quando o
seu tempo chegou”.
Já em “Estudo para um quadro”, há uma subversão
clara deste tipo de opção temática nas artes plásticas, com
o recurso aos elementos que compõem um quadro deste
tipo. Dá-se assim, pelas mãos de Júdice um processo
inverso ao de partir do poema para a pintura, naquilo que
poderíamos denominar de “metamorfose paródica”. Aqui
parte-se, assim, do estereótipo de um certo tipo de pintura
(“Natureza morta”) para conceber o poema:337
o lápis, o pimento e o alho francês juntaram-
-se por acaso, em cima da mesa da cozinha. En-
tão, poderiam ter servido para uma natureza
morta; e um outro sentido nasceria, da sua
coincidência, se a toalha fosse azul e vermelha.
No entanto, o lápis acabou a fazer a lista das
compras, o pimento foi parar à panela do arroz
e o alho francês, cortado às rodelas, ferveu
durante uns minutos até a sopa acabar de cozer.

Fazendo uma análise mais próxima do poema, é


inegável uma estrutura paralelística no caso deste poema,
como é típica em Nuno Júdice. Este poeta vem assim
contar ao leitor uma história através de diversos ele-
mentos que, numa primeira atitude desenvolve, e depois
recolhe, de uma forma transformada. Igualmente incon-
tornável é a atitude paródica que, muitas vezes, lhe assiste
essa opção, como é o caso deste poema. Personificando
os elementos que servem de “estudo para um quadro”,
____________________________________________

337
PR, 2000, p. 820.

347
RICARDo MARQuES

Júdice vai dar-lhes uma nova utilidade que não é para o


quadro (“poderiam ter servido para o quadro”), subver-
tendo assim o propósito inicial a que o título do poema
alude.338
Já dissemos atrás que Cristo é um figura religiosa a
que muitas vezes Nuno Júdice alude, especialmente
relacionado-o com a representação pictórica de quadros
com a sua figura e de episódios ou personagens rela-
cionados com ele. “Exposição”339 enquadra-se no pri-
meiro caso:
Na parede, o Cristo dobra-se como um peixe
acabado de pescar. A morte tirou-lhe o ar,
o equilíbrio, a cor; e dobra-se sobre o branco
da cal como se estivesse deitado no lençol
mortuário. os seus olhos abertos, onde
já nada se reflecte, esperam os dedos
que fechem as pálpebras, escondendo o vazio de
onde há muito a tinta desapareceu. A
campainha do museu toca, indicando a hora de
fechar. Deixo-o sem lhe fechar os olhos
e sinto, atrás de mim, o seu olhar.

Iremos ter oportunidade de verificar um outro poema


em que a figura de Cristo aparece espelhada num texto
pictórico, juntamente com Maria Madalena, registando
_______________________________________________
338
um poema que faz exactamente o mesmo com elementos
de uma lista de compras é “Rol”, de A Matéria do Poema (p. 20),
que enumera os elementos vegetais de que necessita para fazer uma
sopa, mas que acaba por não fazer, saindo do poema e da loja com
“o poema no saco”. “Lógica”, de Cartografia das Emoções, é um
poema que se assemelha igualmente a esta enumeração de vários
elementos que se encontram numa praça, sem, no entanto, ter
conotações de teorização poética. É um pequeno poema jocoso sobre
a prática filosófica – “Encontrei um filósofo no mercado […]
afastou-se,/ ao longo de bancas e de clientes, cambaleando, como/
se a vida o empurasse até ao canto dos talhos, onde se/ cortam bifes
como os filósofos fazem às ideias”.
339
PR, 2000, p. 822.

348
NA TEIA Do PoEMA

uma observação especulativa por parte do sujeito poético


durante uma visita ao museu onde o quadro está presente.
Desta feita, Cristo aparece sozinho, numa parede,
dobrado “como um peixe/acabado de pescar”, numa
comparação um tanto irónica por parte do autor. A
concentração da descrição vai depois para o pormenor
dos olhos, “abertos”, que não reflectem a vida mas sim a
morte do retratado. Este detalhe parece ter sido tão
poderoso que o sujeito do poema é visto a deixá-lo para
trás quando o museu fecha, “sem lhe fechar os olhos”, e
sentindo, mesmo assim, o olhar cravado nele ao aban-
donar o edifício. Em suma, parece Júdice ter feito com
este pequeno poema um retrato um tanto irónico, mas ao
mesmo tempo de tom sério e respeitoso perante a figura
(dada pela sinédoque dos olhos), do alvo do retratado
pelo poema. Esta ironia vai sobretudo ter como objectivo
aludir à forma como, segundo a Bíblia, Cristo foi “pes-
cado” e executado pelos romanos. Disso dá conta logo
no primeiro verso, quando a comparação com o “peixe/
acabado de pescar” aparece.
Vamos ver agora alguns quadros em que o duplo e o
colectivo estão na base temática da relação intertextual
que Júdice estabelece entre o texto poético e pictórico.

1.4. O par e o colectivo

Dando continuidade ao interesse já verificado pela


pintura escandinava, o poema “Cristo e Madalena”340, pre-
_____________________________________________
340
PR, 2000, pp. 925-6. Pensamos poder estabelecer uma ponte
temática com o poema “Exposição”(PR, 2000, p. 822), onde se retrata
um Cristo na parede, numa alusão religiosa com um claro entrecruzar
da arte literária com a pictórica. Analisá-lo-emos mais tarde. . No
blogue ecfrástico de Júdice estão presentes mais poemas sobre quadros

349
RICARDo MARQuES

sente em Teoria Geral do Sentimento, vai ter como alvo,


desta feita, um quadro de Albert Edelfeldt (1854 – 1905)
intitulado “Cristo e Maria Madalena”. Como o nome
indica, tanto o quadro como o poema é um retrato pouco
convencional dos dois, o que é registado de forma irónica
por Nuno Júdice. Vejamos uma primeira parte:
No museu de Helsínquia, uma arrependida Madalena
atira-se aos pés de um cristo mais humano do que
é habitual. Talvez por isso os olhos de madalena
procuram os olhos de cristo, e uma hipótese de
sorriso (ou será ironia?) abre-se nos lábios dele
mais húmidos que o habitual. Ao contrário de
quadros antigos, com a mesma madalena e o mesmo
cristo, esta tem uma fita a prender os louros
cabelos, veste um casaco de veludo, e o peito
apenas se deixa adivinhar sob uma camisa branca e
jóias de boa qualidade. Ali, no museu de Helsínquia, é
normal que esta situação não siga os modelos
canónicos: o norte não é um lugar para excessos, para
tragédias, e tanto a madalena como cristo fazem bem
em comportarem-se como burgueses. De facto, o cristo de
sandálias que estende a mão à madalena de edelfeldt,
até lhe fala com ar desprendido, como se comentasse
o tempo. Por outro lado, tudo se passa à beira de um
lago, a não ser que o que se vê seja um braço
do mar báltico, como é frequente nesta região: e
para que haveria o pintor de imaginar cenários
exóticos, quando o que interessa é dar um
fundo compreensível (perceptível) ao mistério que
envolve esta cena. […]

uma ideia parece prevalecer no modo de comentar


este quadro, que se coaduna com a tal postura irónica de
que temos vindo a falar. Júdice analisa sobretudo as duas
_________________________
deste pintor que não analisaremos, nomeadamente “Debaixo das
bétulas”, no dia 22 de Maio de 2006. Por outro lado, há mais dois
poemas do mesmo mês, mas de dia 18, sobre a figura bíblica da
“Madalena”, cujos títulos são “Madalena” e “outra Madalena” – Cf.
<http://aaz-nj.blogspot.com/2006_05_01_archive.html> – acedido em
Junho de 2009.

350
NA TEIA Do PoEMA

personagens, mostrando que existe uma grande diferença


relativamente àquilo que parece ecoar, durante séculos
de história de arte, nas representações do par bíblico. A
diferença consiste numa caracterização mais humana e
menos fiel à Bíblia (“exótica”, como Júdice utiliza para
falar dos cenários do Médio oriente onde se passam os
episódios do Livro), não seguindo “os modelos canó-
nicos”. A justificação para tal diferença vai encontrá-la
no contexto em que o quadro é criado, como modo de dar
mais verosimilhança ao “mistério do quadro”. Como
exemplo, vemos como há uma reiteração da localização
do mesmo, a início e a meio desta parte do poema, ao
referir-se “no museu de Helsínquia”, e na alusão ao “mar
báltico”. Por último, é de notar um momento alto da
ironia judiciana quando chega a caracterizá-los de
“burgueses”. A especulação, um modo e metodologia
poética frequente nos poemas de Nuno Júdice, continua
depois nas variadas interrogações retóricas registadas até
ao fim. A conclusão dá-nos de novo a ironia judiciana
aforística dos dois versos finais, onde aparece bem clara
a presença do sujeito poético, fundido com o observador
do quadro e com o autor do poema:
[…]De facto, por que haveria cristo
de perder tempo com uma pecadora? A não ser que ela
usasse argumentos fortes na sua discussão, mais fortes
do que o banal arrependimento que, nestas situações
não parece das coisas mais consistentes. Sim: que
desgosto de amor o terá provocado?, que conflito de
cama, que suspeita de doença, que súbito cansaço
na vida de bordel? Nada que o tempo não possa curar…
a não ser que esta troca de olhares, à luz do sol,
se prolongue para lá das árvores, do céu que se
reflecte na água da dureza das pedras em que
os seus joelhos se magoam, mesmo que o chão esteja
coberto das folhas mortas do outono. Então,
deixo-os sozinhos. Há conversas que não se podem
interromper, segredos que não se devem desvendar.

351
RICARDo MARQuES

Albert Edelfelt, “Cristo e Madalena”, 1890, Ateneum, Helsínquia

Gustav Klimt é igualmente um pintor que surge na


poesia judiciana, nomeadamente num poema bastante
descritivo e indirecto sobre um dos seus quadros mais
famosos, O Beijo (1907-08). o nome do quadro corres-
ponde ao título do poema341, que começa por ser com-
parado a uma natureza-morta, devido à justaposição de
fundo de diversos elementos:

Teria começado por ser uma natureza-morta: as flores,


em ramo, deitadas no chão, e um fundo negro que realça
o branco das pétalas. […]

_____________________
341
Geometria Variável, 2005, p. 68.

352
NA TEIA Do PoEMA

Após esta introdução, vemos, num primeiro mo-


mento, a descrição de um dos protagonistas, a mulher do
quadro. A sua descrição é feita a partir de uma insistência
na parte física, numa gradação de cores que parece tentar
intuir uma relação analógica, fusão ou prolongamento
entre as cores do quadro e as que servem para fazer a
figuração daquela personagem no quadro:
[…] Depois, deitada,
a mulher estende os cabelos sobre a base do ramo,
e uma rosa prende-se-lhe nos caracóis, sobre a orelha
esquerda, fazendo com que a pele do rosto pareça
um prolongamento da sua cor, que adquire uma
tonalidade mais forte no lenço que envolve o pescoço e
desce pelo peito, cobrindo o vestido branco. […]

Num segundo momento, o enfoque parece passar a


ser no homem, a segunda figura deste quadro, fazendo-
-se especial enfoque no papel das mãos, na forma como,
por um lado, a mão direita segura o seio e a esquerda a
cabeça. Este é igualmente o momento do clímax do
poema, plasmado na ideia de entrega silenciosa, tanto
carnal (o seio) como espiritual (os olhos fechados) de
uma e outra figura do poema:
[…]Entre
ela e as flores, porém, surge a mão do homem, que entra
pelos seus cabelos, segurando e erguendo a cabeça
até um encontro de lábios, enquanto a outr mão,
sob o seio esquerdo, prende a base do lenço, fazendo
com que a mão da mulher a agarre, deixando de fora
os dedos, cravando-se no punho até entrar pela
manga da camisa, numa entrega que, no entanto,
deixa adivinhar uma serena inquietação através
dos olhos fechados, que adivinhamos para além
das pálpebras onde o desejo se concentra.

353
RICARDo MARQuES

o último momento, assim, vai servir de recolha de


alguns dos elementos descritos (nomeadamente as flores
e os cabelos), tentando-se chegar a um aforismo ou tese.
A ideia que se acaba por defender ecoa um tema
recorrente em Júdice, que passa pela intemporalidade da
obra de arte, por oposição à fugacidade da vida (os
símbolos supracitados são exemplo disso), paralela à
inexorabilidade da morte. Assim, tal como em muitos
textos escritos que passam à eternidade (lembrando a
lição camoniana – “que se vão da lei da morte
libertando”), fazendo passar os seus protagonistas,
paisagens e personagens, também este quadro passou à
eternidade não só os personagens como o amor que entre
eles o mesmo regista e “está vivo”:

[…]É possível
que estas flores tenham secado, e que o vento tenha
espalhado estes cabelos no túmulo de terra de algum
antigo inverno, mas o perfume deste beijo mantém-se,
e nos olhos fechados dos amantes o amor está vivo.

De um modo geral, estamos perante um poema em


que a intertextualidade é de grau forte para com o quadro
de Klimt, mas pode perfeitamente ser lido directamente
como a descrição de uma história de amor entre duas
pessoas, tão intemporal quanto o quadro do austríaco.

354
NA TEIA Do PoEMA

Gustav Klimt, “o Beijo”, 1908, Museu da História de Arte, Viena

Pablo Picasso vai ser ainda outro pintor retomado


por Nuno Júdice, num dos últimos livros, A Matéria do
Poema. Aqui, o quadro visado será o célebre “As meni-
nas de Avignon”:
Provavelmente, Picasso não pintou as meninas
de avignon a pensar nos homens que iam às meninas
em avignon; nem se serviu das meninas de avignon
quando as pintou, a partir de mulheres que
não eram meninas, mas modelos, e a quem pedia que
comportassem como as meninas de avignon, nuas, na
sala de espera do bordel onde os homens de avignon,
quando iam às meninas, as escolhiam a dedo, ou só
ao acaso, porque o que eles queriam não precisava
de grande escolha, mas de um corpo, e qualquer corpo
servia para esses homens que não sabiam que
Picasso iria pintar as meninas de avignon para que
eles não voltassem ao bordel sem pensar, primeiro,
nas meninas de Picasso, e só depois nas meninas
de avignon. Também eu, um dia, quando fui
a avignon, pensei nas meninas de Picasso, sem

355
RICARDo MARQuES

pensar que eram as mesmas meninas que havia


em avignon, onde Picasso as foi buscar. Mas
não as vi; as meninas de avignon escondem-se de
quem vai a avignon sem saber onde elas estão,
a não ser no quadro de Picasso, que não está
em avignon. E é provável que, se as visse,
pensasse nelas, e não nas meninas de Picasso, para
as pôr num poema que se poderia chamar
como o quadro de Picasso, para que entre as meninas
de Picasso e as meninas do meu poema não houvesse
nenhuma diferença, como se fosse possível passar
das meninas de Picasso para as meninas do meu poema
através da ponte de avignon.

Pablo Picasso, “Les Demoiselles d’Avignon”, 1907,


Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

Como vemos, o eixo no qual o poema se desenvolve


corre três lados com o mesmo centro: as meninas de
Avignon enquanto quadro, enquanto meninas que
existiram e enquanto personagens do poema de Júdice.

356
NA TEIA Do PoEMA

A primeira grande distinção irónica que Júdice propõe


é entre as mulheres que serviram de modelo a Picasso e as
mulheres que o pintor tentou plasmar no quadro para a
posterioridade. Assim, como a mimesis aristotélica, as
primeiras imitaram a realidade, a segunda, mas o nomes
das segundas é que se eternizou. Apesar disso, e como
refere o poema judiciano, as segundas ficaram tão
conhecidas que quando os homens iam às mulheres de
avignon tinham em primeiro lugar a imagem do quadro de
Picasso. Distanciando-se do quadro, Júdice imiscui-se no
relato, juntando-se àqueles homens que pensaram nas
mulheres de Picasso quando visitou a cidade de Avignon.
No entanto, se as encontrasse (e note-se como estamos já
longe do objecto do objecto-quadro e próximo do poema
de Júdice), iria eternizá-las num poema com o título do
quadro de Picasso, num truque poético tão impossível
como fazer passá-la pela ponte de Avignon.
De um modo geral, vemos como Júdice dá título
igual ao de Picasso ao seu poema, mostrando claramente
a sua ligação intertextual (uma comunicação clara entre
o texto de partida e de chegada, se aplicarmos o modelo
de Valerie Robillard), para depois se excluir de falar dele
directamente (o que representa a ausência total do
domínio da representação do texto de partida, de acordo
com o modelo de Robillard) e manter com ele um tipo de
diálogo ora geral, ora pessoal.
Em última instância, o poema é então sobre o pró-
prio processo de eternização de uma obra de arte, seja ele
um quadro e um poema, nomeadamente da forma como
fica para a posterioridade e altera as associações que lhes
fazemos depois (como por exemplo o símbolo do animal
corvo, que reconhecemos numa das acepções a Poe
depois da publicação e repercussão na cultura ocidental
do seu poema).

357
RICARDo MARQuES

Paolo ucello, um artista que viveu sobretudo no


século XV (1397-1475), foi um pioneiro no uso da
perspectiva na sua pintura, apesar de ter sido ensinado na
escola do Gótico. Júdice estabelece com ele uma relação
intertextual importante e significativa, plasmada em dois
poemas342. o primeiro intitula-se “Em Florença”343 e
passa-se a propósito de uma visita às Galerias Uffizi,
museu importante daquela cidade e para o resto da
Europa:
Como se a batalha estivesse ganha nos ofícios
avança com o seu exército – os cavalos
negros, guerreiros de escudos simétricos, lanças como
lápis afiados para o exercício – pelo corredor
adiante. […]

Indirectamente, este verdadeiro intróito ao poema


contém dois apontamentos desde logo curiosos e
importantes para o poema. Em primeiro lugar, Júdice
funde vários tempos num só. o tempo de pintura do
quadro com o tempo que o próprio quadro plasma,
enquandrado no tempo da observação do quadro (e sua
posterior descrição pelo poema), nas Galerias uffizi, “em
Florença”. Em segundo lugar, é deixada no primeiro
verso a alusão ao quadro em questão, que se vai
comprovar com a leitura cotejada de outros elementos do
poema. Trata-se de “A Batalha de São Romão”, datada
de 1438, e que teve por intertexto histórico a batalha entre
o Reino de Florença e de Siena. É de salientar que ucello
pintou três cenas diferentes do quadro, uma de manhã,
outra a meio do dia, e uma ao crespúsculo, encontrando-
_____________________________________________
342
um deles, que não analisaremos por não ser tão pertinente
no tratamento do artista e da sua obra por Nuno Júdice, é “o osso
de uccelo” (PR, 2000, p. 792).
343
PR, 2000, pp. 884-885.

358
NA TEIA Do PoEMA

-se, respectivamente, na National Gallery de Londres, no


Musée du Louvre de Paris e nas Galerias Uffizi, de
Florença. Pelo título do poema e por outros indícios
chegamos facilmente à cena que o sujeito poético
descreve. Assim, continua a mistura temporal numa
segunda parte do poema –
[…] Espero por ele no bar do museu, que
é o melhor sítio que existe em qualquer museu
para se estar (não, às vezes há sofás que ficam no meio
da sala, de onde se tem uma vista para os quadros
maiores, aqueles que mostram cenas de temporal, naufrágios,
barcos perdidos como pedaços de madeira no vórtice
das águas); e tomo um sumo de maçã, quente, porque o
frigorífico do balcão está avariado. Isto acontece
às vezes, no verão, e no calor da batalha: os exércitos
postos frente a frente, e Paolo pronto a dar a ordem
de ataque, como se disso dependesse a sorte do mundo. É
verdade que o pintor é ele; e cabe-lhe explicar, assim,
por que é que a cena tem um tom tão geométrico que quase
não se dá porque há sangue, pó e lama,
quando o sangue e o pó se confundem. […]

Naquilo que se pode considerar um comentário


museológico eivado de ironia, Júdice refere que o melhor
sítio para se estar num museu é o bar do próprio museu,
ainda que ressalve, num aparte igualmente cómico, que
também outro bom lugar é o sofá que permite ao visitante
sentar e perscrutar com atenção os quadros maiores.
Partindo desta ideia, o quadro é novamente convocado,
sobretudo no que toca às cores e às suas formas que quase
não as deixam perceber (“a cena tem um tom tão
geométrico que quase/ não se dá porque há sangue, pó e
lama”). Mais importante ainda é o que diz respeito ao
papel fundamental que o pintor tem nas decisões plásticas
a tomar, como artista que vai redizer, na acepção de
Maurice Blanchot344, o texto primário num novo texto,
(“os exércitos/ postos frente a frente, e Paolo pronto a dar

359
RICARDo MARQuES

a ordem/ de ataque, como se disso dependesse a sorte do


mundo”).
[…] o que domina, porém,
não são as leis da guerra mas as regras da cor e da
proporção; tudo lhes obedece, como se agora a única batalha
a ganhar fosse a da luz. o que já não é
pouco, diz Paolo, ao avançar pelo corredor com os pincéis
e as bisnagas de tinta com que vai corrigir a cena: “os
cavalos é que estão mal, diz-me, estão negros
e deviam ser azuis porque, numa batalha, só os cavalos
azuis são invencíveis.” Pergunto-lhe porquê; e ele diz que
é porque se confundem com a cor do céu. Estamos então numa
batalha de anjos e de homens; e os guerreiros que montam
os cavalos azuis parecem vestidos de fogo, trazendo
na cabeça os raios que hão-de fulminar
os inimigos e queimar a erva do campo. “Aqui
nada mais voltará a crescer.” A não ser o amor. uma planta
brusca como o desejo que existe entre a terra seca e o céu
carregado de nuvens prontas a desfazerem-se em água. um
amor sem limites, no centro do universo. […]

Pegando na temática e motivos bélicos do quadro,


Júdice prossegue a sua descrição do mesmo, defendendo
que a sua luminosidade e a sua proporção são os aspectos
mais importantes (“a única batalha/a ganhar”). Do ponto
de vista genológico, há a inclusão de outro nível
narrativo, em que o autor imagina um comentário a esta
reflexão por parte do próprio pintor (“o que já não é/
pouco, diz Paolo”), a que se segue um diálogo mais
consistente sobre os aspectos da arte do quadro. As cores
identificam-se com os dois lados da querela,
simbolizando o azul a cor do céu (“Estamos então numa/
batalha anjos e de homens”), mas que o pintor escolhe
por a negro, já que assim não se confundem com a cor
do céu. Por outro lado, os “vestidos de fogo” são uma re-

_________________________________________

344
Maurice Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969.

360
NA TEIA Do PoEMA

ferência directa à folha de ouro, técnica abundantemente


utilizada por este artista renascentista. Apesar da
mortandade da batalha, num campo ”onde nada vai voltar
a crescer”, o sentimento de amor entre os homens é algo
que o autor defende como perene – “um/ amor sem
limites no centro do universo”, que medra “entre a terra
seca e o céu carregado de nuvens”. Assim, resta ao sujeito
poético sair do museu, sem que, no entanto, consiga
esquecer os “cavalos/ azuis de Paolo ucello”:
[…] Posso, então, sair
dos oficios. A praça continua em obras, o que é normal
nestas praças antigas. uma greve de autocarros obriga-me a
ir a pé até à estação. Atrás de mim, correm os cavalos
azuis de Paolo ucello: e os seus cascos batem-me nos
ouvidos até entrar na carruagem, sentar-me, e deixar
para trás Florença, à medida que o rodar dos carris se
substitui ao ritmo monótono dos cavaleiros que correm
uns em direcção aos outros, na simetria exacta dos segundos
que precedem a batalha.

Paolo ucello, “Batalha de São Romão” (crepúsculo), 1456,


Galerias Uffizi, Florença

361
RICARDo MARQuES

Leonardo da Vinci é um dos pintores renascentistas


com o qual Júdice estabelece uma relação intertextual. o
poema em questão é “Equitação”345, numa alusão à
primeira encomenda do Conde Sforza a da Vinci,
projecto que não se concretizou por motivos vários. o
poeta português resgata a sua imagem para o poema,
abrangendo o próprio símbolo do cavalo e metáfora da
imagem que “corre” ao longo do poema. Esta opção pelo
retrato de um animal é algo de invulgar no contexto dos
seus textos ecfrásticos, ainda que tenha começado, já nos
anos 80, um ciclo de poemas dedicado a uma visão
antropocêntrica de certos animais, “Zoologia”346, e o
próprio Jorge de Sena, figura tutelar para Júdice, tenha,
como já se disse, poemas ecfrásticos sobre animais no
volume que introduziu a ekphrasis na poesia portuguesa,
Metamorfoses. Salientemos assim o começo e o fim do
poema dedicado ao cavalo desenhado por Da Vinci:
uma luz absurda nasceu
dos olhos do cavalo submarino: o cavalo
de Leonardo, o cavalo espantado
com as árvores corais, de cores
de mandrágora, de crina empinada
nos socalcos da memória.

[…]

___________________________
345
PR, 2000, p. 883.
346
o livro onde este ciclo começa intitula-se Condescendência
do Ser, de 1988, com o poema “Zoologia: o Tigre” (PR, 2000, p.
300). Apenas de PR, podemos referir os subsequentes exemplos, que
não analisaremos nesta tese: “Zoologia: o Melro” (p. 479),
“Zoologia: os gatos” (p. 480), “Zoologia: As Rãs de Mateus” (p.
481), “Zoologia: o gato” (p. 482), “Zoologia: o tigre de circo” (p.
548), “Zoologia: outro tigre” (p. 577), “Zoologia: os leopardos” (p.
703), “Zoologia: outro gato” (p. 771) e “Zoologia: A Jibóia” (p.
773). outro ciclo pertinente, onde igualmente se parecem entrever
aspectos humanos nos elementos da natureza é “Botânica”, que
começa no livro Linhas d’Água, de 2000, igualmente incluído no
volume de PR, e continuado nos livros subsequentes.

362
NA TEIA Do PoEMA

A luz é eterna no litoral


da sua desfilada celeste: cavalo
luminoso da vida que se estende
pelos hipódromos da frase, rasgando
com os seus cascos um campo
de ervas incendiadas.

Puxo com a voz os freios


da sua imagem.

Leonardo da Vinci, “Estudo para Cavalo de Bronze”, 1480

2. Os diálogos entre a música e a poesia

É mais do que evidente as múltiplas tangências entre


a poesia e a música347. Há uma íntriseca relação de afini-
____________________________________________

347
Assinalado tanto por poetas como por compositores.
Eugénio de Andrade fala da poesia como “música do sangue”.

363
RICARDo MARQuES

dade abstracta entre ambas348. É aqui que reside, quanto


a nós, a chave da impossibilidade de tradução ou
transbordo total de um texto noutro. uma evidência desta
nossa posição decorre do facto de uma fotografia, um
filme ou um quadro desencadearem emoções no poeta
que vai fazer um poema sobre um dado texto primário
(Júdice, por exemplo, quando escreve sobre um quadro).
A música não é um texto tão palpável quantos estes
últimos, que podemos sempre visualizar numa página ou
numa tela.
A metáfora, feliz, que Fernando Pinto do Amaral
refere para as duas é a de uma “irmandade separada”:
Sempre as vi como duas irmãs, não gémeas, é claro, mas em
todo o caso muito próximas – irmãs que cresceram juntas, lado a
lado, e que partilharam ao longo dos séculos muita coisa, embora
cada uma seguisse o seu caminho, com a sua autonomia. No entanto,
quando se encontram, há como que um regresso às respectivas
origens e nos melhores casos a sua indestrutível aliança consegue
levá-las (e levar-nos) a territórios que talvez nenhuma delas pudesse
atingir isoladamente349.

_______________________________________________

348
Continua mais que válida a afirmação de Paul Valéry, que
dizia que a poesia era uma “longa hesitação entre o som e o sentido”,
no sentido de oscilação e síntese entre a primeira e a segunda.
Segundo Gastão Cruz, num depoimento para a revista Relâmpago
que desenvolve esta mesma citação, há uma clara supremacia do som
sobre o sentido: “o simbolismo pôs em evidência o que sempre fora
a autêntica natureza da poesia, a supremacia do som sobre o sentido:
não talvez uma hesitação, como pretendeu Valéry entre dois
elementos afinal indissociáveis, mas o encontro duma totalidade
conformada pelo triunfo do primeiro sobre o segundo […] É o poder
do som que confere ao sentido o seu sentido.”.(Relâmpago, nº19,
Lisboa, 2006, p. 137). Veja-se o que se refere para o simbolismo mais
à frente.
349
Fernando Pinto do Amaral, “A música do sangue”,
Relâmpago, nº19, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, outubro de
2006, p.135.

364
NA TEIA Do PoEMA

Efectivamente, mais do que duas irmãs “separadas


mas inseparáveis”, há que lembrar que a relação entre
uma e outra se subalterniza e não se iguala, quando
verificamos que a primeira poesia, na Grécia Antiga, era
sempre acompanhada pela música, “a lira”, daí o seu
nome (“Poesia lírica”). As representações pictóricas que
falam da “Poesia” têm sido, aliás, feitas através da
presença alegórica de um instrumento musical, como é
exemplo a famosa gravura de Alphonse Mucha ou o
quadro de Gustav Klimt, ambos com este mesmo nome.
A poesia e a música são, no fundo, duas linguagens
paralelas350 em que o som, no caso da poesia, através do
ritmo dos versos e da musicalidade das palavras, é um
factor essencial351. Duas linguagens distintas mas conco-
mitantes, que tantas vezes se misturam e necessitam uma
da outra, mas que muitas vezes se podem anular352. Defi-
________________________________________________

350
o poeta Gastão Cruz refere isso, distinguindo as duas artes
da seguinte forma: “ […]a prova de que a música da poesia é uma
coisa diferente da outra música está nisso, no facto e os compositores
se sentirem motivados para lhe juntarem a sua própria, sem que tal
trabalho resulte redundante ou excessivo.” No mesmo artigo, este
mesmo autor entrevê como possível o cruzamento das duas
linguagens. (Cf. Gastão Cruz, “Música de som e sentido”, in
Relâmpago, nº19, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, outubro de
2006, pp. 137-138, sublinhados do autor).
351
No caso da Literatura, em certos correntes e movimentos
chega a ser mesmo essencial, como durante o Simbolismo, e através
de Stephane Mallarmé e de Verlaine, que dizia “de la musique avant
toute chose”, ou nos tempos medievais com as diversas “cantigas”
com características retóricas como os refrões e outras repetições
Veja-se, neste sentido, o que dizemos na parte sobre a identidade do
poeta Nuno Júdice, um pouco atrás. De salientar que, em muitos dos
seus poemas e artes poéticas, Nuno Júdice refere a importância da
música e da musicalidade das palavras em poesia.
352
De acordo com o que diz Nuno Júdice numa entrevista, a
feitura de poesia é incompatível com escutar música, por estas terem,
precisamente, “duas linguagens diferentes.” (Cf. Revista Ler,
Fevereiro de 2009, pp. 80-81)

365
RICARDo MARQuES

namos dois movimentos, neste sentido, um da poesia em


direcção à música e outro da música em direcção à
poesia. No caso da música na poesia, é óbvio o que acima
mencionámos, toda a poesia tem em atenção a ideia de
ritmo, de prosódia, que embala a leitura dos versos e lhe
dá uma certa musicalidade, de que a procura da rima é
um excelente exemplo. Por outro lado, durante a feitura
de um poema, o poeta normalmente tem em atenção a
forma como as palavras se interligam entre si musi-
calmente, isto é, as várias aliterações (no caso das
consoantes) e assonâncias (no caso das vogais) que as
palavras formam quando se colocam ao lado umas das
outras na disposição do verso e da estrofe, de modo a dar
ao poema um carácter mais ou menos lúdico (e acentuar
ou não a carga fonética do poema). Mais adianta sobre
este aspecto Roman Jakobson, nas suas Quéstions de
Poétique, quando aproxima a poesia da música através
do pressuposto retórico da repetição: “ […] l’essence, en
poésie, de la téchnique artistique réside en des retours
réitérés”353. De facto, a linguagem poética vive muito da
reiteração de sons, dos jogos musicais das palavras que
compõem o poema, sendo, in extremis, a alma do
poema354.

__________________________________________
353
Cf. Roman Jakobson, Quéstions de Poétique, Paris, Seuil,
1973, p. 234.
354
Penso aqui num grau máximo de interacção entre poema e
música nos textos medievais de lírica trovadoresca, que incluiam
estruturas musicais cuidadosamente pensadas, de que os estribilhos
e paralelismos diversos são um claro exemplo. Para um
desenvolvimento adequado destes e de outros aspectos da semiótica
do cancioneiro medieval, vd. Stephen Reckert et Hélder Macedo, Do
Cancioneiro de Amigo, Lisboa, Assírio e Alvim, 3ª edição, 1996
(1976).

366
NA TEIA Do PoEMA

Por outro lado, há quase sempre poesia na música,


já que para percebermo-la por completo e escutá-la
atentamente é necessário alguma capacidade de abstrac-
ção da realidade, uma entrada iniciática para perceber as
palavras da sua linguagem. Assim, e em segundo lugar,
deve ser tomado em conta, na relação das duas, o estudo
da forma de compor música, que em muito tem a ver com
a da construção de um poema. Quando o poema é feito
com base numa composição musical, não há grande
similitude a nível da estrutura ou constituição dos dois
textos. Poder-se-á dizer que o que há é sobretudo um
densencadear de sensações que estimula o texto posterior,
e a qualidade de um e de outro texto pode ser comple-
tamente díspar355. Se nos determos um pouco aqui e
pensarmos nestas mesmas questões de avaliação de
qualidade ou classificação qualitativa do texto produzido
(musical e poético) que se entrecruza, podemos dizer que
bom poema pode nascer de uma música ou que um boa
música pode dar azo à escrita ou ainda, por outro lado,
ter por base, um bom poema. Na minha opinião, a atitude
produtivo-criativa tem tendência a ser, quanto a mim,
aleatória, e tende a dar excelentes resultados tanto para
um lado como para outro356. António Chagas Rosa, a este
propósito, diz “amiúde penso no pouco em comum que
___________________________________________
355
Como nos diz o compositor António Chagas Rosa, no seu
artigo para a Relâmpago de outubro de 2006 sobre o entrecruzar das
duas artes, “Creio que um poema perfeito não carece de música.
Todavia, música perfeita pode nascer a partir de poesia mediana.
Aliás, o sublime musical pode derivar de ideias extra-musicais
totalmente prosaicas. (Op. cit., 2006, p. 132).
356
Veja-se, a título de exemplo, as relações entre a poesia de
Mourão-Ferreira, Sophia de Mello Breyner ou Eugénio de Andrade
e a música que depois Lopes Graça fez com base nos seus textos.
Tanto um lado como outro são exemplos do melhor da poesia e do
melhor de música erudita que se fez em Portugal, num dado
momento temporal.

