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do para a cena romanesca as 978-65-87365-26-8 JORGE AMADO, SEMPRE!

práticas, as atitudes, os valores,


o imaginário da africanidade, Os ensaios e artigos apre-
em sua dimensão mítica e sentados durante o II Webiná-
humana. Sua narrativa de- rio Estudos Amadianos: 20
monstra a força da yorubaiani- anos de permanência demons-
dade, ao representar nos enre- tram que a obra do romancista
dos as ações e o triunfo dos baiano tem a constante e es-

II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS


orixás nagô-yorubanos, como pantosa magia da renovação,
parte da afirmação de suas tra- sempre suscitando novas abor-
dições identitárias. dagens que revelam nuanças
Esta coletânea mostra que, antes insuspeitadas que encan-
à medida que o tempo passa, tam seus leitores, críticos e ad-
os sentidos da obra amadiana miradores. De fato, nos diver-
expandem-se e as leituras re- sos trabalhos aqui reunidos en-
velam novas camadas de senti- contramos muitas questões
do, como experiências e sabe- novas e outras revisitadas, num
res acumulados. Trata-se, por- movimento dinâmico que
tanto, de uma obra plural, que amplia o leque de reflexões crí-
permite diversas abordagens ticas acerca da ficção amadia-
acerca de temas, linguagem, na, revitalizando continuamen-
enredos, personagens, prota- te os estudos e as abordagens
gonistas, como parte da repre- de uma obra tão consagrada
Gildeci de Oliveira Leite quanto instigante.
sentação das camadas popula- Reconheça-se mais, e sempre, que Jorge Amado foi
res do país. Assim, os estudio- Filismina Fernandes Saraiva Sem dúvida, Jorge Amado
o capitão de longo curso de uma navegação que levou
sos, munidos de novos refe- Thiago Martins Caldas Prado é um clássico do século 20. Em
renciais teóricos e metodolo- a literatura brasileira a mares nunca dantes navegados seus romances, configura-se
gias mais percucientes, procu- (Organizadores) uma geografia literária que re-
por qualquer autor de língua portuguesa.
II WEBINÁRIO
ram mostrar e analisar os di- presenta a formação da socie-
versos traços marcantes de dade da região do cacau, na
Antônio Torres saga da ocupação da terra e

ESTUDOS
uma ficção multiforme e trans-
disciplinar, iluminando a obra da integração às paisagens sul
e enriquecendo os acervos da baianas. Por outro lado, na

AMADIANOS:
crítica e da ensaística da litera- cidade de Salvador e regiões
tura brasileira. do Recôncavo configura-se a
civilização popular afro-baiana,

20 ANOS DE
Aleilton Fonseca com seu rico e multifacetado
universo religioso e cultural.
De fato, o romancista teve por

PERMANÊNCIA objetivo valorizar a cultura e a


religiosidade do povo, trazen-
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS:
20 ANOS DE PERMANÊNCIA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
EDITAL Nº 042/2021
José Bites de Carvalho
Reitor
Marcelo Duarte Dantas de Ávila
Vice-reitor
Adriana dos Santos Marmori Lima
Pró-reitora de Extensão

Programa CLIC-EICon de Formação Docente e Discente para a Leitura, Literatura,


Cultura, Baianidade e Educação Financeira. Edital 042/2021 — UNEB

Prof. Dr. Gildeci de Oliveira Leite / Coordenação Geral


Prof.ª Filismina Fernandes Saraiva / Pesquisadora Integrante
Prof. Dr. Thiago Martins Caldas Prado /Pesquisador Integrante
Ana Caroline Mendes Hora e Elizandra Rodrigues Alves / Bolsistas (estudantes)

COORDENAÇÃO DO II WEBNÁRIO
Prof. Dr. Gildeci de Oliveira Leite (UNEB) Coordenação Geral
Prof. Dr. Adeítalo Pinho (UEFS)
Prof. Dr. Aleilton Fonseca (UEFS)
Prof. Ms. Filismina Fernandes Saraiva (UNEB)
Prof. Dr. Flávio Gonçalves (UESC)
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos (UNEB)
Prof.ª Dr. ª Rosana Patrício Ribeiro (UEFS)
Prof. Dr. Thiago Prado (UNEB)

“Os custos deste livro foram financiados pelo Edital 042/2021 PROAPEX/PROEX/
UNEB.”
“O II Webinário Estudos Amadianos: 20 anos de permanência” é, também,
um subprojeto do projeto “Xangô, a corte de orixás, inquices e vodus: experiências
poéticas e narrativas” aprovado pela Chamada Universal MCTIC/CNPq 2018 com o
nome “Xangô, conhecimento nagô na Bahia: uma experiência Afonjá”, tendo o nome
modificado com permissão do CNPq.
SIGNATÁRIOS/PARCERIAS/APOIOS

INSTITUIÇÃO OBSERVAÇÕES
Grupo de Pesquisa Crítica Literária e Identidade Cultural Coordenação
(CLIC) — Coordenação sediada na UNEB (Universidade Geral
do Estado da Bahia)
Fundação Casa de Jorge Amado (FCJA) Signatário
Casa do Rio Vermelho Signatário
PPGELS (Programa de Pós-graduação em Ensino Lingua- Signatário
gem e Sociedade) - UNEB
MPEJA (Mestrado Profissional em Educação de Jovens e Signatário
Adultos) - UNEB
Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens Signatário
(PPGEL) – UNEB
PPGL (Programa de Pós Graduação em Letras) — UNEB Signatário
– Teixeira de Freitas
PROGEL (Programa de Pós-Graduação em Estudos Signatário
Literários) – UEFS (Universidade Estadual de Feira de
Santana)
PPGH (Programa de Pós-Graduação em História) — Signatário
UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz)
PPGL – UESC (Programa de Pós-Graduação em Letras Signatário
e Representações) — UESC (Universidade Estadual de
Santa Cruz)
Pós-Lit-Cult (Programa de Pós-graduação em Literatura e Signatário
Cultura) — UFBA (Universidade Federal da Bahia)
PPGEAFIN (Programa de Pós-graduação em Estudos Signatário
Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras) UNEB
CRELL (Grupo de Pesquisa Cultura Resistência Signatário
Etnia, Linguagem e Leitura)
EICon (Grupo de Pesquisa Estudos Interdisciplinares so- Signatário
bre Contemporaneidade)
GELC (Grupo de Pesquisa em Estudos Literários Signatário
Contemporâneos)
Academia de Letras da Bahia (ALB) Signatário
Academia de Letras de Itabuna (ALITA) Signatário
Academia de Letras de Ilhéus (ALI) Signatário
Academia de Letras de Aracaju Signatário
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) Signatário
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Signatário
Linguísticos (CiFEFiL)
Editora Companhia das Letras Apoio Cultural
PROEX (Pró-reitoria de Extensão) UNEB Apoio através do
Edital 042/2021
-UNEB
PIBID (Programa Institucional de Iniciação à Apoio Institucional
Docência) UNEB
Prefeitura Municipal de Seabra – Bahia Apoio Institucional
Prefeitura Municipal de Palmeiras – Bahia Apoio Institucional
Prefeitura Municipal de Salvador– Bahia (Apoio Institucional
através da Casa do
Rio Vermelho)
EDITUS (Editora da Universidade Estadual de Santa Apoio Institucional
Cruz)
Gildeci de Oliveira Leite
Filismina Fernandes Saraiva
Thiago Martins Caldas Prado
(Organizadores)

II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS:


20 ANOS DE PERMANÊNCIA

2021
Copyright © Autores. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais
forem os meios empregados, a não ser com a permissão escrita do autor e da editora,
conforme a Lei no 9610, de 19 de fevereiro de 1998.

Projeto gráfico Revisão dos textos: Capa


Quarteto Editora José Carlos Bastos Sant Anna Helga Sant´Anna

Conselho Editorial
Célia Marques Telles — Universidade Federal da Bahia
Dante Augusto Galeffi — Universidade Federal da Bahia
Edleise Mendes — Universidade Federal da Bahia
João Carlos Salles — Universidade Federal da Bahia
Sérgio Mattos — Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Rita Maria Bastos Vieira — Universidade do Estado da Bahia

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

II Webinário estudos amadianos: 20 anos de permanência / organização Gildeci de


Oliveira Leite, Filismina Fernandes Saraiva, Thiago Martins Caldas Prado. — Sal-
vador, BA: Quarteto Editora, 2021.
Bibliografia.
ISBN: 978-65-87365-26-8
1. Amado, Jorge, 1912 – 2001 – Apreciação crítica 2. Amado, Jorge, 1912 – 2001
– Crítica e interpretação 3. Crítica literária 4. Literatura brasileira. I. Leite, Gildeci de
Oliveira. II. Saraiva, Filismina Fernandes. III. Prado, Thiago Martins Caldas.
21-89641 CDD - 869.909

Índices para catálogo sistemático:


1. Crítica literária: Literatura brasileira 869.909
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB - 1/3129
AGRADECIMENTOS

À ABL (Academia Brasileira de Letras) através de seus imortais Marco


Lucchesi (Presidente) e Antônio Torres, respectivamente, pelas belíssimas
palavras na abertura e no encerramento do II Webinário;
À ALB (Academia de Letras da Bahia) e seu presidente Ordep Serra,
à ALI (Academia de Letras de Ilhéus) e seu presidente Pawlo Cidade, à
Academia de Letras de Itabuna e sua presidente Silmara Oliveira;
À Fundação Casa de Jorge Amado e sua Diretora Executiva Ângela
Fraga, e à Casa do Rio Vermelho e sua Coordenadora Geral Juciara Melo;
Aos conferencistas Félix Ayoh’OMIDIRE, Eduardo de Assis Duarte
e todos os convidados;
À Família Amado, em especial a João Jorge Amado, Maria João
Amado, Jorge Amado Neto;
A todas as nossas monitoras e monitores, às pibidianas do subprojeto
“Literatura afro-brasileira nos anos finais do ensino fundamental 8º e
9º anos”;
Aos grupos de pesquisas, programas de pós-graduação, editoras,
prefeituras e demais parcerias.
Axé!
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 13

CONFERÊNCIA DE ABERTURA

A YORUBAIANIDADE DE JORGE AMADO E O TRIUNFO DOS


ORIXÁS NAGÔ-YORUBANOS NA LITERATURA BRASILEIRA 17
Félix Ayoh’OMIDIRE

TESTEMUNHOS E APRECIAÇÕES

ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO 45


Antonio Torres

DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A


DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS 57
Cyro de Mattos

A RELIGIÃO DE JORGE AMADO, UMA NOVA APRECIAÇÃO 71


Ordep Serra

A REVISTA MERIDIANO E SEUS 80 ANOS 77


GILFRANCISCO

IDENTIDADE, CACAU, HISTÓRIA E SOCIEDADE

IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM


JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO 83
Aline Santos de Brito Nascimento

JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS 99


Alisson Vital Oliveira Santos
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS
LITERATURAS DO BRASIL 115
Cid Seixas

A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO 127


Denise Dias , Licia Soares de Souza e Maysa Miranda

HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA


VERMELHA, DE JORGE AMADO 147
Edvaldo A. Bergamo

JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA


RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS 173
Elena Manzato

AMADO AXÉ DE MAR MORTO 185


Gildeci de Oliveira Leite

SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM


E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA 205
Jadson Santana da Luz

O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO


GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO 221
João Paulo Ferreira dos Santos

JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE


GASTRONOMIA E LITERATURA 239
Laís Conceição Portela

A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO 249


Lurdes Bertol Rocha

A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E


DESENVOLVIMENTO REGIONAL 259
Maria de Lourdes Netto Simões
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE
JORGE AMADO 269
Pedro Dorneles da Silva Filho

AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS


OBRAS DE JORGE AMADO 283
Volker Jaeckel

RECEPÇÃO, CRÍTICA, MEMÓRIA E ENSINO

NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM


HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES 299
Alzira Tude de Sá

LER O QUE NÃO EXISTE 319


Antonio Carlos Sobrinho

JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM


TEMPOS DE ISOLAMENTO 335
Camila Fernandes da Costa

MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA 353


José Otávio M. Badaró Santos, Marcello Moreira

IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS


MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS 363
Maria José de Oliveira Santos
APRESENTAÇÃO
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Quando pensamos pela primeira vez na realização de um evento


para discutir a obra amadiana, imaginamos, fanopeicamente, as cenas
dos debates, quem sabe em algum espaço do Pelourinho em Salvador ou
em outras alturas, na Chapada Diamantina. A ideia seria materializada
após um edital, que possibilitasse o sonho de obter a mínima infraes-
trutura para a realização de nossas atividades. Com o passar do tempo,
a fé no financiamento público fora afastada pelos tempos sombrios que
vivemos. Como se não bastassem as agruras da política, estouraram a
pandemia, o covid-19 e o necessário confinamento, parte de nossas me-
didas sanitárias. A fanopeia, a imaginação visual, as telinhas e telonas
abriram-se novamente na cabeça, agora às vantagem e desvantagem de
um webinário: possível, apesar de suado aos nossos bolsos. Já tínhamos
alguma experiência acumulada com as atividades do Canal Universida-
de da Gente, no YouTube. Bastou juntar as diversas forças de trabalho
do CLIC (Grupo de Pesquisas Crítica Literária e Identidade Cultural),
convidar outros Grupos de Pesquisas, programas de pós-graduação, a
Fundação Casa de Jorge Amado (FCJA), a Cia das Letras, editora de
Amado. Fizemos em 2020 o I Webinário Estudos Amadianos com nossos
esforços, com as especiais ganas dos convidados, de monitores, muita
parceria e também investimento pessoal de alguns membros. Em 20 de
agosto de 2020 o Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte fez a abertura e
repetiu sua participação em 2021.
O cenário pandêmico continua neste 2021, ampliamos nossas parcerias
e chegamos a 27 (vinte e sete) parceiros entre signatários e apoios, sob a
regência do CLIC. Agora, reunimos nove programas de pós-graduação,
quatro universidades, três prestigiadas Academias de Letras — da Bahia
(ALB), de Ilhéus (ALI) e de Itabuna (ALITA) —, prefeituras e a Casa do
Rio Vermelho, além das parcerias de 2020 como a FCJA. O Webinário
Estudos Amadianos — evento internacional — foi inserido na agenda
de formação de leitores do Brasil e demais países de língua portuguesa,
Nigéria, Itália, EUA, França, que nos cederam parte de suas i­ ntelligentsias
em 2020 e 2021.
Com a publicação do Edital 042/2021 da Pró-reitoria de Extensão
de nossa Universidade — a UNEB (Universidade do Estado da Bahia)
— fomos contemplados no Programa de Apoio a Projetos de Extensão
(PROAPEX) com nosso Programa CLIC-EICon de Formação Docente
e Discente para a Leitura, Literatura, Cultura, Baianidade e Educação
Financeira (PCLIC-EICon). O PCLIC-EICon compreende uma série
de ações, inclusive “II Webinário Estudos Amadianos: 20 anos de per-
manência” e a publicação deste livro.
Assim, garantimos o livro com significativa participação de nossos
convidados — o aviso intempestivo da existência de recurso para um
livro, causou surpresa em agendas sempre sacrificadas, daí porque nem
todas as 52 comunicações foram enviadas. O “II Webinário Estudos
Amadianos: 20 anos de permanência” — que também compõe o projeto
de pesquisa “Xangô, a corte de orixás, inquices e vodus: experiências
poéticas e narrativas”1 — ainda pode ser visto no Canal Universidade da
Gente. Foram 20 mesas e mais de 40 horas de 4 a 31 de agosto de 2021.
De forma emblemática, o Prof. Dr. Félix Ayoh’OMIDIRE — Instituto de
Estudos Culturais (Ilé-Irúnmolè) / Obafemi Awolowo University, Ile-Ife,
Nigéria — apresentou-nos a conferência magna e nos confirma aqui “A
yorubaianidade de Jorge Amado e o triunfo dos orixás nagô-yorubanos
1
Projeto aprovado pela Chamada Universal MCTIC/CNPq 2018 com o nome
“Xangô, conhecimento nagô na Bahia: uma experiência Afonjá”, tendo o nome
modificado com aprovação do CNPq.
na literatura brasileira”, mostrando a importância de Jorge Amado para
a negro-mestiçagem.
No capítulo “Testemunhos e Apreciações” contamos mais uma vez
com a generosidade do imortal Antônio Torres (ABL/ALB). Torres foi o
responsável por encerrar o evento em uma mesa com os também imortais
da Academia de Letras da Bahia (ALB) Ordep Serra e Edilene Matos.
Ordep Serra nos contempla com um texto no mesmo capítulo, assim
como o imortal Cyro de Mattos (ABL/ALI/ALITA) e o pesquisador
Gilfrancisco Santos, este último, ainda resistente à algumas tecnologias,
restringiu sua participação à escrita, assim como Cid Seixas e Maria José
de Oliveira Santos. Reunimos no capítulo “Identidade, cacau, história e
sociedade” leituras amadianas sobre literatura de axé, afro-brasilidade,
cacau, relações entre literatura e história e a semana de 1922. No último
capítulo, a recepção crítica, a memória e o ensino amadianos foram a pauta.
Ao todo, temos 24 (vinte e quatro) valiosas contribuições aos estudos
amadianos publicadas aqui. Acreditamos, que nossos esforços em produzir
e difundir conhecimento a partir de leituras da obra do Obá de Xangô
tem produzido bons frutos. São resultados de pesquisas e provocações,
que afirmam a atemporalidade da perene obra de Jorge Amado e suas
contribuições para nossa baianidade, brasilidade. Tudo isso contrariando
Jorge Amado sobre ele ficar esquecido e ser relembrado apenas 20 anos
após sua partida. Acho que Jorge disse isso e pediu o contrário, se foi
ebó, à maneira de Omolu, o ebó deu aláfia!

Salve Jorge Amado em seus 20 anos de permanência!


Bahia, outubro de 2021.
Prof. Dr. Gildeci de Oliveira Leite (UNEB)
gildeci.leite@gmail.com
AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

A YORUBAIANIDADE DE JORGE AMADO E O TRIUNFO


DOS ORIXÁS NAGÔ — YORUBANOS NA LITERATURA
BRASILEIRA1

Félix Ayoh’OMIDIRE2

Oyá entrou no barracão vestida com as cores do crepúscu-


lo, na testa a estrela vespertina, verde perfume de mar nos
seios de ébano. Não a esperavam, mas não houve surpresa
ou rebuliço, apenas o som dos atabaques cresceu, e na
roda dos santos êbômins, ekedes e iaôs curvaram-se em

1
Texto adaptado da conferência magna proferida na abertura do II Webinário
Internacional de Estudos Amadianos: 20 Anos de Permanência, organizado pela
Universidade do Estado da Bahia, e acontecido no Canal Universidade da Gente,
no YouTube, de 4 a 31 de agosto de 2021. Agradeço a minha filha, Ifedayo Imanuela
Ayoh’Omidire pela transcrição fiel, criteriosa e cuidadosa que fez da minha palestra
inteira, possibilitando a sua apresentação aqui no formato atual e atualizado.
2
Félix Ayoh`OMIDIRE é professor titular da diáspora yorubá, estudos literários
e culturais brasileiros e afro-latino-americanos, além de diretor do Instituto de
Estudos Culturais (Ile-Irúnmolè), na Obafemi Awolowo University, Ile-Ife, Nigéria
desde 2018, é também Professor Visitante do Programa de Pós-graduação em
Literatura e Cultura (PPGLitCulT), Instituto de Letras da Universidade Federal
da Bahia onde atua ainda, desde 2019 como Orientador Pedagógico do Curso
de Língua e Cultura Yorubá, oferecido pelo Núcleo Permanente de Pesquisas e
Extensão em Letras (NUPEL-UFBA). É autor de vários livros sobre a visão do
mundo yorubá-africana nas diásporas latino-americanas, tendo publicado entre
gramáticas e livros didáticos para o ensino de Yorubá como língua de herança
no Brasil, e obras teóricas sobre a epistemologia yorubá-africana e sua aplicação
nos campos de letras, literatura e cultura. Destaca-se entre outras sua obra maior
YoruBaianidade: Oralitura e matriz epistémica nagô na construção de uma identidade
afro-cultural nas Américas (Salvador: Editora Segundo Selo, 2020).

17
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

reverência. Pelo caminho, recolhera injustiças e malfeitos,


trazia-os num feixe sob o sovaco esquerdo, na mão direita
os raios e os trovões.

(AMADO, Jorge. O Sumiço da Santa)

Protocolo de abertura
Como um bom yorubano, falando da yorubaianidade, eu não pos-
so começar sem fazer o ijuba, que é a nossa maneira cultural de pedir
agô a todos e a todas que é de direito, porque na nossa cultura a gente
respeita muito a quem é de direito, a gente não entra em casa alheia sem
pedir agô ao dono da casa, porque senão, como se diz na minha língua,
“ewuré tó wole ti kò kágò, o deran a muso, àgùntàn tó wole tí kò kágò,
o deran à mú borè...”3
Então, eu vou fazer meu agô, meu ìjúbà4 começando com Olórún
que é o senhor de todos e que tem o sopro da vida. Permitam então que
peça este primeiro agô à Olórun:

Ọlọ́run ọba ìbà rẹ o! (Faço minhas reverências a Olorun Oba)


Ọlọ́run ọba ìbà rẹ!.

3
Lit. Quando uma cabra entra numa casa sem pedir licença, ela será amarrada sem
cerimônia, e um carneiro qualquer que entrar num recinto sagrado sem pedir agô,
ele será sacrificado no mesmo local para alimentar o axé do orixá a quem ele assim
desrespeitou.
4
Na cultura yorubana, ìjùbá é o nome que se dá ao ritual protocolar que cabe a
qualquer pessoa fazer de praxe quando for tomar e fazer uso de palavra em público.
O intuito desse ritual da oralidade yorubana é para pedir agô aos mais velhos e
a todos presentes para que a palavra não saia errada da boca de quem fala. Na
memória da oralidade nagô-yorubanas nas diásporas latino-americanas, esse ritual
deu origem às diversas expressões com a mesma finalidade: “motumbá” no Brasil,
e “moyugba” em Cuba.

18
AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

Bí adìyẹ́ ó bá mumi ajúbà Ọlọ́run, (Pois a galinha nunca bebe água sem re-
venciar a Olorum)
Rírò ni tènìyàn, ṣiṣe ni tỌlọ́run, (O homem propõe, Olorum dispõe)
adífá fun àdàbà sùsù, (Assim se chamava o Awo que jogo Ifá
para
èyí tó renú àká òǹyagbẹ̀ a pomba fecunda que ia colocar seus ovos
lọ rèé yé sí, no celeiro do agricultor)
o ñse Ọlọ́run ọba, ìbà rẹ, (A pomba pede agô a Olorum para garantir
proteção
Ọlọ́run ọba ìbà rẹ! a seus ovos)
Bádìyẹ́ ó mumi, a júbà Ọlọ̀run, (da mesma forma que faz a galinha
Ọlọ́run ọba, ìbà rẹ! cada vez que vai beber água)

Faço meu ìbà também a todas as forças que sustentam o mundo, o


nosso mundo que nasceu aqui em Ile-Ifè, de onde estou falando nesse
momento que é o nosso “orírun ayé” o berço do mundo. O ponto li-
miar e o marco zero da humanidade é aqui na nossa terra de Ile-Ifè. E
aqui, a gente costuma referenciar essa cidade como a “cidade dos 201
irunmolès e das 601 divindades yorubanas, que se alinham nos grupos
respectivos de irínwó imolè ojúkòtún (400 à direita) e Igba imolè ojùkòsì
(200 à esquerda) mais o “um” que, na verdade, é o único irúnmolè vivo
e presente, na pessoa do nosso Oònirísá (o rei-divino, senhor e sobreano
de Ile-Ifè). E pedir agô a todas essas 601 irúnmolès pode levar um dia
inteiro, por isso eu não vou pedir um a um senão a gente não vai sair
daqui hoje. Porém, mesmo assim, não vou me furtar à obrigação proto-
colar de fazer meu ijùbà a todos os orixás yorubanos que têm ficando pé
na nossa querida Bahia: a Ògún Lákáayé, a Oya òríri, a Sàngó Olúkòso
Àyárán iná, a Òsun sèngèsé olóòyà iyùn, a Òbatala obàtáàsà, oba ta-
kuntakun ti n lo lóde ìrànjé, a Èsu Láàalú Ògiri òkò, Láaróyè Arògó,
Ebora ti ñjé Látopa!; a Obalúayé Oníwòwó àdó, òrúnmon lóògùn ìkà

19
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

sonù, e a todos os demais orixás — Yemonja, Òsóòsì e todos os orixás


que conformam o grande panteão da baianidade-nagô do nosso querido
Brasil e Bahia eu faço esse ìjúbà, faço esse meu agô, antes de começar
esse meu falar de hoje.
Também gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer a
quem de direito é, principalmente aos organizadores desta tarde de fala
e de discussão entorno dos 20 anos do desaparecimento do grande Jorge,
o eterno Amado dos romances brasileiros. Agradeço ao professor Gildeci
de Oliveira Leite, e aos grupos de pesquisa por ele encabeçado — por
terem pensado e idealizado esse evento que vai levar todo esse mês de
agosto para trazer ao nosso cotidiano esse grande escritor baiano que
levou a Bahia e o Brasil a todos os cantos e recantos do mundo, fazendo
todo mundo suscetíveis e passíveis às forças dos encantados yorubanos.
Eu vou começar aqui contando um pouquinho da minha própria
história e trajetória nas pegadas de Jorge Amado nesse primeiro segmento
que eu chamo “Jorge Amado e eu no doutorado da Bahia”. Há exatamente
20 anos, a 6 de agosto, quase dia por dia agora, quando eu daqui mesmo
de Ile-Ife onde estou hoje, soube da passagem do grande Jorge Amado,
cujas obras formaram uma grande parte do nosso acervo literário nesta
universidade na cátedra de estudos brasileiros da nossa Universidade de
Ile-Ife. Aqui, onde a gente começou já desde os primeiros ou segundo
ano da licenciatura a ler obras como o Mar morto de Jorge Amado, “A
Bahia de todos os santos” e alguns outros textos. Ai quando em agosto
eu recebi a notícia, naquela época não tinha internet como essa que tenho
hoje, mas, de alguma forma, eu recebi a mensagem de que acabava de
falecer o grande escritor Jorge Amado. Eu fiquei muito comovido, porque
pela leitura que a gente fazia, a gente já começava a pensar nele como
um verdadeiro escritor amado e amador das coisas negras e mestiças do
Brasil. E aconteceu que aquele momento fosse também o momento que
eu estava desenhando e finalizando o meu anteprojeto de pesquisa para

20
AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

meu doutorado, que eu estava querendo realizar na Universidade Federal


da Bahia, no Instituto de Letras. Aí eu já tinha todos os esboços desse
projeto, mas, com a morte de Jorge Amado, eu resolvi focar a minha
pesquisa na imagem da Bahia fora do Brasil, desenhada nas obras de
Jorge Amado, e foi a primeira versão do meu projeto de pesquisa de
doutorado que eu entreguei para a consideração da banca de seleção do
doutorado naquele ano, e, com a proposta e a bênção de quem seria mi-
nha futura orientadora, a professora doutora Florentina da Silva Souza.
Então naquele ano o projeto passou e eu cheguei na Bahia alguns meses
depois já preparado a pesquisar o Jorge Amado como o foco principal
do meu doutorado. Mas depois, até através da leitura dele, eu comecei a
divagar em outras praias, sempre não me afastando dos estudos literários
afro-brasileiros, mas aprofundando em algumas inovações textuais do
gênero, que eu acabei achando nas obras do grande Mestre Didi, mas aí
esta segunda parte é história para outro dia.
Já naqueles momentos da confecção do meu anteprojeto, eu tentei
colocar Jorge Amado dentro do que eu entendia como a literatura brasileira
na época onde eu o via como um dos maiores romancistas da Moderni-
dade, quer dizer do tempo moderno, e eu via a riqueza, a profundidade,
a seleção profícua das imagens que ele trazia da sua terra tão amada por
ele que tornou a Bahia tão irresistível fora dos confins do Brasil como
um país, e até da América Latina como um continente.
A partir daqui eu vou tentar dividir a minha fala aqui em seg-
mentos para poder dar conta dessa imagem da personalidade literária,
humana, e linguística que eu consegui unir em torno de Jorge Amado
naqueles esboços especiais do meu projeto de doutorado que acabou
virando o que hoje é esse belíssimo livro de onde eu tomei emprestado
inclusive o título da minha fala de hoje, ou seja, minha obra maior —
­YoruBaianidade: Oralitura e matriz epistêmica nagô na construção de uma
identidade afro-cultural nas Américas. E eu hoje como sempre continuo

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

acreditando que Jorge Amado foi uma peça-chave na construção dessa


identidade afro-cultural nas Américas a partir da Bahia nas obras dele
como a gente vai ver.
Vou começar com um tipo de análise sincrônica do percurso de Jorge
Amado, pois eu reconheço nele aquele ser literário que já foi se mostrando
desde 1928, quando ele fazia parte da Academia dos Rebeldes, onde ele já
começava a fazer a subversão da literatura modernista da época quando
ele dizia que o intento dele, e do grupo que ele liderava — Academia
dos Rebeldes — era fazer arte moderna sem ser modernista. Então ele
já começou com um grito de guerra para se fazer diferente e ninguém
ficaria surpreso anos mais tarde, quando as obras dele começaram a con-
formar com o que ficaria conhecido como o regionalismo nordestino no
Brasil, movimento no qual ele atuava e escrevia no convívio de grandes
nomes como o Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Aurélio Buarque
de Holanda, Jorge de Lima, Raquel de Queiroz, Amando Fontes, João
Guimarães Rosa, e tantos outros nomes valiosos da literatura brasileira.
Só que, deles todos, Jorge Amado vai se sobressaindo como alguém que
traz aquela diferença que é o aspecto negro que predomina no regiona-
lismo dele, e não só o negro, mais o Yorubano-nagô, que é um elemento
que acaba se tornando grande assinatura da maioria das personalidades
fictícias, que ele criou a partir, como os críticos dele souberam reconhecer,
de personagens reais do mundo afro-baiano com o qual ele convivia de
forma intensa no cotidiano da sua amada Bahia.
Jorge Amado começou já desde muito cedo a conviver com esse
mundo predominantemente afro-baiano, mestiço e yorubano na sua
amada Bahia. Só para lembrar que, apenas com 16 anos, em 1928, ele
já travava amizade e frequentava a casa do grande pai de santo Procópio
de Oxóssi em cuja casa ele chegou a ser ogan. E em anos subsequentes,
principalmente a partir dos finais dos anos 1930, do início para meados
dos anos 1940, Jorge Amado vai convivendo intensamente com os grandes

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AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

nomes da sociedade afro-baiana, principalmente yorubaianas nas per-


sonalidades das grandes iyalorixas e babalorixas da Bahia como a Mãe
Menininha do Gantois, a Mãe Senhora Oxum Muiwá do Ilê Axé Opo
Afonjá que, já naqueles idos, vai nomeá-lo um dos Obás de Xangô como
Otun Oba Arolu, no terreiro do Axé Opô Afonjá e cujo filho carnal,
Mestre Didi Axipa, nascido Deoscóredes Maximiliano dos Santos, vai
se inspirar muito nas obras de Jorge Amado para dar a vida àquilo que
eu, nas minhas pesquisas chamo de “o gênero afro-baiano da literatura
afro-brasileira,” que é o gênero dos contos afro-baianos, contos crioulos da
Bahia, contos nagô da Bahia, que o Mestre Didi tirou do acervo oracular
de eerindinlogun que circulava desde os tempos primórdios nos terreiros
de candomblé, narrando histórias dos orixás e dos encantados, contados
pelos tios e tias da costa que formavam o baluarte da educação do povo
de santo, e da geração dos crioulos brasileiros dos negros afrodescenden-
tes nascidos no Brasil. E este Mestre Didi também, já é bom lembrar,
formaria por exemplo, na obra de Jorge Amado um personagem vivo e
fictício que seria aquele sacerdote do culto de Baba Egum na obra Dona
Flor e seus dois maridos que era o único capaz de dar cabo nas passagens
abiku do protagonista da obra, que era um Exu namorador na pessoa
do Vadinho, mais isso a gente vai ver mais adiante.
Outras personagens que ele sempre cortejava por meio do mundo dos
povos de santo era a Mãe Ondina Valéria, que era sucessora da própria
fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Aninha, essa sacerdotisa ímpar
que formaria e prestaria o seu nome a uma personagem de iyalorixá da
obra amadiana O Compadre de Ogum, uma das grandes obras de Jorge
Amado que a gente vai ter a oportunidade de conversar nesta tarde. Já
que estamos aqui evocando os personagens, temos que falar também da
evocação até de personalidades yorubanas reais, mais que são na verdade
habitantes da Yorubalândia e não da própria Bahia, uma delas que seria
representada, por exemplo, na fictícia Mãe Majebasã, corruptela abra-

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

sileirada do nome Májéngbásán, que ele trouxe em Tenda dos milagres,


inspirado na mãe carnal de um dos maiores agentes da implantação da
visão do mundo yorubana dentro da construção da identidade baiana
que era o babalawo Martiniano Eliseu do Bonfim, mais conhecido como
Ojelade, que era uma grande figura nos terreiros queto-nagô da Bahia
nos finais do século XIX para o início do século 20.
Esse convívio de Jorge Amado com o povo de santo seria mais refor-
çado quando ele encontrou na realidade no cotidiano da Bahia, grandes
almas da própria baianidade, irmanadas como ele mesmo aos mistérios
dessa terra encantada, nas pessoas de Dorival Caymmi, grande cantor
da baianidade; Hector Julio Páride Bernabó, Caribé, o grande artista da
baianidade; Pierre Fatumbi Verger, que era o grande babalawo da ponte
aérea entre a Bahia e a Yorubalândia, viajando desde Ketu até Ibadan,
com temporadas prolongadas até aqui mesmo em Ile-Ife, onde inclusive
ele foi professor visitante e grande pesquisador.
Jorge Amado em seu convívio com esse riquíssimo elenco real de
personalidades da Bahia conseguiu juntar no que alguns críticos dele
chamariam da segunda parte, da parte mais profunda e mais fértil da
produção literária da obra dele, que é o que viria a ser o credo da yorubaia-
nidade de Jorge Amado, obra após obra a começar pelo romance Jubiabá.
Nesse segmento que eu chamo de “ABC da yorubaianidade de Jorge
Amado” a gente vai conseguir ver, como ele, em obra após obra, conse-
guiu trazer para colorir as páginas do livro dele, literalmente, a imagem
do dia a dia dos valores dessa grande população negro-mestiça que vive
e se sustenta dentro de uma concepção do mundo que eu ouso chamar
de — “concepção do mundo yorubaiano”, quer dizer, um casamento
feliz entre aquela identidade yorubana trazida pelos grandes tios e tias
das costas oeste-africanas, das terras de Ketu, das terras de Sabé e de
Menigri, na atual República de Benin, o antigo Daomé, como também,
das terras de Oyo de onde teria saído a Iya Nasso, fundadora da Casa

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Branca e cofundadora do primordial terreiro da Barroquinha, que seria


o terreiro-avô de todos os terreiros de candomblé do Brasil hoje.
Jorge Amado em obra após obra vai trazendo essa fala, identidade,
personalidade, crença e essa personalidade baiana vinculada fortemente à
identidade yorubana-nagô dos terreiros Ketu para poder reforçar e idea-
lizar personagens fortes, que são personagens completamente redondas,
completamente humanas na sua grandeza e, também, nas suas fraquezas
para poder lidar com, e negociar na grande sociedade baiana-brasileira
as questões do dia a dia em busca pela cidadania, sobrevivência, a vida
amorosa, e os valores éticos, étnicos e estéticos de um povo negro-mestiço
que se via desde o centro soteropolitano da Bahia até os confins do grande
Recôncavo baiano, as grandes terras de Santo Amaro da Purificação, Na-
zaré das Farinhas, Cachoeira, São Félix, Maragogipe, e todo o Recôncavo
adentro, inclusive toda a parte das ilhas de onde sempre os personagens
de Jorge Amado vão sair para erguer a voz nagô-yorubana para dialogar
com a grande sociedade baiana e brasileira, e a partir desses, inscrever-se
na literatura universal.
Então a gente vê isso na obra Jubiabá, na vida do pai de santo
­Jubiabá, como também em Mar Morto, onde se vê toda aquela imagem
de c­ arregos e balaios, que hoje é repetidamente reinventada na festa de
2 de fevereiro, que é a festa de Iemanjá na grande Bahia. Personagens
como a digníssima protagonista de Dona Flor e seus dois maridos na qual o
próprio Exu é personificado e personalizado pelo Vadinho, que traz toda
aquela imagem do Exu brincalhão, de aquele que faz toda a subversão
dos valores da sociedade e até da filosofia ética eurocentrada que já divi-
de o mundo em separáveis mundo dos vivos e dos mortos, mais onde o
Jorge Amado vai trazer o seu Vadinho como aquele que percorre os três
mundos yorubanos5 sem barreiras e sem fronteiras, vindo diariamente
5
Ao contrário do que afirma a ontologia ocidental que divide o mundo em duas

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do dos mortos para namorar no mundo dos vivos sem sofrer nenhum
impedimento nem constrangimento.
A gente vê isso em personagens fortes que lembram grandes orixás
como Oyá, Iansã (eparrei!) na personagem de Tereza Batista, que era a
afrodite valentona nagô-yorubana do interior da grande Bahia, ou numa
Gabriela que era de cravo, canela e canjica, porque aquela Gabriela já
traz, ao pensar nela, aquela beleza da mulher africana que vai equilibrar
na cabeça a sua cabaça de comida, de água e tudo e, ao mesmo tempo
que equilibra aquilo tudo na cabeça, com as mãos livres, vai carregando
o saco de mantimento para a família, e o tempo todo com o seu filho
carinhosa e seguramente amarrado às costas com seu belíssimo pano
da costa, e assim vai ficar em toda sua liberdade filial para inventar e
descobrir o mundo desde este trono improvisado, que é as costas da pró-
pria mãe. Então, vê-se toda essa graça e beleza na Gabriela cravo, canela
e, acrescento eu, canjica, de Jorge Amado, que virou a grande, talvez a
primeira namoradinha do Brasil, exportada para o mundo todo porque
até hoje as gracinhas de Gabriela continuam encantando públicos tanto
televisivos, quanto literários no mundo inteiro.

esferas irreconciliáveis dentro da filosofia eurocêntrica baseada na doutrina judaico-


cristã – o céu e a terra, paraíso e inferno, física e metafísica etc. a epistemologia
yorubana contabiliza três mundos distintos conforme informa o escritor-
dramaturgo yorubano mais conhecido da contemporaneidade – Wole Soyinka
(Prêmio Nobel da Literatura, 1986). Em sua obra da crítica-literária publicada
em 1976 – Myths, Literature and the African World (Mitos, literatura e o mundo
africano) – Soyinka fala dos três mundos coexistenciais presentes no imaginário
coletivo dos povos yorubá-africanos como sendo compostos de 1. O mundo dos
vivos; 2. O mundo dos mortos (ancestrais); e 3. O mundo daqueles que hão de vir
(os irunmole, os seres que ainda vão nascer, etc). Na ontologia yorubana, não existe
barreiras nem separações entre esses três mundos, de forma que os ‘ocupantes’ de
uma esfera possuem toda a liberdade em circular nas demais esferas sem sanções
nem impedimentos.

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Ou pensando na obra Tenda dos milagres onde os feitiços e sorti-


légios nagô-yorubanos que formam parte dos textos do gênero que eu
chamo de “gêneros da oralitura yorubana”, que é um gênero exclusivo
para a literatura yorubana onde os textos de performance oral têm que
seguir uma estrutura roteirizada como se fossem escritas porque na
verdade foram escritas, organizadas, arranjadas na memória, na cabeça
dos grandes intérpretes. Textos como oriki, que se conhecem muito
na Bahia e no Brasil, como ìjálá (cântico de caçadores), como odù ifá
(textos oraculares) tanto do sistema do eerindinlogun (jogo de búzios)
quanto do òpèlè ifá, onde os oráculos conseguem decifrar e desvendar
os segredos do outrem, codificados nos itàn e àse ifá de ontem, de hoje
e até do amanhã revelados pela boca e memória dos sábios babalawos,
que conseguem manipular estes complexíssimos processos. Processos
esses onde a oralitura predomina como a possibilidade de tornar legível,
de recitar e de usar grandes textos orais como se fossem páginas escritas
onde não se pode nem trocar palavras nem perder o fio porque a eficácia
do texto se perderá nesse contexto mágico sortilégico como a gente vai
ver em certas análises, que pretendo fazer mais adiante de uso que Jorge
Amado fez desse gênero literário em sua obra.
Ou pensando ainda numa obra como Os pastores da noite (e das
madrugadas) do axé da Bahia, desde os terreiros, das rochas de São
Gonçalo do Retiro até as Roças de Maragogipe, de Cachoeira, onde dia
e noite inclusive, até na ilha de Itaparica, onde os baba eguns, os espíritos
dos antepassados, se imperam para conduzir a fé do povo da Bahia nessa
caminhada yorubana, que seria diariamente revivificada e reinventada
para poder sustentar os ideários de um povo afro-mestiço, que formou o
predileto do grande romancista Jorge Amado, que até era capaz de fazer
todo um santo sumir e reaparecer sem avisar naquela famosa trama O
sumiço da Santa numa cidade, que outros já viram como Cidade das
mulheres, a terra da Bahia.

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Então podemos ver nesse grande passeio das obras amadianas essa
presença da identidade, dos valores, da visão do mundo e da magia
nagô-yorubana, que ele amadurece de personagem em personagem, que
ele vai trazendo, não para meramente enfeitar o seu texto literário, mas
implicitamente fazer atuar, para trazer o protagonismo, a agência desse
segmento afro-mestiço da Bahia num diálogo intenso com a grande
sociedade brasileira pela dignidade humana, pelos valores éticos e étni-
cos, pelo fim dos estereótipos e do racismo, e para combater inclusive as
injustiças sociais, como nos textos de cunho marxista-comunista desse
inesquecível escritor do bairro do Rio Vermelho.
Para não ficar só nessa parte teórica eu vou tentar trazer elementos
reais dessas grandes leituras da yorubaianidade de Jorge Amado, que eu
tive o privilégio de ler, ano após ano, obra após obra, saída do grande
estábulo desse grande escritor. Todo mundo sabe que, quando a gente
escuta a música popular da Bahia, música de terreiro virada música de
carnaval da Bahia todo misturado que só se vê na Bahia, como ele mesmo
fala no subtítulo daquela obra mágica — O sumiço da Santa, história
de feitiçaria, que o próprio autor chama de “um romance baiano que
só podia acontecer na Bahia” porque para ela acontecer em outro lugar
qualquer, era praticamente inimaginável.
Quando a gente escuta músicas do carnaval baiano que nasceu na
verdade desse grande imaginário yorubaiano da baianidade-nagô, cantos
como “Oju oba ía lá e via, Oju obá ía!” ou músicas-mantras como “Ju-
biaba ba-ba-ba-babalawo! Jubiaba, Jubiaba, babalawo...! Jubiabá” a gente
já sabe que o que está sendo evocado ali é toda uma visão do mundo
sustentado pela fé do povo negro-mestiço da Bahia, que nasceu nos ter-
reiros de candomblé onde o Ojú obá, os olhos do rei xangô, aquele que
ocupa o cargo e posto de olhar e velar pelo bem-estar da comunidade de
terreiro, a gente já sabe o quanto isso enaltece os valores éticos, étnicos
e estéticos da Bahia.

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Eu vou tentar ler aqui alguns fragmentos do capítulo que dediquei ao


grande Jorge Amado e a yorubaianidade dele nessa preciosa obra minha
que é YoruBaianidade: Oralitura e matriz epistêmica nagô na construção
de uma identidade afro-cultural nas Américas. Eu vou começar a leitura a
partir da página 347, que é o capítulo justamente que foi dedicado nessa
obra a Jorge Amado. O título do capítulo já diz tudo: “Oju oba ía lá e
vía — a yorubaianidade de Jorge Amado, Verger e Caribé.”
Lendo aqui da página 347 digo e reafirmo:

São mundialmente famosos os cenários e os personagens


da Bahia retratados nos romances de Jorge Amado, tra-
zendo a geografia baiana: das viagens de saveiros entre a
Baía de Todos os Santos e Santo Amaro da Purificação
(O Sumiço da Santa), ao cheiro doce fumo que viajava
no eixo Cachoeira - São Félix e outros portos pequenos,
Maragogipe, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Itapa-
rica [...] (Jubiabá), como ele mesmo diz nas páginas de
Jubiabá como se justificasse, por exemplo, o inquestionável
gosto com a qual o autor de Tenda dos milagres retratou
a geografia cultural da cidade metropolitana de Salvador
no ‘ intrépido andarilho’ que ele mesmo chamou de nada
turístico, senão uma verdadeira romaria que fez realizar o
grande Jorge Amado ao visitante ilustre, ninguém menos
que o Prêmio Nobel James D. Levenson, o grande homem
da ciência dos Estados Unidos na boa companhia da irre-
sistível e eterna mulata Ana Mercedes, giro este que serviu
de pretexto para o romancista apresentar aos seus leitores
espalhados mundo afora a crème de la créme da baianidade
como quem estivesse exibindo a riqueza que a Bahia tem
para barganhar um lugar ao sol da globalização cultural.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Ouçamos a narrativa do grande mestre (Ayoh’OMIDIRE,


2020: 347-348)
Aqui vou continuar citando as próprias palavras do romancista na
página 392 da Tenda dos Milagres edição de 2001.

Levenson correra a cidade [...] Conversou com variada gente:


Camafeu de Oxóssi, Eduardo de Ijexá, Mestre Pastinha,
Menininha e Mãezinha, Miguel Santana Oba Are. Fugiu
dos notáveis e recusou jantar de homenagem a pretexto
de indisposição intestinal, declinando do fino menu e do
discurso de saudação do acadêmico Luiz Batista, uma
notabilidade. Foi comer vatapá, caruru, efó, moqueca de
siri mole, cocada e abacaxi no alto do Mercado Modelo, no
restaurante da finada Maria de São Pedro, de onde via os
salgueiros de vela desatados cortando golfo e as coloridas
rumas de frutas na rampa sobre o mar.
No candomblé de Olga, filha de Loko e de Yansan, no
Alaketu, reconheceu os orixás dos livros de Arcanjo e,
fazendo ouvidos moucos às explicações do noivo da moça,
os saudou com alegria e amizade. Apoiado em seu reluzente
paxorô, Oxalá veio dançando até ele e o acolheu nos braços.
Seu encantado, meu pai, é Oxalufã, Oxalá velho, disse-lhe
Olga, levando-o para ver os pejis, uma rainha aquela Olga,
em seus trajes e colares de baiana, com cortejo de feitas e
iaôs. Rainhas nas ruas da cidade, com seus tabuleiros de
comidas e doces, duplamente rainhas nos terreiros, mães
e filhas-de-santo, escrevera Pedro Arcanjo. (AMADO,
2001:62)

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Então, já podemos ver nesse andarilho da grande cidade da Bahia


como o próprio Jorge Amado chama esse passeio, o que para ele repre-
senta la crème e a cerne étnica, ética e estética, ou seja, a própria essência
e beleza da Bahia, que a Bahia traz e que transformou a Bahia e lhe
renderia aquela fama de ser a Roma Negra das Américas. Assim, a gente
vê essa romaria que o romancista fez fazer o seu personagem ilustre na
personalidade do prêmio Nobel James D. Levenson, o norte-americano.
Jorge Amado, como grande defensor do sincretismo e apólogo confesso do
mito da democracia racial no Brasil, que ele é, não deixa de ser notável, a
predileção de Jorge Amado pela herança nagô africana na configuração
do imaginário da sua vastíssima obra romântica.
Também não deixa de ser admirável a maneira como ele dá conta
nas suas obras de tantos elementos, que compõem o texto da baianidade
desde a sensualidade ao otimismo, passando pela alegria, a familiaridade
e a religiosidade, conforme elencou na sua tese de doutorado de 2001
o Prof. Milton Moura. O grande escritor, inventor de Gabriela cravo e
canela (e canjica), acrescento eu, e aquele que soube narrar ao mundo
o porquê do Sumiço da santa em sua obra de 1988, ele tudo reúne e
compatibiliza desde conventos, candomblés, castelos, padres e mães de
santos, dondocas e prostitutas, os lugares mais diferentes da cidade da
Bahia e dezenas de amigos e amigas entre os quais os músicos, artistas
plásticos como Mestre Didi e Caribé, políticos e personagens muitos
especiais como a Dona Canô, mãe do nosso ilustre cantor-compositor
santamarense Caetano Veloso.
Diante de todo o exposto, extraído das linhas mestras da análise que
fez o sociólogo baiano Milton Moura da obra amadiana, não é difícil
entender por quê ele chamou Jorge Amado de “o romancista da baiani-
dade” (MOURA, 2001:155 apud Ayoh’OMIDIRE, 2020: 350). Volto
a citar da minha obra – YoruBaianidade...

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

No tocante ao que nos interessa nesse segmento, isto é, a


yorubaianidade de Jorge Amado, pode-se dizer que foi desde
Mar morto (1936) que aparece a predileção do romancista
pelo papel da religiosidade e pela força da herança cultural
nagô-yorubana naquilo que Moura (2001:155) chama de
‘drama da sobrevivência’. Naquela obra, o romancista do
Rio Vermelho fez de Yemonjá a verdadeira protagonista
do drama dos pescadores, gente dos cais e saveiros. Mesmo
na incoerência do seu Pedro Arcanjo Ojuoba, olhos de
Xangô, que confessou ter perdido a crença nos orixás em
Tenda dos milagres ao buscar outras fontes que acabaram
levando-o ao materialismo, o autor de Tenda dos milagres
(2001:271) ainda conseguiu guardar a melhor parte de sua
convicção e nunca deixou de acreditar que ‘os orixás são
um bem do povo’.
Nessa mesma obra Tenda dos milagres, Jorge Amado não deixa nin-
guém na dúvida sobre seu incondicional nagôcentrismo. Efetivamente,
foi nessa obra que o autor de Bahia de todos os santos chegou a afirmar e
assinar embaixo que, com ou sem a crise que atormentava o seu Pedro
Arcanjo, permanecia no romancista-narrador uma confiança imutável
na capacidade de Ogum, orixá yorubano de ferro, de guerra e das tec-
nologias, para resolver qualquer parada em benefícios de seus filhos di-
letos, os negros e mulatos da Bahia. Por duas vezes pelo menos, nas suas
principais obras românticas justamente em Tenda dos milagres (1969) e
em O compadre de Ogum (1964), Jorge Amado demonstra a capacidade
de Ogum para “pe idan” ou seja, fazer prodígios, produzir milagres e
realizar o impossível, conforme sua natureza de orixá da inovação e do
desembaraço. Não sei até que ponto o próprio romancista estava ciente
da homenagem que o título do romance, Tenda dos Milagres representa

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para o grande orixá Ogum Lákáayé. É significativo que o vocábulo tenda


no contexto yorubano evoca a barraca-oficina do agbède Ògún, onde os
ferreiros africanos da yorubalândia costumavam e continuam até hoje
trabalhar e transformar o ferro bruto em ferramentas de todos os tipos
e usos. É significativo que foi graças à intervenção milagrosa do orixá
do ferro e patrono dos ferreiros, dos escultores, dos militares, soldados,
taxistas, caçadores e todos aqueles que trabalham de uma forma ou outra
com ferro e com a tecnologia, sendo esse Ogum também dessa forma o
orixá patrono do computador, do celular e da internet por extensão, tec-
nologia essa que está permitindo hoje essa nossa transmissão ao vivo num
tempo de isolamento social imposto a toda nossa comunidade humana
global pela raivas de Omolu nas pestilenta era da COVID-19. Foi graças
ao poder bruto e brutal de Ogum, que Pedro Arcanjo consegue livrar
o povo de santo da Bahia da fúria do delegado auxiliar Pedrito Gordo.
O prodígio de Ogum, cuja ira terrível e temível Pedro Arcanjo Ojuoba
soube desencadear durante a invasão do terreiro Ilê Ogunjá do babalorixá
Procópio de Oxóssi. Esse episódio foi uma manifestação extraordinária
do sortilégio, ofò-àyájó nagô-yorubano, que é um dos gêneros da orali-
tura, que eu privilegiei na minha obra. Fazendo uma análise sintática do
sortilégio nesse episódio em sua apresentação na obra amadiana narrada
em língua brasileira com uma roupagem daquilo que chamo de língua
yorubaiana, é possível ler o texto sortilégico com o qual Pedro Arcanjo
transformou em instrumento de destruição virada contra seus próprios
colegas o Zé Alma Grande, maior matador da escolta assassina com a
qual o chefe de polícia costumava terrorizar os candomblés baianos na
época. De fato, esse texto amadiano revela uma poderosa inspiração
da parte do nobre romancista, cujo alcance de inovação linguística eu
duvido, que o próprio romancista compreendera em toda sua teorização
e apologia ao sincretismo, mestiçagem e democracia racial.
Foi durante minha pesquisa do doutorado que descobri na minha

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

leitura do trecho sortilégico que ficcionaliza a derradeira batalha dos povos


de axé contra a opressão, discriminação e intolerância religiosa legitimada
pelas instâncias policiais um trocadilho feliz na frase magica reproduzida
na página 264 de Tenda dos Milagres quando Pedro Arcanjo Ojuobá
pronunciou a sentença mágica — Ogum kapê dan meji, dan meji pelu
onibon. Essas mesmas palavras com os quais ele, Pedro Arcanjo Ojuobá,
transformou Zé Alma Grande em terrível cavalo de Ogum, matando de
um só golpe um colega seu, e pondo o próprio delegado Pedrito Gordo
a correr de pânico. Como já havia dito acima, eu duvido que o próprio
romancista tivesse consciência do trocadilho que ocorreu na frase. O
substantivo dan, como se conhece na Bahia e conforme aparece usado no
sortilégio significa cobra em língua fon do antigo Daomé. Sendo que o
vocábulo que significa cobra em yoruba é ejò, como a gente vê em muitas
das obras de Mestre Didi tais como o opá babanlawa e ejò meji como
aquele cetro do grande mestre instalado à beira da praia no Rio Vermelho.
Porém, na língua yorubá, a palavra idán, significa prodígio, milagre,
mágica, ato insólito etc. Trata-se de um substantivo que precisa do com-
plemento verbal “pe” ou “pa” para formar a expressão pa idán ou pe idán
(produzir prodígio ou ato capaz de causar espanto). Essa expressão por sua
vez, dentro do processo de aglutinação, que é um procedimento muito
comum na fala nagô-yorubana do dia a dia, se tornaria simplesmente
“pedán”. Desse feito, a fala sortilégica de Pedro Arcanjo, recebida da
boca da fictíca iyalorixá Majebasã, como a última dádiva dessa venerável
iyabá das tradições nagô-yorubanas, teve o efeito esperado de qualquer
texto mágico do gênero oraliturta de of ò-àyájó, quando pronunciado em
momentos de urgência para desencadear as forças ocultas e o poder dos
orixás yorubanos. Ogum kapê dan, dan meji pelu onibon diz o sortilégio
que Pedro Arcanjo proferiu em yorubaiano. O próprio romancista tra-
duziu o texto como significando que Ogum chamou duas cobras para
enfrentarem os soldados assassinos (onibon = portadores de armas de fogo).

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AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

Porém em bom yorubano, a fala de Ojuobá vai muito além de um simples


chamamento de Ogum. Traduzido ditamente em yorubá sobretudo em
se tratando dos dialetos anagô (falados no antigo Daomé nas regiões de
Ketu, Sabè, Idaissa etc.) a sentença se traduz numa apostrofação direto
do orixá Ogum para que venha fazer um prodígio. Ou seja, Ogum foi
convocado para se apresentar naquela situação de perigo que enfrentava
o povo de santo presente naquele xirê de Ogum no Ilê Axé de Ogunjá. E
já que o momento estava propício, Ogum estava no meio de seus filhos
e de seu povo predileto, dançando com certeza ao som dos atabaques
sagrados e cânticos do profundo mistério nagô-yorubano entoados no
lindo coro das mulheres de Kòsíkú6 como essa que, com certeza, muita
gente antiga da Bahia ainda deve lembrar muito bem:

Àwá ñsiré Ogun o, (Nós estamos no xirê em homenagem a Ogum


Èrù jojo, èrù jèjè que o medo do terrível orixá se apodere de
seus inimigos
Àwá ñsiré Ògun ò Eis-nos na festa de Ogum
Èrù jojo, èrú jèjè aquele que espanta os desavisados)

Já que o porta-voz do povo de santo, Pedro Arcanjo Ojuobá soube fazer


uso das palavras certas no momento certo, Ogum não podia furtar-se ao
chamamento do poderoso ofò-àyájó. Por isso ele atendeu súbita e pronta-
mente e pedan (fez espantos) para ensinar ao Pedrito Gordo e suas corjas
6
Aldeia do interior do reino de Ketu, na atual República do Benin onde Mestre Didi
foi se descobrir os parentes de sua família Axipá em 1967. A filha carnal de Mestre
Didi, dona Nídia dos Santos (Bada Barauó do terreiro Ilê Axipá) e o filho dessa,
o òjè José Félix dos Santos (Otum Alagbáà) na companhia do próprio Alagbáà do
terreiro, Genaldo Novais, do Òsì Alaágbáà, Paulo Roberto Sant’Anna e do Òjèlabi,
Wellington, voltaram a esta mesma terra de Kósíkú em agosto de 2017 para prestar
homenagem à memória desse re-encontro histórico entre os descendentes Axipá da
Bahia e seus parentes nagô-africanos.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

a derradeira lição da força invencível dos orixás. Jorge Amado, narrador


onisciente que há muito vivia na intimidade dos orixás, soube apresentar
ao seu público leitor a façanha que Ogum fez ao montar e transformar
Zé Alma Grande numa máquina de guerra indestrutível para defender
o terreiro de Ogunjá (literalmente “onde Ogum brigou’).
Assim foi que Ogum fez magia ou encanto atendendo as palavras
mágicas da oralitura nagô-yorubana pronunciadas por Pedro Arcanjo,
palavras essas que ele aprendeu da grande iyalorixa Majengbasan que ele
foi visitar justamente na procura de solução para pôr fim ao arrombamento
dos terreiros de candomblé pelos policiais representados por esse delegado
Pedrito Gordo. Assim ao invocar Ogun com o sortilégio ogun kapê dan,
dan meji pelu onibon como lhe fora passado pela ­iyalorixa Majengbasan no
ensinamento derradeiro, que ela recebeu no dia da morte da matriarca fictícia
yorubana, Pedro Arcanjo Ojuobá estava inconscientemente convidando
Ogum para pedan pelu onibon, ou seja, rogando Ogun para que fizesse um
prodígio para acabar com os adversários armados que vieram perturbar as
festas do povo de axé com suas armas de fogo (ìbon, em yoruba).
Agora passo ao segundo episódio, que havia prometido trazer nessa
discussão da predileção de Jorge Amado para os poderes de Ogum e
demonstrar seu apego aos orixás yorubanos de modo geral, sobretudo
aos orixás guerreiros como Xangô, Oyá, e neste caso, Ogum. Mais uma
vez, volto a ler das páginas de YoruBaianidade... (2020: 353-354)

Trata-se do batizado do filho do Negro Massu, na novela


O compadre de Ogum. Mais uma vez, o romancista co-
loca em prova a capacidade de ogun para desempatar as
situações críticas de seus filhos e devotos. O drama era de
desespero, informa o próprio romancista. No embaraço
de escolher um padrinho para seu filho Felício entre seus
amigos mais chegados como manda a tradição católica,

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AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

todos bem-merecidos, o Negro Massu, ogã de Ogum no


terreno de mãe Doninha (trocadilho do nome de mãe
Ondina Valeria sucessora da iyalorixá fundadora do Ilê
Axé Opó Afonjá), ‘afamada senhora das forças desconheci-
das, da magia e língua yoruba, das palavras decisivas e das
ervas misteriosas’ conforme informa o próprio romancista,
Negro Massu recorreu a seu orixá para resolver o impasse,
trazendo galos e pombos para sacrifício e etutu, como foi
determinado pelo próprio orixá. E, na maior prova que
jamais se tem notícia no Brasil ao longo dos tantos séculos
de convívio dos santos da igreja católica com os orixás
originários do outro lado do Atlântico yorubano, Ogum
falou bem alto ao baixar numa das iyawos do terreiro de
Doninha que iria ser ele mesmo, Ogum, o padrinho do
menino na hora desse receber o sacramento do batismo
na igreja do Rosário dos Negros.
Eu vou convidar vocês meus ilustres coparticipantes nesse encontro a
ler as páginas dessa belíssima obra amadiana, onde a presença e milagre de
Ogum se concretizou mais uma vez. Sem dúvida, vocês hão de concordar
comigo, após a leitura, de que Jorge Amado se superou mais uma vez.
Quando, no dia do batizado, no caminho da igreja, Exu já vinha
fazendo suas traquinagens montando o Jesuíno Galo Doido, iaô-iniciado,
filho de Ogum que já foi designado e devidamente preparado no terreiro
para servir de cavalo de Ogum naquele importantíssimo compromisso,
ficou evidente para os sabidos que algo havia dado errado. E, na hora
do batizado, quando o padre já vestido e armado com os elementos do
santo Sacramento para ungir o menino, a tensão tornou-se insuportável
pois tanto os humanos presentes quanto Ogum, o verdadeiro padrinho,
estavam sem saber o que fazer para Exu não estragar a festa por conta de

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

um galo escamoteado que não lhe fora sacrificado na manhã do batizado


como mandam os preceitos nagô-yorubanos. Permitam-me citar mais
uma vez, as encantadíssimas palavras do mestre narrador:

Ficaram todos parados ali e em toda parte. Apenas Ogum


errava pela igreja, num desespero e o silêncio e a imobilida-
de. Foi quando se viu o mais inesperado e extraordinário.
O padre Gomes estremeceu dentro de sua batina, saltou
de seus sapatos, vacilou nas bases, rodopio um pouco sem
cerrar os olhos. Jesuíno Galo Doido prestou atenção. Seria
verdade o que seus olhos estavam vendo? Doninha, Satur-
nina, Nezinho, Ariano, Jesuíno e alguns outros davam-se
conta, mas não se amedrontavam, viviam na intimidade
dos orixás. O padre murmurava alguma coisa, Mãe Doni-
nha respeitosamente colocou-se a seu lado (como grande
iyalorixá que ela era) e disse uma saudação em Nagô.
Atravessara-se Ogum naquela manhã do batizado, tivera
demoradas obrigações na Nigéria, e uma festa de arromba
em Santiago de Cuba. Quando chegara, encontrara seu
cavalo Artur de Guima montada por Exu, seu irmão ir-
responsável. Exu ria dele e o imitava, queixava-se de não
lhe haverem dado o prometido, uma galinha d’Angola, e
por isso, preparava-se para provocar o escândalo e terminar
com o batizado.
Como um louco, Ogum atravessou a cidade da Bahia em
busca de um filho seu em quem descer para repor as coisas
em seu lugar, expulsar Exu e batizar o menino. Primeiro
procurou um axé, não havia nenhum. Filhas sim, muitas
estavam por ali, mas ele necessitava de um homem. Foi

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AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

ao Opô Afonjá em busca de Moacir de Ogum, o rapaz


andava para as bandas de Ilhéus. Foi noutros terreiros,
não encontrou ninguém. Saiu desesperado pela cidade
enquanto Exu fazia estripulias no bonde. O motorneiro
era de Omolu, o condutor era de Oxóssi. O soldado de
Oxalá, Mário Cravo também de Omolu, ninguém era
de Ogum. Agora, no Largo, assistia aos destemperos de
Exu. Vira como ele enganara a todos, como aplacara as
desconfianças de Doninha ao levantar Veveva do chão com
delicadeza e respeito. Entrou na maior das aflições atrás
dele na igreja. Queria falar, desmascarar Exu, tomar seu
lugar, mais como fazê-lo se não havia um só cavalo seu,
um macho, a quem cavalgar?
Rodou pelos quatro cantos do templo enquanto o padre
se aproximava e iniciava seu interrogatório. E, de súbito,
ao fitar o sacerdote, ele o reconheceu, era seu filho Antô-
nio, nascido de Josefa de Omolu, neto de Ojuaruá, obá
de Xangô. Nesse podia descer, estava destinado a ser seu
cavalo, não fizera as obrigações no tempo devido mas
servia numa emergência como aquelas. Sagrado padre,
de batina, mas nem por isso menos seu filho. Ao demais,
não havia jeito nem escolha: Ogum entrou pela cabeça
do padre Gomes. E, com mão forte e decidida, aplicou
duas bofetadas em Exu para ele aprender a comportar-se.
O rosto de Artur da Guima ficou vermelho com a marca
das tapas, Exu compreendeu ter chegado seu irmão, estava
acabada a brincadeira. Fora divertido, estava vingado da
galinha d’angola prometida e escamoteada. Rapidamente
abandonou Artur, numa última gaiatada, e foi-se esconder

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atrás do altar de São benedito, santo de sua cor.


