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TOMACHEVSKI, Bóris. Temática. In: TOLEDO, Dionísio (Org.).

Teoria da
Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1976.

B . '1'01\fACHEVSKI

TEMATICA

A ESCOLHA DO TEMA

N�o deco·,.•·r�·>.r' (� O pro-cesso &.rtlshco1 as frases particulares com-


' ·

. • .

binam.,.se entre si segundo seu sentido e N�aliza.rn. uma certa cons-


trução na qual se \ln•cm através df� uma idéia ou tmna comum. As


significações dos elementos particulares da obr a constituem uma
unidade que é o tema ( aqni]o de que se fala) . Pode1nos também fa­
lar do tema de tüda a obra ou do i:..ema de suas partes. Gada' obra
escrita numa Hngua pro-vid8, · de sentido possui um tema. A obra
transracional é a única a não ter um tema e por isto n�o passa de

um exercício · experimental, um exercício ele laboratór.io para certas


escolas poéticas.
A obra literária é dotada de uma. unidade quando construída
a partir de um tema linico q u e se desenvolve no decorrer .da obra.
Por eonseguinte o processo literário organiza-se em torno de
,

dois momentos importantes : a escolha do tema e sua; elaboração .


.A escolha do tema depende estreitamente da aceitação que en.
contra junto ao leitor� A palavra. " leitor" designa. em geral um
170 B. Tomachevski
círculo bastante mal definido de pessoas, do qual muitas vézes, o
p róprio escritor não tem nm conhecimento preciso.
A figura do leitor está sempre presente na c onsciência do es­
c ritor, embora abstrata, exigindo o esforço deste para ser o leitor
de sua obra. Esta imagem do leitor pode ser formulada num en­
dereço clássico, como aquele que eneontramos numa das últimas
est rofes de Engênio Onc:g·uin :

Seja quem for, men leitor,


Amigo ou inimigo, eu quero de você
Despedir-me afetuosamente.
Adeus. Seja o que for que procura em mim,
Nestas estrofes indolentes :
A recordação de uma em oção,
Um refrigério a pós o · trabalho,
Quadros vivos, palavras de esp írito
Ou erros de gramática,
Cuide Deus para que neste livro,
Para o divertimento, para o sonho,
.Para o coração, para a polêmica dos jornalistas
Você encontre nem que ·seja uma migalha ;
E agora, separemo-nos, adeus.

Esta preocupação com um leitor abstrato traduz-se na noção


de " interesse".
A obra deve ser inte ressante. A noção de interesse guia o autor
já na escolha do tema. Mas o intere8se pode tomar formas bastante
variadas. As preocupações de ofício são familiares ao escritor, aos
leitores mais próximos, e p ertencem aos móveis mais fortes do de­
senvolvimento literário . A aspiração a uma novidade profissional,
a uma obra -prima, foi sempre o traço distintivo das maneiras e
escolas literárias mais p rogressistas A experiência literária, a tra­
.

{lição à qual se refere o escritor, revelam-se-lhe como uma tarefa


!egada por seus antecessores, tarefa cuja realização exige toda sua
. atenção. Por outro lado, o interesse dó leitor neutro, estranho aos
problemas do ofício, pode tomar formas diversas, p artindo da exi­
gência de uma qualidade puramente recreativa (satisfeita pela li­
teratura ' ' de passatempo ' ' de Nat Pinkerton a Tarzan ) à combi­
nação de interesses literários com q_úestões de interesse ger.al.
. 171

Neste sentido, o tema atual, isto é, aquele que trata dos proble­
mas culturaiS do momentO, satlSlaz o leitor.
Assim, uma imensa literatura jornali::;tica acumulou-se em tor­
no de cada. romance de Turguemev, interessada menos pela o bra
de arte e mais pelos problemas de cultura ger·al, e sobretudo, pelos
problemas sociaiS. Esta literatura. jornalística era inteuamente le­
gitlma enquanto resposta ao tema . escolhido pelo romancista.
Os temas da Revolução, <lli vida revolucionária são atuais, con­
temporâneos, e penetram em toda a obra de Pilniak, Ehrenburg e
de outros prosadores e poetas como .Maiakovsk.1, Tikhonov, Asseev.
A forma elementar da atualidade nos é dada pela conjuntura
quotidiana. Mas as obras de atualidade (o e� bilhete'', as estrofes
do cancioneiro) não sobrevivem a este interesse temporário quc as
suscitaram. A importância destes temas é reduzida porque não são
adaptáveis à variedade dos interesses quotidianos do público. In­
versamente, quanto mais o tema for importante e de um interesse
durável, mais a vitalidade da obra será assegurada. Repelindo as­
sim os limites de atualidade, podemos chegar aos inter�es univer­
sais (os problemas de amor, da morte) que, no fundo, permanecem
os mesruos ao longo de toda a história humana. Entretanto, estes
temas universais devem ser nutridos por uma matéria concreta e
se esta matéria não está ligada à atualidade, colocar estes proble­
mas é um trabalho destituído de interesse.
Não é necessário compreender a atualidade como uma repre­
sentação da· vida contemporânea. Se, por exemplo, o interesse pela
revolução é de atualidade hoje, isto significa que o romance histórico
retratando uma época de movimentos revolucionários, ou o romance
utópico que descreve a revolução numa situação fantástica, podem
ser atuais. Relembremos aqui, por exemplo, a série de peças de teatro
da época das revoluções apresentadas nos palcos russos ( Ostrovski,
Alexis Tolstoi, Tchaev, etc. , ao mesmo tempo que obras de Kosto-
. marov ), · que mostram que os temas históricos referentes a uma épo­
ca, mesmo que distantes, podem ser atuais e suscitar talvez maior
interesse do que poderia fazê-lo a representação da vida contempo­
rânea. Enfim, é preciso saber que os aspectos desta vida são repre­
sentáveis. Nem tudo que é contemporâneo é atual ou provoca o
mesmo interesse.
Assim, as particnlaridaoP.s da época que assiste à criação da
obra literária são determinantes no que concerne ao interesse pelo
tema. Acrescentemos que a tradição literária e as tarefas propostas
por ela têm um papel preponderante entre estas condições histó-
r1cas.

172 B. Tomaçhevski

Não -é suficiente escolher um tema interessante. É p reci so sus­


tentar o intc re..ssc estimular a ate;n0ão do leitor O interesse atrai,
, .

a atenção retém. .

U e lemento emocional contribui muito para cativar a atenção.


Não é sem razão que, segundo sua característica emocional, classifi­
cam-se em comédias e tragédias as peças destinadas a agír dire tamen­
te .sobre um grande público. Buseitar uma · emoção é o m elhor meio
par.a cativar a atenção.
O tom frio do relator que constata as etapas elo movimento
revolucionário não é suficiente. É preciso simpatizar, indignar-se,
rejubilar-se, revoltar-se. Dessa maneira, a obra torna-se atual no
preciso sentido do termo, porque age sobre o leitor .acordando nele
emoções que dirigem sua vontade. A maioria das obras poéticas é
construída a partir da simpatia ou antipatia percebida pelo autor,
a partir de um julgamento de valor, transferida p ara o material
proposto à nossa atenção. O herói virtuoso (positivo) e o malévolo
(negativo) representam uma. expressão direta deste elemento valo­
rativo da. obra literária. O leitor deve ser orientado na sna simpa­
tia, em suas emoções.
Eis por que o tema da obra literária é habitualmente colorido
pela emoção, proYoca então um sentimento de indignação ou de
simpatia e provocará .sempre um julgamento de valor.
Por outro lado, é preciso não esquecer que o elemento e�ocioual
encontra-se na obra, que não é introduzido ·pelo leit or. Kão se pode
debater o caráter positivo ou neg-a.tivo de um personagem (por
exemplo, .Petchorine de Lermontov ) É p reciso descobrir a · relaçã.o
.

emocional contida na obra (mesmo que esta não seja a opinião pes­
soal do autor ) . Este colorido emocional, que . fica evidente nos gê­
neros literários primitivos (por exemplo, no rqmance de aventuras1
onde a é recompensada e o vício pun ido ) , pode ser muito
virtude
fino e complexo nas obras mais elaboradas e por vezes tão distorcida
que não a possamos exprimir por uma simples fórmul a. I�ntre­
tanto, em geral, é o momento de simpatia que guia o interesse e
m antém a atenção, obrigando o leitor a participar do desenvolviA
mento do tema.

FÃBULA E 'rR.AMA

O tema apresenta uma certa unidade. É constituído de pequeA


nos elementos temâtico.s dispostos numa certa ordem.
'
Tematu;a
.
173

A disposiçã o destes elementos temáticos faz.se de acordo com


dois tip os principais : obedecendo ao pri ncípio de causalidade e ins�
crevendo·se numa certa cronologia ou expondo.se sem consideração
,

temporal numa sucessão que não obedece a nenhuma causalidade


interna. No primeiro caso, temos obras " eom trama H ( novela ro­ ,

mance, poema épico) , no segundo as obras sem trama, descritivas


( poesia descritiva e didática, lírica, escritos de vi agem : Cartas de
um lliajante Russo de Karazine, .A Fragata Pall as de Gontcha­
rov, etc. ) .
É preciso sublinhar que a. fábula não só exige um índice tem·
poral, como também um índice de causalidade.
A viagem pode ser relatada como uma sucessão cronológica,
mas se nos limitamos a uma. narração das impressões do viajante ,
em lugar de apresentar suas aventuras pessoais, então temos apenas
uma narração sem uma trama.
Quanto menos aparece a causa, mais o tempo tem importã,neia.
O enfraquecimento da intriga transforma o romance com. trama nu­
ma crô nica, numa descrição no tempo (Os Anos de Jnfáncia de Ba­
g1·ov M'enino, de A:ksakov).
Detenhamo-nos sobre a noção de fábula. Chama-se fábula o
conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunica­
dos no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de urna maneira
pragmática, de acordo com a ordtm natural, a saber� a ordem cro ­
nológica e causal dos acontecimentos, independentemente da ma­
neira pela qual estão dispos tos e intro duzidos na obra.
.A fábula opõe se à trama que é constituída pelos mesmos
-

acontecimentos, mas que re.:;peita sua ordem de ap ariç ão na obra


e a seqüência das infoi·mações que se nos destinam1•
A noção do tema é uma noção sumária (!Ue une a matéria ver­
bal da obra. A obra inteira pode ter seu tema, ao mesmo tempo
que cada parte da obra. A decomp osição da obra consiste em· isolar.
suas partes caracterizadas por uma. un ida de temática específica.
Assim, a novela de Pushkin, O 1'iro de Pistola, pode ser decompos­
ta em duas estóri as : a dos encontros do narrador com Sílvio e o
Conde e a do conflito entre Sílvio e o Conde. Por seu turno, a
primeira decompõe-se na estória da vida · no regiment o e na estória
da vida no campo ; e na segunda , separemos o primeiro duelo de
Sílvio com o Conde, do seu segundo encontro.

1 Na realidade, é o que se passou; a trama e ttlmo o


..

a fábula
leitor toma conhecimento dele.
174 B. Tomachevski

Através desta decomposição da obra em unidades temáticas,


chegamos enfim às partes indecompostas, até às pequenas partículas
do material temático: ' ' A noite caiu'', ' ' Raskolnikov matou a ve­
lha", " o herói morreu", "uma carta chegou", etc. O tema desta
parte indeeomposta da obra chama-se um motivo. No fundo, cada
proposição possui seu próprio motivo.
Devemos fazer aqui algumas ressalvas no que eoncerne ao ter�
mo " motivo " : em poética histórica., em estudo comparativo das
tramas variáveis seu emprego difere sensivelmente. daquele intro­
duzido aqui, ainda que os dois sejam geralmente definidos da mes­
ma maneira. No estudo comparativo, chama-se motivo a· unidade
temática que encontramos em diversas obras (por exemplo, o rapto
da noiva, os animais que ajudam o herói a cumprir suas tarefas,
etc . ) . Estes motivos são inteiramente transmitidos de um esquema
narrativo a outro. Importa pouco para a poética comparativa que
os possamos decompor em motivos menores. Importa encontrar
sempre no quadro do gênero estudado estes motivos inalterados.
Conseqüentemente podemos evitar no estudo comparativo a palavra
' indecomponível " e falar de elementos que permanecem indecom­
'

postos durante a história literária e conservam sua unidade no


decorrer de suas peregrinações de obra para obra. Com efeito, nu­
merosos motivos provêm da poética comparativa e assim permane­
cem do ponto de vista da poética teórica.

Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático


da obra. Nesta perspectiva, a fábula aparece como o conjunto dos
· motivos em sua sucessão cronológica e de causa e efeito ; a trama
aparece como o conjunto destes mesmos motivos, mas na sucessão
em que surge dentro da obra. No que concerrie à fábula, pouco im­
porta. que o leitor tome conhecimento de um acontecimento nesta
ou naquela parte da ob-ra e que este acontecimento lhe seja comu­
nicado diretamente pelo autor, através do eserito de um personagem
ou através de alusões marginais. Inversamente, só a apresentação
dos motivos participa da trama. Um fato qualquer não inventa­
do pelo autor pode servir-lhe como fábula. A trama é uma cons­
tru�ão inteiramente artística.
Os motivos de uma obra são heterogêneos. Uma simples expo­
sição da fábula revela-nos que certos motivos podem ser omitidos
sem, entretanto, destruir-se a sucessão da .narração, enquanto que
outros não o podem, sem que sej a alterada a ligação de causalidade
·que une os acontecimentos. Os motivos que não podemos exclui.T
são chamados de motivos associados ; os qne podemos excluir sem que
Temátiça 175

anulemos a sucessão cronológica e causal dos acontecimentos s�o


os motivos livres.
Só os motivos associados importam p.ara a fábula. Mas no
enredo são sobretudo os motivos livres que têm uma função domi­
nante e determinam a construção da obra. "Estes motivos marginais
(as minúcias, etc.) são introduzidos devido à construção artística
da obra e são portadores de diferentes funç�es às quais voltare­
mos mais adiante. A introdução destes motivos é determinada nu­
ma larga medida pela tradição literária e cada escola sé caracteri­
za por um repertório de motivos livres, enquanto que os motivos
associados, geralmente mais vivos, aparecem sob a mesma forma nas
obras de diferentes escolas. É certo que as tradições literárias par­
ticipam consideravelmente do desenvolvimento da fábula (por �xem­
plo, a novela da década de quarenta do século xrx caracteriza-se
por uma fábula que narra os males de um pequeno funcionário :
O Capote de Gogol, As Pobres Gentes de Dostoiewski ; a da década
de vinte, pela fábula bem conhecida do amor infeliz de um europeu
por uma estrangeira : O Prisioneiro do Cáucaso, Os Ciganos de
Pushkin ) . Êste fala em sua novela O Mercador de Ataúdes da tra-
dição literária dos motivos livres : .

" Amanhã; exatamente ao meio�dia, o fabricante e suas filhas


saíram pelo portão da casa comprada -recentemente e foram até o
seu vizinho. Não descreverei o cafetã r11sso Ad-ria.no Prokhoro-
vitch, nem os vestidos à européia de Akulina e D�ria, afastando-
,

me então do uso consagrado pelos romancistas de hoje. Entretan­


to, não creio supérfluo indicar que as duas moGas
. haviam colocado
'

os pequenos chapéus amarelos e sapatos vermelhos, o que faziam


apenas em ocasiões solenes ''.
Aqui a descrição do hábito é dada como um motivo livre tra­
dicional para esta época ( 1830).
Entre os motivos livres, podemos distin,guir uma classe parti­
cular de motivos introdutórios que exigem outros motivos' suple­
mentares. Assim·, a situação que consiste em dar uma tarefa ao
herói é caracterís.tica do gênero " conto ". Por exemplo, o rei quer
desposar sua própria filha. Para evitar o casamento, a moça encar­
rega-o de missões impossíveis. Ou então é o herói quem recebe a
filha do rei em casamento. Para evitar este casamento odioso, a
filha do rei o encarrega de missões à primeira vista irrealizáve is ( cf.
em Pushkin, O C011to de Balda.). Pa-ra desembaraçar-se de seu cria­
do, o sacerdote pe de-lhe que cobre as dívidas do diabo. Este mo­
tivo de missões precisa ser sustentado pela narração concreta das
próprias missões e introduz a narração eoncernente ao herói
.
176 B. Tomaçhevski

que é o seu agente. O mesmo se dti no caso de o motivo servir como


retárdamento da ação. Em As Mil e Uma Noites, Sheherazade re­
tarda a execução que a ameaça contando algumas hist6rias. O mo­
tivo da narração é um procedimento que serve para introduzir no­
vos contos. Tais são os motivos de perseguição nos romances de
aventuras, etc. Habitualmente, a introdução de motivos livres na
novela é apresentada como o apoio do motivo introdutóri o ; este
último sendo um motivo associado, é inseparável da fábula.
É preciso classificar por outro lado os motivos segundo a ação
objetiva que eles d escrevem
.

O desenvolvimento da fábula é habitualmente conduzido gra­


ças à presença de alguns personagens ou heróis ligados por inte­
resses comuns ou outros motivos (por exemplo , o parentesco). As
relações mútuas dos personagens num dado momento constituem
uma situação. Por exemplo, o herói ama a heroína, mas a heroína
ama seu rival. As ligações são : amor do herói pela heroína e o
amor da heroína pelo rival. A situação típica é a que contém li­
gações contraditórias ; os diferentes personagens querem modificar
esta situação de várias maneiras. Por exemplo, o herói ama a he­
roína e é amado, mas os pais impedem o easamento. O herói e .a
heroína aspiram ao casamento, os pais aspiram à separação dos
heróis. . A fábula representa a passagem ele nma situação à outra.
Esta passagem pode ser produzida graças i\ introdução de novos
personagens ( a situação se torna complexa ) , desaparecimento de
antigos personagens (a mol"tc do rival) ou à modificação da liga-
çao.
-

Os motivos modificadores da situação chamam-se motivos dinfl.�


micos e os u5.o-modificadores, estáticos. Tomemos por exemplo a
situação anterior ao fim ela novela de Push1dn, A Senhorita Aldeã :
Ale.xis Berestov ama .Akulina. O pai de Alexis obriga-o a desposar
Lisa Muromskaia. 1\ão sabendo que Akulina e Lisa são um único
personagem, Ale:xis resiste ao casamento imposto por seu pai. Ele
parte para e:xplicar�se com Muromskaia e reconhece Alrnlina em
Lisa. A situação está modificada : as prevenções de Alexis contra
este casamentq caem. O motiso do reconh ecimento de Akulina em
·
·

Lisa é um motiYo dinâmico.


.

· Os motivos livres são habitualmente estáticos, mas nem todos


os motivos estáticos são livres. Suponhamos que o herói tivesse
necessidade de 1.1m revólver para a conclusão de um assassinato
necessário à fábula. O motivo do revólver, sua introdução np c.ampo
visual do leitor é nm motiYo estático! mas ao mesmo tempo asso-
Temática 177

ciado, porque não se poderia cometer o assassinato sem ele. Veja­


mos, por exemplo, A Filha sem Dote de Ostrovski.
As descrições da nature1.a, do lugar, da situação, dos persona­
g€ms e de seus caracteres são motivos tipicamente estáticos ; os fa­
tos o gestos do herói são motivos tipicamente dinâmicos.
Os motivos dinâmicos são centrais ou motores da fábula. In­
versamente, acentuam-se por vezes no enredo os motivos estáticos.
Podemos facilmente · distribuí-los conforme sua importância
para a · fábula. Os motivos dinâmicos tomam o primeiro lugar, se­
guidos dos preparatórios, dos determinantes da situação, etc. A
comparação entre uma exposiÇão condensada e uma exposição mais
frouxa da narração demonstra-nos a importância tomada por. um
motivo na fábula.
Podemos caracterizar o desenvolvimento da fábula como a pas­
f::,(.g(�Ir.t de uma situação para outra2, sendo cada uma caracterizada
pe!c conflito de interesses, pela luta entre os personagens. O de­
senvolvimento dia.I éHco da fábula é análogo ao desenvolvimento
do p rocesso social e histórico que apresenta caãa novo estado his­
tórico como o rP..sultado de um conflito de classes sociais no estado
-precedente, e ao m.esmo tempo como o campo em que se chocam os
interesses de grupos sociais qne constituem o regime social pre­
sente.
Estes intere�ses contraditórios e a luta entre os personagens
são seguidos pelo reag1:upa.mento destes úl ti mos e pela tática de
cada grupo em suas ações
- . contra um ontro. O de�envoJvimento de
ação. o conjunto de motivos que a carac'r<'rizam chama-se intriga
(própria sobretudo à fo!'ma d:.a.mática) .
O desenvolvimento da intriga (ou, no caso de um reagrupa­
mento complexo c1e personagens, o de�envolvimento das intriga!i
paralelas )} conduz ao desaparecimento €lo conflito on à criação de
uovos conflitos. Habitualmente, o final da ft'tbu1� é repres�ntado
por 1m111. situa�ão em q11e os conflitos P-Stão suprimidos e OR .inte·
n�ses reconcili::tdos. A situação de conflito suseita 1lm movimeuto
dramático, porque uma coP.xistência prol on gad a de dois princípios
opostos não é possív�l, � um aos clois devel'á snpP.rpor-se. Ao con­
tr:lrio, a. situação de l ( 1�econeiliação" não a.carreta um no,�o mo-

2 Também na novela psicológica, onde a sé rie de persQnagens e suas


relações são substituídas pela estória interior de um único personagem.
Os motivos psicológicos de suas ações, os diferentes lados de sua vida
espiritual, seus Instintos, suas paixões, etc., têm a função dos persona­
gens habituais. Podemos generalizar neste sentido tudo o que foi dito
e tudo o que se dirá.
178 B. Tomathevski

vimento, não desperta a aten�ão do leitor; porque tal situação apa­


rece no final e chama-se desfecho. Assim, os antigos romances mo­
ralistas iniciam por uma situação na qual a virtude está oprimida
e o vício triunfa (conflito de ordem moral) , enquanto que, no des­
fecho, a virtude é recompensada e o vício punido . Por vezes, ob­
servamos uma sitnacão equilibrada no início da fábula (tipo � ' Os
Heróis viviam placi damente . Repentinamente aconteceu, etc. ").
Para colocar em a�ão a fábula, introduzimos motivos dinâmicos que
destroem o equ ilíbri o da situação inicial. O conjunto dos inotivos,
que viola a imobilidade da situa�o inicial e provoca a a�ão, cha­
ma-se nó. Habitualmente o nó determina todo o desenrolar da fá­
bula e a intriga r�ilnz-se i\s vat·iar.ões dos motivos nrincipais intro­
dn7.iilos pelo nó. 'F.Rhl� var iaQões chamam-se perip écias (a passagem
il.e uma sitnacão à outra) .
Quanto mais os conflitos que caracterizam uma situação são
complexos e os interesses dos personagens opostos, mais a situação é
tensa. A tensão dramática tanto mais aumenta quanto mais se apro­
xima o desfecho de uma situação. Esta tensão geralmente é obtida
pela preparação de8te desfecho. Assim, no romance de aventuras
estereotipado, os adversários que querem a morte do herói estão
sempre em superioridade . Mas, no último minuto, quando tal mor­
te torna-se iminente, o herói f1ea Sttbitamente livre e as maquina:.
ções desmoronam-se. A tensão aumenta graças a esta preparação.
A tensão chega a seu ponto culminante antes do desfecho. Este
ponto culminante é geralmente designado pela palavra alemã Span­
n-ung. Nesta construção dialética da fábula mais simples, o Spannung
aparece como a antítese (sendo o nó a tese, e o desfecho, a síntese) .
O material da fábula forma a.
trama ao passar por diversas
etapas. A situação inicial exige uma introdução narrativa. O relato
das eircunstâncias que determinam o estado inicial dos persona­
gens e suas relações chama-se exposição. Uma narração, porém, não
se inicia forçosamente pela exposi�ão8•
No caso mais simples, quando o autor inicialmente nos faz co­
nheeer os personagens participantes da fábula, temos o processo de
uma exposição direta. Mas o exórdio toma também, por vezes, uma
outra forma que conviria chamar de exórdio ex-abrupto: o relato
inicia-se pela ação já em desenvolvimento, é apenas com o desen-

i
3 Do ponto de vista da disposi<}� o do material narrativo, o começo
da narraç.ão chama-se exórdio, e se>u fim, final. O exórdio pode não con­
ter nem a expo5idio. nem o nó. Da mesma maneira, o final pode nãq; · .
coincidir com o dcRft:'cho;
179

rolar que o autor nos dá a. conhecer a situação inicial do herói. I'\.fes­


tes casos, temos o processo de uma �xposição retardada. Este retar�
damento da exposi�ão dura por vezes um longo tempo : a introdu­
ção dos motivos que constituem a exposição varia sensivelmente.
Por vezes, compreendemos a situação graças a alusões marginais.
É a soma destas anotações in cidentais que noo dá a imagem defini­
tiva. Nestes casos não temos . um processo de exposi�ão no sentido
,

exato da palavra � não existe parte narrativa ininterrupta onde


seriam reuni dos os motivos da exposição .