367
RICARDo MARQuES

poesia e música originalmente têm. Porém, uma


‘sonoridade inicial’ ou uma sequência rítmica podem
desencadear no compositor uma vertigem imparável,
uma necessidade de plasmar essa sensação em sons,
afinal mais por necessidade própria do que honrando a
poesia”357.
Mais do que um confronto, o poema “Princípio de
Retórica”358 de Nuno Júdice representa um diálogo
entrecruzado entre a poesia e a música, sendo não só um
bom ponto de partida para a análise que faremos dos seus
textos poéticos que falam de música, como também uma
teoria pessoal deste poeta sobre o que temos vindo a dizer
nas últimas páginas:
Na música, a perfeição tem o nome de
harmonia; pelo menos na estética clássica,
cujo cânone obedece às leis da natureza. Na
poesia, porém, essa regra nem sempre se
verifica; e ver-se-á, na análise do poema,
a dissonância entre as palavras e o mundo
quebrar a vontade da beleza, e trazer
de volta a inquietação do inacabado, ou
do que nunca chega a começar. Isto não quer dizer
que a poesia não tenha música, nem que
do contacto entre ambas não surja um efeito
que o espírito apreende com emoção. um
desenho de circunferência envolve o triângulo
de que o último vértice é o sentimento
resultante do equilíbrio entre o som
e o sentido. Não há aqui repetição, mas a nostalgia
do único, um arquétipo que se confunde com a imagem
inscrita no fundo da memória, de que todas
as outras constituem o reflexo degradado. o verso,
porém, não faz senão romper essa totalidade,
lembrando na insistência da sílaba a
pura impossibilidade do regresso; e na matéria
verbal da estrofe encontro, mais do que
o presente, um rosto usado
como o amor que me obriga ao passado.
___________________________________________
357
Op.cit., 2006, p. 132. Sublinhados do autor.
358
PR, 2000, p. 380.

368
NA TEIA Do PoEMA

Como podemos ver, os primeiros versos constituem


uma proposição de início que parece indicar desde logo
um contraposição que é parcialmente recusada mais tarde
no poema. Júdice defende que para as artes da música e da
poesia a concepção de perfeição, do que é realmente
música e poesia, passa por diferentes caminhos. Assim, e
enquanto para a primeira o que vale (“pelo menos na
estética clássica”) é o conjunto harmónico dos vários
elementos da melodia, já um poema se pode constituir
como tal pela “inquietação do inacabado”, com a
“dissonância entre as palavras e o mundo”. De seguida,
esta ideia antitética é temperada com duas ressalvas,
chamando, por um lado, a atenção para um dos princípios
fundamentais da poesia, isto é, a sua componente musical
(vv. 9-10), para depois nos ser dito que também a
separação das duas não é total nem desejável, já que a sua
união faz “um efeito/ que o espírito apreende com
emoção”. Para ilustrar esta mesma ideia, e naquilo que
parece fazer aprofundar este diálogo intertextual, o poeta
português elabora um desenho poético (vv. 12-16)
mostrando que o que compõe o triângulo, dentro da
circunferência (símbolo da perfeição), imagem do próprio
poema, é o equilíbrio entre os vértices do som e do sentido
(lembrando a lição de Paul Valéry que atrás já referimos),
encabeçados pelo sentimento. A digressão final do poema
alia este último “vértice”, primordial, à passagem do
tempo, bem como ao papel que a memória tem no seu
desencadeamento, da “imagem/ inscrita no fundo da
memória”. Este é um verso que, em última instância, e
como temos visto, poderia definir a própria motivação
poética de Júdice, onde a imagem tem a primazia. Assim,
o poema é o tempo de regressar ao passado, por obrigação
de amor de um “rosto usado”, mas sempre tendo em conta
“a pura impossibilidade do regresso”.

369
RICARDo MARQuES

Em resumo, o poema em causa põe questões perti-


nentes no que toca ao discurso das artes, veiculando um
“princípio de retórica”, quer para a poesia, quer para a
música.
No que toca aos poemas que se seguem, todos têm
como elo intertextual a uni-los o facto de se referirem a
um intertexto musical em específico, ou de aludirem a um
compositor do agrado de Júdice. Quer sigam um ou outro
caminho intertextual, todos os poemas tentam exprimir o
sentimento amoroso, numa relação entre o sujeito e o tu
poéticos que passa pela música ou compositor invocado.
Vejamos assim detidamente os vários exemplos de poemas
que convocam o texto musical para a esfera do seu texto
poético, e a forma como isso acontece.
“Episódio Musical” 359 é um poema que vai estabe-
lecer uma ligação com as seis suites inglesas de Bach
(BWV 806–811; 1715), descrevendo um processo
analógico da audição dessa mesma música com aquilo
que o sujeito poético imagina e sente ao ouvi-las,
imaginando ao mesmo tempo o sujeito amado:
Ao ouvir as suites inglesas de bach, a humidade
dos campos envolve-me, com uma névoa de rios
e uma auréola de margens. Esta música puxa-me,
pelas suas mãos de som, para o ritmo que o poema
devia encontrar no limite dos teus cabelos; e tu,
contra o portão, nesse contraluz que te incendeia
o vermelho da túnica sobre o fundo branco dos
muros, roubas ao cravo o seu sorriso profano,
plantando nas duas teclas um desejo que o jardim
do teu corpo fará florescer. Assim, vens até mim
pelos degraus deste ritmo que bach inventou,
para descrever não se sabe que dança, movimento
de saias com o vento, baloiço vago que se evola
de uma entrega evanescente, num canto de arbusto,
até ao silêncio branco com que o amor se fecha.
_______________________
359
Geometria Variável, 2005, p. 31.

370
NA TEIA Do PoEMA

o ritmo virtuoso e elaborado desta peça barroca é o


primeiro elemento a ter em conta neste poema360. o
sujeito poético, envolto poeticamente numa inglesa
paisagem campestre, húmida e eivada de “uma névoa de
rios/ e uma auréola de margens”, relaciona esta melodia
certa e acelerada do cravo ao próprio ritmo interino do
poema, que tenta alcançar o tu poético, e que o sujeito
parece estar a escrever. o sujeito amado, por sua vez,
parece ver consubstanciado no seu corpo o corpo do
próprio instrumento que executa esta peça (“roubas ao
cravo o seu sorriso profano”), para além do próprio corpo
da paisagem imaginada (“plantando nas duas teclas um
desejo que o jardim/ do teu corpo fará florescer”). Numa
segunda e última parte deste “episódio musical”, adequa-
damente começada pelo conclusivo “Assim”, vemos
como acaba aqui a divagação poética anterior e o poeta
resume o que atrás começou, voltando ao ponto inicial
do poema, antes de sermos remetidos para tudo aquilo
que a sua imaginação elaborou pela audição das peças de
Bach. o seu ritmo, “que Bach inventou”, traz então o tu
poético para junto do “eu”, numa prosódia que é próprio
do poema e do sentimento amoroso que existe entre os
dois, que só o “silêncio branco […] fecha”.
Já “Sobre o Concerto em D Maior (R93) de Antonio
Vivaldi”361 é um poema judiciano que estabelece o inter-

________________________________________________

360
Para uma leitura mais musicológica e precisa deste bloco de
peças, veja-se o capítulo “The English Suites”, do livro The
Keyboard Music of J.S. Bach, editado por David Schulenberg. New
York: Routledge, 2006, pp. 275-299.
361
Geometria Variável, 2005, pp. 32-33. Para uma elucidativa
metanálise de artigos e referências diversas acerca do compositor
barroco, e em especial sobre a importância pioneira e influência dos
seus concertos, Cf. < http://www.lycos.com/info/vivaldi—vivaldis-
concerto.html >, acedido em Julho de 2009.

371
RICARDo MARQuES

texto com a obra musical do título de forma pouco para-


lela. A relação intertextual aqui é fraca, demonstrando
que o texto musical de Vivaldi vai antes servir para
despoletar uma série de pensamentos lógicos e
encadeados, começando pela referência a uma das partes
do Antigo Testamento, o Livro de Job:
“os meus dias passaram”, escreveu Job no livro
que a terra encheu de seca melancolia, para que os barrocos
glosassem o seu conteúdo. No entanto, é em Horácio, e nessa
breve felicidade que envolve as coisas do campo, quando as
nuvens dão lugar a Febo, que encontro o compasso do coração que
bate nestes versos, com o seu ritmo suave, que ouço quando
encosto o ouvido ao peito do poema. Pudesse eu ficar assim, para
sempre, nessa maré que sobe sob os meus braços onde o teu corpo
repousa, como a gaivota imóvel no céu do amor; depois, colhendo
as palavras que florescem nos teus lábios, entrar no oceano
familiar de um horizonte apenas murmurando. “Que destino nos
prometeu um ao outro, nesse horóscopo que nenhum astro
mancha” Isto é, porque haveria uma constelação de interferir na
esfera terrestre, quando o seu lugar é num céu que os olhos não
atingem? São esses os signos que me falam, por entre as pedras
antigas, os muros arruinados, os bairros cegos de um subúrbio em
que nos perdemos, até me devolveres ao teu riso que dissipa as
sombras e ilumina as margens do rio que corre por entre nós. […]

Para começar, nesta primeira parte do poema, há a


assinalar a complexidade e diversidade das relações
intertextuais que Júdice aqui tece com o fim de ilustrar o
concerto de Vivaldi. Job, a personagem bíblica, e Horá-
cio, escritor e pensador da Antiguidade Clássica, são
convocados logo no início, de forma a relacionar os
conceitos de felicidade e passagem do tempo com os
tempos em que a peça musical foi escrita. Tanto um
quanto outro vão ser paradigmas importantes da
preocupação barroca, respectivamente, com a passagem
do tempo e com a sua fruição da melhor forma possível362.
_____________________
362
Horácio é evocado claramente através da sua “aurea
mediocritas”, a defesa da vivência no campo como melhor forma de
viver, de passar pela vida (Cf. vv. 3-4). Recomenda-se aqui a leitura

372
NA TEIA Do PoEMA

Posto isto, o sujeito poético parte para um centra-


mento do poema não só no sujeito com quem dialoga
como também na omnipresente preocupação judiciana
que diz respeito à auto-reflexão do poema, à mistura e
consubstanciação do sujeito amado na própria teorização
sobre o poema. Assim, Horácio e a sua “áurea mediania”
vai ser relacionado com a forma de fruição do amor da
amada, para o qual o poema se escreve e em cujo peito
ele está:
[…]
Assim, esta luz demora-se,
enquanto os meus dias passam, e a terra fértil da estrofe se deixa
embeber pelos doces líquidos de uma erosão de corpos. Cubro
as suas pálpebras com a neblina do desejo; e deixo-me guiar pelos
lábios que procuram a saída do ocaso, até enunciarem essa eclosão
de madrugada em que um brilho branco irrompe do espelho,
para se derramar pelo lençol da página, de onde os meus dedos o
colhem, como a primeira flor deste dia; e entrego-a a ti,
a amada adormecida, para que a guardes
no secreto jardim do teu sonho.

Após uma relação autotextual com o início do


poema e intertextual com O Livro de Job (“enquanto os
meus dias passam”), a conjunção coordenativa “Assim”
começa a construir a conclusão do poema. o tempo
assiste a vivência amorosa do eu e tu poéticos (“uma
erosão de corpos”), na “terra fértil da estrofe”, enquanto
o poema é feito com o “brilho branco que irrompe do
espelho” e se derrama pelo “lençol da página”, onde é
depois colhido e oferecido “à amada adormecida”, o
verdadeiro objecto do poema judiciano, de onde e para
onde se parte quando se pretende falar “sobre o concerto
em D Maior (R93) de Antonio Vivaldi”.
_________________________
do informado e detalhado estudo de José Antonio Maravall, A
Cultura do Barroco, em que o homem barroco é adequadamente
tratado no que toca à inserção no seu tempo, na sua mundividência,
valores e preocupações. (Cf. Bibliografia Final).

373
RICARDo MARQuES

“o Soneto de Petrarca nº104 de Liszt”363 é um poema


judiciano com um enfoque intertextual primário e
secundário, como já temos visto em poemas como
“Cristo e Madalena”. o que aqui Júdice apresenta é um
texto próprio sobre o texto que Liszt produziu tendo
como base o outro texto petrarquista, onde o exacer-
bamento amoroso é o tema que domina. Novamente
temos presente a ironia de Júdice no uso dos catorze
versos da forma fixa do soneto, mas não respeitando quer
a ordem petrarquista quer a inglesa :
Quando os teus olhos de água pousaram na superfície
dos céus, incendiando o ocaso com um brilho de ouro,
puxei-te os cabelos para o meio das costas, onde
se fazem e desfazem os nós do paraíso. E nessa
encruzilhada discutimos o que fazer: para a direita,
um resto de tarde demorava-se no cansaço das
palavras, como se nada mais houvesse para dizer;
para a esquerda, alegrias e queixumes juntavam-se
num desejo de amantes, cumprindo um oráculo
de sensações. Tu, com o espírito preso nas mãos
que procuram um centro de feixe, e eu, sabendo
que o fim do poema se encontra devagar, não
sabemos como desatar este nó. olhos presos nos
teus cabelos, os dedos hesitam nas teclas do corpo.

Franz Liszt (1811-1886) foi um compositor român-


tico que, bem ao gosto da época, encetou uma viagem
pela Europa, em especial pelo sul, tendo composto três
suites de poemas chamados Années de Pèlerinage. o
texto musical (para piano) que compôs para o soneto
petrarquista pertence ao segundo deste grupo, tendo sido
publicado em 1856.
Em primeiro lugar, o principal tema do texto de
Petrarca é a dor que os efeitos do Amor-entidade provoca,
____________________
363
O Estado dos Campos, 2003, p. 128.

374
NA TEIA Do PoEMA

sobretudo no que diz respeito à instabilidade do próprio


sentimento amoroso, bem como às hesitações e incertezas
da reciprocidade do amor no seu destinatário. o texto
musical lisztiano aponta exactamente para essa hesitação
petrarquista eivada de platonismo; Liszt compõe uma
peça virtuosa, traduzindo este exacerbamento bem ao
gosto romântico (lembramos os “Nocturnos” de Chopin),
onde se simulam hesitações e súbitas inflexões dos dedos
sobre o piano, percorrendo a frase musical ora com
rapidez ora com um ritmo compassado. Já o texto de
Nuno Júdice parece aproximar-se tematicamente deste
pressuposto; estamos perante um “eu” e um “tu” poéticos
apaixonados, metaforicamente hesitantes numa “encru-
zilhada” amorosa imaginada por Júdice, onde mais uma
vez assistimos a um jogo de palavras ( os “nós” dos
cabelos passam a ser os “nós” do paraíso, e a própria
situação é vista como um “nó” de onde não se sabe sair,
uma encruzilhada) e a uma consubtanciação do corpo da
paisagem musical com o corpo da mulher, de que o
último verso é o exemplo máximo. Assim, se a inicio são
os olhos da mulher que “incendeiam o acaso”, já o fim
do poema vê os olhos do ser amado “prenderem-se” nos
seus cabelos da mulher-tipo, naquilo que é uma atitude
estilística de espelho. De forma similar, enquanto o ser
amado não muda ao longo do poema, já o sujeito poético
é subvertido na sua identidade de poema no sentido de se
aproximar do próprio autor (seja ele Júdice ou Petrarca),
que “sabe que o fim do poema se encontra devagar”.
A relação sentimental com o tu poético é também
alvo de “Acústica Amorosa”364, cujo título aponta logo
nesse sentido. o subtítulo “sobre um improviso de
Kientzy, Telectu, Portuondo”, vai indicar algumas infor-
_________________________________________
364
O Estado dos Campos, 2003, p. 148.

375
RICARDo MARQuES

mações paratextuais ao leitor do poema, mostrando a


razão poética do mesmo, bem como uma direcção de
leitura:
Temos esta música em comum: a sua
transparência percorre os séculos sombrios; e
o som dos seus ecos introduz-se nas cavidades
da memória. São pedaços de eternidade
que se incrustam no tempo; restos de luz
numa deambulação de dedos. Preparo
a transposição da voz para um jardim botânico
de sensações: um canteiro regado pela ternura
do ocaso; os caules da frase mergulhados
na terra do desejo. Afasto as folhas, como cabelos,
da testa: e sigo o desenho das pálpebras,
até ao canto dos olhos, onde
o improviso começa.

Como vemos, o sujeito poético parece transmitir


uma ideia de transmutação ou transformação da sensação
musical, presa “nas cavidades/ da memória”, ou “inscrus-
tada no tempo”, em sensação amorosa, de que o corpo do
sujeito amado é agente. Assim, fundindo o mundo das
sensações num só, o vocábulo “música” regista um
significado ambíguo, de que o primeiro verso é o melhor
exemplo: “Temos esta música em comum:”. A presença
dos dois pontos sugere a enumeração subliminarmente
comparativa que se segue, entre o corpo da mulher e o
corpo da música, onde o sujeito diz “ Preparo/ a trans-
posição da voz para um jardim botânico/ de sensações”.
o poema é visto então como o intermediário físico desta
relação entre um mundo de sensações e outro, onde “os
caules da frase [estão] mergulhados na /terra do desejo”.
Desta forma, a música (ou acústica) amorosa entre ambos
irá começar ao mesmo tempo do improviso, momento
musical imprevisível que apenas segue o próprio instinto
no momento da execução.

376
NA TEIA Do PoEMA

Também de sensações, amorosas e hipalágicas, trata


o poema judiciano que tem por título “Concerto nº 5”365.
Vemos igualmente por este poema como em todas as
relações intertextuais que o poeta português estabelece,
imiscui-se sempre uma tentativa endoliterária de explicar
ou perceber o fenómeno poético. Em primeiro lugar,
vejamos como Júdice começa por elaborar o seu poema
como se de um exercício hermenêutico se tratasse, de
onde uma interpretação pessoal não está ausente:
Há um concerto de Mozart para violino e orquestra em
que ouço o desabrochar da primavera, mesmo quando o inverno
se aproxima e a chuva, batendo nos vidros, nos afasta
da rua. Não sei por que é que estas sensações
nascem de uma conversa entre os sons: a música e a chuva,
isto é, o som construído na cabeça de quem talvez não pensasse
na natureza quando o imaginou, e o som que vem de fora,
trazendo com ele um ritmo que, possivelmente, nenhum deus
pretendeu quando desenhou as linhas da chuva. Então,
elaboro uma previsível analogia: e se Mozart tivesse sido como
esse deus que, sem querer, transformou o caos em música?

Nesta primeira parte do poema, após a expressão da


premissa, a sensação empírica que advém da audição
daquela obra musical, o sujeito poético aproveita a
analogia sugerida com a natureza exterior (a chuva) para
relacionar os dois sons: o que foi “construído e criado”
por alguém que “talvez não pensasse na natureza quando
o imaginou” e o que é natural e que tem um ritmo
próprio, “desenhado” por deus. Esta reflexão leva então
a uma “previsível analogia”, onde o sujeito introduz uma
pergunta retórica que relaciona a criação do universo,
ordenado, com a criação de um texto coeso (música),
também ele portador de sensações e que se relaciona com
outros textos. Assim, Mozart também pode ser encarado
como um “criador” já que:
___________________________________________
365
Cartografia das Emoções, 2001, p. 81.

377
RICARDo MARQuES

[…] o
concerto dele, assim, também faz passar para o mundo da ordem
o caos exuberante da criação. É como se flores, rebentos, caules,
aves e cores, surgissem da mais obscura das combinações: o violino,
atravessando as vagas da orquestra, que traça um rumo exacto que
desemboca no porto azul da vida; e esta chuva que,
ao bater nos vidros, se mete pelos ouvidos como a água entra na terra,
fecundando o interior da alma. Sei, então, o que irá nascer desta
analogia; e
compreendo o que fez Mozart passar para o seu Concerto nº5
a ideia de Primavera, mesmo que ela não estivesse lá
quando ele o escreveu.

Ironica e paradoxalmente, o processo analógico que


Júdice estabelece então entre Mozart e o criador do
universo propõe a ideia de um restabelecimento da
ordem do mundo através da instauração, que ambos
fazem no mundo, de um “caos exuberante da criação”.
Daqui sai então nova analogia, com a primavera que o
sujeito, como confessou a início, “lê” no texto mozar-
tiano. Também esta estação instaura uma caótica ordem
no caos da natureza que as estações estéreis (outono e
Inverno) deixam, mesmo que disso o criador do universo
não se aperceba.
Desta forma, Júdice defende que tal como a
natureza, o texto musical é um palco de sensações que
nos transmitem sentimentos, provocando analogias
previsíveis e imprevisíveis/pessoais. o mesmo acontece
no poema “o eterno retorno”366, onde a audição de uma
peça musical serve para convocar o sujeito amado que se
pensava esquecido, num apontamento irónico judiciano
sobre a expressão “eterno retorno” que Mircea Eliade
cunhou367. Aqui, a experiência religiosa que sempre retor-
___________________________________________
366
PR, 2000, pp. 654-655.
367
Cf. Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa,
Edições 70, 1999 [original de 1954].

378
NA TEIA Do PoEMA

na parece equivaler-se ao sentimento amoroso que


retorna ao sujeito através da audição “da peça barroca”,
ainda que tal sentimento pareça inesperado (segunda e
terceira estrofe). Assim, e como confirma depois na
última estrofe, “a música é, só,/ o que ficou de ti” mas,
“quando, em/ vez da tua voz, um silêncio me entra pela
alma,/ tenho saudades dessa música que não / voltarei a
ouvir”. o poema faz pendant com o que a seguir
analisaremos, e com todos os outros em que a música
serve como desculpa para convocar apontamentos
pessoais acumulados na memória. Vejamos, assim, o
poema de que temos vindo a falar:
Agora, ao ouvir uma peça de música
barroca, como se isso servisse para alterar
a cor do céu, ou a cor dos sentimentos,
apercebo-me de que a música é, só,
o que ficou de ti. o resto – amor,
corpo, palavras, desejo, um riso – ficou
não sei onde, nem exactamente sei
quando: sei, só, que um dia, ao acordar,
a norte tudo levou com a sua exacta
ciência.
Não me lembro, porém, de que gostasses
de música barroca mais do que de outra;
ou de que esse tivesse sido, entre nós,
um tema de conversa. Teatro, isso é que
sim: e talvez ambos, cada um por seu lado
representasse uma comédia privada que,
sem o sabermos, iria acabar no drama
comum. Decepção. Tédio. Nada de trans-
cendente…Palavras sobre outras
palavras, no fim de tudo.
Agora que esta música te trouxe de volta,
porém, algo deixou aqui de estar certo. A tua
ausência nesta presença incómoda? os teus olhos
que me fixam sem que eu os encontre? ou
o amor, que me parecia esquecido e vago
como qualquer alusão superficial? Porém,
o disco chega ao fim. E quando, em vez
da tua voz, um silêncio me entra pela alma,
tenho saudades dessa música que não
voltarei a ouvir.

379
RICARDo MARQuES

Por fim, “um motivo de Wagner”368 é um poema que


apareceu originalmente em A Fonte da Vida, e que parece
usar um motivo musical de Richard Wagner como
estímulo para a escrita do poema. Júdice apresenta assim
um poema de amor com intenção metaliterária, onde mais
uma vez a memória toma um papel preponderante,
lembrando “Acústica amorosa”, que vimos atrás, até pela
sua temática amorosa. Júdice equaciona de forma similar
a música criada pelo homem com a música criada pela
natureza, simbolizada uma vez mais pelo elemento água,
o primeiro exemplo com a referência a “aquário” e, na
última estrofe, transmutada em “chuva” :
A música atravessa-se na minha memória
de ti. um peixe de aquário com falta de ar
transformou-se no uivo do violino; e
o fumo do cigarro incendeia-se como
o coração dos amantes.

Gasto as palavras no cinzeiro


do poema. A cinza desfaz-se: pura
estrofe que a corrente de ar dispersa.
(Foi só isto que me deixaste? Mas
o que é o sabor amargo da solidão
na ressaca da noite?)

Assim, a tua imagem chega-me


com a tinta azul do crepúsculo; e é
também a essa hora que te escrevo,
quando a chuva está a bater nos vidros
e a sua ânsia contamina o verso.

Para além desta metaforização aquática, salienta-se


a presença da “cinza” e do “fumo do cigarro” como
concretizações metafóricas da inutilidade da memória
face à presença física e real do próprio sujeito amado, sem

__________________________________________
368
PR, 2000, p. 653.

380
NA TEIA Do PoEMA

ser preciso que a música (“um motivo de Wagner”) o


venha evocar ou que o autor “gaste as palavras no
cinzeiro/ do poema”.

3. Nuno Júdice e a partilha poética dos mitos


“[…] desde cedo creio ter entendido que este poeta é um
criador talentoso, consciente e deliberado de mitos. os mitos são
aparentemente simples, na realidade põem questões complexas. […
] Imagino, de resto, que é por todas estas razões – pelo seu talento
complexo de mitificar o real – que se gosta da poesia de Nuno Júdice.
Este cria mitos e ficções que ele sabem ser mitos e ficções. […] o
que parece seduzi-lo, acima de tudo, é a tentativa de nos fornecer
realidade através da ficcionalização e da mitificação sem disfarce do
real”369
João Camilo dos Santos

Todos os artistas, em particular os poetas, têm sabido


retomar os mitos greco-latinos de uma forma particular
ao longo dos tempos. Nuno Júdice vai-se filiar na
tradição de outros poetas portugueses do século XX que
escrevem sobre mitos em parte porque escreve sobre as
mesmas histórias. De acordo com Maria Helena Rocha
Pereira e outros370, os mitos mais invocados pelos poetas
contemporâneos são orfeu, Eros e Narciso.
______________________________________________
369
João Camilo dos Santos, in Revista Colóquio/Letras,
nº135/136, Jan. 1995, p. 187.
370
No panorama português, e para além de Maria Helena
Rocha Pereira que, entre algumas excepções, tratou sobretudo poetas
surgidos nas décadas de 40 e 50 (Sophia, Eugénio, Miguel Torga,
David Mourão-Ferreira) há que salientar o trabalho de José Ribeiro
Ferreira, que se tem dedicado a tratar temas clássicos em diversos
poetas de gerações posteriores (Fiama Hasse Pais Brandão, por
exemplo) e até ainda vivos, como é caso de Manuel Alegre ou do
poeta que nos ocupa nesta tese. Veja-se também António Manuel
Ferreira, da universidade de Aveiro, que falou recentemente dos
aspectos clássicos na poesia de António Franco Alexandre. (Vd.
Bibliografia final. )

381
RICARDo MARQuES

Como se sabe, estamos pertante um poeta que


começa a publicar nos anos 70, sendo de uma geração
com os seus próprios valores e crenças específicas. A sua
interpretação desses mitos é, logo, diferente das gerações
anteriores, já tratados por especialistas conceituados. Este
poeta distingue-se por sempre, ou quase, relacionar as
suas adaptações poéticas dos mitos com a criação poética,
opção estética que é, como já vimos na análise das outras
duas formas de intertextualidade, a espinha dorsal da sua
identidade.
Peguemos, desde já, em dois exemplos que não só
vêm comprovar esta especificidade da adaptação judi-
ciana aos mitos, como, mostrar a sua predisposição
irónica para os glosar.
Começando por “No Café da Mitologia”371, podemos
ver como o autor vai buscar um paradigma tutelar da
mitologia clássica (as três parcas) e o deslocaliza
ironicamente para um contexto e numa situação banal do
quotidiano, como faz noutros poemas :
Perto da porta, as três Parcas pedem chá
e bolos. o criado mostra-lhes o casaco: o botão
pendurado por um fio, a cair. A mais velha
puxa o botão, rebentando
o fio; a do meio enfia a linha na agulha; e
a terceira recose o botão no casaco. As três
Parcas ficaram sem chá nem bolos; e o criado,
como é óbvio, ficou morto.

(Mas o casaco ficou impecável).

As Parcas são figuras importantes na mitologia,


conotadas com a morte e os efeitos inexoráveis da
passagem do tempo, sendo as instâncias controladoras da
vida ou da morte, simbolizada através do corte de fios. o
___________________________________________

371
PR, 2000, p. 1017.

382
NA TEIA Do PoEMA

contexto específico do poema aponta assim para este


último aspecto. Júdice coloca-as num café imaginário, com
um criado a quem um botão de casaco (=vida) apenas está
seguro por um fio. uma delas puxa-o, matando-o,
enquanto as outras recosem o botão no casaco, preparando
assim o casaco (“que ficou impecável”) para outra pessoa.
Mais uma vez o jogo irónico do final é bastante conclusivo
– “as/ três parcas ficaram sem chá nem bolos […] Mas o
caso ficou impecável”, num verso separado do resto do
corpo da estrofe, entre parêntesis, como comentário do
próprio autor.
Também as suas “Transposições clássicas”372 pare-
cem ecoar estas referências à cultura clássica, em particular
a aspectos mitológicos. É de notar que este poema constitui
aquilo que podemos designar por um poema tipicamente
judiciano, isto é, no qual participam uma referência
intertextual directa e um pendor metaliterário de grau
variado, e, em simultâneo, uma estilo de tratamento
intencionalmente parodístico, ao qual não é estranho, do
ponto de vista linguístico, o jogo lexical:
Transformar a amante em bezerra depois
de lhe roubar a honra, conceder
a Diana a eterna virgindade, despir os braços
de Dafne para os encher de folhas, dar
a Febo um filho chamado Faetonte, fundir o ouro
do Tejo com os corcéis de Apolo, são
pormenores. Como diz Aristóteles,
na Poética, o poeta comete um erro ao criar
uma cena impossível: trocar um beijo
por um casal de pombos. Também a alma
passa por cavalo, por carneiro,
por pássaro terrível, cão ou rasteira
serpente. A imortalidade, que
implica a metempsicose, nasce do facto de
a alma estar enjaulada no corpo. E o curioso
____________________________________________

372
PR, 2000, p. 834.

383
RICARDo MARQuES

que bebe, sob o cipreste branco, a água fresca


que corre do lago de Mnemosina, queima
os lábios, cega e fica a saber que a morte de uns
é a vida de outros. Também, ninguém mandou
a um pastor render-se no santuário
das ninfas.

Numa primeira parte do poema, Júdice vai resgatar


um episódio fantástico de diversas histórias da mitologia
clássica para exemplificar o tipo de “transposições”
pouco realistas que este tipo de histórias fazem. A palavra
que, aliás, usa para os definir, é exactamente de “porme-
nores” face ao resto da narrativa. Para se justificar e
adicionar argumentos àquilo que diz, Júdice vai de
seguida convocar o princípio de verosimilhança que
Aristóteles recomenda como condição essencial de cada
história (vv. 7-9). Até ao fim do poema, há a alusão a
outro “pormenor” clássico, a concepção platónica da
alma “enjaulada no corpo”373 que pela transmigração das
almas transpõe-se para outros corpos, inclusive para
corpos de animais, a chamada Metempsicose (vv. 10-13).
o desenvolvimento órfico deste aspecto dicotómico entre
corpo e alma aparece logo a seguir com a referência ao
episódio iniciático e simbólico de beber água de uma
fonte do esquecimento (de Letes) quando o corpo morre
e a alma chega ao submundo, que analogicamente é o
reconhecimento da sua própria morte – “[…] queima/os
lábios, cega e fica a saber que a morte de uns/ é a vida de
outros”. o remate do poema, paródico (veja-se a expres-

___________________________________________
373
Devemos lembrar aqui que Platão é um dos autores mais
convocados por Nuno Júdice, que assim o faz de diversas formas,
nomeadamente através da história do “Mito da Caverna” incluso na
República ou, indirectamente, através da concepção platónica do
Amor, que se estende aos episódios mitológicos sobre Eros e o Amor,
que vemos neste capítulo.

384
NA TEIA Do PoEMA

são oral com que começa – “Também ninguém man


dou…”), vem no seguimento desta ideia, relacionando a
perda da memória da vida anterior com a “perdição”
mitológica pelo santuário do poema, por parte do próprio
“pastor” que escreve o poema ( o sujeito poético e o
autor).
Em conclusão, estamos perante um “pastiche” de
vários elementos (“transposições”) clássicas, que depois
são subvertidas, num jogo entre a sua parodiação e a
analogia. o propósito último é sempre metaliterário; o de
relacionar a feitura do poema presente com as regras
clássicas para o fazer, encabeçado, com se vê, com o
princípio da verosimilhança aristotélico, incluso na
primeira Poética da história.

3.1 O canto do poeta: o Orfeu judiciano

o mito de orfeu e Eurídice é um dos mitos clássicos


que mais prevalecem no imaginário da cultura oci-
dental374. A especialista portuguesa na área, Maria Helena
Rocha Pereira, fala num condensado e abrangente excerto
do nosso contexto literário:

o mito grego de orfeu com a sua dupla face – o


binómio mors/amor e o poder encantatório da poesia e
da música – nunca estiveram ausentes da tradição literária
________________________
374
Desde as referências na renascentista Divina Comédia de
Dante, passando pela ópera de Gluck (1762) e já nos nossos dias no
que de melhor se escreveu em poesia (Milosz, Auden ou Ashbery)
ou em teatro (Tennessee Williams, Orpheus Descending), sem faltar
as referências veladas e explícitas em filmes (Jean Cocteau, Orphée,
1949) ou em quadros (Dürer, Cervelli, Moreau, Waterhouse), parece
haver em cada época e em cada contexto cultural, uma actualização
da história, plasmada através de que linguagem for.