Quanto a Ogum, tão depressa entrara, mais depressa saiu.
Largou o padre e ocupou seu antigo e conhecido cavalo,
no qual devia ter chegado à igreja se Exu não atrapalhasse:
Artur da Guima. Foi tudo tão rápido, somente os mais
entendidos deram-se conta. O etnógrafo Barreiros, por
exemplo, nada percebeu, apenas viu o padre esbofeteando
Artur da Guima por pensá-lo bêbado.
— Não vai haver mais batizado. O padre vai botar o
padrinho pra fora... Conclui.
Mas o padre voltava ao seu natural, nada sabia de bofetadas,
não se lembrava de coisa alguma, abriu os olhos.
— Tive uma tonteira...
Inocência o acudiu aflito
— Um copo d’água.
— Não é preciso, já passou.
E voltando-se para o padrinho, perguntou,
— Como é mesmo seu nome?
Não estava esse homem bêbado, há pouco? Pois curara a
cachaça, agora firme nas pernas, erguida a cabeça, parecia
um guerreiro, a sorrir,
— Meu nome é Antônio de Ogum.
O padre tomou do sal e dos santos óleos...
(AMADO, 1976 p. 185-186)

Após essa leitura deliciosa desse texto que demonstra o credo de Jorge

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AYORUBAIANIDADEDEJORGEAMADOEOTRIUNFODOSORIXÁSNAGÔ—YORUBANOSNALITERATURABRASILEIRA

Amado dentro do esquema da yorubaianidade e da baianidade nagô, eu


vou passar rapidinho, para encerrar essa minha fala, à relação que Jorge
Amado tem com a literatura dos terreiros que é um outro gênero que hoje
se celebra, se comemora dentro da literatura afro-brasileira como uma au-
têntica literatura nascida dentro dos terreiros de candomblé, principalmente
os terreiros de ascendência queto-nagô, onde, a partir das conotações das
histórias, da convivência com os eguns e orixás, a ética e estética literária
do povo negro africano e baiano nagô consegue subir pelos palcos literários
da Bahia. E hoje implantado firmemente na própria Academia de Letras
da Bahia em reconhecimento de sua trajetória enquanto gênero literário,
a literatura-terreiro pode aplaudir a presença de Mãe Stella de Oxóssi,
iyalorixá Odekayodê, autora de várias obras, como membro integrante
da Academia de Letras da Bahia, graças à sua importantíssima produção
literária das obras desse gênero cunhado e chamado pelo meu compadre,
o Prof. Henrique Freitas de literatura-terreiro. (FREITAS, 2016)7.
E é justamente a partir da própria obra do grande representante dessa
literatura-terreiro, o grande Mestre Didi Alapini, nascido Deoscóredes
Maximiliano dos Santos, filho carnal da iyalorixa Maria Bibiana do
Espírito Santo, iyalorixa Mãe Senhora Oxum Muíwa do Ilê Axé Opò
Afonjá, quem, já a partir de 1948, começou a transformar aqueles contos
contados e cantados nagô-baianos que ele ouvira da boca dos mais velhos
nas sessões oraculares presididas pelos tios e tias dos terreiros da Bahia e
das casas de egun na Ilha de Itaparica, que ele agora colocou como obras
literárias por excelência, e da qual ele convidou o Jorge Amado a fazer o
prefacio da edição de 1962, ano da publicação do seu Contos Negros da
Bahia e Contos de Nagô, onde o grande Jorge Amado chegou a firmar
entre outros, a conexão direta do modelo de contar e de cantar, de escre-
7
FREITAS, Henrique. O arco e a arkhé: ensaios sobre literatura e cultura. Salvador:
Ogum’s Toques Negros, 2016.

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ver e de fazer literatura de Mestre Didi, como aquele estilo subjacente


que ficaria na base da própria literatura regionalista baiana, e da hoje
chamada de literatura afro-brasileira.
O próprio Jorge Amado chegou a afirmar do referido prefacio à obra
pioneira de Mestre Didi:

A tradição mais nobre e bela da literatura brasileira é a sua


ligação com os povos, com seus problemas, suas lutas, é
nascer nossa literatura sobretudo do saber do povo ao qual
vem somar-se, completando-o, o saber aprendido nos livros.
Isso já nos lembra aqui de passagem, daquela insistência da grande
iyalorixá fundadora do terreiro Opô Afonjá, Mãe Eugenia Ana dos Santos,
Iya Oba Biyi, que dizia que queria ver seus filhos de anel nos dedos e aos
pés de Xangô no terreiro, ou seja, naquele casamento feliz e necessário
do saber dos livros, que é o que Jorge Amado está fazendo aqui com o
seu reconhecimento do saber do povo conforme ele mesmo demonstra
na continuação do prefácio:

Primeiro a vida. Esta característica é mais sensível ainda


na Bahia, onde toda obra de criação artística, seja no
plano da literatura, das artes plásticas ou do cinema (pois
na pobreza do cinema brasileiro já se pode falar de um
cinema baiano), nasce da cultura popular tão intensamente
poderosa e atuante. Dela decorrem Mário Cravo e Carybé,
Carlos Bastos e Mirabeau Sampaio, Agnaldo e os jovens
gravadores, Calazans Neto à frente. Nossa literatura toda
a ela está marcada com essa marca do povo, a mesma que
produziu Castro Alves ontem e Sosígenes Costa ou Godo-
fredo Filho nos dias de hoje. Dela nasce o cineasta Gláuber
Rocha... Didi nos mostra num livro importante não só para

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o comum dos leitores, mais também para o etnógrafo, o


folclorista, o estudioso da democracia brasileira e de suas
fontes culturais, as raízes mesmo de onde crescemos para
um plano artístico...
Então, o que Jorge Amado deixou claro aqui é a relação entre a arte
da oralitura nagô-yorubana levada pelos nagôs escravizados, libertos e
alforriados que atuavam como tios e tias nos templos terreiros, e nos cantos
de trabalho da Bahia, e a fundação da própria literatura do imaginário
popular afro-brasileiro nascido da Bahia. É esse estilo que a gente vê
nas obras dele naquele estilo que lembra de um encontro dos repentistas
nordestinos, onde os capítulos de Jorge Amado vão nascer com aqueles
preâmbulos que só ele consegue fazer. Ao apresentar o seu enredo duma
maneira tão original e verdadeira, quando ele fala do povo, das coisas do
povo, a gente vê a cada momento a influência desse saber do povo, essa
convivência e implosão do mundo dos vivos, dos encantados e orixás, do
mundo dos eguns, enfim, um convívio sem barreiras e sem limites, único
lugar na vastíssima cartografia literária brasileira, onde é possível ver uma
apresentação como aquela que figura na abertura da obra O Sumiço da
santa, onde a gente vê o orixá se misturando ao povo sem frescura e sem
limites nem preconceito conforme fiz questão de salientar na epígrafe
desta minha fala de hoje, na qual já me demorei demasiadamente, ao
estilo do próprio mestre narrador, Jorge Leal Amado.
Foi portanto esse tipo de literatura do povo, nascida do saber do
povo, narrada na voz do povo e no estilo mais recatado que a literatura
brasileira nunca conheceu e jamais conhecerá igual que levou o mundo
inteiro a se curvar diante dessa riquíssima expressão da yorubaianidade
do grande e nobre escritor Jorge Amado, que eu gosto sempre de chamar,
numa afetiva brincadeira exuística de Jorge Omoburuku Amado. Eu fico
aqui nesta fala para devolver a palavra como me ensinou os mais velhos,

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

a nossa diretora da mesa, a nossa querida colega, professora Alvanita


Almeida.

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ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

Antonio Torres1

Leitores foi o que nunca faltaram a Jorge Amado neste país e no


mundo, que dirá na sua Bahia, sabemos todos. Mas acredite. No ano de
1957 ainda havia em Alagoinhas, cidade situada numa indistinta divisa
entre o recôncavo e o sertão baianos, a cerca de míseros cem quilômetros
da capital, um jovem leitor, que sequer havia visto um livro dele. Até
aparecer na festeira terra da laranja, da Micareta e das folias juninas um
sujeito esquisitão vestido como quem ia à missa.
À maneira de um Federico Fellini, Amarcord. Eu me recordo. Era um
dia qualquer, sem nenhuma solenidade religiosa ou social programada.
Nenhuma posse de prefeito ou um evento no Lyons ou no Rotary, uma
noite de gala nos seus clubes dançantes, coisas assim, que exigiam apuro
nos trajes. Com toda probabilidade, ele, o tal transeunte enfatiotado, havia
desembarcado na Estação da Leste, ou seja, da Viação Férrea Federal do
Leste Brasileiro. Devia até ter chegado no “Marta Rocha”, assim cha-
mado por ser o mais bonito de todos os que circulavam entre Salvador
e Alagoinhas, e vice-versa. Seja lá qual tenha sido o meio de transporte
que o trouxera, sua presença só iria ser notada quando ele atravessou a
bela praça J. J. Seabra — a das árvores artisticamente podadas em forma
de pássaros —, em uma hora de pouco movimento, sem cumprimentar
ninguém, nem ser cumprimentado.

1
Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia de Letras da
Bahia, da Academia Petropolitana de Letras e sócio correspondente lusófono da
Academia de Ciências de Lisboa.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Seria aquele estranho um caixeiro-viajante? — perguntavam-se


os hoteleiros, cada qual ansiando pela primazia de hospedá-lo. Não
demorou muito para todos o perderem de vista, ao dobrar de uma es-
quina. Também logo se saberia que ele vinha do Rio de Janeiro, para
passar a morar ali na casa da sua mãe, originária de Sergipe. O que
dava asas às confabulações: por que aquele distinto cavalheiro trocava
a efervescência da capital federal pela vida pacata em uma longínqua
cidade interiorana? Coisa boa não devia ter deixado para trás. Vai ver
era um comunista em busca de refúgio em um lugar onde a polícia
nem sonhasse onde ficava.
Mas não. Naquele ano de 1957, em plena era JK, respirávamos bons
ares democráticos. Tivesse ou não um passado nebuloso, o homem mis-
terioso — a começar pelo nome, Carloman Carlos — que, ao chegar
provocara interrogações, tinha em seu destino um emprego no único
ginásio da cidade, para ensinar Geografia, surpreendendo os seus alunos
pela intimidade com que falava das serras da Mantiqueira, do Mar, dos
Órgãos, do Pico da Bandeira e que, aos poucos, revelaria outros domínios,
da Matemática à Literatura.
Não fiquei lhe devendo apenas a descoberta de rios, lagos, mares,
continentes, capitais e países do mundo. Nem lhe sou eternamente grato
pelo seu esforço para que eu não fosse derrubado numa prova final por
equações e figuras geométricas. Mais que tudo, devo ao grande mestre
Carloman Carlos Borges a minha formação de leitor ou, melhor dizen-
do, a minha descoberta da modernidade literária brasileira, no que, por
óbvio, se inclui a obra de Jorge Amado.
— Para começar a gostar dele, comece com este — disse-me o pro-
fessor Carloman, passando-me um exemplar já bem manuseado do “Mar
Morto”, dando-me uma semana para devolvê-lo. — Quando se começa
a ler Jorge Amado, não se para mais — completou ele, com a convicção
de quem sabia o que estava dizendo.

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ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

Dito e feito. O “Mar Morto” foi atravessado, de ponta a ponta, numa


noite.
Logo na primeira frase de um prólogo encantador — “Agora eu quero
contar as histórias da beira do cais da Bahia” —, Jorge Amado leva o
seu leitor em ondas, o envolvendo entre as labutas e sofrimentos dos seus
marinheiros, e o prazer da leitura de um texto amoroso, memorável. Já
no segundo parágrafo daquela página inicial, o leitor que ora vos escreve
se encontrava pela navegação em frente:
Vinde ouvir estas histórias e estas canções. Vinde ouvir
a história de Guma e Lívia, que é a história da vida e do
amor no mar. E se ela não vos parecer bela, a culpa é dos
homens rudes que a narram. É que a ouvistes da boca de
um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra
entende o coração dos marinheiros. Mesmo quando esse
homem ama essas histórias e essas canções e vai às festas
de dona Janaína, mesmo assim ele não conhece todos os
segredos do mar. Pois o mar é mistério que nem os velhos
marinheiros entendem.
Imagine o encantamento que a leitura das linhas acima causou em
quem havia nascido num lugar onde nem rio havia. Nunca dantes eu
tinha lido nada, em prosa, que me provocasse tamanho arrebatamento.
O texto de Jorge Amado parecia uma versão contemporânea da poesia
de Castro Alves, aquele que eu queria ser, quando crescesse, até porque,
como rezava a lenda, o nosso mais querido poeta de todos os tempos
era bonito pra danar e dava muita sorte com as mulheres. Mas agora
outro imenso valor se alevantava diante dos meus olhos. Alguém que
escrevia num idioma bem acessível aos mais comuns dos leitores e o
que fazia (e faz) o encanto desse idioma era (e continua sendo) a sua
humaníssima fala baiana, tão cheia de musicalidade, lirismo, male-

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

molência, tempero, sensualidade. E o que dizer de sua multifacetada


galeria de tipos humanos?
Em êxtase, passei uma noite em claro, para, ao amanhecer do dia,
chegar ao final do “Mar Morto”:
Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a
cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de
saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é que
ela vai agora de pé no Parque Voador? Não é ela? É ela,
sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita
para os outros no cais:
— Vejam! Vejam! É Janaina!
Olharam e viram. Dona Dulce também olhou da janela
da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu
milagre. Começava a se realizar. No cais, os marítimos viam
Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava,
era a segunda vez que ele a via.
Assim contam na beira do cais.
O professor Carloman ficou surpreso com a devolução tão rápida do
livro que ele havia me emprestado. E logo passou ao segundo empréstimo:
“Capitães da Areia”, também lido sem pestanejar, e devolvido num piscar
de olhos. Com os devidos agradecimentos, o dispensei de me passar outro.
Ao ver que a única livraria da cidade (chamava-se São Jorge) tinha todos os
livros de Jorge Amado, de “O país do Carnaval” aos três volumes de “Os
subterrâneos da liberdade”, criei coragem e pedi crédito ao seu proprietário,
o amável senhor Teófilo Maciel. O meu desejo serviu-me de fiador. E, no
ato, me tornei o feliz proprietário de uma livraiada, a ser paga em suaves
prestações, tão a perder de vista que o primeiro pagamento só foi feito três
meses depois, quando voltei das férias escolares.

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ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

E assim, numa rede de uma casa de roça, lá, em Sátiro Dias, a quinze
léguas de distância de Alagoinhas, entreguei-me à leitura de tudo o que
faltava ler de Jorge Amado, o que se tornaria assunto de conversa nas
minhas idas ao povoado, onde iria encontrar outro entusiasmado leitor
dele, o João Escrivão, homem de muitos saberes, que viera de longe.
Coincidentemente, naquele mesmo período regressara àquelas pa-
ragens uma lenda viva da nossa gente, que eu nunca tinha visto por lá.
Trata-se de um filho nativo que ali regressava coberto de glórias por ter
participado da Segunda Guerra Mundial. Reformado como tenente da
Marinha, ele vinha a ser meu parente, e próximo. Recordo-o a adentrar
a igreja, num domingo de missa, chamando a atenção de todos não só
pelo seu porte avantajado, mas, principalmente, por apresentar-se em
uniforme de gala, cheio de medalhas no peito. E por ali foi ficando a
bestar pelas bodegas, nas quais todos os bêbados lhe batiam continências
pelas suas proezas nos mares.
Esse personagem não entra aqui por acaso. Deu-se que ele acabou
sabendo que eu andava lendo Jorge Amado. Resultado: acusação. Con-
sequência: inquérito familiar. “Quer dizer que esses livros que você anda
lendo sem parar são de um comunista? E dos mais descarados, conforme
o Tenente garante, e jurando por essa luz que nos alumia?”
Com a boca cheia de autoridade, não necessariamente literária, o
glorificado Tenente havia garantido mais: que Jorge Amado, além de não
ter fé em Deus, como todos os comunistas, era um despudorado, capaz
de fazer corar até os mais safados dos adultos. E, com certeza, nunca
tinha sido visto numa missa. A religião dele era o candomblé, cruz credo!
Em resumo: eu estava indo por um mau caminho, seguindo um mau
exemplo. Só restou à minha mãe me botar contra a parede: aqueles livros
estavam mesmo me afastando da lei de Deus?
Naquele momento, o filho mais velho de Dona Durvalice e seu Irineu,
um fiel casal sertanejo acima de tudo católico, apostólico, romano, tinha

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

nas mãos o “ABC de Castro Alves”, a mais amorosa das biografias que
alguém no mundo já havia sido capaz de escrever, pensava ele, embora
pouco ou nada entendesse do assunto. Credite-se tal arroubo ao fascí-
nio com que ele lia as histórias que Jorge Amado contava do poeta dos
escravos. Em defesa daquele que os fiéis da Santa Madre Igreja, fazendo
o sinal da cruz, chamavam de comunista, o que consideravam “farinha
do mesmo saco” dos crentes e dos africantes, achei que o melhor a fazer
era ler para a minha mãe algumas linhas do livro cuja leitura fora inter-
rompida pelo arrebatado sermão que um marinheiro que aproveitava o
seu ócio remunerado para combater à sombra, derrubando uma garrafa
de cerveja atrás da outra, lhe soprara aos ouvidos.
Voltei à página em que havia parado, e li um parágrafo para ela. Se
não me falha a memória, foi esse a seguir:
Amiga, mais forte, mais poderosa e mais bela que a voz
maviosa do poeta que canta em São Paulo é a voz que chora
nas senzalas do Recife. Porque não há nada mais belo do
que a voz do povo. E o gênio é aquele que a interpreta, que
lhe dá forma, o que vai na frente de todos os que clamam.
No Sul, cantavam, no Norte ele ia começar a clamar o seu
clamor, gritos e apóstrofes de vingança, ameaça e profecia,
seria o mais lindo canto do seu tempo.
Não precisei ir além de um parágrafo para ver nos olhos da minha
mãe que os poderes da escrita de Jorge Amado eram mais fortes do que
os da tropa de choque anticomunista que a cercava.
— É assim que ele escreve, mamãe. A senhora acha que alguma dessas
palavras que acabei de ler é contra as leis de Deus?
— O que acho é que ele escreve bonito como um corno — ela dis-
se, me contemplando com uma boa risada. E nunca mais fez qualquer
censura ao que eu estivesse lendo, seja de que autor fosse.

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ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

Anos à frente uma recordação daquela temporada numa casa de roça


a ler um livro de Jorge Amado atrás do outro me daria um romance.
Não me lembro o exato dia e o ano em que isso aconteceu, mas, com
certeza, foi na década de 1980, quando estava morando em Copacabana
e trabalhava no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e um dia resolvi
ir almoçar em casa, coisa que raramente fazia, pois geralmente almo-
çava perto do local do trabalho, para não perder muito tempo no ir e
vir. A lembrança inspiradora aconteceu logo depois do almoço, quando
me estirei num sofá para descansar um pouco e, ao fechar os olhos, fui
remetido a uma cena ocorrida em São Paulo, quando lá cheguei pela
primeira vez, de mala e cuia.
Era uma manhã de janeiro de 1961, e eu acabava de acordar num
hotelzinho no centro da cidade, ao pé da Ladeira da Memória, onde
me hospedara, na noite anterior. Da sua porta, avistei uma escadaria, à
direita, e decidi avançar por ela, que levava à Rua da Consolação, onde,
logo em frente, estava a Biblioteca Mário de Andrade. Encaminhei-me
para ela, a recordar-me de dois versos de Federico García Lorca usados
por Jorge Amado na epígrafe de “Os subterrâneos da liberdade”, que eu
havia lido justamente naquelas férias escolares de 1957. Se não me falha
a memória, eram estes os versos de Lorca: “Buscaba el amanecer/ e el
amanecer no era”.
Entrei na biblioteca já sabendo o que buscar nela. À sua entrada, vi uma
moça sentada a uma mesa e a ela me dirigi para lhe perguntar onde ficava a
estante de poesia. Era uma das primeiras à minha frente, ela disse. Poucos
passos adiante, dei com os olhos num livro, imagine de quem? Sim, dele
mesmo, Federico García Lorca! E traduzido por Manuel Bandeira. Feliz
com o achado, ali, de pé mesmo, abri o livro num poema intitulado “Ba-
lada da pracinha”, cuja lembrança, anos depois, e em outra cidade, parecia
soprada por uma musa inspiradora, a me sussurrar: “Aí tem um romance”.

51
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

O resumo desse episódio: Jorge Amado me levou a Lorca, que um


dia me levaria ao mote para escrever “Balada da infância perdida”.
Este aqui:

Canta os meninos
na noite quieta;
arroio claro,
fonte serena!
OS MENINOS
Que tem teu divino
Coração em festa?
EU
Um dobrar de sinos,
perdido da névoa.

Saí da Biblioteca Mário de Andrade com esses versos na cabeça. E


grato a Jorge Amado por ter me levado a García Lorca. Ao bater perna
pela cidade adentro, acabei esbarrando em uma livraria a céu aberto,
numa das calçadas que levavam a um dos seus cartões postais, o Via-
duto do Chá. E dali iria seguir portando dois alentados volumes, em
capa dura. Um, contendo todos os romances de Rachel de Queiroz; no
outro, os de José Lins do Rego. Como já havia lido Graciliano Ramos,
também graças aos benditos empréstimos do professor Carloman Carlos
Borges, agora a tropa de choque do romance nordestino se completava
para dar uma grande força à minha formação de leitor. Um leitor que
continuaria a ler Jorge Amado onde quer que estivesse. E que, de tanto
lê-lo, e a tantos outros, acabaria por se tornar um escritor, que, já na sua
estreia, receberia as bênçãos de São Jorge dos Ilhéus.
Esta é a história:

52
ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

Rio de Janeiro, 12 de dezembro 1972


Já estava aprontando a mala, para uma rápida ida a São Paulo.
O telefone tocou.
Ao atendê-lo, reconheci a voz de um amigo paulista chamado Os-
waldo Assef.
— Fala, turco!
— Tenho duas notícias para você. Uma boa e uma ruim — disse ele.
— Então comece pela ruim.
— Para o seu azar, Jorge Amado vai fazer aqui uma noite de autó-
grafos do seu novo livro, “Tereza Batista Cansada de Guerra”, no mesmo
horário da sua. Como qualquer lançamento dele enche de gente, o seu
pode ficar às moscas.
— Agora conta a boa, turco!
— Leia o “Estadão” de hoje.

Fui em frente, à cata da boa notícia. Ao chegar ao aeroporto Santos


Dumont, procurei, e achei, o jornal “O Estado de S. Paulo”. E lá estava,
na página 10 do seu primeiro caderno, uma matéria supimpa sobre os
dois lançamentos, o do baiano universalmente consagrado e o do seu
conterrâneo estreante, ilustrada com as capas de “Tereza Batista Cansada
de Guerra” e de “Um cão uivando para a Lua”, este, do tal já devidamente
avisado de que se preparasse para um fracasso. E que, ao se encaminhar
para o avião, achou que de maneira alguma aquela seria uma viagem
perdida. A julgar pelo espaço que lhe coubera no poderoso “Estadão”, e
logo ao lado de quem, a ganhara, por antecipação.
São Paulo, mesmo dia.
Cheguei à livraria que estava sendo inaugurada no Largo do Arouche
às cinco e trinta da tarde. Já estava tudo pronto para a noite de autógrafos
combinada. Dirijo-me a um balcão e me apresento. O gerente da livraria
me cumprimenta, desmanchando-se em sorrisos e salamaleques, como

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

se acabasse de apertar a mão de uma estrela. E logo descubro a razão de


tanto entusiasmo com a minha chegada: antes de ir para a livraria da sua
própria noite de autógrafos, Jorge Amado passara ali, naturalmente movido
pela matéria do “Estadão”. O mais surpreendente: ele havia comprado o
meu livro, que deixou com o livreiro, pedindo-lhe para enviá-lo naquela
mesma noite ao hotel onde estava hospedado, assim que eu o autografasse.
Também deixou um bilhete para mim, lamentando que a coincidência
de horário o impedisse de me dar um abraço pessoal, e deixando o seu
endereço em Salvador, para que eu o procurasse, quando fosse lá.
Acabou que foi o autor consagrado a procurar o estreante, no Rio, o
que marcou o início de uma longa amizade, com encontros para almoços
e jantares naquela cidade, e, também, na Bahia e em Paris, e telefonemas,
telegramas e cartas, sempre com palavras de incentivo àquele seu leitor que
passara a privar de uma convivência jamais imaginada, e sendo tratado
como um colega de ofício digno de suas atenções.
Salve, Jorge! Gratidão eterna por ter existido, por ter escrito tudo o
que escreveu, assim como por ter feito o bem que pôde aos seus pares, à
Bahia, ao país, ao mundo.
Como atesta uma página do “Jornal do Commércio” do Rio de Janeiro
de 19 de abril de 1997, intitulada “Memória”, na qual foi reproduzida
uma notícia que fazia 50 anos naquela data, e transcrita a seguir:

Teoricamente comunista, mas sobretudo humano, o de-


putado baiano Jorge Amado fazia na Câmara dos Depu-
tados um apelo comovente, transmitindo o sentimento de
escritores e intelectuais das classes teatrais e circenses, no
sentido de ser amparado por uma pensão oficial o artista
circense Benjamin de Oliveira, então com 71 anos e quase
cego. Encaminhou à Mesa um projeto autorizando pagar
mensalmente ao artista uma pensão de 1 mil cruzeiros.

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ROTEIRO SENTIMENTAL DE UM LEITOR DE JORGE AMADO

(Negro, autodidata e pobre, Benjamin de Oliveira foi


palhaço, ator, cantor, instrumentista e em seus 84 anos de
vida — 1870/ 1954 —, havendo mambembado por todos
os toldos e lonas que levaram sua alegria e encantamento
aos adultos e crianças de mais de seis estados brasileiros.
Amigo pessoal de Floriano Peixoto que, escondido, fre-
quentava o circo para aplaudi-lo, Benjamin de Oliveira por
mais de três gerações inovou e criou dentro de sua arte,
parodiando operetas e dramas teatrais, como o “Othelo”
de Shakespeare ou “A Viúva Alegre” de Franz Lear. Nos
intervalos cantava lundu, chulas e modinhas de Catulo
e dele próprio. Foi — segundo o próprio — o grande
inspirador de Grande Otelo).
Reconheça-se mais, e sempre, que Jorge Amado foi o capitão de longo
curso de uma navegação que levou a literatura brasileira a mares nunca dantes
navegados por qualquer autor de língua portuguesa. “Poucos ficcionistas
dominaram tão completamente a arte de inventar gente” — escreveu Au-
gusto Nunes no “Jornal do Brasil” de 5 de agosto de 2006, prosseguindo:
Os personagens do escritor baiano, inspiradores de ilus-
trações magníficas, transformaram o leitor em diretor de
elenco. Além de nome, têm cores e cheiro. Têm até corpo
e rosto. Às vezes, existem. Gabriela, por exemplo, tem cor
de canela, cheiro de cravo e virou gente com o nome de
Sônia Braga. A fusão começou na novela da TV Globo.
Consumou-se no filme de Bruno Barreto.
Tenho dito.

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DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA


AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

Cyro de Mattos1

1 — ASPIRAÇÕES E FRUSTRAÇÕES SOCIAIS

Cabe a Jorge Amado o lugar indisputável de quem como romancista


de denúncia social deflagrou importante corrente temática na ficção
regionalista do Brasil. Ele é um escritor compromissado em recriar a
realidade objetiva, demonstrando no texto corrido, de linguagem solta, a
superioridade do documental sobre o subjacente, o coloquial no discurso
fluente sem preocupação em auscultar o herói problemático nos desastres
da vida, conectado em sua tensão crítica com os seres e as coisas.
Diferente de Adonias Filho, um inventor de formas romanescas na
arte de contar a história, com seus romances trágicos que se desenvolvem
na infância da região cacaueira baiana, em Jorge Amado o mais impor-
tante no fundo de tudo e sempre é a essência mesma que decorre da
1
Cyro de Mattos nasceu em Itabuna onde reside. Jornalista e advogado aposentado.
Contista, cronista, poeta, romancista, ensaísta, autor de livros para crianças e
jovens. Publicou 56 livros pessoais, organizou dez antologias. Editado também
em Portugal (5 livros), Itália (6), França (1), Espanha (1) e Alemanha (1). Contos
seus e poemas participam de inúmeras antologias no Brasil e exterior. Premiado no
Brasil, Portugal, Itália e México. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade
Estadual de Santa Cruz (Bahia). Membro das Academias de Letras da Bahia, de
Ilhéus, de Itabuna e do Pen Clube do Brasil. Medalha Zumbi dos Palmares da
Câmara de Vereadores de Salvador. Ocupa a cadeira 5 da Academia de Letras de
Itabuna, que tem como patrono Jorge Amado.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

história contada, a emoção que dela emerge, interagindo no outro, que,


nessa ligação entre leitor e texto, torna-se cúmplice do mundo narrado
A narrativa linear obedece aos momentos do princípio, meio e fim para
apresentar o modo e o tempo sequenciado dos acontecimentos destacados
da realidade objetiva. A cadência dramática da vida escorre-se nesses
três momentos cronológicos constitutivos da novelística tradicional, de
maneira singular, ressalte-se, na estrutura romanesca do que o autor
pretende representar.
Romancista da memória, fecundo criador de personagens, ímpeto
impressionante na narrativa desenvolta, apresenta-se na escritura que
prende como um escritor que participa e julga o mundo. Dá seu teste-
munho sobre o que viveu e sentiu. Expõe cenas e situações preocupado
em retratar a geografia humana habitada pelos excluídos nas contradições
do mundo. Com apelos dramáticos, muitas vezes líricos, suas histórias
acontecem com a ideia de uma geografia humana compartilhada em
classes, tipos e costumes, na região cacaueira baiana ou no território
urbano da cidade de Salvador, outrora chamada de Bahia.
Em Capitães da areia (1957), Jorge Amado escreve o seu sexto roman-
ce. Antes havia publicado O país do carnaval (1931), Cacau (1933), Suor
(1934), Jubiabá (1935) e Mar morto (1936). Os três primeiros são livros
de escritor adolescente, com os vícios de concepção e execução mostrados
a olho nu na estruturação romanesca do discurso por quem, ainda autor
imaturo na arte literária, não opera a narrativa com o equilíbrio necessário
de seu conteúdo com a forma, a concepção e a execução como unidade
ideal que se expressa para dizer sobre os problemas do mundo marcados
pelas contradições da realidade social.
A técnica realista, desenvolvida no tema extraído da realidade exte-
rior, operada com habilidade e manejo convincente das cenas, emanadas
das aspirações e frustrações de certas minorias, no discurso pelo qual o
estético retoma o lugar do elemento político, de feição ideológica, só iria

58
DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

acontecer com justeza na medida em que a prosa vigorosa tem andamento


criativo. Momentos poéticos de uma alma lírica, que se aproveita das
realidades sociais para convencer o leitor diante das suas visualizações
do ambiente, servem para expressar tipos e heróis na perdida unidade
do homem. Configuram aquele ser a quem roubaram os horizontes, mas
que mantém a esperança de alguém íntegro numa sociedade justa, que
não o devore.
A arte da escrita terá o intuito de imitar a vida, aflorar do estar social
a partir de Jubiabá quando o tom do narrador com suas personagens
insurgentes revela um modo pessoal de flagrar a condição humana no
mundo, agora sem forçar as notas das cenas dramáticas. O magistral
recriador de vidas à margem move-se na trama para testemunhar seu
tempo, dizer do mundo injusto sem se limitar às facilidades do docu-
mentário e julgamentos tendenciosos. Portador da palavra simples, que
desliza com prazerosa atração no texto, repõe os dados deploráveis dos
marginalizados que a sociedade lhe fornece. Importa-se, como várias vezes
confessou, em contar a história da vida como ela é, do que viu, conheceu
e sentiu. As novas formas narrativas, que correspondem aos anseios de
uma nova sociedade com o seu herói em crise, nascido dos abalos que
atingiram estruturas em razão de duas guerras mundiais, responsáveis pelo
surgimento de escritores inovadores, como Faulkner, Lawrence Durrel
e Henry James, ao romancista baiano nada dessa maneira moderna de
contar uma história interessa.
Sua crença, como certos ficcionistas russos, que lhe são caros, é que
os dramas e conflitos no romance não precisam de renovações esteticistas
para que seja exposta a verdade da vida carregada de sofrimento prove-
niente das mazelas sociais. Como testemunha do seu tempo, romancista
repórter com nervos e sentimentos, comprometido com o drama formado
com os caracteres da injustiça e repressão, o narrador onisciente exsurge
na escrita fácil pleno de solidariedade e esperança para apontar as men-

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

tiras do mundo, que devem ser substituídas pelas verdades que somam
e não tomam, porque assim lhe habitam na paixão interior, que não cala
quando se faz voz na sua leitura do mundo.
Seu romance alimenta-se dos traumas que ficam evidentes nas con-
tradições entre camadas sociais diferentes. Das aspirações e frustrações
que vicejam nos personagens ambientados em certas camadas em que
a vida faz do ódio e a vingança o seu termómetro para a sobrevivência.
Disso resulta que os ressentidos precisam muitas vezes de afeto, já que
estão à margem, no ambiente em que nascem e vivem, são assim carentes
de uma vida decente em que possam se sentir como gente. São vistos
como animais perigosos, devem ser evitados, na concepção dos que estão
engrenados no sistema, pois esses viventes infelizes habitam naquilo que
degrada, é imprestável para um ser humano quanto mais para uma criança.
Os movimentos do eixo que aciona a trama em si mesmos são marca-
dos pelo verismo. Os personagens no seu estar no mundo tentam superar
o sistema que os torna objeto e anula. E uma consciência crítica de
narrador onisciente já não pretende informar que o problema se vincula
à causalidade, mas torna evidente que esta deve ser ultrapassada para o
alcance das coisas que são postas no mundo para que sejam traduzidas
em zona de conforto, imbrincadas na própria essencialidade de bem-estar
com a vida.
Com extraordinário poder de captar as visualizações ambientais,
poetizar a vida com seus dramas, domínio fácil de uma narrativa que se
encaixa na percepção do leitor generalizado, é capaz de transformar o
regional com seus tipos e costumes em modelos de situações universais.
Jorge Amado mostra que na essência o ser humano é o mesmo onde quer
que viva. Assim, impelido por uma conduta que está em todos, forjada
na realidade exterior, de desequilíbrio e pendências, que fere sem cura,
direciona a sua disposição anímica de escritor popular em muitas passagens
para cantar a vida com o seu valor maior, a liberdade, ressaltar os seus

60
DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

sentimentos belos como a solidariedade e o amor. Projeta a trama que


logrou extrair da vida social com um alcance universal surpreendente.
Sabe como poucos apresentar a saga de feitos ásperos da vida em rotação
diária com seus vínculos à terra e à cidade no grau inferior de civilização,
mas que às vezes se pensa ter alcançado o nível elevado.
No romance Capitães da areia, Jorge Amado conta a história de um
grupo de meninos órfãos, cerca de quarenta com nove e dezesseis anos,
abandonados ao sabor da sorte e ao léu da vida, onde lhes falta tudo,
família, carinho, liberdade, educação, comida, abrigo e roupa. Moram
num velho trapiche abandonado, com o teto que mal se sustenta, des-
coberto em vários lugares por onde entram o frio, o vento, a chuva, o
sol e a luz da lua. Passam invernos, passam verões, esses meninos pobres
e analfabetos conhecem sempre da vida a fome. A cidade apresenta-se a
eles como uma inimiga cruel tantas vezes, por suas ruas e becos é vista
como desafio e perigo aos que se aventuram na jornada destemida de
conquistá-la, em busca constante da sobrevivência através do roubo.
Não têm saída, não há defesas para a vida que os oprime, determinada
por condições baixas, sempre tendendo para o assalto e a fuga para se
livrar da polícia.
A cidade misteriosa tudo nega a Pedro Bala, o chefe, um menino
louro, filho de um grevista morto no cais, que tem uma cicatriz na testa,
resultante da briga com o líder de outra tribo; a João Grande, um negro
alto e forte, agindo mais com a força do que com a inteligência, ficou
sem o pai, um carroceiro, que foi atingido por um caminhão quando
tentava desviar o cavalo por um lado da rua. Dá as costas ao Sem Per-
nas, o coxo, foi surrado na cadeia, numa roda de soldados, ele no meio,
tentando fugir do cerco, mas sem poder, enquanto recebia bordoadas
permeadas de risos, sentindo a dor do borrachão para o lado que corria.
Não quer saber de Pirulito, o asceta, que queria entrar no colégio de padre.
Nem de Professor, leitor à luz de vela, que gostava de contar histórias

61
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

aos companheiros, fazendo com que nessa hora esquecessem as desgra-


ças da vida. Nem de Gato, o elegante, que usava sapato, paletó e meia,
que ao se desligar do grupo mais tarde iria viver na cidade como um de
seus malandros conhecidos. Nem tampouco de Volta Seca, que sonha
em se agrupar um dia no bando de Lampião, seu ídolo, que saqueava os
ricos na caatinga e no comércio, matava a polícia sem piedade, dividia
o produto do saque entre os desvalidos, os viventes da miséria. Tempos
depois, ele ingressaria no grupo de Lampião, seu padrinho, e se tornaria
o mais perverso dos cangaceiros.
O grupo passa por um momento perturbador com a chegada de Dora,
a menina que perdeu a mãe lavadeira ao pegar varíola. Sem rumo na
cidade com o vento que sopra contrário, de cores e sons ásperos, ela sai em
busca de um emprego impossível, faminta, sedenta, maltrapilha, até que
chega ao trapiche com o seu irmãozinho Zé Fuinha, pelas mãos de João
Grande. Seus cabelos louros ao vento, os peitos que despontam, o corpo
com o cheiro ativo que acende brasas no desejo dos garotos, despertam
em alguns líderes a fome do sexo. Descontrolados, sob o ímpeto dos ins-
tintos, querem estuprá-la a qualquer custo, ali mesmo, um a um, mas são
impedidos por João Grande, que empunha o punhal, ameaçando furar o
primeiro que ouse fazer o mal na menina. Tem ao seu lado Pirulito, com
uma navalha aberta para também defendê-la. Pedro Bala, a princípio fica
do lado do grupo que quer satisfazer os instintos, praticando sexo com a
menina. Mas ao saber de sua história, como perdeu a mãe para a varíola,
a fome que passava na cidade, sem encontrar emprego, a sola dos pés
com queimaduras, o corpo todo cansado, proíbe que os meninos façam
mal a Dora, que aos poucos irá se tornar para eles com os seus gestos
carinhosos uma irmã, mãe, companheira, conforme o momento de cada
um deles. Será a noiva do Pedro Bala, seu amado primeiro e único. Veste
calça e se integra no grupo como se fosse um deles, participa de roubos
e assaltos. Ao se tornar mulher, é com Pedro Bala que conhecerá seu

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DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

primeiro homem, querido e verdadeiro, no último momento de vida. Ao


morrer, assim que termina seu primeiro ato de amor sexual com Pedro
Bala, seu corpo é levado no saveiro de Querido-de-Deus para ser lançado
no mar. Por ter sido mulher valente, irá se transformar numa estrela de
louros cabelos compridos, tendo o mesmo destino dos homens valentes
quando morriam.
Os capitães da areia são meninos que perturbam a ordem da cidade,
infundem ódio à polícia e ao diretor do reformatório, transmitem medo
aos ricos, tiram o sono dos donos de palacetes na cidade cheia de igrejas,
por onde também soam atabaques que trepidam com ritmos trazidos de
África para os terreiros de candomblé. Na cidade que escorre mistério nas
ruas calçadas de pedras negras, ladeiras e becos, o percurso de todos eles
acontece fora das normas dos que ditam os padrões do comportamento no
sistema organizado. São meninos abandonados à agressividade da cidade
histórica, mas que têm uma lei e uma moral no sentido de dignidade
humana. Isso demonstra Boa-Vida em ato corajoso e solidário.

Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com as pala-


vras presas, um nó na garganta. Mas também achava bonito
Boa-Vida andar assim para a morte para não contaminar
os outros. Os homens assim são os que têm uma estrela
no coração. E quando morrem o coração fica no céu, diz
Querido-de-Deus. Boa-Vida era um menino, não era um
homem. Mas já tinha uma estrela no lugar do coração. Já
desapareceu o seu vulto. E então a certeza de que não mais
verá seu amigo encheu o coração do Professor. A certeza
de que o outro ia para a morte. (AMADO, 1957, p. 184)
Não é preciso esforço para compreender que Capitães da areia é um
romance social que tem uma força surpreendente na prosa que denuncia,

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

comprometida com a vida miserável de certas minorias, que não entram


na trama do texto vigoroso com suas particularidades fixadas como se
fossem tipos curiosos, estranhos, diferentes. É romance que fere na dura
lei da vida, sem cura aos que são vítimas de um sistema que privilegia
uns poucos e se fortalece diariamente para esmagar a muitos.
É um romance que nas suas cores doloridas deflagra o tratamento
violento que a vida dá a essas minorias de meninos que vivem em bando
como imperativo da sobrevivência, maltrapilhos, rejeitados, vistos à luz
distante, mas que em Jorge Amado, escritor engajado nos problemas sociais
que afligem a vida, pulsam dentro, repercutem na compreensão afetiva que
habita a personalidade do autor. O quadro informativo em certo trecho
do amor homossexual entre o negrinho Barandão e Almiro é visto como
atenuante do que é sublimado pela falta de carinho, na vida frequentemente
espancada, aviltada, provocada pela sociedade que não se cansa de pisar.
Publicado há sessenta e três anos, com incontroversa atualidade, o
romance presta-se ao juízo de que a situação do menor de rua continua
preocupante, hoje como ontem é um problema difícil de ser resolvido
sob vários entornos. Paulo Collen, em Mais que a realidade (COLLEN,
1988, p. 124), relata sua experiência de menino de rua, que não teve
família, procurava uma, e dos que tinham, mas que fugiam de casa por
problemas emocionais, causados pelos conflitos insuportáveis dos pais.

A FEBEM deveria ser uma escola que educasse, trans-


formasse e preparasse o menor para ser respeitado como
qualquer cidadão brasileiro. Dando prioridade para a
alimentação, a assistência médica e o lazer a FEBEM só
forma marginais. O que eu via nos olhos de cada criança
era revolta, angústia e vontade de sair dali. Cada cabeça ali
dentro só ficava fazendo planos de fuga. Os funcionários
só faziam espancar. (COLLEN, 1988, p. 124)

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DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

Se o quadro não fosse esse, até mesmo com o emprego de uma me-
todologia pedagógica mais humana, como se insinua hoje, não se pode
deixar de considerar que não se transforma uma criança, para que no
futuro seja um homem, se não se lhe dá afeto, não a prepara com a ferra-
menta digna de exercer uma profissão, com meios que a façam confiante
mais tarde, segura de si, para enfrentar a vida aqui fora.
O mundo é composto de ruins e bons, coisas uteis e inúteis. O sol ofe-
rece sua luz para todos, os pobres, os famintos, os favelados, os mendigos,
os abandonados, os loucos. Se o sistema oferecesse a esses desfavorecidos,
condições ideais para se erguerem na dureza da vida, não fizesse uso da
desigualdade, indiferença, preconceito, perseguições, violências, a vida
se movimentaria com a ocorrência de respostas decentes. Nas relações
sociais alcançaria a autoestima dos que para render precisam da ferra-
menta necessária ao trabalho, na sua função, ação e reflexão, cônscios
da liberdade preservada como o mais alto dos valores e o amor como o
sentimento mais forte.
Em Capitães da areia, temos o exemplo de que nem tudo está perdido
quando o Professor, o intelectual do bando, vai para o Rio de Janeiro
estudar pintura. Outras condições de vida são agora oferecidas, distan-
tes daquelas que o negavam quando andava como ladrão e fugindo da
polícia na cidade de mais de trezentas igrejas. Travavam seus pendores,
que soltos agora com ideias e emoções fizeram dele um pintor famoso.

2 — ROMANCINHO DE ITABUNA

Em O Menino Grapiúna (1981), pequeno livro de memórias, Jorge


Amado destaca:

Desbravador de terras, meu pai erguera sua casa mais além


de Ferradas, povoado do jovem município de Itabuna,

65
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

plantara cacau, a riqueza do mundo. Na época das grandes


lutas. (AMADO, 1981, p. 12)
Mais adiante afirma:
Eu nascera em agosto de 1912 naquela mesma roça de
cacau, de nome Auricídia. (AMADO, 1981, p. 12)
Nascera em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferra-
das, um povoado do jovem município de Itabuna, que aparece com o
seu comércio ativo no romance Terras do sem-fim (2008) como um dos
domínios do coronel Horácio.
Em Terras do sem-fim (2008), no capítulo Gestação de Cidades,
quando se refere a Tabocas, Jorge Amado conta que o povoado pertencia
ao município de São Jorge dos Ilhéus.
Mas já muita gente quando escrevia cartas, não as datava
mais de Tabocas e, sim, de Itabuna. E quando perguntavam
a um morador dali que estivesse de passeio em Ilhéus, de
onde ele era, o homem respondia cheio de orgulho:
— Sou de Itabuna. (AMADO, 2008, p. 145)
Antigos fazendeiros, sobreviventes da fase heroica da conquista da
terra, como Maneca Dantas e o coronel Horácio, personagens de Terras
do sem-fim, voltam em São Jorge dos Ilhéus a receber a empatia do ficcio-
nista humaníssimo que é Jorge Amado. A figuração do Coronel Horácio
já velho, quase cego, solitário, no meio dos cacaueiros, que plantara com
muito sacrifício, alcança rica significação no romance.
A recriação literária da civilização do cacau na Bahia tem sequência
em Jorge Amado com o pequeno romance A Descoberta da América pelos
turcos ou de como o árabe Jamil Bichara, desbravador de florestas, de

66
DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

visita à cidade de Itabuna para dar abasto ao corpo, ali lhe ofereceram
fortuna e casamento ou ainda os esponsais de Adma.
Neste romance publicado em 1994, Jorge Amado volta a apresentar
as marcas inconfundíveis de sua arte: fluência na escrita, facilidade de
fabular e gozo pela vida. Recorre ao riso para contar a saga de sírios e
libaneses no Sul da Bahia quando tinha início o plantio das roças de
cacau e a construção de casas em vilarejos e pequenas cidades.
Para Jorge Amado, a Descoberta da América, como afirmavam com
orgulho os que descendiam dos descobridores, ou a Conquista como di-
ziam os que descendiam dos índios exterminados, dos negros escravizados,
não acontece quatrocentos e onze anos depois da epopeia das caravelas de
Colombo, mas no começo do século dezenove e com grande atraso. Foi
protagonizada pelos turcos, “[...] que não são turcos coisíssima nenhu-
ma, são árabes de boa cepa.” Deu-se então a Descoberta ou a Conquista
quando sírios e libaneses aportaram no eldorado do cacau, vindos das
montanhas do Oriente Médio em época até certo ponto recente.
Situações engraçadas predominam em A Descoberta da América pelos
turcos, romancinho armado com desventura e premonição de felicidade
em seus episódios extraídos da vida real.
Passagens com humor árabe acontecem na pequena cidade de Ita-
buna, agora aparecendo pela primeira vez com destaque no território
da civilização cacaueira baiana, definido como um dos filões ricos da
novelística amadiana. Com o seu comercinho novo, o burburinho na
estação do trem, igreja e capela. Hotel dos Lordes, cabarés, botequins,
pensões de prostituta, fuxicaria na política, desmando dos jagunços
armados, tropas carregadas de cacau nas ruas. A recente cidade de Itabu-
na como um burgo de penetração exibe-se sem retoques e ilusionismo,
marca sua presença num cenário divertido da vidinha movimentada
e turbulenta.

67
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

O leitor desse livro de Jorge Amado vai conhecer situações urdidas por
negócios e mistérios de cama, com sua ironia e trama no tecido da vida.
Acompanhará o libanês Raduan Murad nas tentativas de encaminhar
Adma para Jamil Bichara e Adib. Este um garçom de botequim, lanzudo
feito um dromedário, esperto na cobrança e no troco, cujo defeito era
ser jovem para a solteirona. Nesse ambiente de pioneirismo e aventura,
sobressai de novo o relato povoado daqueles personagens pitorescos de
Jorge Amado, como Jamil Bichara, Raduan Murad, Ibrahim Jafet, Adib,
a sultana Sálua e a prostituta Glorinha Cu de Ouro.
Com uma estrutura simples, A Descoberta da América pelos turcos não
representa algo de novo no conjunto da obra amadiana, mas não deixa
de ser um fato marcante, dado que foi escrito por autor perto dos 82
anos, idade em que muitos já esgotaram suas compulsões e recolheram
suas habilidades usadas na arte da criação literária.
É fácil de ver que Jorge Amado incursiona por vários espaços da
região cacaueira para recriar o seu legado ficcional. Trata-se, portanto
de escritor grapiúna. Mas o que significa o termo grapiúna? De origem
tupi, a palavra na sua evolução semântica perdeu a vogal inicial “i” e
passou a significar os que nasceram ou vieram para o sul da Bahia naquele
período em que um sistema social com bases na lavra do cacau tomavam
os primeiros contornos de uma civilização, que se tornaria singular, ao
longo dos anos. Durante anos, o termo grapiúna significou os que nascem
na região cacaueira baiana ou os que ali estão radicados e se identificam
com a maneira de ser de um ambiente que possui caracteres próprios,
com a sua fala, tipos e costumes.
Prefiro ver Jorge Amado como um escritor grapiúna quando a ele nos
referimos como autor nascido no Sul da Bahia. Admirador dos ficcionistas
norte-americanos comprometidos com a realidade social do século vinte,
romancistas russos de inspiração proletária, poetas populares, o grapiúna
Jorge Amado enfatiza o regional mesclado com realismo franco, dosado

68
DOIS ROMANCES DE JORGE AMADO: OS CAPITÃES DA AREIA E A DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS

com uma prosa prazerosa que emana da terra com a sua gente, seus cos-
tumes, sua alma e sua história plantada na cultura nacional.
Em sua arte literária, que se apresenta na escrita de modo acessível
ao leitor de percepção comum, nascem juntos o escritor, que narra bem
como poucos o que viu, viveu, testemunhou, e o romancista fecundo, que
imaginou, sonhou, desejou a vida nem sempre como ela é. Se a narração
desenvolve-se através dos fatos objetivos acontecidos no plano exterior,
o conteúdo subjetivo também resulta da alma lírica arrebatada por sen-
timentos verdadeiros, valores essenciais transmitidos com humanidade
pela palavra solidária, que pertence ao seu tempo.
Assim é este romancista com sua mensagem de liberdade e espe-
rança na escrita irreverente, fascinante, sensual, que faz pensar e, a um
só tempo, rir. Esse grapiúna Jorge Amado, que nasceu numa fazenda de
cacau, no Sul da Bahia, para se tornar um dos mais criativos contadores
de histórias no mundo.
Faleceu aos 6 de agosto de 2001, em Salvador.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Os capitães da areia. Rio de Janeiro: Livraria


Martins Editora, 1957.
AMADO, Jorge. O Menino Grapiúna, Record, Rio, 1981.
AMADO, Jorge. Terras do sem-fim. Posfácio de Miguel Sousa
Tavares. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
COLLEN, Paulo. Mais que a realidade. São Paulo: Cortez, 1987.

69
A RELIGIÃO DE JORGE AMADO, UMA NOVA APRECIAÇÃO

A RELIGIÃO DE JORGE AMADO, UMA NOVA APRECIAÇÃO

Ordep Serra1

Começo por agradecer aos organizadores deste webnário pela honra


que nos deram, a nós da Academia de Letras da Bahia, de fazer esta ses-
são de encerramento. É uma alegria apresentar-me aqui junto com dois
queridos companheiros: a professora Edilene Matos, Vice-Presidente da
ALB, profunda conhecedora da literatura amadiana, e nosso Antônio
Torres, sem sombra de dúvida um dos maiores escritores brasileiros da
atualidade, um sábio que conviveu com Jorge Amado e desfrutou de sua
amizade. Eu não poderia ter melhor companhia. Também me alegra
muito estar em diálogo com muitos colegas, mestres e alunos de nossas
universidades, partícipes do bem-sucedido webnário que encerramos já
com saudades.
Demos a esta mesa um título que talvez soe bizarro, ou pelo menos
curioso: Os prodígios de Jorge Amado. É fácil defender a escolha evo-
cando o excepcional talento de Mestre Jorge. Mas não se trata apenas
disso. Dá-se que em sua obra luminosa os prodígios abundam: epifanias,
encantos e risonhos milagres. Nessa constatação também me apoio para
justificar o título que dei à presente comunicação: A religião de Jorge
Amado. Mesmo assim, reconheço que ele soa extravagante. Afinal, nosso
prodigioso escritor não professou religião alguma. Era declaradamente
materialista. Mas insisto em minha proposta.
Pode-se até dizer que sou teimoso: é a segunda vez que me atrevo a
falar em religião de nosso grande escritor ateu. A primeira vez teve lugar
1
Escritor, ensaísta, Presidente da Academia de Letras da Bahia.

71
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

em 2013, no Curso Jorge Amado: Colóquio de Literatura Brasileira,


realizado pela Academia de Letras da Bahia em parceria com a Funda-
ção Casa de Jorge Amado. O texto da palestra que então pronunciei foi
publicado, assim como as falas dos demais participantes do Colóquio, no
livro intitulado “Jorge Amado: Cacau — a volta ao mundo em oitenta
anos”, coletânea organizada por Myriam Fraga, Aleilton Fonseca e Evelina
Hoisel, obra dada a lume pela Casa de Palavras. Volto à tese que defendi
naquela ocasião para acrescentar-lhe novos elementos.
Não vou cingir-me ao que falei no dito Colóquio. Sequer prometo
reproduzir com fidelidade o que disse na última sessão do recente web-
nário. Quem assistir à live notará a diferença. Melhor assim. A tarefa
acaba sendo mais divertida, e menos cansativa. De resto, não faria sentido
transcrever o que falei e está disponível em gravação. Nem teria propósito
a reprodução ipsis litteris do que já foi publicado.
Mas não fujo à trilha. Para tornar ao proposto, recapitulo brevemente
os pontos principais assinalados em ambas as exposições. E agrego novos
considerandos nessa recapitulação.
No Colóquio, empenhei-me em mostrar que a obra de Jorge Amado
se acha impregnada de elementos religiosos, valores e temas oriundos de
um repertório sacro. Lembrei, em seguida, que ele se pronunciou, por
meio de sua novelística, sobre um assunto de religião, numa polêmica que
envolve crenças a um tempo associadas e diferenciadas: empenhou-se com
fervor na defesa do sincretismo afro-católico. Não o fez com intenção de
esclarecimento sociológico, mas com empenho fervoroso. Não o estudou,
propriamente: valorizou o sincretismo, que relacionou com a mestiça-
gem, imprimindo um colorido erótico às imagens com que o sustentou.
É inegável que assim lhe aderiu. Embora sem muita consciência disso,
fez teologia. A seu modo.
Em todo o caso, quem quiser discutir, do ponto de vista da história e
da sociologia, a questão do sincretismo que afeta as religiões afro-brasileiras

72
A RELIGIÃO DE JORGE AMADO, UMA NOVA APRECIAÇÃO

(em particular o candomblé) e o catolicismo do povo da Bahia, não pode


fugir da apreciação do discurso amadiano.
Sublinho de novo um aspecto fundamental: a abordagem de Jorge
Amado não é de natureza propriamente hermenêutica, não constitui
uma análise do assunto. Nada tem de uma consideração fria, com dis-
tanciamento crítico: comporta a adesão fervorosa a um valor. Seu veículo
é uma narrativa fantástica, apaixonada. O romance O sumiço da santa
representa o momento mais forte e, também, o mais brilhante, de sua
teologia imaginária. Temos assim uma situação singular em que um
escritor materialista, como ele se declarava, toma partido numa questão
de fé, que busca transpor para o plano político. Ao fazê-lo, porém, mos-
tra uma paixão que transborda, que vai além da desejada transposição.
O erótico em Jorge Amado é carismático, por assim dizer. Seu sonho
comunista de uma sociedade livre, sem exploração, sem injustiça, envolve
uma rica libido; sua apaixonada celebração da luta dos oprimidos e dos
militantes empenhados no combate à opressão frequentemente se colore
de ardor amoroso. O sagrado que está presente em sua obra tem o vigor
do arrebato sexual. A imagem mais forte em que ele traduz seu credo
sincrético em O sumiço da santa é uma bela trepada em que se unem São
Jorge e Oiá, o santo cavaleiro dos cristãos e a deusa negra. Este sintagma
amoroso se repete na mesma novela quando ele promove o enlace de um
padre com uma iaô. Para o sacerdote católico, o coito a que finalmente
cede constitui, em termos amadianos, uma redenção. Assim Mestre
Jorge o “canoniza”, depois de descrevê-lo como um homem justo, bom,
corajoso defensor dos pobres: salva-o do celibato por esses merecimentos.
No dito romance, o autor apresenta a igreja católica dividida: assinala
a existência de dois opostos exércitos de Cristo, um deles representado
por um bisonho sacerdote fascista, o outro por Dom Timóteo Amoroso
Anastácio, o abade beneditino cuja bondade revelou ao amigo Jorge um
cristianismo digno, puro, retratado também na figura do padre amo-

73
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

roso, desvirginado pela graça de Iansã. Por esse cristianismo libertador,


Amado mostra profundo respeito — e não hesita em aproximá-lo de
sua fé comunista.
A meu ver, não há despropósito em falar de fé comunista, muito
menos em se tratando de Jorge Amado. Sua adesão ao materialismo
dialético tem mais a ver com a adesão a um sonho generoso, a valores
éticos, do que com uma reflexão teórica tornada ativa nas práxis política.
A fé amadiana se alimenta da esperança (que bem se pode comparar com
a crença milenarista) no futuro advento da sociedade sem classes, fim
da barbárie que ainda vivemos e começo da história propriamente dita,
meta a ser alcançada por obra e graça do proletariado, assim investido de
um potencial messiânico. O alimento dessa esperança em Jorge Amado
é seu sincero amor pelo povo oprimido, sofrido e criativo de sua terra.
Não admira que ele se emocione com a Teologia da Libertação, e celebre
sua convergência com a doutrina que abraçara. A “opção pelos pobres”
estava desde muito em seu coração.
Por muito tempo, Jorge Amado se ligou fielmente ao Partido Comu-
nista, buscando manter-se nos limites de sua ortodoxia. Ao desligar-se da
organização, não abjurou do sonho comunista nem da crença fundamental
em que o enraizava. Ao que parece, sentiu-se mais livre para cultivá-lo
a seu modo, sem temor de censura. Antes, mesmo sendo reconhecido
como um quadro valioso, ele foi, por vezes, censurado por camaradas,
tanto pela sensualidade transbordante em sua obra (excessiva para o pu-
ritanismo do partido) quanto pela sua celebração de uma religiosidade
“primitiva” que o fascinava. É que sua descoberta do mundo encantado
do candomblé marcou-o de maneira profunda, para sempre. A religião
do povo negro da Bahia o envolveu com sua beleza. Mas o fato é que
ele mesmo achou difícil conciliar esse encantamento com seu credo
marxista-leninista, com sua condição de ateu confesso. Viu-se colhido por
uma contradição que tentou inutilmente resolver. A tentativa frustrada

74
A RELIGIÃO DE JORGE AMADO, UMA NOVA APRECIAÇÃO

figura em seu Tenda dos Milagres. Aí Jorge Amado tenta explicar-se pela
boca de seu personagem Pedro Arcanjo, um sábio materialista com alto
posto na hierarquia do candomblé — tal como o autor do romance, que
se consagrou ministro de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, com o título
de Otum Obá Arolu.
O protagonista de Tenda dos Milagres renega a crença nos orixás
para afirmar-se ateu, adepto do materialismo dialético, e justifica com
dois argumentos um tanto simplórios o fato de manter, apesar disso, sua
ligação com terreiros, seu posto sacerdotal: alega, primeiro, que os orixás
são “bens do povo” e seu culto deve um dia ascender ao teatro, fazer-se
arte; em segundo lugar, protesta que se abandonasse a religião perseguida
pela polícia trairia o povo de santo, seu povo.
Nessa altura da novela, sente-se com clareza o desconforto do perso-
nagem e a fraqueza de sua argumentação, que soa pouco convincente para
o leitor. Mas também fica claro que Pedro Arcanjo vem a ser o porta-voz
de Jorge Amado. É o escritor que procura justificar-se. Sente-se o travo
da contradição que ele experimenta. Ele não a resolve. Como poderia?
Sua profissão de fé no materialismo histórico prevalece na resposta
que então formula. Mas ela segue entrando em choque com seu encan-
tamento por um mundo religioso de que tirou muita inspiração, que o
apaixonava e atraía com uma força irresistível.
É frequente e marcante a presença dos orixás na literatura amadiana.
Ele incorporou a seu fazer poético as imagens, os mitos, os cânticos e
transes de misteriosas divindades cujos templos amava visitar, de cujas
festas participou inúmeras vezes, de cujas saborosas comidas rituais se
nutriu com delícia. É fácil ver que ele glosou criativamente patakis e orikis,
enriquecendo a prosa que era seu tesouro, sua expressão mais viva em
face do mundo. Sim, muitas vezes Jorge Amado fez de sua imaginação
um vigoroso cavalo de santo. Sabe-se que ele costumava identificar-se
vaidosa e alegremente como filho de Oxóssi e tinha sincero orgulho de

75
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

seu elevado posto de Obá de Xangô. O novelista que celebrou com deleite
as proezas de Exu não escondeu jamais sua simpatia pelo deus irrequieto.
Seu olhar amoroso para a Bahia de Todos os Santos fez dela um espelho
de Iemanjá. E bem se vê que ele sentiu a força divina dos eledás na arte
de seu amigo Carybé, na música do querido Dorival Caymmi, ambos
ligados efetivamente ao culto dos deuses negros. Tendo-se acostumado a
assinalar a presença do mistério na cidade amada, na carne e nos sonhos
de sua gente, como poderia o feiticeiro Jorge escapar-lhes? Como viveria
esse homem de rica imaginação num mundo desencantado? Bem melhor
que na figura ilustre de Pedro Arcanjo ele se sentiu, a meu ver, na pele de
outro personagem, o também materialista Edmilson Vaz, de O Sumiço
da Santa, que aceitava tranquilamente os prodígios de sua terra e pouco
se importava com a contradição.