}tas, por vezes, ap6s ter descrito um aeoniecime:nto que não


sabemos situar no esqu em a geral, o autor explica-o (s eja em inter­
venção direta, seja através da fala de um personagem ) por uma
exposição, isto é, por um relato sobre o que já foi contado Esta .

transposieão de exposição representa um caso p articular de def<>r­


mação temporal no desenvolvimento da fábula. . ·
l!lste ret ardament o da exposição pode ser prolongado até o
fim : em toda a narra�ão, o leitor é mantido na ignorância de cer­
tos detalhes n ecess ários à comp reensão da ação Habitualmente,
.

esta i gnorância do leitor eorresponde no relato ao desconheeimen�


to destas circunstâncias, do qual também p artici pam o gr upo it::ti­
cial de personagens, isto é, o leitor é in formado unicamente do
que é conhecido por um certo personagem. Esta circunstância ig�
norada é c omunicad a no desfecho. O desfecho · que inclui elementos
da exposi.-.;ão e que representa o esclarecimento em torno de tod as
as peri pé cias conhecidas desde o exposto precedente, chama-se · des-
fecho regressivo. Suponhamos que o leitor àe A Senhm·ita Aldeã,
. .

assim como Alexis Berestov, não conheGa a identidade de Alwlina


e . de Lisa :M:uromsltaia. Neste caso, a informação que o desfecho nos
daria sobre esta id enti dade teria pos suído 1.11na fôrça regressiva,
J

isto é, nos t eria. conduzido a uma nova e verdade ira compreensão




·

de todas as situa�ões precedentes. Assim é a constru ção de 4 Tcrn�


pcstacle, novela extraída da coleção Na:rrações do Falecido Ivan Pe�
trom�tch Biclkine, de Pushkin. ·
·

1<Jste retardam en to da exposição é habitualmente i ntroduz ido


como um ('Onjunt o complexo de segt·edos. São possíveis as seguin­
tes combinações : o l eitor sabe, os personagens não sabem ; uma par­
te dos personagens sabe, outra parte não ; o lei tor e nma parte dos
person a g-en s llão sabem ; · ninguém sabe. a verdade é descoberta por
aca�o ; os personagens �ahem. o leitor não Rabe.

ll�stes segredos podem dominar a narraçào inteira ou apenas


abarcar certos motivos. Neste caso, o mesmo motivo pode figurar
muitas vezes na construção da trama. Tomemos o seguinte proce-
180 JJ. Tomtdchevski

dimento, próprio do rom.e nce : o filho de um dos personagens foi


raptado tempos antes que se inicie a s.�ão ( primeiro motivo) . Um
,

n ovo personagem aparece e compreendemos que ele foi edncad.o


nu m a fam ília que não era a sua e não conheceu seus pais (segundo
motivo ) . Mais tarde. conhecemos, graGas a uma confrontação de
datas c ClrmmstancHts on atraves
· ... ·

. I"
� 1c o mot',1vo ' ' sma -
arou1 et
o, ,
traços de beleza, etc. - que a cri.a.nça. criada funde�se com o outro
· ,

herói. Estabelecemos. desta maneira, a identidade do primeiro . e


rlo segn n d o motivo. �sta rP.peti<}ão do motivo sob 11ma forma mo­
dificacla cm·arteriza o modo de construção da trama em que os
f:lem entos da fábula não são introduzidos ·n a ordem cronol6giea na­

tural. O motivo repet.iao é ge-ralmr:nte o ÍndiM aPsta relação pro­


posta. pela fábula.. en tre as partes do esquema composicional. As�im,
�e o amulP-to é o sinal de reconhP.�imento n o exemplo eitado ant�rior­
mente, " o reconbP.cimP-nto na criança pr.rdida", então .o motivo
de�te srmúeto acom panha tan to o relato do desaparecimento da
r.ris.nç.a qnanto a biografia do novo personagem. (Ver Os Inocentes
C1t,lpados de Ostrovski.)
As inversõí'\s tempora.i� d a narração são posB1ve-is graças à li­
gagã.o que os moti vos f\StabPlecem entre as part.es4. Não só a e:sr.posi-·
cão, mas llma parte qualquer d.a fábula) pode ser con"h�cida do
leitor mef-lrno depois de este último tE>r tido conhecimento do q11e
se passou em seguida.

A . exposição sucessiva de uma grande parte dos acontecimen­


tos, tendo precedido a estes 110 decorrer dos quais esta exposição
é introduzida, chama-se Vo-rgeschichte. A exposição retardada é
· uma forma comum da Vo,rqesch-it.:hte, assim co.mo a biografia de
um novo personagem introduzido numa nova situação. Pod emos

encontrar numerosos exemplos nos romances de Tu:rgueniev.


Um caso mais raro é o Nachgeschichte, o relato do que se pas­
,

sa ulteriormente, e que é inserido na narração antes que os acon­


teeimentos preparatórios desta si tu ação sobrevenham. .A. Nachge8-
chichte toma por vezes a forma de nm sonho fatídico, de uma pré­
dição, de suposições mais ou menos justas acerca do futuro.
o· narrador é importante no easo do desenvolvimento indireto

·- --

4 Quando o motivo é repetido mais ou . menos freqüentemente e so­


bretudo auando é livre isto é, exterior à fábula, fala-se de um leitmotiv.
.

Assim, alguns personagens que aparecem sob diferentes nomes no de�


correr da narração (disfarce), são acompanhados por um motiYo cons­
tante, a fim de que o leitor possa reconhecê-los.
'femátiça 181

da fábula, porque a iutrodução das diferentes partes da trama


decorre do earáte r da n�u·ração.
.

O narrador pode diferir segundo as obras : a narração p ode


ser apresentada objetivamente, em nome ·a o autor, como uma sim­
ples informação, sem que ae nos explique como tomamos conheci­
mellto destes aconteci:qJ.entos (relato objetivo) ou em: nome do nar�
rador, de uma certa pessoa · bem definida. Por vezes, este narra­
dor é introduzido como um terceiro informado por outros perso­
,

nagens ( o narrador das novelas de Pushlün O Ti1·o (te Pistola,


O Chefe dos Correios ) , ou como uma testemunha, ou ainda como um
dos participantes da açíio ( o herói e m A Filha do Ca,pitã.o de
;r>ushki n ) . Por vezes, esta test emunha ou conhecedo r pode não ser
o narrador e o relato objetívo comunic�r-nos-á o que o conhece­
dor descobriu e ouviu, a inda que ele não p a1·ti eipe do que é re­
latado (Melmothe; o homem errante de ·1\ffathurin ) . Por y�zes são
utilizados métodos complexos de narração (por exemp1o em. Os b·- ·
mã<;s Ka.ramazov, o narrador é introduzido como uma testemnnha;
entretanto ele não está . presente no ro·m.an cé e a narração é con­
duzida como relato objetivo ) .
Assim, existem dois modelos principais de narração : a. obj et iva
e a subjetiva No sistema da narração objetiva, o autor sabe tu­
do, até os pensamentos secretos do herói. No relato subjetivo, segui­
..

mos a narração atra-vés dos olhos do narrador (ou de u m terceiro co­


nhecedor ) , e para cada in formação dispomos de uma explicação :

. como e qua ndo o narrador (o conhecedor) t omou ·ere própdo co­


nhecime nto do fato.-

Os sistemas mi stos são igualmente possín�i�. Xo t·elato objetivo,


o n arrador segue habitualmente a sorte de mn prrf;onagexn ·pa rt i­
cular, e ntio conh.ecernos sucessivamente o <111<� tr.m ·feito o perso­
nagem em caus·a Em seg\lida, abandonamos êst.e personagem, nossa
.

atenção passa a um outro, e novamente conh�?cemo� suces�ivamcntc


o que este novo personagem fcr. ou apren deu Assim, o lH.,r0i é o
.

fio co nd utQ r da narração, isto é, também ele é um .narrador ; o an�


tor, falaudo em seu nome, tem ao mt'Smo tc:m po o c n idado
de não co m miicar mais coisas do que poderia fazer o herói. Por
vezes, o fato de que o herói ·seja o fio concl,utor da narração é
suficiente para determinar a construção inteira da obra. O ma­
·t r.rial da fábuia continuaria o mesmo, mas o herói podrria sofrer
.algumas modificações �e o aut or seguisse nm outro pf'r�mjr.gE:>m.
Analisaremos, a. título de exemplo, o conto de \V. Hanff; O Ca-
·
·

lifa. Cegonlw. :
'Um belo dia, o r.alifa Ka�c::idf-' e �r.u viúr eomprl.lr.n r1t:· t.n.tt mer-
.
182 B. Tomachevski ·

eador ambulante uma tabaqueira cheia. tle uma pólvora misterio··


sa, com uma nota escrita em latim. O sábio Selim lê ésta nota onde

se diz que quem tomar este pó e pronunciar a palavra mutabor


será transformado num animal à sua escolha. Mas é preciso não
rir após esta transfonnação, senão a palavra será esquecida e im­
possível retprnar ao estado humano. O califa e seu v:izir transfor�
mam-se e.m cegonhas ; seu primeiro encontro com. outras os faz
rir. A palavra é esquecida. As duas cegonhas, o califa e o vizir,
. são condenados a fic.ar pássaros para sempre.' Voando sobre Bagdad,
vêem uma turba nas ruas e ouve·m gritos de que o poder foi tomaqo

por 11m certo �íizra. Este último é o filho do mágico Kaehnur, o


pior inimigo de Kasside. As . cegonhas voam então para o túmulo
do profeta para aí encontrar a libertação dos sortilégios. No camí�
nho, pousam numas ruínas a fim de aí .passarem a noite. Lá en­
contram uma coruj a que :fala a língua dos homens e que lhes narra
·
sna história. ·Ela era. a filha única do Rei das índias. O má�ico
Kachnur, que em vão a havia pedido em casamento para seu filho
Mizra; ap6s ter-se introduzido no palácio d isfarçado em negro, deu
à princesa uma bebida mágica que a transformou em coruja, em
seguida a transportou para estas ruínas, dizendo-lhe que ela fi­
caria como coruja até que alguém consentisse em desposá-la. Por
outro lado, da ouvira em sua. infância uma prec1ição segundo a
qual a felicidade lhe seria trazida pelas eegonhas �1hi propõe ao
califa indicar-lhe o meio de lib ertar -se do sortilégio com a con­
.

dieão de que · ele prometa desposá-la Após algurnas hesit.acões, o


.