385
RICARDo MARQuES

ocidental. Entre nós principia no Cancioneiro Geral, tem


os seus momentos mais altos na lírica camoniana (e
também em Os Lusíadas) e num sem-número de epígo-
nos, vai dar o título à famosa, influente e efémera revista
dos poetas do Modernismo e também a um livro de
Miguel Torga (Orfeu Rebelde, epígrafe que vale por um
pseudónimo). Numerosos poetas do chamado pós-
-modernismo retomam o mito, mas, no meio de todas
estas intertextualidades onde ele se insinua, não devemos
esquecer o magistério de Rilke em Die Sonette an
Orpheus compostos em 1922 e entradas na Literatura
Portuguesa, como tantas outras obras do poeta de Praga,
pela pena sensível, rigorosa e fundamente poética de
Paulo Quintela, em 1969.375

Esta actualização da história destas duas perso-


nagens mitológicas é normalmente selectiva, na medida
em que ora apenas se reporta a orfeu ou a Eurídice
(pensamos aqui no quadro de Gustave Moreau, retratando
a cabeça do filho de Calíope nas mãos de Eurídice, já
depois da sua violenta morte) ora à história de amor entre
ambos. Por outro lado, há igualmente uma tendência
paralela a esta, que não alude sequer ao mito propria-
mente dito, prestando atenção ao que mais tarde se
convencionou por orfismo, um culto religioso-filosófico
que se pensa ter sido criado por orfeu e que assentava no
mistério da vida para além da morte e que terá
influenciado o cristianismo (veja-se o quadro de Dürer
relativamente à Morte de Orfeu).
Começamos por aludir a este mito porque a sua
premência, acabada de demonstrar nos parágrafos
anteriores, manifesta-se em vários momentos da poesia
__________________________________________

375
Maria Helena Rocha Pereira, 2003, p. 180.

386
NA TEIA Do PoEMA

portuguesa contemporânea, como já vimos, e em especial


na do poeta português por nós estudado que a ele alude
em vários momentos da sua vida poética. Podemos dizer
que na poesia judiciana se glosam e tratam diversos mitos
importantes da nossa cultura ocidental, por um lado, bem
como mitos nacionais, e mitos do quotidiano, da reali-
dade banal.
Comecemos por falar nos poemas sobre orfeu
incluídos no volume Pedro, Lembrando Inês. É muito
interessante que Júdice integre esta história no volume
em que igualmente ressuscita um mito da cultura
portuguesa, o da história de amores trágica entre o rei D.
Pedro e Inês de Castro. o próprio livro, que trata destes
e de outros amores (veja-se “A Varanda de Julieta”), pode
ser lido de várias formas, encetando diversos percursos
em torno do amor, a verdadeira temática que está aqui
subjacente. Assim, aqui são recordados os amores de
Pedro e Inês através de diversos momentos de encontro
e desencontro (veja-se, a este propósito, os apaixonados
“Ausência” ou “Natureza Viva”), mas isso é sempre feito
sob uma luz melancólica, de invocação de tempo passado
feliz por oposição à ausência do presente. o gerúndio no
título do volume deixa, antes de mais, antever isso: é
sobretudo de “Pedro, lembrando Inês” que se tenta aqui
falar, e não da específica história entre os dois.
Desta forma, é pertinente o lugar que Júdice destina
ao mito neste contexto, assim como o estilo escolhido
para o fazer. Sendo o último poema do livro, destaca-se
dos outros por ser uma longa “Carta de orfeu e Eurídice”,
escrita em sete movimentos, tal como se fosse uma peça
musical.
Como se sabe, quer uma quer outra história têm
similitudes, quer do ponto de vista do encadeamento
narrativo, quer no que se refere aos elementos e à

387
RICARDo MARQuES

estruturação da história. Como qualquer história trágica


que se rememora, esta recordação de Euridíce por parte
de orfeu começa no momento do reconhecimento da
solidão em que se está, após a descida inútil aos infernos:
“Construo a solidão/ com os pedações das imagens que me
deixaram. Ergo/ edifícios a partir de memórias, de palavras, de gestos
que/ ficaram das nossas conversas, quando o tempo se reduzia/ ao
instante que vivíamos, e nenhum futuro nos impunha/ a sua sombra
[…] és tu que quero guardar neste canto de onde as aves fugiram”376

Nos movimentos seguintes, há um desenvolver deste


estado do momento presente, como uma ferida em que
se toca constantemente porque não pára de doer –
“Regressa da tua ausência; ou dá-me ao menos/ a tua sombra,
para que ela me cubra com esse manto/ de obstinação que só os
tristes arrastam […] Aqui é o centro. onde a solidão me/ impregna
com o seu sudário de lodo, e a humidade/ dos fundos/ desce pelos
vidros da noite, apagando as imagens/amadas […] o lugar/ do
encontro, onde os deuses nos roubam ao acessório, / e um todo se
fica no que é aparente, e passa […]”377.

o orfeu de Júdice experimenta assim sentimentos


de incredulidade perante a perda, de que são exemplo as
inúmeras interrogações e exclamações que pontuam o
texto da carta e que vai reflectindo sobre a condição
amorosa (“Nós éramos um e essa unidade dividia-nos, /
quando no seu interior estremecia uma hesitação,/
corrompendo o espanto do outro”)378. o que se acaba por
concluir é que, como ele diz no último movimento desta
carta, tudo é efémero e ilusório e não há amor que resista
à interferência fatal da morte: “Iludia-me. A morte, que é
o fim/ do amor, corria à solta nos temporais/ da alma”379,
_________________________________________
376
Op. cit., p. 45.
377
Op. cit., pp. 46-47.
378
Idem, ibidem, p. 49.
379
Idem, ibidem, pp. 55-56.

388
NA TEIA Do PoEMA

mesmo que, no caso dele, tenha tido uma oportunidade


mais de resgatar o objecto do seu amor à morte (“Tê-lo-
-ei feito cedo demais? Por/que me voltei, então, como se
soubesse que as sombras não pedem que as olhemos,/ e
deixei que te prendessem com a sua/ inquietação de
fumo?”)380. o que resta então do passado, segundo este
orfeu, é o eco das memórias que ele tem de Eurídice: “E
por detrás dele outros ecos se sucedem,/ multiplicando
os lugares, até ao fim/ do caminho.”381
Já no texto seguinte onde o mito aparece, “Canto de
orfeu”382, presente no seu volume de 2002, é preci-
samente sobre este “canto” e sobre orfeu que se centra a
acção. Narrativamente falando estamos após o ciclo da
história fechada, naquilo que poderia ser uma meditação
de orfeu, no fim da sua vida, sobre o que se passou entre
ele e Eurídice e, simultaneamente, sobre a própria
inspiração poética:
A poesia, que incendeia a água, não nasce
da inspiração. Vou buscá-la ao inferno, atravessando
essa porta para lá da qual os astros
se apagam. Sei, no entanto, que o caminho do regresso
me está aberto: um rasto de versos indica-me a
saída, e trago-te comigo, ó viva Eurídice, de cabelos
desalinhados pelo vento da amnésia, e roupas
presas ao corpo pelo suor dos vendavais. “Espera por mim”,
dizes, num cansaço de sombra. E
ficas para trás, esperando não sei o quê,
para que eu te perca de vista. Ó
____________________________
380
Idem, ibidem.
381
Idem, ibidem, p. 56.
382
Parece haver um poema onde a figura de orfeu também se
refere implicitamente, presente em PR, 2000, p. 392, e intitulado
“Lira”. o poema em questão fala de ausência do “tu” poético, que
assim é cantado pelo sujeito poético com a sua “lira”. o começo do
poema é revelador: “Terá ele acabado o poema? – o poeta/ que não
esquece a mulher que o ignora, que ama/ os lábios que o expulsam
do reino, que se entusiama/ com o olhar frio de incertas aves?[…]”.

389
RICARDo MARQuES

amada: presa nesses túneis de uma vaga


antiguidade! A que demónios perguntas
onde estou? Que pão dás a comer ao guarda Cerbero,
para que feche os olhos à tua passagem? Mas
essa porta não se abre duas vezes. Deste-me os versos
que me guiaram até à vista das estrelas; e ficaste –
para que outro volte a seguir esse caminho, e
também ele regresse de mãos vazias,
sem o amor que secou no teu sexo.

Aqui, é clara a proposição inicial, num diálogo auto-


-reflectido e auto-regulado – “A poesia, que incendeia a
água, não nasce/ da inspiração. Vou buscá-la ao inferno
[…]383”. Este “inferno” adquire, ao longo do texto, uma
fácil identificação com a “memória”, uma vez que esta
busca da inspiração ao inferno para a poesia, para o seu
“canto”, “atravessando / essa porta para lá da qual os
astros/ se apagam”384 é diametralmente correspondente à
história da sua descida aos infernos para resgatar Eurídice
da morte, a história que no fundo está aqui subjacente.
Assim, todo o poema é estruturado em forma de
espelho, uma estrutura que é cara a Júdice, alternando as
duas camadas narrativas ambíguas que se referiram. A
conclusão é a da sua própria história: “Deste-me os
versos/ que me guiaram até à vista das estrelas; e ficaste”,
porque “essa porta não se abre duas vezes”, que é a porta
da memória e aquela que, segundo o mito, é guardada
pelo “guarda Cerbero”, o guarda do Inferno. Paralela-
mente, “atravessar a porta” do inferno é como atravessar
a barreira do esquecimento, resgatar a poesia através das
memórias, como se resgata Eurídice no mesmo passo.

____________________________________________
383
O Estado dos Campos, 2003, p. 19.
384
Idem.

390
NA TEIA Do PoEMA

Mais curiosa e longa é a sua primeira incursão


cronológica no mito, nomeadamente “orfeu e Eurídice”,
presente em Enumeração das Sombras, de 1989385. Este
poema, composto de duas estrofes, pode ser lido como
reflexão metaliterária sobre o conceito de inspiração, que
está igualmente ligado à história de orfeu e Eurídice.
A seiva terrestre molda a lama do espírito.
um fragmento de pólen dói por dentro da inspiração
(último recurso dos silêncios abrupto da nuvem)
e adormece o corpo despojado de alma.
A quem recorrer quando um deus se oculta deste modo?
A ortografia seca dos poentes abre o caminho da origem.
É que algures, entre o gosto monótono do vento
e um hálito saciado de adjectivos a palavra perde-se;
um confim de água e o reflexo da sombra!
Soubesse alguém intuir a ruína e o lento desabar dos corpos,
e chamar os pássaros pelos nomes, agora que eles
nos evitam de cada vez que um anjo os contamina de treva.
Ó depositário da opacidade do horizonte:
deita-te num berço de sílabas subterrâneas, soletrando o abismo. [...]

Nesta estrofe, a evocação imagética de vários


pormenores do poema – “ortografia seca dos poentes”,
“hálito saciado de adjectivos”, “berço de sílabas
subterrâneas” aponta no sentido da inspiração ligada à
poiesis do poema, ao seu acontecer. o poeta começa por
contrapor o “espírito” ao corpo, advogando que as coisas
terrenas, nomeadamente o amor (“a seiva terrestre”) é o
que “molda a lama do espírito”. Parece igualmente haver
aqui uma clara ideia de treva, de sombra e de noite, que
se liga semanticamente a outros vocábulos.
Continua o sujeito lírico a discorrer:

_________________________________________
385
PR, 2000, pp. 361-262.

391
RICARDo MARQuES

[…]
Interrompe esse canto.
A luz do outono é vermelha nos cabelos da madrugada
quando um gesto súbito abre as persianas do quarto.
Perco a ordem das colinas,
o sentido único do amor,
uma ressaca de redes na maré baixa das imagens.
Rodam devagar os troncos decepados na obscuridade do bosque,
e um sonho de lenhadores loucos celebra o tédio do inverno
– janeiro, fevereiro, e os mascarados nus sob os mantos de linho
anunciando as cinzas do sexo,
nostálgicos de uma opulência de algas.
Foi assim que a rapariga amada morreu,
e ninguém recebeu no cálice negro dos lábios a oferenda
da sua virgindade. Eu, porém, deitei-me com ela
antes que março trouxesse o luto da manhã e um despojo de erva
no fundo do campo. Rasguem os azuis do sono; e tracem em vão
o perfil da futura aparição nos patamares da noite:
é que a hora das sombras não é essa – mas
esse meio-dia em que a luz cai a pique,
rasgando o segredo dos portais.
Descubro, devagar, o caminho de casa. Então,
é cedo para saber se o nevoeiro se dissipará, entre os risos
familiares de uma antiga alegria e a cinzenta inquietação
dos olhos que viram o outro lado da névoa – despertos
à força durante a inesperada vigília do amor.
Mas tu, que nada obrigava à insónia árida da morte,
por que optaste por ela – a seca ceifeira – e lhe sacrificaste
esse riso que os ecos devolvem às salas fechadas,
às varandas sem flores nem um murmúrio húmido do vento litoral?
A impaciência do poema exalta o incenso.
Deito-te na estrofe – e deixo-te,
olhando para trás até ao fim do tempo que a respiração do verso
me concede.

No âmbito do evento Europália 91, foi editada uma


sequência de 16 poemas de Nuno Júdice com ilustrações
de Rui Chafes sob o título Uma Sequência de Outubro e
onde figura uma outra variação sobre este mito. o título,
desta feita, é “Eurídice”386, sendo, antes de mais, um poe-
____________________________________________
386
Nuno Júdice e Rui Chafes, Uma Sequência de Outubro,
Comissariado para a Europália 91, Lisboa, 1991, p. 12.

392
NA TEIA Do PoEMA

ma nocturno, onde a figura da noite vai equivaler-se ao


da ausência e da morte. Aqui, a figura central, indicada
desde logo pelo título, é Eurídice387, mas a sua evocação
potencia igualmente outras leituras mais metafóricas.
Assim, o poema subdivide-se claramente em dois
momentos, um em que se desenvolve a ideia da noite
enquanto lugar estéril e terrível, onde às vezes se ouve
“uma voz arruinada,/ murmurando memórias”, para
depois, a partir do meio do segunda estrofe, o sujeito
poético se dirigir concretamente àquilo que pode ser
interpretado como Eurídice:
No entanto,
Se descermos até ao fundo o obscuro
Corredor, talvez as tuas mãos frias
Tenham resistido ao olhar interdito:
Abertas aos dedos que estendemos,
Na busca de uma saída luminosa388

De uma forma mais metafórica, o poema retoma a


linha de leitura da memória, istoé, do relembrar activa-
mente quem no presente está ausente, que já vimos
noutros poemas. Assim, é possível estabelecer uma
interligação do topos da “noite”, o “obscuro corredor”,
com esse sentimento.
Para além disso, outro aspecto interessante é a
ligação da noite e dessa ausência com a arte poética e o
uso da palavra enquanto elemento genésico e criador
(“No início era o verbo”) por oposição àquilo que vemos
no tempo presente do poema. Isto manifesta-se sobretudo
no fim da primeira estrofe:
________________________________________
387
Para além dos poemas apontados, Eurídice é igualmente
referida em “um diálogo de sombras”, (Cartografia das Emoções,
2001, pp. 30-31) e “Tríade Aquática” (PR, 2000, p. 906).
388
Idem, ibidem.

393
RICARDo MARQuES

[…] as palavras secas da terra,


As frases brancas como as mais recentes
Mortalhas, um ritmo de luto no suspiro
Das vogais389

De notar que todo o vocabulário deste excerto


aponta nesta direcção, criando uma rede de antíteses
sobre a qual o poema assenta. Assim, a conclusão,
plasmada no dístico final, relaciona-se directamente com
o papel que a memória tem no contraponto à ausência do
objecto do poema: “o rosto perdido 390
para sempre/Não
recusa o nome que os ecos repetem”
Ainda nos anos 90, no livro O Movimento 391
do
Mundo, Nuno Júdice publicou o poema “orfeu” :
Persegue a imagem da amada
nas fontes do canto. Assim, abre o caminho
às sombras que se perderam
no bosque. Não as vê; e elas transportam
o corpo que ele deseja, sem saber
como está perto.

Mas quando se volta o luar


apaga essas sombras. uma noite branca
rouba o reflexo ao espelho
dos lagos. Esquece o nome que
poderia trazer de volta o rio luminoso
da manhã.

Então, continua a descida sem fim.

o poema em questão situa-se no momento da


história em que orfeu já perdeu Eurídice e “persegue a
imagem da amada nas fontes do canto”. Todo o poema
se constrói tendo por base uma antítese fundamental entre
a ilusão e a realidade, de que as “sombras”, vocábulo
_____________________________________________
389
Idem, ibidem.
390
Idem, ibidem.
391
PR, 2000, p. 732.

394
NA TEIA Do PoEMA

duas vezes repetido e intuido na proximidade semântica


de outros, é palavra-chave. A contraposição que enforma
essa antítese está presente no confronto entre o momento
lembrado do passado e o esquecimento tentado do
presente. o presente é apenas sombra do que foi passado
e que se dissipa, apesar das ilusões do canto, com a luz
melancólica da lua.
É importante relevar, neste poema, a analogia que o
poeta estabelece entre orfeu e o elemento aquático392. o
percurso do primeiro “perseguindo” (o verbo é claro) as
imagens do passado é dada por relação com o percurso
da água, desde as “fontes” até ao “lago” ou “rio”393, desa-
guando, eventualmente, num mar ou oceano. Deste
modo, quando o momento disfórico do presente é
revelado a orfeu pela luz triste da lua, no bosque (“locus
horrendus” romântico), iludido que está com as sombras
que o seu canto triste produz e promove, o momento é o
de esquecer “o nome que poderá trazer de volta o rio
luminoso da manhã”. o momento é de, então, continuar
a “descida sem fim”, a do rio direito ao mar, e a de orfeu
em direcção à morte, sem Eurídice.

________________________
392
A importãncia do elemento na poesia de Nuno Júdice já foi,
de resto, referida, num interessante artigo de Luís Miguel Nava,
simultaneamente crítica a Enumeração de Sombras, livro de 1989.
Cf. Luís Miguel Nava, “Mnemónicas para Nuno Júdice: uma poética
da água”, in Luís Miguel Nava, 2004.
393
Ainda no que diz respeito à ilusão e a sua relação com o
reflexo da água, lembramos a alusão velada a outro mito grego, o de
Narciso, que o poeta igualmente glosa em alguns poemas seus. Veja-
-se a nossa análise Veja-se, a este propósito, a análise de José Ribeiro
Ferreira, na sua intervenção sobre o “o Mito de Narciso na Poesia
Contemporânea”, em que este autor refere como cinco os poemas
em que Júdice fala deste mito, incluindo, pelo topos do reflexo da
água, o poema “Epitáfio Campestre”, de Teoria Geral do Sentimento
[na edição de 1999, pp. 47-48], que não analisaremos neste trabalho.

395
RICARDo MARQuES

Mais recentemente ainda, em 21 de Maio de 2006, o


poeta publicou no seu blogue, dedicado à escrita ecfrástica,
um poema intitulado “À maneira de Eurídice”394:

Folha que passou num antigo outono,


deixa atrás dela o que não se vê:
a direcção do olhar para um canto
de parede, onde um espelho a
reflecte. E vejo estes olhos
falarem, para que outros
olhos os desviem da imagem
defunta. Mas quando o meu olhar
se cruza com o seu, o reflexo
dissipa-se, como fumo de incenso;
e onde havia imagem e vida, só
um resto de pó ainda brilha,
no vidro, para que alguém o limpe,
e outro rosto apareça.

o que se salienta ao longo deste poema é o


sentimento da recordação saudosa de Eurídice por orfeu,
de que muitas das palavras são um exemplo claro.
Efectivamente, desde o verbo “passou” do início, ao
advérbio “ainda” do fim, as palavras que se usam
denotam bem essa passagem que agora se recorda. o
olhar, presença dominante neste poema e aspecto
particular do rosto, é várias vezes glosado até ao fim
como metáfora da imagem perene de alguém que se
recorda. Funciona igualmente como ligação ao intertexto
que o título sugere – a história de orfeu e Eurídice, o
olhar que traiu orfeu e condenou Eurídice ao esque-
cimento do Submundo, à sua separação.
A figura de Eurídice é novamente o tema e título do
poema que se segue, presente em Líra de Líquen395. o
poema em questão, de duas estrofes, está dividido entre
dois momentos, graficamente assinalados pelo poeta.
_______________________________________________
394
Vd. entrada de Maio de 2006, no blogue. Acedido em
Agosto de 2008.
395
PR, 2000, pp. 264-65.

396
NA TEIA Do PoEMA

um choro descerá com os grandes nevoeiros desse


outono; e a tua voz afastar-se-á, acompanhando
o último sorriso do crepúsculo. Lembro-me,
então, dos teus dedos brancos no rebordo da
pedra! Persigo a tua imagem ocre e grave!
mas mandas-me parar. E ajoelho-me: velhas vozes
sobem da terra fértil, um crepitar de lenha
na fogueira, risos…Ó vida ao lado da vida
– oculto eco que, aos meus ouvidos, continua-
mente canta a tua subterrânea alegria.

Na primeira estância, a narração está mais assente


na figura do sujeito poético, provavelmente orfeu, que
“vive a vida ao lado da vida”, isto é, “perseguindo a
imagem ocre e grave” de Eurídice, já pressentindo que
“um choro descerá com os grandes nevoeiros desse
outono”, que pode ser interpretado como o caminhar para
o fim da vida dele, sem a presença apolínea de Eurídice.
De salientar, nesta estrofe, assim como na seguinte a
antítese fundamental, que temos vindo a assinalar em
outros poemas deste mito, entre o passado recordado
(dado por vocábulos e expressões como “velhas vozes”
e “risos”) e o presente disfórico (“choro”, “imagem ocre
e grave”, entre outros). A segunda estrofe vem concluir
estas ideias:
2

Às vezes vinham perguntar-me o caminho.


“– Atravessai as vastas extensões de lodo
e areias movediças; esperai pela maré
baixa, quando a baleia jaz agonizante nos charcos
imundos do estuário. Contai pelas estrelas os dias
que faltam”. Mas não ouviam a minha voz; nem
o queixume do vento repetia as minhas palavras.
um aviso, no entanto, reflectia-se no céu enevoado.
E a mancha de luz vermelha que acompanhava o
poente ornava pálidos os rostos, breves as
conversas. Depois o silêncio, as trevas, a murmurada

397
RICARDo MARQuES

alusão aos secretos mundos interiores. Campos sem


fim, terras vazias que dão para outras terras, um
errar de passos na impaciência da alma.

o poema “orfeu nos Infernos (variante)”396, do livro


Meditação sobre Ruínas, adopta uma perspectiva
paródica para com o mito clássico, transpondo-o para os
dias de hoje:
Num armazém do Porto, entre caixotes de mercadorias
e roldanas sem préstimo; numa praça por onde passaram
os varredores, deixando o lixo
junto às sarjetas; ou ainda nesse banco onde o vento abriu
o jornal da véspera na página dos óbitos, discutimos,
conversámos, e talvez me tenhas empurrado para
uma atitude demasiado intelectual – conversas
“abstractas”, por onde não passava o sorpo da “vida”. Por
isso, nunca levaste a sério que tivesse dito “amo-te”
por entre referências e comentários
de literatura e política. “Afinal, esses lugares
estavam vazios, como se a cidade tivesse sido evacuada;
e os seres, como nós, flutuavam – como anjos
numa paisagem intemporal”. Levantas-te para ir à janela,
de onde se vê o rio e, sobre os montes, as nuvens
escuras, de acordo com as previsões. “Está um tempo instável,
mas não te aconselho o chapéu-de-chuva”, disseste-me, como forma
de despedida. Atravessei a rua, e senti o teu olhar,
durante algum tempo, insistindo para que parasse
e olhasse para trás, na tua direcção.

De um modo geral, todos os elementos que


compõem a narrativa mitológica entre orfeu e Eurídice
estão presentes, salvo o seu trágico desfecho. Existem
sobretudo dois interlocutores neste poema: o sujeito
poético e um outro alguém a quem ele se dirige. De notar
logo a início a localização geográfica da história deste
poema que, podendo ser qualquer lugar (vv. 1-5), são so-

________________________________________
396
PR, 2000, p. 558.

398
NA TEIA Do PoEMA

bretudo nomeados sítios existentes contemporaneamente,


enformando a existência espácio-temporal das duas
personagens deste poema. o sujeito faz uma introspecção
e confessa que o sujeito amado talvez nunca tivesse
percebido que ele a amava porque ele “apenas dizia amo-
-te entre referências e comentários de literatura e
política”. Assim, este orfeu moderno chega à conclusão
que “esses lugares estavam vazios […] como anjos numa
paisagem intemporal” (vv. 10-14).
um último momento do poema convoca direc-
tamente o mito, quando o “tu” poético se despede
(provavelmente para sempre) do sujeito lírico e o deixa
a sentir “o teu olhar/ durante algum tempo, insistindo
para que parasse e olhasse para trás, na tua direcção” (vv.
18-20).
Antes de acabarmos este capítulo sobre orfeu,
vamos ver um último poema onde este mito aparece
convocado implicitamente através do objecto que o
celebrizou e que dá título ao poema, “Lira”397:
Terá ele acabado o canto? – o poeta
que não esquece a mulher que o ignora, que ama
os lábios que o expulsam do reino, que se entusiasma
com o olhar frio de incertas aves? Bebe a inspiração
por um cálice de palavras azedas, sorvendo a vertigem
dos fragmentos: “Primeiro, a intuição do paraíso; o
tumulto das árvores que o vento fez cantar. Depois,
o sentimento que nasce de um desejo abrupto
como o inverno e árido como o rosto que fixa a própria
noite.” É por isso – a solidão visível
da alma – que a música lhe sobe à cabeça; embriagando-o;
e roubando-lhe a memória que os sóis embranqueceram. ousa
o amor ao verso! o espírito que cedeu à beleza,
e se afunda no corrupto húmus da imagem! Assim,
o pensamento leva à omissão do instante; a vontade
persegue o curso hesitante do coração. E a esfera
imutável do ser parte-se nas mãos do poema,
como os frutos tardios do outono.
_______________________________________________
397
PR, 2000, p. 392.

399
RICARDo MARQuES

o poema judiciano, eivado de exclamações e de


interrogações retóricas, começa no fim trágico da história
do mito, como em alguns dos outros poemas que
analisamos. Aqui, orfeu já perdeu Euridice e cessou o
seu canto, já que “não esquece a mulher que o ignora”.
Já a inspiração é amarga, bebida “por um cálice de
palavras azedas”, e preso à sua solidão, a música da lira
contamina-o, embriaga-o, e fá-lo esquecer as boas
memórias com Eurídice. A dúvida, expressa desde logo
no primeiro verso, mantém-se (“Terá ele acabado o
canto?”). A resposta parece positiva, mas revestida de um
cariz outonal, oco e depressivo, como é próprio dos
poemas que são feitos apenas “por amor ao verso”, ao
“corrupto húmus da imagem” de onde nada medra.
Assim, o desfecho é inevitável, com a dilaceração do ser
perante o poema, “como os frutos tardios do outono”.

Teremos assim, de seguida, outro conjunto de mitos,


os quais radicam tematicamente num princípio de
viagem, importante neste autor398, bem como do caminho
ou percurso iniciático para superar provas. Centraremos
a nossa análise nos seus poemas sobre ulisses para
ilustrar o primeiro paradigma, bem como nas histórias
sobre o labirinto de Minotauro.

_____________________
398
Tem desenvolvido alguns artigos sobre o tema, nomea-
damente “A viagem entre o real e o maravilhoso” in Ana Margarida
Falcão et allii (eds.), Literatura de Viagem – Narrativa, História,
Mito, Lisboa, Cosmos, Dez. 1997, pp. 621-629.

400
NA TEIA Do PoEMA

3.2 Caminhos: A viagem e o labirinto

ulisses e a história mitológica da sua partida e regresso


a Ítaca, épico imortalizado por Homero em Odisseia, estão
presentes na poesia de Júdice e de outros autores seus
contemporâneos, nomeadamente os estudados.
Assim, e em primeiro lugar, o que aqui acontece é a
convocação da figura de Penélope, mulher de ulisses, e
da sua história de espera pelo marido durante anos,
confiando no seu regresso e adiando o enlace com outros
pretendentes. o curto poema de Júdice, “Penélope”399,
com que a seguir se exemplifica o que se disse atrás se
diz, alude efectivamente a essa espera com uma
metaforização conseguida do símbolo da urdidura ou da
teia, transmitindo uma ideia de desespero perante a
exigente paciência que é necessário ter, a cada “luz da
manhã” na esperança incerta na volta de ulisses. Desta
forma, inquere o sujeito poético:
Nós, atados pelos dedos
do esquecimento: quem sabe
desatá-los?
A luz da manhã assobia
ao vê-los: fios de uma fria
tapeçaria400

_________________________________________________

399
PR, 2000, p. 663. Sobre Penélope há mais poemas no seu
blogue ecfrástico, nomeadamente “Mulher numa cadeira grega
(Penélope)” – Cf. <http://aaz-nj.blogspot.com/2006_05_01_archive.
html >– acedido em Junho de 2009).
400
Também Carol Ann Duffy, apesar do seu tratamento mais
jocoso e paródico, demonstra com o seu “Penelope” (Duffy, 1999,
pp. 70-71), presente em The World’s Wife, como a metáfora da teia
pode tornar-se um elemento central deste mito, tornando-o, no
mesmo passo, o elemento central do seu poema. Assim, enquanto
em Júdice, Penélope é entrevista através da sua “fria” tapeçaria como
a imagem da fidelidade apesar de todas as contrariedades e incerte-

401
RICARDo MARQuES

Em segundo lugar, “A Deriva de ulisses” é um


poema de Júdice sobre a história mítica de ulisses e
Penélope, mostrando esta última num exasperado
monólogo interior, eivado de interrogações retóricas e
com um vocativo claramente dirigido a ulisses:
Desfaço uma tapeçaria de sentimentos com a agulha do
horizonte. Nenhuma Tróia à vista, e Ítaca nem vê-la. Só
este mar: o azul para todos os lados, como se dele viesse…
o quê? Que ilusão de infinito se esboroa com a espuma
das águas? E que abismo se oculta sob esta cor, de
onde me chegam os lamentos de quem não teve a minha
visita? Vós, cujos corpos abandonados esperam ainda o consolo
das carpideiras: porque me censurais ter-vos deixado
para trás? Ter-vos fechado a entrada neste barco? Ter tapado
os ouvidos às vossas súplicas? Não. Não guardei nenhuma
dor para acalmar a vossa memória. Esqueci tudo o que
vos diz respeito – até a cor dos olhos quando me faláveis,
nas madrugadas que precediam o combate, esperando
que vos poupasse. Agora, o caminho é em frente. Rompo
as fronteiras da alma. Rasgo os cortinados da compaixão. Deito
para trás o lastro das queixas, guardando o meu desejo
de amanhã para tapar a boca dos agonizantes. Espalho o sal
sobre as suas feridas; seco-lhes o sangue com o fogo
das tochas. Chamo as fúrias do temporal; os brados
da noite; o guincho rouco das amazonas feridas. Digo-lhes
que me sigam, neste rumo ateu, pisando o destino
que me entregaram. o meu gesto é este: furar os olhos
de quem me vê; abrir o peito dos que me amam; contar
os mortos que enchem esta planície, até gastar os dedos.

__________________________
zas, a poetisa inglesa relaciona a feitura e destruição da sua tapeçaria
com a passagem sempre inexorável do tempo. Por outro lado, há
neste poema um maior desenvolvimento da caracterização
psicológica de Penélope, naquilo que se torna um monólogo
dramatizado do tempo que passou entre a partida de ulisses e a sua
chegada. Vejamos algumas linhas do mesmo: “At first, I looked
along the road/Hoping to see him saunter home/Among the olive
trees,/A whistle for the dog/Who mourned him with his warm head
on my knees./Six months of this/And then I noticed that whole days
had passed/Without my noticing./I sorted cloth and scissors, needle,
thread,/Thinking to amuse myself,/But found a lifetime’s industry
instead”.

402
NA TEIA Do PoEMA

Por último, também em A Matéria do Poema vai o


poeta português referir-se a este mito, nomeadamente em
“A Ladainha de ulisses”401. Enquanto a nível do
conteúdo, este poema não avança muito em relação à
história que todos conhecemos, é de notar, desde logo, a
estrutura externa que adopta no tratamento deste tema
universal, já que vai repescar à tradição popular
portuguesa esta típica composição, que tem por base ir-
-se alimentando de si própria. Júdice escolhe centrar-se
na parte final da história de ulisses, aquando do regresso
a Ítaca, para aludir a este mito. Vejamos o seu princípio
e o fim, para termos uma ideia do que o poema nos diz:
Fui ver Penélope e os nove pretendentes
Eu era o décimo pretendente.
Fui ver Penélope e os dezanove pretendentes.
Eu era o vigésimo pretendente.

[…]

Fui ver os noventa e nove pretendentes.


Eu era o centésimo pretendente.
Fui ver Penélope e matei os cem pretendentes.
Eu era ulisses.

É também sobre o tema do regresso de ulisses que fala o


poema com o mesmo título, incluído na compilação de sonetos
que é O Breve Sentimento do Efémero402:
E assim chego a esta margem onde
só os mortos me esperam. olham-me
através dos arbustos; os ramos secos
são as mãos que me estendem.

Sento-me na pedra do rio, ouvindo


as suas queixas. “Não esperem que vos
console”, digo-lhes. E o seu choro corre
com a água, num eco de corrente.
_____________________________________________

Op. cit., p. 46.


401

In O Breve Sentimento do Efémero, Lisboa, Edições Nelson


402

de Matos, 2008, p. 45.

403
RICARDo MARQuES

Por que se demora o barco do regresso?


Que estou a fazer aqui, nesta margem
onde só os mortos me acompanham?

E o horizonte continua vazio. Só a nuvem


longínqua me chama, num aceno branco,
como se se pudesse embarcar numa nuvem.