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A REVISTA MERIDIANO E SEUS 80 ANOS

A REVISTA MERIDIANO E SEUS 80 ANOS

GILFRANCISCO1

Na década de 1920, na Bahia, os três escritores que se revelaram


— antes de qualquer revista, grupo ou movimento literário — foram:
Eugênio Gomes, com o poema “Moema”; Herman Lima, que era cea-
rense, com os Contos de Tijipió (posteriormente, já morando no Rio,
escreveu um livro interessantíssimo, A História da Caricatura no Brasil;
e Godofredo Filho, com os seus poemas, sobretudo o “Poema de Ouro
Preto”. Depois, ainda na mesma década, apareceram três grupos quase
simultâneos, todos refletindo a inquietação do Modernismo: o da revista
Arco & Flexa, o da revista Samba e a Academia dos Rebeldes.
O grupo de Arco & Flexa foi o mais organizado no sentido da im-
prensa, o de maior influência. O guru do grupo, o mestre, era Carlos
Chiacchio, um intelectual mineiro aqui radicado, que escrevia o rodapé
literário de A Tarde. Esse rodapé era o que havia de maior peso na vida
literária baiana, e teve, a meu ver, uma influência muito grande e muito
positiva. Diz Jorge: sou, inclusive, imparcial para dizer isso, pois eu não
pertencia ao grupo do Chiacchio; ao contrário, nós, da Academia dos
Rebeldes, o combatíamos muito. Seus integrantes eram todos de famílias
conhecidas e de boa condição social.
O grupo da revista Samba, economicamente o menos poderoso,
era liderado pelo alfaiate Bráulio de Abreu (1903), excelente sonetista;
publicou em 1996 “Alma Profana”, faleceu com quase cem anos. Desse
grupo faziam parte o novelista Elpídio Bastos, o poeta e jornalista Clo-
1
jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com

77
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

doaldo Milton, que depois foi para o Rio, o Bittencourt Sobrinho, um


ficcionista de muito talento, que morreu moço, Nonato Marques, que
se dedicou à política, e outros.
A Academia dos Rebeldes, que existiu de 1927 a 1931, se formou
em torno de um velho poeta e jornalista baiano, João Amado Pinheiro
Viegas, descendente de espanhóis. Era um poeta baudelairiano, poeta de
rima rica, grande epigramista. Um homem avançado para os padrões da
época. Havia participado da campanha civilista ao lado de Rui Barbosa
e trabalhado vários anos no Rio. Na Bahia ele trabalhou no O Impar-
cial, na época um jornal importante e que terminou sendo vendido aos
integralistas. Deixou um livro, Brasil em Prosa e Verso, e várias plaquetas.
Morreu em 1937, aos setenta e dois anos.
Faziam parte da Academia dos Rebeldes pessoas que mais tarde fo-
ram literalmente muito importantes: o contista Dias da Costa, o grande
ensaísta e etnógrafo Edison Carneiro, o romancista Jorge Amado, o
grande poeta Sosígenes Costa, que, apesar de viver distante em Ilhéus,
sempre foi considerado do grupo, o poeta e depois dirigente comunista
durante muitos anos Aydano do Couto Ferraz, Walter da Silveira, o mais
moço do grupo e fundador do Clube de Cinema da Bahia, em 1950,
João Cordeiro, romancista e tão cedo desaparecido, Clóvis Amorim, o
sonetista piauiense Da Costa Andrade, o poeta e cronista Alves Ribeiro,
os poetas José Bastos e De Souza Aguiar, o jornalista Otávio Moura e
Pinheiro Viegas, patrono espiritual da Academia.
Os “rebeldes” viviam em torno de Pinheiro Viegas (1865-1937) e se
reuniam diariamente no Café das Meninas e no Bar e Bilhar Brunswick,
em Salvador, para comentar os fatos triviais da cidade, os escândalos do
bairro literário, discutir os livros aparecidos e as revistas mais recentes.
No início estavam mais ligados com as figuras populares: capoeiristas,
malandros, estivadores, boêmios, prostitutas, gente simples da feira de

78
A REVISTA MERIDIANO E SEUS 80 ANOS

Água de Meninos e do mercado das Sete Portas, do que a literatura


propriamente, ou seja, sem muito ou nenhum peso intelectual na vida
literária baiana.
O grande contista Dias da Costa, um dos frequentadores do Bar
Brunswick, uma mistura de café e bilhar, situado numa transversal da
Rua da Ajuda e pertencente a um sírio, diz que

[...] ali, todas as tardes, se encontravam alguns rapazes e


um velho da face voltaireana, vestido de preto, monóculo
encravado no olho esquerdo, bengala de estoque na mão, que
fazia frases, soltava paradoxos, declamava epigramas cruéis
e, vez por outra, recitava cintilantes poemas simbolistas [...]
Ali encontrei, à volta de Pinheiro Viegas, Alves Ribeiro,
Clóvis Amorim, João Cordeiro, Guilherme Dias Gomes,
Edison Carneiro e Jorge Amado. E, desde essa tarde, fiz
amigos dos quais, até hoje, só a morte me separou”. (Dias
da Costa. Há quarenta anos na cidade do Salvador. Jornal
de Letras, Rio, julho, 1967).
Na verdade, a rebeldia dos adolescentes era organizar-se para poder
enfrentar “os bons camaradas” da revista Arco & Flexa, comandado por
Carlos Chiacchio (1884-1947), ou “os simpáticos rapazes” da revista
Samba: Bráulio de Abreu, Clodoaldo Milton, Elpídio Bastos, Nonato
Marques e outros. Hostil ao Modernismo, o grupo atuava nas polêmicas,
que cindiam as instituições de produção e difusão do campo intelectual
da época. Este grupo literário era detentor de outra concepção de Mo-
dernismo e opondo-se a agremiações vigentes.
Colocava-se em contraposição não só a grupos locais, mas também a
instituições de dimensão nacional, como a Academia Brasileira de Letras.
Ou seja, o Modernismo encontrava então, na Bahia, os primeiros ecos e

79
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

as primeiras oposições. Meridiano (revista de vanguarda), de divulgação


dos “rebeldes” foi publicada em setembro de 1929, um único número, o
qual trazia o manifesto do grupo.
Publicada em papel jornal, apresentando o formato de 33x16 cm,
sendo a mancha de 18 x11,5 cm, sem indicação de páginas (33 páginas,
sendo que 8 destinadas a publicidade). Capa simples, de cor esverdeada,
sem nenhuma foto no interior da revista, impressa em Fonseca Filho e
Cia, tendo na direção Alves Ribeiro, Da Costa Andrade e Jorge Ama-
do, cujo endereço da redação era Cruzeiro de São Francisco, 16, onde
funcionava a Academia dos Rebeldes.
Segundo depoimento de Jorge Amado

Meridiano não passou do primeiro número, nós, os Re-


beldes, éramos pobres como Jó, exercíamos nossa prosa e
nossa poesia em qualquer gazeta que nos dessa guarida:
O Jornal, órgão da Aliança Liberal, as revistas A Luva e
Etc. (Jorge Amado. Alves Ribeiro, A Tarde, Salvador, 29.
Junho, 1975, diz que o editorial da revista Meridiano,
não assinado, foi escrito pelo acadêmico de Direito José
Alves Ribeiro)
Portanto, a revista era uma publicação marginal, expulsa da repúbli-
ca das letras baianas. Na primeira página do periódico, trazia o artigo
manifesto, Itinerário, sem assinatura
Itinerário
MERIDIANO sugere e inicia o combate a tudo o que re-
tarda a marcha do progresso, em todas as manifestações do
espírito humano. E considera o rotineirismo como um dos
maiores obstáculos a vencer. Obra de regeneração moral e
intelectual. Espírito moderno. Dinamismo. Século vinte.

80
A REVISTA MERIDIANO E SEUS 80 ANOS

***
Condena o sentimentalismo atrofiador de energias.
Desportos. Ar livre. Eugênia.
***
Condena as velhas superstições religiosas, que constituem
o ponto de apoio da ignorância.
Substituam-se as mesmas pelas verdades da ciência.
***
Condena os convencionalismos idiotas que impedem o
surto de todas as idéias novas.
Pensar e agir por conta própria.
***
Condena a tagarelice dos filósofos, a bisbilhotice dos
gramáticos, a literatice dos diletantes, o verbalismo dos
retóricos e as frioleiras dos ‘poetas do amor e da saudade’
Filosofia prática, intuitiva, racional. Literatura instrutiva,
sadia, edificante. Poesia simples, natural, sem artifícios.
***
Condena os ‘ismos’ importados do estrangeiro.
Escrever fora do julgo de estéticas desorientadas e incoe-
rentes.
***
Condena os regionalistas em geral, que querem reduzir
a nossa Literatura a uma fuzarca de violeiros e caipiras.

81
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Literatura com motivos brasileiros, mas de interesse universal.


Colaboram neste único número: Hosannah de Oliveira, Da Costa
Andrade, Sosígenes Costa, Alves Ribeiro, De Souza Aguiar, José Bastos,
Otávio Moura, Jorge Amado e Pinheiro Viegas. Sobre as colaborações,
Meridiano — revista antimodernista, antiverde-amarelista —, franqueia as
suas páginas a todos os intelectuais do país, ficando ao critério da redação
da revista o julgamento dessas colaborações recebidas. Mas tinha seus
colaboradores efetivos: Hosannah de Oliveira, Sosígenes Costa, Otávio
Moura, De Souza Aguiar, José Bastos e Pinheiro Viegas.
Neste número, Sosígenes Costa colabora com três poemas, sendo dois
em prosa. Sua poesia marcou-se pelas tendências modernistas, embora
com independência e personalidade própria: “Apoteose das Parcas”;
“Palhaço Verde” e “Narciso”.
Os membros da Academia dos Rebeldes também atuaram nos pe-
riódicos A Semana, dirigido por Da Costa Andrade, bem como em O
Jornal, órgão da Aliança Liberal, que apoiou a Revolução de 30, onde
Jorge Amado conjuntamente com Dias da Costa e Edison Carneiro,
publicaram o romance, Lenita, de forma dúplice, primeiro em folhetim
ou “fascículos”, neste jornal em 1929, com Jorge Amado adotando o
pseudônimo de Y. Karl, e depois editado no Rio de Janeiro em 1931.
O romance foi estruturado da seguinte forma: cada um dos três
autores escrevia um capítulo, desafiando a cada final, a capacidade dos
dois outros de continuarem a narrativa. Segundo Jorge Amado, “um
romance tão ruim que precisou de três autores”, ou “livro ruim de três
adolescentes influenciados pelo maneirismo modernistas.” Além do Diário
da Tarde, de Ilhéus, Estado da Bahia, o Diário da Bahia, os “rebeldes”
publicaram vários trabalhos nas revistas: A Luva, Boletim de Ariel etc.,
que depois tornou-se integralista e O Momento2 .

2
Texto publicado no Jornal da Cidade. Aracaju, 24 de dezembro, 2009

82
IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS


EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE
AMADO

Aline Santos de Brito Nascimento1

1 — REFLEXÕES TEÓRICO-CRÍTICAS INTRODUTÓRIAS

Este estudo tem por finalidade apresentar aspectos identitários associados


à etnia negra e suas manifestações religiosas a partir da observação, des-
crição e análise de duas obras de Jorge Amado, Jubiabá (1935) e Tenda dos
Milagres (1969). A justificativa para a elaboração e divulgação de tal análise
se firma quando se considera a literatura enquanto formadora de opinião,
visto que tende a gerar impacto em seus leitores, tanto veteranos quanto
em formação, além de atuar como modelo teórico-crítico e metodológico
para trabalhos acadêmicos posteriores. No caso específico das obras aqui
investigadas, o recorte temático ao grupo étnico afro-brasileiro retratado
na obra colabora como vetor para a formação crítica de seus leitores, na
construção da noção de respeito às diferenças.
É válido observar que desenvolver um estudo da obra amadiana, muitas
vezes, também é examinar o contexto histórico-geográfico representado
em suas narrativas. Isso porque o próprio Jorge costumava anunciar que
escrevia sobre o que ele de fato viveu. Assim, cabe refletir sobre a tênue
fronteira entre a realidade e a ficção em sua produção literária. No entanto,
1
Professora Adjunta do DEDC X — Campus Teixeira de Freitas da Universidade do
Estado da Bahia - UNEB. Membra dos Grupos de Pesquisa GEICEL e GEVONC.
E-mail: alinemacuco@hotmail.com

83
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

qualquer manifestação crítica acerca do objeto deve considerar que, ainda


que inspirada no real, tem-se ali uma obra ficcional, que é apresentada por
meio de estratégias de construção textual do autor, com uso apurado de
recursos expressivos em seu discurso.
Por mais que o romancista inclua fatos que ele pode ates-
tar, no caso do romance histórico, ou do romance realista
do século passado, nós sabemos que aqueles fatos estão
sendo trabalhados por uma corrente subjetiva, filtrados,
transformados. Ainda que o quantum de real histórico
seja ponderável, o modo de trabalhar, que é essencial, é
ficcional (BOSI, 2013, p. 224).
Dentre as várias abordagens possíveis a partir de estudos acerca da
obra amadiana, verifica-se que uma das maiores contribuições que a mes-
ma suscita vem da segmentação identitária afro-brasileira nela retratada,
como ocorre nas duas obras aqui analisadas, inclusive firmando-se como
exemplos de resistência. Desse modo, analisar Jorge e sua produção faz
com que seja fundamental a reflexão acerca de como as identidades se
constroem:
A elaboração de uma identidade empresta seus materiais da
história, da geografia, da biologia, das estruturas de produção
e reprodução, da memória coletiva e dos fantasmas pessoais
dos aparelhos do poder das revelações religiosas e das ca-
tegorias culturais. Mas os indivíduos, os grupos sociais, as
sociedades transformam todos esses materiais e redefinem
seu sentido em função de determinações sociais e de projetos
culturais que se enraízam na sua estrutura social e no seu
quadro do espaço-tempo (CASTELLS, 2000, p. 18).

84
IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

Desse modo, confirma-se a suposição de que a identidade afro-brasileira


tem, em sua formação, um número de caracteres herdados de seus antepas-
sados, que, de alguma forma, a partir de certa autoridade culturalmente
atribuída, escolhe elementos a serem preservados e cultivados no decorrer
do tempo, a exemplo dos aspectos religiosos. Tais elementos podem ser
identificados nos personagens amadianos, especialmente aqueles retratados
como dotados de características fenotípicas negras. Nesse escopo, dados
históricos ajudam a compreender como se deu a formação étnica brasileira,
bem como os estigmas atribuídos aos dados étnicos diferentes do europeu,
este responsável pelo processo de colonização do país.
No que diz respeito ao tema, Ribeiro traz um itinerário temporal, a
partir de dados que colaboram para a compreensão do ponto:

A destribalização do negro e sua fusão nas sociedades


neoamericanas constituiu um dos mais portentosos mo-
vimentos de população e o mais dramático processo de
deculturação da história humana. Para efetuá-lo, o europeu
arrancou da África, em quatro séculos, mais de 100 milhões
de negros, vitimando cerca da metade no apresamento e
na travessia oceânica, mas conduzindo a outra metade
para as feitorias americanas, onde prosseguiu o desgaste.
Um dos efeitos cruciais dessa transladação de africanos e
de sua incorporação como escravos na força de trabalho
das sociedades americanas nascentes foi a implantação de
uma estratificação étnica com as tensões da discriminação
racial. [...] Muito da discriminação racial e social que ainda
hoje inferniza os povos americanos tem suas raízes nesta
bipartição que fixou, tanto nos brancos quanto nos negros e
seus mestiços, rancores, reservas, temores e ascos até agora
não erradicados (RIBEIRO, 2007, p. 191).

85
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Justamente por não aceitar essa condição em que os negros e mestiços


se encontravam, Amado usou sua obra como protesto e um chamado a
refletir sobre o tema. Desse modo, outro importante elemento que fun-
damenta as análises aqui apresentadas se firma no conceito de resistência,
visto que a obra amadiana é recorrentemente assim classificada, tanto no
âmbito da sua produção, quanto pelo conteúdo da trama e pela caracteri-
zação de seus personagens. Um dos exemplos de que a resistência domina
a cena amadiana está na forma como personagens, que costumavam ser
representados à margem da sociedade, assumem lugar de destaque, em
sua produção literária, protagonizando as ações.
Para refletir sobre tal aspecto, ancora-se aqui em Durigan:
Um dos princípios da resistência civil é justamente o de elevar
o cidadão ao patamar de partícipe das transformações: ora,
não seria o próprio movimento quem deturparia essa razão
fundamental. Ademais, o que se depreende, por exemplo, do
texto de Thoreau, é que sua intenção era firme no sentido de
provocar mudanças, não somente por razões de consciência,
mas sobretudo para fazer valer os direitos que entendia ser
proprietário enquanto cidadão (DURIGAN, 2016, p. 1).
Isto posto, aquele que a sociedade tradicional costuma tolher e escon-
der, na ficção amadiana toma as rédeas de sua trajetória, não aceitando
imposições injustas e preconceituosas. Nesse introito, o culto aos orixás,
no candomblé, religião de matriz africana historicamente considerada
tabu no Brasil, assume posição de relevo na narrativa de Jorge Amado.

2 — AMADO E SUA BIOBIBLIOGRAFIA

Como antes mencionado, o contexto em torno da vida e da obra


amadiana são convergentes, visto que muito de sua vida está representado

86
IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

em seus romances. Assim, os lugares por onde Amado passou, as histórias


que ouviu e vivenciou e as pessoas com quem compartilhou momentos
importantes de sua trajetória foram inseridos em suas narrativas. Sobre o
tema, o autor anuncia: “Eu nunca escrevi senão sobre aquilo que eu vivi,
sobre aquela realidade que eu conheço, por ter vivido, nunca por ter sa-
bido, por ouvir dizer, por ler nos livros e, sim, por ter aprendido na vida”
(SANTOS, 1992 apud LIMA, 2006, p. 270).
A forma como essa vivência foi sendo construída fez com que Amado
tenha se tornado um arauto da resistência, declarando guerra ao precon-
ceito e anunciando o grito de liberdade e vitória dos excluídos. É também
assim que o define Ana Maria Machado, ao considerá-lo um anarquista:

Jorge Amado finca raízes em sua terra e seu universo


marginal de vagabundos, prostitutas, bêbados, malandros,
jogadores. Mergulha na exploração das saídas que essa mar-
ginalidade oferece: a solidariedade e a rede de amizades, o
humor em todas as suas formas, a transcendência religiosa
por meio do sincretismo afro-brasileiro, a criatividade de
uma cultura mestiça, o corpo com seus prazeres e desejos
(MACHADO, 2006, p. 103).
É nesse ínterim que se inicia o contato amadiano com a identidade
afro-brasileira e o multiculturalismo que caracteriza o Brasil. As ami-
zades, as viagens e a observação cuidadosa de seu entorno ajudaram a
construir seu estilo de escrita e possibilitaram a criação de personagens
de vários matizes:

O convívio com a cultura popular era parte integral da


existência quotidiana. Fez questão de evocar lado a lado o
privilégio que foi conviver com Picasso e Camafeu de Oxós-
si, Sartre e Mestre Pastilha (MACHADO, 2006, p. 45).

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

O próprio Amado busca explicar as motivações que o levaram a uma


escrita engajada, em obra de sua autoria que assume caracteres biográficos,
Navegação de cabotagem, apontamentos para um livro de memórias que jamais
escreverei (1993). Apesar de também ter construído um círculo de amizades
composto por artistas mundialmente famosos, acadêmicos renomados
e políticos influentes, foi no contato com o povo que ele pôde extrair a
essência de seus textos e as principais ideias de seus enredos:
Menino de quatorze anos comecei a trabalhar em jornal,
a freqüentar os terreiros, as feiras, os mercados, o cais
dos saveiros, logo me alistei soldado na luta travada pelo
povo dos candomblés contra a discriminação religiosa, a
perseguição aos orixás, a violência desencadeada contra
pais e mães-de-santo, iaôs, ekedes, ogans, babalaós, obás.
Os lugares sagrados invadidos e destruídos, iyalorixás e
babalorixás presos, espancados, humilhados. Tais misérias e
a grandeza do povo da Bahia são a matéria-prima de meus
romances (AMADO, 1993, p. 71).
O autor costumava frequentar terreiros de candomblé na cidade
de Salvador, onde construiu fortes laços de amizade, com pais, mães e
filhos de santo, e para onde levou amigos brasileiros e estrangeiros, que
passaram a conhecer esse traço cultural a partir da leitura de suas obras.
Dentre os elementos que formaram os seus instrumentos de trabalho,
que são fundamentalmente as ideias e a habilidade redacional, esse
contato constante e intenso de Jorge Amado com o povo negro permitiu
a construção de obras que tomaram lugar de destaque na literatura bra-
sileira. De tais obras amadianas, são muitas as que têm o negro como
parte da narrativa, a exemplo dos romances Jubiabá (1935), Mar morto
(1936), Capitães da areia, (1937), Gabriela, cravo e canela (1958), Os
pastores da noite (1964), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966), Tenda

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IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

dos milagres (1969) e O sumiço da santa (1988). Destas, há aquelas que


destacam as religiões afro-brasileiras, tendo orixás protagonizando as
histórias, como a presença de Omolu, em Capitães da Areia, Iemanjá,
em Mar Morto, Exu, em Dona Flor e seus Dois Maridos. Nas obras aqui
elencadas, o autor dá destaque às características fenotípicas do povo
negro, assim como aborda a mestiçagem, numa seleção vocabular que
repete e ilustra a interpretação que os não negros fazem desse grupo
étnico e a ela questionam.
Pode ser encontrado um robusto material crítico acerca da relação entre
Jorge Amado e a religião, apesar de o mesmo se autodeclarar agnóstico; por
isso, é importante perceber que Amado frequentava terreiros de candomblé
mais por admiração do que por devoção, o que pode justificar a atenção
dada ao tema em seus romances.
Nesse viés, Prandi (2012) vem abordar o sincretismo que toma espaço
na obra amadiana. Ali, homens e mulheres, sacerdotes e sacerdotisas, deuses
e deusas firmam o seu lugar.
Quem lê Jorge Amado encontra em muitos de seus livros
referências ao candomblé, religião afro-brasileira dos orixás,
deuses de origem africana. O candomblé se formou no
Brasil no século XIX e esteve até os anos 1960, mais ou
menos, restrito à Bahia, especialmente a Salvador e cida-
des do Recôncavo Baiano. Depois disso, foi se tornando
mais conhecido e se espalhou por todo o País (PRANDI,
2012, p. 47).
Desse modo, a história do candomblé na Bahia e no Brasil pode também
ser compreendida a partir da ilustração que Jorge Amado faz dos ritos e
cenários afro-brasileiros. O cotidiano representado em muitas obras ama-
dianas se confunde com o cotidiano dos terreiros. Em suma, o contexto
de produção da obra amadiana possui vários contornos, tendo ele vivido

89
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

em diversos países e experimentado as características de muitas culturas


diferentes. No entanto, tornou-se um grande admirador e divulgador do
candomblé, como se vê em boa parte de sua produção ficcional.

3 — O NEGRO E O CANDOMBLÉ EM JUBIABÁ E TENDA DOS


MILAGRES

As duas obras que compõem o corpus deste estudo, Jubiabá e Tenda dos
milagres, trazem importantes trechos que confirmam a atenção dada por
Amado à temática da identidade negra e do candomblé especificamente.
Cabe observar que ambos os títulos carregam conotação religiosa, visto
que o primeiro leva o nome de um babalorixá, sacerdote do candomblé,
e o segundo inclui um termo associado ao campo do maravilhoso, inex-
plicável, divino.
Sobre Jubiabá, é importante esclarecer que o protagonista da obra é
Antonio Balduíno, mas é o sacerdote do candomblé que recebe a homenagem
pelo autor, quando a obra leva o seu nome. A importância do babalorixá
aparece em muitas páginas do romance, nas quais, de um lado, o povo
negro e que vive na periferia devota grande respeito e admiração por ele; e
de outro, o povo não negro e elitizado, que não reconhece sua autoridade,
trata-o com desdém e até mesmo como criminoso.
Amado traz, na obra, a sua atenção aos excluídos da sociedade dita
tradicional, que, ao não aceitarem a tentativa de apagamento, resistem e
buscam seu lugar naquele contexto. Como exemplo, pode-se constatar no
trecho a seguir, em que o autor detalha elementos da composição da festa
de São João, a participação do negro e pobre, além de outras minorias,
que despertam o preconceito dos demais, assumindo lugar de destaque:

O Liberdade na Bahia tem tradições a zelar e o seu baile


de junho reunirá, sem dúvida, toda a criadagem das casas

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IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

mais ricas, todas as mulatas que vendem doces na rua, os


soldados do 19, os negros que estão espalhados na cidade. É
o criouléu mais célebre da cidade. Na Bahia não são muitos
os criouléus. Os negros preferem ir dançar nas macumbas
a dança religiosa dos santos e só vêm aos criouléus nos dias
de grande baile. Mas o Liberdade na Bahia conseguiu o
apoio de Jubiabá que ficou sendo presidente honorário e
assim prosperou (AMADO, 2007, p. 238).
Vê-se então que o culto ao candomblé, a presença do sincretismo, como
estratégia de permanência ao dar nomes católicos a orixás, e a mestiçagem,
liberdade interétnica defendida pelo autor, são motes envolvidos na trama
amadiana. Nessa produção, o ficcionista demonstra grande conhecimento
das características e dos símbolos que envolvem o tema do candomblé, o
que pode ser constatado no rico vocabulário em torno do assunto presente
em seu texto. No exemplo a seguir, há diversos termos do campo da mu-
sicalidade, aspecto que predomina nos ritos do candomblé:
Os sons dos instrumentos ressoavam monótonos dentro
da cabeça dos assistentes. Música enervante, saudosa,
música velha como a raça, que saía dos atabaques, agogôs,
chocalhos, cabaças (AMADO, 2007, p. 62).
Voltando a tratar do personagem Balduíno, este que é negro, pobre
e morador do Morro do Capa Negro, ainda quando menino, personifica
em seu pensamento, por meio da estratégia narrativa usada pelo autor, o
preconceito de quem está fora do morro:
Antônio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula
proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do
morro possuíam. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do
morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandra-

91
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

gem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a


escravidão das fábricas, do campo, dos ofícios proletários
(AMADO, 2007, p. 35).
Ao refletir sobre as condições iniciais de formação e posterior de tra-
balho, suas e de seus semelhantes, Baldo, como também era conhecido,
demonstra insatisfação e resistência ao questionar e propor mudança. Essa
observação converge com o que ocorrerá no futuro, quando faz um cha-
mado aos colegas de trabalho para a estratégia da greve. Assim, Balduíno,
que cresceu no morro, vem se tornar um adulto ligado ao ativismo, à luta
e à resistência, como observado extraído do trecho a seguir:

Vocês precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz


greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro
vir cantar para Oxossi? Os ricos manda fechar a festa de
Oxossi. Uma vez os polícias fecharam a festa de Oxalá
quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com
eles, foi pra cadeia. Negro não pode fazer nada, nem dançar
para santo. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes,
pára bonde, cadê luz? (AMADO, 2007, p 278).
Cabe salientar que a greve, tema presente em outras obras amadianas,
está associada a um importante elemento de caracterização da identidade,
visto que é uma ação que depende de iniciativa coletiva. No trecho, o Ama-
do defensor do proletariado também cede espaço ao Amado defensor da
cultura negra, quando faz o personagem mencionar a proibição do culto
às religiões de matriz africana, historicamente ocorrida no Brasil.
A segunda obra aqui analisada, Tenda dos milagres, traz no enredo o
destaque a um homem mestiço, Pedro Archanjo, que assume o papel de
escritor, função antes associada à elite, e que adota a missão de lutar contra
essa elite, que tem feição racista na trama. O título da obra remete ao nome

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IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

dado por Pedro Archanjo à gráfica onde trabalhava, localizada no Terreiro


de Jesus, praça do Pelourinho, em Salvador.
O principal antagonista de Archanjo é o personagem Nilo Argolo.
Estratégia bastante usada por Jorge Amado, a de associar seus persona-
gens a personalidades reais. Argolo seria uma irônica representação de
Nina Rodrigues, médico brasileiro fundador da antropologia criminal
e defensor de teorias racistas, autor da obra Mestiçagem, degenerescência
e crime (1899). Do mesmo modo, em Tenda dos milagres, Nilo Argolo é
citado como o escritor de obra homônima.
Como se não bastasse a caracterização racista que o personagem médico
faz do povo negro, Argolo ainda define o mestiço como uma categoria
ainda mais desvalorizada:
O perigo maior, o anátema lançado contra o Brasil, mons-
truoso atentado: a criação de uma sub-raça no calor dos
trópicos, sub-raça degenerada, incapaz, indolente, destinada
ao crime. Todo o nosso atraso devia-se à mestiçagem. O
negro ainda poderia ser aproveitado no trabalho braçal,
tinha a força bruta dos animais de carga. Preguiçoso e
salafrário, o mestiço, porém, nem para isso servia. Degra-
dava a paisagem brasileira, apodrecia o caráter do povo,
empecilho a qualquer esforço sério no sentido do progresso
(AMADO, 1971, p. 319).
Assim, Pedro Archanjo, mestiço, vê-se como o principal alvo dos títulos
degenerativos de seu opositor intelectual. O tratamento dado à iniciação
de Archanjo no mundo das letras e das publicações pode ser compreen-
dido como o que Carneiro (2005) vem dar o título de epistemicídio do
conhecimento do negro:
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação
e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados,

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

um processo persistente de produção da indigência cultural:


pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade;
pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes
mecanismos de deslegitimação do negro como portador e
produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade
cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento
da auto-estima pelos processos de discriminação correntes
no processo educativo. Isto porque não é possível desqua-
lificar as formas de conhecimento dos povos dominados
sem desqualificá-los também, individual e coletivamente,
como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a
razão, a condição para alcançar o conhecimento “legíti-
mo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte
a racionalidade do subjugado ou a seqüestra, mutila a
capacidade de aprender etc. (CARNEIRO, 2005, p. 97).
No entanto, resistindo ao contexto hostil e assumindo o papel de
antagonista de Nilo, Archanjo inicia a vida de escritor, com a missão de
questionar o racismo e valorizar a cultura negra, incluindo sua religião:
Quando iniciara o livro, a imagem pernóstica de deter-
minados professores e o eco das teorias racistas estavam
presentes em seu espírito e influíam nas frases e palavras,
condicionando-as e limitando-lhes a força e a liberdade. À
proporção, porém, que páginas e capítulos foram nascendo,
Pedro Archanjo esqueceu professores e teorias, não mais
interessado em desmenti-los numa polêmica de afirmações
para a qual não tinha sequer preparo, e sim em narrar o
viver baiano, as misérias e as maravilhas desse quotidiano
de pobreza e confiança; em mostrar a decisão do perseguido
e castigado povo da Bahia, de a tudo superar e sobreviver,

94
IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

conservando e ampliando os bens da dança, do canto, do


metal, do ferro, da madeira, bens da cultura e da liberdade
recebidos em herança nas senzalas e quilombos (AMADO,
1971, p. 164).
Seguindo ainda a estratégia de associar personagens a indivíduos que
viveram nos lugares representados nos cenários de suas obras, Amado faz
nesta obra a descrição do personagem Pedrito Gordo, o delegado. Ocorre
que existiu em Salvador o delegado Pedro Gordilho, que perseguia adeptos
do candomblé e praticantes de capoeira.
No excerto seguinte, narram-se algumas das ações atribuídas a Pedrito:
A destruição dos objetos rituais não acalmou a fúria, o ódio
dos cruzados. Era pouco. Puseram fogo no barracão, as
chamas consumiram o Terreiro de Sabaji. Para exemplo.
Por muitos anos prolongou-se a guerra santa, a cruzada
civilizadora. Durante o império de Pedrito Gordo, dândi
e delegado, bacharel com leituras e teorias, a violência
foi quotidiana, sem apelo ou proteção. O doutor Pedrito
prometera acabar com a feitiçaria, o samba, a negralhada.
‘Vou limpar a cidade da Bahia’ (AMADO, 1971, p. 256).
No trecho, uma descrição de ações absurdamente racistas, o delegado
associa o negro e suas manifestações culturais ao conceito de sujeira. Numa
atitude extrema, ordena que seja ateado fogo no templo, lugar sagrado ao
culto do candomblé, para servir de exemplo e amedrontar outros adeptos.
Em suma, Jubiabá e Tenda dos milagres refletem alguns dos tristes
capítulos da história do Brasil, quando mencionam em suas narrativas a
perseguição ao povo negro e à sua religião. Contudo, apesar das ocorrên-
cias ali contadas, as ações evoluem para situações de resistência, quando
os protagonistas buscam mudar a circunstância de opressão, combatendo
as várias nuances de preconceito retratadas por Jorge Amado.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

4. CONSIDERAÇÕES SOBRE A MARGEM QUE SE FAZ CENTRO

Com o intuito de trazer as principais considerações que encerram este


estudo, procura-se aqui confirmar a concepção de que a literatura consegue
colaborar para a formação crítica do cidadão, a partir das provocações
que as obras iniciam. Em se tratando de Jubiabá e Tenda dos milagres
especificamente, pode ser detectada a intenção do autor em provocar um
processo de valorização das minorias étnicas, o reconhecimento da riqueza
da cultura negra e o respeito às religiões de matriz africana, trazendo ao
centro aqueles que antes estavam localizados à margem.
Em Jubiabá, identifica-se a representação ficcional de uma realidade
cultural recorrentemente marginalizada e que tem na literatura um espaço
de discussão sobre os elementos que são preservados como representação
de grupos sociais. As caracterizações do operário Pedro Archanjo e do
pai de santo Jubiabá são carregadas de significado ao se pensar na luta
pelo respeito a seu povo.
Em Tenda dos milagres, o autor questiona a subalternidade iniciada com
a escravidão e a assume de forma contestatória, reivindicatória, considerando
o status híbrido não como uma fraqueza ou impureza, mas uma rica forma
de transculturação e enriquecimento identitário. Isso se firma quando nega
as ideias de Nilo Argolo e as ações de Pedrito Gordo, e valoriza a voz de
Pedro Archanjo em defesa do povo negro e sua religião.
Compõe-se, assim, um legado a partir do reconhecimento da resistência
identificada na obra amadiana, que se estabeleceu a partir das ações dos
personagens negros, por conta de se encontrarem em posições desabo-
nadas. O pertencimento a uma cultura que surgiu a partir da tradução,
portanto, trazida de outro lugar, nesse caso sequestrada, funciona como
um desafio à tradição, que configura as manifestações culturais eleitas
para serem repetidas pela comunidade brasileira de herança europeia.

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IDENTIDADE NEGRA E MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS EM JUBIABÁ E TENDA DOS MILAGRES, DE JORGE AMADO

Em suma, Jorge Amado consegue, em Jubiabá e Tenda dos milagres,


representar a sua simpatia ao conceito de resistência, visto que resiste en-
quanto escritor associado ao povo excluído, e imprime ações de resistência
a seus personagens, a partir da valorização de seus traços identitários e do
respeito ao culto do candomblé.

REFERÊNCIAS

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AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um
livro de memórias que jamais escreverei. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,
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Martins, 1971. Col. Obras ilustradas de Jorge Amado. XVIII.
BOSI, Alfredo. Entre a literatura e a história. São Paulo: 34, 2013.
CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção
do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://
repositorio.usp.br/item/001465832. Acesso em: 5 ago. 2021.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 2. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2000. v. II.
DURIGAN, Paulo Luiz. Desobediência civil. Disponível em: http://
www.paulo.durigan.com.br/content/desobediencia-civil. Acesso em:
23 mar. 2016.
LIMA, Renata Farias Smith. Documentário, Turismo e Identidade
— um olhar sobre a Ilhéus de Jorge Amado. In: SIMÕES, Maria de
Lourdes Netto. (Org.). Identidade cultural e expressões regionais:

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

estudos sobre literatura, cultura e turismo. Ilhéus: Editus, 2006. p.


269-288.
MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: como e
por que ler Jorge Amado hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
PRANDI, Reginaldo. Religião e sincretismo em Jorge Amado.
Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/professores2/05.pdf.
Acesso em: 26 jun. 2012.
RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. Processos e causas do
desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: Cia. das
Letras, 2007.

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JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

Alisson Vital Oliveira Santos1

INTRODUÇÃO

Antes, agô¸ licença, Orixás, especialmente, Exu. Ele que detém o poder
sobre a linguagem, sobre a comunicação. Além disso, a partir das tradições
orais do candomblé, aprendemos: ele é, junto ao seu irmão Ogum, o Orixá
dos caminhos. Exu vai à frente abrindo e possibilitando escolhas a partir
das suas encruzilhadas, das intersecções da vida. Exu e Ogum são energias
sagradas negras, diaspóricas, que compõem a cultura popular brasileira,
ambos são Orixás lodê, da rua, do espaço aberto aos caminhos e possibili-
dades; eles versam e expandem o que Henrique Freitas (2011) ensina ser a
literatura-terreiro que constrói narrativas negras e escapa os muros do Axé.
O presente artigo advém da pesquisa de mestrado que costura e dia-
loga sobre a influência das tradições orais e cultura negra na literatura de
Jorge Amado. O objetivo é discutir acerca de elementos da cultura negra
na narrativa O Compadre de Ogum como dispositivos de influência das
escrita e vivência do autor no axé, especialmente, no terreiro Opô Afonjá,
onde ele teve o cargo de Obá de Xangô, isto é, ministro do Orixá Xangô.
O Compadre de Ogum versa acerca das dificuldades encontradas na
consolidação do batizado do menino Felício. Sua mãe Benedita mal o

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do
Estado da Bahia (Pós-Crítica/UNEB), linha de pesquisa Literatura, produção cultural
e modos de vida. Membro do Grupo de pesquisa NUTOPIA e bolsista Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). E-mail:alissonvital@gmail.com

99
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

deixa nos braços de Massu, seu pai, logo inicia-se uma polêmica discussão,
pois o menino é branco e possui os olhos azuis, sendo seu pai e sua mãe
negros. Benedita somente informa que o menino ainda é pagão e some
para o estado de Alagoas com suspeitas de doença incurável, surgindo
sem demora conversas sobre sua morte. Então, começam os preparativos
para o batizado. A trama abre caminho e se desenrola com Ogum, Orixá
que tinha Massu como Ogã e filho, decidindo que ele mesmo, Ogum,
será o padrinho. Contudo, a falta de ebó corretamente para Exu cria
possibilidades inesperadas para que o batizado se concretize.
Os costumes do povo negro são aparatos enriquecedores das narrativas de
Jorge Amado. As experiências do nosso povo preto corroboram com muitas
de suas obras, senão de todas. É preciso considerar que a cultura popular
negra é um dos constituintes de seus enredos e a religiosidade do povo
negro da Bahia é um desses elementos culturais mais presentes na literatura
de Jorge Amado, isto é, o candomblé e suas aparamentas, que podem ser
desde as físicas até os modos encantatórios das poéticas negro-orais. Em
suas narrativas, é perceptível que os Orixás sempre são retratados como
personagens de grande significação, complexidade e importância para o
desenvolvimento do enredo, como é notório em O Compadre de Ogum.
Ao pensar na cultura negra e nas estradas encruzilhadas que ela foi
obrigada a se mover para manter-se re-existente na sociedade brasileira,
não há como fugir da expressão cultural que se tornou o grande signo do
povo diaspórico, o candomblé. É nas casas de axé que a ancestralidade
africana reside e resiste no Brasil.
A pesquisadora Vera Campos (2003) nos ensina que a escravidão
diluiu a identidade do povo preto, ela sinaliza também a importância
da feitura/iniciação no candomblé, visto que ela funciona como forma
de “reaver o ser africano” (CAMPOS, 2003, p. 15), exatamente porque
o candomblé mantém, à duras penas, princípios culturais/religiosos/
identidades da sociedade nagô através da oralidade.

100
JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

As tradições negrorais são parte da cultura popular brasileira e, Jorge


Amado, ao apropriar-se das mitologias dos Orixás, narrativas de terreiros,
contribui para o entendimento e a importância da oralidade negra. Em
termos gerais, Ignez Ayala e Marcos Ayala (2015) nos ensinam que a ora-
lidade funciona como “[...] forma de transmissão, mas, sobretudo, como
conjunto de sistemas culturais com visões de mundo, ações, normas e
valores estéticos e sociais que envolvem múltiplas temporalidades”, dessa
forma, a poética dos Orixás, constrói narrativas literárias de terreiro que
possuem/produzem a organização cosmogônica, cosmológica de saberes,
valores e conhecimentos diversificados da ancestralidade negra.
O caráter denunciativo das narrativas de Jorge Amado surge para expor
as mazelas da estrutura da sociedade brasileira com a função de fazer e
arder as feridas causadas pelo colonizador, e, assim, nos lembrar sempre da
opressão do estado facista/racista contra as minorias sociais. É certo pensar
que no que tange a população negra, muitas de suas obras possibilitam o
estudo para o cumprimento da lei 10.639, que promulga, dentre outras
coisas, o ensino da literatura e cultura negra ao trazer muito dos elementro
negro-religiosos, sobretudo as tradições negro-orais, mito, contos etc.

1 — NEGRORALIDADE: ENCRUILHADA DE UM COMPADRE AMADO

O narrador de O Compadre de Ogum nos apresenta contextos sociais


de uma Bahia que espelham as estruturas sociais do Brasil a partir do
pensamento histórico, mítico e sincrético. A presença do mito na obra
de Amado, segundo Reginaldo Prandi, é primorosa, pois, dessa forma,
“[...] Jorge Amado contribuiu decisivamente com seus romances para a
divulgação do candomblé” (PRANDI, 2009, p. 47) e das tantas poéticas
dos Orixás nos meios sociais brasileiros.
O Compadre de Ogum nos possibilita observar representações das
vozes silenciadas/caladas nas encruzilhadas abertas pelo povo preto. A

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

leitura da obra corrobora para perceber que é por meio das narrativas dos
povos de terreiros que o narrador corporifica performances de persona-
gens/contadores; oralizar é uma forma de mitificar suas vidas, é eternizar
pelo dizer. Juana Elbein Santos discorre que “[...] a expressão oral renasce
constantemente” (2004. p. 30), por essa razão a própria história de vida
das personagens negras pode ser observada nas obras amadianas como
uma construção mítica.
O trecho abaixo apresenta a influência de autonarrativas negrorais
na composição da trama em estudo. Repare:
A noite caía por inteiro, as estrelas eram inúmeras naquele
céu sem lâmpadas elétricas, eles não falavam no assunto
que ali os levara. Era como uma reunião social, amigos a
conversar. Doninha narrava coisas de sua infância distante,
recordava gente já desaparecida, Tibéria contava casos.
(AMADO, 2006, p. 27)
A Ialorixá Doninha narra suas histórias de vida que, além de nos
fazer perceber a contação como elemento que move a memória por meio
do corpo e do som da voz (MARTINS, 2003) performando através da
história de vida como ato educativo, também nos apresenta. O romancista
usa um momento de conversa que transita entre a oralidade sagrada e
humana, para relacionar a negroralidade dos Orixás com a dos humanos,
assim, por meio das tradições orais das religiões negro-brasileiras Jorge
Amado constrói os arranjos que estruturaram o enredo da narrativa, com
oralidade que perpassam entre encruzilhadas do sagrado e o profano,
espiritual e físico, Orun e Ayê — céu e terra.
O que também é notório em O Compadre de Ogum é a compreensão
do romancista sobre os fenômenos da História brasileira. Logicamente,
Jorge Amado não busca a explicação de um fato, tendo em vista que o
importante numa narrativa, de acordo com Alfredo Bosi (2003), é en-

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JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

tender os significados e a dinâmica dos valores. Para o crítico literário,


a relação das subjetividades e vivências pode ser do mundo histórico ou
do mundo da natureza, aqui acrescento o mundo espiritual-religioso,
frente à dinâmica da produção literária amadiana.
Em se tratando dessas questões, o trecho abaixo surge como um
exemplo, apontando como a História está exposta na obra.
Também Josefa deixou de freqüentar o terreiro de can-
domblé, e só muito às escondidas cumpria suas obrigações
para Omolu, o velho (atotô, meu pai, dai-nos saúde!). Não
ficava bem à mãe de um seminarista ser vista no meio de
gente de candomblé, muito menos freqüentando terreiros de
santo. Ainda antes do molecote transformar-se no franzino
padre Gomes, ordenado e de primeira missa celebrada, ela
abandonara completamente o velho Omolu, já não lhe dava
de comer, não fazia nenhuma das obrigações, deixara de
aparecer de vez no Engenho Velho. (AMADO, 2006, p. 56)
Dentre tantas coisas, o trecho traz até nós a representação histórica. A
narrativa denuncia o sistema intolerante, onde o racismo religioso impera
e impede que o culto aos Orixás aconteça, sendo necessário que tudo seja
às escondidas até que chegue ao abandono. Além disso, a negroralidade
da personagem é sobreposta pela cultura da branquidade colonizadora,
que não permite a liberdade religiosa, não ficando bem à negra Josefa
seguir cultuando seus Orixás.
Também é pertinente pensar que a ação de Josefa de Omolu, pela
força do arquétipo do seu Orixá, transcorre com a presença mitológica.
Em outras palavras, a vida de Josefa é uma representação do seu Orixá,
assim sendo, não haveria como negar a relação dos acontecimentos em
sua vida com a mitologia dos Orixás, principalmente, porque a literatu-
ra amadiana surge como uma escrita que expande a literatura oral dos

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

terreiros, mais um espaço de literatura-terreiro (FREITAS, 2011). O


exemplo sobre a estreita relação entre a identidade da personagem Josefa
com a identidade mitológica do seu Orixá Omolu está no seguinte mito:
Obaluaê desobedece à mãe e é castigado com a varíola.

Obaluaê era um menino muito desobediente. Um dia,


ele estava brincando perto de um lindo jardim repleto de
pequenas flores brancas. Sua mãe lhe havia dito que ele
não deveria pisar as flores, mas Obaluaê desobedeceu à sua
mãe e pisou as flores de propósito. Ela não disse nada, mas
quando Obaluaê deu-se conta estava ficando com o corpo
todo coberto por pequeninas flores brancas que foram se
transformando em pústulas, bolhas horríveis. Obaluaê
ficou com muito medo. Gritava pedindo à sua mãe que o
livrasse daquela peste, a varíola. A mãe de Obaluaê lhe disse
que aquilo acontecera como castigo porque ele havia sido
desobediente, mas ela iria ajudá-lo. Ela pegou um punhado
de pipocas e jogou no corpo dele, como por encanto, as
feridas foram desaparecendo. Obaluaê saiu do jardim tão
bom como quando havia entrado. (PRANDI, 2001, p. 204)

O mito supracitado está representado em Josefa, pois, o jardim das


flores brancas pode ser observado como a força do desequilíbrio, são cau-
sadoras da peste que aflige o menino Orixá. As pessoas que são feitas no
candomblé conhecem os preceitos da religião, quer dizer, existem algumas
restrições e uma delas é o abandono, que não pode ser interpretado como
mero esquecimento do sagrado, mas como o esquecimento de si, pois
cultua-se a natureza que existe em si ao cultuar Orixá, a qual permite o
sustento do equilíbrio para o bem viver e o bem morrer, esse equilíbrio
é mais conhecido como axé, a força vital.

104
JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

O abandono é ainda hoje uma prática que ocorre em decorrência


ao racismo religioso. E se o racismo está em todos os espaços sociais,
não deixaria de ser apresentado numa escrita de um autor que defendia
o respeito, as diversisdades e riquezas do candomblé, como ato político
de resistência.
Sobre o racismo, Carlos Moore nos ensina que
[...] a função básica do racismo é de blindar os privilégios
do segmento hegemônico da sociedade, cuja dominância
se expressa por meio de um continuum de característi-
cas fenotípicas, ao tempo que fragiliza, fraciona e torna
impotente o segmento subalternizado. A estigmatização
da diferença com o fim de “tirar proveito” (privilégios,
vantagens e direitos) da situação assim criada é o próprio
fundamento do racismo. Esse nunca poderia separar- se do
conjunto dos processos sistêmicos que ele regula e sobre os
quais preside tanto em nível nacional quanto internacional.
(2007, p. 284)
Pensemos que Carlos Moore expõe na citação elementos discursivos que
o mito da personagem Josefa, ao se ver obrigada a largar seu pai Omolu,
deixa transparecer, como a estigmatização que o cristianismo criou sobre
ser de candomblé e a necessidade de se esconder ou abandonar sua fé.
É como se Jorge Amado reconhecesse seus privilégios e usa-os em sua
escrita para que as vozes poéticas dos Orixás, sons sagrados ancestrais que
os terreiros guardam, sejam lidos, ouvidos e respeitados como tempero,
dendê, pimenta ardida e cheirosa à nossa identidade e cultural, social.
Nessa perspectiva, Luiz Silva, mais conhecido como Cuti (2010), ao
fazer estudo sobre a literatura negro-brasileira, nos direciona à percepção
do apagamento da ancestralidade negra. Contudo, é preciso que notemos
que esse apagamento das identidades negras está imbuído no consciente

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

e inconsciente social branco, que se expande por meio da invenção de


inferioridade do sujeito negro e de suas manifestações culturais, religiosas,
das negroralidades. E, como resultado a tudo isso, a reprodução desse
inconsciente racista/colonizador atinge o pensamento, a oralidade, a vida
do corpo negro.
Outro trecho que reforça a presença da negroralidade na narrativa
é quando a presença da energia de Ogum no batizado, constrói um
trilho na memória do padre que o deixa inquieto. Quando Inocêncio, o
sacristão, relatando sobre o motivo da igreja estar cheia numa proporção
fora do comum, chega a razão do padre não conhecer o padrinho, pois
o combinado foi passar-lhe as orientações sobre a vida Artur da Guima,
mas dizer-lhe outro nome, Antônio de Ogum.
Vejamos os trechos:
O padre Gomes não conhecia o padrinho, era um estabe-
lecido com banca no Tabuão, capaz de fazer milagres com
as mãos, talhava em pedra, em marfim, em madeira. - No
Tabuão, quem sabe, conheço... Como é que se chama? - O
nome dele é... Antônio de Ogum. - Como? De Ogum? Que
é isso, de Ogum? - Nome mais esquisito. - Maneiroso, sujeito
mais hábil. A maioria dos dados em uso na cidade... quer
dizer... ele trabalhou muito bem... Mas o padre buscava
na memória aquele som distante: - Ogum... Já ouvi isso…
(AMADO, 2006, p. 63)
Antônio de Ogum, como se ironicamente lhe tocasse o
peito, pois ele não tivesse partido para o internato do se-
minário, certamente teria feito ou assentado o santo, por
sinal Ogum, conforme fizera constatar Josefa apenas ele
nascera (AMADO, 2006, p. 55)

106
JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

Não fosse a influência das tradições do pai branco, Antonio Gomes


não seria Padre Gomes, seria um verdadeiro Antônio de Ogum, iniciado
e já velho no santo, talvez um grande sacerdote da religião.
Observemos que se a construção dos conhecimentos do axé encanta
nossa ancestralidade pelo som sagrado das palavras, é justificado que o
som da palavra Ogum, tocando a memória do filho de Josefa e de Ogum,
mexa com o seu subconsciente, sua ancestralidade, levando em conta
que em sua meninice foi levado por sua mãe escondido ao terreiro do
Engenho Velho, como mostrado numa citação anteriormente.
Outro exemplo da poética negroral na obra, que é a relação de
Massu e seu pai Ogum. No mito Ogum rouba a pele de búfalo de Oiá,
podemos notar arquétipos de Ogum que são presentes em seu filho
Massu, na narrativa amadiana, ele nos faz perceber a similaridade em
seus comportamentos impulsivos. Tanto o Orixá, no mito, quanto o
seu filho Massu marcam o corpo feminino como prenúncio de poder,
é a vontade que ambos têm de possuir a mulher como um objeto que
assinala isso.
Em Ogum rouba a pele de Oiá podemos observar que uma das identi-
dades da Orixá dos ventos é roubada por Ogum, sua pele de búfala, para
que ela seja obrigada a ficar com ele, como podemos observar no trecho:
Ogum roubou a pele e a escondeu num quarto de sua
casa. Depois, foi ao mercado para cortejar a bela mulher.
Pediu-a em casamento. Ela não respondeu e seguiu para a
floresta, em busca de sua pele. Não a encontrando, voltou
ao mercado e questionou Ogum. Ele negou haver roubado
lansă e novamente a pediu em casamento. Oiá cedeu e
foi viver com Ogum, mas exigiu que ninguém na casa se
referisse a ela fazendo qualquer alusão a seu lado animal.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Todos os familiares aceitaram as condições e a vida no lar


entrou na rotina. (PRANDI, 2019, p. 152-153)
A marca identitária de Oiá como mulher-búfala é retirada por Ogum.
Assim também quer seu filho-ogã Massu com relação a Benedita em O
Compadre de Ogum, pois, “[...] não só marcou-lhe todo o corpo com
os punhos e os dentes, deixando-a roxa como se houvesse sido surrada:
quis enquadrá-la ao demais em certos limites ditados por sua ânsia e seu
ciúme” (AMADO, 2006, p. 12). Massu e Ogum querem dominar a
mulher/Orixá e ter seu corpo só para si. Vale lembrar que ao passo que
Ogum rouba uma das identidades da amada, seu filho Massu contribui
para que surja uma identidade a mais à Benedita quando ambos se tor-
nam pais. São duas situações que constroem sobre o corpo feminino as
marcas do poder patriarcal, o desejo de poder masculino. Contudo, a
negroralidade de Oiá ajuda as mulheres a acharem suas peles de búfalas,
suas identidades furtadas, para que possam sair livres:
Um dia, sozinha em casa, lansă acabou encontrando sua
pele. Ela a vestiu, esperou que as mulheres retor nassem da
roça e do mercado, onde trabalharam o dia todo, e então
saiu bufando, dando chifradas em todas, abrindo-lhes
a barriga. Somente seus nove filhos foram poupados.
(PRANDI, 2019, p. 153)
Assim como Oiá conseguiu um dia fugir com sua pele, Benedita,
talvez como uma boa filha de Oiá, consegue fugir de Massu e ser livre,
como vemos na narrativa:
Já no outro dia a exigiu de volta ao areal e não a encon-
trando, entrou em fúria, ameaçou destruir o botequim
de Isidro do Batualê, foi uma dificuldade para contê-lo.
Ao comprovar depois ter ela se entrevistado com o tal de

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JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

Otoniel, caixeiro de loja em São Pedro, para ali se dirigiu


como um desatinado. Ergueu o caixeiro por cima do bal-
cão, atirou-o contra as baterias de cozinha — era uma casa
onde vendiam panelas, frigideiras, caçarolas —, espancou
mais dois caixeiros e o gerente e terminou botando o pa-
trão para correr. Foram necessários quatro soldados para
levá-lo, arrastado pelas ruas, comendo bainha de facão
(AMADO, 2006, p. 12).
Assim, se “Ogum é também protagonista de mitos que falam de
amores e paixões carnais, e chega ao ponto de ir à guerra por amor”
(PRANDI, 2019, p. 13), não seria diferente com seus filhos, assim tam-
bém com Oiá que luta e resiste às opressões do patríarcado/machismo.
De acordo com Foucault (1987), o poder concebe a realidade, sendo ele
uma relação microfísica que se materializa no corpo, isto é, as relações
de poder, na ordem discursiva ou não, desencadeiam o domínio sobre
um dado corpo. O poder do patriarcado atravessa os corpos femininos,
busca dominá-los e enquadrá-los aos padrões suplantados pelo ideal
político e social masculino.
Dessa forma, de acordo com o professor Gildeci Leite (2013), quan-
do a literatura amadiana navega no terreno religioso e cultural negro,
torna-se uma grande impulsionadora das discussões promulgadas pela
lei 10.639 de 2003, uma vez que está lei determina o estudo e o ensino
das literaturas e culturas africanas e afro-brasileiras nos espaços formais
de educação. Além disso, ao envolver o corpo, a voz e a memória negra
de terreiro em sua escrita, Jorge Amado, por seu conhecimento sobre as
vivências no Axé, o terreiro, contribui com o reconhecimento da pro-
dução da literatura de axé (LEITE, 2013), as construções narrativas do
povo de terreiro com linguagem que se movimenta de modo ancestral,
portanto, linguagem exuzíaca.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

PALAVRAS FINAIS: UM SOM QUE ECOA

Jorge Amado, como escritor e Ogã, filho do Orixá Oxossi, mostra-se


consciente das discriminações sofridas pelo povo negro de terreiro. Em O
Compadre de Ogum, existe o movimento das tradições negro-orais para a
escrita, mas como todo o processo do que chamo linguagem exuzíaca tem
a função de criar estratégias de resistência negra, esse movimento não se
encerra na escrita, ele retorna à oralidade com a potência que a literatura
amadiana ganha nos meios sociais, por seu caráter político e antirracista,
e é isto que torna Jorge Amado o Compadre das tradições negrorais.
Reginaldo Prandi discorre que é através da literatura amadiana que
o candomblé se difunde na sociedade brasileira e, por ser um dos autores
mais traduzidos, esse espalhamento das tradições negro-religiosas ganha
destaque pelo mundo. Em obras como O sumiço da Santa, Jubiabá e O
Compadre de Ogum, orixás, ialorixás, iaôs, atabaques, terreiros e demais
dispositivos do candomblé desenham as tramas dos romances. Entretanto,
a minha pesquisa embrenha-se apenas pelos enredos de O Compadre de
Ogum, no qual os Orixás Ogum e Exu se personificam e corporificam
para viver os mitos pelas ruas de Salvador.
Segundo Agamben (2009, p. 40), os dispositivos estão atrelados a

[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade


de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e
os discursos dos seres viventes.
Os mitos funcionam como controladores espiritual e social para os
adeptos do candomblé. Transcendem as regras e as condutas espirituais.
A negroralidade nos terreiros cria estratégias de sobrevivência do sujeito
negro frente às necessidades e aos sentimentos produzidos pelo sistema
político-social, dentro e fora do terreiro. A negroralidade como poética

110
JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

dos Orixás é dispositivo mantenedor das tradições negras nas diásporas.


Como Ogã, possivelmente Jorge Amado entendia que essa poética ou
mitos orientam e conduzem de acordo com ensinamentos ancestrais que
servem “[...] como modelo de conduta para os que vivem hoje (PRANDI,
2009 p. 166)”.
Assim, a compreensão e envolvimento de Jorge Amado com as tra-
dições negras provocam em suas narrativas a expansão e divulgação da
cultura negra, das narrativas de homens e mulheres negras, que resistem
e insurgem nos meios sociais, isso pensando sobre esse recorte, posto que
existem outras tantas questões possíveis de serem levantadas e pesquisa-
das na obra de Jorge Amado. Portanto, o envolvimento, a apropriação
das narrativas negrorais de Amado o eleva ao posto de compadre. Além
disso, uma questão que não se deve esquecer na sua escrita são as tantas
características sincréticas, posto que são dispositivos que atravessam as
narrativas e as possibilidades de ser que o sujeito negro tem dentro de
uma sociedade racista. O sincretismo é resultado do racismo, é maldoso e
causou muita dor, a sua presença na literatura reafirma contextos históricos
onde num tempo passado ele foi necessário para manter a negroralida-
de viva, mesmo que de modo escondido e num ambiente acuado pela
branquidade. Todavia atualmente enaltecê-lo sem reconhecer questões
históricas é inapropriado.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. O Compadre de Ogum. Rio de Janeiro: Record,


2006.
AYALA, Maria Ignez Novais. AYALA, Marcos. Metodologia para
pesquisa das culturas populares: uma experiência vivenciada.
Crato: Edson Soares Martins Ed., 2015.