califa con::;ente c a corn:ia dirig-e-o ao quarto em nue �e reúnem o�


mágicos. Lá o califa surpreende a narração · de Kachnur, n a qual
ele reconhece o merca dor ambulante : este último narra como cou-·
seguiu enganar ao califa.. Esta conversai:ão devolve-lhe a palavra
esquecida : " mntahor ''. O cali fa e o vizir transformam-se em ho­
mens e também a . coruja; todos voltam a Bagqad onde se vingam
de Mi zra e Kacl11n1r.
O conto chama-se O Ca�ifa Ceqonha. isto é, o herói é � califa
J(as.�ide, porqu e· é o sen destino que o autor segue na narraGão. A
hi�tória da n ri nce�a c0ruin é int.rodnzic1a na na rracão pela fun�ão
crne f'la te·m i'nnto ao califa no d�"Cln·so ele i;en C1lCo1üro na!�. rn1nas.
.
É �nfici�>nte mudar ligeiramente a disnosjdio do materi al para
.

fazer da princesa co ruj a a heroína : é preciso contar em primeiro


· lngar �na história e intt·orlnzir a do cali fa por nm r el ato . qne trrá
lng'�l' n.ntc� da lnwr1 Ri>HO
. . do sortilégio .
'
./

A fiíbula eontintw.r.J a mes ma mas ·a trama terft sido modifi-


.
l 183
-

e tJUtttca.
, . ,

.-nda sensivelmente, porque o fio conàut.or da narra�ão não se:rá o

mesmo.
Anoto aqui a transposiçãomotjvos : o motivo do mercador
dos
ambulante e o motivo de Ka.chnur, pai de Mizra, são o mesmo
110 momento em que o califa cegonh a surpreende o mágico. O fato

da transformação do ·califa encerra as maquinações de seu inimigo,


transformação . que nos é comunicada no final do conro e não no
início, como deveria ser na exposição pragmática.
Quanto à fábula,

ela é dupla:

1 . A estória do califa enfeiti�.ado por, Kachnur graças a uma


fraude ;
2 . A estória da pri nGesa enfeitiçada pelo mesmo· Kachnur.

Estes dois ·caminhos paralelos da .fábula cr�zam-se no- momento


do encontro e das promessas mútuas entre os dois personagens.
Em seguida, a fá bula segue um único traço : sua libertação e a
punição do mágico.
O esquema datrama segue o àestíno do califa. Sob uma for ­

ma velada, o califa é aqui o narrador, isto é, o relato com aparência


objetiva conta-nos o que é conhecido pelo califa e na ordem segundo
a qual ele a eouhcce. Isto determiua. toda a co:nstrução da trama.
l�stc caso é bastante freqüente e o herói é habitualmente nm narra­
dor dissimulado (potencial). Por isso a novela
por vezes utiliza.
a construção própria das memóriast isto é, obriga o herói a contar

sua história. As,.;im, o procedimento de observação do. herói é de­


senvolvído, e os motivos expostos c a ordem re:::peitada por estes
.
.
encontram sua motiVaeao.
-

Na. análise da composi�ão de obras concretas, é preciso con-


#

ceder uma atençãú espeeial à participação do tempo e lugar dft.


narraçao. .
-

É preciso distinguir na obra líter5 ria o tempo da fábnla e


da. narração. O . tempo d a fábula é aquéie em que os a.conte<�lmen­
tos expostos estão supostamente desenrolando-se ; o tempo da nar­
ração é o tempo necessário à leitura da obra (a duração do espe­
táculo). :Este úl.timo tempo refere-se à no�ão que temos da dimen�
são da obra.
O tempo da fábn1a nos é dado :
1 . Pela data da. açã.o dramática, de uma. maneira absoluta
(quando situamos os acon teeimentos no tempo, por exemplo " às
duas horas após o almo�o de 8 de janeiro de 18 . ' ' ou ' ' no inver­ .

no") ou relativa (pela indicação da simultaneidade dos aconteci­


mentos ou de s1.1a conexão temporal : ' ' dois anos mais tarde", etc. ) .
184 B. Tomachevski

2.Pela indic�/çã� dos lapsos. de tetnpo ocupados pelos a.conte··


cimentos ("a conver�ação durou uma meia hora'\ " a viagem pros­
seguiu durante três meses", ou indiretamente : " t>les chegaram a
�eu destino no · quinto dia ' ' ) .

3 . Ao se . criar a im.p!'essão desta duraçã.o; <lev.ido à dura­


ção dos discursos, .à duração normal de uma aJção ou a out:ros ín­
dices secundários, medimos aproximadamente o tem po tornado pe-
. los acontecimentos expostos. É preciso notarmos que o escritor
emprega esta tercei ra forma bastante livremente, int.l�rcalando-a
com discursos prolongados em lapsos de tem.po bastante curtos, e�
:inversamente, alongando-os em palavras breves e ações rápidas
sobre longos períodos.
Quanto à escolha d.o lugar da ação, existem dois casos ca-·
racterísticos ; ocaso estático, quando todos os heróis reúnem-se
num mesmo local (eis . por qüe os hotéis e seus equivalentes ofe­
recendo a :postübilidade de encontros inesper-.ados, são tão .freqüen­
tes) e o caso cinético, quando os heróis mudam de local para che­
gar aos encontros necessários ( narração de viagens ) .

r(
)��] lT
_, !.. . J.\ {�
v 11.v..:Z!. (..
�.
\

O sistem a de motivos que constituem a temí.ttica de uma obra


deve apresentar uma. unidade estética. Se os motiYo;:; on o comple­
xo de motivos :não são suficiente:me:nte coordenado� na obra, se
o leitor fica insatisfeito com as ligações entre esse complexo e a
obra inteira, dizemos que este complexo não se integra na obra.
Se torlas as partes da obra, são niai. coordenal1as, esta se dif>solve. .
Eis por que a introdução de tod o motivo par tieu la r Otl de rada
conjunto de motivos deve S<'r justificada ( mot iva da ) . O �istema
de procedimentos que justifica a introdução dos motivos part icula­
res e seus co nj unt os chama-se ' ( motivação".
. Os procedimentos de motivação são muito divc J·sos pela sna
natureza e · seu car&ter. Por isso é preciso classificá-los :
1.:MOTlV.AÇiiO COMPOSICIONAL : Seu princípio eon­
siste na economi a e utilidade dos mot ivos Os motivos particulares
.

podem caracterizar os objetos co locados no cam po visual d� le ito r


(os acessórios ) ou então as ações dos perso nagens (os episódio::; ) .
Nenhum acessório devo ficar inutilizado peh�. fábula. Tchekov pen­
sou na. motiyação composiC'ionnl <lizrndo que F:e no iníc-io da. noY<'la
Tentatica 185
.
diz-se que há u �·.l. rrego na parede, é justamente neste prego que
..

o herói deve se enforcar.


Observamos uma utilização similar dos acessórios em A Jf',ilha
SE)'nt Dote de OstJ:ovski, no que concerne à arma. As indicações
de encenaçã o do terce iro ato contêm : ' Sobre o divã, uma tapeçaria. '

por cima da. qual estão suspensas algumas armas71• No início, e�ta.
anota�ão é apenas um detalhe da decoração a título de indicação ,

acerca dos hábitos d.e I�arandichev No sexto quadro, atrai-se a ..

atenção para este detalhe pelas seguintes .réplicas :


" F..OBINSON ( olhando a tapcç.arü1 ) : O que voeê tem · aí�!
J\.A RJ.\.N DICHEV : Charutos.
ROBINSON : Não, aquilo que está pendurado� Objetos fal-
�os 1· Imitações �
-.�··.\.�
..
r \·· ;r-.
:._ �
..
:,
e,LJ..J.
..
;.
1 •• ! ,�.... ]... d'V
•;\,.l.Í
� ..
-....-T...L ."'-f...v· .,...
�-. fi E
'I.l. I •

�falsos? . Quo
_ . ·) •

(lue nbjetos imitações ? São armas turcas ' ,,


O diálogo prossegue e a assistência ridiculariza esta.s armas.
Então o moti·vo das a.r.:mas é precisado; à declara�ão <lc sen mau
estado segue.se esta réplica :
"I
.r
�*�\..RAND·r
- ... ... .1 l:HJ
,' ...... ..,'"T
' :!.! v : ..

E por que estarüun elas em mau estado ? Esta pistola por


.

exemplo . . . (ele :retira à pistola da pared e ) _


P.AR.ATOV (pegando a pistola) : Esta pistola � -

K.AF.AÃ..NDIC.HEV: Eh, atenção, ela está carregada!


l">..A.R..t.\.TOV : Não tenha. medo. Esteja ela carregada. ou não,
o perigo 6 o mesmo. De toda a maneira, n ão dis­
pararia. P.ique a cinco passos de mim e pode
�t
· l·r�
" ...
·
y
� .... .
.... .
l{AR.ANDICHEV: Oh u ão . , esta pislola ainda pode ser útil.
P.ARATOV: Sim� para. p1·egar pregos na parede (ele joga n.
pistola sohre a mesa.) ' '.

No fim do ato, Karandichev, ao partir, pega a p ist ola d� eima. .

da :mesa. No quarto ato, atira coxn esta pistola em La.rissa.


A introdução do motiYo da arma tem. aqui uma mot iva�ão
composicional. Esta arma é necessária ao desfecho ..

.Esteé o pl'imeiro caso de motivação composicionaL O segundo


é a introdução de mot ivos como procedimentos de caracterização.
Os motivos · devem permanecer em harmonia. com a dinâmica dct
fábula. Sempre em A _Filha Sevt Dote, o motivo do vinho da Bor­
gonha, fabricado pelo mercador de um falso vinho vendido u bai­
xo preço, caracteriza a existência miseráv<'l de Kar�nrlich<>v . e pre­
para a. particln. de I..�arissa.
186 · B. Toma&hevski

Estes det&Jhes característicos podem se he;nnoniza.r com a


�ao :
-

1 . Através de uma analogia psicológica (a paisagem român·


.tiea. : luar para um.a. cena de amor, tempestade ou borr.asca para
as cenas d.e morte ou crime )
··

2. Por contraste (o motivo da natureza indiferente, etc. ) .


Ainda em A Filh..a Sem Dote, no momento em que Larissa morre,
escuta-se pela porta do .restaurante o canto de um coro cigano.
Também é preciso levar em conta uma. possível falsa. motiva­
�. Alguns acessórios e ·episódios podem ser introduzidos a fim
de desviar a atenção do leitor da verdadeira intriga. Este proce­
dimento figura comumente nos romances policiais em que um
certo número de minúcias é dado a fim de levar o leitnr (e uma
parte de seus personagens ), por exemplo em Comm Doyle -­

Watson ou a polícia, para uma pista errada. O autor d.ei:xa-nos su­


por um falso desieeho. Os p\-ocedimentos de falsa motivação são
freqüentes sobretudo nas obras fundamentadas numa grande tra­
dição literária O leitor está habituado a interpretar cada detalhe
.

da · obra de uma maneira. tradicionaL O subterfúgio se revela ao


final e o leitor compreende que todos estes detalhes foram introdu­
zidos com o únieo fito de proporcionar um desfecho inesp-erado.
·
A falsa m.otivação é um elemento do pastiche literário,, como ·

um jogo de situações literárias eonheeidas1 pertencentes a uma.


sólida. tradição e utilizadas pelos escritores eom uma função não�
tradicional
·

2. MOTIVAÇÃO REALISTA : Exigimos de cada obra uma


ilusão elementar: a obra seria tão convencional e artificial, que
dever.tamos perceber a ação como verossímil. Este sentimento de
verossimilhança é extremamente forte no leitor ingênuo e este po�.
de crer na autenticidade do relato, pode ser persuadido de que
os personagens existem realmente. Assim, Pushlcin, apenas termi­
nada. a Hist6ria da R{wolta de. Pugatckov,. publica A. F·i�ka do
Capitão, na forma de Memórias de Griniov com o seguínte prólogo : .
c ' O manuscrito de Piotre .Andreevitch Griniov foi fo,rneeido por
um de. seus netos, que soubera de que nos ocupávamos de um tra­
balho concernente à época descrita por seu avô. Decidimos, eom a
permissão dos parentes, publicar o próprio manuscrito ". Dá-nos
ele a illlSâo de que Griniov e suas memórias são autênticas, ilusão
aeeitll: sobretudo por alguns traços da vida pessoal de Pushkin
conhecidos pelo público (suas pesquisas sobre a história de Pugat­
chov), acreditada também pelo fato de que as opiniões e convic-
Temática' 187

ções apregoadas por Griniov não coincidem sempre com as opiniões


expressas pelo próprio Pushkin. ·

Para um . leitor mais informado, a ilusão realista toma uma


forma de exigência de verossimilhança. Sabendo do caráter inven­
tado da obra, o leitor exige, entretanto, uma certa correspondência
com a realidade e vê o valor da obra nesta correspondência. Mesmo
os leitores conhecedores das leis de composíção artística não podem
libertar-se psicologicamente desLa ilusão. .
Neste sentido, · cada motivo
.. deve ser introduzido. como
. um
provável motivo para a situação dada. ·
:Mas Já que as leis da composição do enredo nada têm de co­
mum com a probabilidade, cada introdução de motivos é um com­
promisso entre esta probabilidade obJetiva e a tradição literária.
Graças a seu caráter tradicional, não percebemos. o absurdo rea­
lista da introdução tradicional de motivos. Para mostrar que estes
motivos são inconciliáveis com a motivação realista, é preciso .fazer
um. pastiche� Lembremos o pastiche de mise�en-scene da ópera Vam­
puJta que ainda é representada no palco do '· Espelho deforma­
dor"5 e que dá espetáculo de um repertório de situações tradicio­
nais de ópera congregadas num espírito cômico.