Quem aqui assume a voz narrativa parece ser


ulisses, mas há um claro sentido conotativo neste poema,
susceptível de criar outras interpretações. Como se sabe,
mais do que o regresso à pátria, o importante na história
deste herói é a viagem em si, tema fundamental na
literatura mundial. A situação narrativa deste poema é a
do regresso dentro da própria viagem, já nessa segunda
parte de Odisseia.
A história do labirinto de Minotauro é outro dos
espaços mitificados pela Antiguidade Clássica que
compõem o panteão poético de Nuno Júdice. Como é
habitual neste poeta, o Minotauro é actualizado parcial-
mente na sua poesia, numa atitude irónica e, neste caso,
até auto-reflexiva sobre a própria história do mito. o
poema em causa intitula-se “Sol de Inverno”403:
Fazer as contas ao dia
e ver que tudo bate certo:

o Minotauro que corre na arena


por entre virgens nuas;
o pássaro amarelo que entrou
para dentro do sol e se transformou
num pavão de fogo;
o deus cego que espezinha
um diadema de flores
no templo da primavera.

__________________________
403
A Matéria do Poema, 2008, p. 29. Ligado ao tema deste, e
ainda no mesmo livro, aparece um poema intitulado “Labirinto” (pp.
88-89), que alude a esta história mítica que envolve o Minotauro.

404
NA TEIA Do PoEMA

E para fazer esta soma


não precisei
de falar com o Minotauro,
de meter o pássaro numa gaiola,
nem de mandar o deus para o Inverno.

Limitei-me a pôr asas


ao Minotauro, a pintar com o amarelo
do pássaro os corpos das virgens
nuas, e a pedir ao deus que abrisse
o seu leque de pavão, enquanto
os raios do sol chilreavam
à sua volta.

Paralela a esta atitude pós-moderna de reflectir sobre


os vários elementos que compõem a história mitológica
de Minotauro, nomeadamente o sacrifício das virgens,
Teseu, Dédalo, Ícaro e a sua morte, é de assinalar como
o poema se constrói lógica e concatenadamente. Quem
assume a voz narrativa parece ser o próprio poeta,
confudindo-se assim a tarefa de autor com a de sujeito
poético, como em muitos outros poemas acontece. Assim,
a primeira estrofe, acabando na marca gráfica dos dois
pontos, introduz o que a seguir se enumerará acerca
destes elementos, enumerados correctamente, isto é, tal
como supostamente se passaram, na estrofe segunda. A
esta estrofe antepõe-se a última, em que é a sua visão de
poeta que verdadeiramente impera, trocando os símbolos
correspondentes a cada um dos elementos e dando um
tom surrealista ao poema (“os raios do sol chilreavam/ à
sua volta”). Desta forma, estamos perante um poema
onde o sujeito-autor quer, declaradamente, demonstrar
que a poesia e o poema vai ser produto de uma visão
própria daquilo que nos é legado e que se passa à nossa
volta, sem que seja preciso “falar com o Minotauro,/de
meter o pássaro numa gaiola,/nem de mandar o deus para
o Inverno.” De assinalar a subversão da expressão deste

405
RICARDo MARQuES

último verso, que se relaciona com o próprio título e


revela a sua ironia.
outro elemento importante que falta salientar é o da
inclusão da metáfora das “contas” e das “somas” na
sequência narrativa, como sinónimo de “ajuste” ou
“acerto”, naquilo que constitui um outro veio irónico do
discurso judiciano, nomeadamente o da interdisci-
plinaridade dos vários mundos do conhecimento, aqui
exemplificado pelas tangências entre a literatura e a
matemática404.
Vejamos agora de perto os numerosos poemas em
que Júdice vai buscar mulheres mitológicas para o centro
do poema, fazendo delas o objecto de tratamento.

3.3. O eterno feminino

Nuno Júdice é um poeta que, como temos vindo a


verificar ao longo da análise dos seus poemas, gosta de
convocar para o seio da sua poesia o elemento feminino.
Já o vimos, por exemplo, através da descrição ecfrástica
do retrato feminino ou ainda nas muitas referências
literárias a mulheres e personagens importantes na
história da literatura. Desta feita, o capítulo seguinte
pretende demonstrar este seu interesse com o tratamento
de alguns poemas sobre personagens mitológicas onde
domina a essência do feminino, onde as mulheres,
sobretudo fortes e de carácter dominador.
Para começar, “Cena mitológica”405 é um poema
longo sobre as nove musas mitológicas, filhas de Zeus e
_______________________________________________
404
Esta atitude assume um clímax no livro inédito com a sua
Poesia Reunida de 2000, adequadamente intitulado “Rimas e
Contas”.
405
PR, 2000, pp. 396–400.

406
NA TEIA Do PoEMA

Mnemósina, capazes de estimular as capacidades


artísticas e científicas de quem as evoca. Podemos ver
aqui uma ponte para com um outro poema, que vimos na
parte anterior, intitulado “Mulheres” e que enumera
várias mulheres (algumas que também são retomadas
noutros poemas do autor, como Emily Dickinson), o que
reforça a ideia, que também temos vindo a desenvolver,
de que o retrato poético da mulher é algo caro a Nuno
Júdice, que o faz de várias formas.

B. Peruzzi, “As musas dançando com Apolo”

o extenso poema, de que apenas iremos citar o seu


princípio e fim, coloca questões pertinentes no que toca
ao seu encaixe nos modos literários. o estilo empregado
aqui é assaz narrativo, num registo que agrupa e interliga
todas as histórias numa só, como se fosse uma cena de
teatro (veja-se o que o título do poema indica – “Cena”).
Todas estas narrativas poéticas aparecem inclusive unidas
pela simbólica feminina do elemento água, motivo que
já vimos bastante importante neste autor. o elemento aqui
tem uma simbologia especial visto ser comummente
associado com as musas e conotado com outros aspectos
como o nascimento e a criação literárias. Vejamos, neste

407
RICARDo MARQuES

sentido, a primeira estrofe, que constitui uma proposição


ou introdução ao resto do poema, bem como a última,
onde o poeta português expressa a sua verdadeira visão
sobre a importância da musas na criação artística406:
As nove mulheres, debruçando-se na fonte,
escorrem os cabelos de ouro. Nenhuma se lembra
de que o seu reflexo se tinge de vermelho
com o sangue do horizonte; e os olhos fixam-se
na ideia antiga de que nada é presente, o tempo
escorrendo como areia por entre os dedos. Porém,
uma voz canta o seu encontro. Elas ouvem, por
instantes, a luminosa dedicatória; sem prestarem
atenção às palavras: “Por que não vedes o
próprio rosto? E esqueceis as lágrimas, o brilho
baço das pálpebras, as mãos imóveis como pombas
mortas?” A água, correndo, roubou-lhes o espírito,
deixando-as suspensas de uma falsa eternidade.

[…]

Pintam-nas sob os traços de raparigas aladas, belas,


modestas, cada uma das quais exibindo os atributos
particulares da sua arte. Consagram-nas as palmas
e os louros. No entanto, emudecem quem as desperta,
roubam o olhar que as fixou, entregam ao êxtase
do abismo o espírito que aflorou o seu voo.

É clara a oposição que Júdice constrói neste fim de


poema entre o modo com que os demais artistas vêem as
musas que inspiram as artes e o seu modo particular de
as ver. Na sua opinião, a sua influência, ao contrário do
que se costuma afirmar (“Consagram-nas as palmas/ e os

__________________________________________
406
Tal como o poema de Júdice, também as Histórias de
Heródoto vão-se subdividir em nove partes, cada uma dela também
evocando uma musa, o que leva a crer que o autor terá tomado
conhecimento com esta obra e autor. Também ovídio, autor caro a
Júdice, nas suas Metamorfoses, as refere algumas vezes, inclusive
dedicando algumas estrofes a duas delas em particular (urânia e
Calíope).

408
NA TEIA Do PoEMA

louros”), pode ser perniciosa porque quase remete para a


loucura o artista que “as desperta/ [que] rouba o olhar que
as fixou”. Penso que este poema pode assim vir na
continuidade daquilo que dissemos no que toca à
perspectiva judiciana sobre a inspiração, sobretudo
expressa no auto-explicativo “Contra o sublime”407.
Paralelamente, e como veremos neste capítulo pela
análise de outras mulheres, é esta a forma judiciana de
caracterizar a mulher, um misto de mulher fatal e
paradigma do poder passivamente influente.
Circe, por seu turno, é uma deusa feiticeira, filha de
Hécate (deusa da magia e da noite) e de Hélios (Deus-
Sol), que ficou para a história da mitologia como tendo o
poder, através das plantas, de transformar os homens em
animais, vivendo no exílio na ilha de Ea após ter
assasinado o seu marido. Esta mulher forte foi assim alvo
de dois poemas por parte de Nuno Júdice, ambos
denominados de “Circe”. Vejamos desde logo aquele que
aparece em primeiro lugar na sua poesia408:
Vi, por trás dos muros e dos telhados,
a terra rasgada pelas máquinas e pelos ventos:
raízes arrancadas, ervas dentro de sacos,
pássaros pretos à procura de sementes,
e um poço sem água para reflectir o céu.
Ainda que quisesse, não podia ver mais nada
para lá desses muros e telhados; a não ser que,
espreitando por uma fresta, desse com o teu
corpo deitado na palha, roído pelo sol
negro das caves, embrulhado na serapilheira
da noite. Mas não te procurava; e deixei-te
entregue ao sono antigo, com as mãos presas
à terra e os seios imóveis, como se nenhuma
respiração te ligasse à vida.

________________________________________________
407
Cf. Parte I, Capítulo “o escritor e o universo literário.”
408
PR, 2000, p. 716.

409
RICARDo MARQuES

Como podemos ver, o poema apresenta desde um


ambiente claramente disfórico, de tom macabro
(identificável com a ilha da deusa mitológica) que nos é
relatado pelo testemunho do sujeito poético (veja-se a
dialéctica entre “ver” e “não ver”, logo desde início).
uma leitura simples do poema aponta assim para o seu
antecedente mitológico, em que o “eu” é ulisses e
prescruta a casa de Circe, não para a procura, mas sim
para resgatar os companheiros. No entanto, numa leitura
mais lata e mais judiciana, podemos ver nesta Circe,
conotada com a morte, uma outra mulher-feiticeira, que
o sujeito escolhe não ver porque escolhe não querer
lembrar. Desta forma, o poema invoca o momento do
resgate de uma memória amorosa do passado que, ao ser
naturalmente selectiva, apenas depende da opção do
sujeito para ser invocada. Por isso “deixei-te entregue ao
sono antigo (=passado, morte) […] como se nenhuma/
respiração te ligasse à vida”.
outro poema em que a personagem mitológica
aparece toma o título desta personagem, “Circe”409:
Atravessaste o jardim em que
os amantes se perdem; e no último canteiro
colheste um ramo de estrelas para pôr
no jarro do universo, contando-as pelos signos
do zodíaco. Pediste aos deuses que
não apagassem a fogueira que te alimenta
o desejo. Atiraste para dentro dela
o resto de lenha da eternidade, e viste-a arder
até não te restarem senão as cinzas
do limite. Recolheste-as na caixa do futuro,
de onde um pássaro branco sairá quando a crisálida
do poema se soltar do casulo do inverno. Poderás
apontar-lhe a flecha do instante, e capturá-lo
no céu de ninguém que só as nuvens
atravessam. ouvi-lo-ás cantar, como se ainda
____________________________________________

409
A Matéria do Poema, 2008, p. 98.

410
NA TEIA Do PoEMA

estivesse vivo; e esse canto poupar-te-á à noite,


ao cair da treva sobre a alma, à estagnação
da terra. É como se dissesse: “A amada espera-te;
e um porto antigo abre o seu cais
a essa barca de onde nunca esperaste desembarcar.” E
encontras os seus olhos, a ilha do seu abraço,
as colinas que se libertam de uma névoa
que inventaste.

Curiosamente, este novo poema judiciano sobre


Circe aponta para o mesmo momento narrativo do
anterior, centrando-se em ulisses e no episódio de Odis-
seia em que vai resgatar os seus companheiros e por lá
fica durante algum tempo, antes de partir novamente em
viagem para Ítaca.
o sujeito poético confunde-se uma vez mais com o
autor, que se dirige sempre a ulisses, parecendo narrar
ao mesmo tempo os diversos momentos de passagem
pela ilha. Da floresta à habitação de Circe (“o jardim em
que/ os amantes se perdem”) ou a prevenção pelas ervas
para não ser transformado (“no último canteiro/ colheste
um ramo de estrelas […]”). o retrato que se faz do herói
de Homero é, paralelamente, bastante psicológico; tenta-
-se adivinhar, projectando, o que passa pela sua cabeça,
nomeadamente as saudades de casa que ulisses sempre
sentia, ainda que tivesse ali ao seu dispôr o amor “do
instante”. o que conta é o desejo de voltar, de prosseguir
viagem até casa. Assim se diz que “pediste aos deuses
que /não apagassem a fogueira que te alimenta o desejo”.
Esta lembrança de casa aparece também simbolicamente
desenvolvida com o canto de um pássaro branco, cono-
tado com a viagem de puros intentos, com o amor puro e
fiel que o espera em Ítaca. os três últimos versos do
poema acabam o poema e concluem esta ideia.
Assim, e através da invocação de Circe, vemos neste
poema uma dialéctica muito cara a Júdice, nomeada-

411
RICARDo MARQuES

mente a da fugacidade do momento presente face ao


tempo contínuo, o paradoxo de partir em viagem para
descobrir que se está bem em casa.
Já vimos a Deusa da História, Clio, ser invocada no
extenso poema “Cena Mitológica”. No entanto, Nuno
Júdice vai aludir a esta referência cultural num outro
poema sobre a passagem do Tempo e o curso da História,
poema este com um forte pendor engagée a que vai
chamar “Clio”410:
A História avança com o sémen frio das multidões,
fazendo rodar os eixos de um motor febril. Tem os olhos
insones das sombras caseiras – as que se escondem
por trás das cortinas, e desaparecem quando
as abrimos para ver a luz do dia. Mas o risco
vermelho dos seus olhos fica impresso nos espelhos,
onde os dedos de um deus se agarram ao corpo
dos séculos sem memória. A luz, no entanto,
passeia-se pelas paredes, e limpa o ar da manhã
de uma poeira antiga, substituída pelos flocos
brancos de um pólen estéril. Percorro
dicionários em busca de um sinónimo para
esta sensação; e não encontro a palavra certa,
como se a noite me tivesse deixado a herança
do seu silêncio. Não reconheço na sua
definição as melancolias familiares, nem um eco
das longíquas lendas da tristeza. A luz,
que substitui o branco pelo branco, e
pousa com uma transparência de pássaro
nos ramos do meio-dia, apagou estes nomes
incertos, para que a História siga o seu rumo.

É de reparar desde logo no carácter engagée deste


poema, característica da sua poesia, sobretudo a ulterior,
e que se serve da ironia, em várias gradações, como
princípio estilístico. Em segundo lugar, e no sentido de
transmitir esse mesmo estatuto empenhado enquanto au-

___________________________________________
410
A Matéria do Poema, 2008, p. 88.

412
NA TEIA Do PoEMA

tor, a posição adoptada é a de falar da História enquanto


pessoa, ora personificando-a enquanto deusa (vd. título)
ora dando-lhe um cariz de organismo ou corpo que se
desenvolve e “avança com o sémen frio das multidões,”
(também metaforizado através do “pólen estéril”)
fazendo assim “rodar os eixos de um motor febril”.
Paralelamente, o poema constrói-se através de duas
oposições, “luz” e “sombra”, que vão corresponder a
“presente” e “passado” na escala da passagem do tempo.
Este “corpo” da História de que falámos atrás tem assim
“os olhos insones das sombras”, que “desaparecem quan-
do as abrimos para ver a luz do dia”. Apesar do tempo
presente, que passa, ir apagando ou substituindo o futuro
(vv. 9-10), há sempre registos (“espelhos”) que obrigam
a lembrar “os séculos sem memória”.
A parte final vem relacionar-se com o início uma vez
que vem concluir a ideia deixada desde logo nos dois
primeiros versos – para que siga, a história, personificada
em Clio, tem de “arquivar” o passado (“Sombra”), perante
o “silêncio” dessa “noite de séculos sem memória”.
o grupo de personagens com poderes proféticos que
se denominam, na Antiguidade Clássica, de “Sibilas”,
aparece sobretudo no recente livro de 2001, A Carto-
grafia das Emoções, em dois poemas quase seguidos.
Veremos de seguida aquele que se intitula “Sibila”.411 A
função profética, bem como o cariz sagrado desta
personagem mitológica vai ser confundido, como se verá,
com a proveniência e feitura do poema, como se a sibila

____________________________________________
411
Cartografia das Emoções, 2001, p. 27. Não iremos
reproduzir o outro, intitulado “A mesa de Sibila”.(Ibidem, Idem, pp.
17-18), bem como todas as referências a estas figuras mitológicas,
explícitas em determinados versos, na obra poética deste autor

413
RICARDo MARQuES

o ditasse. o poema ecoa a ideia de música, “que vem da


água”, e que se desdobra em várias cambiantes ( “o
barulho da maré”, “o eco”, “o metal do som”), até chegar
ao âmago do poema, “ao rebordo da página” onde se
escreve o poema. A “Sibila” que dá título a este texto
confunde-se com o poeta, cuja função é de fazer aparecer
a poesia a partir da música das palavras, construindo um
ritmo, “a sua ondulação” ou “vibração líquida”. Estamos
assim perante mais um exercício auto-reflexivo judicano
porque trata da arte poética, em que o poema é visto
como nascendo da conjugação de vários elementos (vv.
17-21), de uma “voz, roubada de uma ânfora/ de
emoções”:
.As palavras que nascem da água, com o ritmo próprio
do mar, a sua ondulação, o barulho da maré no rebordo
da página, tudo se condensa no instante em que conto
as sílabas, e um ritmo certo prepara o aparecimento
da música – eclosão brusca da matéria que rouba ao
espírito a sua pureza. Então, prevejo o instante em
que te poderei falar: cada frase terá a sua aparência
no metal do som, e uma adequação aos objectos, criando
a percepção da árvore. ouço o eco de uma abertura de
pétalas no interior da cabeça, uma explosão de cor,
estames e pólenes. A floresta aproxima-se: e o vento
dá-lhe uma vibração líquida, – brilhos que separam
a luz, – e empurra os seus ramos para terra, como se
quisesse abrir o caminho que a tua voz me indicou,
entre braços e arbustos, nessa margem desenhada
nos mapas do coração. A voz, roubada de uma ânfora
de emoções, ressoa nos meus ouvidos: “De onde
vens, diz-me, rasgando-me a pele com as tuas unhas
de consoantes? Deixa-me beber o sangue das tuas vogais;
e iluminar o teu rosto com as rimas que inventas para
além do amor!” Nasces da sua conjugação, da embriaguez
dos elementos, do silêncio que acompanha o início
da noite, quando um murmúrio cessa no reflexo do vidro.

Também o mito de Galateia (do grego “branca como


o leite”), a estátua que Afrodite libertou da imobilidade e
deu vida por pedido de Pigmalião, foi alvo de um poema

414
NA TEIA Do PoEMA

de Nuno Júdice, incluso na reunião de poemas intitulada


O Estado dos Campos. o título do referido poema é
“Galateia ausente”, e incide especialmente sobre esse
aspecto do mito412:
Abri a cama da tempestade espalhei pelo céu
os seus cobertores de nuvem roubei do horizonte
os travesseiros de água fiquei com um eco
de trovão no ranger do estrado afastei de cima
do dossel as aves negras do relâmpago estendi
sobre o colchão os lençóis da madrugada
limpos de névoa e de lama guardando o sulco
do corpo amado aqueci-me com a sua luz de linho
e de fogo roubei à sua forma a impressão dos
teus dedos um declive de mão na colina dos
ombros a calma súbita que sucede à noite
quando se deixa de ouvir o ruído da água
e nesse intervalo um canto de pássaros emerge
da sombra as suas asas limpam dos vidros
do quarto a última obscuridade e quando abro
a janela o sol derrama-se na forma que deixaste
para que eu roube ao seu molde o teu corpo perfeito.

uma das características principais deste poema


parece ser a ausência de vírgulas, a delimitar os vários
elementos que se enumeram, em gradação voraz, dando
uma grande velocidade ao desenrolar do poema. Se
tivermos em conta que a voz narrativa é a de Pigmalião,
percebemos que toda a voracidade que experimentamos
ao ler o poema é da própria aceleração sentimental do
sujeito poético, que, insatisfeito com todos os elementos
do sexo feminino da ilha de que é rei (Chipre), procura
assim esculpir uma estátua de mármore, pela qual mais
tarde se apaixona, e com a qual casa.

_____________________________________________
412
No entanto, é de salientar que Galateia é o nome de duas
personagens mitológicas, sendo contada igualmente a história de
Teócrito sobre a rejeição trágica de Galateia por Polifemo, caída de
amores por Acis.

415
RICARDo MARQuES

Paralelamente, o poema judiciano pode ser igual-


mente lido tal como o mito clássico ficou cunhado na
psicologia educacional, o “Efeito Pigmalião”413. Segundo
esta concepção, todos temos uma forma pessoal de
chegar àquilo que consideramos perfeito, neste caso ao
encontro do ser amado, mesmo que todas as opções
pareçam, a partida, estarem a ser oferecidas. Assim, o
molde que procuramos pode estar vazio e apenas o “sol
derramar-se na sua forma”, mas temos a certeza daquilo
que queremos para nós, ainda que a Galateia passe muito
tempo “ausente”, como a do poema de Júdice, e que o
Pigmalião tenta desesperadamente encontrar.
Vénus, a deusa do panteão romano para o amor e a
beleza, tem sido alvo de vários poemas por parte de Nuno
Júdice414. Como veremos, são várias as formas de trazer
a referência extraliterária: na sua acepção cosmológica
de estrela, na história mitológica de Vénus Anadiómena
e na relação da deusa Vénus com Vulcano.
A primeira referência cronológica aparece no livro
Meditação sobre Ruínas, de 1994, e intitula-se precisa-
mente, “Vénus”415, referindo-se à estrela que deu nome à
deusa do panteão romano. o poema é arquitectado
através de um cuidado jogo antagónico entre imagens
apolíneas e disfóricas, no qual a polissemia da palavra
______________________
413
Para uma discussão mais profunda acerca deste assunto, Cf.
Robert Rosenthal et Lenore Jacobson, Pygmalion in the Classroom
– Teacher Expectation and Pupils’ Intellectual Development. New
York, Irvington, 1992 (1968).
414
Também o poema “Estrofe”, de PR, 2000, p. 683, tem uma
alusão a Vénus, de comparação ao sujeito amado – “A Vénus /
vegetal de uma subterrânea mitologia”. Nuno Júdice tem outros
poemas a “Vénus” no seu blogue ecfrástico, que não analisaremos,
nomeadamente um dos últimos, ”Vénus obscura”, de 13 de Agosto
de 2008 (Cf. <http://aaz-nj.blogspot.com/2008/08/venus-obscura.
html> acedido em Junho de 2009).
415
PR, 2000, p. 581.

416
NA TEIA Do PoEMA

azul, “cor muda”416, assume o eixo analógico de que Júdice


sempre parte. De uma modo geral, esta cor corresponde
analogicamente ao “céu” do dia e da noite (cuja “função/
de fronteira entre os mundos de baixo/ e de cima força-o
ao silêncio”) e a estrela, omnipresente (“Está ali desde
sempre”) representa a eternidade (“infinito”) e a pere-
nidade perante a passagem do tempo, isto é, do dia, que o
sujeito poético pretende para si (vv. 3-6):
Está ali desde sempre, a estrela que nem
a luz da manhã apaga; e fala com o primeiro azul,
ainda manchado da névoa nocturna. “Ensina-
-me a cor do meio-dia, diz, o brilho exacto
do mar no prumo dos equinócios; descreve-
-me o fundo dos olhos que fixam o sol quando
uma nuvem de passagem esconde o seu
fogo”. o azul, porém, é uma cor muda. Fixo
na extremidade da atmosfera, a sua função
de fronteira entre os mundos de baixo
e de cima força-o ao silêncio, Então, a
estrela dilui-se com o avanço do dia. Con-
fundem-na com um brilho equívoco, com
um erro na definição do espaço; e confiam
no avanço do azul que, por dentro do estio,
se apodera do infinito para o guardar
num bolso ilusório de treva.

Por outro lado, este diálogo intertextual passa pela


relação com a história mitológica de Vénus e Vulcano,
deus do fogo e o mais feio dos deuses, que veremos em
seguida, num poema precisamente com o nome dos
dois417:

___________________________________________
416
Já falámos dela no primeiro capítulo desta parte – “Nuno
Júdice, o mecanismo fragmentário de uma identidade.”
417
PR, 2000, p. 910.

417
RICARDo MARQuES

os dedos envoltos em serapilheira, entrega-se


a deus: o deus que a abraça com as unhas sangrentas
do crepúsculo. No entanto, ela bebe-lhe o sangue:
e vê-o escorrer pelas suas próprias veias, iluminando-lhe
o corpo por dentro, com um fulgor de forja. “É isto
o amor?”, pergunta-lhe. E o deus agarra-a pelas ancas,
eleva-a à altura das montanhas, mostra-lhe,
na despedida, a beleza insuportável do mundo.

A história de Vulcano e de Vénus é a história de uma


traição, a que se mistura o sentimento do ciúme. De uma
modo sumário, Vulcano surpreende Vénus em adultério
com Marte, o deus da Guerra, enredandos-os depois em
ténues, mas fortes fios, forjados por ele, que os prendem
e não os deixam sair. Júpiter (Zeus no panteão grego) vai
depois perdoar o acto de Vénus. o poema de Júdice
parece então tratar esta história de uma forma distante,
preferindo concentrar-se no sentimento de amor, mais do
que de ciúme, entre os dois protagonistas. A deusa é vista
envolta nos braços de Vulcano, bebendo-lhe, simboli-
camente, o sangue. Esta atitude de retirar a vida, dada por
sinédoque também pela presença da luz (“fulgor da
forja”), é contemplada pelo próprio deus do fogo, a quem
é perguntado se aquilo é que é sentir Amor. A resposta é
muda, mas igualmente simbólica e dada através de uma
atitude: Vulcano eleva-a no ar e mostra-lhe o mundo. o
tom, no entanto, é de “despedida”, o que nos leva a intuir
algum elemento disfórico nesta manifestação de amor
entre os dois, como se o próprio sentimento de ciúme já
se tivesse revelado. Daqui podemos intuir ainda uma
eminente separação, de que as várias versões desta
história que nos chegaram não falam, e que parece
elaboração do próprio poeta.
De uma outra maneira, “Vénus Anadiómena”418 será
um poema sobre um outro aspecto da figura mitológica
em questão, nomeadamente na sua relação com o espaço

418
NA TEIA Do PoEMA

pictórico. Como se sabe, o adjectivo “anadiómena”


advém do grego e, aliada ao nome Vénus, designa a
representação de “Vénus saindo do mar”. Enquanto o
representante mais conhecido deste tipo de quadro é O
Nascimento de Vénus do renascentista Sandro Boticelli,
já no que toca a outros poemas sobre o tema, um dos mais
conhecidos talvez seja o de Rimbaud, “Vénus
Anadyomène”. Vejamos a retoma poética de Nuno
Júdice:
Intervalo num templo de margens,
pinhal de sombras solsticiais,
fruto de fumo no fundo da fonte:
alma, tocando o movimento ausente
das corolas no vazio do inverno,
anuncia o eco de um murmúrio de

cais, desse canto marítimo que


um riso atravessa, e dá-me
a cor de pálpebras sem o peso do
sono!, para que a tua presença se
vista de mármore, os teus braços
ganhem a consistência da eternidade,

e uma onda rebente nas raízes


de uma frase tumultuosa, levantando
o vento da terra, abrindo as nascentes
do amor, e restituindo-te o corpo
que desejo com a queda das folhas, a
nudez dos ramos, a embriaguez do ar.

Júdice centraliza este poema num retrato idealizado


de mulher, rementendo para uma atmosfera marítima que
faz desde logo lembrar o quadro de Boticelli, na sua
proporção renascentista e nos elementos enumerados
(sobretudo geográficos – “margens”, “pinhal”, “fonte”).
Neste sentido, os primeiros três versos caracterizam hiper-
____________________________________________

418
PR, 2000, p. 784.

419
RICARDo MARQuES

bolicamente o ser feminino, funcionando todo o poema


como uma exortação a este ser dê ao sujeito poético “a
cor de pálpebras sem o peso do/sono!”, isto é, a força para
o cantar através do poema. Para que assim “a tua
presença se/ vista de mármore, os teus braços/ ganhem a
consistência da eternidade”. o seu corpo (“que desejo”)
será assim restituído pelas “nascentes de amor” do
poema, perante o cenário disfórico e invernal de “queda
das folhas” e “nudez de ramos”.
Passemos agora ao capítulo seguinte, em que veremos
as polimorfias do amor nos poemas judicianos sobre mitos
amorosos. Começaremos com Eros, depois passaremos a
pares e duplos como arquitemas dos poemas judicianos
onde o amor é o tema mais importante.

3.4. Os espaços do amor: o par e o duplo

Eros foi um mito grego que Nuno Júdice glosou em


diversas fases da sua vida literária, um deus conotado com
o erotismo419. Em primeiro lugar, vamos ver poemas em
que apenas a figura mítica é focada, para depois passarmos
a uma variante do mesmo, a história da sua relação com
Psique. No conjunto dos quatro poemas podemos ver
como o seu estilo, como já deixámos expresso no nosso
tratamento da identidade deste poeta, vai-se aproximando
mais de uma estética clássica, de uma forma mais contida
do ponto de vista formal e de conteúdo.
o primeiro poema que o autor escreveu sobre este
mito intitula-se “A Sombra de Eros”420 e, à semelhança
_____________________________________________
419
Para um completo e recente estudo sobre a figura de Eros,
em língua portuguesa, recomenda-se o seguinte livro – António
Manuel Ferreira (coord.), Percursos de Eros – Representações do
Erotismo, Aveiro, universidade de Aveiro, Setembro de 2003.
420
PR, 2000, pp. 413-414.

420
NA TEIA Do PoEMA

de outros poemas judicianos, divide-se em três estrofes.


o espaço do amor aqui é a noite, o desejo, o desco-
nhecido e desejado de que a sombra do título do poema
parece ser explicação. Assim, estamos aqui perante um
exercício poético sobre a “melancolia” (estrofe segunda)
perante o amor do passado, não totalmente ultrapassado
e confiado à noite.
A terra tem limites que mal conhecemos; ouço
as primeiras gotas da chuva, pesadas, contra o vidro,
e uma voz fala-me dessa ignorância, explicando-me
o seu sentido. “Imagina a forma do ser cuja essência
desejaste; empresta-lhe um corpo, a figura
concreta que o escultor ousaria, a túnica imaterial
da humanidade; anima os seus lábios: e
deixa que eles formulem a primeira interrogação. Ah,
e se um grito de amor te fere os ouvidos, reza
pelos amantes para quem o instante se transformou
em eternidade: da sua uníssona respiração
brotou esse murmúrio que escorre pelo rosto de pedra
como água, numa simulação de vida. Cede
à ilusão que as aparências suscitam, na ambígua
duplicidade do espírito. Rouba, a esses que o nocturno
abraço confunde, a imagem do amor, o sentimento
que nada define, a obscuridade da ternura, e desenha-os
sem remorso – apesar do inverno – na brancura
de um verso”.
A noite não impede que o seu rosto
se torne visível, sorrindo, no prazer lento
da melancolia. os olhos, para quem a surpresa do dia
é uma antiga abstracção, habituam-se a fixar
a alma ofegante do desejo – breve aspiração que
entorpece os sentidos, conduzindo os seus passos furtivos
para o êxtase de um sono inquieto e propício:
habitam-no as sombras pálidas e aladas que a folhagem
das margens abriga; e nele permanece aquela
cujos cabelos secaram na febre das vigílias. Dentro de ti,
ainda vive; e um pensamento vago corresponde, por vezes,
ao seu lamento – como se a luz súbita no fundo da casa
a pudesse trazer de volta, sem o sudário do poema,
no anseio nascente da primavera. “Esquece-me”, diz, no
entanto, “devolvendo-me ao refúgio do nada.” Assim,
o dia tornará a sua existência improvável; e
o primeiro canto dos pássaros exila a sua voz
no insalubre caminho da memória.

421
RICARDo MARQuES

Eles, porém, consumando o mistério que os corações


liberta da noite aproximam os lábios. Que palavras
inúteis ressuscitam outro amor nesse
que o presente cinge?

Assim, a noite é espaço amoroso de lembrança, mas


também de limitação e de recolhimento (terceira estrofe),
“exilando a sua voz/ no insalubre caminho da memória”,
apesar do apelo da imagem recordada para a esquecer
“devolvendo-me ao refúgio do nada”.
Por outro lado, “Eros Pedagogo” é, como o nome
indica, um poema sobre os ensinamentos do amor,
ecoando a perspectiva pedagógica em relação ao “amor-
Eros” que Platão de Fedro e O Banquete, parece vei-
cular421. Para tentar explorar esta ideia, Júdice socorre-se
de um soneto, de estrutura petrarquista, que mais tarde
subverte através do conteúdo, para transformar em soneto
inglês422, propondo, no seu poema, um diálogo para com
um interlocutor imaginado, o sujeito do poema. Assim, a
primeira estrofe, tal como num soneto típico, propõe o
tema geral, desenvolvido depois para a segunda estrofe:
o amor que muda quando tudo se mantém
não é o que desejas, nem o que sentes;
o rosto que se ama não é o que se tem
mesmo que a sua perda tanto lamentes.

Porém, se a primavera chega devagar,


e um outro ar se respira nos vales,
o seu regresso aí se faz anunciar
marcando já o fim dos teus males.

______________________
421
Veja-se, para um desenvolvimento adequado, as referidas
obras, cujas edições indicamos na bibliografia final. Veja-se ainda a
seguinte página <http://plato.stanford.edu/entries/plato-friendship>
acedida in Junho de 2009).
422
Lembrando a sua “Teoria do soneto inglês” presente na
Geometria Variável, de 2005.