111
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: Céu e Inferno:


ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Duas Cidades. 2003.
p. 461-475.
CAMPOS, Vera. F. A. Mãe Stella de Oxossi: perfil de uma liderança
religiosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
ELBEIN, Juana. A expressão Oral na Cultura Negro-africana e
Brasileira. in: DIDI, Mestre. Contos crioulos da Bahia. Salvador:
Núcleo Cultural Níger Okàn, 2004. p. 26-36.
FOUCAULT. Michel. Punir e Vigiar: nascimento da prisão.
Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREITAS, José Henrique de. A Literatura-Terreiro na cena Hip Hop
Afrobaiana. Revista a Cor das Letras, v. 12, n. 1, 2011. Disponível
em: http://periodicos.uefs.br/index.php/acordasletras/article/view/1491.
Acesso em 2 de Abr. de 2021.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado da ancestralidade à
representação dos orixás. Salvador: EDUNEB, 2013.
MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases
epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte : Mazza
Edições, 2007. p. 21-32 em <https://periodicos.ufsm.br/letras/article/
view/11881>. Acesso em 10 de Mar. 2020.
MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas
para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia
da Letras, 2001.
PRANDI, Reginaldo. Ogum: caçador, agricultor, ferreiro,
trabalhador, guerreiro e rei. Rio de Janeiro: Pallas, 2019
PRANDI, Reginaldo. Religião e sincretismo em Jorge Amado. In:
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer, SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.).

112
JORGE AMADO, O COMPADRE DAS TRADIÇÕES NEGRORAIS

O universo de Jorge Amado: orientações para o trabalho em sala


de aula. São Paulo Companhia das Letras, v.2, 2009. (Caderno de
Leituras, Coleção Jorge Amado)
SILVA, Luiz (CUTI). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2010.

113
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO


NAS LITERATURAS DO BRASIL

Cid Seixas1

Em fevereiro de 2022, o Brasil estará celebrando a aventurosa eclosão


da Semana de Arte Moderna, nome pomposo para os três dias de eventos
realizados no Teatro Municipal de São Paulo. Artes plásticas, literatura e
música foram os temas centrais das discussões e performances distribuí-
das na segunda-feira, dia 13, na quarta, dia 15, e na sexta-feira, dia 17
de fevereiro de 1922. Espera-se que, no bojo do centenário, sejam vistos
e compreendidos os fatos que, ao longo do século XX, ganharam um
estatuto mítico capaz de enublar tudo aquilo que não representasse uma
aceitação passiva e contritamente religiosa dos feitos e fatos traquinados
pelos seus joviais corifeus.
A partir de 1928, com a guinada telúrica dos modernistas de 22, o
Nordeste, até então refratário às novidades europeizantes da Semana de
Arte Moderna, encontra uma possível identidade entre as suas embrio-
nárias vertentes de modernidade política e as propostas “futuristas” e
modernistas capitaneadas pela nova metrópole econômica do país.
Seguindo — deliberadamente ou não — o exemplo pioneiro de Gil-
berto Freyre, em Pernambuco, Jorge Amado e outros jovens intelectuais
da província inserem a Bahia no quadro do pensamento artístico e social
do Século XX. Posturas contrárias aos gritos histriônicos da pauliceia
desvairada eram vistas como forma de atraso cultural do Nordeste, en-
quanto os escritores desta região brasileira perseveravam na gestação de

1
Professor Titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da UEFS.

115
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

uma nova consciência crítica que daria seus frutos maduros dois anos
depois, com o chamado Romance de 30.
Enquanto a arte concebida pelos jovens do novo centro metropolitano
do país construía sua identidade a partir do alimento antropofágico di-
gerido na Europa, os jovens da “roça” tiravam da terra as raízes com que
se alimentavam. Mesmo em São Paulo, um intelectual como Monteiro
Lobato, umbilicalmente moderno quando visto no quadro de qualquer
literatura de recepção mundial, adotou, pioneiramente, postura similar à
que viria a caracterizar a literatura nordestina, sendo de pronto execrado
pela vaia juvenil e visto como um passadista. Tais fatos — que daqui a
pouco serão anciões centenários, quando a Semana de 22 completará
um século — exigem um reexame com olhos do hoje.
O espírito de corpo dos chamados modernistas conduzia um rolo
compressor capaz de esmagar, como uma camada de lama asfáltica,
todos aqueles que não demonstrassem uma aceitação incondicional do
pensamento considerado novo. Muitos conhecem o estigma imposto
pelos ‘vanguardistas’ ao ‘passadista botocudo’ Monteiro Lobato. Como
o furacão da botocúndia derrubou os cavaletes da exposição de Anita
Malfatti, diagnosticada por Lobato como paranoia ou mistificação, os
pontas-de-lança do modernismo conseguiram, por algum tempo e em
vários contextos, esvanecer o esplendente vendaval com que Lobato
enriqueceu a cultura brasileira, desenterrando os tesouros escondidos
no mato e nas ruas obscuras. As ideias do Jeca Tatu, ironicamente esbo-
çadas por Monteiro Lobato como proposta de construção da identidade
nacional, não foram percebidas num momento em que o Brasil buscava
uma fisionomia europeia.
É verdade que a partir de 1928 o modernismo brasileiro passou a
merecer este adjetivo (brasileiro), mas o fosso estava cavado e dividia
profundamente os territórios da arte. Convém lembrar que Oswald de
Andrade, passados os embates da chamada fase demolidora do moder-

116
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

nismo, mostrou o significativo fato de Urupês ser anterior a Pau Brasil


e à obra de Gilberto Freyre. Reconhecia, assim, o valor e a consistência
do pensamento de Monteiro Lobato, aproximando a guinada de 28 do
pioneirismo do velho amotinado de Taubaté, com a seguinte confissão:
“nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo,
a dolência e a revolta da terra brasileira.” (Andrade, 1971, p. 4)
O episódio constituído pela crítica de Lobato à pintora Anita Malfatti,
publicada em dezembro de 1917, oito dias após a abertura da exposição,
demorou para ser superado, especialmente pela declarada admiração
do autor pela arte clássica e pela crença na sua permanente e irretocável
perfeição. Contraditoriamente ao que ele realizou como escritor e como
intelectual sensível à cultura brasileira, no famigerado artigo cometeu um
equívoco, aí sim, passadista ao pontificar: “Todas as artes são regidas por
princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude
nem do clima.” (Lobato, 1917/1967, p. 60)
Ao tempo em que arguía ferozmente a adesão de Anita às vanguardas
europeias, o escritor exaltava seu talento e suas qualidades. No pensamento
crítico de Monteiro Lobato estava fortemente embutida a proposta de
construção de uma estética brasileira independente, livre de qualquer
herança colonial que representasse perda de identidade. Daí a intolerância
que causou ressentimentos.
O caso Monteiro Lobato é, essencialmente, paradigmático porque
antecipa uma perspectiva artística similar que fez com que o modernis-
mo do nordeste só eclodisse plenamente — ou só fosse percebido como
tal — com o romance regionalista de 30. As manifestações anteriores,
por terem sido confundidas como contrárias à modernidade da pauliceia
desvairada, não foram assimiladas pela historiografia literária brasileira.
O modernismo paulista figura na memória nacional como um
inexcedível núcleo do pensamento de vanguarda, excluindo de modo
maniqueísta toda e qualquer oposição aos seus trejeitos, sob a pecha de

117
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

passadismo. Por isso, convém tentar equilibrar a balança de Diké — Filha


de Themis —, assinalando que o movimento moderno corresponde a um
momento da história do país dominado pela chamada “política café com
leite”. As oligarquias e elites quatrocentonas produziram seu contraveneno,
representado pelas manifestações de rebeldia estética da Semana de Arte
Moderna. Criou-se toda uma mitologia de apanágio ao Modernismo
do centro econômico do país, anulando qualquer significado possível a
ser atribuído à construção da modernidade artística em outras regiões
do país. Na Bahia, “nós, por exemplo”2, bem-intencionados intelectuais
de província, fomos responsáveis por interpretar os avanços e recuos do
pensamento artístico da década de vinte como a mais enfadonha forma
de conservadorismo.
Como se sabe, a própria dinâmica social produz, em qualquer parte,
seus mecanismos de conservação das estruturas envelhecidas e de irrupção
das novas formas. Tanto no Nordeste patriarcal quanto no Centro Sul
capitalista os padrões estéticos europeus mais tradicionais constituíam
moeda de grande valor. A substituição automática das formas embolo-
radas, anteriormente trazidas da Europa, por todo e qualquer grito de
rebeldia que atravessasse o Atlântico era a grande tentação dos jovens
artistas brasileiros. Tanto lá, no Centro Sul, quanto cá, no Nordeste,
o atraso com relação à modernidade europeia era um fato sensível. As
duas regiões do país reagiram de modo diverso e de acordo com fatores
culturais distintos. Ao contrário do que afirmou Lobato em 1917, as artes
não são regidas por princípios imutáveis, nem por leis fundamentais que
não dependem da latitude nem do clima. As artes são parcialmente con-
dicionadas, antes que possam obedecer a princípios imutáveis. A grande
2
“Nós, por exemplo” foi o título do espetáculo musical de inauguração do Teatro
Vila Velha, em 1964 na Bahia, evento que serviu de estopim do tropicalismo, que
eclodiu três anos depois em São Paulo. Participaram do show Caetano Veloso,
Fernando Lona, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé e outros.

118
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

metrópole econômica do país estava marcada, para o bem e para o mal,


por uma realidade diversa daquela constituída em outras latitudes.
É desse modo que a obra de Jorge Amado desenvolve, de forma con-
sequente e definida, uma vertente identitária da nacionalidade destinada
a substituir a figura do índio, idealizada por Alencar, por outros atores,
incluindo a mistura de sangues dos diversos cantos do mundo. Desde
os árabes, que aqui chegaram para mercar suas quinquilharias, até os
africanos trazidos em porões de aviltantes navios do mercantilismo.
Assim, tem lugar de relevo, na obra amadiana, o negro real e palpável
que conseguiu afirmar a sua cultura, a despeito do aniquilamento do
sujeito propiciado pela escravidão. Centrando a noção de valor de um
povo mestiço para além da história oficial, Amado realiza com maior
propriedade, desde Tenda dos Milagres (obra que explicita as questões
levantadas, com exemplar picardia, a partir do momento em que despiu
a camisa-de-força do Partido Comunista) até a madura construção de
obras como Tocaia grande e O sumiço da santa.
Desconstruir a herança colonial europeia e fortalecer a autoestima da
gente mestiça — ou do povo brasileiro — é o que Jorge Amado começou
a fazer, a partir dos anos 70, por entre as frestas da história contada e
por entre as festas dos sentidos incendiados na tempestade do texto. O
apimentado, o gorduroso e o farto uso de frutos africanos, ao contrário
de diminuir o valor da obra amadiana, como queria uma prestigiada
vertente da crítica universitária, vieram a se impor como elementos de-
finidores de um valor identitário já simbolizado nas coisas da cozinha
por Gilberto Freire.
Quando o escritor traça seu próprio caminho, muitos estudiosos de
formação socialista passam a ver Jorge Amado como uma espécie de
desertor da causa do proletariado. Depois de aderir, com fervor juvenil
e sem nenhuma crítica, aos princípios do realismo socialista, ele se deixa
tomar pelo desencanto e pelo desencontro que se apoderaram da esquerda

119
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

após a necrose do totalitarismo stalinista. Os crimes do autoritarismo


foram expostos aos olhos do mundo e, nesse balanço de perdas e ganhos,
houve quem descobrisse que os fins não justificam os meios.
Outros, no entanto, continuaram impermeáveis ao senso do lugar
comum: os fins não justificam... Mas continuaram usando todos os meios
para chegar aos sonhados fins contaminados.
Considerado este quadro, por que os anos sessenta principiaram a
negação do valor da obra amadiana? Até a metade do século, o arre-
batamento pelo seu texto era quase unânime, vindo, em seguida, um
gradativo obscurecimento crítico. Nos anos setenta, esta obra conheceu
verdadeiro massacre, tanto do ponto de vista político quanto cultural.
No Brasil, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, setores envol-
vidos com questões raciais apontaram a valorização da mestiçagem no
universo de Jorge Amado como mistura impura, ou como apagamento
da pureza racial negra. (Êpa, rei! Este filme já passou em algum lugar.
E deu no que não deu.)
De um lado e do outro, o mito da pureza étnica gera segregações.
Não é exagero afirmar que a obra de Jorge Amado chegou a ser rejeitada
por duas razões contrárias: de um lado, os feitores da pureza africana
desconfiavam da construção romanesca de uma civilização negro-mestiça
(vendo na mestiçagem o embranquecimento); do outro lado, arianos e
quase-brancos não toleravam a elevação do negro e do mestiço à categoria
mítica de herói incondicional (vendo na exaltação da mestiçagem a apo-
logia de raças até então ocupantes de espaços exclusivamente periféricos).
A valorização de uma mitologia crioula pela obra amadiana punha
em pé de igualdade velhos mitos europeus e novos mitos afro-brasileiros.
Valores, quer sejam politicamente corretos ou não, machistas, patriarcais,
ou desconstrutores do estabelecido — valores integrantes dos costumes
crioulos da Bahia — constituíram a isto que chamo de “mitologia crioula”
da obra amadiana.

120
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

Sabemos que a cultura impõe preceitos e preconceitos, mutáveis em


vários tempos. Se, hoje, a academia revaloriza a obra de Jorge Amado,
convém lembrar que, há dez ou vinte anos atrás, os cursos de Literatura
das universidades baianas, seu lugar de origem, não dedicavam nenhuma
disciplina ao estudo dos livros do maior contador de histórias da raça
brasileira.
Hoje, estudos de gênero admitem observar o lugar da mulher nos
romances de Jorge Amado, estudos étnicos percorrem a construção do
orgulho negro e mestiço, estudos culturais encontram importantes es-
tratégias de descolonização do pensamento.
Mas, por que a obra desse contador de histórias da civilização mestiça
atravessou turbulências e calmarias, quedas e baixas na bolsa de valores
da crítica da cultura?
Uma hipótese é que isso decorre do fato de Jorge Amado ter sido,
de início, um fiel tradutor dos princípios e mandamentos do marxismo
contradialético, forjado pelo autoritarismo soviético, para em seguida
abandoná-los em favor do flerte mais aberto com os festins da pequena
burguesia já empobrecida. Se o romancista dos primeiros livros escrevia
para comunista nenhum botar defeito, ao se desligar das imposições do
Partido, ele experimentou a liberdade absoluta de criar, renunciando
inclusive ao princípio segundo o qual a literatura deve pôr em primeiro
plano a sua função de construtora e forma do conhecimento. Livre para
criar, Amado procura a antítese da obra engajada: a literatura feita para
divertir.
Por entre o riso solto e a narrativa de aparência meramente anedótica,
o romancista produz o melhor da sua obra, ocultando e entremostran-
do, velando e revelando o compromisso social por entre as dobras de
um tecido alegre. Do discurso marcado pelo cumprimento de tarefas
partidárias, evoluiu para um discurso pleno de sentidos, armadilhas,
sugestões e arremedilhos.

121
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Ora, o leitor habituado ao romance de tese, onde a mensagem polí-


tica sobrepujava o jogo do prazer, veria o novo figurino amadiano com
a mesma suspeita dirigida à figura intelectual do ex-comunista. Dei-
xar o Partido por discordar das suas práticas era um fato considerado
equivalente à traição aos seus princípios. Daí, a metralhadora giratória
do patrulhamento ter varrido a obra de Jorge Amado, estimulando-o a
aprofundar o distanciamento com as práticas ditadas pela estética mar-
xista dos anos de ferro.
Fechando o tema proposto, podemos concluir que as diferenças entre
o modernismo paulista e a olvidada modernidade nordestina permitiram
a fixação dos traços mais nítidos tanto do romance de 30 quanto de
obras como a de Jorge Amado. Com a proximidade da celebração dos
100 anos da Semana de Arte Moderna, convém insistirmos na natureza
consequente e fincada nos fundamentos da terra e da gente que orientam
a modernidade dos escritores e artistas da região nordestina, com ênfase
na literatura da Bahia.

REFERÊNCIAS

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122
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

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124
FEVEREIRO DE 22: MODERNISMO E REGIONALISMO NAS LITERATURAS DO BRASIL

SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante. Notas sobre


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125
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

Denise Dias1
Licia Soares de Souza2
Maysa Miranda3

INTRODUÇÃO

O fio condutor deste estudo é a estética da necropolítica, tida como


uma política para a promoção da morte. É conceito desenvolvido pelo
professor africano Achille Mbembe, embasado nos estudos sobre biopoder,
de Foucault, quem, em 2003, publica o ensaio, analisando os limites da
soberania do Estado em promover a vida e de fazer morrer, ou melhor,
a relação entre a política e a morte, ou seja, a gestão da vida e da morte
nas mãos do Estado.
Nesse sentido, o controle da sobrevivência é marcado em níveis míni-
mos de manutenção da vida em qualquer serviço em que o Estado deva
atuar. O sociólogo camaronês aponta que, ao se negar a humanidade
do outro, qualquer violência se torna possível. O ensaio virou um livro
publicado em 2018, no Brasil, pela editora N-1.
1
Professora do Instituto Federal do Amazonas, lotada no Instituto Federal Goiano;
com pós-doutorado na área de letras, linha: letramento, identidades e formação de
educadores, Universidade do Estado da Bahia (denise.dias@ifgoiano.edu.br).
2
Supervisora e professora doutora permanente do Programa de Pós-Graduação
Crítica Cultural da UNEB e professora associada na Université du Québec à
Montréal (liciasos@hotmail.com).
3
Professora do Instituto de Pós-Graduação, Extensão e Consultoria. Mestre em
Linguística pela UFBA. Cordelista e contista (maysa_miranda@hotmail.com)

127
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

A partir dessa definição, mostramos os limites das elaborações de


Foucault, Agamben e Mbembe sobre a condução do poder soberano do
Estado de conceder a vida. E mais fecunda se revela a teoria de ­Mbembe
nas relações entre poder e morte nas regiões coloniais, imperiais ou
­neocoloniais, pela qual se identifica a existência da necropolítica, isto é,
o poder que conduz a morte ou cria condições de morte para subordinar
as populações.
Com efeito, essa teoria ocupa um lugar importante quando analisamos
algumas obras literárias brasileiras que revelam a estética da necropolítica.
Por esse ângulo, deparamos com o testemunho da “necrogovernança”,
conceito firmado pela professora Ariana Vianna, que traz à luz as ações
“tecidas nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz[es]
de deslocar morbidamente a conhecida fórmula foucaultiana do ‘fazer
viver/deixar morrer’ para um ‘fazer morrer alguns’ e ‘deixar morrer outros’
(e outras)” (VIANNA, 2018, p. 36-39), de forma a utilizar as técnicas
de gestão de morte que, por sua vez, se difundem pelos vários órgãos
governamentais, subjetivando-as.
De fato, o medo da morte é um mecanismo de poder que atua na
sociedade, agindo sobre o fazer viver e o deixar morrer. Para Foucault
(1995), o poder acerca da vida é uma maneira de administrar populações,
promovendo a condição humana. Assim, para alguns o poder não atua
como forma binária de dominador versus dominado, mas, ao contrário,
alastra-se de maneira microfísica, como forças que se movem sem rumo,
sem centro ou periferia.
O filósofo francês opõe-se à ideia de que o poder subverte e repreen-
de, seria sim uma forma de promover e encorajar comportamentos. No
conjunto das análises, o biopoder manifesta-se na totalidade das ações
que promovem a regulamentação dos recursos vitais dos seres humanos.
O poder sobre a vida manifesta-se nas condições de dirigir os negócios
da população, sob o prisma da realidade biológica primária.

128
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

No artigo Crise da medicina ou crise da antimedicina, Foucault


defende a “biopolítica” como a ação sempre crescente da medicina nos
espaços públicos, o que leva a acreditar em um Estado, cuja intenção, na
modernidade, “é o cuidado do corpo, a saúde corporal, a relação entre
as doenças e a saúde etc.” (FOUCAULT, 2010b, p. 171). Cabe ao poder
estatal criar mecanismos que visem à promoção da vida, melhorando-a
continuamente, articulada à probabilidade de deixar morrer.
Contudo, declara Foucault (1999) que, no biopoder, a forma de
equivalência entre vida e morte fomentou a manifestação do racismo de
Estado, ou seja, para manter a vida e a saúde de um povo, seria necessário
eliminar algumas vidas em prol de outras. Assim, a autoridade executa e
desencadeia, por meio de mecanismos administrativos e governamentais,
a promoção da vida ou da morte. Não apenas a morte física, mas, como
entende Foucault (1999, p. 306), “a morte política, a expulsão, a rejeição
etc.”; logo, o apagamento do outro, ou mesmo “a morte da raça ruim,
da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar
a vida em geral mais sadia; e mais pura” (FOUCAULT, 1999, p. 305).
A “biopolítica” é o centro do biopoder que tem como objeto a população
de homens, intervindo nas taxas de natalidade, longevidade, epidemias
e, por fim, na migração, não é um poder individual como as normas ou
as leis. É um tipo de autoridade que abrange os indivíduos, tendo como
base a sua condição biológica (FOUCAULT, 1976/2010a). É justamente
nesse viés que Joseph Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica.
O professor camaronês, que atua na Universidade de Harvard,
dedicou-se a estudar as relações raciais interligadas à política, produziu
trabalhos relevantes como: Crítica da razão negra (2018a) e Necropolítica:
biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte (2018). Nesse úl-
timo ensaio, o autor evidencia que o poder soberano mudou de formato,
esboça o poder nas ações microfísicas e políticas, conduz ao extremo o
fato de “deixar viver”, o qual se transmuta em “deixar morrer”.

129
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

A morte, na sociedade moderna, não aparecerá de forma pública nas


cerimônias de condenação criminal, mas sim circunscrita em espaços
definidos e com público também definido. Ademais, tendo em vista a
multiplicação das instituições de administração do Estado moderno, as
ações de fazer morrer se estenderão por toda organização estatal de controle
disciplinar, de forma que o direito de fazer viver e deixar morrer não será
exclusividade do soberano. A esse respeito, Mbembe chama atenção para
a teoria da exceção de Agamben, enfatizando que o poder hodierno de
causar a morte está justamente em desprover determinados corpos dos
direitos individuais constitucionalmente definidos, entre eles o direito a
políticas públicas para a promoção da vida e da saúde.
É nesse ponto que Mbembe (2018, p. 40) discursa a respeito da
omissão de recursos mínimos por parte do Estado aos corpos que não
importam, quer sejam por causa da raça, da cor, ou mesmo da classe
social ou qualquer outra forma possível que possa ser identificada em um
sistema de privilégios. Chega-se ao princípio de que o homem é reduzido
à coisa; sem alma, lhe é negada a humanidade e qualquer violência se
torna possível. Quer dizer que existe, na modernidade, uma política que
não aponta para a vida, mas para a utilização de formas de vigilância e
controle para o extermínio do ser.
Vale lembrar que Mbembe centrou a gestão da morte, embasando-se
nos conceitos de Agamben (2004). No livro do filósofo italiano Estado de
Exceção, o autor considera que existe, no cerne das democracias modernas,
pessoas que vivem sob o Estado de Direito enquanto outras sucumbem
a um Estado de Exceção, são corpos desprovidos dos direitos individuais
garantidos constitucionalmente.
Vislumbramos, assim, o estudo das obras literárias: de Jorge Amado,
Mar Morto, 1936; Capitães da Areia, 1937; Tereza Batista cansada de
guerra, 1972; Tocaia Grande: a face oculta, de 1984; que apresentam uma
experiência bastante enriquecedora, do ponto de vista histórico, social

130
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

e cultural. Justamente, desentranha das obras literárias a aproximação


com a estética da necropolítica.

1 — MAR MORTO: PAISAGENS AQUÁTICAS NA DEFINIÇÃO DOS


TERRITÓRIOS

Mar Morto, 1936, é o quinto livro de Jorge Amado, que vinha com-
pondo, até então, narrativas relativas à conquista do interior do país,
notadamente na zona do cacau do sul do estado da Bahia. A condição
precária dos homens que enfrentam o mar, agora na região litorânea
da capital do estado, confere a Mar Morto uma dimensão lírica que o
distingue das narrativas realistas do território.
A obra de Jorge Amado põe em cena tipos de trama cuja similitude
estrutural permite um resumo comum. Os protagonistas enfrentam conflitos
significativos da realidade brasileira: a dificuldade das comunidades rurais
ou urbanas periféricas de se colocar no mesmo diapasão da idade industrial
que já modela a feição das cidades modernas. A dureza da vida rústica, as
misérias impostas pelas transformações climáticas, e as formas pelas quais
os mais abastados tiram proveito dos campônios ou dos marginalizados
urbanos são efetivamente temas problematizados no conjunto da obra.
O “mar”, nessa obra, está naturalmente associado ao mundo das
origens, constituindo assim um signo previamente carregado de investi-
mentos simbólicos e de questionamentos sobre o sentido sócio-histórico
das polarizações sedentarismo/ nomadismo que determinam a conquista
do território, que serviu de estrada marítima para os colonizadores. O
continente é representado como o domínio da instalação que funda as
identidades e atribui um sentido particular aos destinos. Daí uma ima-
ginação marina, ou mesmo aquática, identificada às ideias de mudança,
subversão ou liberdade que contribui para o crescimento da tensão do
ser americano dividido entre os apelos do alhures e a atração do aqui.

131
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Mar morto se inicia com um narrador que se identifica como “ho-


mem da terra” e que assinala que vai pôr em evidência os contrastes
entre a vida continental e a vida dos homens do porto que ordenam
a estória narrada. Vamos aí encontrar focos culturais significativos, à
medida que o texto literário se entrecruza com textos históricos, pelas
relações natureza/conquista, permitindo o encadeamento dos textos
históricos com os textos míticos e legendários, que modelaram as no-
vas realidades dos povos das terras conquistadas. Sob o signo do “mar
das aventuras”, o romance de Amado desdobra igualmente um tecido
de qualidades visuais, sonoras e musicais, destinado a instaurar a rede
sensível e virtual através da qual se manifesta a história de Guma, um
bravo marinheiro:
Do outro lado, é o mar, a lua e as estrelas, tudo iluminado
também. A música que vinha dele era triste e penetrava
mais fundo. Os saveiros e as canoas chegavam sem ruído,
os peixes passavam sob a água [...]. A música do mar era
triste e falava em morte e em amor perdido. Na cidade
tudo era claro e sem mistérios como a luz das estrelas.
As estradas da cidade eram muitas e bem calçadas. No
mar, só havia uma estrada e essa oscilava, era perigosa.
As estradas da cidade já estavam há muito conquistadas.
(AMADO, 1996, p. 41).
O narrador apresenta a significação do “mar” para os personagens que
nele transitam. É o lugar da aventura, “estrada perigosa” e de mistérios,
contrastando com as estradas já conquistadas do continente. Acima de
tudo, o signo marítimo é o espaço da virtualidade, da luz natural (lua e
estrelas versus lâmpadas), que permite a eclosão das imprevisibilidades,
instaurando um conflito cósmico: a força do tempo definindo as formas
da conquista e do processo civilizatório contra as forças do espaço, con-

132
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

vidando os marginalizados a inventarem outras formas de vida, a partir


das configurações dispersas de suas expressões transculturais.
O “mar”, então, se transforma em matéria impalpável, enquanto na-
tureza instável, composta de luz e música. As relações “história e canção”
se encarnam no romance de Amado, dando corpo a uma sólida formação
cultural que perpetuou o drama dos pescadores, principalmente através
do célebre refrão de Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”, destinado
a registrar a dialética morte/ vida que, de todas as evidências, simboliza o
projeto americano do renascimento. A música, prolongamento do ritmo
marinheiro, assim como constatamos no romance quebequense no rio
São Lourenço, organiza as ações dos personagens, dirigindo também a
narrativa histórica dessas ações. Mar Morto é a história da escravidão
dos africanos e do encontro da cultura africana com a ameríndia, que
vai visualizar as relações significativas de núcleos sociais completamente
ostracizados.
Amado indica como as metamorfoses sígnicas funcionam como
núcleos transculturais, de natureza temática e expressiva, que dirige
a emergência das narrativas sagradas. É assim uma relação história/
mitologia que descreve o deslocamento, com a consequente reterrito-
rialização dos povos africanos, desterrados de outras terras, através dos
componentes míticos que desmaterializam a história vivida em proveito
de uma história imaginada:

O oceano é muito grande, o mar é uma estrada sem fim,


as águas são muito mais que metade do mundo, são três
quartas partes e tudo isso é de Iemanjá. No entanto, ela
mora é na Pedra do Dique do cais da Bahia ou na sua loca
em Mont Serrat. Podia morar nas cidades do Mediterrâneo,
nos mares da China, na Califórnia, no mar Egeu, no golfo
do México. Antigamente, ela morava nas costas da África

133
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

que dizem que é perto das terras de Aiocá. Mas veio para a
Bahia ver as águas do rio Paraguaçu. E ficou morando no
cais, perto do Dique, numa pedra que é sagrada. (AMA-
DO, 1939, p. 67).
Os índices topográficos das novas terras da sereia Iemanjá servem
para dizer a história, relativizando o mito. Com efeito, Iemanjá instaura
a relação do maravilhoso, destinado a reterritorializar pelos elos sagrados
que unem os afrodescendentes em torno de uma formação cultural co-
mum. De todas as formas, exercendo poder, ela, como deusa, toma posse
do topos geográfico e do topos imaginário das comunidades desterradas
dos antigos escravos.
Iemanjá é dona dos mares, mas os cinco nomes que lhe atribuem
representam relações diferenciadas com segmentos dessa comunidade
reterritorializada, mas também interrogações sobre as dificuldades de
dominar as forças destrutoras das águas. Iemanjá, para todos, é a “senhora
dos oceanos”; para os canoeiros, ela é Dona Janaína; para os negros, seus
filhos mais diletos, e que a temem mais que todos, ela é Inaê ou Princesa
de Aiocá, quando há a necessidade de distinguir espacialmente os conti-
nentes; enfim, são as mulheres do cais, casadas ou da vida, que a chamam
de Dona Maria. Sua identidade é então repartida, à medida que cada nome
encaminha uma espécie distinta de relação com a comunidade, também
segmentada, e orienta seus novos destinos em novas direções. A vitalidade
orgânica que a deusa ganha no Novo Mundo é o melhor testemunho de
formação de terceiras culturas com natureza transcultural, onde se estabelece
uma dialética entre o uno e o diverso e onde o objeto fundador de uma
cultura passa pelo crivo de vários olhares, e vai ressurgindo modificado
em momentos e espaços distintos. E é graças a esse processo de hibridação
que a cultura fundadora assegura sua sobrevivência.

134
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

Nessa mesma direção, há a questão do destino como figura dominante


na narrativa. O destino dos marinheiros está escrito com a morte no mar
que é uma passagem a outra vida, no reino de Iemanjá. Metaforicamente, é
o destino das formações transculturais, nas suas reviravoltas imprevisíveis,
em função dos processos de reterritorialização. E justamente, Guma, o
protagonista de Mar Morto, assume os elãs aventureiros das viagens no
mar e renuncia à vida sedentária na cidade. De todas as maneiras, ele vem
testemunhar da péssima qualidade de vida dos errantes marinheiros e da
sorte que é reservada a suas mulheres, quando da viuvez, todas tomando
caminho do prostíbulo.
Sentir a instabilidade, e assim a morte, inscrita na paisagem aquática,
é reconhecer que os discursos culturais informam sobre o destino dos
personagens e agem diretamente sobre a dramaticidade da narrativa. O
afogamento de Guma é um signo de alerta que, sob a direção das for-
mações transculturais, revela a condição precária dos afrodescendentes
e sobretudo dos trabalhadores marítimos que transportam mercadorias
para os grandes comerciantes.
Essa morte, no mar largo e desconhecido, possui uma direção ar-
gumentativa da não-contradição, à medida que é, ao mesmo tempo,
irruptiva e integrativa. Leva a crer que o ato de morrer é também uma
invenção de vida. A obra propõe o argumento do renascimento como
uma articulação particular das formações culturais que modelam o ima-
ginário das Américas. E justamente as narrativas míticas se entrelaçam
com os argumentos narrativos para sublinhar os sincretismos religiosos e
permitem toda uma plasticidade no relato do desaparecimento de Guma.
Em Mar Morto, a morte traduz uma expressão de “milagre”. Lívia
não vai para a prostituição como as outras e vai enfrentar o mar para
ganhar sua vida. O “milagre” é que ela incorpora Iemanjá dos cinco

135
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

nomes, o que significa que tanto as mulheres como as comunidades


marginalizadas se associam miticamente para reverterem a situação
de miséria e abandono. Assim se delineia um projeto significativo de
reconstrução/renascimento.
A temática aquática constitui efetivamente um exemplo vivo e concreto,
na literatura brasileira, das tensões dialéticas das origens, de tal forma que
essas constelações semânticas em torno das expressões de metamorfose dos
elementos naturais — vento, água, ondas, arrecifes, quebra-mar — deter-
minam um certo caráter mítico das culturas postas em relação ao entorno
da Baía de Todos os Santos. A baía é dada como matéria impalpável,
enquanto natureza instável, composta de luz e música, mas como estrada
perigosa e de mistérios, contrastando com o continente. A escrita de Amado
aparece como um lugar privilegiado de relações sinestésicas múltiplas. Ela
tenta impedir a perda dos cantadores e contadores de estórias, e projeta a
oralidade e a musicalidade popular, condenadas como formas de expressão
inferior, no primeiro plano da memória nacional.

2 — CAPITÃES DA AREIA

No romance Capitães da Areia, Jorge Amado nos apresenta um mundo


desigual, onde convivem os brancos/ricos e os negros/pobres. Trata-se de um
panorama epidêmico, no qual os brancos dispõem da vacina para enfrentar
um surto de varíola enquanto os negros contam apenas com a forças dos
orixás do candomblé. A estratégia discursiva do autor se dá por meio de
uma reverberação semântica que, aos poucos, dá conta de um enredo que
vai capturando o leitor, aos poucos, tal como uma doença contagiosa vai
se espalhando pela sociedade. Dessa forma, vê-se a primeira alusão ao que
vai se configurar em epidemia, aos poucos na narrativa: “Por vezes morria
um de moléstia que ninguém sabia tratar.” (AMADO, 2005, p. 92)
Esta primeira referência à epidemia de varíola é “moléstia”, a qual

136
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

mostra-se generalizante e indefinida, como toda doença nova que vai se


instalando numa comunidade. A primeira reação está no fato do savei-
rista e amigo dos meninos capitães os levar para uma festa no terreiro
do Gantois, em homenagem a Omolu, que vai promover uma vingança
pelas mortes dos negros vítimas da tal doença.
No capítulo Alastrim, por volta da página 143, há uma apresentação
do cenário da epidemia na cidade do Salvador, configurada em Cidade
Alta dos brancos ricos e Cidade Baixa dos negros pobres. Neste momento,
há uma extensa citação do orixá Omolu, que é associado às doenças em
geral, mas sobretudo às de pele. Como detentor do poder entre doença e
cura, Omolu é o responsável pela disseminação, mas também pela cura,
procedimento característico da personalidade dos deuses africanos, como
Xangô, promotor da guerra e da paz. Quanto à denominação atribuída à
doença, o que se vê é uma reverberação semântica motivada pela distribui-
ção do contágio e infestação pela cidade conforme a localização espacial
e social e, também, de acordo com a intensidade da epidemia. Então,
vê-se um mosaico composto por alastrim / bexiga negra / bexiga branca
/varíola/ sarampo. Essa multiplicidade de significantes é característico
do texto literário que promove várias leituras para além da compreensão,
acionando no leitor a capacidade de desenvolver diversas estratégias de
interpretação textual legitimamente validadas não só para cada um dos
leitores, mas pelas diversas leituras empreendida por um único leitor.
A doença atinge o primeiro integrante, que se queixa de uma coceira
forte pelo corpo. Ele se chama Almiro e junto com Barandão experi-
menta um relacionamento homossexual, comportamento proibido pelo
líder Pedro Bala. Barandão anuncia para o grupo a contaminação de
Almiro: “— Almiro está tá com bexiga. Gentes, Almiro tá com bexiga.
(AMADO, 2005, p.145).
Ao saber que Almiro estava com “uma coceira danada”, Pirulito reage
e apregoa que é castigo de Deus dos pecados dele, enquanto o Sem Pernas

137
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

assumindo a voz do chefe que estava ausente o obriga a sair do Trapiche


e ir para o lazareto (AMADO, p. 146). Então, Pirulito chama o padre
Pedro, mas Almiro se recusa a ir para o lazareto, e Pedro Bala quando
chega atende o menino que deseja ir para casa da mãe. Assim é feito e
dessa forma o padre não notifica a saúde pública e, por isso, é advertido
pelo cônego que o ameaça de ser transferido para longe, perdendo assim
o contato com os meninos. Na sequência, o Boa-vida aparece contami-
nado também e vai, por conta própria para o lazareto, de onde retorna
curado, mas abatido como um cadáver que ressuscitou.
Para falar das representações imagéticas desta narrativa, é preciso
descrever as estratégias desenvolvidas, na composição textual, a qual
se caracteriza pela coleção de documentos diversos, que compõem a
introdução do romance. São notícias de jornais, depoimentos de au-
toridades como delegados, padres, diretores de jornal e até familiares.
Esse conjunto de textos foi denominado CARTAS À REDAÇÃO e
mostra-se como uma tentativa de legitimar o que vai ser narrado, tal
como os neorrealistas operam, pela necessidade de assegurar ao leitor a
sensação de verdade. Procedimento diferente no relato cinematográfico,
realizado por Cecília Amado em parceria com Bernardo Stropiano em
2011. No filme, a primeira cena é a festa de Yemanjá, na qual os meninos
participam animados, seja na arrumação das flores no balaio que será
lançado ao mar, seja pelos mergulhos e brincadeiras pela areia da praia do
Rio Vermelho, que é o local de entrega mais famoso dos eventos para a
rainha do mar, em Salvador. Pedro Bala se destaca entre todos, ajudando
o capoeirista e saveirista Querido-de-Deus na arrumação do saveiro e na
posterior entrega. Para compreender essas estratégias cinematográficas,
Lícia Soares de Souza lembra as relações intersemióticas as quais ela revisa
em Literatura e Cinema lançado em 2009 e que estabelecem relações
sintagmáticas que compõem a gramática do cinema, destacando-se a
força narrativa por entre os jogos correspondentes entre os diversos sig-

138
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

nificantes e significados. Os resultados desses jogos determinam uma


certa equivalência dos planos cinematográficos com o discurso verbal.
A primeira referência imagética é a de um cartaz de propaganda da
vacina, pregado numa janela perto de onde Bala e o professor estão comen-
do. A segunda referência imagética é uma festa em homenagem a Omolu,
orixá que representa as doenças de um modo geral, mas em especial as de
pele. Eles falam que é uma vingança do orixá contra a vacina dos brancos
ricos. Logo após, a cena retorna para o trapiche, onde o Almiro confessa a
Barandão que “está com uma coceira danada”, depois de todas as reações
negativas, inclusive as de Sem-Pernas que quer expulsá-lo de imediato do
trapiche para evitar o contágio. Mas Pedro Bala chega e intervém dizendo
que vai pensar porque tem que resolver com o grupo. Então, após ouvir a
todos, acata o pedido de Almiro, que quer voltar para a casa da mãe e pede
a Querido-de-Deus que leve o garoto até lá, de onde não voltará.
Em seguida, referência à epidemia está na cena de Dalva, a prostituta
namorada do Gato, que aparece ouvindo um disco, toda animada e pede
para ele se animar porque a epidemia já está acabando e “tudo vai voltando
para as coisas”. É que ele está muito triste com a recente morte de Almiro
e a quarentena que estão vivendo, ocasionando a queda de movimento no
movimento da cidade e consequente parada das atividades deles.
O cenário de configuração da epidemia na narrativa, reproduzida
no filme, se consolida com a chegada de Dora e seu irmão, Zé Fuinha,
no grupo dos capitães, ambos andando sozinhos pela cidade, depois da
morte da mãe, vítima da varíola. Depois de uma reação negativa, ela é
aceita por eles como uma irmã e mais tarde como uma dos capitães, já
que ela insiste em participar das atividades desenvolvidas pelo grupo.
Neste momento da trama, o trapiche recebe a visita da uma mãe de
santo, que pede aos garotos que recuperem uma imagem de Ogum, que a
polícia confiscou ao fazer uma batida no terreiro que ela comandava. Mais
um orixá faz parte do enredo tal como uma personagem. Pedro Bala vai

139
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

para a delegacia e consegue pernoitar por lá, de modo que consegue pegar a
imagem e, ao retornar ao trapiche, é saudado com vivas e gritos de alegria.
Depois de uma desavença Ezequiel, um dos meninos, trai Pedro Bala,
entregando-o à polícia que o leva para o tão temido reformatório. Lá, Bala
sofre, passa fome, apanha muito e, por fim, vai para o trabalho forçado
nos canaviais do interior do estado, de onde consegue escapar. Mas, ao
sair, tem a surpresa de Dora ter sido internada no Orfanato, onde está
acamada pela contaminação com a bexiga negra. Então, Bala vai tentar
tirá-la de lá para curá-la com a ajuda dos orixás. É que Don’Aninha vai
fazer um “trabalho”, que não adianta, pois, ao amanhecer, ela está morta.
Durante a noite, Dora pede para se tornar mulher de Bala e o sexo aparece
mais uma vez como castigo, já que ela não resiste e morre. O saveiro de
Querido-de-Deus é o seu carro fúnebre, que se distingue pela falta de
dignidade dos enterros atuais, quando a família não pode se despedir dos
seus familiares. E Dora vai ter seu sono eterno nas águas de Yemanjá.
É possível considerar que, apesar de toda exclusão característica da
vida dos capitães, havia uma contrapartida já que eles dominavam as ruas
da cidade de Salvador, desfrutando do carinho do também excluído povo
de santo, dos mercadores e das prostitutas, além do Padre José que arrisca
sua vida em prol de ajudá-los. Contemporaneamente, na contramão das
atitudes negacionistas do presidente Jair Bolsonaro, o povo brasileiro,
que sempre foi conhecido por sua acolhida e solidariedade, demonstrou
ainda mais uma enorme capacidade de compartilhar toda sorte de ajuda
e cuidados uns com os outros.

3 — TEREZA BATISTA: O TESTEMUNHO DA CORAGEM

Tereza Batista cansada de guerra, 1972, é uma obra que mobiliza


vários temas, entre eles o caos social promovido pela epidemia da varíola
na Bahia no início do século XX. A doença é mostrada como velha co-

140
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

nhecida da população, sempre assombrando as terras da Bahia. Devasta


os bairros mais miseráveis, retratando o descaso das autoridades com os
mais pobres e a precariedade dos serviços de saúde.
No romance, a varíola chegou “determinada a matar, fazendo-o com
maestria, frieza e malvadez, forte, feia e ruim” (AMADO, 2008, p. 199).
Tereza, personagem principal do romance, que a essa altura mantinha
um relacionamento amoroso com “Oto Espinheira, médico de recente
colação de grau” (AMADO, 2008, p. 215), na ausência de técnicos de
enfermagem, passa a prestar serviços no posto de Buquim. Tereza era
querida pelos pacientes, ela rompeu, delicadamente, a resistência da po-
pulação para com a vacina. Com a bravura de um desbravador, limpou
o lazareto abandonado.
Ante o caos da situação, Tereza pôs-se a cuidar da população aban-
donada pelas instituições governamentais, que, sem condições de perma-
necer em casa, era enviada ao lazareto, um estabelecimento sanitário de
internação, de responsabilidade da saúde pública, em que são colocadas
pessoas portadoras de moléstias contagiosas. Confirme-se, então, a
iniciativa do governo em isolar os doentes num espaço de atendimento
médico precário. Um lugar com relação limítrofe entre vida e morte. As
pessoas que vão para aquele espaço estão numa posição melancólica de
quem perdeu algo e não se podem a fazer nada mais, se entregam ao caos.
São colocadas na situação de animal, expostas ali, esperando a morte.
Na narrativa, é a população marginalizada que, por meio da solida-
riedade e coragem, acaba derrotando a doença. Já o Dr. Oto, médico
designado como responsável pelo posto de saúde da cidade, foge por não
aguentar a situação de epidemia. O cerne da denúncia amadiana está
no combate às políticas públicas de saúde que negligenciam o cuidado
com a camada social mais pobre da população, lembrando o estudo de
Licia Soares (2015).
Contudo, se existe de um lado a negação de tratamento por parte

141
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

do Estado, por outro lado, tem-se a acentuação da solidariedade em


tempos de epidemia. É Tereza Batista, juntamente com os renegados
da sociedade, quem salva parte da população de Buquim, mesmo na
ausência das assistências públicas que aqui se constatam em duas situa-
ções: primeiro, pela falta de local apropriado para receber os doentes e,
em segundo, pela omissão de nomear um médico capaz de atuar frente
a uma situação epidêmica.
Na produção de Jorge Amado, a crise sanitária atuou como uma espécie
de purgação, limpeza ou uma catarse pela qual o país estava atravessando,
percebemos como a epidemia de varíola atuou como símbolo da exclusão
social e das mazelas vividas. Denuncia-se que certos corpos degenerados
são eliminados para que outra parte da população permaneça viva. É
uma mensagem potencializadora do discurso da banalização da morte,
em que pessoas são consideradas menos humanas, como simples objetos.
Tem-se a imagem de uma janela social que se abre e expõe os abismos
sociais, revelando as vozes periféricas como forma de decolonização.

4 — TOCAIA GRANDE: A PASSAGEM DA PESTE

No antepenúltimo romance do autor baiano, Tocaia Grande: a face


oculta, de 1984, conta a formação de uma cidade fictícia enquanto re-
presentação de um mundo novo, encontro de etnias e de diversidades
culturais, formada por uma sorte de expatriados sociais que, enfim,
encontram um local de refúgio e acolhimento.
Os tocaiagrandenses passaram por dias felizes e dias amargos. Várias
catástrofes aconteceram, primeiramente, foi a enchente no rio Cachoei-
ra. Em seguida, sobreveio a crise sanitária provocada por uma doença
desconhecida que agravou a qualidade da vida e da saúde dos habitantes.
A chegada da peste apresentou para a população de Tocaia Grande

142
A BIOPOLÍTICA E AS EPIDEMIAS EM JORGE AMADO

a realidade sanitária da cidade. A voz do narrador é a voz de um povo


intensificado e desesperado provocada por uma doença desconhecida que
dizimava as pessoas.“A febre, sem nome, a peste, aquela que no dizer do
povo matava até macaco”, durou uma quinzena, chegou no domingo
de festa e foi embora um vendaval, no dizer dos citadinos, “prosseguiu
viagem para matar adiante” ( AMADO, 2008, p. 426).
Observa-se que, nesse breve capítulo, em que foi descrita a crise
sanitária em Tocaia Grande a ausência de qualquer tipo de política pública
que garanta o direito a vida e a saúde. De fato, o surto da febre revelou
uma profunda mudança nas relações entre espaço, tempo e doenças
infecciosas, ao ponto de perceber que a população estava vulnerável a
ocorrência de doenças. A ausência de prevenção à vida promove na cidade
ações próprias da estética da necropolítica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao cabo, temos a biopolítica concretizada na necropolítica gerada


pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro que dificultou e dificulta
as ações de combate à pandemia, que assola o mundo e o Brasil permeia
o nosso trabalho. É que a literatura de Jorge Amado, neorrealista entre
outras características, tematiza os horrores das diversas epidemias, que
acometeram o país durante décadas, revelando as desigualdades socioe-
conômicas e a política de morte dos gestores em diversas regiões. É um
panorama perverso, que perpetua através de uma estética de morte e
miséria, herança do processo de colonização e séculos de escravidão.

REFERÊNCIAS

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145
HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE


SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

Edvaldo A. Bergamo1

“É um tema muito presente, muito insistente


em toda a minha obra, a questão da terra no Brasil.”
AMADO, Jorge. In: Raillard (1990)

INTRODUÇÃO

Jorge Amado continua a ser um romancista de muito interesse na


literatura brasileira, merecedor de um exame detido das questões intrin-
cadas que sua obra suscita. Trata-se de um problema literário estimulante
para o pensamento crítico ou para o estudioso que se debruçar sobre uma
produção extensa e intensa que ininterruptamente angariou uma recepção
polêmica e que possibilitou ao mesmo tempo uma reflexão significativa
sobre a história e a sociedade brasileiras, visto que a criação artística do
ficcionista baiano apresenta uma sintonia fina com os principais impasses
nacionais, ao longo do século XX, sem abdicar de certas características
típicas do chamado romance de 30, do qual o autor é um dos principais
artífices, ao perpetrar o legado de tão importante produção romanesca
coletiva, por intermédio de uma trajetória absolutamente vitoriosa, no
tocante ao sucesso junto ao público, e controversa, no que diz respeito a
grande parte de sua fortuna crítica.
1
Professor da Universidade de Brasília (UnB)

147
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Os aspectos mais sobressalentes do romance de 1930, na figuração


do imaginário amadiano, tornam-se reconhecíveis em obras que dão a
ver os impactos do subdesenvolvimento econômico, da modernização
incompleta e dos conflitos sociais acirrados, aspectos contraditórios da
formação histórica e cultural do Brasil, cujas incongruências principais
atinentes à classe e à raça são faces da mesma problemática: a opressão
exacerbada do trabalhador do campo e da cidade proporcionada por um
sistema de superexploração caracterizado como capitalismo monopolista
de ranço colonial. Sendo assim, pretendemos examinar a obra Seara
vermelha como um romance histórico constitutivo dos pressupostos
estéticos e ideológicos dos anos 30. Para o mais importante crítico da
obra de Jorge Amado:
A condenação do latifúndio, a representação do êxodo
rural, das rebeldias ‘pré-políticas’ e, até mesmo do levante
de 35, indicam o alargamento de horizontes e a presença do
romance histórico fundado na perspectiva do oprimido e
preocupado em tematizar as atitudes épicas de resistência
popular armada (DUARTE, 1996, p. 208). Grifos do autor
Assim, o ideário do romancista da revolução de 30 ainda reverbera
numa produção romanesca de meados dos anos 1940, uma obra pautada
pelo realismo histórico subordinado às demandas de uma realidade social
e política desafiadora, em nível local e global (BERGAMO, 2008).

1. — JORGE AMADO: UM ROMANCISTA DA REVOLUÇÃO DE 30

A década de 1930 fornece os parâmetros basilares do projeto literário


de Jorge Amado. Num decênio em que a marcha mundial das revoluções
parecia finalmente atingir os seculares fundamentos espoliadores da socie-
dade brasileira, a saber, o predomínio do latifúndio, a violência de classe

148
HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

dos donos do poder, a monocultura exportadora, a ideologia do favor


etc., o romance de 30 problematiza certos entraves nacionais oriundos
do campo e da cidade (LAFETÁ, 2000). E Jorge Amado, coparticipante
dessa geração de escritores que examinou por intermédio da transfigu-
ração artística os problemas da região como impasses da nação, articula
sua criação romanesca em consonância com uma perspectiva que visa
a passar o Brasil em revista, antecipando-se, pelo prisma da literatura,
a análise da realidade material que será realizada pelas áreas específicas
do conhecimento científico em décadas posteriores.
Para Antonio Candido,
Como decorrência do movimento revolucionário e das suas
causas, mas também do que acontecia mais ou menos no
mesmo sentido na Europa e nos Estados Unidos, houve
nos anos de 30 uma espécie de convívio íntimo entre a
literatura e as ideologias políticas e religiosas. Isto, que
antes era excepcional no Brasil, se generalizou naquela
altura, a ponto de haver polarização dos intelectuais nos
casos mais definidos e explícitos, a saber, os que optavam
pelo comunismo ou o fascismo. Mesmo quando não ocorria
esta definição extrema, e mesmo quando os intelectuais não
tinham consciência clara dos matizes ideológicos, houve
penetração difusa das preocupações sociais e religiosas
nos textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias
em termos diversos e maior intensidade (CANDIDO,
1989, p. 188).
O nosso ficcionista, afeito às determinações do realismo socialista
aclimatadas à experiência nacional, pode ser identificado com mais clareza
na publicação seguida de Seara vermelha (1946) e dos volumes da trilogia
Subterrâneos da liberdade (1954). São narrativas em que o ideário eman-

149
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

cipatório de esquerda internaliza de tal maneira na forma narrativa que a


composição ficcional está toda voltada para a valorização e enaltecimento,
pelo exemplo sacrificial encontrado na trajetória dos militantes, da sociedade
nova a ser edificada num futuro utópico. Em meados do decênio de 1940,
e mesmo antes se quisermos, durante os anos antecedentes à vigência do
Estado Novo getulista, Jorge Amado, sob o impacto dos desdobramentos
oriundos da Segunda Guerra Mundial, torna-se um militante disciplinado
do Partido Comunista do Brasil e um escritor afinado com os preceitos do
realismo de influência soviética. A literatura de ênfase social, que vinha
sendo praticada de maneira até certo ponto intuitiva na década anterior,
assume uma perspectiva ideológica esclarecida, em nome de uma neces-
sidade de sublinhar o aspecto documental e a exposição de nítido ideário
revolucionário ostentados pela obra.
De acordo com Alfredo Wagner Berno de Almeida,
Não apenas os personagens se engajam com firmeza em
prol daquelas soluções políticas, como é o caso de Neném
(Juvêncio) em Seara vermelha, como também o próprio
autor. O homem de ação em Amado passa a encarnar a
conduta literária na conduta política. Aparenta se dar conta
de que sua produção literária, por si só, não concorre de
maneira imediata para as transformações que prenuncia.
Nem o autor parece se contentar em somente produzi-la.
Os quase oito anos que separam Seara vermelha do livro que
lhe sucede, Os subterrâneos da liberdade, permitem entrever,
mais que longo interregno, um deslocamento de prioridade
em sua atitude política (ALMEIDA, 1979, p. 202)
Nos anos de 40 e 50, Jorge Amado torna-se um escritor conhecido
dentro e fora do Brasil e sua obra é editada em outros países de orientação
socialista ou não. A militância política intensifica-se com o exílio na Euro-

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

pa, sacrificando por vezes os dons de romancista, porém o literato triunfa


no final do decênio de 50, com a reformulação de seu projeto literário
pós-Gabriela, desta feita, condizente com uma visão menos ideológica e
mais carnavalizada dos problemas nacionais, de modo que a questão da
justiça social está em estreita correlação com a demanda pela liberdade
individual, numa sociedade afetada sobremaneira por mudanças sociais
e comportamentais que marcaram a segunda metade do século XX.
Jorge Amado é, indiscutivelmente, até hoje, o romancista brasileiro
mais conhecido no exterior. Nasceu numa fazenda de cacau do sul do
Estado da Bahia, no município de Itabuna. Desde a infância, o célebre
escritor conviveu com os trabalhadores das plantações, os jagunços
arregimentados, os coronéis e agregados de um território natural demar-
cado pelas árvores do “ouro branco”. Testemunhou o surgimento e/ou
o crescimento de cidades, com destaque para Ilhéus, “a princesinha do
Sul”, maior conglomerado da região, cujo desenvolvimento mereceu a
construção de um porto para a exportação direta de um dos principais
produtos agrícolas brasileiros à época, ao lado do café. Jorge Amado é
herdeiro da oligarquia rural brasileira e grapiúna: uma ordem política,
social e econômica que sustentou o período da chamada República Velha.
Por pertencer a uma família com posses, estudou em colégio da elite
baiana em Salvador e, posteriormente, cursou Direito no Rio de Janeiro.
Os anos de estudos na capital baiana lhe possibilitaram o conhecimento
e a convivência em franca liberdade com o ambiente popular da cidade
mais negra do Brasil. Já a etapa carioca dos estudos lhe garantiu o contato
com correntes políticas decisivas em sua formação intelectual e artística,
num cenário mais complexo e diverso da capital federal à época.
Jorge Amado sempre se considerou um típico romancista de 30, de
acordo com o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em
1961 (AMADO, 1972). A Revolução de 30, ao impor o fim da República
Velha, caracterizada pela “política café com leite”, sustentada pelos co-

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

ronéis latifundiários, pelo mandonismo local, pela alternância de poder


controlada, foi um levante que veio a inaugurar uma nova etapa da vida
brasileira, com reflexos determinantes no processo de atualização da
inteligência nacional, notadamente no âmbito da cultura, da ciência e da
política. Os ganhos da referida revolução afetaram a compreensão, sob a
ótica dos idealizadores da forma narrativa empenhada, acerca da realidade
adversa de um país subdesenvolvido. O romance de 30 significou uma
ação coletiva coordenada de descoberta e de interpretação das disparidades
regionais, com foco especialmente nas agruras do trabalhador braçal do
campo e da cidade, ante o domínio do senhorio de terras e do capitão
de indústria, merecendo destaque igualmente a situação do negro e da
mulher (os outros de classe, ao lado do empregado) que também aparecem
como parte constitutiva de impasses seculares intransponíveis. “Com
posição ideológica voltada para o socialismo, Jorge Amado se desloca do
modernismo (simbolizado pelas máquinas e indústrias) e passa a ver a
extrema desigualdade social e racial no Brasil.” (ALVES, 2013, p. 104)
O escritor em questão, oriundo dos meandros da aristocracia rural
cacaueira, encetou, pelas trilhas da literatura, um movimento decisivo
em direção aos segmentos oprimidos, um deslocamento de classe, o que é
bastante característico da geração modernista do ano 30, a mais politizada
e polarizada ideologicamente: a adesão irrestrita às causas do espoliado,
pois era a hora e a vez do espoliado no romance, em escala mundial.
Jorge Amado viveu intensamente a “era dos extremos” do “breve século
XX”. Chegou a completar setenta anos de vida literária, numa trajetória
pessoal, política e literária em total correlação com os principais dilemas
da referida centúria. Seu itinerário artístico e espiritual ficou balizado
por vários acontecimentos históricos marcantes: em dimensão global, a
expansão dos ideários socialistas, a ascensão e derrota do fascismo e do
nazismo, as consequências da Segunda Guerra Mundial com a Guerra

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

Fria; em dimensão local, o arrocho do Estado Novo getulista nos anos


30 e a recidiva autoritária da ditadura civil-militar pós 64.
Depois de uma estreia titubeante, Jorge Amado, impactado pelas
convulsões mundiais e locais do decênio de 30, esquadrinha um pro-
jeto romanesco voltado para a expressão de valores e de reivindicações
das camadas populares. Os chamados “romances da Bahia” dão a ver
massas populacionais alijadas da modernização conservadora implemen-
tada pela Revolução de 30. O trabalhador rural, o operário urbano, a
criança abandonada, o pescador explorado, o negro marginalizado são
os tipos sociais marcantes da década na obra de nosso autor. A cidade da
Bahia e arredores compõem o cenário por onde circulam os esquecidos
do progresso, sobrevivendo nas franjas do sistema-mundo capitalista,
do qual o Brasil é parte integrante como fornecedor indispensável de
matéria-prima para os grandes centros desenvolvidos. Os romances que
constituem o “ciclo do cacau” também dão continuidade ao mesmo pro-
jeto romanesco, em que o campesino aparece em tensão complementar,
agora, com a figura do coronel, donatário de grandes propriedades, que
faz do domínio da terra uma estrutura de poder que abrange a todos,
do trabalhador rural ao funcionário público, por estarem sujeitados ao
tacão do caudilhismo tradicional.
O projeto romanesco de Jorge Amado segue um rigoroso enqua-
dramento estético-ideológico, seguramente um legado dos agitados
anos 30: a figuração estética dos contornos sobressalentes de um país
de base arcaica (colonização e escravidão), carimbada pelo atraso e
pelo retrocesso, uma dinâmica social singular na qual se sobressaía,
contudo, uma certa elite dirigente ilustrada interessada no alcance do
progresso almejado, numa solução de continuidade sob o respaldo
da (re)conciliação permanente. Assim, os proletários à brasileira da
periférica capital baiana, os trabalhadores e os fazendeiros das terras

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

do cacau são aspectos constitutivos de um país caracterizado pelo


descompasso e pelo descalabro, em termos de um desenvolvimento
desigual prolongado e insuperado.
O projeto nacional-popular de Jorge Amado apresenta uma unidade
temático-formal que perpassa toda a obra, como um escritor que se man-
teve fiel aos ideários de 30, mesmo com os (re)ajustes ficcionais realizados
ao longo de uma extensa carreira literária, completamente incomum no
Brasil, pois viveu bastante e intensamente, inclusive com o registro de
uma absorvente convivialidade político-cultural com os maiores artistas
e intelectuais do século XX.
A década de 1930 lhe forneceu régua e compasso para o seu projeto
romanesco: Cacau e Suor compõem os veios literários inaugurais de toda
a obra amadiana. Assim, podemos falar em um ciclo do cacau ampliado
que abrange as obras Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela,
cravo e canela e Tocaia grande. Do mesmo modo, podemos associar a
série romanesca da cidade da Bahia, com as obras Jubiabá, Mar morto, Os
velhos marinheiros, Os pastores da noite e Tenda dos milagres e O sumiço da
santa. Temos, então, duas linhas de força que percorrem uma trajetória
absolutamente exitosa em termos de aceitação pelo público-leitor, em
âmbito nacional e internacional, que entretanto não eliminou outros
filões igualmente encontráveis em sua vasta produção.
Alguns pontos de inflexão devem ser considerados do mesmo modo
nessa visão de conjunto da obra em exame. Jubiabá enfatiza de modo
inédito na literatura pátria o protagonismo negro na formação da bra-
silidade, tornando-se um motivo literário recorrente na obra amadiana,
em vista do racismo estrutural no país. Terras do sem fim, considerada
uma obra-prima do autor, realça um aspecto determinante da conjuntura
nacional: o retrato do mandonismo local na figura do coronel astuto e
cruel, porém dialeticamente considerado no seu papel de desbravador
de terras virgens e de massa de manobra nas mãos dos exportadores, de

154
HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

inapto para gerir seu patrimônio na nova ordem do capitalismo finan-


cista internacional. Gabriela, cravo e canela, também considerada outra
sua obra-prima, inaugura a bem dizer uma nova frente no romance
amadiano: a representação da mulher sexualmente livre em sua espon-
taneidade comportamental autêntica, em meio a uma sociedade baseada
num patriarcalismo de origem rural. Gabriela, Dona Flor, Teresa Batista
e Tieta formam o painel dos perfis femininos amadianos que desafiam
a hipocrisia e a repressão da família brasileira que vem do tempo da
casa-grande & senzala.
Nas décadas de 40 e 50, Jorge Amado esteve mais acentuadamente
enfronhado nas lutas políticas do período, chegando a ser deputado
constituinte em 1946. A polarização da Guerra Fria afeta diretamente
algumas obras como Seara vermelha e Os subterrâneos da liberdade. No
entanto, depois da publicação de Gabriela, cravo e canela, nosso autor
(re)descobre o humor, a sátira, a malandragem brasileira como aspecto
essencial de suas narrativas, estabelecendo uma outra galeria de perso-
nagens memoráveis: Quincas Berro D’água, Vasco Moscoso de Aragão,
Curió, etc. Malandros entre a ordem e a desordem da vida brasileira,
lutando por autonomia e liberdade numa sociedade desigual em que
predomina a condição obsoleta do exercício coercitivo do favor. Em toda
essa galeria de personagens representativos da organização social brasi-
leira, vislumbra-se sempre um esforço de decodificar ficcionalmente a
formação controversa do Brasil: a exploração dos trabalhadores da terra e
do mar, a violência dos mandatários locais, a brutalidade do patriarcado,
a esperteza duvidosa dos pobres malandros.
Apesar da excepcionalidade nas condições históricas brasileiras, Jorge
Amado encarou a literatura como prática profissional, como ganha-pão
principal, não subsidiária de outras ocupações, o que sempre havia sido
regra no país, com o intelectual dependente do aparato estatal, da casta
jurídica e/ou do meio jornalístico. Jorge Amado atuou fortemente na

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

imprensa alternativa de esquerda, esteve ligado às origens do cinema


brasileiro com a elaboração de roteiros e ainda colaborou na composição
de letras de música em parceria, muitas oriundas de seus próprios roman-
ces. O índice extraordinário de vendagem de seus livros, a proeza de ser
traduzido para quase 50 línguas logo chamaram a atenção de roteiristas
nacionais e internacionais. Assim, muitas obras foram adaptadas para o
cinema, para o teatro e para a televisão, com a venda dos direitos autorais.
Sua obra foi, de alguma maneira, beneficiada pela expansão da indústria
cultural no país, especialmente quando a telenovela apropria-se de seus
romances transformados em imagens que dão a ver em tom celebrativo
a miscigenação, a sensualidade, a malandragem de uma pobre nação
tropical, mas que ostenta alguma dignidade orgulhosa.
Jorge Amado ficou notabilizado pela acolhida calorosa do público-leitor:
os números de tal sucesso são imprecisos para aquilatar tal dimensão, em
razão das edições piratas internacionais, especialmente dos países da Cor-
tina de Ferro e adjacências. Ademais, Jorge Amado ficou assinalado por
uma recepção crítica controversa no Brasil, visto que nunca alcançou ou
mereceu o devido reconhecimento da crítica literária daqui, notadamente
a acadêmica, embora sua obra tenha tido excelente consideração crítica
no exterior, não obstante se note alguma mudança nas últimas décadas
no Brasil, no que toca aos estudos realizados por novos pesquisadores da
universidade na atualidade. No que tange às relações de poder da crítica
especializada, Jorge Amado foi taxado e rechaçado por diferentes espectros
do campo da crítica literária nacional, sendo por muito tempo subesti-
mado. Para os católicos de 30, um escritor com personagens sem riqueza
psicológica; para os stalinistas de 40 e 50, um praticante e um posterior
traidor da ortodoxia operária; para as feministas de 60, um machista chau-
vinista; para os acadêmico-universitários do centro-sul dos anos 70/80, um
escritor superficial que beirava o best-seller; para os culturalistas dos anos

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

90/2000, finalmente, um escritor que conhece os meandros das lutas por


representatividade das minorias negras e de gênero. A rigor, abordagens
parciais e incompletas que não dão conta da complexidade do projeto
amadiano como intérprete literário da formação do Brasil.