Não salientamos, por estarmos habituados à técnica do ro.:.


mance de aventuras, o absurdo do fato de que o herói sempre é
salvo cinco minutos antes de sua morte iminente ; os espectadores
da antiga comédia ou de M.oliere salientavam o absurdo do fato
de que no último ato todos os personagens descobrem�se como pa­
rentes ·próximos (o motivo do parentesco reconhecido, conforme o
desfecho de O A.vUtrento de Moliere). O mesmo procedimento figura
na comédia de Beaumarcl:iais, As Bodas de Fígaro, mas já sob a
, .

forma de pastiche, · porque este procedimento já estava morrendo


nesta época. .Entretanto a peça de Ostrovski, Os Inocentes CuLp0r
dos, em que a heroína reconhece ao .final . no herói seu fílho per­
dido, demonstra que este motivo está :sempre vivo para o drama.
Este motivo do parentesco reconhecido .facilitava muito o desfecho
(o parentesco conciliava os interesses modificando totalmente a
situação) ; por isso entrou definitivamente na tradição. A explica­
ção de que os reencontros de um filho e uma mãe perdida eram
moeda corrente na Antiguidade, não tem sentido. Eram moeda ·cor­
rente unicamente no palco graças à força da tradição literária.

5 Teatro satirico de Leningrado.


188 B. Tomaçhevski

Quando uma escola poética dá lugar a outra, a nova destrói


a tradição e conserva, .Por conseguinte, a · motivação realista de
iní_rodução de motivos. Eis por que toda a escola. literária, opon�
do-se à maneira precedente, inclui sempre em seus manifestos,
sob uma. forma qualquer, uma declaração de fidelidade para com
a vida, a realidade. Assim escrevia Boileau, tomando .no século

xvn � defesa do jovem Classicismo contra a,.q tradições da anti�


ga. literatura francesa.; assim no século xvm, os en.cíclopedi,_q­
tas defendiam os gêneros burgueses ( o :romance familiar, o dra­
ma), contra os velhos cânones; assim no século xrx, os românti­
cos insurgiram-se contra os cânones do classicismo tardio em nome

da víta1idade e da . fidelidade à natureza desmascarada. A. escola


que os fez surgir tomou o próprio._ nome de escola naturalista. Em
geral, no s�culo XIX, pululam numerosas escolas cujos .nomes contêm
uma alusão à motivação realista dos proce(i!mentos : realismo, na­
turalismo, naturismo, romance de costumes; literatura populista, etc.
Em no5:5a época, cs sim bolistas substJtuíram os realistas em nome
de um natural sobrenat1u·al (de reaUb1.t$. ad realiora, do real ao
· mais real) o que não unpedia a aparição do Acmeismo, que exige
da poesia um �aráter mais substancial e concreto, e a do futuris­
.

mo, que no princípio rejeitou o esteticismo e quis reproduzir o


" verdadeiro " processo criador e mais tarde deliberadamente tra ­

balhou em motivos ' 'vulgares '', isto é, realistas.


De escola para escola, permanece a exortação ao natural. P or
que não criamos a ' 'verdadeira'' escola :natural que não deixaria
lugar a nenhuma outra 7 Por que podemos aplicar o qualificativo
de realista a cada escola (e ao mesmo tempo a nenhuma deias) Y
(Os ingênüos historiadores da literatura utilizam este termo como
uma. qualidade superior para um escritor : ' '· Pu.shkín era realista" ·
é um típico clichê da história literária que não se dá conta do fato
. de que no tempo de .Pushkin se empregava est� palavra com sen­
tido diverso daquele que lhe damos hoje.) Este fenômeno sempre
se explica pela oposição da nova escola à anterior, isto é, pela subs­
tituição das antigas convenções, percebidas como tais, por outras
que não são ainda percebidas como cânones literários. Por outro
lado, o material realista não representa em si uma construção ar­
tística e, para que ele venha a sê-lo, é necessário aplica.r-ln.e leis
.

específicas de construção artística que, do ponto de vista da rea­


lidade, serão sempre convenções .

Assim a motivação realista. tem como fonte seja a c onfiança


ingênua, seja a exigência de ilusão. Isto · não impede o desenvolvi­
mento da literatura fantástica. Se os contos populares aparecem
habitualmente num meio popular que admite a existência real de
Tem-ática 189

bt'1'J.Xas e gênios familiares, sua existência . 1.1lterior é devida a uma


ilusão conseiente em que o sistema mitológico .a concepção fan­
,

tástica do· mundo ou a admissão de possibilidades não são real­


mente justificáveis, mas apenas uma · hipótese voluntária.
Sohl"e estas hipóteses
são construídos os romances fantásticos
de vVells ; este autor satisfaz�se habitualmente não eom um siste ­
ma mitológico inteiro, mas com uma admissão isolada inconciliável
com. as leis da natureza · ( eneontramos uma. crítica aos romances
fantásticos do ponto de vista da irrealidade d.e suas premissas na
interessante obra de Perelman Viagens aos Planétas).
É inter�ssante v.r
n.ot que num meio literário evoluído, os relatos
fantásticos oferecem a possibilidade de uma dupla interpretaçã.o
da fábula, em virtude das exigências da motivação realista : pode­
mos eonpreendê-los de uma só vez como acontecimentos reãis e
como acontecimentos fantásticos. No seu prefácio ao romance de
Alexis Tolstoi, O Va·mp·i·ro, que é um bom e.xemplo de construção fan­
tástica, Vladimir Soloviov escrevia : ' ' O interesse essencial da sig
nificação .fantástiea em poesia baseia-se na certeza que tudo o que
­

acontece no mundo e sobretudo na lida .. humana depende, além d.e


causas presentes e evidentes, de uma outra causalidade m ais profunda
e universal, mas. menos clara. Vejamos o traço distintivo do verdadei­
ro. fantástico·: ele não sur ge nunca como uma forma desvelada. Seus
acontecimentos não devem jamais constranger a crenç� no sentido
místico dos acontecimentos da vida mas devem antes de tudo su�
gerir, fazer alusão a isto. No verdadeiro fantástic0, guarda-se sem­
pre a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples
dos fenômen os , mas ao :mesmo tempo esta explicação completa­
mente privada de probabilidade interna. Todas as minúcias devem
ter um caráter quotidiano, mas coru;ideradas em seu conj unto. de� '

vem indicar uma outra causalidade ''. Se retiramos destas palavras:


o disfarc e idealista da filosofia de Solo:viov, encontramos nelas
'
ums. formulação bastante pr(�cisa da téenica de narração fa:u.tás�·
tica do ponto de vista das normas da motivação realista. 'l'al é a
técnica da.s novela...;; de Hoffmann, dos romances de Radcli ff, etc.
Os motivos habituais que oferecem .a possibilidade de uma dupla
interpre taçã o são o sonho, o delírio> a ilusão vi sual ou outra, etc.
( Cf. este ponto de vista na coleção de novelas de Brussov, O Eixo
� T�.) .
A iutroduçãq na obra literária de um material extraliterário,
isto é, de temas que têm uma significação real . fora do desenho
artístico1 é facilmente compreendida sob o ângulo da motivação
realista de <:onstrução da obra.
190 B. Tomachevski

Assim, nos romances históricos, colocam-se. em cena persona­


gens · históricos, introduz-se esta ou aquela interpretação dos acon­
tecimentos. Vemos em Guerra c Paz de Leon Tolstoi toda uma
conexão de estratégia militar sobre a batalha. de Borodino e o in­
cêndio de lfoscou, que provocou uma polêmica na l iteratu ra es�
p ecializada. As obras contemporâneas apres entam costumes fa­
miliares ao leitor, trazendo à tona problemas de ordem moral, so­
cial, política, etc., numa palavra, introduzem temas que têm uma
·vida fora da literatura . Mesmo num pastiche convencional, no qual
observamos estes procedimentos, trata-se enfim, a propósito de
um caso particular, da discussão de problemas pr6prios à poética.
A revelação do procedimento, isto é, seu emprego fora de sua mo­
tivação tradicional, é uma demonstração do caráter literário da
obra, no gênero de ( ( en cenação numa encenação" (por ex.emplo,
a representação teatral em HamJet de Shakespeare, o fim de Kean
de Alexandre Dumas).
3. MOTIVAÇÃO ESTÉTICA : Como afirmei, a introdução
dos motivós resulta do compromisso entre a ilusão realista. e as
exígên:.cias da construção estética. Tudo o que é tom.ado emprestado
da realidade não convém forçosamente a uma obra. literária. É so­
bre isto justamente que Lermontov insiste quando escreve a pro -
··

pósit.o da prosa jornalística contemporânea { 1840) :


'

De quem pintam os retratos 1


Onde então buscam estas conversas 1
E mesmo que as tenham ouvido,
Não querem os es cutá las.
-

Boileau já falara deste problema com esta frase : ( ' O verda­


deiro pode algumas vezes não ser verossímil , designando por ver­
" "

�adeiro o que tem a motivação realista, e por '' verossímil'' o


''

que tem uma motivação estética.


A negação d& caráter literário da obra dentro delfl mesma ,

é uma expressão da mGtivação realista que encontramos freqüen­


temente. Conhecemos a fórmula : ''Se isto se passasse num roman­
ce, meu herói teria. feito assim, mas porque nos encontramos. na
realidade veja o que acontece, etc. ''. Mas o próprio fato de diri­
,

gir se à forma literária já confirma as leis de construção estética. .