422
NA TEIA Do PoEMA

o sujeito poético é aqui o amante, e o “eros” de que


se fala aqui é o “eros” em relação a outrém. o sujeito
poético é então aquele que quer sentir o amor por outro,
encontrar a plenitude em outro ser, como se se tratasse
de uma cura pessoal. A segunda estrofe começa a
analogia desta procura com a chegada da primavera, o
tempo em que a natureza começa a despontar, “marcando
já o fim dos teus males”, o começo do amor (e o começo
da vida ou nascimento, simbolicamente)423. uma relação
analógica mais particular parece estabelecer o autor para
com um elemento dessa mesma primavera, a árvore,
confirmando tudo o que para trás de disse:
Deixa que os seus braços te prendam
como os ramos da árvore que floresce.
Por vezes, é do céu que o amor desce,

mesmo que para ele as almas ascendam.


Agradece, então, essa arte divina
que te faz cantar o que te ensina.

Da penúltima estrofe para a última, constatamos a


referida hesitação retórica entre um modelo de soneto e
outro, que embora seja petrarquista pela forma, o
conteúdo põe em causa, com o uso do “emjambement”
para continuar uma mesma ideia. Pegando na analogia
dos braços do amor com os ramos da árvore, colocando
assim simbolicamente o sujeito poético no nível superior
(celeste), Júdice vai defender que o que Eros ensina é que
devemos aceitar o amor divino que o Céu envia, mesmo
que a morte nos envie, no fim, para aí (“mesmo que para
ele as almas ascendam”). Após esta brincadeira alusiva à
teoria platónica do amor, resta fechar com “chave d’ouro”,
______________________
423
Cf. Verbete “Estações” in Gheerbrant et Chevalier, Op. Cit.,
2002, p. 306.

423
RICARDo MARQuES

nos dois últimos versos – Júdice aconselha o sujeito


poético a agradecer então o amor de Eros (“essa arte
divina”) que provoca uma reflexão alegre sobre si
própria.
Em suma, o soneto serve para falar da pedagogia do
amor que o próprio sentimento provoca num outro ser
poético, os efeitos da sua passagem pela alma de quem o
sente. Desta forma, Eros-divindade (e “pedagogo”)
ensina a cantar o amor que ele próprio ensina, numa ideia
circular do sentimento que se se fecha sempre sobre si,
mesmo que se dê ao outro424.
“Eros”425 propõe uma vez mais uma analogia, desta
feita entre um pássaro e o ser amado. Todo o poema se
constrói precisamente entre estes dois mundos, um mais
concreto e outro mais espiritual, que assim se auto-
-referenciam. o estilo judiciano é aqui o de uma apro-
ximação ao poema de uma forma lógica e ordenada, bem
à maneira dos seus poemas ulteriores, com a corres-
pondência das duas primeiras estrofes a cada um dos
sujeitos implicados no poema, para depois introduzir a
subversão numa terceira e última parte, que conclui o
poema num clímax bastante erotizante e carnal, mas
sempre de forma muito subliminar e metafórica:

____________________________________________

424
Com Platão vemos, segundo a sua teoria das almas, que
amamos sempre uma imagem de nós reflectida nos outros, aquilo
que sentimos que não temos sendo isto a origem do próprio amor
entre dois seres (daqui a expressão corrente da “procura da alma
gémea”). Aqui diferencia-se claramente o amor em relação ao
próprio, o amor que encontra arquétipo em outro mito, o de Narciso
(e que veremos aquando da análise dos mitos em Nuno Júdice). Veja-
-se, para mais desenvolvimentos da concepção platónica do amor,
as obras O Banquete e Fedro deste autor clássico.
425
Cartografia das Emoções, 2001, p. 13.

424
NA TEIA Do PoEMA

um pássaro sai da luz branca


do candeeiro. As suas asas brilham
nesse reflexo eléctrico,
contra a sombra da parede, até
que a persiana se abre
e ele perde o rumo, esvoaçando
entre o tecto e a lâmpada.

Podia ser um voo de mulher


nua na mais árida das manhãs: luas
suspensas numa hesitação de seios,
ou o desenho de um triângulo fechado
na baía exausta do sexo. Ave
capturada numa ressaca
de algas e lençóis, boiando à deriva
num promontório de camas.

Procuro a incerta abertura dos lábios,


a verdade nocturna do seu abraço. Empurro
uma folhagem de confissões e murmúrios,
até chegar à porta dos joelhos, ao arco
festivo de uma antiga fenda nupcial. Desço
a falésia do desejo, escorregando
na relva seca de um esplendor de púrpuras.

A ave, segundo o seu universo simbólico426,


personifica a liberdade e a libertação, a alma celeste e,
tal como os símbolos da “árvore” e do “ar”, as conexões
entre o céu e a terra. Na primeira estrofe, o voo desnor-
teado da ave que perde o rumo com a luz da persiana
aberta (a realidade) é assemelhado, na segunda, ao
adormecimento da mulher amada (“ave capturada numa
ressaca de algas e lençóis”) nos braços da manhã, sendo
igualmente metaforizado um contexto marítimo e sexual
que, como vimos já abundantemente, é constante no
estilo de Júdice (“a baia do sexo”). As imagens carnais
de Júdice chegam, no entanto, a um clímax com a terceira
estrofe, que conclui o poema. Aqui, criado e descrito que
_____________________________________________

426
Gheerbrant et Chevalier, Op. Cit., 2002, pp. 99 – 102.

425
RICARDo MARQuES

está este espaço poético, o “eu” retoma a voz narrativa e


parece concretizar finalmente o acto sexual (“Desço/ a
falésia do desejo”), continuando neste espaço surreal e
onírico, onde a paisagem se confunde com o próprio
corpo do ser amado (“joelhos […] uma antiga fenda
nupcial”).
Já “Eros e Psique (variante)”427 é um poema um
pouco diferente do que temos visto até agora sobre o deus
Eros, indo buscar a história mitológica do amor proibido
entre os dois intervenientes para construir uma “variante”
poético, isto é, um poema que tem como base os prin-
cipais eixos da história, mas que selecciona um episódio
da mesma para o tratar poeticamente:

No sonho de Psique, um deus está


acordado e joga às cartas, esperando que o dia
nasça. Em frente dele, uma janela
deixa entrar a noite: o frio húmido
do norte, o ruído de folhas de um bosque
invisível. Então, Psique
interrompe o sonho; e
o deus
irrita-se, levantando o rosto das
cartas, onde a paciência chega ao fim. Psique
adormecida, vê então a figura de Eros,
o seu corpo inteiro, e o terror
dos seus olhos, ao perceber que
o jogo acabou. Na manhã
seguinte, todos os quartos continuam
vazios; e Psique não se levanta,
esperando que um
deus volte a estender as cartas, no inverno,
na mesa
do seu sonho.

______________________
427
PR, 2000, p. 1019.

426
NA TEIA Do PoEMA

Júdice parece acabar por focar o seu poema a


história da traição de Psique, induzida pela inveja das
irmãs, quando nela se instala a dúvida sobre a identidade
do seu amado, que a visita todos os dias, encapuzado. Em
vez da narrativa normal em que Psique acorda inadver-
tidamente Eros com um pingo de azeite da candeia que
usa para ver o seu rosto, aqui a protagonista desta
“variante” judiciana vê antes Eros no seu sonho, pro-
vocando-lhe a ira. É de notar o jogo de palavras que o
poeta faz com a própria noção de “jogo”, que começa por
caracterizar a actividade em que Eros, no sonho de
Psique, se ocupa, para depois, chegados ao fim do poema
e à tragédia consumada, ser-nos dito que “o jogo
acabou”.De um ponto de vista estrutural, o poema divide-
-se temporalmente em três momentos – um durante a
noite, quando Psique sonha e vê o rosto proibido de Eros,
o momento trágico do reconhecimento (o que na tragédia
clássica se denomina anagnorisis) e o posterior momento
da disforia provocada pela katastrophis. A subversão de
“jogo” de Júdice fica completa nesta parte, com a carac-
terização final do momento triste de Psiqué – na manhã
seguinte fica deitada à espera de Eros, isto é, que um
“deus volte a estender as cartas, no inverno,/ na mesa/ do
seu sonho.”, ainda que ele não volte.
“Psique raptada pelos zéfiros” faz parte da série de
“raptos” poetizados, livro de 1998 assim intitulado, com
intertextos diferentes dentro da cultura ocidental. Este
poema vem na continuidade do poema anterior, que
assim complementa a história secundária sobre os amores
de Psique e de Eros, situando-se temporalmente anterior,
aquando do rapto para o palácio. A primeira estrofe vai
mostrar uma Psique próxima da beleza humana, por
oposição à beleza ideal e inatingível da deusa Vénus,
descrevendo diversas características que a caracterizam:

427
RICARDo MARQuES

A mulher é mais bela do que a deusa:


a pureza da pele, a perfeição dos braços
e dos seios, tudo o que se pode aproximar
da ideia de arquétipo, fixou-se no seu
corpo. Por isso, os ventos a envolvem,
arrastam-na para as nuvens,
gozam o instante que ela lhes oferece.

Esta primeira estrofe vai ainda tocar num dos pontos


narrativos fulcrais dentro da história: o do rapto pelos
ventos zéfiros, por ordem de Eros, para o cimo de um
monte onde supostamente casaria com um monstro,
quando na verdade se encontraria todas as noites, sem
saber, com um Eros mascarado. No entanto, Júdice
relaciona a este pormenor da história aquilo que pode ser
lido duplamente como uma metaforização metereológica
do mau tempo, e os efeitos da ausência do ser amado no
presente, quando o rapto já foi consumado:
o prazer, no entanto, não é eterno. Dura
o espaço do amor. Projecta-se
nas suas alegrias, desvanece-se como a luz
submersa pela sombra do espírito. É
verdade que as nuvens têm outra significação,
quando pensamos que existe, para além delas,
o azul; e que Psique poderá dançar
contra esse fundo de vida eterna.

Mas o que é real é o presente: estes


ventos que trouxeram o céu de chumbo
os dias de inverno, e levaram consigo
a mais divina das mortais.

Passemos agora aos poemas onde se verificam pares


e duplos em que o amor está explicitamente presente. Em
primeiro lugar, de entre as figuras secundárias do panteão
mitológico clássico, é importante realçar a figura das
ninfas, bem como dos sátiros. Veremos dois poemas
judicianos em que as formas de tratamento oscilam entre
a paródia referencial, e a relação com o sentimento amo-

428
NA TEIA Do PoEMA

roso. Falamos, respectivamente, de “Cena nocturna”428 e


de “A Ninfa e o Sátiro”429. No que toca a este último,
pensamos ler nele uma outra referência mitológica,
nomeadamente a história de Penélope e de ulisses, a que
já fizemos abundante referência. Vejamos a primeira
estrofe para vermos a analogia com este mito grego:

Deitada na sua cama de ervas, a ninfa


espera que o sátiro regresse do bosque para a cobrir
com o manto do amor. um sonho atravessa
a sua cabeça: o fio que se estende do centro
do labirinto até à porta do mar. À medida que
ela avista a luz da saída, um pássaro negro corta
o fio que fica para trás, impedindo que o sátiro
descubra o seu rasto.

Nesta primeira parte do poema, é-nos apresentada


as premissas da história que o poema conta – o cenário é
bucólico e sensual, um locus amoenus clássico, onde a
ninfa sonha com a chegada do sátiro, e imagina o
caminho por dentro do labirinto do bosque (“até à porta
do mar”). No entanto, o caminho imaginado é depois
bloqueado por um “pássaro negro”, um símbolo de má
conotação, e o sátiro perde-se. É de notar a presença de
dois símbolos – o labirinto e o fio – que, como se sabe,
são bastante pertinentes na história de Odisseia,
remetendo para, respectivamente, a viagem de ulisses
(=sátiro) e o ofício de fiar de Penélope (=ninfa).
________________________________________________
428
PR, 2000, p. 991. Não analisaremos detidamente este
poema, mas há aqui uma nova conotação sexual da figura “ninfa”,
desta vez ironicamente com as prostitutas na rua: “As ninfas
encostam-se aos candeeiros da avenida. […] Por vezes, um carro
abranda à sua frente; e/ elas correm para a berma, como se os carros/
fossem os antigos centauros”. Júdice acaba a sua composição com
uma imagem bastante visual e erótica: “ um rio desce dos jornais
desfeitos para dentro/ dos seus seios – rasgando-os como
desfiladeiros cegos/ no interior da pele.”
429
Geometria Variável, 2005, p. 95.

429
RICARDo MARQuES

No prado, onde a ninfa se deita, os pastores


espreitam a sua nudez: a pele branca do corpo,
exposta ao sol da tarde; e os seios oferecidos
ao céu, para que as nuvens os invejem. Só o sátiro
não chega: perdido na espessura do bosque, não
tem nenhum fio que o conduza pelos seus caminhos,
até à saída onde a ninfa o espera. Mas os pastores
rodeiam-na; e ela, de olhos fechados, finge
que sonha, enquanto eles cobrem a sua nudez
com as folhas do campo.

A ninfa, porém, sacode-as com as mãos; e


o seu corpo nu, à vista dos pastores, continua
à espera do sátiro perdido nos bosques.

Este conjunto estrófico vem introduzir novas perso-


nagens e desenvolvimentos, enquanto a ninfa continua a
sonhar com o sátiro que não chega. São os pastores (os
inúmeros pretendentes de Penélope, como reza a história
de Homero) que a rodeiam e que a vão cobrindo de folhas
do campo enquanto ela, astuta, finge que dorme e os
deixa fazer isso. No entanto, na progressão para a estrofe
seguinte, dá-se o acordar desta personagem, desnudando-
-se com o sacodir das folhas, e continuando na espera do
sátiro.
Desta forma, o poema revela aquilo que parece ser
um paralelo para com a história de amor de Odisseia,
manifestando assim um grau de intertextualidade
complexo para um só poema.
Igualmente importante é a história trágica de amor
entre Dido e Eneias, que aparece pela primeira vez numa
forma literária n’ A Eneida, de Virgílio. A partir dela
Nuno Júdice constituiu um poema que se intitula “Canto
Marítimo”430 e que está presente num dos seus últimos
livros, Geometria Variável:
__________________________________________

430
Geometria Variável, 2005, pp. 20-21.

430
NA TEIA Do PoEMA

Então, Eneias fez-se ao mar, deixando atrás de si a rainha que


o amou, e que por ele iria morrer. Não olhou para trás. Não voltou
a ver Cartago, com as muralhas e as torres que também um dia
seriam arrasadas, e não sabia ainda que
o seu caminho passava pelo inferno, onde a sombra amada
o iria esperar, e pedir a compaixão de um sentimento, por breve
que fosse, e ele não tinha para lhe dar – o inferno, que atravessou
como se atravessa uma sala de espera, ouvindo as queixas
de quem não tem outro modo de fugir à sua solidão; e de onde
sairia com o desejo de respirar até ao fundo da alma o ar livre
do mediterrâneo, carregado de céu e do vento favorável à última
navegação: esse inferno, deixá-lo-ia entregue aos seus habitantes,
e nem Dido levaria nas suas roupas ensaguentadas um leve sopro
de quem alguma vez a teria amado. […]

Nesta primeira parte vemos como o poema é


formulado como uma narração, com o advérbio “então”
a encabeçar uma história que assim começa a meio, “in
media res”. A acção parte do momento em que Eneias se
faz ao mar, deixando Dido e Cartago para trás, e para
sempre. A fonte usada parece, efectivamente, ser a de
Virgílio431
[…] Vou atrás dele, o cego marinheiro,
e ofereço-lhe o cigarro que ajuda a passar o tédio da viagem. “É
tarde para regressar”, diz-me, “ninguém me espera, nenhuma
pátria, nem as aves que conhecem o oráculo”. Não lhe peço
conselhos, nem ouço o resto do que me diz, com os cabelos
soltos pelo vento da eternidade. o meu destino é essa mulher
que não cedeu à dor da partida, e tece com a mão do amor os
instantes que reúnem. Essa, com quem partilho o vinho da
saudade, dá-me com o seu corpo a única viagem que nunca
termina, porque sempre o seu fim é o seu começo, no abraço
que nos reflecte no espelho da vertigem e nos devolve depois
a quem somos, aumentados do que, um e outro, fomos. No
convés, porém, Eneias cobre-se com a túnica do esquecimento;
e os seus olhos vêem o que não cabe em nenhum passado,
onde a sombra de Dido arrasta o peso de todos os amantes
desencontrados, enquanto o seu choro se prolonga no vento
húmido dessa noite que um navio sulca, desde
sempre, sem piloto, na expectativa de um último porto.
_____________________________________________
431
Virgílio limita-se a passar para Eneida as histórias míticas
que ouvira.

431
RICARDo MARQuES

Também em As Regras da Perspectiva, livro de


1990 que, como aponta Júlia Silva, tem uma presença
clássica fundamental432, vamos encontrar um novo e
primeiro poema sobre este mito duplo, mas agora apenas
explicitamente sobre Dido, título desse mesmo poema433.
o tom geral do poema é novamente o desespero,
gradativo da primeira para a terceira estrofe, pela partida
do ser amado, e que Júdice fixa nos olhos e na percepção
visual dessa mesma despedida, por parte de Dido.
Paralelamente a isso tudo, vemos como o sujeito poético,
confundido-se uma vez mais com o autor, se intromete
na descrição desse sentimento, enfatizando-o (“Essa
imagem […] não a traduz nenhum/ verso”).
Nada transporta a inquietação
melhor do que os olhos – os seus, fixando
o azul que no espaço deixa o luminoso
estio; e algures se perde a certeza
dos lábios, a frase que não deixa transparecer
mais do que a pobre realidade do mundo.

Essa imagem, porém, que habita o espírito


que em vão a reconhece, não a traduz nenhum
verso; nem, sequer, a pode contemplar
o visitante que o horizonte deteve, por ins-
tantes, e demorou num pressentimento de
que o invisível busca o tom exacto da voz.

A terceira estrofe, por fim, conclui com a antevisão


da catástrofe que porá fim à vida de Eneias (o “presságio”
que nos indica o segundo verso), e que remete para
sempre para a “obscuridade” ou “noite”, “o amor, o
desejo, a emoção única da despedida” que ali toma lugar
e que Dido sente:
_________________________________________
432
Cf. Júlia Silva, “A Presença Clássica em As Regras da
Perspectiva” (Cf. Bibliografia final).
433
PR, 2000, p. 407.

432
NA TEIA Do PoEMA

Não lhe responde. As fronteiras da alma


fecham-se ao presságio. Levou aos lábios uma
taça de obscuridade, enegrecendo as palavras
que a serva lhe ouviu. A noite delapidou
o amor, o desejo, a emoção única da despedida;
e ela contempla a paisagem gasta
como os bosques no inverno: apesar da luz,
das aves que cantam, de um breve aceno
de amantes.

A deusa romana Proserpina, filha de Ceres e de


Júpiter, foi alvo de dois poemas de Nuno Júdice, naquilo
que são duas incursões do poema num dos seus temas
mais importantes, nomeadamente a reflexão sobre a
passagem do tempo. Vejamos desde o que foi incluído no
seu livro Raptos, e cujo título é, precisamente, “o rapto
de Proserpina”434:
Na primavera, o amor
consiste na sua ausência. As flores nascem
de rebentos de fogo, cegas como os dedos
de uma sombra. Ela colhe-as, na sequência interminável
que a mãe descreve: está, não está; está,
não está…pousando o telefone da cabina pública,
como a língua negra dos cães do inferno.

Que faria ela no campo, a meio da tarde,


colhendo as flores de fogo da primavera? Por
que se ria, se o seu riso apenas servia para chamar os que
habitam o fundo da terra – e para que os seus braços
baços da monotonia subterrânea
se abrissem num furor de abraço? Examino os seus olhos,
que ficaram presos a esta vegetação que insiste em cada fim
de inverno: os olhos azuis, verdes, rubros com o sol,
cinzentos quando a chamo, de entre os mortos, e
só um murmúrio antigo me lembra que
ninguém, de entre nós, lhe poderá restituir o sopro
da vida.

_____________________________________________

434
PR, 2000, pp. 889-890.

433
RICARDo MARQuES

Apanho o telefone caído. Digo o seu nome. Responde-me


o silêncio; e tiro-o do bocal, como se as letras fossem
estas pétalas que apodrecem quando a tarde chega, ou estes
frutos que azedam na minha memória, enquanto insisto
em recordar o seu rosto.

o rapto de Proserpina (Perséfone, no panteão grego)


é uma história mítica que tenta explicar a substituição das
estações, sobretudo o facto de a Primavera ser aquela em
que tudo volta a crescer. Raptada por Plutão (Hades, para
os gregos, deus do mundo inferior), esta deusa foi forçada
a desposá-lo e a viver com ele no Submundo. Ceres, sua
mãe (deusa da agricultura e das colheitas), ficou
enraivecida e descurou os campos, que acabaram por
morrer. Apesar de tudo, Plutão chegou a um consenso
com Ceres e deixou que metade do ano Proserpina
vivesse no mundo dos vivos. Este período corresponderia
simbolicamente ao tempo apolíneo da Primavera/Verão,
ao que se contrapõe o de outono/Inverno, em que não se
planta e a terra hiberna. Assim, o poema parece começar
depois do rapto consumado, naquilo que pode ainda ser
entendido como uma reflexão sobre o tempo apolíneo da
juventude (=primavera) já passado. A afirmação de
início, sentenciosa, aponta para se neste tempo que o
amor (=“flores de fogo”) é mas sentido, “a sua ausência”.
Desta forma, Proserpina, “na sequência interminável de
sua mãe”, isto é, de forma alternada, vai colhendo as
flores que a estação faz rebentar.
Como é hábito no tratamento poético de Júdice, a
sua “ironia e analogia”435 fazem-no ir buscar este tempo
mítico e juntá-lo ao tempo do quotidiano, do presente.
Este é um bom exemplo dos laivos surrealistas de que já

_________________________________________

435
Cf. Fernando Pinto do Amaral, Op. Cit., 1990.

434
NA TEIA Do PoEMA

falámos em Nuno Júdice, sobretudo no que toca à


associação entre o “está, não está” e o telefone, que é, no
mínimo, surreal, e que começa uma história paralela, que
acompanha o poema até ao fim.
A estrofe seguinte vem consolidar a ideia de que o
rapto já fora efectuado, e que estamos em pleno
outono/Inverno (“esta vegetação que insiste em cada fim
de inverno”). As duas interrogações retóricas interpelam
inutilmente a deusa num mesmo sentido – a razão de
procurar o amor, acordado o lado obscuro e rotineiro do
sentimento (“Braços/baços de monotonia subterrânea”),
para assim ser engolido por ele (“se abrisse um furor de
abraço”). Assim, o que resta é apenas a memória, neste
“fim de inverno” e de vida – a dos olhos “azuis, verdes,
rubros como o sol” de outrora, numa altura em que
“ninguém, de entre nós”, lhe poderá restituir “o sopro/da
vida”. Já a última estrofe dá continuidade ao paralelismo
surrealista que atrás se afiançou, ecoando a mesma ideia
de réstia de memória quando apenas domina a morte – “
Digo o seu nome. Responde-me/o silêncio; e tiro-o do
bocal […] enquanto insisto/em recordar o seu rosto”.
Em conclusão, estamos perante um poema sobre o
passar do tempo, a morte que o amor provoca, quando
deixamos apenas de ser um, lembrando um dos poemas
mínimos de Yvette Centeno436. Da mesma forma,
“Proserpina”437 inclue-se na temática do tempo, para a
qual Júdice usa a heracliana analogia da passagem do
tempo com a passagem da água, a meio da vida (“num
canto de outubro”), e em que os dias são as folhas que
caem no rio, algumas irremediavelmente perdidas, outras
ainda passíveis de serem apanhadas (segunda estrofe):
_______________________
436
Falamos de “A Árvore” – “Chegaste/ com a tua tesoura de
jardineiro/ e começaste a cortar:/ umas folhas aqui e ali/ uns ramos/
que não doeram…/ Eu estava desprevenida/ quando arrancaste a
raiz.” (in A Oriente, Lisboa, Editorial Presença, 1998).
437
As Coisas Mais Simples, 2006, pp. 76-77.

435
RICARDo MARQuES

Num canto de outubro, vendo passar o tempo


como se estivesse à beira de um rio, sigo a
direcção dos dias que nos separam, vendo-os
passar, como folhas caídas das plantas
fluviais, até ao mar em que se irão perder.
Com um pedaço de cana, tento tirar da água
as mais próximas da margem, como se
os dias se pudessem apanhar desse modo;

mas as folhas passam com a corrente


de um tempo que não pára, e vejo-as
perderem-se na distância, como se esses
dias que elas levam consigo não fizessem
parte da minha vida, ou cada uma das suas
memórias não estivesse em mim, na água
parada do meu espírito, onde as vou
buscar para que me restituam a tua imagem.

[…]

A presença do sujeito amado, o que é equivalente a


dizer a sua lembrança no momento em que tudo isto se
pensa, tem um efeito positivo (“limpando de/ folhas
mortas a água do rio”), vindo mesmo quase parar a
inexorável passagem do tempo, assim que “entro no
campo do teu corpo”. Resta apenas ao sujeito deixar o
efeito positivo dessa lembrança reverberar no tempo
presente, enquanto novamente essa imagem se recolhe
(“e vejo-te adormecer”):
[…]
E quando te vejo chegar, limpando de
folhas mortas a água do rio, e varrendo
as imagens antigas com a vassoura da
memória, entro no campo do teu corpo
ouvindo o canto das aves que resistiram
ao outono, como se fosses a madrugada
em que parou o curso de todos os rios e
se esvaziaram de lodo todos os tanques.
Então, cubro-te com o linho celeste
a que o sol nascente empresta a sua
transparência, e vejo-te adormecer.

436
NA TEIA Do PoEMA

outro par mitológico que Júdice convoca na sua


poesia é “Eco e Narciso”438, protagonistas de um célebre
capítulo da história trágica e alegórica de Narciso, na qual
Eco, depois de ter sido desprezada pelo amado, morre e
condena-se a perpetuar as suas palavras através de um
eco:
Nela, vive o som que os deuses roubaram
ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jugo da natureza. olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,
engana-o a imagem de que fogem as águas
que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. “Quem és?”
“És”, repete, sem que a voz se distinga
– e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.

No poema de Júdice encontramos dois tipos de


amor, isto é, dois tipos de manifestação do Eros – o eros
narcísico, adjectivo que adveio desta história mitológica,
e o eros em relação a outrém, o amor normal, sexual ou
não, entre duas pessoas. Começando por este último, Eco
é a ninfa que se sente apaixonada por Narciso, sendo ca-
_________________________
438
PR, 2000, p. 406. Sobre o tema de Narciso na poesia
contemporânea, na qual Júdice também é visado, vd. Ribeiro
Ferreira, 2000.

437
RICARDo MARQuES

racterizada no início do poema por relação antagónica


com o seu par mitológico – “Nela, vive o som que os
deuses roubaram/ ao fugitivo amante”. Este é claramente
Narciso, que rejeita todos os tipos de amor e procura, no
reflexo das águas, a resposta amorosa à sua “súplica”. No
entanto, sem êxito e com trágico fim – “nenhuma súplica,
porém,/ restituirá um corpo à sombra/ que persegue”. A
eco resta apenas repetir o fim das frases de Narciso.
o poema judiciano procura assim fazer a apologia
ou a valorização do primeiro amor, erótico, sobre o outro,
narcísico, ao mesmo tempo que fala da eterna dialéctica
entre a imagem e a realidade, o ser e o parecer.
De notar ainda num outro poema sobre o mito,
“Narciso”439, o facto de esta figura mitológica surgir
sozinha, consumando este amor por si próprio na sua
própria solidão, perseguindo “o segredo que oculto/ em
mim” quando “nem as águas nem o vento/ nos arbustos
me falam de mim”. Esta procura torna-o, ao mesmo
tempo, num par e num duplo de si próprio:

ouço dizer que as águas cantam o amor, correndo,


e que nas suas margens há arbustos debruçando
tristezas profundas. Mas nem as águas nem o vento
nos arbustos me falam de mim; eu, que solitário
me debruço numa ânsia de tocar-me, e o rosto perco
no abismo da superfície; que o segredo que oculto
em mim persigo, num silêncio me evocando entre
os alheios rumores da vida; e que o tempo esqueço,
absorto na minha própria alma que obscureço.

um par e duplo dentro da sua poesia é “Diana e


Actéon”440, o título de um poema sobre o mito clássica

____________________________________________
439
PR, 2000, p. 259.
440
PR, 2000, p. 762.

438
NA TEIA Do PoEMA

que conta a vingança da deusa perante o acto imprudente


de Actéon. Vejamos como Nuno Júdice retomou este
mito:
o caçador caçado, preso nos arbustos
do sonho, espera que o dilacerem as mandíbulas
da sombria matilha. Ela, porém, a presa
vencedora, revolve as tranças com os dedos
do riso. Nua, de olhos baços com a ideia
da morte, entrega-se às aves que a enlaçam
com breves movimentos de asas. um espasmo
os junta, por instantes: a ele,
numa agonia de membros dispersos pela
margem da vida; a ela, num estertor
de seios oferecidos ao sol sangrento
da tarde.

Em primeiro lugar, o poema de Júdice retoma a


história deste assassinato in media res, com um quadro
terrivelmente vívido da morte trágica de Actéon, “o
caçador caçado” que foi tornado cervo para ser caçado
pela matilha de cães. Diana, “a presa vencedora” (alusão
ao facto de ter sido espiada por Actéon enquanto tomava
banho, daí o castigo deste), é caracterizada de forma
cruel, com a cegueira da vingança no olhar (v. 5), “nua”,
e rindo da sua vitória. Júdice opta então acabar o seu
curto poema com uma união poética dos dois num
“espasmo”, ao “sol sangrento da tarde”, um a definhar
em luta entre a vida e a morte e Diana, a vencedora, de
seios triunfantes perante a vida, simbolizada pelo
apolíneo sol.
Num livro de homenagem a Ramiro Fonte, perso-
nalidade importante em Portugal no contexto das relações
luso-espanholas, Nuno Júdice publicou alguns poemas
inéditos, de entre eles este “Prometeu”441, o único poema
que tem relativamente a esta figura mitológica:
_______________________________________________
441
Homenagem a Ramiro Fonte, Lisboa, APE, 2009, p. 54.

439
RICARDo MARQuES

Na casa aos pés da montanha


o homem sonha: quero ir ao cimo
da montanha.

Na pedra no cimo da montanha


outro homem sonha:
quero ir ao sopé da montanha.

Talvez se encontrem a meio,


o homem que sobre e o homem que desce.

“Há um lugar à tua espera”,


diz cada um deles para o outro.

E amanhã voltarão a encontrar-se,


como se cada um dos lugares não fosse o deles.

o mito de Prometeu constitui uma metáfora para a


tendência que o homem tem para melhorar, para procurar,
embora um pouco ilusoriamente, chegar ao conheci-
mento, simbolizada na acção de roubar a centelha divina,
que acaba com o devido punimento. Assim, o “Prometeu”
de Júdice encaixa nessa atitude, do desejo de querer algo
melhor e diferente, duplicado na atitude de dois homens
que, com atitudes diametralmente opostas, “sonham” e
querem exactamente o contrário um do outro. Com isto
ilustra Júdice igualmente que a vontade humana é diversa
e que não se pode afunilar em apenas uma tendência.
usando directamente os exemplos do poema, quem está
no monte quer ir para o o sopé e vice-versa.
No entanto, Nuno Júdice vai mais longe do que isso,
demonstrando uma visão optimista desta procura, no
fundo assemelhando esta procura com a digressão errante
de ulisses na volta para casa, para Ítaca, lugar de onde
teve de sair para voltar. Para este autor “há sempre um
lugar à nossa espera”, que é a nossa casa e que só mais
tarde o sabemos, lugar onde sempre vamos dar.

440
CONCLUSÃO

UMA POESIA COMO JOGO


INTELECTUAL, PRAGMÁTICO E
PROGRAMÁTICO

“Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo.”


Ana Hatherly442

“o exercício das letras é misterioso. Aquilo que opinamos é


efémero e opto pela tese platónica da Musa e não pela de Poe, que
razoou, ou fingiu razoar, que a feitura de um poema era uma
operação da inteligência. Não deixa de me admirar que os clássicos
professassem uma tese romântica e que um poeta romântico
adiantasse uma tese clássica.”
Jorge Luis Borges, O Relatório de Brodie443

“Marcada por uma fidelidade periscópica e (inter)textual ao


ser total que retém e liberta, a poesia moderna-contemporânea […]
não só não se evadiu da realidade, como a inscreveu num projecto
sempre inconcluso: “a realidade não é, a realidade vai ser procurada
e conquistada” [Paul Celan], ou seja, em vez de se conformar com
algumas das suas imagens prévias e cristalizadas, recriou-a
interrogando-a no espaço movente do próprio poema, cujo sentido
repousa […] sobre uma experiência quiasmática que entrelaça o
impacto do mundo e das palavras.”
Ana Paula Coutinho Mendes444
_________________________
442
In O Mestre, Lisboa, Arcádia, 1963.
443
In Jorge Luis Borges, Obras Completas 1952-1972, Volume
2, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.
444
In Ana Paula Coutinho Mendes, “Da referência em alguma
poesia contemporânea: estrutura de horizonte e identidade
relacional” in Isméria de Sousa et allii (org.), Cadernos de Literatura
Comparada 5: Contextos de Modernidade, Porto, Granito/ Instituto
de Literatura Comparada Margarida Losa, 2002, p. 18.