2 — O ROMANCE HISTÓRICO NO BRASIL

O romance histórico é uma forma literária de cerca de duzentos anos,


com ampla repercussão crítica nas literaturas centrais e periféricas. Há
um consenso de que tal conformação narrativa foi criada pelo escritor
escocês Walter Scott, no início do século XIX, em decorrência direta
do romance social inglês do século XVIII, dos efeitos da era conturbada
das revoluções e dos novos horizontes estéticos advindos com a ascensão
definitiva do gênero romance no Ocidente (LUKÁCS, 2011, p. 38).
No romance histórico os eventos memoráveis não são mera docu-
mentação dos fatos, um painel inerte e trivial. São recorrentemente a
narração de episódios decisivos para o destino das personagens e para os
rumos da nacionalidade, numa explícita e empenhada acoplagem entre
a vida privada de entes de ficção, conhecidas ou anônimas, e a dimensão
pública dos acontecimentos notórios e notáveis. Em outras palavras,
uma profunda intersecção entre o plano existencial e o plano geral das
ações humanas de significação histórica, em vista das forças sociais em
disputa, representadas pelos atos de heróis medianos fictícios e persona-
lidades históricas coadjuvantes, em momentos de crise, de transição, de
incerteza, de mudança (JAMESON, 2007, p. 192).
Os documentos deixados, os dados conhecíveis (usos e costumes de uma
época etc) tomam parte na reconstrução e na interpretação do passado, de
tal modo, compreende-se o intento de recuperar estruturas sociais, políticas
e culturais do passado como preleção ao presente. Ademais, o romance

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

histórico evidenciou na figuração artística que o passado não está suplan-


tado em absoluto, suas implicações reverberam num presente instável que
influencia o futuro de pessoas, nações e culturas (KOHUT, 1997, p. 19).
Semelhante forma literária de extração histórica continuou em
evidência nas literaturas centrais e/ou periféricas ao longo das décadas,
entre o século XIX e XX, com maior ou menor projeção teórica e crí-
tica, a depender de situações conjunturais específicas de nações e de
continentes observados, tendo em conta os peculiares afluxos estéticos
e ideológicos do Naturalismo e do Modernismo, em evidente conexão
política com as amplificações das jornadas revolucionárias frustradas
de 1848, nomeadamente a alteração de perspectiva da História como
ação humana e/ou como ciência voltada ao conhecimento do passado.
No entanto, uma guinada significativa veio a suceder nas literaturas
periféricas, quanto à reconfiguração do gênero romanesco em tela,
especialmente nas literaturas latino-americanas, que turbinaram tal
gênero a partir dos anos 1960/70, com destaque para a problemática
da colonização e da autonomização de territórios sob a ocupação e o
domínio mercantilista europeu, desde o século XVI, o que reverberou
como projeto literário afim nas literaturas de outros continentes, como
a África e a Ásia. Em pauta, o questionamento da verdade histórica, a
ênfase na multiplicidade de pontos de vista, a impugnação de versões
hegemônicas, a dessacralização do passado, a subjetivação dos eventos
dominantes ou negligenciados, a metaficção contestadora, os paratextos
indiciários, dentre outros (PRIETO, 1998, p. 169).
No Brasil, a forma literária do romance histórico (Santos, 2011) tem
uma trajetória bastante semelhante à das literaturas de origem ocidenta-
lizante, sendo que, como um gênero literário transposto, nunca obteve
uma notabilidade crítica merecida, como tendência literária relevante
nestas paragens, como veio a incidir em determinadas literaturas da

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

América Latina. A despeito disso, José de Alencar é considerado o criador


do romance histórico produzido por cá, sob a injunção de Scott, Her-
culano e Finemore Cooper. O fator característico a ser sublinhado no
caso alencariano tem a ver com a convergência entre a ficção indianista
romântica e o romance histórico, com destaque para a obra O Guarani.
Dessa maneira, a produção ficcional de Alencar atrelava a encenação do
mito das origens à imaginação da nação moderna, posto que o principal
fundador do romance pátrio estendia a consciência histórica às prerro-
gativas da consciência nacional.
Afastando-se da modulação mítica para imaginar as origens da na-
cionalidade, temos um processo de presentificação da história brasileira
no romance de Machado de Assis, o que permite a leitura de Esaú e Jacó,
como um romance histórico, por exemplo, no contexto problemático
da passagem da monarquia para a república, com todas as implicações
contraditórias envolvidas: abolição do trabalho escravo, crescimento dos
centros urbanos e diversificação das classes sociais, numa ordem capitalista
doméstica semibárbara.
A sondagem histórica ganha distintos contornos inovadores quando a
figuração da matéria local está entranhada numa ficção regionalista que
explora as margens, as bordas de uma formação nacional caracterizada
pelas incongruências econômico-sociais que se sobressaem na formulação
estética da notação regional, sob o espectro da desigualdade acentuada,
numa dicção estilística característica, que se inicia no romantismo, per-
passa o naturalismo e permanece como tendência literária fundamental
na quadra do romance modernista de 1930, transformada pela consciência
do subdesenvolvimento. Assim, uma obra híbrida como Os sertões, de
Euclides da Cunha, pode ser interpretada como extraordinária narrativa
de pendor histórico por apreender os impasses de uma nacionalidade in-
completa, inconclusa, como reflexos de uma ordem rural arcaica, atrasada

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

e avessa à modernização, impasses incontornáveis da situação nacional


que viriam a ter grande impacto no projeto literário de um Graciliano
Ramos e de um Guimarães Rosa.
Todavia, o gênero em causa foi uma forma literária recessiva no siste-
ma literário brasileiro durante a sua vigência no alto modernismo. Na sua
modelagem convencional folhetinesca, acabou relegado à subliteratura,
com a obra de Paulo Setúbal e de Agripina de Vasconcelos. Ambos os
escritores, hoje esquecidos, escreveram especialmente sobre os ciclos his-
tóricos da mineração e da independência do país. A forma literária em
apreço somente alcança relevância crítica na nossa modernidade artística
consolidada, quando ocorreu a publicação completa da monumental saga
O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, sendo o maior empreendimento
estético do romance modernista local de extração histórica, que mimetiza
o longo processo de nossa formação interna, focalizando o problema
da nação, a partir do seu enquadramento em miniatura no âmbito da
província riograndense.
Nas décadas de 1970/80 em diante, certamente sob o influxo es-
tético e político do boom latino-americano, assiste-se no Brasil a uma
proliferação dessa modalidade narrativa de captação da história. Nosso
romance histórico contemporâneo granjeia, finalmente, maior notoriedade
crítica por aqui, com a publicação das obras de Ubaldo Ribeiro, Márcio
Souza, Josué Montello, Haroldo Maranhão, João Silvério Trevisan, Ana
Miranda, entre outros. O principal interesse narrativo localiza-se ainda
no tempo substancial dos descobrimentos e das lutas emancipatórias,
denotando mais uma vez profundo interesse pelos pilares fundacionais
da nacionalidade, num esforço de reinterpretação do tempo passado,
transfigurado, contudo, pelos moldes inovadores da ficção histórica da
segunda metade do século XX, na qual recursos estilísticos decisivos
como a paródia e a sátira recobrem o evento renomado de desconfiança
e de suspeita, por parte da voz narrativa, em face de uma autenticidade

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

factual a ser constantemente interpelada, contraditada pela composição


romanesca carnavalizada, aspectos reconhecíveis nas produções literárias
mais relevantes dos últimos decênios.

3 — SEARA VERMELHA: ROMANCE, HISTÓRIA E REVOLUÇÃO

História, revolução e interpretação da formação do Brasil são aspec-


tos evidentes no romance de Jorge Amado, destacando-se sua atuação
intelectual e artística em um tríplice espaço privilegiado do Estado
da Bahia: a zona cacaueira do sul litorâneo, o recôncavo e capital e o
sertão/caatinga. Com Seara vermelha, há uma importante mudança de
enquadramento no trajeto literário até ali: o autor afasta-se da região do
cacau e do cenário urbano da vida popular e localiza, assenta o relato
nos confins longínquos do interior baiano.
E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja
uma inumerável multidão de camponeses. São homens
jogados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos
de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em
busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm
de todas as partes do Nordeste na viagem de espantos,
cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencen-
do as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés
calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os
rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e
milhares se sucedendo sem parar (AMADO, 1981, p. 56).
Como típico “romance do nordeste” (LACERDA, 2020), no qual se
concatenam seca, cangaço e messianismo, o livro Seara Vermelha narra a
saga dos flagelados de uma típica família camponesa expulsa da terra natal
pelo domínio inconteste do latifúndio no sertão brasileiro. A primeira

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

parte do livro foca o sofrimento da família de retirantes, já a segunda


discorre sobre as trajetórias representativas de três filhos de um peculiar
clã sertanejo oprimido. José, o camponês transformado em Zé Trevoada,
o cangaceiro, homem de confiança de Lucas Arvoredo. Após a morte
do líder, assumiu o posto de cangaceiro mais perigoso das redondezas.
Jão tornou-se um soldado de polícia numa capital indeterminada de es-
tado, o qual tem por missão combater o bando de Lucas Arvoredo que
decidiu se unir ao Beato Estêvão, um líder religioso de origem popular
que atraía milhares de camponeses com sua pregação mística sedutora,
transformando-se numa inusitada ameaça à ordem secular do latifúndio.
Juvêncio, por sua vez, era muito jovem quando fugira de casa, tencionando
entrar para o mesmo bando de Lucas Arvoredo, mas os caminhos de ferro
o levaram para Recife, onde assentou praça como força de segurança.
Já no exército, o cabo Juvêncio ligou-se ao Partido Comunista do Brasil
(PCB), que apoiou a Aliança Nacional Libertadora (ANL) nas disputas
ideológicas dos anos 1930, uma frente política ampla que englobava
várias organizações e personalidades revolucionárias e democráticas, a
qual realizava intenso trabalho de agitação sediciosa à época.
A narrativa se inicia em uma fazenda situada em local incerto do
sertão nordestino, em seguida há a travessia dos retirantes pela caatinga
a pé, imediatamente a comprida viagem em navio de passageiros pelo
rio São Francisco até Pirapora/MG, e mais uma etapa de trem até São
Paulo, enfrentando todas as adversidades possíveis, inimagináveis e in-
concebíveis. Essa busca sofrida pelo suposto eldorado paulista prenuncia o
objetivo do autor: revelar o interior brasileiro subordinado à prerrogativa
da concentração da terra, da grande propriedade rural (im)produtiva,
que baliza a famigerada hinterlândia nacional, sustentada pela tríade
coronelismo político, banditismo social e messianismo religioso.

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

E os dias rolam sobre os viajantes cujos pés chagaram, as


feridas criaram casca e secaram, novas chagas se abriram
e o caminho não terminava. Jerônimo havia anotado o
dia da partida e todas as noites fazia conta de há quanto
tempo estavam viajando. Fazia porém mais de uma semana
que deixara de contar, como quem abandona uma tarefa
por inútil e cansativa. Não sabiam mais há quanto tempo
viajavam, rasgando a caatinga, parando de quando em
vez em fazendas, mas devia ser bem mais de mês porque o
mantimento que tinham calculado para trinta dias se aca-
bara totalmente. E eles haviam feito economia, diminuído
a ração de carne distribuída a cada um, nos últimos dias
tinham suprimido o jantar, apenas tomavam um pouco
de café antes de dormir. Estavam magros e rotos, quando
partiram pareciam camponeses pobres, agora se asseme-
lhavam a bandidos ou mendigos, os cabelos caindo pelas
orelhas, as barbas enormes (AMADO, 1981, p. 89-90).
O sertão figurado por Jorge Amado revela uma paisagem inóspita,
um espaço afastado do progresso, um cenário indômito, arcaico, atrasado.
Um território circunscrito por coronéis, cangaceiros, beatos, trabalhadores
rurais explorados e destituídos dos direitos elementares. Nesse sentido, o
recorte geográfico opõe-se ao litoral civilizado, visto que essa terra-longe
é assinalada pelo retrocesso, pela subalternidade, pela barbárie. Note-se
que não é a seca a causadora primordial do êxodo compulsório, mas a
questão da ocupação da terra, ou seja, os retirantes são os espoliados do
latifúndio, forma social e econômica de origem colonial e escravocrata.
Sendo assim, o percurso existencial acidentado dos filhos de Jucundina
e Jerônimo expressa iconicamente as modificações sociais e históricas
possíveis e desejáveis, uma vez que optam por trilharem caminhos dís-

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

pares, representando na narrativa as principais forças tensionadas, entre


a ordem e a desordem: a segurança pública e o exército ou o cangaço e
o messianismo. José adere ao banditismo social, Jão participa da volante
policial mantida para a repressão ao milenarismo sertanejo e Juvêncio
ingressa no exército, vindo a ser um dos líderes impetuosos da Intentona
Comunista de Natal/RN, por demonstrar imensa bravura e ousadia
descomunal. Seu heroísmo histórico é reflexo de sua atuação política
arrojada, premente necessidade de um tempo de “homens partidos”.
Foi da boca de Bastião que Zé Trevoada teve as notícias da
fazenda e dos seus. Soube da venda pelo doutor Aureliano,
de como haviam tomado as terras dos colonos, da viagem,
do tiro que Gregório dera em Artur e que não matara o
capataz. A última novidade que Bastião tinha a respeito
dos parentes de José era a que lhe transmitiram uns homens
com quem se encontrara e que voltavam do sul. Haviam
estado com Jerônimo mais além da caatinga e disseram
que a família estava reduzida a dois meninos, Marta, os
velhos e João Pedro. Seis pessoas, tão magras que mais
pareciam bichos do que gente (AMADO, 1981, p. 221).
Longe de Jão pensar que seu irmão José, mais moço que
ele um ano, estava no bando de Lucas Arvoredo, montava
sentinela com uns cangaceiros em frente de onde ele, Jão
montava sentinela com alguns soldados. Fora o primeiro
a partir, abandonar a família e a fazenda, procurando suas
melhoras que não havia futuro ali, na pequena terra que o
pai lavrara e que não era dele sequer. Quando José arribou
com Lucas Arvoredo, na noite de ataque à fazenda, ele já
era soldado de polícia numa capital distante e só muito
tempo depois soube que o irmão também partira mas sem

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

que lhe mandassem dizer qual o seu destino (AMADO,


1981, p. 239).
O oficial o encarregara de aliciar os sargentos e os cabos,
estabelecer ligações. Juvêncio tinha por aquela época vinte
e um anos e numa autocrítica posterior sobre o movimento
de 35, realizada na cadeia, não tivera dúvidas em reconhe-
cer que por aquele tempo então era golpista, só acreditava
mesmo na força das armas e dos levantes militares. Ao
demais perdera completamente o contato com o Partido,
desde que fora transferido de São Paulo, e agia por conta
própria (AMADO, 1981, p. 275).
Como um mestre incontestável na arte de armar o enredo, a intriga,
a fábula, Jorge Amado utiliza planos narrativos convergentes, matizando
esteticamente os interesses mais diretos da partidarização política da
obra, numa condução do relato que prioriza a trajetória acidentada de
uma família sertaneja acossada pela miséria e os caminhos distintos e
paradigmáticos de três descendentes diretos. Assim, a narração começa
com uma família de meeiros vivendo no sertão marcado a ferro pela
brutalidade coronelística, então ocorre a ruptura na peripécia, quando os
trabalhadores são expulsos da terra e são impelidos à condição de retiran-
tes, atendendo à verossimilhança histórica brasileira. Após acompanhar
o infausto itinerário da família de retirantes martirizados na primeira
parte da narrativa, Jorge Amado delineia os decursos individuais mais
relevantes, tentando descortinar as opções disponíveis aos despossuídos
da terra, enxotados, repelidos da grande propriedade rural propulsora
da longeva desigualdade social brasileira. Num primeiro momento, o
foco da narrativa se deteve num núcleo familiar sertanejo emblemático.
Um casal de agricultores com seus filhos e netos, mais uma tia demente
agregada. A posteriori, cada um dos membros da estirpe dos condenados

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

da terra desdobra-se entre as múltiplas possibilidades que vão surgindo


aos campesinos na diáspora sertaneja inevitável. Mas, de fato, os ver-
dadeiros protagonistas são os irmãos que tinham abandonado a família
há algum tempo, antes da expulsão das terras, por não encontrarem ali
respostas, alternativas para seus anseios, aspirações de uma vida material
mais digna e decente.
Jorge Amado conduz a urdidura ficcional de beatos, policiais e can-
gaceiros a um desfecho funesto e aziago. Como se negasse a possibilidade
de saída honrosa por algum destes caminhos. Nenhuma das escolhas
ligadas à perpetuação da miséria no campo ou até na cidade é viável
historicamente. Os que estão ainda submetidos aos ditames do mundo
rural arcaico são tragados pelo sinistro desfecho. Resta apenas o filho que
entrou para o exército, e que se tornou militante comunista. É o verdadeiro
herói do romance. Certamente é a parte da obra mais vinculada à estética
do realismo histórico, como mimese da formação nacional brasileira. O
rapaz engajou-se no exército e também no partido de agitação das mas-
sas. Converteu-se em principal líder no levante que levou os revoltosos a
governarem a cidade de Natal por cerca de quatro dias. Com a derrota do
movimento e a repressão, termina preso, porém o horizonte emancipatório
não se encerra aí. A metafórica “colheita” promete os frutos vindouros (a
militância segura do sobrinho Tonho pelo interior do país).
A obra está enquadrada na ótica explicitamente empenhada do
escritor. Faz parte de sua fase de engajamento político mais categórico.
Ao fabular sobre a desdita do migrante nordestino que se arrasta rumo à
morte, com o intento de chegar a São Paulo, demonstra igualmente como
surgem e desenvolvem a violência e miséria no campo e são responsáveis
pela calamidade de múltiplos aspectos do nosso sempre atual subdesen-
volvimento renitente, levando a uma consciência catastrófica do escritor
de tal conjuntura histórica. Seara Vermelha reflete, assim, o desamparo

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

dos pobres explorados pelos latifundiários, verdadeiros senhores feudais


anacrônicos de grandes extensões territoriais. Os três filhos focalizados
representam a tríplice resposta presumível que cabe ser dada à atrocidade
dos poderosos senhores de terra, mandatários do atraso: José vinga-se
pelo aliciamento no cangaço, João acolhe com alguma passividade as
respostas messiânicas e as prerrogativas do poder de um Estado poli-
cialesco e Juvêncio, o herói modelar do romance, reage com convicção
altiva, aderindo às renhidas lutas políticas do tempo histórico em disputa.
O livro em causa é uma das obras menos frequentadas criticamente
do nosso autor e que muito se apropria da estética predominante no
típico romance social de 30, período da literatura brasileira conhecido
como o marco da presença dos signos referentes ao regionalismo crítico
caracterizado pela consciência dilacerada do subdesenvolvimento: a re-
beldia incerta do cangaço, o voluntarismo anódino do messianismo e a
determinação da militância política. A marca d’água da ficção política
de 30, com o foco na exploração do trabalhador rural, nas desigualdades
sociais e nas intensas lutas pela emancipação do campesinato, reaparece
com todo o ímpeto nesta narrativa longa amadiana do pós-guerra.
O primeiro movimento do romance foi a figuração histórica do
deslocamento forçado das populações alijadas do progresso, a conhecida
imigração interna brasileira, o êxodo coagido da terra de origem. São
“os caminhos da fome”. Num segundo movimento, temos “as estradas
da esperança”, ocupado diegeticamente com os destinos cruzados dos
filhos da diáspora sertaneja, com enfoque político mais detido no terceiro
rebento, Juvêncio, que foi incorporado a um dos batalhões regulares de-
signados a sufocar a Revolução Constitucionalista em São Paulo, sendo
que logo depois ingressa no Exército, indo servir em Mato Grosso e na
fronteira do Amazonas: verdadeira preleção. Após longas jornadas pelo
território nacional, é transferido para Natal, vindo a participar do notório

167
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

levante, da intentona comunista de 35, como um dos seus líderes mais


astutos. Desse modo, neste romance de Amado, a “questão camponesa”
está nitidamente associada ao projeto revolucionário vislumbrado:
Juvêncio viera, com outros condenados políticos, de Fer-
nando de Noronha. Na Ilha Grande, estudava. Para ele a
prisão foi a universidade. Os nove anos que levou de cadeia
em cadeia, em Natal, no Recife, na Correção e na Detenção
no Rio de Janeiro, em Fernando de Noronha e, por fim,
na Ilha Grande, foram de aprendizado. Os companheiros
mais esclarecidos ajudavam-no, Leu, finalmente, aqueles
livros que cobiçava nos dias anteriores à revolução de 35.
Em Engels aprendeu que a “liberdade é o conhecimento
da necessidade” e pensou que o sertão estava aprendendo,
com sangue e dor. Tanto falava no sertão, nos camponeses
explorados, que até faziam pilhéria com ele. Mas, tanto
eles como os de fora, os que lutavam na ilegalidade, sabiam
que deviam cultivar no moço sertanejo o interesse pelo
problema do campo. E lhe enviavam todos os materiais,
livros e folhetos que tratavam da questão camponesa. Ele
os devorava nos dias longos da prisão (AMADO, 1981,
p. 327-328).
Assim, observamos nesta obra amadiana a figuração das trilhas
históricas que revelam os acontecimentos determinantes da primeira
metade do século XX. A permanência do latifúndio, a penosa migração
interna, a exploração dos trabalhadores rurais permitem evidenciar as
principais questões sociais que movimentam a diegese concebida: são os
dilemas sociais marcantes do escritor comprometido do ano 30. Jorge
Amado, ao escrever Seara Vermelha, estabeleceu uma linha tênue entre o

168
HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

discurso histórico e o ficcional, pois recorre à memória coletiva, ao dado


documental, ao testemunho público para problematizar as contradições
marcantes da modernização brasileira: o atraso e o retrocesso no sertão
em sua conexão com as diretrizes políticas reacionárias ditadas pelas
elites dirigentes instaladas nos centros urbanos. O sentido do realismo
histórico presente na obra revela o compromisso social do escritor que
está em sintonia com um período caracterizado por uma agitação polí-
tica pulsante e consequente: o empenho pelos “problemas brasileiros”.
Novamente de acordo com Eduardo de Assis Duarte:
A ampliação de perspectiva, ao lado do deslocamento da
topografia textual, prossegue a tendência, já antevista na
saga ilheense, de aprofundamento do testemunho histórico
e de inserção nos problemas brasileiros. Neste propósito, se
encaixam a diáspora camponesa, o banditismo social, a re-
volta messiânica e a insurreição comunista de 1935, narrados
numa tonalidade épica sintonizada com o ponto de vista
do oprimido. O romance extrai sua força justamente desse
compromisso com os derrotados, da atitude – política – de
denunciar a miséria e incitar à mudança social através da nar-
ração (quase sempre afirmativa e solitária) desses momentos
em que aflora a revolta do povo (DUARTE, 1996, p. 167).
A bela síntese crítica exposta acima orientou a nossa compreensão
promissora de um dos romances menos valorizados do nosso autor
baiano, reavaliando assim Seara vermelha sob a ótica da longa tradição
do realismo histórico nos seus impasses e contradições mais veementes e
instigantes, notadamente num país como o nosso de contrastes gritantes,
conflitos dilacerantes, entraves acachapantes.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na obra de Jorge Amado, há uma identificação dos aspectos nefastos


de nossa modernidade periférica presentes ostensivamente em todos os
romances: a exploração arcaica do trabalhador do campo e da cidade,
a presença implacável do latifúndio que impede a ocupação racional e
justa do solo, as dificuldades de plena inserção de novos atores sociais no
espaço público democrático, como a mulher e o negro. O comprometi-
mento intelectual de Jorge Amado apresenta os entraves de um projeto
modernizador inconcluso por aqui, destacando o alto preço de uma
modernização atrelada ao capitalismo internacional que aprofunda as
desigualdades sociais, subalternizando importantes grupos sociais que
encontram na identidade política, cultural e também religiosa uma das
únicas formas de resistência ao processo de homogeneização dos novos
modos de vida e trabalho. Estamos diante dos impasses da vida brasileira
que são representados na obra de Jorge Amado desde os anos de 1930 e
permanecem atualíssimos como problemas não superados e desafiadores
de uma nacionalidade integradora, mormente presente no romance Seara
vermelha. Para Alfredo Wagner Berno de Almeida:

Visto sob este aspecto, S. V. seria o exemplo mais ilustrativo


como expressão do “povo”, concebido que foi através de
antagonistas diretos, que espelham, ao nível do processo
produtivo, o confronto imediato tido como etapa impres-
cindível: “camponeses” versus “latifundiários”.
Esta contradição só ganha sentido tendo como pano de fundo a
bandeira da Unidade Nacional, em que é subjacente a ideia do “partido
do povo”, em que amplas camadas sociais são atingidas pela atuação
dos militantes comunistas, porque se trata também de arrebatá-las aos
partidos políticos da “burguesia”, não somente em termos eleitorais

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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO BRASILEIRA NO ROMANCE SEARA VERMELHA, DE JORGE AMADO

mas, sobretudo, em termos ideológicos, através da “educação popular”


(Almeida, 1979, p. 204). Grifos do autor
Em face de tais considerações, podemos afirmar, finalmente, que
o projeto literário de Jorge Amado foi apreendido como um horizonte
estético e ideológico que indicava rumos alvissareiros em direção aos
caminhos da emancipação das classes subalternas em solo brasileiro,
territórios sob o tacão fascista-estadonovista, subterrâneos da liberdade
a serem ultrapassados historicamente. Passadas tantas décadas, a extensa
obra amadiana continua a ser admirada e reconhecida por seus aprecia-
dores, aquém e além-mar, porque o anseio de autodeterminação humana
ultrapassa tempo e espaço específicos e continua a fazer todo o sentido
como ideário iluminista absoluto e universal, especialmente em épocas
sombrias de obscurantismo e de negacionismo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e


literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
ALVES, Ivia. As relações de poder da crítica literária e os romances de
Jorge Amado In: FRAGA, Myriam; FONSECA, Aleilton; HOISEL,
Evelina (orgs.). Jorge Amado: 100 anos escrevendo o Brasil. Salvador:
Casa de Palavras, 2013. p. 91-122.
AMADO, Jorge. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras.
In: VVAA. Jorge Amado: povo e terra - 40 anos de literatura. São
Paulo: Martins, 1972. p. 3-22.
AMADO, Jorge. Seara vermelha. 37. ed. Rio de Janeiro: Record,
1981.
BERGAMO, Edvaldo. Ficção e convicção: Jorge Amado e o
neo-realismo literário português. São Paulo: Editora da Unesp, 2008.

171
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 2 ed,


São Paulo: Ática, 1989.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de
utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN, 1996.
JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Tradução
de Hugo Mader. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, nº 77,
185-203, 2007.
KOHUT, Karl. La invención del pasado. Frankfurt: Vervuert;
Madrid: Iberoamericana, 1997.
LACERDA, Aurélio Gonçalves de. Seca, cangaço e messianismo no
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LAFETÁ, João Luís. 1930: a crítica e o modernismo. 2 ed, São
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LUKÁCS, Georgy. O romance histórico. Tradução de Rubens
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PRIETO, Célia Fernandez. Historia y novela: poética de la novela
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no Brasil. Floema - Caderno de teoria e história literária (Dossiê: o
romance no século XIX), n. 9, p. 283-303, jul./dez 2011.

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JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA


RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

Elena Manzato1

Jorge Amado (1912-2001) é um autor brasileiro, e sobretudo baiano,


reconhecido mundialmente. Chegou a estabelecer recordes mundiais como
escritor mais traduzido em 1996 (TOOGE, 2011, p. 8), assim pode-se
afirmar que ele contribuiu fortemente a divulgar uma certa imagem do seu
Brasil e da sua Bahia. Como leitora italiana — antes de ser pesquisadora
da obra de Jorge Amado — fiquei fascinada desde o primeiro momento
pela religiosidade afro-brasileira e pela cultura iorubá e isso levou-me a
aprofundar várias questões. O ponto de partida é a minha pesquisa de
doutorado sobre a representação das mulheres amadianas nos paratextos
italianos. Durante a pesquisa, quando o meu olhar começou a se enri-
quecer de estudos e diálogos com pessoas de santo, além da curiosidade,
surgiram vários pontos críticos: uma evidente sexualização da mulher
negra e um olhar eurocêntrico e colonizador. Esse olhar envolve a reli-
giosidade afro-brasileira, já que não precisa dizer que os orixás e o povo
de santo perpassam grande parte da obra amadiana.
O paratexto, lugar-limiar, constituído por elementos que represen-
tam as portas de entrada do livro, foram um primeiro trampolim para
mergulhar na temática religiosa que se encontrava nas obras. Muitas
vezes os processos eurocêntricos eram mais evidentes nos elementos
paratextuais do que no processo tradutório do texto em si. A esse
1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da
Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES. Integrante do GEFLIT,
Grupo de Estudos Feministas em Literatura e Tradução.

173
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

propósito, antes de apresentar o corpus específico, vou introduzir uma


definição de paratextos: “Um paratexto é um lugar-limiar conscien-
temente criado para um texto e que tem o potencial para influenciar
a(s) forma(s) nas quais um texto é recebido” (BATCHELOR, 2018, p.
142)2. Essa definição é uma reelaboração daquela de Gérard Genette,
adaptada aos Estudos da Tradução e a um estudo mais amplo sobre os
elementos paratextuais3.
Na prática, quando falamos de paratextos, normalmente incluímos:
capas, contracapas, folhas de rosto, orelhas do livro, prefácios, posfácios,
notas de rodapé e notas de quem traduziu, glossários etc. Neste caso,
o foco será nas notas das tradutoras e dos tradutores e nos glossários.
Estes elementos, pouco analisados ao nível teórico, muitas vezes revelam
alguns comportamentos tradutórios mais do que a própria tradução. Mais
especificamente, o corpus de notas e glossários em análise é o seguinte:
— Notas de tradução de Teresa Batista stanca di guerra (tradução
de Tereza Batista cansada de guerra): nove edições italianas entre 1975
e 2014. As 86 notas são exatamente as mesmas em todas as edições. A
tradução, que recebeu um prêmio do Instituto Ítalo Latino Americano
em 1975, é de Giuliana Segre Giorgi (1911-2009), militante comunista
que foi perseguida durante a II guerra mundial por ser de religião ju-
daica. Também foi tradutora de Machado de Assis, Mário de Andrade
e Osmar Lins.
— Glossários das duas edições de Sudore (tradução de Suor) de 1985
e de 1999. A tradução de 1985, publicada pela editora Mondadori, é
2
Em inglês no texto original: “A paratext is a consciously crafted threshold for a
text which has the potential to influence the way(s) in which the text is received”.
Tradução da autora.
3
Além de a definição de Kathryn Batchelor ser mais pontual e específica dentro
do campo de pesquisa dos Estudos da Tradução, a escolha de não utilizar a obra
de Genette é também decolonial, já que o autor francês faz algumas afirmações
machistas e etnocêntricas em suas obras.

174
JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

de Claudio M. Valentinetti, estudioso de cinema e tradutor. Traduziu


Gabriel García Márquez, alguns contos de Fernando Pessoa, Viva o povo
brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro e Não verás país nenhum, de Ignácio de
Loyola Brandão. Atualmente mora em Brasília. Esse primeiro glossário
tem 44 verbetes, três desses falam de candomblé. A tradução de 1999,
publicada pela editora Einaudi, é de Daniela Ferioli, tradutora de João
Cabral de Melo Neto, Oswald de Andrade, Darcy Ribeiro e Haroldo
de Campos. Amiga de Jorge Amado, morou em São Paulo por muitos
anos. Retraduziu várias obras de Amado a pedido da editora Einaudi. O
glossário dela tem 26 verbetes, apenas um trata de candomblé.
— Glossário de Jorge Amado: romanzi (2002). Trata-se da prestigiosa
coleção “I Meridiani” da editora Mondadori. É uma edição crítica em
dois volumes que contém: um ensaio da crítica literária Luciana Stegagno
Picchio, traduções revisadas e glossário organizados por Daniela Ferioli,
biobibliografia do autor, sinopses dos textos (Il Paese del carnevale, tra-
duzido por Elena Grechi, Cacao, traduzido por Daniela Ferioli, Jubia-
bá, traduzido por Elio Califano e Dario Puccini, Gabriella, garofano e
cannella, traduzido por Giovanni Passeri, La doppia morte di Quincas
l’acquaiolo, traduzido por Paolo Collo, Dona Flor e i suoi due mariti,
traduzido por Elena Grechi — volume I —, La bottega dei miracoli,
traduzido por Elena Grechi. Tereza Batista stanca di guerra, traduzido
por Giuliana Segre Giorgi, Alte uniformi e camicie da notte, traduzido por
Elena Grechi, I turchi alla scoperta dell’America, traduzido por Luciana
Stegagno Picchio — volume II). O extenso glossário tem 196 verbetes,
dos quais 62 tratam de candomblé.
Antes de entrar nas especificidades da análise, é oportuno fazer uma
premissa. Não sendo iniciada e tendo estudado cultura ioruba e práticas
ligadas ao candomblé como pessoa leiga, o exame dos paratextos não visa
criticar a “definição” em seu conteúdo, e sim a apontar alguns processos
tradutórios problemáticos. De fato, ao analisar as notas de tradução e

175
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

os glossários, os procedimentos que emergem mais frequentemente nas


descrições ligadas ao candomblé são: a) superficialidade; b) foco no sin-
cretismo com a religião católica; c) aproximação semântica à bruxaria.
Além disso, o próprio fato de especificar qualquer detalhe sobre a
religiosidade afro-brasileira já poderia ser considerado um procedimento
eurocêntrico, um tratamento reservado a elementos culturais Outros,
exóticos e exotizados. De fato, conforme Antoine Berman (1995, p.
30), “[...] a tradução verdadeiramente ética deve evitar tanto o ‘efeito
de estranhamento’ abusivo como também o efeito de naturalização
abusivo”4. Nos textos analisados, os termos culturalmente marcados ou
ligados ao candomblé permanecem muitas vezes em itálico, provocando
estranhamento. Em seguida, quem lê é levado(a) a explorar o glossário
ou as notas para entrar em contato com os termos estrangeiros, e a defi-
nição que encontra é, como veremos em seguida, marcado por um olhar
europeu e colonizador.
As notas de Teresa Batista stanca di guerra, em tradução de Giulia-
na Segre Giorgi são 86, das quais 24 falam de religiosidade ou cultura
afro-brasileira e estão ligadas aos seguintes termos: acarajé, atabaques,
babalaôs, babalorixá, candomblé, capoeira, cavalo-de-santo, ebó, ebô-
mim, ialorixá, Iansã, Iara, Iemanjá, mãe de santo, nagô, angola, gegê,
ijexá, cabinda, obí, Ogum, Omolú, orixá, Oxalá, Oxóssi e Oxum, pejí,
terreiro de encantado. Em primeiro lugar, é interessante notar que esse
paratexto, as notas de tradução não mudam ao longo do tempo, não houve
nenhuma atualização: as notas da primeira edição de 1975 permanecem
inalteradas até as últimas edições, ou seja, as de 2018 (reimpressão e
edição digital mais recentes).
No romance são muitos os orixás que aparecem, que suportam e
4
Em francês no texto original: “La traduction réellement éthique doit éviter tout
aussi bien l’effet ‘étrangeté’ abusif que l’effet de naturalisation abusif ”. Tradução da
autora.

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JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

protegem a menina Tereza, mas apenas alguns mereceram uma descri-


ção em nota. São esses Oxóssi, Oxum, Oxalá, Iemanjá, Iansã, Ogum
e Omolu. Xangô e Exu, apesar de aparecerem repetidamente ao longo
do romance, não são descritos em nota — logo Exu, diria eu. Curioso
é também o fato de que Xangô aparece em algum ponto da tradução
no feminino:
A aflição de Tereza, por mais que ela encobrisse, não passou
despercebida à mãe-de-santo:
— Que ocorre com você, minha filha?
— Nada, mãe.
— Não minta a Xangô, jamais. (AMADO, 2008, p. 435)
L’angoscia di Teresa non passò inosservata alla mãe-de-
-santo, nonostante i suoi sforzi per nasconderla:
— Che cosa ti sta succedendo, figlia mia?
— Niente, madre.
— Non mentire alla Xangô, mai. (AMADO, Segre Giorgi,
2014, p. 525
Ao descrever os orixás em nota, o tipo de definição é por vezes super-
ficial: fala-se de divindades, divindades secundárias e frequentemente são
utilizadas referências à mitologia grega e ao cristianismo. Assim, Oxum é
apresentada como náiade aquática e como iara. Além disso, é perceptível
a constante escolha de aproximar os orixás do cristianismo, preferindo
mencionar mais vezes os santos cristãos com os quais são sincretizados,
em detrimento de alguma descrição com as características principais das
entidades — que também suportaria a aproximação, por exemplo, da
protagonista com Iansã. Dessa forma, Oxóssi é descrito como protetor
dos caçadores e equivalente a São Jorge. Outro exemplo é a descrição

177
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

de “obí”, na qual é especificado o nome latim da planta, mas não se faz


menção à sua importância nos ritos afro-brasileiros.
Outro elemento recorrente é o uso de termos italianos ligados
à bruxaria, como stregone, fattucchiere(a) referidos a “babalorixá” e
­“mãe-de-santo”. Apesar de não terem uma explícita conotação depre-
ciativa, essas palavras aproximam semanticamente as importantes guias
do terreiro a certas práticas ainda hoje malvistas, fossilizando assim um
estereótipo e demostrando um certo racismo religioso.
O glossário da primeira edição de Sudore, de 1985, contém 44 verbe-
tes e o segundo 26. Destacarei apenas dois verbetes, mas que merecem
um olhar aprofundado. O primeiro é ligado à aproximação à bruxaria
introduzida acima. Desse modo, o “despacho” é descrito como uma
stregoneria, uma fattura, ou seja, um feitiço “típico das religiões africa-
nas no Brasil”5. O segundo refere-se à definição de Ogum: “Divindade,
no rito Nagô, da guerra. Espírito de raça branca [sic] identificada em
alguns santos da iconografia católica, sobretudo São Jorge”6 (grifo meu).
Agora, podemos até supor que o autor quisesse falar de sincretismo, mas
o resultado é a afirmação que Ogum é um espírito de “raça branca”. Isto
parece-me não pouco problemático. Queria acrescentar que o tradutor
da primeira edição de Suor também traduziu o romance Viva o povo
brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, a aqui também há um glossário em
que as representações sincréticas são preponderantes.
O glossário da coleção “I Meridiani”, de 2002, reúne quase 200
verbetes, dos quais individuei 62 que falam diretamente ou indireta-
mente do candomblé, dos seus rituais, dos objetos sagrados, do panteão
ioruba etc. Pode-se identificar um trabalho de pesquisa, especialmente
5
Tradução da nota ligada ao termo “despacho”, do tradutor Claudio M. Valentinetti.
6
Em italiano no texto original: “Divinità, nel rito Nagô, della guerra. Spirito di
razza bianca identificata in alcuni santi dell’iconografia cattolica, soprattutto San
Giorgio”. Tradução da autora.

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JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

nas descrições dos objetos rituais — como, por exemplos, abebê, agogô,
ebiri, eruexim — que são descritos esteticamente e ligados às entidades.
À primeira vista, as descrições dos orixás também são mais aprofunda-
das, mencionando características e saudações. Contudo, um olhar mais
atento revela algumas questões problemáticas.
Em primeiro lugar, o uso em italiano da palavra negro em vez de nero,
não deveria estar presente nessa — e em nenhuma – publicação, já que
tem uma clara conotação negativa e depreciativa na língua de chegada.
A palavra aparece na descrição de “afoxé” — “cortejo carnavalesco dos
negri que cantam em nagô”7 — e de “batuque” — “percussão, e em ge-
ral as danças negre”8. No que se refere à aproximação à bruxaria, refiro
aqui a definição de “mandinga”: “Acontecimento sobrenatural, bruxaria,
sortilégio”9, e também destaco a definição de “macumba”, que mistura
sincretismo e bruxaria: “Cerimônia de sincretismo religioso, candomblé,
também sinônimo de bruxaria”10 .
Dentre as descrições dos orixás, três são merecedoras de menção:
aquelas de Exu, de Omolu e de Xangô. A descrição do mensageiro dos
orixás carrega evidentemente os muitos preconceitos a respeito dessa
entidade:

Denominado “o compadre”, mensageiro dos outros orixás,


facilmente irritável e de péssimo caráter, é o primeiro que se

7
Deixei em itálico a palavra para sublinhar a conotação diferente que tem em
italiano, no texto original: “Corteo carnevalesco dei negri che cantano in nagô”.
Tradução da autora.
8
Ver nota antecedente. Em italiano no texto original: “Percussione, e in genere le
danze negre”. Tradução da autora.
9
Em italiano no texto original: “Avvenimento soprannaturale, stregoneria,
sortilegio”. Tradução da autora.
10
Em italiano no texto original: “Cerimonia di sincretismo religioso, candomblé,
anche sinonimo di stregoneria”. Tradução da autora.

179
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

homenageia fazendo o “despacho”, ou seja, oferecendo-lhe


trigo tufado e farinha com azeite de dendê para convencê-lo
a se afastar.11
A primeira impressão de quem lê essa descrição é que se trata de uma
divindade perigosa ou má, que é necessário afastar, mas pelo menos não
se menciona o sincretismo com o diabo da tradição cristã. Omolu, porém,
não recebe um melhor tratamento, já que é definido “demoníaco”. No
que se refere a Xangô, nota-se uma confusão sincrética, pois afirma-se
ser sincretizado com Santa Bárbara.
Refiro também o verbete de “iabá”: “a sacerdotisa mais importante do
culto ibejis, diaba que esconde o rabo”12 . No dicionário Caldas Aulete,
encontra-se a seguinte definição: “No candomblé e em outras religiões
afro-brasileiras, termo us. para designar cada um dos orixás de energia
predominantemente feminina (p. ex.: Iemanjá, Nanã, Oxum, Iansã, Obá,
Euá etc.)” (CALDAS AULETE, 2021, online), e, conforme o Dicionário
Yorubá Português, ìyá àgbà é “avó, matriarca, mulher idosa”. Nas referências
atuais já não se fala de “iabá” como sacerdotisa ligada ao culto dos ibejis,
mas provavelmente essa parte da definição italiana provem do Dicionário
Aurélio de 1986, que o menciona. Porém, a segunda parte da descrição
não tem contato algum com as definições, tratando-se provavelmente de
uma confusão com a descrição da personagem Iaba – que se torna em
seguida Negra Doroteia — do romance Tenda dos Milagres. Na obra, de
fato, a personagem é descrita como “uma diaba com o rabo escondido”
(AMADO, 2001, p. 118).

11
Em italiano no texto original: “Detto ‘il compare’, messaggero degli altri orixás,
facilmente irritabile e dal pessimo carattere, è il primo a cui si rende omaggio
facendogli il ‘despacho’, ossia offrendogli grano soffiato e farina con olio di palma
per convincerlo ad allontanarsi”. Tradução da autora.
12
Em italiano no texto original: “La sacerdotessa più importante del culto ibejis,
diavolessa che nasconde la coda”. Tradução da autora.

180
JORGE AMADO EM ITALIANO: A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA NOS PARATEXTOS

Para finalizar os comentários acerca do glossário de Jorge Amado: i


romanzi (2002), gostaria de citar a definição de “candomblé”: “Cerimônia
ritual de origem africana celebrada no lugar sagrado, o terreiro. O cele-
brante é chamado pai-de-santo (padre-di-santo) e preside à encarnação
das diferentes divindades nos iniciados”13
Além das faltas que pode apresentar uma definição tão breve dessa
religião de matriz africana, podem-se notar algumas aproximações ao
cristianismo: em primeiro lugar, o pai de santo como sacerdote, como
celebrador do culto. Na obra de Jorge Amado, são muitas as ialorixás, as
mães-de-santo mencionadas. Apesar disso, essa descrição deixa entender
que as mulheres não podem ocupar o cargo mais alto no candomblé.
Aliás, a definição de “mãe-de-santo” nesse mesmo glossário, põe a atenção
na função de “educadora das iniciadas” em detrimento da função de ce-
lebrante da ialorixá. Esse procedimento relega a mulher à esfera privada,
da educação, do cuidado; conforme Lélia Gonzales (1984), isso acontece
mais ainda quando se trata de mulheres negras brasileiras, ainda vistas
como domésticas, como mulheres a serviço dos outros.
Infelizmente, os processos tradutórios apresentados ao longo desse
artigo – aparentemente cheios de boas intenções, que visam “instruir”
o(a) leitor(a) italiano(a) sobre as práticas religiosas afro-brasileiras – re-
presentam as mesmas práticas descritas pelo babalorixá Sidnei Barreto
Nogueira (2020) na introdução de seu livro Intolerância religiosa. O
autor fala de outra introdução de um livro do bispo Edir Macedo, em
que as aproximações semânticas revelam processos de “satanização”, de
“instrução”, de “clareamento” de qualquer prática de origem africana. O
discurso eurobrancocolonizador não reconhece esses espaços de práticas
espirituais pelo que são:
13
Em italiano no texto original: “Cerimonia rituale di origine africana celebrata
nel luogo sacro, il terreiro. L’officiante è chiamato pai-de-santo (padre-di-santo) e
presiede all’incarnazione delle diverse divinità negli iniziati”. Tradução da autora.

181
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Uma CTTro [Comunidade Tradicional de Terreiro] é


um espaço quilombola que mantém saberes ancestrais de
origem africana que são parte da identidade nacional. Um
espaço de existência, resistência e (re-)existência. Um espaço
político. Território de deuses e entidades espirituais pretas,
por meio dos quais se busca a prática de uma religiosidade,
a um só tempo terapêutica e sócio-histórico-cultural, que
se volta para o continente africano, berço do mundo no
Novo Mundo. (NOGUEIRA, 2020, p. 136 k.p.)
Em conclusão, os paratextos analisados, em sua tentativa de “educar”
quem lê sobre as religiões afro-brasileira, ainda revelam aspectos proble-
máticos muitas vezes etnocêntricos, eurocêntricos e racistas. O auspício
de que novas traduções sejam feitas, portanto, não tem a ver apenas com
questões linguísticas, mas sim com as questões políticas que sempre são
subjacentes a qualquer projeto linguístico e processo tradutório.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Sudore. Tradução de Claudio M. Valentinetti.


Milano: Mondadori, 1985.
AMADO, Jorge. Sudore. Tradução de Daniela Ferioli. Torino:
Einaudi, 1999.
AMADO, Jorge. Suor. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. Posfácio de
Lygia Fagundes Telles, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AMADO, Jorge. Teresa Batista stanca di guerra. Torino: Einaudi, 2014.

182
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

BATCHELOR, Kathryn. Translation and paratexts. New York,


London: Routledge, 2018.
BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions. Paris:
Gallimard, 1995.
COLLO, Paolo. Jorge Amado: Romanzi. Volume I. Milano: Arnoldo
Mondadori, 2002.
COLLO, Paolo. Jorge Amado: Romanzi. Volume II. Milano:
Arnoldo Mondadori, 2002.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In:
Revista Ciências Sociais, 1984.
HOJE, Anpocs, p. 223-244.
IABÁ. In: DICIONÁRIO Caldas Aulete. Rio de Janeiro: Lexikon
Editora Digital, 2020. Disponível em: http://www.aulete.com.br/iaba.
Acesso em: 07 setembro 2021.
NOGUEIRA, Sidnei Barreto. Intolerância religiosa. São Paulo:
Pólen, 2020. (Coleção Feminismos plurais).
TOOGE, Marly D’Amaro Blasques. Traduzindo o Brazil: o país
mestiço de Jorge Amado. São Paulo: Humanitas. FAPESP, 2011.

183
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

AMADO AXÉ DE MAR MORTO

Gildeci de Oliveira Leite1

INTRODUÇÃO

Em que medida o romance amadiano Mar Morto (1936) possui


fidelidade à afro-brasilidade e afro-baianidade? Jorge Amado teria
conseguido criar uma narrativa conectada com aspectos da mitologia
afro-brasileira, produzindo personagens, que podem ser comparados a
orixás e outras representações negras? O texto problematiza as questões
sugeridas, a partir das ações de alguns personagens, prioritariamente,
Francisco, Lívia e Guma. Francisco é o grande responsável pela memória
e história do povo do mar e do cais. Guma, apesar de filho benquisto
da rainha do mar, fere as leis do cais, do mar, e, por isso, teve um fim
precoce. Iemanjá 2 aparece em seus arquétipos branco, negro, virginal e
sexualizado, como é popularmente cultuada e se materializa em Lívia,
uma de suas filhas, juntamente com Rosa Palmeirão. Aspectos do apaló
— contador tradicional —, do orókin — historiador oficial — e de Exu,
além de outras representações que são presenciadas no enredo através da
personagem Francisco, “o Oju, Iyá, o omoloju Yemanjá”.
Jorge Amado é um autor de axé, portanto, comprometido com a
tradição negra através de sua divulgação e do respeito ao seu segredo,
fala de dentro da porteira ou de mar adentro. Mar Morto (2008a) é uma
literatura de Axé, comprometida com os saberes ancestrais e populares.
1
Professor de literatura brasileira da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).
2
Será utilizada a grafia Iemanjá, respeitando da escrita aportuguesa amadiana e
também Yemanjá, quando assim citada a escrita de Félix Ayoh’OMIDIRE

185
1 — DO MAR PARA DENTRO: A TRADIÇÃO, A VIGILÂNCIA, AS
LEIS De IEMANJÁ

A iniciação é, portanto, uma entrada num espaço, de or-


dem sagrada, que define a plena socialização do indivíduo
aos olhos do grupo. A “porteira” (designação comum nos
terreiros da Bahia) é uma marcação territorial importante,
porque designa o limiar do sagrado. Por isso, a entrada, a
porteira, precisa de vigilantes, tanto reais (os mais velhos)
como simbólicos (orixás). (SODRÉ, 2002, p. 66).
A epígrafe compõe o conhecido livro O terreiro e a cidade, do Obá
de Xangô Muniz Sodré (2002). De acordo com Sodré (2002, p. 66),
iniciar-se é pertencer ao grupo ou como ele mesmo prefere lembrar, por
“[...] meio da iniciação o corpo do indivíduo, tornar-se lugar do invisível”
(2002, p. 65). Em Mar Morto (2008a), os conhecimentos “[...] ontológicos,
míticos e sociais que [...] permitem” ao marítimo “[...] assumir seu papel
da sociedade e nela se integrar” são determinados mar adentro, portanto,
“do mar para dentro”. Ainda pode-se afirmar sobre a territorialização
deste saber em relação ao mar: à beira dele, diante dele, aos pés dele,
o mar, sob as regras de Iemanjá, dona de todos os mares. O cais existe
diante de Iemanjá, como a relação hierarquizada entre os quem mandam
e os que obedecem. As afirmações que dizem sobre as pessoas estarem
à beira, diante e/ou aos pés do mar, podem ser lincadas aos termos da
afro-brasilidade: lésse orixá, lésse egungun ou ancestral. Exu é o orixá
que responde a rituais lésse orixá e lesse egungun. Francisco, personagem
do romance, também se encontra: aos pés do orixá, portanto, lésse orixá,
e aos pés do ancestral, sendo assim lésse egungum.
A expressão “do mar para dentro” é compreendida como sinônima
de “da porteira para dentro”. Assim como ser e estar “da porteira para
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

dentro” do terreio de candomblé é, respetivamente, ser um iniciado, estar


entre iniciados; desta forma, também em território sagrado e de domínio
do sagrado, o mesmo pode-se compreender para territorializações envol-
vendo o mar. Quem é de comunidade de axé, mesmo fora das porteiras
físicas, mantém-se aos pés dos orixás, do ancestral e, comparativamente,
na obra literária ora analisada, aos pés do cais e de Iemanjá, mantendo-se
na vida terrena, no mundo terreno. O enredo de Mar Morto (2008a) é
categórico em afirmar que há coisas que o homem da terra não sabe. Há
leis que são seguidas pelos homens do mar, são elas as leis do cais e as leis
de Iemanjá, temível e adorada. Quanto ao conceito de lei, refere-se ao
mesmo criado por Leite (2017) a respeito da existência de leis formais e
leis informais. “As primeiras relacionadas ao poder estatal e as informais
gestadas pela cultura, pelo costume” (LEITE, 2017, p. 33).
Do mar para dentro e do cais para dentro, há os guardiões da tradi-
ção, assim como Exu é o guardião das leis da mitologia afro-brasileira.
Com vidas abreviadas pelas agruras do labor, há poucos anciões entre
os marítimos de Mar Morto (2008a), contudo, como toda tradição
afro-brasileira, seus mais velhos devem ser bússolas, bibliotecas vivas. O
velho Francisco, tio paterno de Guma, tem no corpo as tatuagens, recor-
dando seus barcos destruídos, seus entes queridos, levados pela rainha do
mar. O corpo de Francisco é, também, um mapa de representações de
suas vivências, de seu território, local de demarcação de sua identidade,
da diferença em relação ao outro (SODRÉ, 2002). Limitado fisicamente
pela velhice, utiliza seus dias para remendar velas e para contar histórias.
Francisco é o apaló — contador tradicional — daquela comunidade de
marítimos. Ainda pode ser considerado o orókìn, historiador oficial das
cortes yorubanas, correspondente dos griots

[...] nas sociedades sahelianas, cuja única função na corte


era fazer-se depositários de toda a história do reino, deco-

187
rando e reproduzindo, incessantemente, os fatos históricos
da sua terra, às vezes em forma de versos musicalizados,
outras vezes simplesmente recitados. (Ayoh’OMIDIRE,
p. 55, 2020).
Tudo conhece o velho Francisco, domina o território, “[...] todas as
coroas, os viajantes, os canais, ele conhece as histórias daquelas águas,
daquelas festas de Janaína, daqueles naufrágios e temporais. Haverá história
que o velho Francisco não conheça? ” (AMADO, 2008a, p. 23). Haverá
alguma escrita, que não possa ser decifrada, preservada no imenso tabuleiro,
que é o mar com seus riscos e linguagem própria? Francisco teria sido o
escolhido de Iemanjá para contar suas histórias e as histórias de seu povo,
ele conhece o território e as vontades da rainha. Do que adiantaria levar a
todos para as suas terras em Aiocá e não ter uma testemunha para manter
viva a sua memória? O velho Francisco é, sem dúvida, aquele vigilante de
que fala Muniz Sodré (2002), um mais velho autorizado a ver Janaína, a
mais bela de todas, a grande sereia. Exu é também o grande vigilante! A
ancianidade de Francisco é medida não apenas por sua idade biológica,
mas também pelas autorizações concedidas por Janaína: o velho, ainda
na ativa como saveirista, viu a rainha e não fora levado ao fundo do mar.
Ver a rainha e ficar vivo para contar, foi uma espécie de consagração,
Francisco pode ser chamado de Oju Iyá, olho da mãe em bom Yorubá
baiano, assim como há o olho do rei Xangô, Oju Obá, do romance Tenda
dos Milagres (2008b). Contudo, em busca de melhor denominação, fui
apresentado pelo Prof. Dr. Félix Ayoh´Omidire ao termo “Omolóju Ye-
manjá”. “Omolóju significa o filho predileto, o favorito, aquele que curte
a intimidade do orixá” (­ OMIDIRE, 2021). Indubitavelmente, Francisco,
apesar de não ser iniciado a Iemanjá ou tê-la como dona de sua cabeça, é
também filho da rainha do mar como todos os marítimos. Os aconteci-
mentos demonstraram ser ele senão o predileto e o favorito, com certeza
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

um deles, mas o que mais “curte a intimidade do orixá”. Por isso, não
é exagerado dizer que Francisco é um ancestral vivo, podendo transitar,
simbolicamente, entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual: Exu tem
essa permissão. Este trânsito inclui o reino de aiocá, fundo do mar e sua
vastidão, o reino do mar, nas informações de Nei Lopes (2004, p. 43),
parece derivar do yorubá “[...] Àyôká, nome-oriki feminino que significa
‘aquela que provoca alegria no seu redor’”.
Ainda a respeito do Velho Francisco, “[...] há até quem diga que uma
vez, na noite, em que salvou toda a tripulação de um barco de pesca,
viu o vulto de Iemanjá, que se mostrou a ele como prêmio” (AMADO,
2008a, p. 23). Exu respeitou o tabu, nada levou sobre sua cabeça, quando
em visita ao Deus supremo e fora tornado por Oludumare o decano dos
orixás, mesmo sendo o mais novo dentre eles. Francisco cumpriu todos os
tabus. Guma descumpriu as leis do cais e de Iemanjá, deixou-se seduzir
por Esmeralda, traiu o amigo Rufino, tornou-se faltoso. Esmeralda não
pagou sozinha com a vida, ferida com um remo, atirada aos tubarões
pela traição. Rufino a golpeou e depois entregou-se ao mar banhado
por sangue, irritando os tubarões. O feminicídio fora cobrado na casa
de Iemanjá, o mar. Na narrativa, o velho é quem ver em Lívia — já no
desfecho da obra — a própria Princesa de Aiocá.

Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro


faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem
vai agora de pé no Paquete voador? Não é ela? É ela sim.
É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para os
outros no cais:
— Vejam! Vejam! É Janaína.
Olharam e viram. D. Dulce olhou também da janela da
escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu

189
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam


Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava,
era a segunda vez que ele a via. Assim contam na beira do
cais. (AMADO, 2008a, p. 272)
Os olhos de Francisco são olhos autorizados, veem além das visões
terrenas. Olhos que viram e fizeram que viessem. O Oju Iyá, “Omolójú
Yemanjá”, apaló, orókin apontou a rainha e os homens do mar puderam
vê-la em Lívia, à D. Dulce — inspirada em Irmã Dulce, conforme Ricardo
Tupiniquim Ramos (2020) — não consentira esse milagre. Hábito comum
aos velhos sábios da afro-baianidade, falar o suficiente para propagar a
memória e, ao mesmo tempo, utilizar estratégias para silenciar-se, falar
pouco para não banalizar o conhecimento sagrado. Todas as vezes que
um jovem mestre de saveiro perguntava a Francisco sobre ele ter ou não
visto Janaína, o marítimo com quarenta anos de navegação sorria ao
responder “— Se fala muita coisa neste mundo, menino” (AMADO,
2008a, p. 30). Naquele dia, o do milagre da sobrevivência, realizado
por meio de Lívia e Rosa Palmeirão, mantenedoras do filho de Guma,
Francisco anunciou, como a informar, ser Iemanjá a dona daquele leme,
responsável por aquela família, agora sustentada por mulheres. Se, por um
lado, mantinha-se a dúvida, podendo levar à suspeita de uma mentira,
também se abre à interpretação da existência da boa conduta dos sábios,
ou seja, manter o segredo, necessário à boa circulação do axé, energia
vital. Quem sabe exercer a vigilância, guardar o segredo — portanto, o
awò — torna-se merecedor das boas energias, incluindo a longevidade,
prêmio ofertado ao velho saveirista, aposentado das travessias por suas
limitações físicas, vivendo no cais como um guardião da tradição, um
apàlò, contador tradicional como define Félix Ayoh’OMIDIRE (2020).
Quase profético, o tio de Gumercino ou Guma, o criou ensinando-o
a necessidade de não ter filhos, nunca se casar. Dizia “[...] marinheiro não

190
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

deve se casar. Um dia vem uma desgraça, tenta a gente, os filhos ficam
com fome” (AMADO, 2008a, p. 112-113). Francisco vira muitas mortes
no mar. Perdeu a esposa, morrera de felicidade, ao saber que o marido
estava vivo, após mais um infortúnio marítimo. Perdeu Frederico, seu
irmão e pai de Guma, quando aquele o salvou do afogamento. Francisco
sabia que dias felizes aos homens do mar eram breves. Aceitou o casa-
mento de Guma, aceitou Lívia, mais uma para sua família. Francisco,
o sábio que ler nas ondas do mar sagrado, lia o destino, era protegido
de Janaína. Todos os marítimos eram filhos de Janaína, esposos quando
chamados às águas profundas, o reino de Aiocá.
Guma morreu precocemente, mas seu filho com Lívia, o pequeno
Frederico — homônimo do avô paterno — teria um futuro garantido
por sua mãe — que se tornara saveirista — e por Rosa Palmeirão, avó
adotiva. Teria Francisco previsto tudo isso ou apenas Guma precipitou
seu fim por descumprir as leis do cais e de Iemanjá? Esmeralda, esposa de
Rufino, melhor amigo e vizinho de Guma, conseguira o pretexto ideal
para entrar na casa de Guma e praticamente forçá-lo à pratica sexual,
quando a esposa estaria sendo cuidada pela companheira de Rufino.
O sentimento de culpa e a certeza de ter traído o amigo, a esposa e as
rígidas leis regedoras dos saveiristas levaram Guma à intranquilidade.
Guma, pedira uma esposa à Iemanjá e como seu protegido recebeu a
mais bela de todas: Lívia.
Envolvido em contrabando, Guma foi instigado pelo poderoso F.
Murad, o árabe mais rico de Salvador, a voltar em meio à turbulência
marítima e naufrágio, a salvar seu filho.

— E meu filho? Meu Antônio? Ele foi com vocês, não foi?
— Foi.
— Vá salvar ele. Vá, lhe dou tudo que quiser.

191
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Guma mal se aguentava em pé. Murad suplicava de mãos


postas:
— Você também tem um filho. Vá pelo amor de seu filho.
Guma se recordou de Godofredo no dia do Canavieiras.
Todos que têm um filho suplicam assim. Ele também tem
um filho. E se atira novamente n´água.
(AMADO, 2008a, p. 252)
Guma não resistiu. Salvou o filho do rico comerciante e levou um
tubarão consigo,

Mas a rabanada do tubarão o obriga a voltar-se a faca na


mão. E luta ainda, ainda fere um, o sangue se espalha na
água revolta. Os tubarões o levam para junto do casco
emborcado do Paquete Voador.
Algum tempo depois a tempestade serenou. A Lua apareceu
e Iemanjá estendeu seus cabelos sobre o lugar onde Guma
desaparecera. E o levou para as viagens misteriosas das
terras misteriosas de Aiocá, para onde vão os valentes, os
mais valentes do cais.
O vento havia jogado o Paquete Voador na areia do porto.
(AMADO, 2008a, p. 253)
Gumercino teve morte honrada, são os preferidos de Iemanjá, que
morrem em tempestades e os “[...] que morrem salvando outros homens,
esses vão como ela pelos mares afora, igual a navio, viajando por todos os
portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra os corpos,
que eles vão com Iemanjá” (AMADO, 2008a, p. 25). O filho de Frederico
e sobrinho de Francisco fez a travessia em uma tempestade, salvando

192
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

outros homens, não há a mínima dúvida sobre a predileção de Iemanjá


por ele. Francisco o oju iya, apaló, orókìn, Omolójú Yemanjá deveria saber
da impossibilidade de encontrar o corpo do sobrinho, contudo, ainda
havia o ritual da vela para iluminar os caminhos ao corpo de Guma, um
conjunto de últimas tentativas para reinventar a tradição. Afinal, Exu é
também aquele capaz de mudar a tradição e Francisco é o mais exuzíaco
dos personagens do romance Mar Morto (AMADO, 2008a), enfrentou
a reposta da tradição para encontrar o corpo do sobrinho.
Francisco acende a vela, derrama a cera no pires para fixar a vela.
Pires e vela navegam por três vezes à luz da manhã do dia seguinte ao
infortúnio. Os homens mergulham, o velho chefe do ritual tem certe-
za de que o corpo do sobrinho está ali. “— Ele esteve aqui, mas saiu”
(AMADO, 2008a, p. 260), explica Francisco na procura, seguida de
novos mergulhos, a terceira tentativa matutina: “— Talvez ele volte à
noite” (AMADO, 2008a, p. 261). Foram mais três tentativas à noite,
depois a “[... ] vela rodopia, uma onda mais rápida a derruba, o pires
vira, afunda. O velho Francisco comenta: “— Não adianta mais. Ele não
aparece mais. Quando a vela emborca...” (AMADO, 2008a, p. 267). O
velho conhece a escrita do mar como um babalô a ler a escrita do Ifá ou a
um sacerdote afro-brasileiro, lendo o jogo de búzios à maneira brasileira,
auxiliado ou não por copos cheios de cristalinas águas. Há vidências
exercidas em copos com água, o copo da vidência, as vezes com pedras,
sempre devidamente preparado para recepcionar as imagens.
O axé, a energia sagrada, de Francisco vem do mar e seus limites são
estabelecidos pelos sinais da casa da rainha. O jogo fechou, encerrou,
transmitiu resposta definitiva, sem direito a outras perguntas, questio-
namentos, nada mais aparece nas ondas do mar. Na sétima vez, a vela
deu seu sinal de fim, como a um jogo de búzios a fechar ou um copo
d´água a ficar turvo, diante de um consulente, ávido por uma resposta
ao seu dispor. O mar é também um oráculo, a natureza tem seus sinais,

193
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

sua própria escrita. Os oráculos afro-brasileiros não seguem a máxima


de que os clientes possuem sempre razão. Misteriosamente, a resposta
ou a não resposta aconteceu na sétima tentativa; no Brasil, número
relacionado a Exu e a Ogum, orixás desbravadores de caminhos, e o
primeiro, um dos patronos do conhecimento, juntamente com ­Orunmilá.
No entendimento coloquial, emborcar também significa perder a vida,
morrer, por isso quando a vela rodopiou, seguido de seu naufrágio o
velho Francisco traduziu “— Não adianta mais. Ele não aparece mais.
Quando a vela emborca...” (AMADO, 2008a, p.267). Quem conhece
alguns costumes e crenças da Bahia e de outras partes do Brasil, pode
testemunhar que sandálias emborcadas são um atentado à vida da mãe
do dono daquele calçado. Desemborca essa sandália, por favor, estar
com mal agouro à mãe. Correlato à mesma semântica, proíbe-se que
utensílios sagrados de religiões de axé sejam colocados de cabeça para
baixo, portanto, emborcados, como quartinhas e até cabaças. Para que
os exemplos não se restrinjam a religiões afro-brasileiras, trago uma
lembrança do catolicismo popular baiano. Ainda há quem emborque a
imagem de Santo Antônio atrás da porta para trazer o amado de volta
ao lar. O santo só volta à posição original com a graça alcançada pela
fiel ou pelo fiel.
A sabedoria de Francisco o fez parar diante da vela emborcada. Qual
narrativa o apaló e orókìn havia recordado? De certo, uma que orientava
aquele procedimento. Provavelmente, esse respeito às leis do mar e de
Iemanjá, portanto, leis informais fizeram de Francisco um sobrevivente
dono de muitas memórias. Guma, ao contrário, desrespeitou as leis do
cais, do mar, mesmo assim mereceu uma morte honrada, livre das pu-
nições das leis formais, por seu envolvimento em contrabando.

194
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

2 — ARQUÉTIPOS DE IEMANJÁ E REINVENÇÕES

A narrativa deve, em certa medida, causar ao leitor algum medo de


Iemanjá, branca, embora de uma África negra que “fala nagô” (AMADO,
2008a, p. 85), é exatamente construída à luz de arquétipos informados
pelo povo da Cidade da Baía de Todos os Santos. Às características de
doce e zelosa mãe, há também paralelamente o espírito que vigia e pune.
Em Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001, p. 390-391), encontra-se a
narrativa “Iemanjá afoga seus amantes no mar”. Resumidamente, o texto
diz que o orixá feminino “[...] mulher caprichosa e de apetites extravagan-
tes” sai de sua morada para amar um pescador em seu leito líquido toda
noite, devolvendo o corpo no dia seguinte. Na nota explicativa do mito, é
informado que no “[...] nordeste do Brasil, os pescadores que morrem no
mar são considerados vítimas de Iemanjá” (PRANDI, 2001, p. 553). Esse
pensamento sexualizado a respeito da mãe Iemanjá, embora existente, é
mais comum a não iniciados no Axé, sempre misturado com a doce mãe.
Evidente que, na vida real, atribuir a Iemanjá tantos malogros, causa
decepção. Contudo, sabe-se que essas construções de amor e medo à dona
das águas sempre existiram, o que provavelmente alimentaram a cabeça e
a máquina datilográfica do escritor amigo do etnógrafo Edison Carneiro.
Desta forma, é preciso entender essa tessitura punitiva da mãe dos peixes
como comum à ambivalência do mito, assim acontece por exemplo aos
mitos cristãos, Jesus e os santos no pensamento popular concedem graças
e castigam. Talvez mais comum seja o preconceito em aceitar o teor pu-
nitivo de representações cristãs como providência divina e a diabolização
de outras narrativas distantes das cristãs. Seria digno de nota uma análise
mais aprofundada sobre o teor de cristianização de Iemanjá, também
chamada de Dona Maria, assim como Maria é a mãe de Cristo.
Como o próprio narrador anuncia a respeito da história “[...] se ela não
vos parecer bela, a culpa é não dos homens rudes que a narram. É que a

195
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

ouvistes da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da


terra entende o coração dos marinheiros” (AMADO, 2008a, p. 9). Lívia é
um dos personagens, que não aceita, inicialmente, as imposições da força
de Iemanjá, assim como a professora Dulce e o médico Rodrigo. A esposa
de Guma, criada na cidade alta com tios quitandeiros, torna-se Lívia de
Iemanjá. Com a viuvez, a independência e autonomia são recitadas por
ela quando da procura do corpo do marido, homologadas pelos olhos
de Francisco na consolidação dos planos de Lívia em tornar-se saveirista
À personagem Lívia acontece o que o Leite (2017, p. 32-33) concei-
tuou como hibridação seletiva compulsória. Há uma óbvia negação de
uma identidade pura.
As seleções são realizadas pelos colonizados, mas também a
partir de seleções antecipadamente realizadas pelo coloni-
zador, que podem limitar os conhecimentos a serem fruídos
pelos colonizados, daí o elemento compulsório. Elemento
esse também imposto ao “povo de axé” e às artes de axé.
Entende-se que o colonizador limita o acesso ao conhe-
cimento, mas o colonizado também tem seus repertórios
de conhecimentos, independente da colonização. Deve-se
ficar atento às negociações para que não fiquem sempre
desfavoráveis ao colonizado.
Resumidamente, Lívia, assim como todo personagem da ficção e/
ou da vida real, possui escolhas, que são antecipadamente selecionadas
pelos poderes vigentes e dominantes. Portanto, todos nós somos levados a
escolher a partir de opções anteriores sobre as quais na maioria das vezes
não temos controle. Nas relações de poder entre colonizados e coloni-
zadores, por exemplo, colonizados precisam ficar atentos para que suas
escolhas não sejam sempre aquelas impostas pelas artimanhas do poder
hegemônico. Assim, nossa constituição, nossa própria hibridação, deve

196
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

admitir que há escolhas compulsórias, pois, na maioria das vezes, não


temos o controle sobre os repertórios disponibilizados. Apesar de carregar
em si ainda o modo de ser e de estar no mundo diferente da maneira de
ser e de estar no mundo preconizada pelas leis do cais: Lívia faz escolhas
previamente selecionadas por outros e nega-se a escolher a prostituição,
destino comum a algumas viúvas do cais. Em um hibridismo de mulher
da cidade alta e mulher no mar, a hibridação seletiva compulsória da
heroína a torna uma Iemanjá materializada, comandando o leme do
Paquete Voador, auxiliada por Rosa Palmeirão, uma iniciada no axé. Em
uma mistura de repertórios previamente impostos pelo poder hegemônico
e seus próprios repertórios, todos estes e aqueles sempre hibridizados,
Lívia, que já conhecia os hábitos da cidade alta e da cidade baixa, teve
o destino confirmando a mudança preconizada pelas personagens: a
professora Dulce e o jovem médico Dr. Rodrigo.
Iemanjá jamais se prostituiria, a narrativa amadiana obedece ao
pensamento popular da Bahia e aproxima-se das sereias, sem deixar
de manter na personagem sagrada caraterísticas muito caras aos orixás
femininos no Brasil, retiradas de parte do pensamento de axé brasileiro.
Na religiosidade afro-brasilidade, comumente, a Iansã, às padilhas e
pombagiras permitiu-se a permanência de características das grandes
mães ancestrais. Vale explicar que, embora com menor frequência, a
partir de interpretações dos mitos realizadas no cotidiano de casa de axé,
admite-se e é comemorada a sexualidade dos orixás femininos.
Neste sentido, a hibridação seletiva compulsória manteve os ideais
cristãos de pureza a partir da amputação do sexo, o que não aconteceu
em Mar Morto. Conforme dito em outro trabalho, Leite (2012, p. 61)
traz citação de Monique Augras que diz sobre a grande mãe ancestral.
“Ela basta a si própria, fala grosso como homem, olha do alto da árvore
iroko, assumindo, portanto, características bem fálicas; o seu marido
desempenha papel fecundante, qual zangão” (AUGRAS, 2000, p. 20).

197
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Guma seria o Zangão a fazer prevalecer a linhagem de Iemanjá, através de


Lívia! Tais características de independência e autodeterminação compõem
os arquétipos de todos os orixás femininos. Contudo, como dito, parte
do pensamento nagô baiano ou da yourubaianidade, para utilizar termo
cunhado por Felix Omidire (2021), mas não apenas nagô baiano e sim
também de outras vertentes de comunidades de axé, construíram certa
delimitação de liberdades e de altivezes de orixás como Oxum, Nanã e
Iemanjá, por exemplo, o que não acontece na narrativa amadiana. Por-
tanto, se “[...] a mãe-d’água é loira e tem cabelos compridos e anda nua
debaixo das ondas, vestida somente com os cabelos que a gente vê quando
a Lua passa sobre o mar” (AMADO, 2008a, p. 9), ela é também africana,
aquela que “[...] morava nas costas da África, que dizem que é perto das
terras de Aiocá. Mas veio para a Bahia ver as águas do rio Paraguaçu”
(AMADO, 2008a, p. 79). Sendo assim, apesar de loira, no imaginário do
povo do enredo de Mar Morto e, também, do povo da Bahia, ainda hoje
ela é um orixá, desta forma yorubano, legitimamente africano e também
negro. Como explicar tantas confusões nos limites de um pequeno texto?
Melhor seria trazer outro exemplo de reinvenções parecidas. Durante
o auge do movimento artístico e cultural baiano chamado Axé Music,
diversas pessoas excluídas de possibilidades de educação formal, orgu-
lhosamente referiam-se à “África com sua capital Jamaica”. É preciso
dizer que havia em falas assim a incompreensão ou o descuido do teor
continental da África e que, na hipotética possibilidade de ser um país,
não estaria na América Central. O link mais permanente, que autoriza
a fala com equívocos geográficos e políticos, são as identidades negras
em suas diversidades. Sim, África é um continente e Jamaica um país
americano, terra natal de Bob Marley e tantos outros gigantes do reggae,
mas, apesar da correção necessária, vale pela simbologia de reconheci-
mento do orgulho de negritudes. Excluídos com percentual da memória
decomposta pela colonização, coube ao povo negro reinventar geografias

198
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

e orixás, com o tempo e luta recompondo-se a partir de novas seleções.


Uma explicação poderia ser a possibilidade de Iemanjá se apresentar
da maneira que bem entender. O melhor é, provisoriamente, não apro-
fundar nesse quesito, pois, para o momento, basta afirmar e compreender
que a Iemanjá amadiana possui o mesmo arquétipo daquela que recebe
presentes em sua casa no Rio Vermelho todo dia 2 de fevereiro. Talvez
pudéssemos comparar a hibridação seletiva compulsória do arquétipo de
Iemanjá ao que foi condicionado como belo e sua relação com o imaginário
das sereias. Então, provavelmente, a hibridação seletiva compulsória teria
imposto ao imaginário popular a alternativa de uma beleza outra diferente
das belezas das mulheres negras. A confusa existência de uma Iemanjá
branca e yorubana, de tempos imemoriais, é atualíssima ao contrário de
confusões a respeito da África e da Jamaica, já desfeitas graças à educação
formal. Basta a visitação a lojas especializadas em produtos de axé na
Feira de São Joaquim na cidade do Salvador, a exemplo do conceituado
Palácio de Oxóssi. Lá, como em Mar Morto (2008a), pode ser encontrada
uma imagem da Iemanjá como concebida pelo povo: branca de vestido
azul e cabelos longos. Chamamos atenção para imagens de sereias com
cabelos loiros e outras com cabelos negros. Contemporaneamente, há
quem afirme ser a sereia de cabelos loiros Oxum, e há quem tenha certeza,
que ambas são representações de Iemanjá. Antes de tentar estabelecer
quem tem razão, o mais importante é afirmar que o arquétipo amadiano
de Iemanjá na obra em pauta é o traduzir do que dizia e ainda diz hoje
parte significativa do povo.
Paralelo à diversidade de descrições de Iemanjá, há também uma
diversidade de nomes, datas comemorativas e locais de festas. Jorge
Amado aponta cinco nomes e Édison Carneiro uma outra lista. São
cinco os nomes de Iemanjá, assim como são cinco os nomes dos sa-
veiros tatuados no braço de Francisco. Iemanjá é “[...] seu verdadeiro
nome de dona das águas, senhora dos oceanos” (AMADO, 2008a, p.

199
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

78). Os canoeiros a amam chamá-la de Janaína, os pretos, que são os


filhos diletos, a chamam de Inaê ou Princesa de Aiocá. As mulheres a
tratam de dona Maria.
Em sua tese de doutorado, Leite (2017, p. 205) elenca os nomes da-
dos à rainha do mar por Édison Carneiro, carinhosamente chamado de
Mestre Antigo por Jorge Amado e demais membros da Academia dos
Rebeldes. Dentre a enorme quantidade de alcunhas constam todos os
nomes mencionados em Mar Morto (2008a). Apesar da obra romanesca
ter sido publicada em 1936, mesmo ano de Religiões Negras ­(CARNEIRO,
1991a/1936) e anterior a Negros Bantos (CARNEIRO, 1991b/1937) e
a Candomblés da Bahia (CARNEIRO, 1948), foge aos limites desta
escrita comprovar quem seria o percussor das informações. Contudo,
vale lembrar que Carneiro era o etnógrafo e muitas de suas produções
eram publicadas em jornais e depois republicadas em livros. De fato, o
mais importante é a confirmação das existências de tais nomes dentre o
povo de axé da Bahia.
Ainda na perspectiva de um breve estudo comparado entre a etno-
grafia de Édison Carneiro e a narrativa ficcional amadiana, podem ser
vistos os dias 2 de fevereiro e 20 de outubro como datas comemorativas
a Iemanjá nas produções dos amigos. Somente na etnografia de Édison
Carneiro, aparece o dia 2 de novembro específico das festividades do
Cabrito, perto de Pirajá — bairros históricos com grande relevância
nos acontecimentos da independência da Bahia. Quanto às moradas e
locais de festas de Iemanjá no romance aparecem o Dique, Mont Serrat,
também as localidades de Amoreira, Bom Despacho, Gameleira. As três
últimas pertencentes à Ilha de Itaparica e motivos de inspiração para
a obra em período bem anterior à emancipação da Vila do Senhor da
Vera Cruz para tornar-se em 31 de julho de 1962 Vera Cruz, a segunda
cidade da Ilha de Itaparica, a mais antiga é homônima da Ilha. Bom
Despacho e Gameleira pertencem à cidade de Vera Cruz. Outros locais

200
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

são citados apenas na etnografia, tais como Abaeté, Amaralina, Lagoa de


Vovó, localizada no bairro Fazenda Grande do Retiro, e o Rio Vermelho
(CARNEIRO 1991b; 1948).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do narrador declara-se desconhecedor das coisas do mar, como


mencionado mais de uma vez, a respeito de axé, portanto, sobre tradições
afro-brasileiras, mais especificamente afro-baianas, o autor demonstra ciên-
cia. Jorge Amado havia publicado Jubiabá em 1935, um ano antes de Mar
Morto (2008a). O romance protagonizado por Antônio Balduíno rendera
algumas polêmicas ao autor e para defender-se reforçou publicamente sua
ligação com a afro-brasilidade e sua inspiração a partir de informações
obtidas do babalô — adivinho — e intelectual negro Martiniano Eliseu
do Bonfim. Não menos importante, foi a relação do filho de Oxóssi
com o pai de santo Procópio de Ogunjá desde 1927, quando ainda tinha
15 anos de idade, sendo agraciado pelo sacerdote com o cargo de Ogã.
Também vale ressaltar, a proximidade do escritor à sacerdotisa Eugênia
Ana dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá — ter-
reiro de candomblé no qual, durante o reinado de Mãe Senhora, Maria
Bibiana do Espírito Santo, foi consagrado um dos ministros de Xangô.
Sem esquecer das vivências de Amado, junto a Édison Carneiro. Elenca-se
parte das relações de Jorge Amado com o povo de axé para afirmar que
mesmo referente aos anos 1930, Jorge Amado escreve como alguém que,
se não estava do “mar para dentro”, estava “da porteira para dentro”, do
axé, podendo ser incluído na categoria “autor de axé”.
Além de demonstrar conhecimento, desde aquele período possuía
algum nível de iniciação que comprovava o adentrar da porteira. O nível
de iniciação comentado não precisa ser o receber de uma conta consagra-
da ao orixá ou a passagem por alguns outros rituais sagrados e secretos.

201
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Trata-se de iniciação o ato de ser aceito e autorizado por voz competente


a falar do axé, o que pode ser obtido ou não com rituais litúrgicos. Nem
sempre a autorização precisa ser específica para a inscrição desta ou daquela
obra de arte de axé, pois, na proximidade com o corpo sacerdotal — a
exemplo de Pai Procópio, Mãe Aninha e o Babalaô Martiniano Eliseu do
Bonfim — aprende-se o que pode ser dito e o que deve ser mantido em
segredo. Devidamente preparados esses “[...] autores transformam parte
da estrutura social, inserindo valores da cultura e mitologia afro-brasileiras
na sociedade através da ciência e das artes” (LEITE, 2018, p. 137). Assim
acontece na obra ora analisada. O romance Mar Morto (1936) é vívido,
pulsa com cheiro de maresia. Afinal, se os equívocos geográficos das ligações
espaciais África-Jamaica já foram corrigidos, guardiões como Francisco,
faltosos como Guma, mulheres destemidas como Lívia e Rosa Palmeirão,
juntamente com a diversidade de arquétipos de Iemanjá, ainda compõem
modos de ser e estar no mundo, na Bahia, no Brasil.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Mar Morto. Posfácio de Ana Maria Machado. São


Paulo: Companhia das Letras, 2008a.
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. Posfácio de João José Reis. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008b.
Ayoh’OMIDIRE, Félix. Yorubainidade: oralitura e mátria epistêmica
nagô na construção de uma identidade afro-cultural nas Américas.
Salvador: Editora Segundo Selo, 2020.
Ayoh’OMIDIRE, Félix. Omolójú Yemanjá. WhatsApp: [Mensagem
Pessoal]. 16-17 out. 2021. 10:24-11:19. Mensagens de WhatsApp.
CARNEIRO, Edison. Religiões Negras. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991a. (1936)

202
AMADO AXÉ DE MAR MORTO

CARNEIRO, Edison. Negros Bantos. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1991b. (1937)
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1948.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado: da ancestralidade a
representação dos orixás. Salvador: EDUNEB, 2012.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Edison Carneiro, biografemas: poesia,
samba e candomblé. Salvador, 2017.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Autores e autoras e axé. In: LUZ, Marco
Aurélio; PATROCÍNIO, Narcimária Correia do. Pensamento
insurgente: direito à alteridade, comunicação e educação. Salvador,
2018, p. 135-144.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás; ilustrações de Pedro
Rafael. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim et al. Mar Morto e as identidades
religiosas da Bahia. Rio de Janeiro: Litere-se, 2020, p. 31-41.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. Rio de Janeiro: Imago;
Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002.

203
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO,


VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

Jadson Santana da Luz1

Boa parte da obra de Jorge Amado, sem dúvida, pode ser caracterizada
pelas articulações que o escritor estabelece entre cidade, cultura, política
e identidade. As cidades, seja Salvador ou as demais tematizadas pelo
escritor, são representadas como locus onde se imbricam repressão política
e cultura popular, cor de pele e luta de classes, liberdade e abandono,
solidariedade e indiferença. Ou seja, no universo romanesco amadiano
a cidade se faz perceptível como espaço culturalmente heterogêneo, no
qual o binômio exclusão social e luta por sobrevivência está presente
como linha mestra.
O romance Capitães da areia, dividido em três partes e mais um
prólogo, não narra apenas o drama de crianças órfãs, mas também uma
complexa rede de sociabilidades tecidas no cotidiano de uma cidade, cujos
verdadeiros “donos” é a imensa população de pobres que faz das ruas o
palco de uma luta. É um livro sobre uma saga coletiva onde as ruas de
Salvador e seus personagens vêm ganhar protagonismo.
No romance, percebe-se muito bem que a narrativa sobre a cidade
está atrelada ao modo como o texto expõe as vivências e a dinâmica
cultural da população pobre nas vielas sinuosas da “velha urbe”. Embora
apresente um espaço urbano hostil e segregante, o livro revela a relação
simbiótica entre a cidade e seus personagens. A cidade de Salvador, em
1
Mestre em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB -
Campus I), com bolsa integral da CAPES (2014). Advogado, graduado em Direito,
também pela Universidade do Estado da Bahia (2010), (UNEB - Campus I).

205
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Capitães da Areia, não é apresentada como simples pano de fundo. Ela é


a própria condição de possibilidade da narrativa, pois é o lugar onde se
articulam cultura, política, pobreza, repressão e luta pela sobrevivência.
É neste sentido que o grupo dos capitães da areia está ligado umbilical-
mente ao fluxo urbano caracterizador da cidade. “Vestidos de farrapos,
sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas
de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conhecia
totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO,
2009, p. 27).
Em Capitães da areia, Salvador ganha protagonismo, na medida em que
os personagens são apresentados transitando pelas ruas, investindo contra
as fronteiras reativas dos bairros onde vivia a elite branca e ocupando os
espaços abandonados da cidade. Trabalhando na caracterização do perso-
nagem Pedro Bala, ainda nas primeiras páginas do romance, o narrador
busca acentuar a ciência do chefe dos “capitães” em relação à cidade.
Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos.
Hoje tem quinze anos. Há dez anos vagabundeia nas ruas
da Bahia. Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera de um
balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a
cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus
becos. Não há venda, quitanda, botequim que ele não
conheça (AMADO, 2009, p.26).2
Pedro Bala é indicado no romance como chefe do grupo. Uma espécie
de liderança do coletivo de menores. A chefia desse personagem não está
adstrita em uma hierarquia, visto que não há hierarquia entre os capitães
da areia. É antes uma relação de guia de matilha, uma relação sem po-
sições cristalizadas. Ao lado de Pedro Bala estão Professor, Sem-Pernas,
2
As citações seguintes dessa edição virão acompanhadas apenas da indicação de
página.

206
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

Gato, Pirulito, Boa-Vida, João Grande, Volta Seca, Barandão, Almiro,


Dora, Zé Fuinha e Querido-de-Deus, constituído como uma homenagem
ao saveirista, capoeira e amigo de Jorge Amado, o Samuel Querido de
Deus, constantemente citado em Bahia de Todos os Santos: guia de ruas
e mistérios de Salvador. Esses são os personagens que ganham destaque,
embora a narrativa aponte a existência de mais de cem menores entre eles.
No capítulo “Noites dos Capitães da Areia”, Jorge Amado apresenta os
motivos de cada uma dessas crianças viverem do furto, “ao léu nas ruas
da cidade” (p. 70), como traz o romance. Os principais motivos narrados
são a orfandade e a fuga dos maus tratos familiares. Um exemplo é o
caso do João Grande.
Desde aquela tarde em que seu pai, um carroceiro gi-
gantesco, foi pegado por um caminhão quando tentava
desviar o cavalo para um lado da rua, João Grande não
voltou à pequena casa do morro. Na sua frente estava a
cidade misteriosa, e ele partiu para conquistá-la. A cidade
da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa como o
verde mar. Por isso João Grande não voltou mais. (p. 28)
A produção de personagens que têm a rua, a periferia, as praças públi-
cas, os adros das igrejas, os terreiros de candomblé e o cais abandonado
como espaço de sobrevivência faz da narrativa amadiana uma fonte rica
na representação de tipos e sujeitos sociais que se fazem no cotidiano e,
ao se fazerem, compõem e recompõem o traçado geopolítico da cidade.
Ambientado na Salvador dos anos 1930, Capitães da areia exibe como
pano de fundo uma cidade que se assemelha bastante à capital baiana
apresentada pela historiografia recente, nos trabalhos que buscaram anali-
sar a condição da população afrodescendente no cotidiano da cidade, nas
décadas iniciais do século XX. Isto é, uma cidade assolada pela pobreza
e indigência, onde a população, em sua maioria negra, apenas encontra-

207
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

va o esteio de algumas poucas iniciativas das instituições de caridade e


da igreja, bem como pela repressão truculenta das batidas policiais. Ao
apresentar a condição dos menores em Capitães da areia, o narrador expõe
as dificuldades vividas cotidianamente por essas crianças e adolescentes.

Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer


e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando
carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes
pedindo esmola. E o grupo era de mais de cem crianças,
pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam
nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados
na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava.
Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar.
Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo
Don’Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente
tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino
que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando. E achava
que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça
daquela vida. (p. 44).
A luta pela sobrevivência nas ruas, a fuga da varíola que dizimava a
população do morro, a vida boêmia e malandra, os jogos de capoeiras
e as andanças dos capitães pela cidade caracterizam um investimento
expressivo do romancista na composição de um cenário urbano que
se estabelece como projeção de um país erguido pelas vivências e pela
dinâmica cultural catalisadas no seio dos estratos populares.
Andando sem rumo, espreitados pela fome, embalados ao sabor de
demoradas gargalhadas e à procura de níqueis que pudessem garantir a
alimentação do dia, os capitães da areia vão se resolvendo na paisagem de
uma cidade que ainda possuía a beleza abandonada do histórico passado

208
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

colonial, mas que era bastante áspera e rude em relação àqueles que a
tinham como único espaço de sobrevivência.
Pedro bala, enquanto sobe a ladeira da montanha, vai
pensando que não existe nada melhor no mundo que andar
assim, ao azar, nas ruas da Bahia. Algumas destas ruas são
asfaltadas, mas a grande, a imensa maioria é calçada de
pedras negras. [...] Pedro Bala continua seu caminho. O
professor vai com ele. [...] A cidade está alegre, cheia de
sol. “Os dias da Bahia parecem dias de festa”, pensa Pedro
Bala, que se sente invadido também pela alegria. Assovia
com força, bate risonhamente no ombro de Professor. E os
dois riem, e logo a risada se transforma em gargalhada. No
entanto, não têm mais que uns poucos níqueis no bolso,
vão vestidos de farrapos, não sabem o que comerão. Mas
estão cheios da beleza do dia e da liberdade de andar pelas
ruas da cidade (p. 131).
Ressalvada a beleza estética da imagem criada por Jorge Amado na
passagem citada, o cenário urbano da cidade no início do século XX
também se compunha de abandono, repressão e ocupação das ruas pelos
desafortunados. Isto é, mendigos, homens e mulheres pobres, crianças
e adolescentes abandonados eram perseguidos e criminalizados pelas
diversas instituições judiciárias que, como braço do Estado, buscavam
garantir o controle social. Como destaca Andréa da Rocha Rodrigues,
em “A infância esquecida: Salvador 1900-1940”:
A prisão de menores foi tão comum em nossa sociedade
que, ainda em 1931, houve a necessidade do Sr. José Ma-
ria de Lima encaminhar ao juiz de menores uma ordem
de Habeas Corpus em favor de menores que se achavam

209
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

ilegalmente presos e constrangidos na Casa de Correção.


Condenava-se todo indivíduo, fosse ele criança ou adulto,
que tivesse a intenção de gerir, independentemente, o tempo
destinado ao trabalho e ao lazer e que, portanto, rejeitasse
as regras de um trabalho assalariado. Para tanto, a polícia
deveria funcionar como mantenedora da ordem e protetora
da propriedade privada. (RODRIGUES, 1998, p. 25-26)
No decorrer de Capitães da Areia observamos referências constantes
do romancista à existência de guardas responsáveis pela vigilância das
ruas. No capítulo “Ponto das Pitangueiras”, João Grande, Pedro Bala e
Gato espreitam o guarda a fim de encontrarem um momento oportuno
para seguirem pela rua que dava acesso ao bar Porta do Mar, boteco
frequentado por estivadores e marinheiros. “Os três meninos esperavam
que o guarda andasse para poder atravessar de um lado para o outro da
rua e entrar na travessa sem calçamento” (p. 48).
A temática da repressão e as questões sociais exploradas em Capitães
da areia dialogam intimamente com a configuração social da Salvador do
início do século XX. A população pobre da Bahia nas primeiras décadas
da República vivia uma situação de alarmante indigência. Os estudos
de Alberto Heráclito Ferreira Filho (1994) e de Wlamyra Ribeiro de
Albuquerque (1997) testemunham a situação de recrudescimento das
condições de sobrevivência das classes populares no cotidiano das ruas
no período. Conforme afirma Alberto Heráclito Ferreira Filho:
Civilmente livre, uma parcela significativa da população
continuava, quase que ao mesmo modo, servindo as sinhás
e amos, denunciando com isso a resistência de estruturas
sociais que as mudanças jurídico-políticas da Abolição e da
República não elidiram. (FERREIRA FILHO, 1994, p. 46)

210
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

Frente ao quadro de estagnação social, o problema do abandono infantil


ainda era uma constante no seio da sociedade republicana. O flagrante
número de menores que viviam nas ruas de Salvador estava essencialmente
ligado à catastrófica situação social da Bahia. Além da orfandade, muito bem
tematizada em Capitães da areia, as crianças estavam na rua, nas décadas
iniciais do século passado, em consequência do abandono dos pais e dos
parentes que, por decorrência da situação econômica, não encontravam
condições de sustentá-las. Como observa Alberto Heráclito:
Tendo a mulher pobre, muitas vezes, que arcar sozinha
com a responsabilidade econômica e moral para com a
criação dos filhos, soluções extremadas como o aborto, o
infanticídio, o abandono de recém-nascidos, impunham-se
como fatos recorrentes, numa época em que os métodos
de prevenção à gravidez revelam-se extremamente falhos.

A República não veio a alterar a feição do problema. Volta


e meia, cadáveres de recém-nascidos eram encontrados
nos mais variados pontos da cidade republicana. No ano
de 1922, os jornais noticiavam com o título “Atirados aos
Cães da rua” a descoberta de um prematuro de sete meses,
na Ladeira de São Francisco, envolto num embrulho de
“papel gazeta”. (1994, p. 161)
O que se percebe com isso é que, a despeito do discurso de proteção à
infância, sustentado pela elite médica da época, ainda cabiam às mulheres
pobres decidir, em um misto de desespero e desamparo, qual seria o triste
destino da sua cria. Assim, na combinação de orfandade e abandono,
meninos e meninas, crianças e adolescentes, nos “tempos modernos”
da República, continuavam sem quase nenhum amparo social, tal qual
narrou Jorge Amado em Capitães da areia.

211
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

No capítulo “Filha de Bexiguento”, alcunha dada pelos filhos de uma


família abastada do rico bairro da Barra a uma das personagens do ro-
mance, a menina Dora, Jorge Amado expõe em sua ficção não só o drama
vivido pelos personagens moradores do morro em decorrência do surto de
varíola, que vitimou muitas famílias, mas também um outro processo de
geração social de órfãos, a produção de órfãos decorrentes dos trabalhos
estafantes que vitimavam as mães solteiras no início do século passado.
A mãe de Dora, a lavadeira Margarida, acometida pelo surto de va-
ríola que se alastrou pelo morro, era mãe solteira e batalhou o sustento
da família, durante os últimos dias de vida, lavando roupa e trabalhando
para as ricas famílias dos bairros estabelecidos da cidade. A lavadeira
Margarida morreu depois de um longo dia de trabalho sob o sol e a chuva,
estava estafada pelo cansaço que abriu espaço para a recaída da varíola.
Na sua falta e também do pai, o Estevão, que morrera no Lazareto, os
menores estavam sós, órfãos que encontraram apenas as ruas de Salvador
como único meio de fuga na luta contra a fome.
Para Alberto Heráclito (1994), a prática da vadiagem infanto-juvenil
era uma questão que se associava ao grande contingente de meninos e
meninas que, apesar de ligados a precários ofícios ou mesmo as suas
famílias, tinham as ruas como lugar de trabalho, de travessuras e de
liberdade. Esses meninos e meninas eram identificados como “gatunos”,
“meninos vadios”, “pequenos perversos”, designação atribuída às crianças
pelos principais jornais que circulavam na época.
No contexto do início do século XX, a sociedade republicana não
oferecia grandes alternativas de ascensão às gerações mais novas, sobretudo
para a parcela desfavorecida da população. Meninos e meninas “desde
muito cedo, começavam a exercer as mais diversas formas de pequenos
serviços” (FERREIRA FILHO, 1994, p. 123), meios de ajudar a garantir
o sustento da família. Nessa condição, como fuga dos trabalhos esta-
fantes, alguns optavam pela vadiação e outros se doavam às peraltices

212
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

como única forma de reagir, meio de desdenhar e impor protestos a um


mundo adulto reagente e cáustico.
Neste contexto, os jornais da República, paladinos da moral e dos
bons costumes, não deixavam de alardear contra as travessuras e alaridos
praticados pelos menores. No dia 18 de setembro de 1912, o jornal Diário
de Notícias expunha, em tom de descontentamento:
Da Rua Ferreira França ao Politeama, 1º distrito da Vitória,
há uma caterva de menores vadios entregue aos prejudiciais
divertimentos da jogatina dos búzios e das bolas, está cau-
sando sérios prejuízos aos moradores locais, avariando as
vidraças das janelas, conforme temos repetidas reclamações.
(Diário de Notícias, 1912, p. 3)
Na Salvador dos capitães da areia, as peraltices, os gritos, as fugas,
os ataques dos menores às “madames” e aos comerciantes faziam parte
do cotidiano das ruas, tal como expressa a obra. Essas eram as principais
investidas dos menores que, assim, transgrediam as regras e fronteiras
morais do mundo citadino e “civilizado” da elite. Ao narrar o passeio
pela Rua Chile de dois dos capitães, Pedro Bala e o Professor, o romance
pontua o talento e a presteza dos meninos para envolver os transeuntes,
que, ao verem os autorretratos desenhados pelo Professor, admiravam-se
e abobalhados iam liberando os “níqueis”.
A postura transgressora das crianças, constantemente denunciada
pelos jornais, leva as autoridades a tomar medidas policiais repressivas,
com punições severas, chegando a castigos corporais, para disciplinar a
presença dos menores no espaço público. Segundo informa Andréa da
Rocha Rodrigues (1998, p. 27-28), o Diário de Notícias anunciou, em 13
de setembro de 1911, “[...] a presença de ‘garotos desordeiros’ que trocavam
entre si pedradas na Rua Sete de Setembro. [...]” Logo depois se refere a
estas crianças como meninos perigosos. Também usando o termo ‘menor’,

213
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

acompanhado da palavra ‘gatuno’, o mesmo jornal noticia a existência de


uma quadrilha de menores gatunos que ultimamente tem cometido toda
sorte de furtos no bairro comercial.
Ao que se pôde observar, o epíteto “gatuno” foi constantemente uti-
lizado pelos jornais republicanos, sobretudo quando consideram sobre
os furtos praticados por menores. Conforme o poeta baiano Florisvaldo
Matos, amigo de Jorge Amado, talvez o termo “capitão da areia” tenha
sido uma expressão de uso popular, à época, que se refere aos menores
que perambulavam e praticavam travessuras nas regiões do porto e na
feira de Água de Meninos.
Com a passagem do século, as elites baianas, conforme registro da
imprensa, tornaram-se cada vez mais avessas ao clima de desordem que,
desde o século passado, pairava nas ruas de Salvador. O desejo das classes
dominantes era que, com a República, fossem implementadas reformas
urbanas e morais capazes de colocar a capital baiana nos moldes de mo-
dernização das metrópoles do sudeste. É exatamente nos governos de J.
J. Seabra e Francisco Marques de Góes Calmon (1912-1928) que todo
esse clamor se transformará na iniciativa capital de intervenção sanitária
e urbana que visou extirpar “os males do passado” da Bahia imperial.
O livro Capitães da areia se inicia expondo essa curiosa narrativa
que os veículos de imprensa passam a adotar. No romance, uma espécie
de prólogo, com o título de “Cartas à redação”, sintetiza a existência de
diversas vozes na sociedade da época em que a história dos meninos de
rua se desenvolve. O prólogo apresenta uma matéria publicada na gazeta
Jornal da Tarde acerca de um assalto à residência de um rico comerciante
judeu, praticado pelos capitães da areia. Nessa matéria, que traz uma
“chamada” intitulada “Crianças Ladronas”, o fictício jornal expõe o
aborrecimento da elite local e das autoridades do sistema penal com a
presença dos menores abandonados nas ruas da cidade.

214
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

Em Capitães da areia, Jorge Amado enfatiza o ridículo dos jornais


em alardear pejorativamente o modo de vida dos menores. A obra des-
taca que o Jornal da Tarde, ao defender os interesses da elite, atribuía
a indisciplina dos menores aos familiares e ao desdém dos responsáveis
por fazer girar a engrenagem repressora do sistema penal. Assim, segue
uma das investidas do fictício Jornal da Tarde no romance:
Esse bando que vive da rapina e se compõe, pelo que se
sabe, de um número superior a cem crianças das mais
diversas idades, indo desde os oito aos dezesseis anos.
Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua
educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos,
se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa.
São chamados de Capitães da Areia porque o cais é o seu
quartel-general. (p. 9).
O costumeiro modo de relação das classes pobres no espaço pú-
blico será combatido incisivamente pela visão de mundo republicana.
Ao considerar a dinâmica cotidiana do povo como atrasada, resquício
da sociedade escravista, as elites colocaram-na como principal pauta
do projeto higienista-republicano. As feiras livres da cidade, onde uma
grande parte dos pobres empregava sua força de trabalho, passaram a ser
o principal foco das investidas higienistas.
Capitães da areia dá visibilidade a uma política sanitária da época,
ao relatar as “batidas” no morro feitas pela polícia visando apreender
os acometidos pela varíola. O romance mostra que cabiam aos médicos
sanitaristas a decisão de encerrar os doentes no Lazareto, instituição “te-
nebrosa”, espécie de quarentena para a morte. O recolhimento forçado,
nesse caso, é narrado no romance como uma espécie de condenação à
morte.

215
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

[...] os homens da Saúde Pública vinham e levavam os


doentes para o lazareto. Ali as famílias não podiam ir
visitá-los, eles não tinham ninguém, só a visita do médico.
Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar
era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado.
Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade
da vacina (p. 139).
Contra o discurso higienista, a narrativa amadiana apresenta con-
trarrazões. Mostra não ser pelos costumes das classes populares que nas
regiões pobres se dão os surtos de varíola. Tal epidemia ocorre no morro
por ser um lugar sem infraestrutura sanitária, por ser um lugar onde a
população não teve acesso à vacina que os ricos tomaram.
Atento ao quadro de abandono e repressão em que vivia o povo
pobre da Bahia, Jorge Amado expôs em suas narrativas, a despeito do
silêncio das narrativas oficiais, as agruras vividas pela população pobre,
bem como o modo pelo qual esses sujeitos driblavam as adversidades.
Na narrativa de Capitães da areia estratégias de repressão ganham
referência. Mas são referenciadas de um modo distinto daquele que cos-
tuma trazer o discurso institucional, que as trata como eficientes meios de
reforma moral e reinserção social. Nesse romance, as estratégias repres-
sivas do sistema de poder são mostradas quase sempre com suas falhas,
suas fissuras, com seus embaraços e em sua ineficiência. São nas brechas
deixadas por esses deslizes, por essas pequenas distrações do poder, que
os “capitães da areia” encontram espaço para gestar formas de subversão.
Jogar com os acontecimentos, tirar proveito das distrações de guardas
e transeuntes, disfarçar-se de mendigo, instalar esconderijo em zonas
abandonadas, valer-se do silêncio nas ruas dos bairros estabelecidos,
irromper contra os palacetes e encenar situações para garantir “níqueis”

216
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

ou oportunidade de furto, são modos subversivos de baldar a ordem que


proliferam em Capitães da areia.
Na luta contra as instituições colocadas na arena pelo Código de
Menores de 1927, contra as regras de uma suposta boa moralidade,
contra as árduas reprimendas das práticas penais de tortura e contra as
máquinas de guerra instituídas pela elite soteropolitana, só restavam aos
capitães da areia as transgressões possibilitadas pelas astúcias, já que, no
fim das contas, eles sabiam demais as leis do reformatório, as escritas e
as que efetivamente se cumpriam.
Em Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios de Salvador, escrito
em 1944, numa referência explícita a Capitães da areia, Jorge Amado
revela alguns modos de contra-atacar desses personagens e também mos-
tra, numa interlocução com seus leitores, que eles representam também
sujeitos reais, conhecidos de longa data.

Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a


gíria de malandro, os rostos chapados de fome, vos pedirão
esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quarenta
anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquela
época são hoje homens maduros, malandros do cais, com
cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados
na polícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir,
enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não são um bando
surgido do acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um
fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre
as classes pobres. [...] Parecem pequenos ratos agressivos,
sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inte-
ligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo todas as
misérias do mundo numa época em que as crianças ricas

217
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de Paris


no bico de uma cegonha (AMADO, 2012, p. 344).
As subversões urdidas pelos capitães da areia nas brechas deixadas
pelo Estado repressor são como minúsculas máquinas de guerra
que se multiplicam no decorrer do romance. Essas fagulhas microfí-
sicas, esses diminutos focos de incêndio são como ínfimos estágios de
erosão capazes de causar, em seu conjunto, colapsos nas engrenagens
do poder estabelecido. Era por intermédio dessas pequenas astúcias
cotidianas que os capitães da areia partiam para enfrentar os condi-
cionamentos impostos pelas armadilhas da opressão social. Eis, por
fim, a maneira como lutam os “fracos” contra as estratégias do Estado.
A história de uma guerrilha empreendida por crianças desprovidas de
amparo social é o que se pode ler em Capitães da areia. Um escrito de
combate contra um contexto social e jurídico insensível à pobreza e à
infância abandonada.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O civismo festivo na


Bahia: comemorações públicas do Dois de Julho (1889-1923).
Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1997.
AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios
de Salvador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. 18 de setembro de 1912, p.3.
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das mulheres:

218
SALVADOR DA INFÂNCIA ABANDONADA: REPRESSÃO, VADIAGEM E SUBVERSÃO EM CAPITÃES DA AREIA

condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque imperfeita.


Dissertação (Mestrado em História. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994.
RODRIGUES, Andréa da Rocha. A infância esquecida: Salvador
1900-1940. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.
Salvador, 1998.

219
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE


HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE
AMADO
João Paulo Ferreira dos Santos1

GABRIELA, CRAVO E CANELA – UM ROMANCE HISTÓRICO DO CACAU

Gabriela, cravo e canela, publicado em 1958, é um dos mais conhe-


cidos e comentados romances de Jorge Amado. Como é sabido, narra
em terceira pessoa duas histórias, que caminham juntas: conta a vida da
retirante Gabriela e sua relação amorosa com Nacib e, também, deixa o
leitor a par do dia a dia da cidade de Ilhéus, narrando intrigas pessoais,
passionais e políticas.
Em seu subtítulo, o romance Gabriela diz ser Crônicas de uma cidade
do interior. Ora, para um leitor atento salta, de imediato, um problema
formal. Isto é, temos em mãos um romance que se quer crônica. A
princípio, é bom que se diga, que uma forma não inviabiliza a outra,
dado que ambas pertencem ao gênero narrativo, contudo são diferentes
e possuem particularidades estético-literárias próprias.
De todo modo, a forma romance, para Antonio Candido, por exemplo,
consiste na elaboração de uma realidade “[...] por um processo mental que
guarda intacta a verossimilhança externa, fecundando-a interiormente por
um fermento de fantasia, que a situa além do cotidiano – em concorrência
com a vida” (CANDIDO, 2017, p. 429). O que não é necessariamente o
caso do gênero crônica literária, que em termos gerais se trata da narração
de fatos cotidianos narrados em sequência cronológica.
1
Professor da SEED-DF e pesquisador vinculado ao grupo Literatura e Modernidade
Periférica - POSLIT/UnB.

221
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Pois bem! Certamente alguém pode objetar que a narrativa ama-


diana de 1958 se trata um conjunto de cenas cotidianas da vida pública
e privada da cidade e dos habitantes de Ilhéus, o que concordamos em
absoluto. Inclusive, está, também nisto, manifesto a genialidade de Jorge
Amado. Quer dizer, o autor parte de banalidades do dia a dia ilheense,
de cenas diárias que oscilam entre o trágico, o pitoresco e o cômico, sem,
entretanto, ficar apenas nestas. Amado não se detém nas aparências mais
imediatas das circunstâncias, das coisas e das relações sociais, políticas
e culturais da zona cacaueira que, às vezes, aparece em Gabriela quase
como curiosidades. O autor de O menino grapiúna — em linguagem
usual, sem deixar, porém, de possuir sua complexidade — narra o
processo pelo qual as pessoas e as coisas passaram de um determinado
estágio sociopolítico e humano para outro. Desse modo, Amado avança
qualitativamente no que se refere às caracterizações do ambiente e das
figuras mais ou menos ativas da narração, conferindo-lhes atemporali-
dade no processo de desenvolvimento espacial (urbanização crescente) e
pessoal (caráter, passional, etc.) de suas representações. De mais a mais,
o escritor baiano na medida em que deixa seus personagens livres para
dizerem o que pensam e sentem e, também, serem o que quiserem ser, a
narrativa evidencia-se mais equilibrada e ajustada à luz do princípio da
verossimilhança e do realismo literário (em acepção lukacsiana).

Dessa maneira, ultrapassando os limites da crônica, Ga-


briela, cravo e canela está mais perto do gênero romance
— e porque não dizer do romance histórico! —, não
apenas pelo volume de páginas e pela narração de epi-
sódios cotidianos, mas principalmente por representar
a vida social dos homens em suas múltiplas interações e
contradições, por transfigurar as paixões e os destinos dos
personagens ao longo do desenvolvimento histórico-social

222
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

e político-econômico da cidade de Ilhéus, no sul da Bahia,


e por extensão, do Brasil.
Assim sendo, não é exagero ler e situar Gabriela como romance his-
tórico. Isto porque, seja pela forma, seja pelo conteúdo, a referida obra
amadiana consegue — aproveitando uma formulação do György Lukács
em O romance histórico (2011) — despertar ficcionalmente homens, que
protagonizaram grandes acontecimentos históricos. Para o dito filósofo,
no romance histórico “[...] trata-se de figurar de modo vivo as motivações
sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e
agiram de maneira precisa, retratando como isso ocorreu na realidade
histórica” (LUKÁCS, 2011, p. 60). Efetivamente, tal concepção alcança
o romance amadiano de 1958 quando representa em primeiro plano os
coronéis como grandes homens, pioneiros e valentes desbravadores, que
conquistaram, ocuparam e cultivaram grandes faixas de terras, fundado e
mandando em vilarejos e povoados, ditando o destino e a vida das pessoas
aos seus redores. Da mesma maneira, há os exportadores, há os herdeiros,
há os jagunços, todos personagens de segundo e terceiro planos. Alguns
assumidamente de posição liberal em relação a parte dos fazendeiros.
Há, ainda, as figuras femininas que assumem um posicionamento no
mínimo revolucionário, do ponto de vista das relações sociais e afetivas
em referência à classe dos homens e aos valores culturais patriarcais.
Vejamos como o mandonismo modificado se distingue do mando-
nismo tradicional e se consolida como tendência histórica em Gabriela,
cravo e canela.

223
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

1 — “O FUTURO SOU EU”: O MANDONISMO MODIFICADO2

A certa altura da narrativa Gabriela, cravo e canela, nós nos deparamos


com uma fala que se poderia dizer emblemática, senão despótica, dita
por aquele que antagonizará com os coronéis. Assim enuncia Mundinho
Falcão:

— O governador é um velho, o genro um ladrão, não valem


nada. Fim de governo, fim de um clã. Vais ficar contra
mim, contra a região mais próspera e poderosa do estado?
Burrice. O futuro sou eu, o governador é o passado. Além
de que, se venho a ti, é por amizade. Posso ir mais alto,
bem sabes. (AMADO, 2012, p. 42).
Na situação acima, Mundinho conversa com o Ministro da Viação
e Obras Públicas, e, à parte as acusações e intimidações, importam, a
princípio, as constatações e a afirmação “o futuro sou eu, o governador
é o passado”. Apesar da autoridade que vai nesta frase, aparentemente
a ambiguidade a respeito de o governador ser o passado é sintomática,
haja vista que o termo sugere alguém em particular que tende a ficar
para trás na linha da história, dando lugar a outro, mas também indica
um modo distinto (que não deixa de ser o mesmo) de se fazer política.
No enredo, o personagem Raimundo Mendes Falcão é o herdeiro
mais novo dos Mendes Falcão — importante, tradicional e influente
família, donos de terras e grandes produtores e comerciantes de café em
São Paulo. Mundinho Falcão, como é conhecido pelos populares, difere
em absoluto dos demais dirigentes que representam o comércio, sobretudo
a exportação, entre outras coisas, pelo seguinte motivo: a combinação de
2
O presente texto trata-se de um tópico de tese de doutorado de minha autoria, sob
orientação do Professor Doutor Edvaldo Bergamo, defendida e aprovada em 02 de
julho de 2021.

224
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

razões econômicas (dono e diretor de empresa de exportação em Ilhéus)


e políticas (ambição de se eleger deputado federal por si, representando
a zona cacaueira sul-baiana), o que já indica mudanças significativas na
cultura vigente até então. Aqui, vale observar o papel da influência da
família (residente em São Paulo, centro da modernização produtiva e
comercial do Brasil). Ademais, uma outra circunstância relevante que
distingue Mundinho é o lugar que ocupa no conjunto da narrativa do
cacau amadiana. Observando os três romances do ciclo antes de Ga-
briela (Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus), veremos que em
nenhum há uma atuação como a do personagem em causa. Quer dizer,
ainda que se repita o mote do progresso, ora encabeçado pelos coronéis,
ora protagonizado pelos exportadores, Mundinho Falcão será aquele que,
sem abrir mão do prestígio, da reputação e da justiça, aspectos típicos
da ordem civilizacional burguesa, disputa, no plano da modernização
conservadora brasileira em velocidade acelerada, a substituição do poder
de mando político local com os antigos conquistadores da terra, que se
fizeram maiorais, dominando a economia, a política, a vida e o destino
das pessoas ao redor deles, mas não mais são os agentes determinantes
do novo quadro histórico nacional em correlação com a vindoura etapa
do capitalismo internacional.

1.1 — MUNDINHO: UM HOMEM DO PRESENTE E DO FUTURO

Ao apresentar o personagem Mundinho Falcão ao leitor, o narrador


o descreve como:

Um homem ainda jovem, bem vestido e bem barbeado,


olhava a cidade com um ar levemente sonhador. Qualquer
coisa, talvez os cabelos negros, talvez os olhos rasgados,
dava-lhe um toque romântico, fazia com que as mulheres

225
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

logo o notassem. Mas a boca dura e o queixo forte eram


de homem decidido, prático, sabendo querer e fazer.
(AMADO, 2012, p. 40).
A respeito da apresentação do jovem e bem-sucedido exportador de
cacau, há duas coisas, a princípio, a serem observadas. A primeira é que
a descrição de Mundinho, além de demonstrar uma linguagem adequa-
da e justa por parte da voz narrativa, evidencia o aspecto aristocrático,
ostentado pela nova classe de homens de negócio, inclusive realçando o
ar burguês um tanto europeu adaptado à realidade brasileira de início
do século XX. Também, vale notar os princípios estéticos operados na
construção de Falcão, isto é, Mundinho é figurado como uma persona-
lidade mais ativa e menos ambiciosa e medíocre. Se comparado a outras
representações da mesma categoria no ciclo do cacau, como a figura de
Carlos Zude, em São Jorge dos Ilhéus, logo se vê o distanciamento que vai
entre um e outro. Tal fato pode ser justificado pela maturidade literária
do escritor, bem como pela desobrigação em seguir a cartilha de estética
literária zdanovista, conforme informa o próprio autor em entrevista a
Alice Raillard (1990), mas sobretudo pelo distanciamento temporal em
relação aos fatos representados.
De todo modo, ao ler Gabriela, fica evidente o empenho seja do
autor, seja do narrador em apresentar uma narrativa literária com alto
grau de politização, sem, contudo, ser panfletária. O elemento político
é predominante, porém ele aparece mediado, às vezes mesmo dissolvido,
pelos diversos acontecimentos — banais ou mais sérios — que colorem
o cotidiano ilheense. Assim, o personagem Mundinho Falcão desempe-
nha papel fundamental na medida em que, dotado de certa dignidade e
grandeza humana, faz-se — com determinada naturalidade, é verdade
— antagonista de parte dos coronéis representados pelo velho Ramiro
Bastos. Ademais, o mais novo dos Falcão, além de opositor político do clã

226
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

Bastos, é quem passa a vencer as batalhas travadas, resolvendo na prática


os problemas que entravam o desenvolvimento da localidade, o que, por
consequência, calha no progressivo respaldo e apoio da população a ele.
Acerca de o aspecto político aparecer mediado no romance de Jorge
Amado de 1958, vêm a calhar as considerações do professor Hermene-
gildo Bastos, quando diz, em seu texto sobre “Um romance histórico
de Leonardo Sciascia” (2012), que “Político é o gesto de criação da obra
porque é um gesto de invenção de um mundo outro, diverso daquele do
cotidiano, um gesto que se faz para estabelecer uma contraditoriedade”
(BASTOS, 2012, p. 157). Efetivamente, em Gabriela a política não é
apenas um mote ideológico advindo de fora, mas sim uma manifestação
intrínseca à própria obra como criação de um mundo, o mundo dos
homens.
Retomando, no início do romance, o narrador nos informa que
“Mundinho Falcão acreditava no progresso de Ilhéus e o incentivava”
(AMADO, 2012, p. 19). Eis uma das diferenças e, paulatinamente,
umas das molas propulsoras que alavancaram o personagem a opositor
dos Bastos com considerável sucesso. Isso porque Mundinho concentra
em sua personalidade algo impossível aos coronéis e seus projetos, qual
seja, visão de futuro e liberalismo econômico. O jovem exportador apa-
rece como um visionário na medida em que percebe as oportunidades
e nelas investe. Além da construção de sua moderna casa à beira-mar
e da fundação de uma avenida, emprestou dinheiro, sem cobrar juros,
aos amigos Jacob e Moacir Estrela para garantirem a empresa de ônibus
funcionando; também formou sociedade com Nacib na criação de um
moderno restaurante. Era um exímio filantropo, todavia a sua sacada
e o seu principal investimento foram a construção da barra de Ilhéus.
Mundinho percebeu e fomentou a ideia da exportação saindo direto
da cidade e nessa ideia empreendeu todo o seu esforço e a influência da
família Mendes Falcão.

227
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Se é verdade que as motivações do empresário para acreditar no pro-


gresso ilheense e incentivá-lo eram honestas e destituídas de ambições
espúrias, não é menos verdade que o cargo de deputado federal representava
para ele uma demonstração — principalmente para a família — de sua
maturidade pessoal e financeira, mas sobretudo de renovação política
“representativa” voltada, de fato, aos interesses da região, sem, contudo,
estar submetida à pessoa do mandão local. Neste aspecto, Mundinho
Falcão não só antecede as figuras que faziam oposição discursiva às po-
líticas dos coronéis — concentradas na pessoa do velho Ramiro Bastos,
como são os personagens Capitão, Doutor e João Fulgêncio —, mas
também sai na vanguarda em relação aos filhos dos fazendeiros, que,
posteriormente, endossarão a fala do exportador sobre ele ser o futuro.
Como fica evidente, os investimentos, por assim dizer, empreendidos
por Falcão caminham em direção ao liberalismo da economia local, até
então subordinada a uma política econômica patrimonialista. Neste ponto,
vale uma observação: diferentemente do personagem Carlos Zude e dos
demais exportadores figurados em São Jorge dos Ilhéus, a representação
de Mundinho Falcão não tende à expressão monopolista comercial. O
jovem comerciante, ao contrário dos personagens de mesma classe, que
o antecederam no ciclo do cacau amadiano, incorpora uma face liberal
cuja ramificação vai desde a política e a economia até à vida cultural da
cidade grapiúna e região. Ainda insistindo nessa questão, enquanto em
São Jorge os exportadores formam um grupo coeso e empenham-se em
monopolizar o setor comercial e financeiro, bem como em se apropriar
das terras dos coronéis, ambicionando controle total da economia e da
política, em Gabriela testemunhamos o personalismo político-econômico
na pessoa de Mundinho Falcão. Parte significativa do romance é dedi-
cada a ele, de maneira a realçar seu papel de benfeitor, de visionário, de
empresário bem-sucedido, de homem cordial, ser amistoso e íntegro, em
suma, alguém do presente em cuja face se pode ver o futuro.