-

Cada. motivo real deve ser introduzido por uma certa forma
da construção do relato e deve beneficiar-se de um esclarec mentoi

particular. A própria. escolha dos ternas realistas deve ser jus­


tificada esteticamente.
As discussões entre as antigas e novas escolas literárias sur-
'rcmática 191

�em a propósito da motivação estética. A antiga corrente. tracli­


cional, nega a existência do caráter estético das novas formas li·
f.erárias. Isto manifesta-se, por exemplo, no léxico poético que deve
harmonizar-se com as tradições literárias estáveis (fonte de p·ro­
saísmos, palavras proibidas à poesia)
Deter-me-ei no procedimento de singuJA,ri.za{ito como um caso
.

particular da motivação estética. A introdução do material extra-


1 iterário numa obra deve justificar-se por sua novidade e indivi·
duali dade a fim de que não se oponha &,os outros constituintes
dela. É preciso falar do antigo e do habitual como do novo e do
uão-habitual. O usual deve ser tratado como insólito.
Estes procedimentos que tornam singulares os objetos usuais,
�íí.o habitualmente m otivados pela refração destes problemas na
psiquê do herói de quem são desconhecidos. Conhecemos o pr:oce·
dimento de singularização de Leon Tolstoi que, para descrever o
(�onselho de gu erra na aldeia de Filies ( Guerra e Paz ) , introd uz
(:orno personag-em uma pequena cam ponesa que observa e interpre­
ta. à sua ·maneira infantil tudo o que fa'l.em e dizem os participan­
tes, sem nada disto compreender:. Também, ainda em T'Olsto i , em
�ma n ovela Khnlstorner, as relações humanas nos são dadas . através.
da psiquê hipotética de um cavalo ( cf. a novela de Tcbekov,
l(achtanka, em que estamos colocados em presença da psiquê i�al­
mente hipotética de uma peQuena cadela, procedimento utilizado
npenas para sint!ularizar a exposição . A novela · de Korolenko, O
Músico Cego; em que a vida dos que vêem se passa através do en- ·
tendim ento de um ce�o. é exemplo idêntico ) .
Swift usou muito este procedimento de· singularização em A s
Viaqens de Gulliver a fim de atacar o quadro satí rico dos re{li­
mes sociais c políticos da E uropa. Gulliver, perdido no país de
Houyhnhnms (cavalos providos de entendimento), descreve a seu
hospedeiro-cavalo os usos em vigor na sociedade humana. Obri�a.-­
do a ser ext remamente concreto em sua narracão. levanta. o en­

voltório das belas frases e tradicionais justificações fictí�ias para


os fenômenos como a �uerra, os conflitos de classes. a politicagem
parlamentar profissional, etc. Pdvados de seu envolt6rio verbal
eostnmeiro, estes temas tornam-se singulares e revelam todo o seu
lado repugnante. Desta maneira, a crítica ao regime político, um
material extraliterário, obtém sua motivação a integra-se estreita- .
mente na obra.
A interpretação dÕ tema do duelo em A Filha do Capitão ofe­
rece 11m mesmo exemplo de singularização.
Em 1830, líamos no Jornai Literário esta anotação de. Push�
kin : "As pessoas do mundo têm sua própria maneira de pensar,
192 B. 1'omachevski

seus pr�julgamcntos incompreensíveis a uma outra casta. Como


explicaremos o duelo de dois oficiais franceses a um pacífico aleú­
te ? Sua susceptibilidade lhe parecerá. sempre estranha e quase terá
razão". Pushkin utilizou esta' ressalva em .A Filha do Capitão. No
terceiro capítulo, é pelo relato da mulher do Cap. Miranov que
Griniov vem a saber como Chvabrine transformou a Guarda nu4
ma guarnição fronteira :
' ' Faz cinco anos qÚe mandaram para cá Chvabrine Alexis
Ivanovitch, por ter cometido um homicídio. Deus sabe pül.' que co­
meteu ele este crime. Alcxis matou 11m tenente em duelo. E fez
tudo isso diante de duas testemunil..:;.s ! ".
Mais tarde, no quarto capítulo, quando Chvabrine provoca
Griniov para um .duelo, aquele se dirige ao lugar-tenente U.a guar­
nição para lhe propor que seja sua testemunha.
- ' ' O que quer dizer - permita-me a pergunta - é que de­
seja bater-se com Alexis Ivanovitch e quer que eu sírva· de padri-
nho, não é isso Y
·

- ' 'Perfeitamente.
- " Por Deus Piotr Andreitch ! Em que canoa vai embarcar!
,

Brigar com Alexis Ivanovitch ! ' Palavtas leva as o vento ' ! Ele
-

o agride, o senhor responde com outra .agressão. Ele lhe bate o ,

senhor retruca, batendo também . . .' depois separam-se.''


No fim da conversa, Oriniov tenta um recuo categórico:
.-- ' ' Se o senhor pretende envolver-me nestes �suntós, serei
obrigado a levar ao conheciment(). do comandante que na fortaleza
está se tramando um ato contrário aos interesses do Estado".
No 5.0 cap ítulo, a descrição que nos faz Savelitch dos passos
de esgrima traz-nos fatos estranhos : .
"Não fui eu o culpado, foi esse maldito missiú, que te ensinou
a manejar a espada, como se fazendo molinetes no ar e dando
pontapés pudesses te livrar dos indivíduos ruins* ".
Devido a est..e esclarecimento cômico, a idéia de duelo é apre4
sentada sob o novo e incorimni aspecto. A sing:ularização toma
aqui a forma cômica que ainda é acentuada pelo vocabulário ("Se
ele lhe estapeou o focinho") ; o vulgarismo " focinho" caracteri-­
za no discurso do tenente não a grosseirice da face de Griniov, mas
a brutalidadé do combate, ''ele lhe bate, o senhor retruca, batendo
também " : .esta aproximação contraditória das palavras cria um

• Pushltin, A. S. A Filha do Capitio, Trad. de Paulo Correa Lopes,


Li'lr. do Globo, Porto Alegre, 1936. (N. · do Trad.)
'I , 193
em.attca
' ,

d'cito cômico Evidentement e, a singularização nem sempre pro


. -

voca um efeito cômico.

O HERói

A apresentação dos personagens, espécie de suportes vivos


par.a os diferentes motivos, é um procedimento coerente para agru­
par e coordenar estes últimos. A aplicação de um motivo a um
c·<·rto personagem facilita a atenção do leitor. O personagem tem
a função de um fio GOndutor e permite que nos orientemos no acú­
mnlo dos motivos, de um meio auxiliar desti nado a classificar e
or·denar os :motivos particulares. Por outro lado, existem proeedi­
! lli'' ·' tos graças aos quais podemos nos orientar entre a multidão
. / ; •:·; personagens e a complexidade de suas relações. É preciso po­
; ���r reconhecer um personagem ; por outro lado, ele deve mais ou

mt>.nos fixar nossa atenção.


Caracterizar um personagem é um. · procedimento que o faz
n�conhecível. Chama-se caracteri.stica. de um personagem o siste­
ma d e motivos qiH� Jhe P-stá. indissolu:velmente ligado. Num sentido
mais restrito, entende-se por ca.ract.er1stlca. os motivos que definem
·
:t psiquê do personagem, seu caráter.

A desigilaÇão de herói por um nome próprio é o elemento


um

mais simples da cm·a.cterística. \J


1: � formas elementares de narração
satisfazem-se por V8Zes com a sin1ples atribuição de um nome ao
herói, sem nenhuma outra característica ( herói abstrato) que o
r elaciona às ações nceessária!:l ao desenrolar da fábula. As cons­

exig·em q_ue os atos dos heróis decorram


t.t·uções mài.s complexas
<lc uma certa unidade psicológica, que e1es sej am psicologicamen�
te prováveis para este personagem. (motiva(}ão psicológica dos
1ttos) . Neste caso, .atribuem-se ao herói certos traços de caráter.
A caracterização do herói pode ser direta, isto é, nós reeebe ·

mos uma informação sobre seu caráter através do autor, de ou­


tros personagens ou de uma autodescrição (as confissões) . E:ncon­
l.t·amos por vezes uma caracterização indireta : o caráter parte dos
atos, da conduta do herói. As vezes, estes atos são dados no início
tio relato, fora do esquema da fábula,· com o fim único de caracte­
l'izá-lo ; eis por que estes atos exter iores à fábula apresentam-se
c·omo uma parte da exposição. Assim, na novela de K. Fedine, Â.IM'Ulo
Timofeevna, · .a anedota so:bre Yakovlev e a n oviça no primeiro ca­
l•ítulo visa apenas caracterizar o personagem .

194 B. Tomacbevski .

O procedimento d e máscara, isto é, a elaboração de motivos


concretos correspondentes à psiQ uê do personag-em. é um caso par�
ticular da característica indireta. Assim . a descri�ão da auarência
do personagem. de suas vestes. de s�n alojamento, (por exemnlo.
P1nchkinP. em Gogol) pode ser classi ficado como máseara. Não só
a descrição dos objetos, do QUe se oferece aos olhos. mas também
toda outra de&cricão pode servir de máscara. O prónrio nome do
herói · pode ter esta funeão. Neste sentido, as tradições dos nomes­
máscaras pPÓprios à comédia também oferecem interesse. A come­
çar pelos mais ·elementares : Pravdine, Milom Starodum e até
Iaitchnitsa, Skalozub, Gradoboev6, etc., Quase todos os nomes nas co­
médias designam um traço característico do personag'em. Neste
sentido, é suficiente ·vennos os · nomes dos personagens de Os­
trovski.
· É preciso disting'Uirmos dois casos princioais nos procedimen­
tos de caracterizacão dos. personaQ'ens: o caráter constante Que per�
mane<'e o mesmo no decorrer da fábula e o caráter modiflcável que
evolu i à medida que se desenrola a acão. Ne.c;t; e últi.mo caso, os ele­
mentos característicos estão ligados estreitamente � fAhnla. e a rup­
tura do caráter (o famoso arrependimento do malévolo) já é uma
modifica�ão da situação dramátir>a.
Por outro .lado, o_ vocabulário do her6 i o estilo de suas pa­
,

lavras, os temas que aborda e m . sua conversação podem igualmen­


te servir-lhe de máscara:
Mas não basta difcrendar os heróis, separá-los do conjunto de
personagens por alguns traços característicos específicos : é pre­
ciso fixar a atenção do leitor, despertar o interesse pela sorte dos
personagens. Neste sentido, o meio fundamental consiste em pro­
vocar a simpatia para a ação descrita. Os personagens habitual­
mente carregam consigo uma carga emocional. Nas formas mais
primitivas, encontramos os virtuosos e os malévolos. Aqui a re-
. lação emocional com o herói (simpatia-antipatia) é desenvolvida
a partir de uma base moral. Os modelos positivos e negativos são
um elemento necessário à constru�ão da fábula. . Atrair as simna- .

tias do leitor para alguns deles e sua repulsão para outros provoca ,

infalivelmente, sua participação emocional nos acontecimentos ex­


postos e seu interesse pela sorte dos heróis.

6 Pravda (r.) : verdade; mlyj : caro ; starye dumy: idéias antigas ;


jaicnlca: omelete; skallt' zuby: mostrar os· dentes, rir abertamente ; gra..
doboj: delgado. l:!:stes nomes aparecem nas peças dos dramaturgos ruBSos
Fonvizin, Griboedov, Ostrovski, Gogol.
Temática 195

O personagem que recebe a carga emocional mais viva e acen­


tuada · chama�e herói. O . herói é o personagem seguido pelo leitor
com a maior aten ção . Provoca a compaixão, a simpatia, a alegria
e a tristeza do leitor.
É preciso não esquecermos que a relação emocional com o
herói já está contida na . obra. O autor pode atra ir a simpatia para
um personagem cujo caráter na vida real poderia· provocar no
leitor um sentimento de repugnância e desgosto. A, relação emocio­
nal com o herói releva· da construção estética da ob.ra e, apenas
nas formas primitivas, coi ncidirá obrigatôriamente com o código
tradicional da moral e da vida so�ial.
Este aspecto da questão era por vezes negligenciado pelos crí­
ticos jornalistas da década de 60 do século xrx que apreciavam
os heróis do ponto de vista da utilidade· social de seu caráter e de
sua ideologia. isolando-os da obra literária. Assim, o empreiteiro
russo Vassilkov, representado por Ost rovski (O Tesouro Louco)
como um herói positiv o, opõe-se à · nobreza Que se arruína ; nossos
críticos, aqueles da inteligência populi sta, apréciaram-no como um ·
.
modelo negativo de cap italista . explorador e em . plena ascensão
social. porque os outros de s.ua cla�e eram-lhe antipáticos. Tt>da
esta reinterpretacão da obra li terária, dirigida pela ideologia dt>
leitor, esta verificação do sistema emoci()nal da obra segundo suas
emoções quotidianas ou ·polít icas podem criar um muro intrans­
ponível entre o leitor e a obra. É preciso ler de uma maneira ino­
cente, obediente às indicações do autor. Quanto maior for o talentG
deste, mais difícil é opor-se às suas diretivas emocionais e mais
convincente é a obra. E sta força de persuasão. sendo um meio de
instruçã.o e predicação , é a fonte de nossa atra<;ão pela obra.
O herói não é absolutamente necessário à fábula. Enquanto
sistema de motivos, ela pode prescjndi'r intei ramen te dele e de seus
traços característicos. O herói resulta de t'ransfonna<tão do mate- ·
rial em enredo e representa, de um lado, um meio de encadeamento
de motivos e de outro. uma motivação personificada da ligação
entre os motivos. Isto surge claramente nesta fonna narrativa ele­
mentar que é a anedot a A anedota representa em geral uma forma
.