441
RICARDo MARQuES

o tema essencial da poesia de Nuno Júdice é o


questionamento da sua própria essência; do que é, em
última instância, a própria identidade da poesia. Disse-
mos a início com Shelley que a identidade de um poeta
verifica-se naquilo que ele escreve. o percurso que agora
se conclui pela poesia deste autor pretendeu, em primeiro
lugar, demonstrar a validade dessa afirmação. Adoptando
um critério intertextual, analisámos as várias fases de
escrita, as mutações e as preocupações constantes da
poesia judiciana através da hermenêutica dos seus
poemas onde a mesma acontece abertamente. o caminho,
no entanto, é apenas um em muitos possíveis – cada
poema, para Nuno Júdice, é um jogo a muitos níveis.
Resumamos, nesta conclusão, as várias facetas deste jogo
poético.
Como aflorámos atrás, a primeira faceta do jogo
intelectual judiciano (e que, a um certo nível, convoca o
leitor para a sua finalização) reside na busca que um
poeta faz da sua identidade através da interrogação que
o mesmo faz à identidade da sua praxis-poesis. Isto
acontece por meio de uma aproximação lúdica (do étimo
latim de jogo) ao próprio poema que escreve, convocando
muitas vezes para esse mesmo texto outros textos –
emulando-o e reproduzindo-o, num passo, à sua maneira.
o sujeito poético é a chave do enigma do poema, uma
imagem é o seu conceito predicável, como o próprio
refere em dois textos importantes445. É por isso que o que
fazemos é a leitura intertextual e interpretativa, sempre

________________________________________
445
“Le sujet poétique”, Lignes D’eau – Linhas de água, Paris,
Fata Morgana, 2000, pp. 69-75 e “Le langage poétique”, in un chant
dans l’épaisseur du temps suivi de Méditation sur des ruines, Paris,
Gallimard, 1996, pp. 7-14 [originalmente publicado in Les Cahiers
de la Villa Gillet, nº1, Lyon, Circé, Novembre 1994].

442
NA TEIA Do PoEMA

pessoal, apontando nexos particulares que podem ser


universais. É igualmente por esta razão que pensamos
que a poesia judiciana mantém sempre um certo herme-
tismo deliberado (apesar das múltiplas relações inter-
textuais). Muitas vezes o intertexto, logo presente no
título ou no subtítulo, condiciona uma leitura do poema,
mas pode ser aberto a diversas interpretações. Este
hermetismo serve igualmente uma tentação surrealizante
na sua poesia, como alguns autores têm desde sempre
notado446. De modo a ilustrar o que dizemos, lembremos
a nossa análise de “uma caravela para Lezama Lima”.

Cremos que a tendência hermética e a con-fusão do


real com o imaginário de Júdice corresponde ao “deva-
neio baudelairiano” que Jean-Pierre Richard vê no autor
francês, que escolhe relacionar com a suspensão do real
no poema447. No entanto, Júdice afasta-se de Baudelaire
quando este tenta substituir o real com um ideal de
beleza. A Júdice interessa mais a imagem e a sua des-
crição, por meio da paródia. A título de exemplo, basta
pegarmos nos títulos dos seus livros, que transmitem logo
aí a ideia de ironia que o conteúdo fragmentário dos
poemas que os compõem vão apresentar. Essa atitude
irónica e paródica divide-se em dois caminhos funda-

___________________________________________

446
Veja-se, na bibliografia sobre a poesia do autor (que
reproduzimos no da fortuna crítica), o artigo de Eduardo Pitta, 1991,
ou a introdução da tradução antológica para espanhol, ambas da
autoria do poeta Vicente Araguas (1996).
447
“[…] o devaneio baudelairiano visa […] embrenhar-se cada
vez mais longe no mistério, mas não existe nele qualquer termo ou
paragem; por isso não atinge nenhum saber último, e o real
permanece, para ele, em suspenso”. cf. Jean-Pierre Richard, Poésie
et profondeur, Paris, Colection “Points”, Seuil, 1976, p.100 (1955)
(apud Baudelaire, 1998, p.15).

443
RICARDo MARQuES

mentais – Por um lado na conjugação antitética dos


elementos lexicais dos títulos dos volumes (Rimas e
Contas, Cartografia das Emoções) e, por outro, no gosto
pela fusão musical das palavras, por vezes numa junção
surrealista dos seus elementos (Lira de Líquen, Condes-
cendência do Ser, O Movimento do Mundo).

De um modo geral, vimos como a obra poética de


Nuno Júdice se pauta por ser uma poesia intelectual, um
terreno fértil em cruzamentos, confluências, uma teia
intelectual de referências e totalmente inserida na cultura
ocidental a que pertence; uma poesia intelectual e
intelectualizada, pertencente a uma tradição ocidental,
mas entre o universal (os temas e autores maiores que
convoca) e o particular (os autores de sua referência
pessoal). São três as temáticas fundamentais que este
percurso intertextual revela: A metaliteratura, como
dissemos, na base de tudo, é a sua preocupação constante,
ligada a todos os outros temas importantes448. o poema é
o agente e um dos protagonistas do próprio poema. Em
“Cena Mitológica”, por exemplo, a convocação irónica
das musas serve para pensar o texto literário.

A metaliteratura judiciana acontece de várias


formas: por um lado, há poemas simplesmente sobre a
poesia, outros sobre a arte poética, e dentro destes tantas
variantes quanto permitem as imagens usadas para definir
ou construir essas poéticas ( veja-se, por exemplo, “Arte
Poética com Analogia” ou “Arte Poética com citação de
Hölderlin”). Há uma “Nova Teoria da Literatura”,
“Teoria do Soneto Inglês”, vários poemas que são sobre

__________________________________________

448
Veja-se o prefácio de Lignes D’eau, 2000.

444
NA TEIA Do PoEMA

a “Filosofia da Composição”, verdadeiras construções


(resgatando assim o étimo da palavra poesia como
“feitura”) em que o próprio poema constitui a compo-
sição e a sua própria arte, por vezes com reflexões
análogas dentro do campo da literatura e das outras artes.
uma outra forma de se plasmar essa reflexão é exac-
tamente no que toca ao papel do leitor. A poesia judiciana
não esquece e muitas vezes dirige-se a quem a lê, urgindo
o interlocutor a participar do poema. Assim, a poesia
deste autor participa daquilo que defendia José Luis
Borges, um autor cuja obra facilmente deixa transparecer
elementos intertextuais explícitos, quando este consi-
derava que o poema apenas existe no momento em que o
leitor olê. Neste sentido, uma obra literária apenas se
conclui por inteiro com o papel que o leitor tem na
comunicação literária.
A metaliteratura de Nuno Júdice passa muito por um
pendor autobiográfico, mas também tendo em conta a sua
analogia com tudo o resto – há muitas poesias com
analogia ou com citação, logo denotadas nos elementos
paratextuais como o título (“Quadras com citações de
Camões e Florbela”, “Poética com citação de Baude-
laire”, …). É imensa a teia de poemas metaliterários
porque estes não são só aqueles que explicitamente aqui
referimos e analisamos (de que aliás foi feita uma
selecção o mais criteriosa e extensiva possível): Em
quase todos os poemas de Júdice há, ainda que velada-
mente, uma poética escondida.
Por outro lado, há uma predominância da temática
do amor, com especial premência para o erotismo – seja
na perspectiva endoliterária (mulheres – Fanny owen,
ofélia, Emily Dickinson, Delmira Agustini…), seja na
exoliterária (quadros sobre mulheres; música, sempre
apelando à relação com o tu amoroso; não esquecendo o

445
RICARDo MARQuES

blogue ecfrástico) seja na extraliterária (Eros, mitos sobre


mulheres erotizantes, sedutoras e dominadoras como
Circe).
Em último lugar, o tempo, em que a sua memória
pessoal tem papel fundamental – os seus Raptos [1998],
por exemplo, são, de certa forma, perspectivas sobre a
passagem do tempo e das estações, usando as explicações
imortalizadas nos mitos e outros elementos intertextuais.
Desde A Noção do Poema até aos nossos dias, e apesar
da sua aproximação a uma estética mais clássica e
contida, o tempo cronológico que se privilegia é o tempo
outonal, e dentro do dia, o crepúsculo e a noite, ambos
com a sua simbologia disfórica.
Este jogo intelectual transparece igualmente na
forma ou estrutura externa do poema. No típico poema
judiciano participa uma referência intertextual directa e
um pendor metaliterário de grau variado, e, em simul-
tâneo, uma estilo de tratamento intencionalmente irónico,
ao qual não é estranho, do ponto de vista linguístico, o
jogo lexical. Todos os elementos são concatenados, numa
sequência lógica que pode ou não corresponder a uma
semelhança entre estrofe e premissa. Isto também porque
o encavalgamento é algo de incontornável na sua poesia,
servindo igualmente o seu pendor narrativo. outra carac-
terística é a opção pelo soneto, forma fixa mais usada,
desde sempre, na sua poesia, logo seguida da quadra.
Resumamos, em último lugar, mais detidamente, os
vários graus de relação intertextual que acontecem no
texto poético final de Júdice. Como vimos, NJ assume
várias posturas, desde a simples alusão a um mito à
complexa encarnação de uma figura literária ou da forma
como escrevia. Assim, Júdice tanto concebe pastiches
(veja-se “A 1ª das Contrarimas de Toulet”, “Mulheres”,
a “Homenagem a Blake”, as diversas “quadras com

446
NA TEIA Do PoEMA

citação”) ou faz uma exegese/interpretação da obra e do


autor (“Exercício de Interpretação”, “A Ciência do
Amor”), como deslocaliza parodicamente o texto referido
(“Divina Comédia”) ou conta uma estória paralela àquela
que a História registou (“História de Arte”).
Endoliterariamente, Platão é um dos autores mais
convocados por Nuno Júdice, que assim o faz de diversas
formas, nomeadamente através da história da “Alegoria
da Caverna” d’A República ou, indirectamente, através
da concepção platónica do Amor, que se estende aos
episódios mitológicos sobre Eros e o Amor, já numa
relação extraliterária ao seu texto. ovídio é outro dos que
mais se invocam, quer através da temática do amor, tema-
-alvo dos primeiros livros do autor latino quer através da
temática do exílio, que estende a outros autores e para-
digmas do exílio, nomeadamente no poema “A respiração
do exílio”.
Concluímos vendo que, para a sua genealogia, os
dois periodos mais férteis são o Renascimento e a
transição do Romantismo para o Século XX (com um
especial ênfase no período finissecular), que dividimos
tendo em conta o período activo da produção literária
com que dialoga, mais do que critérios de nascimento.
Júdice reporta às quatro grandes tradições ocidentais –
espanhola, inglesa, francesa e italiana (sobretudo com
Dante, que ele leu em pequeno e Petrarca, através de
Camões); mas vemos uma grande profusão da literatura
de fim-de-século e hispano-americana, com os diálogos
com Delmira Agustini, Leopoldo Lugones e Lezama
Lima. Também estes autores atestam que o período
finissecular foi um dos que mais interessou a Júdice, já
que os dois primeiros pertencem à chamada “Geração de
1900” no uruguai.

447
RICARDo MARQuES

Também no que toca à mitologia, Júdice dá conti-


nuidade e inscreve-se claramente na cultura ocidental
através dos seus poemas (e que se situa assim a sua
relação intertextual numa esfera extra-literária, que faz
da cultura o seu intertexto). Nestes poemas acerca da
mitologia clássica há sobretudo três formas de retomar a
mitologia: Em primeiro lugar, interessa-lhe falar de
histórias de deuses e semi-deuses que ousaram desafiar,
por alguma razão, uma instância hierárquica superior
(Prometeu, por exemplo). Por outro lado, retoma
mulheres, sobretudo fortes (veja-se “Cena Mitológica”
ou os poemas sobre as sibilas), bem como pares,
amorosos ou não, que constituem sub-histórias de mitos
centrais (“Eros e Psique”, para o primeiro caso, “Diana e
Actéon”, para o segundo, por exemplo).
Chegados ao fim deste livro, saímos e não saímos da
teia do poema de Nuno Júdice, apresentando um percurso
intertextual da sua obra poética. A minha leitura, como
uma viagem e itinerário, pretendeu relevar todos os
aspectos intertextuais da sua poesia, apontando os
principais nexos que ela estabelece ou, mantendo a
metáfora, tão cara a Júdice, da viagem, as várias moradas449
pelas quais passa e que vão ajudando a construir a sua
identidade enquanto poeta. Por outro lado, através deste
percurso intertextual bastante abrangente e minucioso que
se equivale igualmente a um percurso por toda a sua obra
poética, revela, cremos, as suas transformações ao longo
do tempo, as suas preocupações, os seus estilos e temas.
Como guia deste caminho, privilegiaram-se as palavras do
poeta nos seus ensaios e outros artigos e os seus próprios
poemas, por meio da sua análise.
_____________________________________________
449
Claudio Guillén, Entre lo uno y lo diverso: Introducción a
la literatura comparada, Barcelona, Tusquets, 2005 (1985).

448
NA TEIA Do PoEMA

o que identifica e imortaliza, em suma, esta poesia?


o carácter intemporal da poesia de NJ passa pela
panóplia de tema e subtemas, muitos adquirindo uma
premência considerável nos dias de hoje e que a
intertextualidade revela – o exílio, a dialéctica de
géneros, a questão metaliterária, o conceito de casa e de
lugar, ou uma posição “engagé” do quotidiano (veja-se
os recentes Geografia do Caos ou Jeu de reflets, o
primeiro sobre a acção nefasta do homem na natureza e
o segundo sobre a acção imprevista da natureza no meio
ambiente, através das cheias). Por outro lado, a sua
extensa obra apresenta diversos ciclos temáticos que, no
seu conjunto, constituem a unidade da sua poesia, aquilo
que muitas vezes a distingue das demais – de forma
explícita, por exemplo, a “Zoologia”, a “Botânica”, a
“Gramática”, e implicitamente, o diálogo com um certo
tipo de pintura de tradição nórdica, com a tradição
literária hispano-americana, com a música de certos
compositores.

o que encontramos na teia do poema judiciano é uma


rede de nomes, como em muitos autores da sua geração e
das gerações seguintes. o propósito principal deste
trabalho foi o de ir buscar as várias formas de dialogismo
que aqui acontecem e que nos ensinam uma visão muito
própria, mas também muito paródica e irónica, e que em
última instância nos ensina algo sobre nós.

449
BIBLIOGRAFIA FINAL

Nota Introdutória

Na parte que se segue sobre referências biblio-


gráficas, queremos salientar as seguintes opções
estruturais:

· No que diz respeito à poesia de Nuno Júdice


(Ponto 1 da Bibliografia Activa), escolhemos fazer
referência, por ordem cronológica, a todos os títulos de
poesia, publicados em volume autónomo, bem como a
antologias da obra poética, e a poemas dispersos em
álbuns em parceria com artistas e noutras publicações
literárias, que não foram fundidos num volume posterior.
· No que toca às traduções da obra poética, dispõem-
-se os títulos por ordem alfabética da língua, sejam ou
não publicados no mesmo país, e dentro de cada língua,
por ordem cronológica; A lista pretende ser exaustiva,
mas sobretudo representativa.
· No capítulo correspondente à bibliografia sobre
poesia e poesia contemporânea, e no que toca à natureza
do objecto de estudo, privilegiaram-se os estudos incon-
tornáveis sobre essa última parte, em especial aqueles que
tratam a poesia de Nuno Júdice;
· o mesmo pressuposto esteve na base das refe-
rências à ekphrasis e à intermedialidade. Fazemos
referência a estudos utilizados no decorrer da tese, bem

451
RICARDo MARQuES

como aos estudos por nós consultados mas que não se


relacionam directamente com o nosso objecto de estudo
e são pontos de partida para outras investigações na área.

BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

1) Poesia

A Noção de Poema, Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1972.

O Pavão Sonoro, in «Novembro» textos de poesia, coorde-


nação de Casimiro de Brito e Gastão Cruz, (capa de Manuel
Baptista), Lisboa, 1972.

Crítica Doméstica dos Paralelepípedos, Lisboa, Publ. Dom


Quixote, 1973.

As Inumeráveis Águas, Lisboa, Assírio e Alvim, 1974.

O Mecanismo Romântico da Fragmentação, Porto, Inova,


1975.

Nos Braços da Exígua Luz, Lisboa, Arcádia, 1976.

O Corte na Ênfase, (com um desenho de Domingos Pinho),


Porto, Inova, 1978.

O Voo de Igitur num Copo de Dados, (desenho de capa de


Graça Martins) Lisboa, & etc, 1981.

A Partilha Dos Mitos, (ilustração de capa de Patrick


Caulfield), Lisboa, A Regra do Jogo, 1982.

452
NA TEIA Do PoEMA

Lira de Líquen, (extratextos de Jorge Martins), Lisboa, Rolim,


1985 (Prémio de Poesia do Pen Clube).

“Caspar Wolf (1735-1783)”; “o cais”; “Poema”, in Revista


Colóquio/Letras. Poesia, nº95, Jan. 1987, pp. 72-73.

A Condescendência do Ser, Lisboa, Quetzal, 1988.

Enumeração de Sombras, Lisboa, Quetzal, 1988.

As Regras da Perspectiva, Lisboa, Quetzal, 1990 (Prémio D.


Dinis).

Uma Sequência de Outubro ( com desenhos de Rui Chafes),


Lisboa, Comissariado para a Europália, 1991.

Obra Poética (1972-1985), Lisboa, Quetzal, 1991.

Um Canto na Espessura do Tempo, Lisboa, Quetzal, 1992.

La Phrase et le Monde (com fotografias de Julie Ganzin),


tradução de Michel Chandeigne, Fata Morgana, 1994.

Meditação sobre Ruínas, Lisboa, Quetzal, (Prémio da APE),


1995.

O Movimento do Mundo, Lisboa, Quetzal, 1996.

Poemas em Voz Alta (com CD de poemas ditos por Natália


Luiza), Lisboa, Editorial Presença/Casa Fernando Pessoa,
1996.

“Labirinto órfico”, in AA.VV., O Começo das Águas,


Percursos da Criação, (posfácio de José-Augusto França), ed.
Caminho do oriente-EPAL, Lisboa, 1997.

453
RICARDo MARQuES

A Fonte da Vida, Lisboa, Quetzal, 1997.

Raptos-Enlèvements-Kidnappings ( com quadros de Jorge


Martins), (Tradução francesa de Jean-Pierre Léger, tradução
inglesa de Richard Zenith), Quetzal Editores/Casa Fernando
Pessoa, 1998 .

Teoria Geral do Sentimento, Lisboa, Dom Quixote, 1999.

Poesia Reunida 1967-2000, Lisboa, Dom Quixote, 2000.

Jeu de reflets/Jogo de reflexos, (com quadros de Manuel


Amado), tradução de Michel Chandeigne, Editions Chan-
deigne, Paris, 2000.

Cartografia de Emoções, Lisboa, Dom Quixote, 2001.

Jeux de plage/Jogos de praia (com desenhos de Júlio Pomar),


(tradução de Carlos Batista), Tête à tête, Paris, 2001.

Pedro, lembrando Inês ( com um desenho de Graça Morais),


Lisboa, Dom Quixote, 2002.

O Estado dos Campos, Lisboa, Dom Quixote, 2003.

“A loucura de Tristão”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias,


nº895, 19 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2005.

Geometria variável , Lisboa, Dom Quixote, 2005.

Geografia do Caos (com fotografias de Duarte Belo sobre


esculturas arqueológicas), Lisboa, Dom Quixote, 2005.

“Corpo nascente” (com Maria de Castro), in Livre pauvre-Livre


riche, éd. Daniel Leuwers, Somogy Editions d’Art, Paris, 2006.

454
NA TEIA Do PoEMA

As Coisas Mais Simples, Lisboa, Dom Quixote, 2006 (Prémio


Fernando Namora).

“Metamorfoses”, “o Melro Cantou”, “Édipo”, “Pontos de


Vista”, in Trois Poètes Portugais – Nuno Júdice, Maria
Andresen, Fernando Pinto do Amaral, (Presentation et
traduction par Cristina Isabel de Melo), Dijon, Éditions du
Murmure, Março de 2008. [dos catorze poemas aqui
publicados, apenas os quatro que se referem mantém-se
inéditos].

A Matéria do Poema , Lisboa, Dom Quixote, 2008.

O Breve Sentimento do Eterno, Lisboa, Edições Nelson de


Matos, 2008.

“A bela irlandesa”, in Relâmpago, nº23, Lisboa, Fundação


Luís Miguel Nava, out. 2008, p. 121.

“Madrugada”, “Teologia Marítima”, “Prometeu”, “Arqui-


tectura Branca” e “Acordar”, in Homenagem a Ramiro Fonte,
Lisboa, APE, 2009, pp. 49-57.

“Postal” e “Mulher com flor”, in Teresa Salema (org.), Tudo


Menos Palavras – Antologia da Literatura Portuguesa
Contemporânea, Lisboa, Colibri, outubro de 2009, pp. 40-41.

“Solo de Piano”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº1020,


4-12 de Novembro de 2009.

Guia de Conceitos Básicos, Lisboa, Dom Quixote, 2010.

El misterio de la belleza, (Traducción y presentación de Blanca


Luz Pulido), Monterrey, Ediciones universidad Autonoma de
Nuevo León, 2010. (edição bilingüe)

455
RICARDo MARQuES

Fórmulas de Uma Luz Inexplicável, Lisboa, Dom Quixote,


2012.

1.1) Traduções da Obra Poética

Búlgaro
Poesia. Karina M., Sofia, 1999.

Checo
Sarlatova Zena. Argo, 1999.

Dinamarquês
Vandlinier. Brondum, Copenhagen, 1998.

Espanhol
Antología poética, Ediciones Angria, 1996, Caracas (Tradução
de Eduardo Estévez com Neni Tábora).

Teoría General del Sentimiento. Trilce, 2001 (Tradução de


Blanca Luz Pulido).

un canto para la espessura del tiempo. Calambur, 1995 (trad.


José Luís Puerto).

Antología, Visor Libros, Colección Visor de Poesía, 2003


(Tradução de Vicente Araguas).

Tú, a quien llamo amor (Antología), Hiperión, 2008 (Tradução


de Jesús Munárriz).

Francês
Les Degrés du regard (anthologie). L’Escampette, 1993.
(Tradução de Michel Chandeigne.)

456
NA TEIA Do PoEMA

Un chant dans l’épaisseur du temps suivi de Méditation sur


des ruines, Gallimard, 1996. (Tradução de Michel
Chandeigne).

Le Mouvement du monde, Le Taillis Pré, 2000. (Tradução de


Michel Chandeigne).

Lignes d’eau. Fata Morgana, 2000. (Tradução de Jean-Pierre


Léger).

Jeu de reflets. Chandeigne, 2001. (Tradução de Michel


Chandeigne).

Pedro, evoquant Ines, Fata Morgana, 2003 (Tradução de


Marie-Claire Vromans).

Source de vie, Fata Morgana, 2006. (Tradução de Marie-Claire


Vromans).

Géometrie Variable, Éditions Vagamundo, 2011. (Tradução de


Cristina Isabel de Melo).

Inglês
Meditation on Ruins. Archangel, 1997. (Tradução de Richard
Zenith)
The Cartography of Being: Selected Poems 1967 – 2005.
Livros Pé da orelha, 2012. (Tradução de Paulo da Costa)

Italiano
Antologia. Colpo di Fulmine, 1991. (Tradução de Adelina
Aletti).

Neerlandês
Recept om Blauw te Maken. Wagner & Van Santen,
Rotterdam, 1998.

457
RICARDo MARQuES

Hebraico
Meditation on ruins. Carmel, 2000. (Tradução de Ahron
Amir.)

Sueco
Källskrift. Aura Latina, 1998. (Tradução de Lasse Söderberg).

Vietnamita
Tuyen tâp tho, , ed. Trh Bây, 1999. (Tradução de Diêm Châu)

2) Ficção

Última Palavra: «Sim», Lisboa, & etc, 1977.

Plâncton , Lisboa, Contexto, 1981.

A Manta Religiosa, Lisboa, Contexto, 1982.

o Tesouro da Rainha de Sabá – Conto Pós-Moderno, Lisboa,


Rolim, 1984.

Adágio, Lisboa, Quetzal, 1984.

A Roseira de Espinho, Lisboa, Quetzal, 1994.

A Mulher Escarlate, Lisboa, Contexto-Civilização, 1997.

Vésperas de Sombra , Lisboa, Quetzal, 1998.

Por Todos os Séculos, Lisboa, Quetzal, 1999.

A Árvore dos Milagres, Lisboa, Quetzal, 2000.

A Ideia do Amor e Outros contos, Lisboa, Dom Quixote, 2003.

458
NA TEIA Do PoEMA

o Anjo da Tempestade, Lisboa, Dom Quixote, 2004.

o Segredo da Mãe, Lisboa, Quetzal, 2004 (livro infantil, com


ilustrações de Graça Morais).

o Enigma de Salomé, Lisboa, Dom Quixote, 2007.

os Passos da Cruz, Lisboa, Dom Quixote, 2009.

Dois Diálogos entre um Padre e um Moribundo, Coimbra,


Angelus Novus, 2010.

Complexo de Sagitário, Lisboa, Dom Quixote, 2011.

3) Teatro

Antero – Vila do Conde, Lisboa, & etc, 1979

Flores de Estufa, Lisboa, Quetzal, 1993

Teatro, Lisboa, Artistas unidos/Cotovia, 2006. (peças – “o


Que eu te queria dizer, o que eu queria que me dissesses”,
“Colóquio de amor”, “o crime perfeito”, “Área de Serviço”,
“o regresso de Fausto”.)

4) Ensaio

Pessoa, etc…, Lisboa, Instituto Português do Livro, 1985.

A Era de «Orpheu», Lisboa, Ed. Teorema, 1986.

o Espaço do Conto no Texto Medieval, Lisboa, Vega, 1991.

o Processo Poético, Lisboa, INCM, 1992.

459
RICARDo MARQuES

Portugal, Língua e Cultura, Lisboa, Comissariado para a


Exposição de Sevilha, 1992.

Voyage dans un Siècle de Littérature Portugaise, Bordéus,


L’Escampette, 1993.

Viagem por um Século de Literatura Portuguesa, Lisboa,


Relógio d’Água, 1997.

As Máscaras do Poema , Lisboa, Árion, 1998.

B.I. do Capuchinho Vermelho, Lisboa, Apenas Livros, 2003.

A Viagem das Palavras: Estudo sobre Poesia, Lisboa, Ed.


Colibri, 2005.

o Fenómeno Narrativo, Lisboa, Ed. Colibri, 2005.

A Certidão das Histórias, Lisboa, Apenas Livros, 2006.

ABC da Crítica, Lisboa, Dom Quixote, 2010.

5) Edições críticas e antologias

Novela Despropositada de Frei Simão António de Santa


Catarina, o Torto de Belém, Lisboa, Assírio e Alvim, 1977

Poesia de Guerra Junqueiro, Lisboa, Editorial Comunicação,


1981

Sonetos de Antero de Quental, Lisboa, IN-CM, 1992

Poesia Futurista Portuguesa, Faro 1916-1917, Lisboa, A


Regra do Jogo, 1981 [2ª edição, Vega, 1993]

460
NA TEIA Do PoEMA

Cancioneiro de D. Dinis, Lisboa, Editorial Teorema, 1998.

18+1 Poètes contemporains de langue portugaise, Chan-


deigne-Instituto Camões, 2000.

Infortúnios trágicos da Constante Florinda, de Gaspar Pires


de Rebelo, Lisboa, Editorial Teorema, 2005

6) Outras traduções

Corbeille, Sertório, Lisboa, Relógio d’Água, 1997.

Corneille, A Ilusão Cómica, Porto, Cotovia, 1999.

Emily Dickinson, Poemas e Cartas, Porto, Cotovia, 2000.

Jorge de Montemor, Os Sete Livros de Diana, Lisboa,


Teorema, 2001.

AA.VV, Um país que sonha (cem anos de poesia colombiana),


Lisboa, Assírio e Alvim, 2012.

7) Estudos e outros artigos do autor

“Percursos de Perse – sobre uma dinâmica do espaço” in Maria


Alzira Seixo (coord.), Poéticas do Século XX, Lisboa, Livros
Horizonte, 1984, pp. 31-38.

“Campos e contra-campos na poesia portuguesa” in A Phala


– um século de poesia (1888-1988), Lisboa, Assírio e Alvim,
1989.

“Le langage poétique”, in Un chant dans l’épaisseur du temps


suivi de Méditation sur des ruines, Paris, Gallimard, 1996, pp.

461
RICARDo MARQuES

7-14 [originalmente publicado in Les Cahiers de la Villa


Gillet, nº1, Lyon, Circé, Novembre 1994].

“A viagem entre o real e o maravilhoso” in Ana Margarida


Falcão et allii (eds.), Literatura de Viagem – Narrativa,
História, Mito, Lisboa, Cosmos, Dez. 1997, pp. 621-629.

“Como se faz um poema?”, in Relâmpago, nº4, Lisboa,


Fundação Luís Miguel Nava, 1998, pp. 67-68.

s/t, [resposta a Inquérito sobre a Poesia Portuguesa do século


XX], Cadernos de Serrúbia, nº3, Porto, Fundação Eugénio de
Andrade, dez. 1999, pp. 41-42.

“ Apontamentos para uma tradição pouco genealógica” in


Românica – Revista de Literatura do Dept. de Literaturas
Românicas – FLuL, nº7, Lisboa, 1999, pp. 251-253.

“o lugar da alegria”, in Incidências – Revista do Instituto de


Estudos Portugueses da FCSH – uNL, Lisboa, Edições
Colibri, 1999, pp. 59-65.

“Le sujet poétique”, in Lignes D’eau – Linhas d’Água, Paris,


Fata Morgana, 2000, pp. 69-75.

“Autobiografia”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº926, 26


de Março a 11 de Abril de 2006, p. 44.

“Sartre, leitor de poesia”, in Cassiano Reimão (ed.), Jean-Paul


Satre – Uma Cultura da Alteridade – Filosofia e Literatura –
Actas de Colóquio, Lisboa, uNL, 2005, pp. 157-164.

462
NA TEIA Do PoEMA

BIBLIOGRAFIA PASSIVA

1 – Estudos sobre o Autor (apenas Poesia)

ALMEIDA, Teresa, “Entre o diálogo e o jogo”, Expresso, 17


de Julho de 2000.

________________, “Introdução”, in Poesia Reunida (1972-


2000), Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp. 33-44.

________________, “Sombras e Reflexos”, Expresso, 24 de


Novembro de 2001.

ALVES, Ida Ferreira, “Nuno Júdice: Arte Poética com


Melancolia”, online in
<www.periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/viewPDFInte
rstitial/1580/1312> (Acedido em Maio de 2008).

AMARAL, Fernando Pinto do, “O peso da vertigem”, Diário


de Notícias, 7 de Agosto de 1988.

ANTuNES, António Lobo, “A prosa que ilumina a poesia”,


Expresso, 8 de Dezembro de 2000.

BARBAS, Helena, “o Prazer de contar histórias”, Expresso,


6 de Novembro de 2004.

BARRoSo, Eduardo Paz, “A Poesia como Ficção da História


– o “Voo” de Nuno Júdice”, Jornal de Notícias, 15 de
Setembro de 1981.

CATTANEo, Carlo Vittorio, “Realidade, Memória e Escrita”,


Expresso, 28 de Agosto de 1982.

463
RICARDo MARQuES

___________________, “[Recensão crítica a ‘o Voo de Igitur


Num Copo de Dados’, de Nuno Júdice]”, In: Revista Colóquio
/Letras. Recensões Críticas, n.º 69, Set. 1982, pp. 70-71.

CENTENo, Yvette K., “[Recensão crítica a ‘A Noção de


Poema’, de Nuno Júdice]” Revista Colóquio/Letras.
Recensões Críticas, n.º 9, Set. 1972, pp. 80-81.

CoELHo, Eduardo do Prado, “uma Recitação Expansiva”,


Expresso, 23 de Agosto de 1986.

CoRTEZ, António Carlos, (Recensão a ‘A Matéria do


Poema’), Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 989, 27 de Agosto
a 9 de Setembro de 2008.

CouTINHo, Ana Paula Mendes, “Do álbum da transumância


poética de Nuno Júdice”, in Relâmpago. Revista de Poesia,
nº20, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, 2007, pp. 194-198.

CRuZ, Gastão, A Vida da Poesia, Lisboa, Assírio e Alvim,


2008 (Fusão do livro Poesia Portuguesa Hoje, edição original
de 1973 com segunda edição modificada em 1999, e artigos
seus sobre poesia recentes, especialmente na revista
Relâmpago).

D’ANGELo, Biagio, “ «Hay siempre voluntarios para no


entrar en la historia». una lectura de ‘Fotografía de grupo’, de
Nuno Júdice”, in Mnemósine, Año II – n.º 3, abril-junio, 2009.

DIoGo, Américo António Lindeza, Modernimos, Pós-


Modernismos, Anacronismos – Para Uma História da Poesia
Portuguesa Recente, Lisboa, Edições Cosmos, 1993, pp. 54-56.

464
NA TEIA Do PoEMA

DuARTE, Rita Taborda, “[Recensão crítica a ‘o Movimento


do Mundo’, de Nuno Júdice]”, In: Revista Colóquio/Letras.
Recensões Críticas, n.º 153/154, Jul. 1999, pp. 313-314.

FuRTADo, Maria Teresa Dias, “[Recensão crítica a ‘o


Mecanismo Romântico da Fragmentação’, de Nuno Júdice]”,
in Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 28, Nov.
1975, pp. 72-73.

___________________, “[Recensão crítica a ‘As Regras da


Perspectiva’, de Nuno Júdice]”, in Revista Colóquio/Letras.
Recensões Críticas, n.º 123/124, Jan. 1992, pp. 378-379.

GARCIA, José Martins, “[Recensão crítica a ‘Crítica


Doméstica dos Paralelepípedos’, de Nuno Júdice]”, in Revista
Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 16, Nov. 1973, p. 79.

GARCIA, Mario, “ ‘As Regras da Perspectiva’ de Nuno


Júdice: um exorcismo da memória”, Brotéria, nº132, 1991, pp.
325-329.

GoNÇALVES, Ilena Luís Candeias. Escritores Portugueses


do Algarve, Lisboa, Edições Colibri, 2006.

GuERREIRo, António, “A Intraduzível Inquietação”,


Expresso, 9 de Julho de 1989.

GuIMARÃES, Fernando, “[Recensão crítica a ‘As Inu-


meráveis Águas’, de Nuno Júdice]”, In: Revista Colóquio
/Letras. Recensões Críticas, n.º 21, Set. 1974, pp. 92-93.

___________________,“Nuno Júdice: o Conceito e a Figura”


in A Poesia Portuguesa Contemporânea e o Fim da
Modernidade, Lisboa, Caminho, 1989, pp. 119-124.