228
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

Adotando um outro ângulo, um ponto que atravessa Gabriela, cravo


e canela é o sentido de ser grapiúna. Assim sendo, o narrador nos faz
saber que a “[…] maioria da população não media pelo nascimento o
verdadeiro grapiúna, e, sim, pelo seu trabalho em benefício da terra,
[…], pela sua contribuição ao desenvolvimento da zona” (AMADO,
2012, p. 39). Um pouco mais à frente, o narrador dirá ainda, de forma
enfática: “Ilhéus precisava de um homem como ele [Mundinho Falcão]
para incrementar o progresso, para imprimir-lhe um ritmo acelerado”
(AMADO, 2012, p. 43).
Se a história da zona cacaueira é uma história de aventureiros, que se
lançaram pelas densas florestas, derrubando árvores, plantando cacau,
sobrevivendo a todo tipo de adversidade e, também, formando povoados
ou melhorando freguesias e elevando-as à cidade, então não soa estranho
o enunciado expresso pelo narrador em relação ao “verdadeiro grapiúna”.
Essa questão será, por exemplo, um dos pontos de discordância entre os
coronéis. O velho Ramiro Bastos sente-se atingido por Mundinho menos
pelas benfeitorias que este esteja implementando na cidade de Ilhéus do
que pelo fato de o exportador não ser da terra. Destarte, ainda que, à
primeira vista, o problema pareça mera questão de intriga pessoal, não o
é visto que a motivação do enfrentamento do velho cacique político local
com o comerciante se dá por esse meter-se “a cuidar do ‘progresso da
cidade e da região’, a decidir sobre as necessidades de Ilhéus” (AMADO,
2012, p. 61). Contudo, mal sabe Ramiro Bastos que, para além de um
“forasteiro”, Mundinho Falcão está ligado a uma classe em ascensão, a
classe dos homens de negócio, para usarmos um termo de Caio Prado Jr.
(2004). Desse modo, a figura do exportador mistura-se com a imagem
do capital em expansão, a universalizar-se e a modernizar-se. Tal uni-
versalização passa obrigatoriamente pelos incrementos infraestruturais
da cidade grapiúna e região, bem como incorre invariavelmente pelas
mãos de uma liderança firme e antenada com as necessidades do povo.

229
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

No caso, considerando a tese do Brasil como periferia do desenvol-


vimento capitalista, a questão colocada é que Ilhéus seria a periferia da
periferia a sofrer o processo de modernização, de maneira a se inserir
no mercado globalizado da exportação direta. Daí a abertura da barra
e a posterior construção do porto serem o nervo da narrativa amadiana
de 1958. Ademais, em se pensando o jogo político entre o “velho” e o
“novo”, o coronel Ramiro Bastos sentia que as mudanças seriam ine-
vitáveis, porém desgostava de que fossem protagonizadas por alguém
que ele, na contramão dos seus conterrâneos, considerava “forasteiro” e
indigno da empreita.

1.2 — RAMIRO, MUNDINHO E A TRANSIÇÃO DO ARCAICO AO


MODERNO

No episódio em que o coronel Ramiro toma banho de sol, lemos o


seguinte:
Nacib lhe dava as notícias mais recentes, o coronel já tinha
sabido do encalhe do ita.
— Mundinho Falcão chegou nele. Disse que o caso da
barra…
— Forasteiro… — Atalhou o coronel. — Disse que diabo
veio buscar em Ilhéus onde não perdeu nada? — Era aquela
voz dura do homem que tocara fogo em fazendas, invadira
povoados, liquidara gente, sem piedade. Nacib estremeceu.
— Forasteiro.
Como se Ilhéus não fosse uma terra de forasteiros, de
gente vinda de toda parte. Mas era diferente. Os outros

230
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

chegavam modestamente, curvavam-se logo à autoridade


dos Bastos, queriam apenas ganhar dinheiro, estabelecer-se,
entrar pelas matas. Não se metiam a cuidar do “progresso
da cidade e da região”, a decidir sobre as necessidades de
Ilhéus. (AMADO, 2012, p. 61).
Como evidente, o tom vocal do coronel é revelador acerca do im-
pacto que a pessoa de Mundinho Falcão causa em seu espírito ancião
e de chefe político inconteste da zona cacaueira desde há muitos anos.
Entretanto, ainda que vivam papéis antagônicos e que ambos cultivem
certo sentimento de irritação em relação ao outro, no plano aparente
testemunhamos uma luta política, sugerindo um processo de transição
de uma forma atrasada de sociedade, com suas múltiplas e complexas
relações, para uma forma social moderna, ou melhor, contemporânea aos
desafios impostos pelos padrões civilizacionais ocidentais. Já no plano
essencial, o coronel Ramiro Bastos e o exportador Raimundo Mendes
Falcão estão subordinados a um sistema, ao menos no caso brasileiro, que
os antecede e que certamente os sucederá, isto é, a lógica da concentração
da riqueza e, sobretudo, o favor como mediação das relações de classes,
seja entre os grandes latifundiários e/ou pequenos proprietários, seja em
meio aos homens de negócio e/ou a uma classe média melhor servida
socioeconomicamente.
Conforme o professor Roberto Schwarz, em As ideias fora do lugar:
[…] com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou
no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a re-
lação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve
presente por toda parte, combinando-se às mais variadas
atividades, mais e menos afins dele, como administração,
política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mes-
mo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações

231
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

operárias, como a tipografia, que, na acepção europeia, não


deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por
ele. E assim como o profissional dependia do favor para o
exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende
dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário
para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal.
(SCHWARZ, 2000, p. 16, grifo do autor).
Sustentados os dois personagens amadianos pela mesma lógica sis-
têmica do favor, resta-lhes disputar a liderança política, locus por exce-
lência das decisões e ações de abrangência local, mas também nacional
e internacional.
Se o velho Bastos e os seus partidários têm o “compromisso” deles
— seja com o governador, seja entre eles —, o jovem Mendes Falcão
aproveita da influência familiar para pressionar o Ministro da Viação
e Obras Públicas na execução do projeto para a abertura da barra de
Ilhéus. Inclusive, o personagem direciona a seguinte fala ao ministro:
“[…] se venho a ti, é por amizade. Posso ir mais alto, bem sabes. Se falar
com Lourival e Emílio tu receberás ordens do presidente da República
para mandar o engenheiro” (AMADO, 2012, p. 42). De mais a mais,
ainda lemos, a certa altura na narrativa amadiana de 1958, o seguinte:
“os Bastos mandavam em Ilhéus há mais de vinte anos, prestigiados pelos
sucessivos governos estaduais. Mundinho, porém, atingia mais alto: seu
prestígio decorria do Rio, de governo federal” (AMADO, 2012, p. 144).
Deste modo, em substância, o “compromisso” dos fazendeiros para
com o governador, ou mesmo entre si, não difere do “compromisso” re-
fletido na atitude de Mundinho. Contudo, como fica evidente, há uma
alteração na ordem das coisas, que se mostram invertidas. Na situação
acima, não é o exportador que deve favores ao agente do Estado, mas,
ao contrário, este dobra-se a Mundinho quando lembrado do caso en-

232
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

volvendo “Berta, a holandezinha viciosa” (AMADO, 2012, p. 42) ou


da possibilidade de receber ordens do presidente.
A respeito dos compromissos firmados ou apalavrados entre o poder
político-econômico local e as instâncias administrativas do Estado, vale
observar que, enquanto a relação dos coronéis é mais próxima do governo
estadual — o que não significa que não tenham relações políticas e de
interesses com a esfera federal —, o contato e a influência do exportador
Mundinho Falcão são diretos com os ministros de Estado e mesmo com
o presidente da República.
Tal fato é a demonstração simbólica do poderio de uma classe domi-
nante em ascensão que, se, por um lado, ampara-se no prestígio desfrutado
pela família para pedir favores a representantes da administração pública,
por outro lado, tende a concentrar em si toda e qualquer possibilidade de
mudança, às vezes com certa ética, digamos, positiva, às vezes baseando-se
em princípios espúrios. De qualquer modo, o grupo dos comerciantes,
sintetizados em Gabriela na persona de Mundinho, é a representação dia-
letizada, por assim dizer, da formação de uma elite econômica e política
que, ao mesmo tempo que renova essas áreas fundamentais à sociedade
local e nacional, inclusive com consequências socioculturais, mantém as-
pectos da antiga forma social, sobretudo a propriedade privada e os meios
de produção. Além desses, essa elite preserva ainda os privilégios, como
lembra Florestan Fernandes em A revolução burguesa no Brasil (1976).

1.3 — MUNDINHO E OS OUTROS: O EU NO CENTRO

Há um trecho em Gabriela que narra o reencontro de Mundinho


Falcão com seus familiares. Lá, acompanhamos o diálogo entre os irmãos
Mendes Falcão. Após declarar que sairia candidato a deputado e os ir-
mãos dizerem que poderiam ajudá-lo, Mundinho expressa-se categórico:

233
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

“— Não vim aqui para pedir, vim aqui para contar”. E o primogênito
replica “— Orgulhoso, o rapazinho…” e segue a conversa: “— sozinho,
não te elegerás — previu Emílio. — Sozinho vou me eleger. E no terço
da oposição. Governo, só quero ser lá mesmo, em Ilhéus. Governo que
vou tomar, não vim aqui para solicitá-lo a vocês” (AMADO, 2012, p. 41).
Primeiramente, é importante observar que a figura de Mundinho
não é de alguém destituído de personalidade e autonomia, seja em
termos estético-literários, seja como representação de uma classe social
determinada que se coloca como sujeito “revolucionário”, alavancando o
progresso. O jovem Raimundo M. Falcão é um personagem que poderia
ser definido como um ser espirituoso, forte, decidido, de decisões firmes
e ações medidas, conforme demonstrado acima e também em outros
momentos do romance — o que, efetivamente, não poderia ser diferente,
dado o papel que ele cumpre na narrativa.
De todo modo, um leitor atento perceberá que existe uma característica
marcante em Gabriela, qual seja, a construção da narrativa sustentada
em dois planos: no primeiro, acompanhamos as histórias, as paixões e os
destinos individuais; já no segundo plano, observamos o desenvolvimen-
to das ações individuais culminar em decisões/ações coletivas. Em seu
estudo intitulado De Cacau a Gabriela: um percurso pastoral, José Paulo
Paes (1991) aborda este aspecto no romance de 1958, porém ele ressalta
que a coletividade se centra na luta política entre Ramiro e Mundinho
e que a individualidade se expressa no idílio amoroso de Gabriela e
Nacib — o que está correto. No entanto, considerando a expressividade
da figura de Mundinho Falcão na história (quase sempre ocupando o
centro das atenções) e observando certos traços sua personalidade — a
saber, manifestações despóticas, autoridade nas ordens dadas, ausência
de modéstia, astúcia e determinação em seus projetos —, veremos que
há um esforço em se construir uma individualidade que difere daquela
identificada por Paes. À primeira vista, Mundinho, assim como a própria

234
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

Gabriela, parece dominar a narrativa, chamando a si toda a atenção do


leitor, mas também o olhar de todos os personagens que habitam as
páginas do romance. Assim, transparece que há o desejo do narrador de
evidenciar e enfatizar o eu que comporta mudanças nas relações inter-
pessoais e afetivas em determinado tempo e espaço.
Mundinho e Gabriela são personagens centros, em torno dos quais
os demais giram. Cada um ao seu modo, representam forças sociais e
históricas que, embora distintas, não se anulam. Como já demonstrado,
as configurações do exportador permitem identificá-lo como capitalista
alinhado ao liberalismo político e econômico, mas conservador nos
costumes. Por seu turno, Gabriela é o extremo oposto do jovem Mendes
Falcão, tendo em comum apenas a simpatia e a atenção geral. De tais
constatações, pode-se dizer que, simbolicamente, as ações e reações tanto
de uma quanto de outra personalidade apontam tendências de progresso:
Mundinho agregando as transformações político-econômicas e Gabriela
integrando as mudanças socioculturais e humanistas.
Para além dessa relação síntese, por assim dizer, centralizando per-
sonalidades que, mesmo distintas, não se refutam, existem vínculos de
segunda e terceira ordens que se mostram significativos para a narrativa
em si e para a compreensão crítica (literária e histórico-sociológica) do
romance. Dessa maneira são, pois, as ligações entre o personagem Mun-
dinho Falcão e os coronéis e, também, entre o exportador e os demais
figurantes, que se ligam por laços afetivos ou ocupacionais (advogados,
jornalistas, oradores, bibliotecário, dono de bar e empregados no comércio
que cultivam princípios liberais).
Sem traço de modéstia, o narrador — usando do recurso da onisciên-
cia — nos informa que Mundinho estava convicto de que “Ilhéus precisa
de um homem como ele para incrementar o progresso, para imprimir-lhe
um ritmo acelerado, aqueles coronéis nem sabiam das necessidades da
região” (AMADO, 2012, p. 43). Já quase no desfecho da história, nós

235
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

nos deparamos com o discurso direto do filho do coronel Amâncio Leal,


declarando que o exportador era o futuro e o velho Ramiro era o passado
(AMADO, 2012, p. 263). Destarte, o personagem sabe o papel que lhe
cabe na história e busca desempenhá-lo de modo obstinado e altivo. Ainda,
os cidadãos notáveis, inclusos os herdeiros dos fazendeiros, também têm
ciência da importância de Mundinho para o desenvolvimento da cidade.
Para o exportador de cacau, é como se os donos da terra ignorassem
as necessidades da cidade e da região, cavando um fosso histórico entre
o acessório e o essencial, de maneira que urgisse um altivo “construtor
de pontes” que pudesse fazer a passagem da administração “atrasada” a
uma forma moderna, conforme as exigências do presente. E Mundinho
se vê como esse “construtor” e assume sem discutir tal função. Do outro
lado, todos também o veem assim e a ele imputam a ação.
Sendo assim, faz sentido o que diz José Antônio Pasta quando afirma
que “O outro é o mesmo ou, simplesmente invertendo, o mesmo é o outro
[…]: elas são elas mesmas sendo igualmente o outro que lhes faz face,
de modo que se pode dizer que elas se formam passando no seu outro:
elas vêm a ser tornando-se o outro. (PASTA, 2010, p. 19, grifos do autor).

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela — Crônicas de uma


cidade o interior. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BASTOS, Hermenegildo. Um romance histórico de Leonardo
Sciascia. Revista Matraga, Rio de Janeiro, v. 19, n. 31, p. 156-173,
jul./dez. 2012.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: Momentos
decisivos. 16. ed. São Paulo: FAPESP; Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2017.

236
O MANDONISMO MODIFICADO NO ROMANCE HISTÓRICO GABRIELA, CRAVO E CANELA, DE JORGE AMADO

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil —


Ensaios de interpretação
sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
LUKÁCS, G. O romance histórico. Tradução de Rubens Enderle.
São Paulo: Boitempo, 2011.
PAES, José Paulo. De Cacau a Gabriela, um percurso pastoral.
Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991.
PASTA, José Antonio. Volubilidade e idéia fixa (O outro no romance
brasileiro). Revista Sinal de Menos, São Paulo, n. 4, p. 13-25, 2010.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo:
Brasiliense, 2004.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Tradução de
Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record, 1990.
SCHWARZ, Roberto. A idéias fora do lugar. In: SCHWARZ,
Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34,
2000.

237
JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA


PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

Laís Conceição Portela1

INTRODUÇÃO

A literatura por muitos anos me acompanhou como refúgio para o


imaginário, possibilitando refletir-me em enredos jamais pensados no
contexto real, poesias e romances invadiram minhas mãos e fizeram laços
preciosos com a literatura. Mas é somente na era de isolamento e receios
virais que a literatura me toma novamente como forma de acalanto da
vida real, promovendo o diálogo da alimentação com a literatura, que
foi — e é —, de fato, saciar-me com palavras.
Então, é alimentando-me com Jorge Amado que venho a construir:
“Entre literatura, gastronomia e representação: a cozinha de Jorge Amado
na identidade sociocultural baiana”. Como minha primeira experiência
acadêmica em Letras, estre projeto me projetou pensar a cozinha ama-
diana, e é derivado deste trabalho — ainda em construção — que trago
hoje o diálogo entre a gastronomia e a literatura nas narrativas de Jorge,
essa tal “culinária de ritos e saberes”.
Pensar uma cozinha movida a rito e saberes é um tanto ousado,
mas, aqui, denomino-a, além da religiosidade, e trago o rito como
cerimônia que é o ato de comer, e o saber como todo o processo de
conhecimento, proposto nas leituras cheias de sabores. E é reconhe-
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens — UNEB.

239
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

cendo essas características expostas por Jorge Amado na construção


de seus enredos e personagens ligados à culinária, que se observa
a intertextualidade com a história e a geografia local.
Em diálogo com a cozinha soteropolitana, Jorge trouxe para a sua
ficção, caracterizada e representada, a comida de santo. E o negro-baiano,
um detentor de fazer a comensalidade, que cria e caracteriza a cozinha
regional, indo muito além do servir. A interação alimentar, social e literária
logo me proporcionou questionar qual a importância de Jorge Amado
na construção e representação da cozinha da Bahia. O projeto, por sua
vez, aborda a cozinha literária de Amado como um objeto necessário
para articular alimentação baiana e literatura, auxiliando a visibilidade
da comida regional se unindo ao entendimento de identidade e, conse-
quentemente, à linguagem.

1 — UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA NA


COZINHA DE JORGE

1.1 — JORGE, DA BAHIA, AMADO

Nascido em agosto de 1912, na cidade de Itabuna, sul da Bahia, Jorge


Leal Amado de Faria, conhecido também como Jorge Amado, buscou
representar o Estado e seus costumes através dos enredos ficcionais, muito
dizendo sobre a Bahia e suas características, mas a interação do autor
com a comida baiana vai muito além de uma caracterização. Jorge era
um verdadeiro comilão. Através de seus romances, mesmo repletos de
belezas, falou sobre a denúncia social, demonstrando a miséria e os efeitos
das políticas de repressão ao povo negro-baiano. (MASCARENHAS,
2011, p. 111; GOLDSTEIN, SCHWARCZ, 2009, p. 8-9).
Para Jorge Amado, a literatura sempre foi uma forma de comunicação
com a representação e a historiografia local; alcançar as narrativas de Jorge

240
JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

Amado só foi possível quando a crítica literária central se posicionou pa-


ralelamente à antropologia social e à cultura regional, conectando-se com
a historiografia entre os anos 70/80 do século passado. Responsável pela
disseminação de regiões baianas, o cacau foi um dos principais personagens
culturais de representação local, seguido do dendê e da farinha, compuseram
a trilogia de ingredientes presentes em contos e receitas. Diversos outros
elementos foram abordados em seus romances, que formaram a cozinha de
Jorge Amado, que mesmo não tendo o conhecimento da arte da cozinha,
alimentou seus personagens como si mesmo (ALVES, 2016, p. 101-103;
MASCARENHAS, 2011, p. 109-116; AMADO, 2014).
Buscando retratar o Brasil nascido no estado da Bahia, o autor
abordou o crescimento sociocultural e a participação afro-brasileira na
construção da identidade nacional. Na tentativa de diferenciar a cultura
baiana, Jorge recorreu a representações altamente líricas dividindo opi-
niões junto aos estudos sociais. Entretanto, o autor buscou demonstrar a
autopercepção do negro centralizado e se tornou importante para visua-
lizar o afro-baiano além da escravidão, sendo um sujeito humanizado e
detentor de qualidades, reconhecido em outros países, etnias e culturas.

1.2 — A COZINHA DE RITOS, SABORES E SABERES

É muito importante, para o diálogo entre a literatura e a gastronomia,


que se compreenda a importância da alimentação na formação da socie-
dade, pois a alimentação é uma ação própria de cada indivíduo, compar-
tilhado em grupos diversos; este ato perpassa o contexto social humano,
desde a necessidade biológica à espiritual. Isto é, a alimentação formou
relações sociais e de identidades desde os tempos primórdios, tornando-se
um instrumento para compreender o percurso da humanidade. E a partir
disto os estudos antropológicos, ancoraram-se na comensalidade a fim
de compreender como são dados os significados identitários deste ato,

241
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

confirmando como os hábitos alimentares são capazes de compreender


a sociedade (FRANZONI, 2016, p. 4-8).
E quando falamos do ato de comer, que forma relações, estamos falando
de gastronomia, mas não apenas do modo de fazer comida, mas de todo o
processo, desde o plantio ao que se colhe, se come, como se come, onde e
quando. E isto nos leva à percepção que o comer não é apenas fisiológico,
comer também é subjetivação e espiritualidade, com isto, entende-se que a
alimentação se posiciona como instrumento sociopolítico. E no que se diz
respeito à alimentação regional, temos um conjunto de etnias, geografias,
migrações, cultura e gênero ­(FRANZONI, 2016, p. 4-8).
Estas reflexões abordam diretamente o processo de construção da
cozinha baiana. Tendo como maioria mulheres negras e indígenas, estas
sempre foram responsáveis pelo preparo dos alimentos, sendo protagonistas
na construção da cozinha brasileira, mesmo sem obter o devido valor de
sua mão de obra. Em Salvador, capital da Bahia, as mulheres negras deram
visibilidade para a cozinha regional. Alforriadas, iam às ruas vender seus
quitutes na tentativa de se manter economicamente e socialmente (LEITE,
2012, p. 135-136; FERREIRA FILHO, 1998, p. 240-246).
O comércio alimentício nas ruas de Salvador logo sofreu suas tentativas
de marginalização, apesar da construção da cidade se dá diretamente por
este comércio predominantemente negro. Trazia as expressões e dialetos
africanos, que forjavam a manutenção da cultura afro-brasileira, além das
conotações religiosas que fomentavam as religiões de matrizes africanas.
Em 1920, estudiosos logo caracterizaram os alimentos como típicos e
de formação de identidade cultural regional e ainda que a comida não
fizesse parte da elite na época, estes eram os alimentos que representavam
a Salvador. Reafirmando assim como o alimento não só é identitário e
cultural, como é um ato de resistência política e social (FERREIRA
FILHO, 1998, p. 240-246).

242
JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

No entanto, por muitos anos, mesmo após tais processos culturais,


a cozinha baiana e brasileira centralizou-se na tentativa de se enobrecer
através da cultura europeia, diminuindo assim as participações étnicas
dos negros e indígenas, tornando-os apenas reprodutores das técnicas
dos colonizadores e sofrendo apagamento histórico na construção da
gastronomia brasileira, mas Jorge posicionou o negro como detentor
desse poder de promover a comensalidade.
A literatura, assim como a alimentação, não se delimita. Ambas
interagem entre si na tradição brasileira. Na literatura, a cozinha foi
disseminada em diversas obras abordada por vários cânones, de tal for-
ma que seus aspectos naturais, foram compreendidos através do recorte
geográfico e histórico de alguns enredos. Se tem visto grandes represen-
tações por meio da comida, indicando hábitos, personalidades, modo de
agir e a forma de cada personagem lidar a partir de sua interação com o
alimento, isto porque a construção do comer e suas representatividades
permitem pensar nos conceitos de identidade, história, cultura e política,
e se envolve diretamente as relações sociais e possibilitam narrativas
representativas e aproxima de uma realidade ou um local (CHAVES et
al, 2017, p. 77-80; KASPAR, 2016. p. 6-10).
Jorge Amado, por sua vez, se fez uma das grandes referências na
promoção da gastronomia na literatura, não só na expressiva cozinha
de sabores, mas na expressão social da cozinha de saberes da Bahia.
Como um grande comilão que sempre foi, deu do que comer aos seus
personagens comida repleta de espiritualidade e afro-baianidade, além de
alimentar que o lê, universalizando essa comida, formando uma conexão
cultural em suas narrativas. Com isto, a cozinha literária amadiana é
imortalizada, onde as receitas dialogam com religião, sedução, lugar
social, manifestações sociopolíticas (MARTINS et al, 2019, p. 228-229;
AMADO FILHO et al, 2021).

243
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Presente na obra pratos baianos, não só compostos pelo dendê, mas


por ingredientes do sul da Bahia, como o cacau e a farinha, são partícipes
de grandes momentos de suas narrativas, tornando-as um típico livro da
culinária da Bahia, com afeto e memória. No livro A Comida Baiana de
Jorge Amado ou O livro da Cozinha de Pedro Arcanjo com as Merendas de
Dona Flor (2014), reúnem-se receitas presentes nas vinte e sete obras do
autor, essas cheias de memórias e ingredientes da Bahia, desde a região
cacaueira até o litoral soteropolitano. É descrito por Rita Lobo (AMADO,
2014. p. 12) na apresentação da obra que o livro descreve superstições e
segredos culinários baseados na oralidade de quem cozinha com muito
sincretismo e herança cultural.
A grande diversidade de informações presentes nas obras de Jorge
Amado, referente à alimentação, renderia, segundo Paloma Amado (2014.
p. 21), uma pesquisa rigorosa do alimento com a antropologia, sociologia
e psicologia, dialogando com as relações interpessoais e comportamentais.
Deixando claro o quanto a relação de Jorge com a culinária baiana era
imprescindível para construção de personalidade dos sujeitos que compuse-
ram os enredos, dialogando entre si, no que se diz respeito à alimentação.
Na construção da prosa culinária, alguns personagens são exemplos
através de seu protagonismo. Gabriela se tornou primogênita, trouxe
em suas narrativas a região de ilhéus com texturas, cores e ingredientes
em uma nova dimensão e contexto. Atuando diretamente na literatura
de sabores, no qual o leitor se conectava diretamente com a região e
os ingredientes, migração ao sul da Bahia, dando luz à cultura local
e se fazendo uma quituteira que atrai para si o conhecimento do fazer
(AMADO, 2014; LEITE, 2012, p. 135-144).
Na cozinha de Pedro Arcanjo, denominada o manual de culinária baiana,
a relação da religião, do candomblé com o alimento se torna protagonista
na construção da narrativa deste personagem. Expressando a interação
do Orixá com o humano, quebrando os paradigmas da discriminação,

244
JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

o personagem tipifica a religião como parte da expressão espiritual do


alimento e de identidade territorial (AMADO, 2008; AMADO, 2014).
Dona Flor, por sua vez, é a precursora de uma externalização da
cozinha literária cheia de prazer e feminilidade com características sobre
o que comer, quando comer e como comer, de acordo com as manifes-
tações culturais presentes no retrato social de Salvador, também junto à
ancestralidade, pois toda essa especialidade possuía em suas características
alusão à Oxum. Não muito diferente à contemporaneidade da comida de
Salvador, que fez mulheres quituteiras, referências da culinária regional
e sua ancestralidade (AMADO, 2008; LEITE, 2012, p. 135-144).

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Dentre tantas inter-textualizações com a comensalidade, é visível que


o autor expressa em seus romances a realidade do sujeito baiano diante
dos problemas sociopolíticos de Salvador, caracterizando a história e
cultura num processo de firmamento do sujeito negro-baiano de forma
que dialoga com a memória e a afetividade a partir da alimentação. Que
incrivelmente se mantém paralelo à construção da cozinha baiana, mas
a cozinha verdadeiramente baiana, aquela com referências e técnicas
africanas e consequentemente brasileira. Então, temos aqui uma cozinha
composta não só por sabores, mas por saberes, sagrado e profano, onde
construiu-se a cozinha do Brasil, predominantemente afro-indígena, que
alimentou todos seus personagens.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ivia Iracema Duarte. A recepção crítica dos romances de


Jorge Amado. In: Colóquio Jorge Amado - 70 Anos de Jubiabá, p.
99-116, mai. 2006.

245
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

AMADO, Jorge. Dona Flor e Seus dois Maridos: história moral e de


amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008
AMADO, Paloma Jorge. A Comida Baiana de Jorge Amado ou O
livro da Cozinha de Pedro Arcanjo com as Merendas de Dona
Flor / Paloma Jorge Amado. São Paulo: Ed. Panelinha, 2014.
AMADO FILHO, João Jorge; AMADO, Maria João; AMADO
NETO, Jorge. Na casa do Rio Vermelho: memórias da Família
Amado. Canal Universidade da Gente no Youtube, 2021. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=y6izrhQ8lnM&t=191s Acesso
em 10 de agosto de 2021.
CHAVES, Viviany Moura; MEDEIROS, Michelle; LIMA, Clébio
dos Santos; PEREIRA, Helena Cristina Moura; DANTAS, Rebekka
Fernandes. Atlas Culinário da Literatura Brasileira: Alimentação e
Cultura. Ciência Plural, v. 2, n.3, p. 72-81, abr. 2017.
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as ruas: elites
letradas, mulheres pobres e cultura popular em salvador (1890-1937).
Afro-Ásia. n. 21-22, p. 239-256, jan. 1998.
FRANZONI, Elisa. A gastronomia como elemento cultural,
símbolo de identidade e meio de integração. Dissertação (Mestrado
em Ciências da Educação). Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Março, 2016.
KASPAR, Katerina Blasques. Gastronomia e literatura na formação da
identidade nacional. Comportamento, Cultura e Sociedade. v. 4, n.
2, p. 2-10, mar. 2016.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado: da ancestralidade a
representação dos orixás. Salvador: EDUNEB, 2012.

246
JORGE E A CULINÁRIA DE RITOS E SABERES: UMA PROSA ENTRE GASTRONOMIA E LITERATURA

MARTINS, Ricardo André Ferreira; BRITO, Luciana; SOUZA,


Pedro Palma de. Culinária, erotismo literatura na obra de Jorge
Amado. Revista de Estudos Literários da UEMS. v., n.22/2, p.
223-249, mai/ago. 2019.
MASCARENHAS, Anabel Guerra Silveira. A influência da obra
de Jorge Amado nas representações sociais cacaueira. Espaço
Acadêmico, v. 11, n. 126, p. 108-117, ago. 2011.
SCHWARCZ, Lília Moritz; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer (Org.). O
Universo de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

247
A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

Lurdes Bertol Rocha1

INTRODUÇÃO

Cacau e Jorge Amado são dois signos/ícones inseparáveis nas ter-


ras do “manjar dos deuses”. Por ter nascido nessas plagas, Jorge Amado
embrenhou-se na cultura regional, transformando-a, em seus escritos, num
patrimônio mundial. Através das obras de vários autores, mas, em especial
das de Jorge Amado, fica evidente que o cacau se tornou o signo pelo qual
almejavam se estabelecer no sul da Bahia os forasteiros, os aventureiros,
os de boa vontade, os que queriam enriquecer, os que pretendiam exercer
o poder. Todos que aqui aportavam atraídos pela fama mítica do cacau,
viam-no como o símbolo de sua redenção financeira, seu enriquecimento,
seu poder sobre a terra na qual o cacau fosse cultivado. Dos analfabetos aos
mais letrados, a boa safra do cacau era o sinal de um período de abundância
que lhes prometia dinheiro farto, viagens, festas, vida mansa.

1 — PRINCIPAIS OBRAS DE JORGE AMADO SOBRE A SAGA DO


CACAU NO SUL DA BAHIA

As principais obras de Jorge Amado, nas quais o personagem principal


é o cacau, responsável pela formação da região cacaueira, são:
1
Professora aposentada do curso de Geografia (Licenciatura e Bacharelado) da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Membro fundador da ALITA
(Academia de Letras de Itabuna).

249
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Cacau — 1933
Primeiro romance do ciclo do cacau. Mostra a vida sofrida dos tra-
balhadores das fazendas de cacau no Sul da Bahia na década de 1930.
Terras do Sem-Fim — 1943
Mostra a vida sofrida dos que venceram a mata, plantaram e colheram
os frutos dourados. Retrata a força e a violência dos coronéis na época
da conquista da terra.
São Jorge dos Ilhéus — 1944
Continuação do romance Terras do Sem-fim. É uma radiografia do
drama da economia cacaueira, a passagem das fazendas para as mãos
de exportadores, elementos exógenos, porém, organizados e dinâmicos.
Gabriela, Cravo e Canela — 1958
Romance de costumes, retrata a Ilhéus de 1920 com seus coronéis,
fazendeiros, assassinatos, amores, manobras políticas.
O Menino Grapiúna — 1981
Reminiscências de sua época de garoto nas fazendas de cacau.
Tocaia Grande: a face obscura — 1984
Neste romance o personagem principal é a cidade; conta a história
do lado obscuro de sua criação com seus personagens: trabalhadores,
jagunços, prostitutas e aventureiros em busca de um pedaço de chão.

2 — A SAGA DO CACAU NA LITERATURA REGIONAL

Pela saga do cacau no Sul da Bahia retratada na literatura regional


é possível identificar costumes, valores morais e religiosos, hábitos, o
cotidiano da população do campo e da cidade. Os relatos ficcionais
permitem elaborar mapas mentais que levam a fazendas, igrejas, bares,
cabarés, praças, ruas. Dessa forma, o cacau e o homem grapiúna ganha-
ram a imortalidade graças ao registro feito em romances, poesias, contos,
que ganharam o mundo.

250
A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

Os personagens que Jorge Amado e Adonias Filho imortalizaram em


seus romances permanecem, de alguma forma, escondidos em algum
lugar, pela zona do cacau, buscando uma nova vida. Os poetas e escritores
de tempos mais recentes continuam a cantar e contar a saga da região e
a história da formação dos lugares.
Jorge Amado, um dos principais ícones da literatura regional/nacional
concebe, em suas obras, a nação grapiúna, nascida das reminiscências
de sua infância vivida como filho de fazendeiro nas terras do sem-fim
da região cacaueira da Bahia, onde os principais personagens são o
coronel, o jagunço e o trabalhador rural, autores e atores das histórias
daquela terra. Amado descreve como se deram a conquista e posse do
território no Sul da Bahia, denuncia as injustiças sociais, a prepotência
dos coronéis, a vida de trabalho árduo e quase escravo dos trabalha-
dores das fazendas. É em seus escritos que se tem notícia detalhada de
que, segundo Tica Simões (1996, p. 126) “[...] a lei do mais forte é a
lei da região do cacau, onde a ambição é a mola propulsora dos seus
habitantes, os grapiúnas”.
Através de suas obras, Jorge Amado mostra uma espacialidade própria
de uma região de domínio da monocultura do cacau, com seus coro-
néis, jagunços, trabalhadores rurais, cidades, vilas, arruados. A partir
das vivências cotidianas dos vários personagens de sua obra, observa-se
a construção de uma territorialidade onde predomina a desigualdade
social, pautada principalmente pelas relações de poder na prática social
dos diferentes grupos sociais.
A análise de algumas de suas obras (Cacau, Terras do Sem-fim, São Jorge
dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela, O Menino Grapiúna, Tocaia Grande)
permite a apreensão dessa espacialidade/territorialidade. Pode-se detectar
nelas as relações sociais historicamente construídas, como resultado das
relações econômicas, políticas, religiosas, ideológicas. Na ótica do autor,
a sociedade é extremamente desigual, sendo que esta desigualdade se faz

251
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

mais visível nos tipos de habitação dos coronéis, do trabalhador rural,


do homem comum na cidade.
Nos romances de Jorge Amado, os coronéis do cacau são homens que
desejam que seus filhos sejam doutores (médicos, advogados, engenheiros).
Muitos, porém, não se tornam bacharéis, mas escritores, criadores de vida.
Em seus escritos, o coronel é um homem forte, aventureiro, ardiloso,
sagaz, maquiavélico, ousado, carrasco. Quando ainda na formação de
suas fazendas, parte à frente dos cabras, para a derrubada da mata e o
plantio da lavoura nova.
As obras de Jorge Amado, aqui citadas, mostram a saga do desbra-
vamento das matas para plantar o cacau, produto que já se constituía
numa importante riqueza econômica. A narrativa de Jorge Amado nesses
romances mostra um período não contado na história oficial desta lavoura
quando o cacau ainda não era notícia.
Os personagens que povoam as páginas dos textos de Jorge Amado são
homens de poucos recursos, porém, com força bastante para derrubar matas
com instrumentos primitivos como o machado e o facão, homens que se
tornariam fortes, corajosos e que seriam o pivô de grandes tensões sociais.
Em Cacau (AMADO, 1982) são recriadas as etapas da construção do
espaço onde se desenvolveria uma cultura das terras do sem-fim. Nele são
denunciadas as injustiças sociais, a prepotência dos coronéis e a condição
miserável em que viviam os trabalhadores nas fazendas.
Em O Menino Grapiúna (AMADO, 1982) são narrados os percalços
da conquista da terra na qual se desenvolveria a civilização grapiúna na
futura Região Cacaueira.
Em Terras do Sem-Fim, Amado (1987) deixa clara a relação de poder
entre os coronéis e seus subalternos e entre os coronéis e seus inimigos.
Analisa a sociedade do cacau, mostrando a forma de pensar dos coronéis,
representada pelos irmãos Sinhô e Juca Badaró e seu rival, Horácio da
Silveira. Sendo irmãos, Juca e Sinhô pensavam e agiam de forma seme-

252
A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

lhante, apenas divergindo na maneira de sentir o findar da vida de quem


matavam ou mandavam matar a fim de tomar-lhes as terras: Sinhô com
resquícios de dignidade, e Juca tendo prazer no ato de matar ou mandar
fazê-lo pelos seus jagunços. Pelas mortes, abriam-se os caminhos para a
posse das matas nas quais as lavouras de cacau seriam estendidas.
O espaço geográfico é percebido de diferentes formas, de acordo com
os interesses dos grupos sociais que o habitam. Em Terras do Sem-Fim
(AMADO, 2001, p. 304) isso fica claro, quando o autor escreve que Juca
Badaró “[...] não via na sua frente a mata, o princípio do mundo. Seus
olhos estavam cheios de outra visão. Via aquela terra, a melhor terra do
mundo para o plantio do cacau”. A mata, para seus desbravadores, não
era um mistério, não era uma ameaça, era um deus, um espaço onde os
homens se sentiam arrepiados e tremiam, onde seus corações ficavam
em sobressalto; era a mata-deus que viam à sua frente.
A obra São Jorge dos Ilhéus (AMADO, 1999) é, na realidade, conti-
nuação de Terras do Sem-Fim (AMADO, 2001). Nele, o autor faz um
retrato das injustiças sociais, do papel da política nas terras do cacau.
Coloca em evidência o golpe dos exportadores que levaram a região a uma
grave crise econômica e social. Em resumo, São Jorge dos Ilhéus conta a
história da conquista e posse das terras do cacau no Sul da Bahia pelos
coronéis feudais do princípio do século XX, as vitórias e as derrotas da
economia cacaueira. Políticos e exportadores conseguem induzir a alta
dos preços do cacau, baixando-os em seguida. Isso levou à morte coronéis
e pequenos lavradores, porque a baixa de preços levava os proprietários
endividados a entregar suas terras aos exportadores.
No afã de gastar o dinheiro do cacau que ainda estava nos pés “esque-
ciam tudo, pois o cacau estava a cinquenta e dois mil réis. Era o nunca
visto. Nem ouro valia como caroço de cacau” (AMADO, 1999, p. 307).
O poder do fruto refletia-se nas “[...] roupas elegantes, nos automóveis de
luxo, no desperdício de ouro nos andores dos santos” (AMADO, 1999, p.

253
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

313). Nessa dança da subida estonteante do produto, não se deram conta


de que era uma manobra dos exportadores para derrubá-los e tomar-lhes as
fazendas como pagamento das dívidas contraídas. A queda veio sem aviso
quando, na calmaria dos preços que subiram de dezenove para cinquenta
mil réis a arroba, em dois anos, “[...] a queda foi muito mais rápida, o cacau
baixando de cinquenta a oito mil réis em cinco meses” (AMADO, 1999,
p. 322). Como consequência desta crise ocasionada pela alta vertiginosa e
em seguida uma queda brusca dos preços, escreve Jorge Amado:
[...] quase todos os coronéis haviam subido para as fazendas,
fechados os palacetes em Ilhéus, esquecidos os automóveis
nas garagens, abandonadas as amantes. [...] Voltaram às
casas-grandes, às roças, às esposas, novamente animando
as criações de aves nos terreiros, acendendo os grandes fo-
gões, limpando os tachos para os doces, providenciando o
plantio do milho para o São João (AMADO, 1999, p. 324).
Talvez esta reviravolta econômico-social possa ser comparada aos es-
tragos feitos pela vassoura-de-bruxa que campearia pela região cacaueira
no final dos anos 1980. Ou, quiçá, a narrativa de Jorge Amado tenha
sido um prenúncio do que a bruxa traria com sua vassoura.
No entanto, há quem conteste essa visão de Jorge Amado sobre o
papel dos exportadores na crise dos preços do cacau ocasionando a ruí-
na dos fazendeiros. Segundo Vinháes (2001, p. 217), “[...] na realidade,
muitas fazendas passaram às mãos dos exportadores, mas, em verdade,
não como romanceado por Amado”.
Se os exportadores se utilizaram ou não do expediente de provocar,
artificialmente, a alta dos preços e, em seguida, baixá-los de forma
drástica e em curto espaço de tempo, com a finalidade de se apossar das
propriedades dos cacauicultores, o que há de real é que, muitos deles,
realmente se tornaram donos de grandes fazendas após as baixas de preço.

254
A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

Em O Menino Grapiúna (AMADO, 1982), o autor deixa claro que


o amor e a morte são temas constantes em sua obra de romancista. Nele
retrata uma região muito particular em sua formação, em que “[...] as
cruzes demarcavam os caminhos do alardeado progresso da região, os
cadáveres estrumavam os cacauais” (AMADO, 1982, p. 13).
Se nos romances de Jorge Amado, os personagens são essencialmen-
te conquistadores de terras para o cacau, o Gabriela, Cravo e Canela
(AMADO, 2002), também tendo o cacau como pano de fundo da vida
dos personagens, a história é essencialmente urbana, em que é evidente
a demonstração da força política. Este espaço é retratado com sua or-
ganização bem definida no qual se manifestam o poder e a submissão.
No centro da cidade (de Ilhéus), moram os coronéis, os comerciantes,
os exportadores em seus palacetes dos quais saem as diretrizes que co-
mandam toda a vida política, social, econômica e a dos subordinados,
moradores da periferia. Em Ilhéus, centro nervoso regional da época,
espocam bares, cabarés, cinemas, colégios. E, para que a cidade se tor-
nasse cada vez mais dinâmica, com equipamentos urbanos que fizessem
frente às necessidades da elite, para a educação das filhas, e satisfizessem
à religiosidade das mulheres, “[...] fazendeiros, exportadores, banqueiros,
comerciantes, todos deram dinheiro para a construção do colégio das
freiras, destinado às moças ilheenses, e ao Palácio Diocesano, ambos no
Alto da Conquista” (AMADO, 2002, p. 13).
Neste romance entra o árabe Nacib, um personagem que não é da cultura
cacaueira, mas que passou a viver dela. Este fato já vislumbra a chegada de
imigrantes estrangeiros, não para formar roças de cacau, mas, para viver do
resultado delas, na cidade, a qual era sustentada pelos negócios do cacau.
As obras de Jorge Amado anteriores à década de 1980 fazem uma-
leitura da Região Cacaueira a partir da perspectiva do poder do coronel.
Já no romance Tocaia Grande — a face obscura, segundo Tica Simões
(1998, p. 123), há uma releitura da região, sob o ponto de vista do

255
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

menos favorecido: do trabalhador rural, da prostituta, do negro, do


árabe comerciante. Reconta a história de outra perspectiva, a versão
não-oficial dos trabalhadores que ficaram esquecidos. Coloca em xeque
a versão dos coronéis, revelando a face obscura, a versão dos mais fracos,
do verdadeiro herói, esquecido pela história oficial. Enquanto em seus
outros livros, chamados pela literatura de ciclo do cacau, o coronel é o
personagem principal, em Tocaia Grande — a face obscura faz o resgate
dos verdadeiros heróis, os trabalhadores das roças de cacau. Nesta obra
aparecem os elementos formadores da nação grapiúna: o árabe, o negro
e o sertanejo sergipano. Segundo Tica Simões (1996, p. 128)
O árabe representa o elemento branco das terras do cacau
[para quem] a ânsia de enriquecer e o comércio é uma das
formas de alcançar a riqueza. [...] Com o negro veio a crença
nos Orixás, no Candomblé [...] no sentimento da importância
da liberdade. [...] Os sergipanos [...] distanciados do poder
econômico eram os verdadeiros heróis; movidos por imenso
sentimento de solidariedade faziam dele lei, código de honra.
Nesse romance, o personagem central é a cidade, em sua trajetória passo
a passo: de lugar de pernoite a arruado, depois lugarejo, arraial, povoado e,
pela ordem natural, cidade. Como nas demais cidades que surgiram por
conta do cacau, a ficção mostra o que houve na realidade em sua gênese:
enchentes, tocaias, coronéis, jagunços, prostitutas, caxixes, cobras, vindo
à tona a história da coragem dos que realmente construíram a cidade, for-
maram as fazendas de cacau, esquecidos pela história oficial, submissa ao
poder. Torna visível a face obscura do sofrimento, dor, trabalho e conquista.
Da relação entre o real e o imaginário, nasce a ficção, que é uma
realidade do cotidiano, fruto do imaginário do autor e não um polo
oposto a ela. Um romance é a manifestação cultural de um povo. Jorge
Amado cria suas histórias e seus personagens a partir de uma relação do

256
A REGIÃO CACAUEIRA NOS ESCRITOS DE JORGE AMADO

vivido e do imaginário, criando assim sua ficção na qual brotam fatos,


lugares, homens, mulheres, crianças, heróis, bandidos, políticos, coronéis
do cacau, mulheres da vida, aproximando-os da vida real.
Os perfis humanos criados pelo escritor deixam claros os costumes,
desejos, crenças, forma de ser de um povo, o do Sul da Bahia, cujos pés e
coração apresentam-se lambuzados pelo visgo do cacau. Ele recria a história
dos “[...] ricos fazendeiros, os chamados coronéis do cacau, [...] época em
que falar de cacau era falar em dinheiro e poder” (MENEZES, 2001, p. 18).
Descreve a beleza, o lirismo, a exuberância e os mistérios da natureza,
representados pela Mata do Sequeiro Grande (hoje Itajuípe), território
de lutas pela posse da terra em Terras do Sem-fim, por exemplo. A mata,
na descrição do autor, torna-se mágica. É possível ouvir os ruídos, as
lamentações dos ventos que açoitam as árvores; ver o negrume da noite
que tudo encobre e que tudo esconde dos olhares de quem não sabe olhar.
É essa mata que será transformada na roça de cacau, palco de riqueza,
poder, lutas de vida e morte pela posse e permanência nas terras.
Atualmente, o cacau não é mais uma semente plantada em terras
regadas pelo sangue de jagunços, coronéis, advogados do caxixe, mas
continua vivo no imaginário como um mito, fazendo, principalmente
de Ilhéus, um cenário onde os romances, a poesia, as trovas não deixam
morrer os personagens criados por eles, os quais perambulam pelas ruas,
travestidos em atores, prédios, praças, como o Bataclan, a quadra Jorge
Amado, o bar Vesúvio do Nacib e da Gabriela, entre tantos outros.
A partir das obras aqui analisadas apreende-se, através de frases, falas,
ideias nos textos, as mais diferentes formas em que o cacau aparece como
um signo que comanda a vida de toda uma região. Enquanto para os
proprietários de fazendas o cacau representa a riqueza, o luxo, o poder, o
caxixe, para os trabalhadores significa muito trabalho, pouco dinheiro, sua
vida e a da família como complemento das roças, uma máquina a serviço
do plantio, da colheita e do transporte do produto para enriquecer cada vez

257
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

mais seu patrão. Para o jagunço é a oportunidade de mostrar seus dotes de


violência, com os quais faria a segurança dos frutos de ouro a qualquer custo.
A obra de Jorge Amado foi, assim, importante propaganda da região
Sul da Bahia. Graças a ela a região cacaueira ficou famosa nos mais
diversos pontos do país e do mundo, criando uma mística especial no
imaginário popular.

REFERÊNCIAS

AMADO, J. Cacau. 40. ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.


AMADO, J. O menino grapiúna. Rio de Janeiro: Record, 1982;
1996.
AMADO, J. Terras do Sem-Fim. Rio de Janeiro: Record, 1987;
2001.
AMADO, J. São Jorge dos Ilhéus. 52. ed. Rio de Janeiro: Record,
1999.
AMADO, J. Gabriela, Cravo e Canela. 87. ed. Rio de Janeiro, São
Paulo: Record, 2002.
MENEZES, J. S. As imagens de Ilhéus em Terras do Sem-Fim, São
Jorge dos Ilhéus e Gabriela Cravo e Canela. UESC. (monografia de
pós-graduação lato sensu em 2001).
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Turismo cultural e
sustentabilidade: exemplo da região Sul do estado da Bahia, Brasil.
Disponível em: <http://www.naya.org.ar/turismo/congreso/potencias/
maria_de_lourdes.htm>.
VINHÁES, J. C. São Jorge dos Ilhéus: da capitania ao fim do século
XX. Ilhéus: Editus, 2001.

258
A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E


DESENVOLVIMENTO REGIONAL1

Maria de Lourdes Netto Simões2

Como sabemos, a obra amadiana trata do povo da Bahia, Brasil;


para essas reflexões, porém, serão focados os textos da Saga Cacaueira.
Jorge Amado, nascido em Ferradas (1912), distrito de Itabuna, no
entanto, viveu a sua infância em Ilhéus. Essas cidades, Itabuna e Ilhéus,
situadas no Sul da Bahia, berço do seu filho mais ilustre, irmanam-se:
Itabuna, como centro comercial; Ilhéus, local de lazer e turismo.
De menino do cacau, filho de fazendeiros desbravadores, Jorge Amado
passou a ícone sul-baiano e referência nacional e mundial da ficção brasi-
leira. Nesse sentido, para o quê aqui quero discutir — a obra amadiana
e o turismo: identidade e desenvolvimento regional —, perguntas se
impõem em via de mão dupla. De um lado, questiono:
• As terras onde o menino Jorge viveu interferiram no imaginário
do escritor?
• A obra ficcional amadiana apresenta marcas dessas terras do cacau?
Por outro lado, também, pergunto:
• A obra amadiana tem influenciado no cotidiano regional?
• A obra tem impactado sobre o desenvolvimento local?
1
Artigo revisto e atualizado em 2021. Publicado anteriormente sob o título De
história e ficção amadiana para o desenvolvimento regional. In: SIMÔES, Maria
de Lourdes Netto. Pluralidades – patrimônio cultural e viagens. Ilhéus: Editus,
2018. p. 127-135.
2
Professora Titular, aposentada. DLA/ UESC

259
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Essas questões se justificam porque considero a expressão literária


como influenciada e influenciadora da história (SIMÕES, 1998, p. 23);
nesse caso específico, penso em como a região enriqueceu o imaginário
amadiano e como essa obra ficcional vem contribuindo para o desenvol-
vimento local. A cultura é tomada como recurso, “[...] utilizada como
atração para o desenvolvimento econômico e turístico” (YUDICE, 2004,
p. 11). Naturalmente, esse posicionamento que toma a cultura como uma
mola propulsora somente quer acrescentar funcionalidade à compreensão
de que a cultura implica nas interpretações, que fazemos dos fatos do
mundo, das vivências de forma compartilhada (GEERTZ, 1978).
Nesse entendimento, visando abordar a força da obra para o turismo
local, inicialmente quero destacar o imaginário que conta o chão grapiú-
na, a saga do cacau, representada nos romances: Cacau (1933), Terras
do sem-fim (1942), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela, cravo e canela
(1958), Tocaia grande — a face obscura (1984).
Senão, vejamos.

1 — A PRESENÇA SUL-BAIANA NA FICÇÃO AMADIANA

É o próprio Jorge Amado quem considera as suas origens ligadas à


formação da cultura sul-baiana, quando afirma em O Menino Grapiúna:
Rapazola, meu pai abandonara a cidade sergipana de
Estância, civilizada e decadente, para a aventura do des-
bravamento do sul da Bahia, para implantar, com tantos
outros participantes da saga desmedida, a civilização do
cacau, forjar a nação grapiúna. (AMADO, 1981, p. 11)
A conquista do chão do cacau foi, progressivamente, moldando as
matrizes culturais da microrregião cacaueira; coronéis, jagunços e tra-
balhadores rurais desbravaram e construíram uma civilização. Naquele

260
A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

início, a lavoura do cacau alcançou destaque nacional e internacional; foi


o gerador da dinâmica sociocultural da região. Desde então, os “frutos
de ouro” passaram a ser o referente do imaginário regional.
Naquele contexto, a memória do menino Jorge Amado registrou
dramas vivenciados que, depois, o escritor ficcionalizou: as questões da
terra, sua conquista; perfis típicos; hábitos, crenças, valores. Assim, como
ele próprio afirma, o ficcionista foi construindo, progressivamente, a sua
saga do cacau. Nos seus primeiros livros, pela ótica do poder, conta a
origem e o crescimento da civilização grapiúna, o desenvolvimento de
Ilhéus, o nascimento de Tabocas, depois Itabuna.
Em Cacau, o primeiro romance da saga, evidencia o desequilíbrio
social. De um lado, a opulência dos fazendeiros; de outro, a pobreza dos
trabalhadores:

Ficaram olhando. Como era grande a casa do coronel


[...]. E olharam as suas casas, as casas onde dormiam.
Estendiam-se pela estrada. Umas vinte casas de barro, co-
bertas de palha, alagadas pela chuva. — Que diferença....
(AMADO, 1933, p. 12).
A ficção refere que a ambição, simbolizada no visgo do cacau, prende
as pessoas à terra, torna-as grapiúnas. Em Terras do sem-fim, Jorge Amado
foca a conquista feudal. Depois, ocupa-se da conquista imperialista dos
exportadores, em São Jorge dos Ilhéus. E é o próprio Jorge Amado quem
declara a forma como o vivenciado foi ficcionalizado:

Nesses dois livros, tentei fixar, com imparcialidade e pai-


xão, o drama da economia cacaueira, a conquista da terra
pelos coronéis feudais, no princípio do século; a passagem
das terras para as mãos ávidas dos exportadores nos dias
de ontem. E se o drama da conquista feudal épico e o da

261
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe a


culpa ao romancista (AMADO, 1992).
Assim, passo a passo, vai reapresentando a história da terra em que
viveu a sua infância. A demonstração da força política, do progresso local
são, depois, tratados em Grabiela, Cravo e Canela:
Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e
Itabuna. [...] A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar
de acampamento guerreiro que a caracterizava no tempo
da conquista da terra. [...] a cidade esplendia em vitrines
coloridas e variadas. (AMADO, 1958, p. 69)
Esse período ocorreu entre as décadas de 30 e 80 do século XX,
tempo áureo da lavoura do Cacau. Na ambiência regional, essa foi a
época de riqueza social, quando a comercialização e a exportação do
cacau provocaram a febre da riqueza e de valores centrados no ter. Essa
cultura forjou elementos caracterizadores dos comportamentos de uma
época, que foram ficcionalizados, então, da perspectiva dos coronéis.
Depois, o imaginário amadiano se amplia e se redimensiona; os
questionamentos gerados pelos desmandos de uma visão coronelista,
centrada no ter, provocaram novos olhares. Mais de vinte anos depois
de ter publicado Gabriela..., em Tocaia Grande, Jorge Amado relê a saga
do cacau pela ótica do trabalhador rural, da prostituta, do negro, do
árabe (sírio e libanês) — os comerciantes, as pessoas simples, os menos
favorecidos. E afirma a sua intenção autoral:
Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero
descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida
dos compêndios da História por infame e degradante;
quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do
barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e

262
A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do


homem civilizado. (AMADO, 1984, p. 15)
Com contornos épicos e da perspectiva dos vencidos, o escritor rea-
liza a mitificação literário-ideológica do popular, quando ficcionaliza a
história pela ótica dos excluídos, buscando recolocar a nação grapiúna e
discutir a sua identidade.
[...] cruzam-se hábitos, maneiras de festejar e chorar.
Misturam-se sergipanos, sertanejos, levantinos, línguas e
acentos, odores e temperos, orações, pragas melodias. Nada
persistia imutável nas encruzilhadas onde se enfrentavam
e se acasalavam pobrezas e ambições provindas de lares
tão diversos. Por isso se dizia grapiúna para designar o
novo país e o povo que o habitava e construía. (AMADO,
1984, p. 191).
Dessa forma, vão sendo assimilados hábitos e costumes; alimentação,
religião, posturas éticas, valores... Progressivamente, à chamada civilização
do cacau, incorporam-se os comportamentos dos chegantes.
A obra de Jorge Amado, em representação dessa nação grapiúna,
chega aos quatro cantos do mundo. É traduzida em vários idiomas, de
distintos países; e, como sabemos, é relida em várias linguagens: teatro,
novela, cinema, fotografia...
Então, se retomamos as questões iniciais aqui postas, podemos res-
ponder afirmativamente que, sim, as terras onde o menino Jorge viveu
interferiram no imaginário do escritor. E não somente a análise da saga
mostra isso, como também os vários depoimentos dados pelo próprio Jorge
Amado ao longo de muitas entrevistas. Sim, a obra ficcional amadiana
apresenta marcas das terras do cacau.

263
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

2 — A FICÇÃO AMADIANA E O TURISMO — O DESENVOLVIMENTO


LOCAL

Mas, afinal, Jorge Amado e sua obra têm influenciado no cotidiano


regional? A obra tem impactado sobre o desenvolvimento local, espe-
cialmente no município de Ilhéus, cenário central da saga do cacau?
Como referem a história e a ficção, a microrregião cacaueira sofre
com os desmandos dos homens e as circunstâncias de uma opção agrícola
de monocultura.
As pragas da podridão parda e, depois, da vassoura-de-bruxa assola-
ram a lavoura. Pelos anos 1990, em crise da economia, a região procura
alternativas. De posse da nova realidade da decadência da lavoura ca-
caueira, a região passa a buscar outras formas de desenvolvimento. Por
suas características naturais e seu perfil cultural e histórico, as alterna-
tivas apontam para o turismo. A comunidade busca respostas próprias
para sua situação histórica e geográfica privilegiada no mapa do país.
Passa a valorizar a sua singularidade: estar situada na Mata Atlântica
remanescente, possuir uma das maiores biodiversidades do planeta e um
dos litorais mais belos do Brasil; o seu patrimônio arquitetônico, a sua
multiculturalidade, inclusive o fato de ser o berço de um dos maiores
expoentes da literatura nacional: Jorge Amado.
Assim é que a figura do seu escritor maior passa a ser um dos princi-
pais motores para alavancar o turismo local. Especialmente, os ilheenses
recorrem ao fato de que a saga grapiúna, lida nos quatro cantos do mundo,
atrai visitantes; faz leitores tornarem-se turistas a procura de reconhecer o
local ficcionalizado. O ícone Jorge Amado passa a ser potencializado pela
comunidade como atração para a região. É tomado como marketing em
apelos turísticos, bem como acontece em vários outros lugares: Guimarães
Rosa, em Cordisburgo, MG; Eça de Queirós, em Portugal; Kafka, em
Praga, somente para citar dois exemplos. A ficção funciona, então, como

264
A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

agenciadora dos trânsitos (SIMÕES, 2002). As fronteiras redesenhadas


pelo imaginário fazem o espaço/tempo ficcional projetar o espaço/ tem-
po real no leitor (turista da cidade imaginada), instigando-o ao trânsito
que o torna turista (leitor da cidade real). O princípio é de que o leitor
resolve um dia visitar as terras ficcionalizadas e, assim, torna-se turista.
Dessa forma, também, tem acontecido nas terras do cacau. A comu-
nidade grapiúna — e particularmente a ilheense — opera o imaginário
amadiano, lendo a cidade através da obra. Traz o cenário ficcionalizado
para o visitante, que relê a cidade, através de produtos turísticos.
Assim, oferece o bolinho da Gabriela ao turista, que se senta no res-
taurante Vesúvio; expõe a Rua Jorge Amado, onde morou o escritor; em
convite aos visitantes, incentiva-os ao passeio à praça da antiga prefeitura
ou a da catedral; ou às ruas estreitas da cidade por onde passavam as
personagens Malvina e Gerusa....
Por sua vez, o turista busca reconhecer a cidade dos romances. Ocorre
que muitos pontos estão reconfigurados. E o turista, então, vai re-lendo
a cidade ... O Bataclan, agora, tornou-se casa de atividades culturais.
O antigo porto já não funciona; passou a ser em mar aberto... Depois,
encontra um centro de artesanato, onde souvenirs remetem aos romances
da saga: chaveiros, quadros, camisetas, chapéus etc.
Dessa forma, enquanto o turista busca o reconhecimento, a presença
do imaginário do cacau da obra literária se faz, para o local, reconfigurada
em exploração turística. O signo Jorge Amado está presente por toda a
parte. Sentindo-se um tanto dono da “marca”, o local, em exploração, por
vezes, banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em ônibus urbanos,
lanchonetes, pousadas; coloca o nome em tipos de sanduíche, sorvetes,
chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de
cravo e canela), instituindo o “tipo” Gabriela, vinculado ao tempo áureo
do cacau. Mas também há o habitante que busca explorar o imaginário
por outras linguagens.... Estabelece “pontes” entre o imaginado e o real.

265
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

É relida através do teatro, da dança, da música, da telenovela, do cinema,


da fotografia, da escultura, da pintura, de vídeos-documentários. Além
disso, os grapiúnas procuram absorver, também das páginas amadianas,
a maneira de receber, de comer, de viver; e a cidade se faz texto. E, assim,
a literatura interfere no desenvolvimento regional.
Naturalmente, operar o turismo através da literatura implica uma
compreensão do funcionamento do mercado cultural no contexto glo-
balizado; o habitante local sabe disso. Procura fazer com que a cultura
dê o “tom” da relação entre local e global, entre cultura e turismo. Nes-
se entendimento, a obra amadina é alavancadora do desenvolvimento
ilheense, sim. Hoje, a bela ponte que liga o continente à ilha, chama-se
ponte Jorge Amado.
A comunidade, por esses vários expedientes, explora a curiosidade
do turista em conhecer a cidade-romance, palco de tantos interesses,
de tantas lutas, tanta vida, tanta mistura cultural. E a região ganha e
segue caminhos amadianos para o desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Ariel, 1933.