reduzida, vaga e flutuante da fábula e em numerosos casos, é res­


trita à inters�cão de dois motivos principais (os outros pertencem
à motiva�ão obrigató-ria: os ornatos, a introdu ção etc. ) . Em suas
)

intersecões, os motivos criam um efeito particular de ambigüidade,


contrastante, caractt'\rizado pelos termos franceses "bon mot" e
" poi nte , (a n oção dos concetti ital i an oF!, senten�as cheias de graça,

coincidem · em parte com esta palavra) . ·


T·omemos uma anedota c·onstruída sobre a coincidência de dois
1·96 B. Tomaçhe11ski.

motivos numa fórmula (trocadilho ) . Um missionário chega à al­


deia. · Os fiéis acorrem ..a seu sermão. Ele começa assim : " Sabem
o que direi f" n Não, não sabemos." -- " E ntão, que lhes posso
-

dizer a respeito do que não sabem ? ". O sermão não aconteceu. Es­
ta anedota tem um prolongamento que acen tua o caráter amhí�o
da palavra < ' saber". Na vez seguinte, os fiéis responderam à mes­
ma pergunta : "Nós sabemos. " - " Se o sabem sem mim, não vale
a pena que eu lhes fa1e7. t '
À ane dot e sobre a dupla interpre­
a está. contruída c
tmi a.ment

taGão de uma pal avra e ela subsiste qualquer que seja o enquadra­
mento que se lhe der. Mas em sua realiza.cão concreta este diálo�o
,

está sempre fjxado num detemt i nado hel'ói (habitualmente o mis­


sionário). Obtém-se uma situaGão de fábula : o missionário mali­
cioso e ao m.Mmo tempo inépto para seu trabalho e os fiéis enga­
nados. O herói é necessftrjo para que se encadeie a anedota a partir
dele.
Vejamos o exem plo de uma anedota mais elaborada do folc­
lore inglês. Um in!!lês e um h·lan dês são personagens (nas ane­
.
dotas popu lares ing-l esas o i rlan dês é quem reage 1enta.mente e
,

à...;; ve-1-es erroneamente) . Os dois vão pela estraoa de I;ondres e,


num cruzamento, lêem a se14uinte inscrição : ' ' Esta é a estrad a

de lJondres . E que- õs iletr.ados se dirijam ao ferrúro que mora


além d.aquela curva " . O ing-lês se põe a rir, o irlandês se cal a À
.

noite1 chegam a Londres e instalam-se num hotel para passar a


noite. Durante a n oite o inglês é acordado pelo riso irreprimível
,

do irlandês. " O que há 1 " "En agora entendo porque você riu
-

lendo a placa na estrada. '' ' ' E então 1 t '


- ' ' O ferreiro pode
-

não estar em casa . ' ' Ainda aqui os dois motivos se entrecruza.in :
o verdade i ro cômieq da tabuleta. e a sin�ular interpretacão do ir­
landês Que admite com o autor da. inscr ição que os iletrados sa-
berao 1""
- �e-la.
Mas o desenvolvimento desta anedota diz respeito ao proce­
dimento q·ue consiste em u nir estes motivos a. um her6i escolhido
devido a seu caráter nacional (assim na França há a.� anedotas so­
bre os Gascões entre n6s temos também um grande número de he­
,

:róis regionais ou estrangeiros) . Um outro meio de caracterizar


'br evem ente o herói da anedota é o de fi xar os motivos num conheci-

7 Em certas variantes, esta anedota tem ainda um prolongamento.


À pergunta do missionário, os fiéis dizem : «Nós sabemos:.. Um outro:
«Não sabemos». A resposta é esta: «Que os que sa.bem dlgam �o.s que
não sabem».
Temática 197

do personagem histórico (na Fr.an<;a o barão de Roquelaure, na


Alemanha, Till, o Travesso, na Rússia o bufão Balakirev. .Ligam,.se
também a este modelo anedotas sobre diferentes personagens his�
tóricos : Napoleão, Diógenes, Pushkin, etc.). Os tipos anedóticos
criam-se .através de ligações sucessivas dos motivos a 11m mesmo
nome. A origem dos personagens da comédia italiana é a mesma
(Arlequim, Pierrot, Pantaleão ) .

VIDA DOS :PROCEDllVIENTOS DA TRAMA

Ainda que os procedimentos de composição em todos os países


e para todos os povos earaeterizem-se por uma semelhança consi­
derável, e que possamos falar de uma lógica específica na cons·­
trução da trama, os procedimentos concretos e particulares, suas
combinações, sua utilização e, em parte suas funções modificam­
se enormemente no decorrer da história da literatura. Cada época
literária, cada escola é caracterizada por um sistema d-e procedi­
mentos que lhe é próprio e que representa o est ilo (no largo senti­
do do termo ) do gênero ou da corrente literária. Neste sentido,
é preciso distinguir os procedimentos canônicos e os livres. Cha­
mamos procedimentos canônicos àqueles que são obrigatórios para
um certo gênero e época. Por. exemplo, o classiéismo francês do

século xvn caracterizado pela.<; unidades dramáticas e regula­


mentação minuciosa de cada forma literária dá o sistema mais
puro de procedimentos canônicos. Os traços fundamentais das
obras de uma escola literária são os procedimentos canônicos ado�
tados por ela. Em cada tragédia do século xvrr, o lugar de ação
continua o mesmo e o tempo está limitado às vinte e qu atro horas.
Todas as comédias terminam pelo casamento dos amantes, as tra­
gédias pela morte dos personagens principais. Cada regra canônica
busca fixar um procedimento, e neste sentido, tudo na literatura,
desde a escolha do matP-rial temático; motivos particulares, desde
S'lla distribuição até o sistema de exposição, na linguagem, no vo­
cabulário, etc., tudo pode tornar-se wn procedimento canônico.
Regulamentou-se o emprego de certas palavras e a interdição de
outras, a esrolha de alguns motivos e· a negação de outros, etc.
Os procediméntos canônicos existem devido à ·sua comodidade téc-
. nica ; repetidos tornam-se tradicionais e 'Q.ma vez no quadro da
poética normativa, são feitos regras obrigatórias. Porém nenhum
cânone pode esgotar todas as possibilidades e prever to dos os pro­
cedimentos necessários à criação de ·toda uma obra. Ao lado dos
198 B. Tomachevskt

canônicos, existem . sempre procedimentos livres, de caráter não


· obrigatório, que continuam próprios a alguns escritores, algumas
obras, escolas, etc.
Habitualmente, os procedimentos canônicos eliminam-se por
si mesmos. O valor da literatura encontra-se na sua · novidade e
originalidade. A aspiração a. uma renoYação afeta geralmente os
procedimentos canônicos, tradicíoliais, estereotipados, e de obri­
gatórios tornam-se proibidos. Criam-se novas. tradições c n ovos
procedimentos. Isto não impede que os procedimentos há. pouco proi­
bidos renascam duas· ou três geracões
� . >
literárias mais tarde. Se-
gundo a . apreciação dos procedimentos feita pelo ambiente pode-
mos classificar estes últimos em perceptíveis ou im.perceptív;eis.
Um procedimento pode ser perceptível por duas razões : sua
grande . antiguidade ou sua grande novídade. Os procedimentos
eliminados, antigos, arcaicos, são perceptíveis; são . percebidos co­
mo uma sobrevivência importuna, como um fenômeno sem sentido.
que continua a existix: pela força da inércia, como um corpo mor·
to entre os seres vivos. Ao contrário, os procedimentos novos to­
cam-nos por seu caráter não-habitual, sobretudo quando são pos­
.tos num repertório então interditado, como por exemplo os vul·
garismos na. poesia cuidada. Para saber se um procedimento é per·
ceptível ou não, é preciso jamais perder de vista a perspeC!tiva
histórica. A língua de Pushkin parece-nos fluente . e não pereebé­
mos quase suas particularidades, mas ela abala os contemporâ7
neos pela mistura singular de eslavism os o expressões populares,
e Jhes parece desigual, estranha. Só uni contemporâneo pode apre­
ciar a perceptibilidade deste ou daquele procedimento. As cous·
· truções inesperadas das obtas dos simbolistas, que chocam os con­
servadores literários até 1908, não são absolutamente percebidas
por nós. como tais, e descobrimos mesmo formas estereotipaclas e
banais nos primeiros versos de Belmont e Brussov.
Existem duas atitudes literárias diversas no que concerne à
per��ptibilidade. dos procedimentos utilizados. A primeira, que ca­
racteriza os escritores do século XIX, procura dissimulá-lo. To­
do o sistema de motivação procura torná-los· üwisíveis, desenvol­
ver material literário da maneira mais natural, isto é, impercep­
tivelmente. Mas esta é uma atitude, e não uma lei estética geral.
Uma outra atitude opõc�e à esta ; ela não tenta dissimular o pro­
cedimento ·e tende mesmo a torná�lo evidente. Se o escritor, que
na página anterior · comunicava-nos os pensamentos secretos do
herói, ·interrompe o discurso, ele justifica-se pretendendo que não
o escutou até o fim ; esta não é uma. motivação realista, mas uma ·
J'unática 199

demonstração do procedimento, ou melhor, seu desnudamento.


Pushkin escreveu no quarto capítulo de Eugênio Oncg·uin :

E olhe que já ele gela a pedra fender


E que se argenteando os campos circunvizinhos
(o leitor já espera a rima rosas8•
Tome, ei-la, segure-a rapidamente).
'remos aqui run desn udamento claro e consciente do procedi­
m<>nto ' ' rima''.

O futurismo em sens prim6rdíos (Klebnikov) e a literatura


contemporânea tornaram tradicional este desnudamento ( cf. exem­
plos múltiplos para o desnudamento da construção da trama nas
novelas de K.avcri ne).
EntJ·e as obras que desnudam seus procedimentos, é prec iso
isolar aq·nelas qnc o revelam ·estranho a ela niesm.a, seja ele tradi­
cional, seja próprio de outro escritor . .Se o resultado é um efeito
cômico deste desnudamento, t emos nm pa.stiche. As fu nções do pas­
tiche são ml]Ibpla.s. Procura-se geralmente ridículariz�r a escola
literári a oposta, de.struir seu sistema criador ' ' desvendá-lo ' '.
,

A literatura paródica é bastante vasta Era tradicional no


.

gênero dramático, em que cada obra nu1.is ou menos marcante pro­


vocou imediatamente uma floração de pastíche.�. No fundo de todo
o pastíche, há uma outra obra literária (ou todo um grupo de
o·bras) , a partir da qual ela se destaca. Entre as novelas de Tehe­
kov, conta-se grande número de pastiches literários. Por vc.tes, o
pastiche uão tem. objetivos satíricos e se desenvolve como uma arte
livre do procedimento desnudado. Assim, os imitadores de Sterne
do início do século XIX representam uma · escola. que cultiva o
pastiche como gênero autônomo. Na literatura contemporânea, os
procedimen tos de Sterne reaparecem e gozam de uma grande uti­
lização ( a inversão de capítulos digressões desmedidas ao .menor
,

pretexto, retard.'lmento da ação, etc . ) .