465
RICARDo MARQuES

___________________, “Gusmão, Serrano e Júdice – três


livros”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº895, Lisboa, 19
de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2005, p. 21.

GuSMÃo, Manuel, recensão a A Noção de Poema, Crítica,


nº3, 1972.

HoRTA, Maria Teresa, “Entre a tradição e a experiência”,


Diário de Notícias, 15 de outubro de 1995.

___________________, “Em rota humanista”, Diário de


Notícias, 22 de Julho de 1996.

___________________, “Em torno do sombrio”, Diário de


Notícias, 4 de Janeiro de 1999.

LEPECKI, Maria Lúcia, “uma poética intervalar em 26


exemplos”, Diário de Notícias, 24 de Dezembro de 1989.

__________________, “Sobre Nuno Júdice. o poeta e as suas


leis”, Diário de Noticias, supl. “Revista de Livros”, 19 de
Maio de 1991, p. 5.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel, “Nuno Júdice”, in Um


Pouco de Morte, Lisboa, Presença, 1989.

MARQuES, Carlos Vaz, “Nuno Júdice – um livro tem sempre


consequências”, Ler, nº67, Verão de 2005, pp. 18-35.

MARQuES, João Minhoto, “Representações do Espaço na


Poesia de Nuno Júdice”, in João Carlos Carvalho et Catarina
oliveira (coord.), Viajantes, Escritores e Poetas – Retratos do
Algarve, Lisboa, Edições Colibri – CELL – universidade do
Algarve, 2009, pp. 119-133.

466
NA TEIA Do PoEMA

MARQuES, Ricardo, “Viagem das Palavras – estudo sobre


Nuno Júdice”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº916, 9-22
de Novembro de 2005.

___________________,“A poesia, matéria do tempo”,


recensão ao livro “A Matéria do Poema”, de Nuno Júdice,
SToRM MAGAZINE, online in <www.storm-
magazine.com> (acedido em Setembro de 2008).

MARTINHo, Fernando J. B., “[Recensão crítica a ‘Nos


Braços da Exígua Luz’, de Nuno Júdice]”, Revista Colóquio
/Letras. Recensões Críticas, n.º 40, Nov. 1977, pp. 78-79.

MARTINS, Manuel Frias, “[Recensão crítica a ‘A Partilha dos


Mitos’, de Nuno Júdice]”, Revista Colóquio/Letras, Recensões
Críticas, n.º 74, Jul. 1983, p. 75.

MARTINS, Maria João, “Luz e Treva”, Jornal de Letras, Artes


e Ideias, nº895, Lisboa, 19 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2005.

MoRÃo, Paula, “[Recensão crítica a ‘Lira de Líquen’, de


Nuno Júdice]”, Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas,
n.º 97, Maio 1987, pp. 108-109.

NAVA, Luís Miguel, “Mnemónicas para Nuno Júdice: uma


poética da água”, in Ensaios Reunidos, Lisboa, Assírio e Avim,
2004, pp. 285-292 (originalmente publicado in Diário de
Lisboa, 4 de Janeiro de 1990 e na Colóquio/Letras nº121-122,
de Julho de 1991, que disponibilizamos em anexo).

NEVES, Margarida Braga, “Comentário de ‘Trabalho de Casa’


de Nuno Júdice”, in Pedro Serra et osvaldo Manuel Silvestre,
Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do
Século XX, Braga/Coimbra/Lisboa, Cotovia/Angelus Novus,
2002, pp. 297-302.

467
RICARDo MARQuES

___________________, ”Nuno Júdice: entre a ironia e a


analogia”, Mosaico Fluído – Modernidade e Pós-
-Modernidade na Poesia Portuguesa Mais Recente, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1991, pp. 80-93.

___________________, “As hipóteses do amor”, Público,


suplemento “Leituras”, Lisboa, 8 de Maio de 1999.

PITTA, Eduardo, “[Recensão crítica a ‘A Condescendência do


Ser’, de Nuno Júdice]”, Revista Colóquio/Letras. Recensões
Críticas, n.º 107, Jan. 1989, pp. 83-84.

___________________, “‘obra Poética (1972-1985)’ – Nuno


Júdice”, Ler, nº17, Lisboa, 1992, pp. 87-88.

___________________, “o cavalo de Leonardo” [sobre


Raptos], Ler, nº44, Lisboa, 1998.

PoMBEIRo, João, “A Sala do Escritor: Nuno Júdice”, Ler,


nº77, Lisboa, Fevereiro de 2009, pp. 90-91.

RoDRIGuES, Ernesto, “Nuno Júdice”, in Jacinto do Prado


Coelho (dir.), Dicionário de Literatura Portuguesa, Brasileira,
Galega, Africana e Estilística Literária, volume 2º, Lisboa/
Porto, Livraria Figueirinhas, 2003, p. 439.

RoSA, António Ramos, “A (im)possibilidade da relação


originária”, in A Parede Azul – Estudos sobre Poesia e Artes
Plásticas , Lisboa, Caminho, 1991, pp. 107-113.

SANToS, João Camilo dos, “A poesia de Nuno Júdice e a


questão do ser [crítica a ‘um Canto na Espessura do Tempo’,
de Nuno Júdice]”, Revista Colóquio/Letras, n.º 135/136, Jan.
1995, pp. 186-191.

468
NA TEIA Do PoEMA

SILVA, Maria Graciete Gomes da, “Em torno da


(im)perfeição”: de Camões a Nuno Júdice”, in Diálogos com
a Lusofonia. Actas do Colóquio Comemorativo dos 30 anos
da Secção Portuguesa do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-
-Americanos da universidade de Varsóvia, 2008, pp. 380-389.
Disponível in <http://iberystyka-
uw.home.pl/content/view/392/113/lang,pt> .

___________________, “Entre a adversativa e a analogia:


Nuno Júdice e a memória do mundo”, Conferência inédita
apresentada no Congresso “ACT 20 – Filologia, Memória e
Esquecimento”, decorrente na Faculdade de Letras da
universidade de Lisboa entre 17 e 19 de Novembro de 2008.

SILVA, Júlia, “A Presença Clássica em ‘As Regras da


Perspectiva’“, Humanitas, 1995, Volume XLVII, pp. 1047-
-1056. (acedido em Maio de 2008 in
<http://www1.ci.uc.pt/eclassicos/bd_pdfs_hum/29/art.21-
apresencaclassicaemasregrasdaperspectiva.pdf>).

SouTo, Egídia Marques, “Escrever para prolongar a vida”,


Palavra em mutação, nº0, Porto , Novembro de 2001/Abril de
2002, pp. 41-44.

__________________, “o lado repetitivo da poesia com os seus


propósitos: A unidade poética, com poemas de Nuno Júdice”,
MeaLibra, nº9, série 3, Dezembro de 2001, pp. 104-106.

__________________,“Morte e Metamorfose em Nuno


Júdice”, Tese de mestrado inédita apresentada à université de
la Sorbonne Nouvelle – Paris III, 2005.

___________________, “Le Musée Imaginaire de Nuno Júdice


– De la peinture au poème”, Tese de mestrado inédita apre-
sentada à université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III, 2007.

469
RICARDo MARQuES

VIEGAS, Francisco José, “Nostalgia e Contemporaneidade: a


poesia de Nuno Júdice”, Poéticas do Século XX, Lisboa,
Livros Horizonte, 1984, pp. 215-226.

___________________,“Insistência, Música”, Ler, nº2,


Lisboa, 1988, p. 50.

2) Estudos sobre ekphrasis e intermedialidade

AVELAR, Mário, Ekphrasis – O Poeta no Atelier de Artista,


Lisboa, Cosmos, 2006.

BASÍLIo, Kelly et all (org.), O Concerto das Artes, Porto,


Campo das Letras, 2007.

BARTHES, Roland, Image, Music, Text., Stephen Heath


(Edição e Tradução), Nova Iorque, Hill and Wang, 1977.

BENJAMIN, Walter. “The Work of Art in the Age of


Mechanical Reproduction” in Illuminations (tradução de.
Harry Zohn), Nova Iorque, Shocken Books, 1969.

BRuHN, Siglind, “A Concert of Paintings: ‘Musical


Ekphrasis’ in the Twentieth Century,” in Poetics Today,
volume 22, nº3, outubro de 2001, pp. 551-605

___________________, “Vers une méthodologie de


l’ekphrasis musical,” in Sens et signification en musique, ed.
by (Márta Grabócz and Danièle Piston), Paris, Hermann, 2007,
pp. 155-176

CEIA, Carlos, “Ekphrasis”, E-Dicionário de Termos


Literários, coord. de Carlos Ceia,
<http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/Ekphrasis.htm>,
consultado em 11-11-2008.

470
NA TEIA Do PoEMA

CLuVER, Claus, “Estudos Interartes: Introdução crítica”, in


Helena Carvalhão Buescu, João Ferreira Duarte e Manuel
Gusmão (org.), Floresta Encantada – Novos Caminhos da
Literatura Comparada, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
2001.

GooDMAN, Nelson, Los Lenguajes del arte – Aproximación


a la teoría dos símbolos, Barcelona, Ed. Seix Barral, Colecção
Biblioteca Breve, 1976.

GuIMARÃES, Fernando, Artes Plásticas: do Romantismo ao


Surrealismo, Porto, Campo das Letras, 2003.

HEFFERNAN, James, “Ekphrasis as Representation”, in New


Literary History, 22, 1991, p. 299.

_____________________, Museum of Words: : The Poetics


of Ekphrasis from Homer to Ashbery, Chicago, university of
Chicago Press, 1994

KRIEGER, Murray, Ekphrasis : The Illusion of the Natural


Dign, Baltimore, Johns Hopkins university Press, 1992.

LAGERRoTH, ulla Britta, Hans Lund, Erik Hedling, Interart


Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media,
Londres, Rodopi, 1997.

MARTINHo, Fernando J. B., “Ver e depois: a poesia


ecfrástica em Pedro Tamen”, in Revista Colóquio-Letras, nº
140/141, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

MARTINS, Manuel Frias, “Entre Écfrase e Tradução


Intersemiótica: um olhar perciano”, in Carlos Ceia et allii
(org.), Letras & Ciências – As Duas Culturas de Filipe
Furtado, Lisboa, Caleidoscópio, 2009, pp. 425-493.

471
RICARDo MARQuES

MITCHELL, W. J. T. Picture Theory : Essays on Verbal and


Visual Representation, Chicago, university of Chicago Press,
1994.

oLIVEIRA, Maria José de Azevedo Pereira, “Art as a


Mimesis in the Poetry of Jorge de Sena Metamorfoses, Tese
inédita, defendida no King’s College, 1992.

RoBILLARD, Valerie et alli (ed.), Pictures into Words:


Theoretical and Descriptive Approaches to Ekphrasis,
Amesterdão, V.u. university Press, 1998.

__________________, “In Pursuit of Ekphrasis: An Intertextual


Approach”. In Valerie Robillard et allii (ed.) Pictures into
Words: Theoretical and Descriptive Approaches to Ekphrasis,
Amsterdão, Vu university Press, 1998, pp. 53-73.

_________________,”Word, Image and the Space Between:


From Literary Theory to Creative Practice”, Conferência
inédita “Interior Design, Interior Tools”, Edimburgo, 21 de
Agosto de 2008 (acedido em Janeiro de 2009 in
<http://www.interiorsforumscotland.com/page16.htm>).

RoSA, António Ramos, A Parede Azul – Estudos sobre Poesia


e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991.

TAMEN, Miguel, “It poesis, pictura (observações sobre a


ilustração)” in Maria Alzira Seixo, Poéticas do Século XX,
Lisboa, Livros Horizonte, 1984, pp. 96-108.

3) Estudos sobre intertextualidade

AA.VV., Intertextualidades, (trad. de Clara Crabbé Rocha),


Coimbra, Almedina, 1979

472
NA TEIA Do PoEMA

ALLEN, Graham, Intertextuality, London, New Critical


Idiom, 2006 [2000].

ANGENoT, Marc, “L’intertextualité : enquête sur


l’émergence et la diffusion d’un champ notionnel”, Revue des
Sciences Humaines, 89, 1983.

_______________,“Social Discourse Analysis: outlines of a


Research Project”, in Discours social = Social discourse,
McGill university, vol. 1, no. 1, Inverno de 1988, pp. 1-21.

_______________,“ ‘Que peut la littérature?’ Sociocritique


littéraire et critique du discours social”, consultado em Agosto
de 2008 in (<http://www.sociocritique.mcgill.ca/Pdf/
Angenot3.pdf> ).

BABo, Maria Augusta, Da Intertextualidade: a Citação; in


Revista de Comunicação e linguagens: Textualidades, nº 3,
Junho, 1986; Afrontamento, Porto; pp. 113-119.

BAKHTINE, Mikhail, The Dialogic Imagination: Four


Essays, ed. Michael Holquist, trans. Caryl Emerson & Michael
Holquist (Austin: university of Texas Press, 1981)

BARTHES, Roland, «La mort de l’Auteur» , in Le bruissement


de la langue, Paris, Seuil, 1984, pp. 61-64 [originalmente de
1968].

BLooM, Harold, O Cânone Ocidental, Lisboa, Temas e


Debates, 3ª edição, 2002 (1997).

BoLTER, Jay David. “The Electronic Book”, in Victor


Vitanza (ed.), CyberReader, Boston, Allyn and Bacon, 1996.

473
RICARDo MARQuES

BRuCE, Donald, De l’intertextualité à l’interdiscusivité:


histoire d’une double émergence, Toronto, Editions Paratexte,
1995.

BuSCH, V., “As we may think”, Atlantic Monthly, nº176,


1945.

CAMARERo, Jesús, Intertextualidad – Red de textos y


Literaturas Transversales en Dinámica Intercultural, Rubí
(Barcelona), Anthropos Editorial, 2008.

CARVALHo, Rómulo de, O Texto Poético como Documento


Social, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

CHASSAY, J.-F., « Intertextualité » in P. Aron, D. Saint-


-Jacques et A. Viala (eds.), Dictionnaire du littéraire, Paris,
P.u.F., 2002.

CLAYToN, John et Eric Rothstein (eds.), Influence and


Intertextuality in Literary History, Madison, university of
Winsconsin, 1991.

CoMPAGNoN, Antoine, La Seconde main ou le travail de la


citation, Paris, Seuil, 1979.

CRoS, Edmund, Theory and Practice of Sociocriticism,


Minnesota, Minnesota u.P., 1988 (original de 1983,
Montpellier – Théorie et pratique sociocritiques).

CuLLER, Jonathan, “Comparing Poetry: 2001 ACLA


Presidential Address”, in Comparative Literature, Vol. 53, No.
3, university of oregon, 2001.

CuRRIE, Mark (ed.), Metafiction, Nova Iorque, Longman,


1995.

474
NA TEIA Do PoEMA

DALLENBACH, Lucien, “Intertexto e Autotexto”, in


AA.VV., Intertextualidades, (trad. de Clara Crabbé Rocha),
Coimbra, Almedina, 1979.

DENTITH, Simon, Parody, London, Routledge, 2000.

DoLEZEL, Lubomil, “Semiotics of Literary Commu-


nication.”, Strumenti Critici 1.1, 1986, pp. 5-48.

_________________, Historia Breve de la Poética, Madrid,


Síntesis, 1997 (1990).

EIGELDINGER, Marc, Mythologie et Intertextualité, Genève,


Editions Slatkine, 1987.

ELIoT, T.S., “Tradition and Individual Talent”, in The Sacred


Wood: Essays on Poetry and Criticism, s/l,1922.

GENETTE, Gérard, Figures I, Paris, Seuil, 1966.

________________, Figures II, Paris, Seuil, 1969

________________, Figures III, Paris, Seuil, 1972

________________, Palimpsestes, Paris, Seuil, 1982

________________, Seuils, Paris, Seuil, 1987.

GIGNouX, Anne-Claire, Initiation à l’intertextualité, Paris,


Ellipses Marketing, 2005.

HuTCHEoN, Linda, Narcissistic Narrative: The Meta-


fictional Paradox, Methuen, 1980.

475
RICARDo MARQuES

________________, Uma Teoria da Paródia; Lisboa, Edições


70, 1989 [original inglês de1986 ].

IRWIN, William, Intentionalist Interpretation: A Philoso-


phical Explanation and Defense, Greenwood Press, Westport,
Connecticut, 1999.

_____________, What is an Allusion?”, in Journal of


Aesthetics and Art Criticism, nº 59 (2001), pp. 287-97.

_____________, “Against Intertextuality” in Philosophy and


Literature, Volume 28, nº 2, outubro de 2004, pp. 227-242.

JENNY, Laurent, “A Estratégia da Forma” in AA.VV.,


Intertextualidades, Coimbra. Almedina, 1979.

JuVAN, Marko, History and Poetics of Intertextuality,


Indiana, Purdue university Press, 2009.

KIERKEGAARD, S.A., O Conceito de Ironia; Petrópolis,


Editora Vozes, 1991.

KRISTEVA, Julia, Semeiotiké: Recherches Pour une


Sémanalyse; Paris, Seuil, 1969.

______________, La Révolution du langage poétique, Paris,


Seuil, 1974.

______________, Semiótica do Romance, Lisboa, Arcádia,


1978 (1977).

LAGERRoTH, ulla Britta et Hans Lund, Erik Hedling,


Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and
Media, Londres, Rodopi, 1997.

476
NA TEIA Do PoEMA

LANDoW, George et Paul Delaney (eds.), Hypermedia and


Literary Studies, Cambridge, MIT Press, 1994.

MARTÍNEZ FERNANDÉZ, José Enrique, La Inter-


textualidad Literaria – Base Teórica y Practica Textual,
Madrid, Cátedra, 2001.

MARTINS, J. Cândido, Teoria Geral da Paródia Surrealista,


Braga, universidade Católica Portuguesa, 1995.

oRR, Mary, Intertextuality – Debates and Contexts, Polity


Press, Cambridge, 2005 (2003).

PFISTER, Manfred, “How Postmodern is Intertextuality?” in


Heinrich Plett (ed.), Intertextuality, Walter de Gruyter, Berlin
and New York, 1991.

PIÉGAY-GRoS, Nathalie, Introduction a l´’intertextualité,


Paris, Dunod, 1996.

PLETT, Heinrich (ed.), Intertextuality, Walter de Gruyter,


Berlin and New York, 1991.

RAJAN, Tilottam, “Intertextuality and the Subject of Reading


/ Writing” in John Clayton e Eric Rothstein (eds.), Influence
and Intertextuality in Literary History, Madison, university of
Winsconsin, 1991.

RIFFATERRE, Michael, “Intertextuality vs. Hypertextuality”,


in New Literary History, Vol. 25, No. 4, 25th Anniversary
Issue (Part 2), Autumn, 1994, pp. 779-788.

RoSE, Margaret, Parody: Ancient, Modern and Post-Modern,


Cambridge, CuP, 1993.

477
RICARDo MARQuES

SAMoYAuLT, Tiphaine, L’Intertextualité – Mémoire de la


littérature, Paris, Armand Colin, 2005.

SIEGLE, Robert, Politics of Reflexivity, Narrative and the


Constitutive Poetics of Culture, Nova Iorque, John Hopkins
university, 1986.

ToDoRoV, Tzvetan, Mikhail Bakhtine et le Principe


Dialogique; Paris, Editions du Seuil, 1981.

WALTY, Ivete Lara Camargos et Maria Zilda Ferreira Cury,


“Intertextualidade”, E-Dicionário de Termos Literários, coord.
de Carlos Ceia,
<http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/posmodernismo.htm>,
acedido a 11 de Novembro de 2008.

WAuGH, Patricia, Metafiction. The Theory and Practice of


Self-conscious Fiction, Nova Iorque, Routledge, 1984.

4) Estudos sobre poesia ou poesia contemporânea

AA.VV., Revista de Poesia Relâmpago, Lisboa, Fundação


Luís Miguel Nava, [1997 – ].

AMARAL, Fernando Pinto do, O Mosaico Fluido – Moder-


nidade e Pós-Modernidade na Poesia Portuguesa Mais
recente. Lisboa, Assírio e Alvim, 1990.

BARRENTo, João, “Palimpsestos do Tempo – o paradigma


da narratividade na poesia dos anos 80”, in Colóquio-Letras,
nº106, Nov. Dez, 1988, pp. 39-46. [refundido e actualizado in
A Espiral Vertiginosa : Ensaios sobre a Cultura Contem-
porânea, Lisboa, Cotovia, 2001].

478
NA TEIA Do PoEMA

________________, A Espiral Vertiginosa : Ensaios sobre a


Cultura Contemporânea, Lisboa, Cotovia, 2001.

CRuZ, Gastão, A Poesia Portuguesa Hoje, Lisboa, Relógio


D’Água, 1999 [1ª edição, 1973; refundido no livro A Vida da
Poesia, Lisboa, Assírio e Alvim, 2008].

DIoGo, Américo António Lindeza, Modernimos, Pós-


-Modernismos, Anacronismos – Para Uma História da Poesia
Portuguesa Recente, Lisboa, Edições Cosmos, 1993.

FREITAS, Manuel de, Poetas Sem Qualidades, Lisboa,


Averno, 2002.

GuIMARÃES, Fernando, in Simbolismo, Modernismo e


Vanguardas, Lello & Irmão Editores, Porto, 1992, [em
especial, o capítulo “Simbolismo: a procura da
originalidade”].

___________________, A Poesia Portuguesa Contemporânea


e o Fim do Modernismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1989.

___________________, A Poesia Contemporânea Portuguesa


– Do Final dos Anos 50 aos Anos 90, Vila Nova de Famalicão,
Edições Quasi, 2002.

___________________, “A Modernidade em Questão?”, in


Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº970, 5 de Dezembro de
2007.

LoPES, Óscar et Rosa Maria Martelo, História da Literatura


Portuguesa – As Correntes Contemporâneas, vol. 7, Lisboa,
Alfa, 2002.

479
RICARDo MARQuES

MÃE, valter hugo, Desfocados pelo Vento: A Poesia dos Anos


80, Agora, Famalicão, Quasi, 2004.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel, Rima Pobre, Lisboa,


Editorial Presença, 1999.

MALPoIX, Jean-Paul, La poésie comme l’Amour, Paris,


Mercure de France, 1998.

MARINHo, Maria de Fátima, A Poesia Portuguesa nos


Meados do Século XX – Rupturas e Continuidades, Lisboa,
Editorial Caminho, 1989.

MARQuES, Ricardo, “A proporção e a semelhança – da


Analogia na Poesia Contemporânea”, in Letras & Ciências –
As Duas Culturas de Filipe Furtado, Lisboa, Caleidoscópio,
2009, pp. 138-149.

MARTELo, Rosa Maria, “Modernidade e senso comum: o


lirimos dos finais do século XX”, in Cadernos de Literatura
Comparada 8/9: Literatura e Identidades, (orgs. Ana Luísa
Amaral, Gonçalo Vilas-Boas, Manuela Freitas, Marinela
Freitas, Rosa Maria Martelo), Porto, Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa, 2003.

___________________, Em Parte Incerta – Estudos de


Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea, Porto, Campo
das Letras, 2004.

___________________, Vidro do mesmo Vidro : Tensões e


Deslocamentos na Poesia Portuguesa depois de 1961, Porto,
Campo das Letras, 2007.

MARTÍNEZ FERNÁNDEZ, Jose Enrique, El fragmentarismo


poético contemporáneo, León, universidad de León, 1996.

480
NA TEIA Do PoEMA

___________________,“Precariedad del sujeto poético


postmoderno”, Prosopopeya: revista de crítica contem-
poránea, Nº. 5, 2007, pp. 187-208.

MARTINHo, Fernando J. B., Pessoa e a Moderna Poesia


Portuguesa do «Orpheu» a 1960, Lisboa, Bibl. Breve, 1983.

MARTINS, Manuel Frias, 10 anos de Poesia em Portugal:


1974-1984 – Leitura de uma Década, Lisboa, Editorial
Caminho, 1986.

MENDES, Ana Paula Coutinho Mendes, “Da referência em


alguma poesia contemporânea: estrutura de horizonte e
identidade relacional” in Isméria de Sousa et allii (org.),
Cadernos de Literatura Comparada 5: Contextos de Moder-
nidade, Porto, Granito/ Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa, 2002, pp. 9-39.

NANCY, Jean-Luc, A Resistência da Poesia, Lisboa, Edições


Vendaval, 2005.

PINSoN, Jean-Claude, Habiter en poète: essai sur la poésie


contemporaine, Paris, Editions Champs Valon, 2001.

AMARAL, Fernando Pinto do, O Mosaico Fluido –


Modernidade e Pós-Modernidade na Poesia Portuguesa Mais
recente. Lisboa, Assírio e Alvim, 1990.

REIS, Carlos, “A poesia portuguesa na posteridade do


Modernismo”, in Metamorfoses, volume 6, Lisboa, Editorial
Caminho, 2005, pp. 111-135.

REIS-SÁ, Jorge, Anos 90 e Agora: Uma antologia da Nova


Poesia Portuguesa, Famalicão, Quasi, 3ª edição revista e
aumentada, 2004. [2001].

481
RICARDo MARQuES

RoSA, António Ramos, Incisões Oblíquas – Estudos sobre


Poesia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Caminho, 1985.

SEIXAS, Ana Margarida Simões Falcão, Os Novos Shâmanes:


Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia
Portuguesa mais recente, Tese de Doutoramento inédita em
Teoria da Literatura apresentada à universidade da Madeira, sob
orientação do Prof. Doutor Fernando Pinto do Amaral, 2003.

SERRA, Pedro et osvaldo Manuel Silvestre, Século de Ouro


– Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do século XX,
Braga/Coimbra/Lisboa, Cotovia/Angelus Novus, 2002. [Em
especial pp. 15-65 para a introdução e pp. 297-302 para o
poema “Trabalho de Casa” de Nuno Júdice e sua análise].

THoRNE, Sara, Mastering Poetry, London, Palgrave/


Macmillan, 2006.

5) Outra bibliografia consultada (obras críticas e


literárias)

AA.VV., História e Teoria das Ideias, vol. XXIII, II Série,


Lisboa, Centro de História da Cultura / uNL, 2006.

_______, Classical Literary Criticism, Translated by Penelope


Murray and T. S. Dorsch; introduction and notes by Penelope
Murray, London, Penguin Books, 2004.

AGoSTINHo, Santo, Confissões, Lisboa, IN-CM, 2004.

ALEXANDRE, António Franco, Poemas, Lisboa, Assírio e


Alvim, 2000.

AMARAL Fernando Pinto do, “A tradição já não é o que era”,


Românica, Lisboa, FLuL, 1996, pp. 24-25.

482
NA TEIA Do PoEMA

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Poesia, edição


definitiva de Luís Manuel Gaspar e Maria Andresen de Sousa,
Lisboa, Caminho, 2003 (1944).

________________________________, Dia do Mar, Lisboa,


Editorial Caminho, edição definitiva de Luís Manuel Gaspar
e Maria Andresen de Sousa, 2003 (1947).

_________________________________, Cristo Cigano,


Lisboa, Editorial Caminho, edição definitiva de Luís Manuel
Gaspar e Maria Andresen de Sousa, 2003 (1961).

ARISTÓTELES, Poética,( trad., pref., introd. e apêndices


Eudoro de Sousa), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
6ª ed., 2000.

_____________, Órganon – III. Analíticos Anteriores,


(Tradução e notas de Pinharanda Gomes), Lisboa, Guimarães
Editores, 1987.

AuGÉ, Marc, Não-lugares: Introdução a uma Antropologia


da Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand Editora, 1994.

BAILEY, Anthony, John Constable: A Kingdom of His own,


London: Vintage, 2007.

BAPTISTA, José Agostinho, Quatro Luas, Lisboa, Assírio e


Alvim, 2006.

BARTHES, Roland, Lição, Lisboa, Edições 70, 1979.


________________, Linguística e Literatura, Lisboa, Edições
70, 1980.

________________, S/Z, Lisboa, Edições 70, 1980.

483
RICARDo MARQuES

BATAILLE, Georges, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 3ª


edição, 1988 (1968).

BAuDELAIRE, As Flores do Mal, (Tradução e Prefácio de


Fernando Pinto do Amaral), Lisboa, Assírio e Alvim, 4ª edição,
1998 (1992).

BAuDRILLARD, Jean, Simulacra et Simulation, Paris,


Galilée, 1985.

___________________, Selected Writings, ed. Mark Poster,


Stanford, Stanford university Press, 1988.

BHABA, Homi, “Sly civility”, Location of Culture, London,


Routledge, 1994 pp. 93-101.

BLANCHoT, Maurice, L’Entretien Infini, Paris, Gallimard,


1969.

__________________, L’Espace Littéraire, Paris, Gallimard,


2007 [1980].

BoRGES, Jorge Luis, Obras Completas 1923-1949 (1º


volume), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.

_________________, Obras Completas 1952-1972 (2º


volume), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.

BRYSoN, Bill, Breve História de Quase Tudo, Lisboa,


Quetzal, 2008.

BRYSoN, Norman, Looking the Overlooked: Four Esssays


on Still Life Painting, London, Reaktion Books, 1990.

484
NA TEIA Do PoEMA

BuESCu, Helena Carvalhão et allii (org.), Floresta


Encantada – Novos Caminhos da Literatura Comparada,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.

__________________, Poesia e Arte. A Arte da Poesia – Home-


nagem a Manuel Gusmão, Lisboa, Editorial Caminho, 2008.

BuRKE, Edmund. On the Sublime and Beautiful. Vol. XXIV,


Part 2. The Harvard Classics. New York: P.F. Collier & Son,
1909–14; <www. Bartleby.com/24/ 2> [Acedido em Junho de
2009].

BuRKERT, Walter, Mito e Mitologia, Lisboa, Edições 70,


1991.
__________________, A Religião Grega na Época Clássica
e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

CALVINo, Italo, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante,


Lisboa, Público, Colecção Mil Folhas, 2002 [Tradução de José
Colaço Barreiros].

CEIA, Carlos, Textualidade – Uma Introdução, Lisboa,


Editorial Presença, 1995.

___________________, O Que é Afinal o Pós-Modernismo?,


Lisboa, Edições Século XXI, 1998.

____________________, “Para uma definição do conceito de


Estudos Anglo-Portugueses”, in Actas do I Congresso Interna-
cional de Estudos Anglo-Portugueses, Lisboa, Colibri, 2001.

__________, Comparative Readings of Poems Portraying


Symbolic Images of Creative Genius: Sophia de Mello Breyner
Andresen, Teixeira de Pascoaes, Rainer Maria Rilke, John

485
RICARDo MARQuES

Donne, John of the Cross, Edward Young, Lao Tzu, William


Wordsworth, Walt Whitman, The Edwin Mellen Press,
Lewiston, Queenston e Lampeter, 2002.

CENDRARS, Blaise, Poesia em Viagem (tradução de Liberto


Cruz), Lisboa, Assírio e Alvim, s/d.

CENTENo, Yvette, A Oriente, Lisboa, Editorial Presença,


1998.

CHEVALIER, Jean et Alain Gheerbrant, Dicionário de


Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994 [1982].

CIXIouS, Hélène, “The Laugh of the Medusa” (1975) in


Feminisms: An Anthology of Literary Theory and Criticism,
Rutgers univ. Press, 1991 (edição revista, 1997).

CARVALHo, João Carlos et Catarina oliveira (coord.),


Viajantes, Escritores e Poetas – Retratos do Algarve, Lisboa,
Edições Colibri – CELL – universidade do Algarve, 2009.

CoLLINS, Billy, Sailing Alone Around the Room: New and


Selected Poems, Nova Iorque, Random House, 2000.

CuLLER, Jonathan, Teoria Literária: Uma Introdução, São


Paulo, Beca, 1993.

CuNHA, António Manuel dos Santos Cunha, Sophia de Mello


Breyner Andresen: Mitos Gregos e Encontro com o Real,
Lisboa, IN-CM, 2004.

DuFFY, Carol Ann, The World’s Wife, London, Faber and


Faber, 1999.

486
NA TEIA Do PoEMA

EBERT-SCHIFFERER, Sybille, Still Life: A History, Harry N.


Abrams, New York, 1998.

ECo, umberto, Conceito de Texto, São Paulo, T.A Queiroz,


Edição da universidade de São Paulo, 1984.

___________________, Os Limites da Interpretação, Lisboa,


Difel, 1990.

ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Lisboa, Edições


70, 1999. [original de 1954].

___________________, O Sagrado e o Profano, Lisboa,


Livros do Brasil, 2000. [original de 1956].

FERREIRA, António Manuel (org.), Percursos de Eros –


Representações do Erotismo, Aveiro, universidade de Aveiro,
Setembro de 2003.

_____________________, “uma Fábula, de António Franco


Alexandre” in António Manuel Ferreira, Do Canto ao Conto
– Estudos de Literatura Portuguesa, Aveiro, Edições Til, 2006,
pp. 117-123. [online in <http://www2.dlc.ua.pt/
classicos/uma%20f%C3%A1bula,%20de%20ant%C3%B3nio
%20franco%20alexandre.pdf> ]

FERREIRA, José Ribeiro, “o mito de Narciso na Poesia


Portuguesa Contemporânea”, in António Maria Martins Melo
(org.), A Mitologia Clássica e a sua Recepção na Literatura
Portuguesa, Braga, universidade Católica Portuguesa, 2000,
pp. 95-124.

____________________, «Temas Clássicos em Epístolas e


Memorandos de Fiama Hasse Pais Brandão», Boletim de
Estudos Clássicos, nº37, Coimbra,2002, pp. 119-125

487
RICARDo MARQuES

FouCAuLT, Michel, “Qu’est qu’un auteur”, in Dits et Écrits,


volume I, Paris, Gallimard, 1994 [originalmente de 1969].
[1ºedição portuguesa, Vega, 1992].

FRÄNKEL, Herman, Ovid: A poet between two worlds,


Berkeley, university of California Press, 1956.

GIDE, André, Si le grain ni meurt, Paris, Gallimard, 1972.

GIL, José, O Espaço Interior, Lisboa, Editorial Presença,


1994.

__________________, “Sem Título” – Escritos sobre Arte e


Artistas, Lisboa, Relógio d’Água, 2005 (2ª edição).

GRAVES, Robert, The Greek Myths, (2 vols),


Harmondsworth, Penguin, 1955.

GRIMAL, Pierre, Dicionário da Mitologia Grega e Romana,


Lisboa, Difel, 1999 (3ªedição).

GuILLÉN, Claudio, Entre lo uno y lo diverso: Introducción


a la literatura comparada, Barcelona, Tusquets, 2005 (1985).

________________, O Sol dos Desterrados: Literatura e


Exílio, Lisboa, Teorema, 2005 [original espanhol de 1995].

HATHERLY, Ana, O Mestre, Arcádia, Lisboa, 1963.

HEIDEGGER, Martin, “Plato’s Doctrine of Truth,” in William


McNeil (ed.), Martin Heidegger Pathmarks, Cambridge,
Cambridge university Press, 1998.

__________________, O Que é Uma Coisa?, Lisboa, Edições


70, 2002.

488
NA TEIA Do PoEMA

HÖLDERLIN, Elegias, (com introdução, tradução e notas de


Maria Teresa Dias Furtado), Lisboa, Assírio e Alvim, 2000.

HoMERo, Odisseia, (Trad. e notas de Frederico Lourenço),


Lisboa, Livros Cotovia, 2003.

JAKoBSoN, Roman, “on linguistic aspects of translation”,


in On Translation, Reuben Brower (ed.), Cambridge, Mass.,
Harvard university Press, 1959, pp. 232-239.

__________________, Quéstions de Poétique, Paris, Seuil,


1973.

JAuSS, Hans Robert, A Literatura como Provocação, Lisboa,


Vega, 1993 ( original alemão de 1970).

_________________, Pour une Esthétique de la Recéption,


Paris, Gallimard, 1978.

JoRGE, João Miguel Fernandes, Sob Sobre Voz, Lisboa,


Moraes, 1971.

LEJEuNE, Philippe, Le Pacte Autobiographe, Paris, Seuil,


1975.

_________________, Signes de vie (Le pacte autobio-


graphique, 2), Paris, Seuil, 2005.

LAFFoNT-BoMPIANI, Dictionnaire des Personnages


Littéraires et Dramatiques de tous les tems et de tous les pays,
Ed. Robert Laffont, 1992, (4ªedição).

LEMAITRE, Henri, La Poesie depuis Baudelaire, Paris,


Armand Colin, 1965.

489
RICARDo MARQuES

LIMA, José Lezama, Selections, Berkeley/Los Angeles,


university of California Press, 2005.

LoSA, Manuel, “o mito de Eros e Psique”, in António Maria


Martins Melo (org.), A Mitologia Clássica e a sua Recepção
na Literatura Portuguesa, Braga, universidade Católica
Portuguesa, 2000, pp. 49 – 66.

LoTMAN, Yuri, A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa,


Estampa, 1978.

LouRENÇo, Eduardo, O Espelho Imaginário: Pintura, Anti-


-pintura, Não Pintura, Lisboa, INCM, 1981.

__________________, Tempo e Poesia, Lisboa, Gradiva,


2003 [1976].

MALLARMÉ, Stephane, Poesias, (Prefácio, Tradução e Notas


de José Augusto Seabra), Lisboa, Assírio e Alvim, 2005.

MARAVALL, José Antonio, A cultura do Barroco, Lisboa,


Instituto Superior de Novas Profissões, 1997 [ tradução portu-
guesa do original La Cultura del Barroco, Madrid, Ariel, 1976].

MENDoNÇA, José Tolentino, A Noite Abre Meus Olhos –


[poesia reunida], Lisboa, Assírio e Alvim, 2006.

MEXIA, Pedro, O Senhor Fantasma, Famalicão, Quasi, 2006.

MoRAN, Joe, Interdisciplinarity, London, Routledge, 2001.

PASToREAu, Michel, Dicionário das Cores do Nosso


Tempo, Lisboa, Editorial Estampa, 1997.

490
NA TEIA Do PoEMA

PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Novos Ensaios sobre


Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, Lisboa, IN-CM, 1988.

___________________________, Portugal e a Herança


Clássica e Outros Textos, Porto, Edições ASA, 2003.

_____________________________, Temas Clássicos na


Poesia Portuguesa, Lisboa, Verbo, 2008 [1972].

PLATÃo, O Banquete (ou o Simpósio), Lisboa, Guimarães


Editores, 1986.

________, Fédon, Lisboa, Guimarães Editores, 2000.

PoMBo, olga, et allii (org.), Enciclopédia e Hipertexto,


Lisboa, Edições Duarte Reis, 2006.

RANCIÈRE, Jacques, Le Partage du Sensible. Esthétique et


politique, Paris, La Fabrique, 2000.

________________, La Parole Muette – Essais sur les


Contradictions de la Literature, Paris, Hachette, 2005.

RECKERT, Stephen et Hélder Macedo, Do Cancioneiro de


Amigo, Lisboa, Assírio e Alvim, 3ª edição, 1996 (1976).

_________________, Para Além das Neblinas de Novembro


– Perspectivas sobre a Poesia Ocidental e Oriental, Lisboa,
FCG, 2000.

RICHARD, Jean-Pierre, Poésie et Profondeur, Paris,


Colection “Points”, Seuil, 1976 (1955).

491
RICARDo MARQuES

RoSENTHAL, Robert et Lenore Jacobson, Pygmalion in the


classroom – Teacher Expectation and Pupils’ Intellectual
Development, New York: Irvington Press, 1992 (1968).

SCHMIDT, Albert-Marie, La Littérature Symboliste (1870-


-1900), Collection “Que sais-je?”, Paris, Presses universitaires
de France, 1963.

SEIXo, Maria Alzira (ed.), Análise Semiológica do Texto


Fílmico, Lisboa, Arcádia, 1979.

SENA, Jorge de, Metamorfoses, Lisboa, Edições 70, 1988


[Moraes, 1963].

SCHuLENBERG, David, The Keyboard Music of J.S. Bach,


New York, Routledge, 2006.

SILVA, V. M. Aguiar e, Teoria da Literatura, Coimbra,


Livraria Almedina, 2000 (1967).

SoARES, Bernardo, O Livro do Dessassosego, (Edição de


Richard Zenith), Lisboa, Assírio e Alvim, 2001.

SouSA, Isméria de, “Mito e Mito literário: Trajectórias de


Teorização no século XX” in Isméria de Sousa et allii (org.),
Cadernos de Literatura Comparada 5: Contextos de Moder-
nidade, Porto, Granito/ Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa, 2002, pp. 71-90.

ToDoRoV, Tzetvan, Introdução à Literatura Fantástica,


Lisboa, Moraes, 1977.

_________________, Teoria da Literatura I: Textos dos


Formalistas Russos, Lisboa, Edições 70, 1978.

492
NA TEIA Do PoEMA

TRoTIGNoN, Pierre, Heidegger, Lisboa, Edições 70,


Colecção Biblioteca Básica de Filosofia, 1982 [original
francês de 1965].

TYNIANoV, Yuri, “Da Evolução Literária” in ToDoRoV,


Tzetvan, Op. Cit., 1978.

VATTIMo, Gianni, Introdução a Heidegger, Lisboa, Instituto


Piaget, 1996 (10ªedição).

WoLF, Norbert, Still-Life, Cologne, Taschen, 2009.

SÍTIOS WEB

www. plato.stanford.edu/entries/plato-friendship/
[sobre Platão e a teoria platónica das ideias].

http://aaz-nj.blogspot.com
[Blogue Ecfrástico de Nuno Júdice]

http://www.henri-matisse.net/biography.html#fauvism
[página web oficial sobre o legado do pintor Henri Matisse].

http://www.interiorsforumscotland.com/page16.htm
[Robillard, Vallerie, “Image, Word and the Space Between” –
Conferência “Interior Design, Interior Tools”, Edinburgo, 21
de Agosto de 2008].

http://e-
archive.vanderbilt.edu/bitstream/1803/125/1/angenotsocialdsv
1n1.pdf
[Marc Angenot, “Social Discourse Analysis: outlines of a
Research Project”].

493
RICARDo MARQuES

http://sociocritique.mcgill.ca/Pdf/Angenot3.pdf
[Marc Angenot, “Que peut la littérature?” Sociocritique
littéraire et critique du discours social”].

http://www.litencyc.com/php/stopics.php?rec=true&uID=1229
[Verbete “Intertextuality” de Graham Allen in The Literary
Encyclopedia]

http://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1370&
context=clcweb
[Marko Juvan, “Towards a History of Intertextuality in
Literary and Culture Studies”, in CLCWeb: Comparative
Literature and Culture 10.3 (2008)]

http://www.lycos.com/info/vivaldi—vivaldis-concerto.html
[Metanálise de Artigos sobre Vivaldi e sua importância e
influência]

http://portugal.poetryinternationalweb.org/piw_cms/piw_html
/html/flash_player.html?mp3=../../files/32/9828_NunoJ_e_inte
r.mp3&title=Nuno J%FAdice interviewed by Michele
Hutchison
[Entrevista a Nuno Júdice sobre a escrita da sua poesia no
âmbito do Fesival de Poesia de Roterdão, em Maio de 2007.]

http://www.florilege.free.fr/toulet/les_contrerimes.html#1
[A primeira das contrarimas de Toulet]

“Texto Literário/Texto Não Literário”, de Carlos Ceia, E-


dicionário de Termos Literários, in
<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/T/
texto_literario_texto_nao_lit.htm> (acedido em Julho de 2008)

494
NA TEIA Do PoEMA

http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/4Sem_08.html
[ Fernando J. B. Martinho, “Depois do Modernismo, o quê?
o caso da Poesia Portuguesa”, Semear, nº5, Rio de Janeiro,
2000].

495
ENTREvISTA A NUNO JÚDICE

Realizada na FCSH a 4 de Janeiro de 2010

Ricardo Marques: o tema da morte é incontornável


na sua poesia, uma personagem importante que desde o
primeiro poema está lá. Lembro-me sempre de uma
conferência na Casa Fernando Pessoa onde justifica, a
propósito desta observação, que enquanto jovem sempre
conviveu de perto com gente mais velha, tendo inclusive
revelado que uma imagem que o marcou, em criança, foi
a de um homem moribundo deitado em sua casa, e a força
com que se agarrava aos ferros da cama. o que lhe seduz
mais na morte é o seu contrário, a vida e o instinto
humano de sobrevivência?

Nuno Júdice: Sim; a imagem que guardei desse


velho é no fundo que nós todos estamos condenados ao
naufrágio e como os náufragos se agarram até ao fim a
qualquer coisa que lhes permita manter à superfície, nós
também temos essa necessidade. A poesia é, para mim,
esse varão a que me agarro e que me mantém vivo. É
também um sinal dessa necessidade de permanecer, de
resistir.

RM: Já disse bastas vezes que o gosto pela leitura


se verificou desde muito cedo, mas lembra-se exacta-

497
RICARDo MARQuES

mente de que forma surgiu a poesia para si? Falo não só


do momento em que se apaixonou por certos autores, mas
sobretudo de quando se apercebeu que gostava de
escrever a sua própria poesia.

NJ: Isso foi muito cedo porque tinha oito anos


quando escrevi o primeiro poema. Foi um poema escrito
depois de ouvir dizer um poema (porque havia muita
poesia dita na rádio). Depois de ouvir um desses progra-
mas de poesia, o poema apareceu-me de repente, foi talvez
a única altura da minha vida em que tive inspiração…

RM: E lembra-se do teor, do conteúdo desse poema?

NJ: Sim, ainda tenho o poema; é uma coisa mais ou


menos clássica, com deuses, mitologia,…

RM: E era uma reflexão sobre o que estava a ouvir,


ou…

NJ: Não sei se era paráfrase, mas enfim, na altura já


tinha muito contacto com livros e também desde muito
cedo apareciam textos poéticos com os manuais
escolares, portanto essa relação foi bastante natural e
desenvolveu-se porque continuei sempre ligado a casas
onde havia livros e essa necessidade de ler.

RM: ovídio é um autor que, pelo que me foi dado a


perceber pelos seus textos, e também pelo blogue
anónimo em que assina com o nome do poeta romano,
lhe interessa em particular. De que forma acha que foi
influenciado pela sua poesia e, em geral, pela poesia
clássica, a que também dedica um irónico poema?

498
NA TEIA Do PoEMA

NJ: Bom, penso que foi em primeiro lugar de uma


maneira indirecta, através de Camões, que eu lá cheguei.
Depois foi também pela importância que o latim tinha no
ensino do português. Essa presença sempre foi uma coisa
que me chamou a atenção para a existência de uma
literatura que está na origem do nosso ritmo, da nossa
tradição. Ainda no liceu, nas aulas do Vergílio Ferreira
(porque ele constantemente referia Virgílio, a tragédia
grega, e todo esse tipo de literatura) e também na
faculdade porque a literatura clássica tinha uma presença
importante no ensino. ovídio veio um pouco através de
uma ida à Roménia, onde estive nos sítios por onde ele
também andou e onde esteve exilado. A Meditação sobre
Ruínas é um livro que nasceu um bocado do contacto
com esses lugares do ovídio. E também há outra coisa
que é muito importante na relação da minha poesia com
a cultura clássica e que tem a ver com a minha relação
com o inglês, com a poesia inglesa. É uma utilização de
uma gramática que vem um pouco não de uma
arbitrariedade, mas de um jogo de colocação de palavras.
Enfim, de toda a sintaxe latina.

RM: E no fundo está a falar não só de uma


influência formal mas também a nível de conteúdo, como
aquela poesia amorosa dos primeiros anos da escrita de
ovídio…

NJ: …E a relação com a natureza, com a poesia


bucólica.

RM: Ainda no que toca ao autor clássico, Herman


Fränkel, num conhecido livro sobre ele, intitula-o de “um
poeta entre dois mundos”, querendo assim provar que
está entre dois mundos – entre a contenção clássica e a

499
RICARDo MARQuES

exuberância romântica. Sinto, ao ler a sua poesia


diacronicamente, que começa por também ser um autor
imerso neste mundo romântico, e ultra-romântico até, e
que cada vez mais se aproxima de um universo mais
clássico, contido, depurado…

NJ: o Romantismo é uma coisa que é um pouco


equívoca quando aplicado à minha poesia porque é óbvio
que o universo dos primeiros livros nasce da relação com
o Romantismo alemão, sobretudo com Novalis,
Holderlïn, esse mundo nocturno, a proximidade com a
loucura, mas ao mesmo tempo isso é um pouco o cenário
para uma construção que é sempre muito racional, muito
lógica; nunca deixo o poema perder o norte…

RM: …a noção de poema…

NJ: Exactamente. E foi esse Romantismo que me


ajudou a construir esse universo, mas digamos que não
foi exactamente predominante, nem aquele que se
utilizaria para classificar a minha poesia mesmo nessa
primeira fase.

RM: Num poema bastante biográfico e simbólico


com que escolheu acabar a sua Poesia Reunida de 2000
(“Poema sobre uma antiga partitura”), bem como num
depoimento num colóquio em 1998 sobre ele parece
haver uma extensa referência a Ruy Belo. Poderia falar-
-me um pouco desta relação, também da influência deste
poeta?

NJ: Sim, esse poema é bastante simbólico porque é


um poema de 1967 e no fundo ele fala do ambiente da
Faculdade de Letras quando lá entrei, onde havia uma

500
NA TEIA Do PoEMA

série de escritores que eram uma presença constante, e


professores que escreviam também. o Ruy Belo era uma
figura um pouco mítica, um pouco pelo lado sempre
tímido…

RM: …um pouco como o Nuno Júdice…

NJ: …um pouco diferente, porque no fundo era


mais difícil entrar na relação com ele. E ao mesmo tempo
porque era alguém que já tinha por trás uma força que
obrigava a uma certa distância, de não nos aproximarmos
tão depressa. No entanto, como ele era amigo do Prof.
Cintra e do Luís Miguel Cintra, a minha relação com ele
também passou por aí. Eu não lhe mostrei nenhum poema
meu, mas o Luís Miguel mostrou e depois ele contou-me
a reacção um bocado perplexa que ele teve ao ler o meu
poema. Isso mostrou que havia uma distância entre as
duas poesias, que era qualquer coisa de diferente que eu
estava a fazer na altura. Mas é evidente que, na altura em
que ele publicou esse primeiro livro, Aquele Grande Rio
Eufrates, e com a continuação da publicação da poesia
dele, era uma poesia que estava muito próxima dos meus
temas e do meu universo, ainda que eu falasse de outras
coisas. Ele ensinou-me muito do ponto de vista da escrita
e da relação com o verso longo, e com o discursivismo.

RM: Não deixo de pensar, como já foi amplamente


estudado na sua obra poética, que dos livros dos anos 70
para os dos anos 80 se denota uma grande diferença tanto
a nível de conteúdo como no que diz respeito à estrutura
externa e mancha gráfica do poema, que se foi aproxi-
mando muito mais a formas fixas como o soneto e de
poemas não necessariamente mais líricos, mas essencial-
mente menos longos e exacerbados (com excepções,

501
RICARDo MARQuES

como a “Teia da Vida” de As Coisas Mais Simples). Sem


lhe pedir o impossível, isto é, racionalizar ao pormenor
esta tendência algumas décadas depois, concorda com
esta afirmação?

NJ: Essa relação com o poema breve é uma coisa


que é algo tardia porque eu precisei encontrar uma
fórmula própria, uma expressão própria para poder
regressar a essas formas canónicas exactamente pela
influência que elas podiam ter no meu próprio universo.
Se fosse muito depressa utilizar essas formas, esse
lirismo, talvez não tivesse encontrado a minha própria
expressão, porque há uns tópicos que se impõem de cada
vez que as utilizamos. A maior utilização dos sonetos foi,
penso eu, a partir dos anos 80 mas de qualquer maneira
nunca perdi a relação com o poema longo, até pelo
contrário. o próximo livro terá poemas bastante longos.

RM: Na antologia da Vísor, preparada e traduzida


para espanhol pelo poeta galego Vicente Araguas, a dado
momento este autor caracteriza-o como “surrealista ma
non troppo, que sem cair em automatismos, deixa que a
sua poética explore os sótãos mais obscuros da exis-
tência”. Revê-se nesta afirmação?

NJ: Há muitos críticos que falam de Surrealismo e


há surrealistas que tentam recuperar-me para essa tradi-
ção… Bom, claro que tudo é surrealista; é impossível
ignorar a importância do Surrealismo e desse imaginário
e, por outro lado, eu gosto muito da pintura surrealista,
em especial a de Dalí, um pintor de que muita gente se
lhe desconfia…mas é certamente uma das obras que me
marcou, juntamente com Delvaux, Magritte e Chirico
mais tarde. Não ando, portanto, muito longe desse

502
NA TEIA Do PoEMA

imaginário, mas onde me afasto totalmente é depois nos


processos, naquele esquematismo que me obriga a usar
determinadas fórmulas e sobretudo a não racionalizar o
mundo poético – é isso que me leva para outras zonas.

RM: Tenho a sensação que sobretudo a partir dos


livros dos anos 90 há uma ideia mais clara de percurso
dentro da organização de cada volume de poesia. Como
se processa este trabalho? Sei que tem sempre muitos
inéditos escritos e que por vezes o trabalho de orga-
nização de um livro é moroso. Facilmente encontra a
linha que une todos os poemas?

NJ: Não. Normalmente um livro nasce dos poemas


escritos ao longo de um ou dois anos e durante esse
período é evidente que há temas que são comuns,
principais e, portanto, cada livro tem uma dominante
temática. Ao mesmo tempo, isso aconteceu sobretudo
quando me comecei a preocupar em fazer livros mais
longos, sair daquele número dos trinta poemas que é o
habitual da poesia portuguesa e ir ao encontro daquilo
que é o livro inglês, mais longo. um livro mais longo
obriga a uma estruturação quase por capítulos; há uma
organização que aparece mais evidentemente. Se, num
livro de cem poemas, cada poema tiver a sua temática
completamente diferente do que vem a seguir é um pouco
uma colagem de coisas escritas sem uma relação entre si.
É por isso que a partir de 2000, nesta década, há uma
organização e uma estrutura que transparece mais.

RM: Aliado ao conceito de morte e renascimento,


penso que há, num certo grupo de poemas, uma tendência
para passar uma certa religiosidade pessoal, quase
temporal, e que muitas vezes se alia ao próprio fenómeno

503
RICARDo MARQuES

poético, como faz com muitos outros temas. Muitas vezes


essa religiosidade na sua poesia passa por caminhos
irónicos para se expressar (penso em “Exposição” ou
“Cristo e Madalena”). Neste contexto, a figura de Deus
é uma presença incontornável e penso num verso em
específico, já dos anos 70: “ouvi esta palavra: deus. Ela
surge em relação recíproca/com o poema de que eu
próprio faço parte”. Como caracteriza as relações entre a
sua poesia e a religião?

NJ: Bem, isso tem obviamente a ver com a minha


relação com o divino, com o sagrado, que todos temos.
A minha ruptura com a religião vem dos anos da
adolescência, da leitura do Sartre, da questão filosófica
que me afastou disso e também uma questão política. A
formação que eu tive faz com que tudo isso faça parte do
meu universo e portanto a rotura foi mais desencadear
um processo de interrogação. No fundo, a poesia é uma
interrogação sobre isso.

RM: o livro Corte no Ênfase é, quanto a mim, um


livro especial, por duas razões. Não só é um livro original
e artístico para o final dos anos 70, num fólio dobrado e
com um desenho, guardado numa capa, à espera de ser
cortado. É um livro, por outro lado, que vem na
continuidade dos precedentes, mas que me parece muito
auto-reflexivo em relação a memórias do passado
(lembro a passagem Imagens). Como surgiu este livro;
porque o retirou do cânone da Poesia Reunida?

NJ: Esse foi um livro que apareceu para integrar


uma colecção de então da Inova, em que todos os livros
eram acompanhados de um desenho e os poemas foram
escolhidos em função da imagem que iriam ter. Tirei

504
NA TEIA Do PoEMA

alguns livros dessa obra reunida, como o Voo do Igitur,


o Rimbaud Inverso, porque me pareceram um pouco
marginais ou que não iriam acrescentar muito aos outros,
ou ainda que pela sua natureza não adiantariam grande
coisa. Também era preciso não ultrapassar um certo
número de páginas e houve assim poemas que eu retirei
de alguns livros.

RM: Disse que no grupo de poemas intitulado


“Zoologia”, interessava-lhe mais explorar a projecção de
aspectos do ser humano nos animais, ou de certa forma
vê-los de uma forma antropocêntrica. É o mesmo
pressuposto dos poemas de “Botânica”; pretende pro-
jectar qualidades intrinsecamente humanas em elementos
da natureza?

NJ: Em toda a minha poesia há uma espécie de


animização da própria natureza, a projecção de
qualidades humanas nos objectos e, portanto, nos
animais, nas plantas, etc. Eu acho interessante manter
esses poemas a partir desse título porque são um projecto
que poderei um dia mais tarde recuperar e reunir. Isto
para dizer que no fundo há uma continuidade na escrita
da minha poesia; um livro não é uma unidade isolada,
também tem de ser visto em função do que vem antes e
do que virá depois.

RM: Recentemente surgiu uma nova subtemática,


com “Gramática”, que me parece bastante ligada ao
momento actual que atravessamos no que toca ao polé-
mico “Acordo ortográfico” (ao qual também já dedicou
um poema com este nome, entre a brincadeira e a ironia).
Como ocorrem estas subtemáticas na sua poesia? De
forma mais calculada ou por puro improviso ou
inspiração?

505
RICARDo MARQuES

NJ: No fundo é em função daquilo que vai


acontecendo. São temas que aparecem em jornais ou
noutros lados e que me levam a pensar e partir daí para
um poema…

RM: …até porque a poesia nunca deixa de ser essa


interrogação ao real…

NJ: Sim, é isso, manifestar-se sobre coisas deste


mundo concreto, caso da sociedade de consumo, a que
tenho várias referências. É uma atenção ao quotidiano
que nunca deixou de estar na minha poesia, mesmo no
tempo em que a poesia era, digamos, mais ampla.

RM: Isso faz-me lembrar um texto seu que recente-


mente descobri, sobre os filmes de Pedro Almodóvar.

NJ: Sim, o cinema sempre esteve muito presente na


minha poesia. Eu via muito cinema até aos anos 70.

RM: Mas não tão directamente como a pintura,


talvez mais implicitamente…

NJ: Sim, a referência é muitas vezes indirecta, mas


o mundo desses filmes está muito presente. Sobretudo
filmes de terror, toda aquela série dos dráculas, o cinema
gótico, mas também o Nouveau Cinema, o Godard, que
teve uma influência muito grande na minha poesia.

RM: Depois tem também uma relação com o


cinema português, com o argumento que escreveu para o
Noronha da Costa…

NJ: Sim, e também com o João César Monteiro, que


acompanhei muitas vezes em filmagens e trabalhei com

506
NA TEIA Do PoEMA

ele sobretudo no primeiro filme, Quem Espera por


Sapatos de Defunto Morre Descalço. uma das perso-
nagens é dobrada por mim.

RM: No que toca à manifestação da ekphrasis na


sua poesia, verifica-se que dá um claro privilégio ao
retrato de mulheres, anónimas e famosas, ao par (penso
em “Cristo e Madalena”) e ao colectivo (penso no poema
“Em Florença” sobre um quadro de ucello), bem como
às naturezas-mortas. Num texto recente, publicado na
Relâmpago sobre a interacção entre a literatura e as artes
plásticas, faz um arrazoado do modo como este se
processa na sua poesia, em que radica este seu interesse
em autores como Sena e Ashbery. De que modo um e
outro o influenciaram? Porquê falar poeticamente de
outros textos?

NJ: Penso que a poesia não é um espaço fechado.


Não é possível pensar o poema sem ter na cabeça todos
poemas que vêm antes. Quando eu estou a falar de uma
árvore, do sol ou da noite, esses objectos no fundo não
são meus, são de muitos outros que já falaram sobre isso.
Não há, assim, ingenuidade possível quando se escreve
e é a partir desse diálogo que a minha linguagem própria
e o seu universo próprio vai nascer. E a relação com a
poesia ou com o cinema é muito importante por causa do
ecrã e da tela. Quando se escreve nós vemos as palavras,
é um pouco como a pintura, onde temos a tela, esse sujar
as mãos na tinta. Escrever para mim também é sujar as
mãos nas palavras e é esse trabalho que eu também quero
que esteja visível no poema.

RM: E no que toca ao Sena e ao Ashbery? Eu


percebo a relação com ambos…

507
RICARDo MARQuES

NJ: Sim, o Sena é a relação directa com a imagem.


Aí não há qualquer disfarce; é essa descrição directa, é o
poema que nasce daquilo que ele está a ver. o Ashbery é
uma reflexão e é talvez até o que me interesse mais,
embora o Sena, do ponto de vista do processo, me tenha
influenciado bastante. Eu li o Metamorfoses pouco tempo
depois de sair [1963]. Depois, no caso do Ashbery, é um
livro que nunca se esgota, é essa interrogação teórica
sobre o que é escrever e sobre o que é a relação da
linguagem com a imagem.

RM: Ainda no que toca à relação entre as artes, o


que pensa da distinção entre poesia e pintura na frase de
Leonardo Da Vinci – “Painting is poetry that is seen rather
than felt, and poetry is painting that is felt rather than seen”?

NJ: Não sei se é a mesma citação que conheço, mas


uma vez que fui a Madrid, talvez em 1965, no fim do
liceu, e comprei os cadernos do Da Vinci, que sublinhei
abundantemente, e uma das frases que sublinhei é uma
em que ele diz que “a pintura é uma coisa mental”. Essa
frase sempre ficou na minha cabeça porque depois
transformei-a – “Se a pintura é uma coisa mental, a
poesia é uma coisa visual” e é no fundo essa relação da
imagem com o pensamento que transfiro para o poema.
Na minha poesia eu procuro sempre libertar-me do
abstracto, do conceptual, ou então quando os utilizo
procuro sempre associá-los a qualquer coisa de visual
para não perder o pé na realidade.

RM: As naturezas-mortas são uma das suas prefe-


rências em termos de poesia ecfrástica. No entanto, e
como é igualmente habitual no seu estilo de tratamento
poético, há lugar a uma deslocalização ou subversão

508
NA TEIA Do PoEMA

irónica de lugares-comuns e, como se vê em “Natureza-


-morta com letras”, aquilo que entendemos como
“natureza-morta” passa a ter um outro significado. o que
lhe seduz verdadeiramente neste tipo de pintura?

NJ: É a ausência do humano. É o lado apenas


decorativo; muitas vezes o poema pode funcionar como
esse jogo de decoração em que não há argumento – as
coisas aparecem, as imagens aparecem um pouco apenas
pela beleza que elas têm – há poemas em que isso é o
mais importante, mais do que a relação directa com
qualquer coisa.

RM: Porque deixou de actualizar o seu site de pintua


ecfrástica dedicado às mulheres? Mantém ainda o outro,
com que assina como ovídio?

NJ: Não, acabaram os dois. Cansei-me um bocado


desse universo, que é demasiado absorvente. É uma coisa
que obriga a ir quase todos os dias ou frequentemente e
estava um pouco a sentir-se escravizado e por isso
procurei libertar-me disso.

RM: Fiquei admirado, no decorrer do estudo dos


seus poemas, como estabelece diálogos tão estreitos com
a literatura ibero-americana, e com a pintura nórdica, de
que se revela um inesperado conhecedor. Normalmente
como se processa este trabalho de encontro entre textos?

NJ: Bom, por um lado, através das viagens. uma


das coisas que eu procuro sempre fazer é visitar museus
e acompanhar esse universo de cada país ou cidade onde
vou. Por outro lado, a minha relação com outras poéticas
vem dos convites que tenho para muitos festivais em que

509
RICARDo MARQuES

me encontro com outros poetas, e onde eu procuro


acompanhar não só o contemporâneo, mas também os
poetas que eles indicam que para eles foram importantes,
descobrir um pouco esses outros mundos, porque é uma
forma também de alargar o meu conhecimento. Eu faço
isso através de antologias, que ser uma forma muito boa
de acedermos a uma literatura ou à poesia de uma
literatura e para mim, no fundo, umas das coisas mais
importantes em relação à poesia portuguesa foram as
antologias da Portugália e durante todo esse período dos
anos 60 em que saíram uma série de antologias da grande
poesia portuguesa. Isso depois desapareceu. Agora
recentemente apareceu mais uma que me parece muito
importante e é uma óptima maneira de alargar horizontes
e descobrir novas formas, novos temas…

RM: Sim, porque, dentro da ekphrasis, por


exemplo, há coisas que todos os poetas gostam e outras
coisas que cada um vai buscar à sua maneira, porque
gosta e conhece…

NJ: Sim, por exemplo, quando se vêem essas


antologias ou se vai a um museu de uma cidade menos
importante que não seja Paris ou Londres, encontram-se
poetas ou pintores que ninguém conhece, que ficaram
naquela área. Mas é nessa pintura menor ou de segundo
plano que aparecem relações e descobertas que são muito
importantes.

RM: Hoje em dia vê-se mais como poeta ou


romancista? Acha pertinente a distinção, nos nossos dias,
entre os vários géneros literários?

NJ: Sinto-me muito mais à vontade na poesia. o


romance é uma forma que exige primeiro um tema (não

510
NA TEIA Do PoEMA

é fácil encontrá-lo) e depois uma duração, um trabalho,


que é relativamente longo e complicado para mim. A
poesia não; a poesia é uma forma natural que eu tenho
para me exprimir e portanto encontro facilmente essa
forma, mas é importante a ficção ou a prosa porque é uma
espécie de substituição de memórias que não tenho, de
fixar coisas que vivi ou que vi de outra forma.

RM: É poeta, e para além disso também fala critica-


mente sobre poesia. É-se melhor crítico quando se é poeta?

NJ: Acho que não. Acho que as duas coisas não


estão necessariamente ligadas, mas é evidente que no
caso da minha poesia, que é uma poesia em que há
constantemente uma reflexão sobre a palavra, sobre o
acto poético, isso leva-me de uma forma mais natural a
reflectir sobre o que outros escrevem. Ao mesmo tempo,
e dando aulas, obviamente que isso também entra na
matéria das minhas disciplinas. A única vantagem que um
poeta pode ter em falar de poesia é na atenção que tem a
certos pormenores, para a sensibilidade da harmonia, para
certos jogos de pensamento. É mais em relação a
pormenores do que ao todo do acto poético.

RM: Nunca pensou em escrever para crianças, como


o fizeram autores da sua geração (penso em Manuel
António Pina)?

NJ: Já fiz duas ou três coisas pequenas, publicadas…

RM: Já há muito tempo? Desconhecia por completo.

NJ: Não. Foi uma coisa com a Graça Morais, outra


que fiz para a Câmara de Lisboa. São contos, mas para

511
RICARDo MARQuES

mim a dificuldade é que esse já é outro exercício: eu não


consigo separar o escrever para crianças do escrever. Ter
o destinatário infantil é para mim um bocado reduzir o
que é a escrita.

RM: Então acha que é uma exigência diferente, ter


esse público à espera, esse horizonte de expectactiva, de
certa forma?

NJ: Evidentemente que eu escrevo pensando nisso,


não tanto em relação a temas mas usando uma linguagem
acessível, mas procuro também escrever textos que não
ficam apenas nesse público infantil, que possam também
ser lidos por um leitor adulto.

RM: Para terminar, como vê o actual panorama


poético em Portugal? Recentemente manifestou, por
exemplo, num artigo do JL, o seu interesse pelo grupo de
jovens poetas que participaram nos números da revista
Criatura, e acaba de falar de “lirismo e modernidade” na
poesia contemporânea.

NJ: Este é talvez um momento de repouso. Se me


perguntarem um nome da poesia actual, da poesia mais
recente, desta primeira década do século, que se tenha
imposto, onde se note uma diferença, algum peso já e
uma voz própria, ser-me-ia muito difícil estar a dizê-lo.
Falei da Criatura porque já há ali uma diversidade de
vozes que tem uma individualidade própria, mas que
ainda não encontrou também uma identidade. É mais um
grupo, (e isso apesar de tudo parece-me importante,
porque é dos grupos que nascem os poetas), mas o
processo ainda está em curso e esperemos que as coisas
mudem.

512

Você também pode gostar