Por que existe esse desnudamento 1 O procedimento p ercep­
tível apenas se justifica esteticamente, po-rque é assim feito vo­
luntàriamente. Mascarado pelo autor, produz uma impressão cô�
mica ( ã.s expensas da obra ) . Prevenindo esta impressão, o .autor
revela-o.
Assim os procedim entos nascem, vivem, envelhecem e mor�
rem. A m cdida que são aplicados, tornam-se mecânicos, perdem

------

8 Em russo: moroey e rozy.


200' B. Tomacbevski

sua função, perdem sua atividade. Para combater a mecanização


do procedimento, renovamo-lo graças a uma nova função ou a um
novo sentido. A renovação de um · procedim ento . é análoga ao em�
prego de uma significação de um antigo autor num novo contexto
e com uma nova significação.

OS GÊXBROS LITER.:iRIOS

Observamos na literatura viva um agrupamento constante de


procedilncntos ; estes combinam-se em certos sistemas . que· vivem
simultaneamente, mas são aplicados em obras diversas. Uma di­
ferenciação m ais ou menos clara das obras estabelece-se segu n ­
do os procedimentos utiliZados. Esta difet·cuciação pode ter di­
versas origens : falamos da difereuciaÇão natural quando ela pro­
vém de uma certa afinidade interior entre os procedimentos par­
ticulares qqe lhes permite combinarem-se facilmente ; da diferen­
ciação literáyia e social, quando ela decoiTe dos obj.etivos propos·
tos nas obras literárias, das circuustâ,ucias de sua êriação, de seu
destino, do acolhimento destinado à obra ; c falamos de dife:ren··
ciação histórica, quando cl;l procede da imitação de obras antigas
e tradições literárias. Os procedimentos de construção são agru­
pados em torno daqueles que são perceptíveis. .Assim criam-se
classes particulares de obras (os gêneros) que se car-acterizam por
um agrupamento em torno daqueles procedimentos perceptíveis,
chamados traços do gênero.
Estes traços podem ser muito diferentes e se relacionar em
func;:ão de qualquer aspec;to da obra literária. É suficiente que
apareça uma nova disposição, um certo sucesso (por exemp-lo, po­
licial) , e logo surgem as imitações1 cria-se um gênero de novelas
cujo traço fundamental é a descoberta do crime pelo detetive, isto
é, um certo tema. Estes gêneros temátieos são abundantes na li�
teratur.a de intriga. Por outro lado, na poesia lírica, enconü·amos
gêmeros cujo tema é motivado· por 11ma dedicatória escrita ( epis­
tolário) : é o gênero epistolar, cujo traço distintivo não é o tema,
mas a motivação desta dedicatória. Enfim, a utilização diferencia­
da da linguagem prosaica ou poética cria os gêneros poéticos ou
prosaicos; conform e a obra se destine .a ser lida ou representada,
distinguimos gêneros dramáticos ou narrativos, etc.
Os traços do gênero, isto é, os procedimentos que organizam
a composição da obra, são dominantes, ist.o é, todos os outros pro­
cedimentos necessários à cria� ão do conjunto artístico estão sub ..
Temática 201

11Ússos a ele. O procedime11fo dominante é chamado a dmninan.te.


O conjunto das dominantes representa, o elemento que autoriza a
.formação de um gênero.
·

Estes traços são polivalentes, entrecruzam-se e não permitem


uma classificação lógica dos gêneros segu..:1do u.m critério (mico.
·

Os generos vivem e desenvolvem-se. Urna. causa primordial


obri gou uma série de obras a se constituírem num gênero parti­
eUJ.ar. .Nas ooras que aparecem ma1s tarde, observamos urna ten­
dência a assememarem-:$e às ooras deste genero dado, ou ao contrá­
rio, a diferenciarem-se. O gênero ; üca enriquecido d.e novas obras
que unem-se às já existentes. A catlSa que promoveu um gênero
pode nao ag1r ma1s; seus traços fundamentais podem · mudar len­
tamente, ffi(iS o gênero contmua a viver eml)ora como espéc1e, isto
é, pelo encaaeawento habitual das novas obras aos gêneros já exis··
tentes ..l!.lle sone uma evolução e por vezes, uma brusca revoluçáo.
.

E ntretanto, por causa do mterligamento habitual da obra aos gê­


neros já defmidos, seu nome se conserva,· ainda que uma modlfi­
caçao radical se tenha produzido na construção das obras perten­
centes a ele. O romance de cavalaria da 1dade Média e o romance
contemporâneo de Andrei Bieli on Pilniak podem :não ter nenhum
traço em comum, e, entretanto, o romance contemporâneo aparece
como o resultado de uma lenta evolução secular do romance pr��
ID.ltivo .A balada de Jukovski e a balada de rrikhon.ov são total�
.

mente diferentes, mas existe entre elas um vínculo genético c po­


demos uni-las através ue ±aix.as intermediárias que lestemu.Hllaut
a pa::isage.m progressiva de uma forma a outra..
.P.or vezes o gênero se desagrega. Assim, 11a literatura d.ramátiea
do século xvm, a comédia ee divide em comédia pura e tragico­
média, que deu origem ao dr.aml.l, contemporâneo. J:'or outro lado,
ass1st1mos 'incessantemente ao nascimento de novos gêneros a par­
tir dos antigo.:) que se desagregam. Assim, da. ruína · do _poema
ép1co e descritlVO do século xvur, surgiu no início do século x�x
o novo gênero do poema lírico ou romântico (byroniano). Os pro­
cedimentos autônomos que não constituem um sístema podem en­
contrar um mesmo " centro , um :novo procedimento que os una,
"

que os aprox.1me num s1stema., e este, sendo unificador, pode tor­


nar-Be o traço percept ivel, orgamzador em torno de si do novo
genero.
,,

É preciso notarmos aqui um fenômeno curioso · na sucessão


d os gêneros : geralmente nós os classificamos segundo o grau de
elevação, segundo sua importância. literária e cultural No século
.

xvnr1 a ode solene, eelebr.adora dos grandes acontecimentos po-


202 B. T011zacbevski

líticos, pertencia ao gênero elevado, enquanto que o . conto diver­


tido, despretensioso e por vezes um pouco grosseiro, pertencia · ao
gênero vulgar. .
A substituição constante dos gêneros elevados pelos gêneros
vulgares pertence ao processo da sucessão dos gêneros. Podemos
igualmente fazer um · paralelo com a evolução social, no decorrer
da qual as classes elevadas, dominantes, são progressivamente subs­
tituídas pelas camadas democráticas, por exemplo, a classe feudal
pela pequena nobreza funcionária, a aristocracia inteira pela bur­
guesia, etc. Esta substituição dos gêneros elevados pelos gêneros
vulgares toma duas formas : ·
1) Desaparecimento completo do gênero elevado. Assim, no
século XIX, morre a ode, e no seculo xvru, a epopéia.
2) A outra · forma é a penetração dos pro cedimentos do gê­
nero vulgar dentro do gênero elevado. · Assim, os elementos dos
poemas paródieos e satíricos penetraram no poema épico do século
xvni, a fim de criar formas como Ruslan e Ludmilla de Push­
kín. Na França, na décáda de vinte do século xrx, os procedi­
mentos cômicos entraram na tragédia clássica elevada, a fim de
criar o drama romântico ; no futurismo contemporâneo, os proce­
dimentos da poesia lírica vulgar (hum�rística) penetram na poe­
sia lírica. elevada; fenômeno que possibilita ressuscitar as formas
elevadas da ode e da epopéia (em Maiakovski). Pode-se observar
a mesma coisa n a.prosa de Tchecov que se desenvolveu nos jornais
humorísticos. Um traço característico dos gêneros vulgares é a fun­
ção cômica dos procedimentos. A penetração dos procedimentos
próprios aos gêneros vulgares nos gêneros elevados est(l marcada pe­
lo fato de que os procedimentos utilizados até então em fins cômi­
cos obtêm uma nova função que não está ligada ao cômico. Nisto
· consiste a essência da renovação dos procedimentos.
Também a rima dactílica, · segundo o testemunho de Vostokov
em 1817, era respeitada por seus contemporâneos ''unicamente nas
obras cômicas que nos fazem rir no momento'', enquanto que uns
vmte anos depois aparecia o poema de Lermontov Em um momeuto
difwtf, da vida, no qual níngu�m encontrou a minima graça ou
divertimento. A · rima própria ao trocadilho, que teve em Minaev
uma função cômica, perde sua comicidade em :Maiakovski.
A.contece o mesmo com alguns procedimentos. Se em Sterne
o desnudamento da composição é ainda um procedimento cômico
0'\1, pelo menos, um procedimento em que se sente a origem cômica,
isto desapareee nos epígonos de Sterne e o desnudamento do pro­
cedimento é uma forma · legítima de · construção do tema.
203

O proces® de canonização dos gêneros vulgares não se cozm.


l.ítuí em lei universal, mas é de tal forma freqüente que o hístoria�
dor da literatura, na sua pesquisa de fontes deste ou daquele fenô­
meno literário importante, é obrigado a se voltar não apenas aos
grandes fenômenos literários precedentes, mas também aos fenô­
menos insignificantes. Os grandes escritores se apropriam désses
ftmômenos próprios aos gêneros vulgares e os transformam em eâ­
uone dos gêneros elevados, onde são a fonte de efeitos estéticos ina­

t.ingídos e profundamente originais. Um período de desgaste cria­


dor da literàtnra é precedido por uma lenta acumulação nas esferas
literárias inferiores de meios ainda não canonizados que serão des­
tinados a renovar toda a literatura. O aparecimento de nm gênio
•�quivale sempre a uma revolução literária, destrona o cânone do­
minante e dá o poder aos procedimentos até então subordinlJ,dos.
Ao contrário, os herdeiros de correntes literárias ·elevadas que re­
petem conscientemente os procedimentos de seus grandes mestres
representam geralmente um conjunto de epígonos bem pouco atra­
tivos. Os ep·ígonos repetem uma combinação gasta dos procedimen­
tos, e de original e revolucionária que era, esta C{)IDbinaÇão tor­
llU-Se estereotipada e tradicional. Desta forma, · os epígonos matam
por vezes, durante longo tempo, a aptidão dos contemporâneos pa­
ra sentir a força estética dos .exemplos que eles imitam : desacre­
ditam seus mestres. Por exemplo, os ataques à dramaturgia de
Racine que encontramos · no século XIX explicam-se unicamente
pelo fat.o de que os procedimentos racinianos fartaram e desgosta­
ram todos os seus leitores pelas reproduções servis que se fizeram
na literatura epígona dos clássicos tardios privados de talento.

Voltando ao conjunto hi.stori�amente isolado de obras literá­


rias reunidas por um sistema comum de procedimentos em que
alguns dominam e unificam outros, vemos que não podemos esta- ·
belecer nenhuma classificação lógica e feehada dos gêneros. Sua•

dimensão é sempre histórica, isto é, justificada unicamente por um


certo tempo; ademais, esta distin�o se formula simultaneamente
em muitos traços, e os traços de um gênero podem ser de uma
natureza inteiramente diversa da natureza daqueles de um outro
gênero. Ao mesmo tempo, continuam logicamente compatíveis en­
tre si, porque sua distribuição não obedece senão às leis internas
da comp_osição estética.
lh preciso realizar uma aproximação descritiva n o estudo dos
gêneros e . substituir a classificação lógica por uma. elássificação
pragmática e utilitária, levando llnic.amente em conta a distribui­
ção do material n68 quadros . definidos.
'

204 B. Tomachevski

É preciso igualmente salientar que a classificação dos .gêne­


ros é complexa. As obras distribuem-se em vastas classes qlle por
seu lado, diferenciam-se em modelos e espécies. Neste sentido, des­
cendo na escala dos gêneros, chegaremos, a partir das classe..� abs­
trats,s, às distinções históricas concretas (o poema de Byron, a no­
.
velá' de Tchelwv, o roma nce de Balzac, a ode espiritual, a poesia
pr(}letária) e até mesmo às obras particulares.

. J 99·
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