AMADO, Jorge. Terras do Sem-Fim. 64 ed. Rio de Janeiro: Record,
1999.
AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus. 13 ed. Rio de Janeiro:
Record, 1992.
AMADO, Jorge. Gabriela , Cravo e Canela. 51. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1975.
AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. 12 ed. Rio de
Janeiro: Record, 2000.

266
A SAGA AMADIANA E O TURISMO: IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

AMADO, Jorge. O Menino Grapiúna. Rio de Janeiro: Companhia


das Letras, 1981
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
SIMÕES, M L Netto. As razões do imaginário — Comunicar em
Tempo de Revolução. Ilhéus: Editus, 1998.
SIMÕES, M L Netto. De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado.
Revista Brasileira de Literatura Comparada, Belo Horizonte:
Abralic, 2002. n.6, p. 177-184.
YUDICE, George. A Conveniência da Cultura – usos da cultura
na era global. Tradução de Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte:
UFMG, 2004.

267
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR


MORTO, DE JORGE AMADO

Vidas pretas em contínuo transcurso

Pedro Dorneles da Silva Filho1

1 — PONTO DE PARTIDA

Esse trabalho tem por objetivo desenvolver uma análise crítica em


relação à obra Mar morto, trazendo à tona algumas das miradas, que po-
dem ser lançadas para lermos a representação do espaço marítimo nesse
romance escrito pelo jovem Jorge Amado, em 1936. O mar, espaço líquido
de plurais significados, esse elemento polissêmico, pode ser interpretado ao
mesmo tempo como o ambiente, a personagem central e até mesmo como
a linguagem da narrativa. O mar é motivo de poesia, espaço político e
econômico, ameaça diária para aqueles que dele retiram seu sustento, mas
também é venerado pelos que reatualizam o mito, em saudação à Iemanjá,
como forma de resistência. Pensando nos diversos sentidos que configuram
a representação desse espaço, deteremos nossas atenções em três miradas:
a dimensão poética, a dimensão política e social e a dimensão religiosa.
1
Doutorando em Literatura comparada e Mestre em Literatura brasileira e teoria
literária pelo Programa de pós-graduação em Estudos de Literatura da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Especialista em Literatura, memória cultural e sociedade
pelo Instituto Federal Fluminense (IFF). Graduado em Letras pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Macaé (FAFIMA). Professor de Linguagens, códigos
e suas tecnologias na educação básica na rede privada de ensino em Macaé-RJ e na
rede municipal de Rio das Ostras-RJ. E-mail: dorneles.pedro@hotmail.com

269
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

O enredo de Mar morto gira em torno da relação amorosa de Lívia


e Guma na beira do cais da Bahia. Circunscritas numa ambientação
totalmente voltada para o espaço marítimo, as personagens vivenciam
experiências socialmente limitadas por conta das instabilidades do mar.
Pescadores, marinheiros, saveiristas, canoeiros, mulheres desses homens
tatuados e cheirando a maresia vivem na inconstância de terem comida
na mesa, do retorno seguro para casa ao final de um dia de trabalho, de
terem acesso, enfim, aos componentes básicos de cidadania.
São homens e mulheres descendentes de negros escravizados que
foram sequestrados de suas terras, fizeram a travessia no mar e seus
continuadores permanecem a se lançar nesse mesmo espaço repleto de
mistério, que sequer a palavra consegue traduzir.

2 — MAR MORTO: LÍQUIDOS SENTIDOS

O Modernismo operado pelos escritores da geração de 1930 tinha por


objetivo deflagrar os descompassos de uma nação desigual. Retirantes,
vaqueiros, analfabetos, subnutridos, meninos em situação de rua, pesca-
dores, marginalizados de toda ordem preencheram as páginas de nossa
literatura, revelando o Brasil como uma República excludente.
Em 1937, com a tomada do poder por Getúlio Dornelles Vargas e a
implementação do Estado Novo, projetou-se uma imagem promissora
do Brasil, país de viável desenvolvimento, recém-urbanizado, em vias de
total progresso. Entretanto, as obras de Jorge Amado, Rachel de Queiroz,
Graciliano Ramos, Adonias Filho, José Lins do Rego, Érico Veríssimo
e outros autores, porém, trouxeram à baila cenas de fome, exclusão e
precariedade, desestabilizando a narrativa de uma nação bem-sucedida
política e economicamente, que se procurava propalar.
Publicado em 1936, Mar morto é a única obra de Jorge Amado, das
produzidas na década de 1930, que não perfaz o conjunto de elementos

270
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

categoricamente basilares de um romance proletário. Entretanto, é um


enredo que não deixa de explorar uma abordagem crítica acerca das
condições sociais precárias em que vivem os pescadores e a população
da beira do cais na cidade da Bahia.
O livro inicia-se com a apresentação de uma noite de tempestade.
Através de uma lírica trágica, na qual reside a representação do perigo
trazido pelo mau tempo, somos convocados a acompanhar a angústia das
mulheres que esperam seus maridos voltarem sãos e salvos daquele mais
um episódio tenso de incerteza, tônica que percorre toda a narrativa. A
cena funciona como espécie de preâmbulo da atmosfera vivenciada pelas
personagens da beira do cais.

Aquela era uma noite diferente e angustiante […] a mu-


lher, que no pequeno cais do mercado esperava o saveiro
onde vinha o seu amor, começou a tremer, não do frio do
vento, não do frio da chuva, mas de um frio que lhe vinha
do coração amante cheio dos maus presságios da noite
que se estendia repentinamente. […] A chuva veio com
fúria e lavou o cais, amassou a areia, balançou os navios
atracados, revoltou os elementos, fez com que fugissem
todos aqueles que esperavam a chegada do transatlântico.
Um homem na estiva disse ao companheiro que ia haver
tempestade. Como um monstro estranho um guindaste
atravessou a chuva e o vento, carregando fardos. A chuva
açoitava sem piedade os homens negros da estiva. O
vento passava veloz, assoviando, derrubando coisas, ame-
drontando as mulheres. A chuva embaciava tudo, fechava
até os olhos dos homens. […] Só Lívia, magra, de cabelos
finos colados ao rosto pela chuva, ficou diante do cais dos
saveiros olhando o mar […] seus pensamentos e seus olhos

271
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

estavam no mar. O vento a sacudia como se ela fosse um


caniço, a chuva a chicoteava no rosto, nas pernas e nas
mãos. Mas ela continuava imóvel, o corpo atirado para a
frente, os olhos na escuridão, esperando ver a lanterna
vermelha do Valente cruzar a tempestade, iluminando
a noite sem estrelas, anunciando a chegada de Guma.
(AMADO, 2001, p. 6-7)2
As imagens recolhidas nesse primeiro fragmento carregam uma força
lírica que se imposta na narrativa para nos dimensionar como a natureza
imprime a sua força sobre aquela população. A tempestade é fenômeno
temido, angustiante, imponente, ameaçador. A tensão iniciática nos é
ofertada pela seleção vocabular do narrador: “angustiante”, “maus pressá-
gios”, “fúria”, “revolta”, “açoitava”, “monstro”, “esperando”. A angústia da
espera, o presságio da morte e a vulnerabilidade dos corpos negros, que
se lançam ao mar, para dele retirarem seu sustento, acabam por tomar
boa parte das cenas de Mar morto.
Ademais, a presença do cancioneiro da beira do cais da Bahia expressa
as vivências das personagens e sua íntima ligação com o mar. A poesia
feita para o canto, entoada de boca em boca, consiste na literatura mais
plausível para as personagens. Maria Clara, mulher de Mestre Manuel,
entoa versos tristes que sintetizam a vida daquela gente que se entrega ao
mar. Na cena do casamento de Lívia e Guma, é marcante a presença dessa
lírica trágica. Tragédia com a qual parecem se conformar as personagens,
exceto Lívia, que não fora criada naquela realidade instável da beira do cais.

Maria Clara cantou. A sua voz penetrou pela noite, como


a voz do mar. Harmoniosa e profunda. Cantava: A noite
que ele não veio,/foi de tristeza pra mim. Sua voz era doce.
2
Grifos nossos da seleção lexical realizada pelo narrador.

272
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

Vinha, do mais profundo do mar, tinha como seu corpo um


cheiro de beira de cais, de peixe salgado. Agora a sala a ouvia
atenta. A canção que ela cantava era bem deles, era do mar.
Ele ficou nas ondas/ ele se foi a afogar. Velha moda do mar.
Porque só falam em morte, em tristeza essas canções? No
entanto, o mar é belo, a água azul e a lua amarela. Mas as
cantigas, as modas do mar, são assim tristes, dão vontade de
chorar, matam a alegria de todos. Eu vou para outras terras/
que meu senhor já se foi/nas ondas verdes do mar. Nas ondas
verdes do mar vão todos eles um dia. Maria Clara canta,
ela também tem um homem que vive sobre as águas. Mas
ela nasceu no mar, veio dele e vive dele. Por isso a canção
não lhe diz novidade, não faz estremecer seu coração como
o de Lívia: Nas ondas verdes do mar. Para que Maria Clara
canta assim na noite do seu casamento? — pensa Lívia. Ela
é como uma inimiga, sua voz é como a tempestade. Uma
velha de coque, que perdeu o marido há distantes anos,
chora na sala. […] A canção diz que todos ficarão um dia nas
ondas verdes do mar. E na sala ninguém discorda, ninguém
se revolta sequer. Só Lívia é que soluça alto, que quer fugir,
levar Guma para bem longe dali, para o fim do mundo,
para um lugar onde não ouçam o chamamento das ondas
verdes do mar. Lívia mal respira. A canção acaba. Mas na
noite fria de Junho a sua voz se prolonga para os navios, o
cais, os saveiros. E fica batendo dentro de todos os corações.
E para esquecer vão todos dançar, os que não dançam vão
beber. Sua marcha nupcial fora aquela canção de desgraça
que resumia a vida do cais. Ele se foi a afogar, podia qualquer
mulher dizer quando o marido saía. Destino triste o dela.
(AMADO, 2001, p. 137-138).

273
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

A comparação estabelecida entre a voz de Maria Clara com o próprio


mar em dia de tempestade não é por acaso. A voz da personagem corpori-
fica a canção, é comparada ao ritmo do mar. Ao realizar tal aproximação,
o narrador nos coloca diante da confluência entre Homem e Natureza.
Amado parece querer deflagrar o quanto é indissociável a personagem e
o ambiente em que vive. A voz de Maria Clara é a voz do próprio mar,
aquela que traz presságios sobre a instabilidade e a morte.
Embora haja uma tendência em se pensar a canção como a associação
entre letra e música, é na voz (marcador de corporeidade), num dado
tempo-espaço, o da performance, onde reside a existência plena da canção.
Nela se abriga sua realização efetiva.
[...] a voz é mais que mero condutor de textualidades pree-
xistentes, seja verbais ou musicais [...]. A voz é, ela mesma,
em sua presença melódica, rítmica e modulada, parte da
substância. Pois a letra de uma canção em certo sentido não
existe a menos e até que seja pronunciada, cantada, trazida
à tona com os devidos ritmos, entonações, timbres, pausas;
tampouco a canção tem música até que soe na voz. Aqui,
canção e poesia oral significam ativação corporificada da
voz humana. (FINNEGAN, 2008, p. 24).
É justamente neste sentido que podemos pensar na capacidade de
“afetamento” que a experiência vocoperformática pode provocar na
assistência. Na representação do evento performático supracitado, vale
sublinhar a importância da voz para a concretização da canção e, por
conseguinte, para a reflexão das personagens envolvidas na cena.
No momento de emissão da canção que fala sobre a morte no mar,
o incômodo criado em Lívia e a emoção de uma viúva de pescador, pro-
vocados pela voz de Maria Clara, sinalizam ser ela (a voz) a realização
plena da canção. É a concretização da intencionalidade discursiva cor-

274
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

porificada. A voz — não somente veículo de textualidade e melodia — é


toda ela discurso e significação. A poética, portanto, está presente no
romance amadiano seja através da construção da linguagem cadenciada
da narrativa, seja nas experiências com a própria poesia oral, partilhada
entre as personagens.
Mirado sob a perspectiva da abordagem social, o romance apresen-
ta profunda crítica em relação à vulnerabilidade das personagens que
vivem do mar. Figuradas pela professora D. Dulce e pelo médico Dr.
Rodrigo, a denúncia social presentifica-se, revelando o destino amargo
a que estão fadados os homens e as mulheres da beira do cais. Persona-
gens que gozam de determinada posição social prestigiada, a professora
e o médico refletem sobre as condições de subalternidade, vivenciadas
pelos marítimos e suas esposas. Vivência constantemente ameaçada pelo
infinito das águas regidas por Iemanjá.
Dr. Rodrigo desola-se ao partilhar diariamente as angústias e misérias
dos homens do mar. Tenta fazer poesias, porém, imobiliza-se. O médico
dialoga com D. Dulce sobre sua frustração por não poder melhorar a
vida precária daquela gente com quem convive. A professora, por sua
vez, que há muito vive naquela região e educa meninos de modo parco,
pois esses evadem muito cedo da escola para trabalharem com atividades
diretamente ligadas ao mar e poderem ajudar na renda familiar, ela, a
professora, espera um milagre.

— Não faz muito tempo morreu um homem no meu


consultório, se se pode chamar aquilo de consultório...
Morreu com uma bala na barriga. Só falava nas filhas,
era canoeiro…

— não sei o que lhes dizer. Falar em higiene onde só há


miséria, falar em conforto onde só há perigo de morte…

275
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Penso que fracassei…/— Eu espero um milagre. Não sei


o quê, mas espero. (AMADO, 2001, p. 133)
Apesar de a visão crítica em relação às condições sociais está figurada
nas falas do médico e da professora, Amado não restringe essa critici-
dade a essas duas personagens. Guma, condicionado às contingências
socioeconômicas da vida na beira do cais, também pensa, angustiado,
sobre a vulnerabilidade a qual ele está fadado. Logo após um episódio
da morte de um marítimo, seu companheiro, conhecido por Traíra, o
qual deixava sua esposa e três filhas: Margarida, Marta e Rachel, Guma
pensa em sua vida, em Lívia e angustia-se:
No dia em que Traíra morreu, ele estava para ir ver Lívia,
que era toda a sua preocupação. Mas mais uma vez a frase
do Velho Francisco, a canção que cantavam no mar, o
exemplo diário (desgraçada é a mulher que casa com um
homem do mar. Um marítimo não deve se casar), o caso de
Traíra deixando mulher e três filhas vieram a inquietá-lo.
Um marítimo deve ser livre, diz o velho Francisco, diz a
canção, dizem os fatos diários. […] Um marítimo não tem o
direito de sacrificar uma mulher. Não por causa da pobreza
da vida deles, da miséria das casas, do peixe diário, da falta
eterna de dinheiro. Isso qualquer uma delas suportaria, que
em geral estão acostumadas, ou são do cais mesmo ou são
filhas de operários, de trabalhadores miseráveis também.
A pobreza elas estão acostumadas, muitas vezes há coisas
piores que a pobreza. Mas a que não estão acostumadas é
a esta morte repentina, a ficar de repente sem seu homem,
sem teto, sem abrigo, sem comida, a serem logo engolidas
ou por uma fábrica ou pela prostituição […] Guma se
horroriza só em pensar. (AMADO, 2001, p. 110-111).

276
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

A cena descrita ocorre antes do casamento de Guma e Lívia. O ma-


rítimo pondera antes de se casar, justamente por conta de sua realidade,
a qual comunga com sua comunidade subalterna. Pode ser percebida
também uma aproximação que Amado opera entre a vida marginalizada
das pessoas que vivem na beira do cais, suas condições de precariedade e
pobreza, com a vida dos trabalhadores das fábricas, explorados na lógica
capitalista. De tal modo, acenando, embora timidamente, para a tônica
proletária tão presente em seus outros romances da década de 1930.
A consciência socioeconômica de subalternidade a que estão fada-
dos, nesse sentido, interfere na subjetividade das personagens, em suas
decisões e projetos de vida. Entretanto, Guma não deixa de se casar e
correr o risco de que seu temido pensamento possa a vir se concretizar,
conforme acaba por ocorrer: Ele morre. Afinal, é do mar que vem o
presságio e a concretude da morte. O mar é mistério. O mar é a própria
morte: Kalunga. É nesse espaço que corpos subalternizados se entregam
na lida diária em busca de sustento e, por vezes, não voltam mais para
seus lares, não voltam mais a pisar em terra firme.
Ainda para refletirmos, numa mirada social e política para a repre-
sentação do mar, é importante destacar a dicotomia entre terra e mar,
tão recorrente na narrativa. O espaço líquido, sob esse prisma, aparece
como inconstância e ameaça de morte, enquanto os elementos, indiví-
duos e vivências do espaço terrestre são tidos como duradouros e estáveis.
Assim sendo, a representação da condição não só existencial, mas social
e política dos corpos ocupantes desses dois espaços, funcionam como
suas extensões.

O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros.


Qual deles já teve um fim de vida igual aos dos homens da
terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços
e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos

277
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo


do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que
virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou.
Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de
amor nas noites do cais? Qual deles não sabe amar com
violência e doçura? Porque toda a vez que cantam e que
amam, bem pode ser a última. Quando se despedem das
mulheres não dão rápidos beijos, como os homens da terra
que vão para os seus negócios. Dão adeuses longos, mãos
que acenam, como que ainda chamando. (AMADO,
2001, p. 13).
Sob outra perspectiva, pode ser acionada a leitura/a mirada do espaço
marinho como local de reatualização do mito, através da concretização
do rito. Sim. Aqueles que vivem na beira do cais e são descendentes de
negros escravizados reverenciam a figura cosmogônica de Iemanjá, dona
das águas marinhas, senhora de todos eles.
Stuart Hall (2014), ao desenvolver o conceito da construção da
identidade, afirma tratar-se de um processo ao qual se refere como uma
celebração móvel, em que não se fixam caracteres cristalizados, mas sim,
que as cifras culturais ressignificam-se, traduzem-se e reincorporam-se
para tentar identificar, a dado tempo, os indivíduos e as comunidades.
Nesse sentido, o essencialismo é tido como algo questionável e incapaz
de apresentar, de modo veemente, o que de fato consiste uma formação
identitária.
Em perspectiva semelhante, divergindo da noção essencialista identi-
tária das culturas negras, para refletir sobre os constantes fluxos de inter-
câmbio cultural, operado no Atlântico, durante os séculos da maquinaria
colonialista, Paul Gilroy, em sua emblemática produção O Atlântico negro:
Modernidade e dupla consciência (2001), anota que

278
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente


absolutas [da cultura], quero desenvolver a sugestão de que
os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico
como uma unidade de análise única e complexa em suas
discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir
uma perspectiva explicitamente transnacional e intercul-
tural. (GILROY, 2001, p. 57).
Sob esse viés, o da ressignificação cultural, vale lembrar que, no
Brasil, o contato entre diferentes matrizes culturais propulsionou o
surgimento de novas formas de vida e configurações simbólicas de
representação. É válido também pontuar que não se trata aqui de
afirmar uma parcimônia, muito menos uma estabilidade no encontro
entre negros, europeus e ameríndios. Afinal, nossa história é traçada
por violência, estupro e sequestro, arquitetados por exploradores da
máquina colonial.
O que interessa pensar, portanto, é o inegável intercâmbio cultural
entre essas matrizes, possibilitando um não-apagamento efetivo de seus
caracteres identitários. À prova disso, formas de vida e resistência in-
surgem de modo significativo, como é o caso da formação das religiões
afro-brasileiras, por exemplo, o candomblé, nascido em solo brasileiro,
mas com referencial basilar de diferentes cultos e povos africanos.
Em Mar morto, a comunidade da beira do cais revive o mito da Prin-
cesa de Aiocá, Inaê, Iemanjá, Janaína, Marabô, senhora dos cinco nomes.
Corpos negros que se lançam não somente na busca diária do sustento,
lançam-se ao mar, em cortejo, no 02 de fevereiro para saudar Iemanjá,
dona de todos eles. Ritualizam em cânticos, saudações e oferendas, seu
exercício de fé e tentativa de fazerem, através do rito, o caminho de vol-
ta, reconectando-se aos seus antepassados. Lançar-se ao mar, portanto,
ganha outra dimensão, um significado outro.

279
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Hoje é dia da festa de Iemanjá […] A areia alva está agora


preta de pés que a pisam. É o povo do mar que chega, cha-
mando pela sua rainha. Todos eles são súditos da princesa
de Aiocá, estão todos desterrados em outras terras e por
isso vivem no mar procurando alcançar as terras da sua
rainha. O cântico atravessa as areias, atravessa o mar, as
canoas e saveiros, a cidade que se movimenta ao longe, e
com certeza ele chega a estas terras desconhecidas […] É
uma imensa massa humana que se movimenta na areia
[…] [Iemanjá] Virá do mar com seus longos cabelos de
misteriosa cor […] E brincará com eles, entrará no corpo
de uma negra e será igual aos negros, aos canoeiros, aos
mestres de saveiro, uma mulher como as outras do cais.
(AMADO, 2001, p. 71-72).
Na passagem acima, dois pontos chamam a atenção: a coletividade
do rito e a fusão entre o universo mágico/encantado com a realidade re-
presentada na narrativa. Na maior parte dos fatos, a experiência marinha
das personagens é solitária ou em reduzidos grupos. É tarefa individual
o desafio diário de lançar-se ao mar, para dele tirar o sustento. Contudo,
“a imensa massa humana” que se une para partilhar a experiência de
encontro/interconexão com o sagrado revela o contrário. Nessa ocasião,
não é solitária a experiência no espaço marinho. Ademais, parece ser
muito íntima a relação dos indivíduos com o sagrado, a ponto da figura
cosmogônica interagir diretamente com eles. O encantado, portanto, é
a via pela qual aquelas criaturas procuram reencantar suas existências,
tão pesarosas pelo cotidiano.
A experiência é tão intensa para aqueles indivíduos, a ponto de fazer
“[...] desaparecer então o cais negro da Bahia, fracamente iluminado de
lâmpadas elétricas, cheio de músicas saudosas para estarem nas terras de

280
A POLISSEMIA DO ESPAÇO MARÍTIMO EM MAR MORTO, DE JORGE AMADO

Aiocá onde se fala nagô e onde estão todos os que morreram no mar.”
(AMADO, 2001, p.72). Na obra de Jorge Amado, portanto, insurgem
representações de existências negras e seus modos de ressignificação
cultural e identitária como forma de resistência. Essas representações
são de grande importância, principalmente para inscrever, na literatura
brasileira, indivíduos que constituem a nação, mas, muita das vezes, dela
são excluídos.
Dessa forma, contemplamos as três visadas propostas em relação à
representação do espaço marítimo no romance amadiano. São muitos os
caminhos do mar e as possibilidades de mergulho a se realizar ao longo
de nossas leituras. Navegar nessas águas e em seus líquidos significados é
gesto necessário para vislumbrarmos horizontes possíveis de entendimento
sobre a poética do outro e de nós, viabilizados pela estética produzida
por um dos mais expressivos romancistas de nossas letras.

3 — ANCORANDO O BARCO PARA OUTRAS POSSIBILIDADES

Esgotar a análise de uma obra pautada na representação de expe-


riências no mar seria de uma grandiosa pretensão. Afinal, “O mar é
mistério que nem os velhos marinheiros entendem.” (AMADO, 2001,
p.1). Portanto, ancoramos aqui, provisoriamente, o nosso modesto barco,
a fim de fomentar que outras travessias possam ser realizadas. Deixa-
mos disponível a embarcação para que outras pescas de leitura dessa
obra tão significativa possam ocorrer. Navegar essas águas infinitas na
tentativa de recolher imagens é o que esse texto pretendeu realizar. Um
romance escrito por Jorge Amado, no início de sua carreira, acaba por
documentar poeticamente um Brasil cingido por duras desigualdades,
por permanentes dores, mas que ao final apresenta outras possíveis rotas
de reversão. Guma é tragado para o colo de Iemanjá, é mais um, cumpre
seu destino. Lívia, porém, irrompe contra a previsibilidade de ter que

281
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

vender o saveiro. Ao contrário, assume o leme, decidindo permanecer a


luta no mar. Um canto novo a saúda “Salve estrela matutina” (AMADO,
2001, p. 256), prenúncio de um novo tempo. É uma mulher que toma
para si seu próprio destino. E assim, professora Dulce “viu uma mulher
que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar.” (AMADO,
2001, p. 257).

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Mar Morto. Rio de Janeiro: Record, 2001.


FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: O texto, a música ou
a performance? . In: MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS,
Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de (org.). Palavra
cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 letras/
Faperj, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla
consciência. Rio de Janeiro/São Paulo, UCAM/Editora 34, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2014.

282
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E
SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

Volker Jaeckel1

INTRODUÇÃO

Sem dúvida alguma Jorge Amado contribuiu muito com os seus


romances para a divulgação da cultura afro-brasileira. Nos seus livros,
o candomblé, com seus terreiros, orixás, ogãs, pais, mães e filhos de
santo fazem parte do cotidiano dos personagens com a mesma força e
originalidade, como podem ser encontrados estes elementos típicos da
cultura afro-brasileira na cidade de Salvador até hoje. Especialmente
em dois romances, Tenda dos Milagres (1969) e O Sumiço da Santa
(1988), esta temática é presente e expressa uma polifonia cultural que
é caraterística para a obra do autor baiano. Jorge Amado descreve em
pormenores vibrantes cenas do candomblé com cantos na língua iorubá
em diversas cerimônias. Fazem-se presentes personagens como Pedro
Archanjo, conhecido como Ojuobá (olhos de Xangô), que incorporam
o Candomblé e a devoção aos Orixás. O sincretismo se manifesta, por
exemplo, de forma evidente, quando o autor se refere à Santa Bárbara e
Iansá como uma única personagem. Na visão sincrética de Jorge Amado,
catolicismo e Candomblé são perfeitamente conciliáveis na Bahia. No
presente trabalho, enfocaremos a forma como o autor apresenta o fenô-
meno do Candomblé em dois dos seus romances, já que não equivalem
1
Professor e pesquisador em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e docente permanente do Mestrado em Letras da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus X.

283
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

a um documentário nem a um estudo etnográfico, porém, merecem


consideração: Existem várias outras obras literárias de Jorge Amado que
enfocam o mesmo assunto, como a presença de Iemanjá em Mar Morto2
ou de outros orixás em Os Pastores da Noite.

1 — TENDA DOS MILAGRES

O romance Tenda dos Milagres foi publicado em 1969, que seja talvez
a obra com mais enfoque na questão do Candomblé e livro predileto de
Jorge Amado, uma vez que aprofunda a questão da mestiçagem racial
e da mestiçagem cultural inerente ao povo baiano. Nele também está
sendo questionada duramente a ciência positivista e determinista, que
foi propagada desde o fim do século XIX e estava ainda presente no
pensamento brasileiro na segunda metade do século XX. O personagem
principal, Pedro Archanjo, autodidata e assíduo da “universidade da vida”
nas ruas do pelourinho, é reconhecido por “sábios” cientistas do exterior
como notório autor de obras reflexivas sobre a questão racial brasileira.
O texto mostra tanto a influência como a permanência da cultura
africana no Brasil e a sua contribuição para um convívio multirracial e
sincrético. O romance pode ser lido com um canto de amor à mestiçagem
e à Bahia, à cultura negra que vai da cozinha ao Candomblé, e serve
de aprofundamento para as temáticas da religiosidade (GERMANO,
2008, p. 43).
Tenda dos Milagres foi escrito por Jorge Amado entre março e julho
de 1969 e retoma temas que já se anunciavam em outras obras, espe-
cialmente em Jubiabá, romance protagonizado por Antônio Balduíno,
líder negro de origem pobre, assim como Pedro Archanjo, personagem
principal de Tenda dos Milagres.
2
Veja sobre este aspecto a análise em Jaeckel, 2010, p. 66-75.

284
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

A trajetória do intelectual negro Pedro Archanjo personifica a forma-


ção étnica e cultural brasileira e se confunde com a luta do povo baiano
para preservar suas tradições populares. Archanjo defende a miscigena-
ção, combate o racismo e valoriza o caráter mestiço de sua cultura. Essa
mescla aparece também na linguagem do romance, que incorpora termos
e ritmos afro-brasileiros.
Jorge Amado conta em seu livro de memórias Navegação de cabota-
gem, como construiu o personagem Pedro Archanjo a partir de muitas
personalidades, como o escritor Manuel Quirino, o obá Miguel Aré, o
compositor Dorival Caymmi e Jorge Amado ele próprio. “De todos eles
Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom
de voz, o gosto da comida, o trato das mulheres, a malícia” (AMADO,
1992, p. 96), diz o escritor.
Para a antropóloga Ilana Seltzer Goldstein, Tenda dos Milagres pode
ser considerado um livro paradigmático de Jorge Amado, por concen-
trar alguns dos temas mais importantes da literatura do autor, como a
oposição entre mestiçagem e racismo, cultura erudita e popular, atuação
política e crônica de costumes.
O conhecido diretor de cinema Nelson Pereira dos Santos iniciou
o trabalho de adaptação de Tenda dos Milagres para o cinema em 1974,
a partir de uma edição clandestina do romance, vendida em bancas de
jornal. O equívoco foi descoberto graças ao acompanhamento que Jorge
Amado fez do roteiro. O filme estreou em 1977. Em 1985, Tenda dos
Milagres virou minissérie da Rede Globo, em adaptação de Aguinaldo
Silva e Regina Braga.
Escreve-se o ano de 1968, e a chegada a Salvador do prêmio Nobel
James Levenson provoca alvoroço na imprensa local. O professor ame-
ricano vem em busca de quatro livros que documentam a formação do
povo baiano, de autoria de um certo Pedro Archanjo que supostamente

285
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

viveu ao começo do século XX, época em que se passaram as proezas do


pobre, pardo, boêmio e mulherengo Archanjo.
A narrativa está dividida em 16 capítulos e aciona quatro eixos dis-
tintos: a pesquisa sobre Pedro Archanjo, realizada pelo narrador Fausto
Pena, a vida de Pedro Archanjo durante setenta anos, a preparação para
as homenagens do protagonista com motivo do centenário do seu nas-
cimento e a realização das atividades relacionadas ao centenário.
Olhando para as raízes e tradições cosmogônicas do Candomblé,
especialmente para os Odus3, chegamos à conclusão possível, que o au-
tor captou de uma convenção ou norma do sistema religioso ioruba os
números quatro e dezesseis para escrever o seu décimo sexto romance. É
possível dessa maneira, ponderar que a escolha quantitativa dos capítulos
realizada por Amado em Tenda dos Milagres fundamenta-se como a pri-
meira tradução de conteúdo diegético, além de transportar os elementos
cosmogônicos originais iorubas, em diáspora, na construção estrutural
do texto. Em face disso, essa ação pode ser considerada como sinal da
complexa rede de interações entre mundos sígnicos desempenhada por
Amado na montagem de Tenda dos Milagres (GERMANO/ALVES, 2014).
Outro aspecto, que merece atenção neste livro, é o papel das comidas
ritualísticas em cerimônias de Candomblé, já que o narrador apresenta
numa época cheia de críticas às religiões afro-brasileiras, a profundidade
dos ritos, nos quais a comida é um elemento essencial na relação entre
os seres humanos e as divindades, os orixás. Pedro Archanjo costumava
ir com um amigo às quartas-feiras numa tradicional casa de culto aos
orixás para homenagear Xangô, no dia escolhido para os rituais, nos
quais havia uma grande mesa na sala, onde serviam o caruru, o abará, o
3
Existem dezesseis odus maiores no corpo literário Odù Ifá (‘livros’). Combinados,
resultam num total de 256 odus, acreditando-se referirem a todas as situações,
circunstâncias, ações e consequências na vida. Constituem a base do conhecimento
tradicional espiritual e todos os sistemas de adivinhação iorubá.

286
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

acarajé, por vezes um guisado de cágado. O narrador ainda observa que


Mestre Archanjo era bom de garfo e de copo (AMADO, 1969, p. 46).
Quem mais dançou foi Iansã em meio aos seis Oguns, Era
em despedida, mas ninguém sabia. No intervalo da troca
de roupa em outra sala, serviram a comida de Ogum, régio
banquete.” (AMADO, 1969, p. 190).
Depois das danças, as zeladoras dos orixás (equedes) conduziram as
divindades para a troca de roupas e a comida de santo foi servida em
homenagem a Ogum: feijão preto e milho vermelho cozidos refogados
com azeite de dendê, cebola ralada, pimenta da costa moída e camarões
secos (ROCHA, 2015, p. 86).
Na Tenda dos Milagres, após a dança ritual de saudação,
silenciados os atabaques, as garrafas foram abertas. Sobre
a mesa onde juntavam os tipos na composição das páginas
havia quantidade de comida, variada e saborosa: as mo-
quecas, as frigideiras, os xinxins, os abarás, os acarajés, o
vatapá e o caruru, o efó de folhas. Muitas mãos amigas e
competentes misturaram o côco e o dendê, mediram o sal,
a pimenta, o gengibre (AMADO, 1969, p. 237).
Na juventude, Archanjo conheceu Lídio Corró, um “riscador de
milagres”, que virou parceiro na luta contra o preconceito racial e re-
ligioso. A Tenda dos Milagres, no Pelourinho, lugar onde os amigos
trabalhavam, era também palco de Candomblé e capoeira de Angola.
E os folhetos de literatura popular e os livros de Archanjo impressos na
tipografia da Tenda transformaram-na em uma espécie de universidade
livre da cultura popular.
Archanjo inspirou-se no convívio com os catedráticos da instituição
e passou a estudar a história do povo baiano, porém suas teorias, que

287
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

valorizavam a miscigenação, despertam o ódio do professor Nilo Argolo,


para quem os mestiços eram “degenerados”. Em Tenda dos Milagres, Jorge
Amado opõe as ideias de Archanjo às de Argolo, personagem obviamente
inspirado em Nina Rodrigues, para enaltecer a mestiçagem, a tradição
popular e a cultura negra. O romance critica a postura de aceitação de
teorias racistas originárias da Europa no início do século XX e ironiza a
valorização tardia da obra do intelectual negro, reconhecida à revelia da
elite local, graças à iniciativa de um estrangeiro.
No centro da narração está Pedro Archanjo, figura construída a
partir de uma idealização de Manoel Querino4 e com traços de ou-
tras conhecidas personagens baianas. Ele é o bedel da faculdade de
medicina da UFBA e enfrenta ressentimentos racistas que o fazem
perder o emprego, porém ele ganha a amizade de vários professores,
entre eles um ilustre marxista. E esta pessoa aberta e progressista
não pode entender como Pedro Archanjo, a quem chama homem de
ciência, pode acreditar no Candomblé:

Se não acreditasse, não se prestaria a tudo aquilo: cantar,


dançar, fazer aqueles trejeitos todos, dar a mão a beijar,
tudo muito bonito, sim, senhor, o frade chega a se babar
de gôsto, mas, vamos convir, mestre Pedro, tudo muito
primitivo, superstição, barbarismo, fetichismo, estágio
primário da civilização. [...]
Quero saber é como você pode conciliar seu conhecimento
científico com as obrigações do candomblé. Isso é o que eu
desejo saber. Sou materialista, você sabe, e por vezes pas-
4
Manuel Raimundo Querino (Santo Amaro, 28 de julho de 1851 — Salvador, 14
de fevereiro de 1923) foi um intelectual afro-descendente, aluno fundador do Liceu
de Artes e Ofício e da Escola de Belas Artes, pintor, escritor, líder abolicionista e
pioneiro nos registros antropológicos da cultura africana na Bahia.

288
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

mo ante certas contradições do ser humano, esta sua, por


exemplo. Parece haver dois homens em você: o que escreve
os livros e o que dança no Terreiro (AMADO, 1969, p. 315).
Neste diálogo, pode-se perceber o conflito entre materialismo histórico
e Candomblé, uma contradição que estava também inerente ao autor
Jorge Amado, uma vez que ele era comunista e tinha muitas simpatias
pela religião afro-brasileira e participava ativamente dela.
Pedro Archanjo primeiro se esquiva de dar uma resposta mais concreta,
porém na sequência da conversa com o professor ele chega a defender a
explicar a sua posição de uma forma mais convincente:

Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da


capoeira, o samba-de-roda, os afoxés os atabaques, os
berimbaus, são bens do povo. Todas essas coisas e muitas
outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer
acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me
desculpe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto
à transformação, acredito nela, professor, e será que nada
fiz para ajudá-la? [...]
Sou a mistura de raças e de homens, sou um mulato, um
brasileiro. Amanhã será conforme o senhor diz e deseja
[...] Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o
que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e
mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba
capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música,
balé, nossa cor, nosso riso, compreende? (AMADO, 1969,
p. 317-318).
Nestas palavras manifesta-se uma apologia a favor da mistura de mú-
sicas, raças, culturas e religiões, que é caraterística e essencial para povo da

289
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Bahia e do Brasil, uma vez que naquela época, em plena ditadura militar,
multiculturalismo e tolerância étnica não estavam em pauta da política
oficial. Ainda no próximo romance a ser analisado encontramos muita
resistência, preconceitos raciais e religiosos expressos pelas personagens
Adalgisa, Padre José Antonio Hernandez, e o juiz de menores, Liberato
Mendes Prado d’Ávila.

2 — O SUMIÇO DA SANTA (1988)

Este último romance, iniciado durante os anos sessenta e concluído


na década de oitenta, depois do término da ditadura militar, está trazendo
para o âmbito da literatura o debate sobre a legitimação do sincretismo
entre o Candomblé e o catolicismo:
[...] visto que a primeira década marca a consolidação do
candomblé como religião nacional não só de negros, mas de
intelectuais e pessoas famosas; e a segunda, um momento
em que a volta à tradição africana, fomentada pela validação
da identidade negra, determinava uma “dessincretização”
(GERMANO, 2008, p. 79).
Deve ser observado que o candomblé se transformou no contexto
social e cultural do Brasil católico do século XIX. Os orixás passaram
a ser identificados com os santos e sendo venerados tanto nos terreiros
como nas igrejas.
Somente tempos recentes o candomblé foi se tornando uma religião
autônoma, apartada do catolicismo, mas o sincretismo ainda persiste na
maioria dos terreiros. O candomblé aos poucos vem deixando do lado o
sincretismo, e, dos anos 1960 até o presente vem se transformando em reli-
gião para todos, sejam negros, pardos, brancos ou amarelos, sem fronteiras
de etnia, cor, classe social ou origem geográfica (PRANDI, 2009, p. 50).

290
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

O Sumiço da Santa narra o desaparecimento de uma estátua de San-


ta Bárbara que é levada de Santo Amaro para Salvador de barco com
a finalidade de ser exposta numa grande exposição no Museu de Arte
Sacra, dirigido pelo monge alemão Dom Maximiliano von Gruden.
Ao chegar à capital, a imagem da Santa ganha vida, se transforma em
Iansã e sai passeando pela cidade. Esta fuga da imagem está relacionada
às pequenas tramas do romance, nas quais aparecem figuras fictícias e
autênticas entre eles escritores, políticos, músicos, religiosos, artistas da
vida pública da Bahia.

Num meneio de ancas, Santa Bárbara, a do Trovão, passou


entre mestre Manuel e Maria Clara e sorriu para eles, sor-
riso afetuoso e cúmplice. A ebômi colocou as mãos abertas
diante do peito no gesto ritual e disse: “Eparrei Oiá!”. Ao
cruzar com o padre e a freira, fez um aceno gentil para a
freira, piscou o olho para o padre.
Lá se foi santa Bárbara, a do Trovão, subindo a rampa
do Mercado, andando para os lados do elevador Lacerda
(AMADO, 2010, p. 24).
O Sumiço da Santa também é uma obra, na qual é discutida a interfe-
rência da religiosidade católico-cristã na vida sexual em contraponto com
a cosmovisão da religiosidade afro-brasileira, no romance expresso pela
dicotomia entre Adalgisa e sua sobrinha Manela. O candomblé oferece
um contexto ético, no qual a noção cristã não faz sentido, já que ele não
procura por salvação, senão realiza interferências nesse mundo através
das forças sagradas vindas de outro mundo. Neste sentido, entende-se a
intervenção de Santa Bárbara transformada em Iansã, chegada à cidade
de Salvador, com o intuito de libertar Manela do seu cativeiro no Con-
vento das Arrependidas e ainda ensinar a Adalgisa tolerância e bondade,

291
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

mudar os seus pensamentos de católica fanática e puritana, que condena


as religiões afro-brasileiras como feitiçarias, das quais se deve guardar a
maior distância, já que “[...] são centros de perdição, onde o demônio se
apossa das almas dos cristãos (AMADO, 2010, p. 77).
Adalgisa, sendo filha de mãe candomblecista e pai espanhol, nega a sua
origem afro-brasileira e quer somente seguir as tradições e a religiosidade
espanholas. Ela não cumpre com o seu dever de se dedicar ao seu orixá
Iansã, uma vez que ela considera o candomblé coisa do demônio, mesmo
sabendo que esta rejeição terminaria com a morte da mãe que realmente
morreu na manhã do dia, em que a filha completou 21 anos. Adalgisa
nasceu como abicum, ou criança destinada a morrer cedo e apenas por
causa do feitiço de troca de cabeça conseguiu sobreviver (SANTOS, 2015).
Iansã monta Adalgisa com a ajuda de Exú Malé que iniciou o processo
de transe contra a vontade da católica fervorosa. A partir deste momento
a vida dela muda completamente e deixa de ser a beata, que não gosta de
fazer sexo, estando sempre com dor de cabeça. Ela vira a ser uma pessoa
agradável e tolerante com a sobrinha e com o marido.
A transformação de Santa Bárbara em Iansã e o seu sumiço explicam-se
desta forma, reconquistar uma filha que deixou de segui-la (Adalgisa)
e libertar outra que se encontra encerrada (Manela) no Convento das
Arrependidas. Após o comprimento desta missão ela volta ao seu lugar
na exposição no Museu de Arte Sacra, no momento de sua inauguração,
salvando o seu diretor do vexame e da renúncia do cargo.
Outro elemento importante deste romance é o seu posicionamento
frente a ditadura militar, à Igreja e aos movimentos sociais, uma vez que a
ação transcorre na segunda metade dos anos 70.5 Um exemplo é o Padre
Abelardo, acusado pelos militares de ter roubado a imagem da santa, por
5
Existem vários indícios sobre o contexto histórico e referências temporais, como
a apresentação de Caetano Veloso e Gilberto Gil, recém-chegados do exílio, cf. a
cronologia na página 417 em Amado (2010).

292
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

ser um padre “melancia”, vermelho por dentro, que incentivava a ocupação


das terras dos coronéis latifundiários na Bahia. Esta ligação do clérigo
gaúcho aos trabalhadores rurais faz dele um suspeitoso para os militares.
O padre é um idealista que quer servir aos mais necessitados e não apoia
“[...] essa Igreja da submissão e da obediência cega, a serviço dos ricos
e poderosos — para eles os bens do mundo, para os pobres o reino dos
céus-, era a negação da palavra do Messias” (AMADO, 2010, p. 155).
O pano de fundo escolhido pelo narrador é a mudança interna da
igreja católica, que está acontecendo naquela época dividindo-a em
duas partes: uma representada pela pastoral da terra e a outra, a con-
servadora vinculada aos donos da terra, no romance representada pelo
bispo auxiliar Dom Rudolph. A obra pode ser entendida como evidência
de uma análise da ditadura militar e do surgimento dos movimentos
sociais ligados ao campo, que dão mais tarde origem ao Movimento
dos Sem Terra (MST). Como Paula Sperb afirma “O livro retrata de
modo inventivo, mas fiel à realidade, o sincretismo religioso que marca
nossa nação. Uma santa católica se transforma em ícone do candomblé
em uma narrativa permeada por relações institucionais entre governo e
Igreja.” (SPERB, 2014, p. 218).
As personagens do candomblé em O sumiço da santa aparecem de
uma forma hierática, porém os representantes da Igreja católica têm uma
caracterização menos uniforme e são dispostos num arranjo simétrico:
Dom Maximiliano contrasta com o pároco de Santo Amaro e eles entram
em conflito por causa do sumiço da santa. Só com o seu reaparecimento,
os dois se reconciliam. Os contrastes mais agudos são encontrados entre
o arcebispo e seu auxiliar Dom Rudolph, também entre o jovem cura
de Piaçava, Aberlardo Galvão, moderno e progressivo, e o seu antípoda
José Antonio Hernández, um sacerdote franquista e retrógrado.
As figuras fictícias de nacionalidade alemã ou espanhola destacam-se
por um caráter duvidoso com opiniões dirigidas contra o sincretismo e

293
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

a mestiçagem dos povos. Eles representam o passado nefasto dos dois


países europeus, são pessoas extremamente conservadoras, reacioná-
rias e intolerantes. Adalgisa e o padre José Antonio Hernández são os
melhores exemplos para esta postura ultraconservadora. Pode ser feita
a interpretação, que os estrangeiros vindos dos antigos países fascistas
representam uma posição contrária àquela que seria a essência da cultura
da Bahia. Diferente é o comportamento dos franceses que estão rodando
um filme em Salvador. Desta forma, Jorge Amado da continuidade aos
romances anteriormente mencionadas Jubiabá e Tenda dos Milagres, uma
vez que no primeiro uma luta de boxe entre um suposto ariano alemão
e um negro baiano ocupa um lugar de destaca. O misticismo ganha
sobre as ideologias racistas, representadas por boxeador branco e loiro da
Alemanha nazista. Após a leitura do último romance de Jorge Amado,
pode-se ter a impressão de que o autor queira abraçar ao mesmo tempo
o materialismo, o catolicismo e o candomblé:

As passagens em que enuncia a nova confissão, mandando


às favas a coerência, num apelo à verdade da poesia, consti-
tuem os melhores momentos da sua defesa do sincretismo.
No entanto, mestre Jorge não se aprofunda na colocação
do problema filosófico assim; antes o “desproblematiza”,
ao reificar o sincretismo como tradução de um fenômeno
natural: o fato da mestiçagem (SERRA, 1995, p. 138).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dois romances do autor Jorge Amado, escritos ainda na ditadura


militar, defendem a tolerância religiosa e o sincretismo como uma maneira
de convivência pacifica na Bahia e mantêm a sua atualidade até hoje.

294
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

Na opinião de alguns antropólogos e sociólogos atuais, Gilberto Freyre


e Jorge Amado contribuíram para que a Bahia começasse a orgulhar-se
de ser centro da afrodescendência brasileira e para que esta identidade
fosse concebida pelo contraste cultural e étnico em relação a outras partes
do Brasil (CONCEIÇÃO, 2016, p. 48).
Num momento, durante os anos 80 do século passado, no qual o
candomblé quer se afirmar como uma religião independente de identi-
dade negra, Jorge Amado coloca o sincretismo como um fator de união
e como caraterística importante do povo baiano e de todos os brasileiros.
O profano, o religioso católico e a religião afro-brasileira caminham até
hoje juntos e com bastante êxito, como podemos verificar.
Jorge Amado, muitas vezes considerado nas Instituições de Ensino
Superior do Brasil como um escritor menor, apesar possuir textos, como
O sumiço da santa, de realismo mágico e fantástico, cujas histórias se
desenvolvem na dura realidade da ditadura militar. O catolicismo con-
servador e tradicional enfrenta os novos movimentos sociais, ligadas à
pastoral da terra e ao mesmo tempo o candomblé, religião que não quer
apaziguar os sofrimentos consolando os fiéis com a perspectiva de uma
vida eterna, senão ajudar os seus seguidores a alcançar uma vida plena
já durante a sua existência na terra.
Os textos de Jorge Amado não carecem de uma certa atualidade na
situação que o Brasil está atravessando hoje, num momento, em que a
intolerância religiosa, cultural e racial está crescendo vertiginosamente e
seguidores das religiões afro-brasileiras estão sendo perseguidos. Aumentou
o número de atos de discriminação religiosa no Brasil, em apenas cinco
anos, em 4960%,6 na sua grande maioria atos dirigidos contra umbandistas
e candomblecistas, quando ao mesmo tempo, prefeitos proíbem exposições
6
Veja a reportagem disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/os-santos-
perseguidos/ acesso em 8/12/2017.

295
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

de arte, cujo conteúdo eles consideram pornográficas ou anticristãs. A


intolerância pode dividir o país de uma forma pior, que Yvonne Maggie
vislumbrou no seu posfácio em 2010 “Será que aquela cidade do Salvador
da Bahia de Todos-os-Santos, a Roma africana do encontro, sobreviverá
à faina daqueles que querem ver o país transfigurado, por lei, em terra
de negros e brancos desunidos?” (Maggie, 2010, p. 416). A liberdade do
candomblé e de outras religiões é garantida pela Constituição do Brasil,
porém décadas depois da perseguição policial retratada tão fielmente
por Jorge Amado, existe outro inimigo poderoso, já que algumas igrejas
evangélicas incentivam os seus adeptos à intolerância religiosa frente aos
orixás e aos cultos de origem africana.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres, São Paulo: Martins, 1969


AMADO, Jorge. Jubiabá, Rio de Janeiro: Record, 1984.
AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. Rio de Janeiro: Record,
1972.
AMADO, Jorge. O sumiço da santa. Uma história de feitiçaria, São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CONCEIÇÃO, Débora de Jesus. A memória discursiva regulando
sentidos sobre a identidade afro-baiana em reportagens do Jornal
da Nacional: entre o mesmo e o novo, Salvador: Universidade do
Estado da Bahia (Dissertação de mestrado), 2016.
GERMANO, Patrícia Gomes. O sumiço da santa: uma representação
do híbrido literário-cultural-religioso, Campina Grande: Universidade
Estadual da Paraíba. (Dissertação de mestrado), 2008.

296
AFRO-RELIGIOSIDADE, CANDOMBLÉ E SINCRETISMO EM DUAS OBRAS DE JORGE AMADO

GERMANO, Patrícia Gomes; Alves, Rosilda. Tenda dos Milagres


de Jorge Amado: o sistema oracular iorubano na diáspora textual”,
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GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado:
literatura e identidade nacional. São Paulo: Editora Senac, 2003.
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. A construção de identidade nacional
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Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 62-75.
JAECKEL, Volker. Mitos da água e orixás no romance Mar Morto de
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PRANDI, Reginaldo (2009): Religião e sincretismo em Jorge
Amado”, in: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOLDSTEIN, Ilana
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ROCHA, Denise. Comida de santo: oferendas aos Orixás (Tendo
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297
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

SANTOS, Marinalva Lima dos. Religiosidades e regulação da


sexualidade: conflitos moralistas no romance O sumiço da santa,
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SERRA, Trindade Ordep J.. Jorge Amado, Sincretismo e Candomblé:
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SPERB, Paula. Mestiçagem e teorias raciais em Tenda dos
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SPERB, Paula. Ditadura e movimentos sociais em O Sumiço da
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298
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM


HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

Alzira Tude de Sá1

PRÓLOGO

Beatriz Sarlo (2007), no prólogo do livro A paixão e a exceção: Borges,


Eva Perón e Montoneros, analisa a paisagem cultural argentina na qual
está inserido o escritor Jorge Luis Borges, uma referência incontornável
no caminho que parte da literatura e leva à compreensão do universo
extraliterário. Considerando que Borges era legível e ao mesmo tempo
ilegível, não entendia o porquê dessa predileção. Situada a questão nos
idos de 1970, não imaginava que continuaria a se perguntar sobre Borges
e que jamais encontraria uma resposta que a convencesse. Confessa que
Borges significava para ela “um irritante objeto de amor e ódio,” assim
como para muitos intelectuais a relação com o escritor “oscilava num
conflito entre denúncia e fascínio.” Para Sarlo, “algo estava claro: Borges
era inevitável.”
Sinto que posso me apropriar das palavras de Sarlo depois de ter per-
corrido tantos caminhos que me levaram ao universo crítico, biográfico
e ficcional de Jorge Amado. Confesso, como Sarlo, que comunguei dos
mesmos sentimentos de fascínio e rejeição pela obra amadiana, media-
dos pelos preconceitos e determinações de gosto induzidos pela crítica.
Confesso que não me alardeava como leitora de romances amadianos,
1
Professora Doutora adjunto IV do Instituto de Ciência da Informação da
Universidade Federal da Bahia.

299
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

enquanto mergulhava no mundo sórdido, exuberante e festivo de seus


personagens. E, como Sarlo, tenho como saldo desses longos anos de pri-
vação e devassa da intimidade do autor, a certeza de que Jorge é inevitável.
Partindo desta premissa, caminhamos pelo universo amadiano. Nos
idos de 1999, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia,
iniciei minha trajetória. Este caminho se prolongou até chegar à UNEB,
onde concluímos o nosso mestrado. Pesquisamos sobre a recepção crítica
da obra Gabriela, cravo e canela. Fizemos uma análise da diversidade dos
discursos e procedimentos interpretativos que refletiam as particulari-
dades das práticas de leitura de seus consumidores, críticos de rodapé
e críticos acadêmicos. No doutorado, ocorreu-nos a ideia de rever o
universo amadiano, através da linguagem fotográfica por vivermos um
instante em que o mundo e os sujeitos optaram e elegeram as imagens
como sua mais perfeita representação. Tanto a escolha do tema como o
objeto da pesquisa revestiu-se de um caráter duplamente afetivo. Desde
a infância, a fotografia faz parte da nossa vida. Meu pai foi fotógrafo no
interior da Bahia e meu irmão, Adenor Gondim, tornou-se um mestre
na arte de fotografar. E ademais, há tempos Jorge Amado povoa o nosso
imaginário, e ao nosso lado, o caminho pela academia. Com ele e sua
obra, estabelecemos um elo, uma intimidade.
A escolha recaiu sobre um livro de fotografias da casa de Jor-
ge Amado. Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho (RUA..., 1999)2.
Nesse livro a casa, os objetos, móveis e obras de arte, coleções de peças
artesanais, são registrados pelas lentes do fotógrafo Adenor Gondim,
cujas imagens representam o espaço privado do escritor no qual viveu
por longos anos, e nessas imagens ele não está presente. Nos espaços,
2
Livro publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado, no ano de 1999. RUA
Alagoinhas 33, Rio Vermelho: a casa de Zélia e Jorge Amado. Textos de Jorge
Amado, Gilberbert Chaves e Paloma Jorge Amado. Fotos de Adenor Gondim.Arte
de Pedro Costa. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1999.

300
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

na casa, na sala de visitas e seus objetos, buscamos a revelação da sua


intimidade, indícios das relações socioculturais por ele construídas. As
fotos da casa do escritor Jorge Amado ao registrarem os espaços privados,
os móveis, os objetos e coleções, constituem-se em testemunhas oculares,
fonte de memória, que se abre a leitura e interpretação de uma narrativa
imagética sobre a privacidade de um sujeito tão público que aqui passa a
ser visto através da cultura material que o rodeia, da disposição espacial
dos elementos no ambiente frequentado por seu corpo, sendo penetrada
a sua intimidade pela luminescência particular de um fotógrafo.
Desde a porta de entrada aos fundos, todos os seus recantos, os mais
recônditos, essa casa traz as marcas dos afetos, das estéticas, das cren-
ças, ideologias, do capital social e cultural arregimentado pelo escritor.
Componentes socioculturais, desde quando a casa é povoada de obras
de arte de artistas baianos, brasileiros e de fora do país, que registradas e
representadas fotografias, podem ser consideradas uma fonte documental
e de informação relativa à produção artística e cultural de um determi-
nado tempo da história da Bahia.
A nossa proposta foi, à medida que fôssemos entrando na casa, na
sua história, contada pelo escritor e seus familiares, refletir sobre questões
que envolvem o espaço, a casa, a sala de visitas, objetos e coleções. Como
refúgio, como um lugar “sagrado”, Jorge Amado revestia sua casa de
uma sacralidade expressa nas obras de arte e nos objetos que dela faziam
parte, como no culto que dedicava à intimidade e à privacidade que lhe
propiciava. Por não poder abarcar o macro mundo, representado pela casa
como um todo, elegemos a sala de visitas por ouvirmos Paloma Amado,
filha do escritor, quando diz que a sala de visitas era o lugar preferido do
descanso do casal e por essa deferência, a consideramos como um espa-
ço privilegiado, que para nós funcionou como uma bússola, como um
ponto de partida para a análise que queríamos fazer. Impossível abarcar
o macro mundo do escritor.

301
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

As paredes dessa sala estão cobertas de quadros, gravuras e azulejos


de mestres, artistas e artesãos: Picasso, Caribé, Mário Cravo, Di Ca-
valcanti, Jose Franco, Aldemir Martins, Brennand, Floriano Teixeira,
Hansen Bahia, Mestre Didi, Vitalino, Djanira, Volpi, Pancetti, Carlos
Bastos, Emanoel Araújo, Juarez Paraíso, Willys e tantos outros, cujas
obras compõem um acervo representativo das relações estabelecidas pelo
escritor e família pelo mundo afora. Ofertados por amigos queridos, em
sua grande maioria, esses objetos compõem o espaço da sala de visitas,
espraiam-se por toda a casa e seu entorno, uma infinidade.
As vigas do telhado, em forma de pássaro, foram desenhadas por
Caribé que também desenhou portas, portões, azulejos. Esculturas de
Mário Cravo e Mestre Didi, espalhadas representam e reverenciam deuses
africanos. Nos fornos da cerâmica de UdoKnoff foram queimados os
azulejos de Caribé, que recobrem paredes, embelezam a cama do casal e a
emblemática escada que dá acesso à morada do escritor. Portas entalhadas
se abrem para dentro e fora da casa, esculpidas por Calazans Neto, amigo
e companheiro da família. Tapetes trançados pelas mãos de Genaro de
Carvalho cobrem as paredes erigidas em madeira, barro e vidro. Móveis
desenhados e executados por Lev Smarcevscki, trazidos da península de
Itapagipe, em um saveiro, acolhem os corpos que habitam a casa.
Por ser a casa da Rua Alagoinhas, 33, um lugar repleto de simbo-
lismo, propusemos que ela fosse considerada um “lugar de memória”,
e que os objetos fossem o foco da nossa investigação pelo fato de no
contexto do mundo contemporâneo eles, os objetos, foram convertidos
num elemento essencial de nosso entorno, tomando vulto como suporte
de memória, e que, além da sua finalidade prática e da sua dimensão
afetiva, servem para personificar as relações humanas, constituindo-se
em uma forma de narrativa que, ao serem interrogados, sob um aporte
teórico e metodológico, qualificam a intermediação técnica dos sujeitos
com o mundo.

302
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

Aos “milhares”os objetos povoavam a casa. Parte deles foi adquirida


por Jorge e Zélia e uma infinidade ofertados por amigos do casal. Quanto
à sua disposição, declara o arquiteto Gilberbert Chaves (1999, p.76) “[...]
estão implantados, incorporados, grudados, fixados, integrados, em cada
pequenino espaço, cada muro, cada saliência, cada plano horizontal, cada
plano vertical”. Alguns estão posicionados para despertar curiosidade,
excitar a imaginação, como se fosse um mundo mágico. Um mundo
dentro de outro mundo. Como viajante inveterado, em todo porto e
cidade tecia relações, objetos eram adquiridos, comprados ou lhes eram
ofertados em reverência ou afeto pelo que representava. Testemunhos
não faltam, confessa Gattai (1999b, p. 146):

Terminada a pintura de nossa casa, na qual trabalhava,


Licídio veio nos trazer um quadro de presente. [...] A re-
cepção no aeroporto de Moscou, não poderia ter sido mais
calorosa, além dos amigos, personalidades, o governo nos
aguardava. Jorge era recebido com honras devidas.
Muitas vezes esses objetos, desviados de sua rota, são colocados em
contextos que lhes são improváveis. Apadurai (2008), estudioso de ques-
tões que envolvem a mercadoria, a troca e os valores que são atribuídos
aos objetos, a esse deslocamento e descontextualização, ao transcurso de
objetos de um lugar a outro, denomina de “estética do desvio,” estudo que
se adéqua e toma vulto, principalmente, na adoção de objetos estrangeiros.
Kopitoff (2008), quando escreve sobre a biografia cultural das coisas e
analisa aquelas que vivem situações de contato cultural, chama atenção
para fatores que devem ser examinados. “[...] o que é significativo sobre
a adoção de objetos estrangeiros — e ideias estrangeiras – não é a sua
adoção, mas sim a maneira pela qual eles são culturalmente redefinidos
e colocados em uso” (KOPITOFF, 2008, p. 93).

303
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Na casa da Rua Alagoinhas, 33, matrioscas, bois pernambucanos do


mestre Vitalino, azulejos fabricados na França por Picasso, cabras em
cerâmica vindas de Mafra, sereias de mares baianos esculpidas por Mário
Cravo, mestre Calá, entalhes indianos, máscaras angolanas e tantos mais,
viviam lado a lado. Conviviam. Esses objetos possuídos, na perspectiva
de Baudrillard (2009, p. 94), constituem-se num sistema graças ao qual
o indivíduo tenta reconstituir um mundo, uma totalidade privada. E
quanto à mobilidade, tão própria do escritor Jorge Amado, visível na
composição do acervo de objetos da casa, que nos parece construído para
vencer o tempo, deve-se à contingência de sempre estar viajando. Ecléa
Bosi (2003, p. 25-26) atenta para o seguinte fato:

Se a mobilidade e a contingência acompanham nossas


relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao
menos na velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam.
[...] Mais que uma sensação estética ou de utilidade eles nos
dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa
identidade: e os que estiveram sempre conosco falam a
nossa alma em sua língua natal.
Vindos dos quatro cantos do mundo, peregrinando, esses objetos
foram compondo coleções. O próprio Jorge, quando escreve Navegação
de cabotagem, declara:

Exibo na casa do Rio Vermelho caótica coleção de arte


popular, de certo valor pelo número e procedência das
peças e pela qualidade de algumas delas - carta de pescador
esquimó gravada em dente de elefante marinho, presente
de Eremburg, vaso de opalina com as armas imperiais de
Nicolau I, tzar de todas as Rússias, [e] entre as mais belas,
um boi, o maior de todos os bois de barro amassado pelas

304
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

mãos mágicas de mestre Vitalino de Caruaru, nos primeiros


tempos de sua criação artesanal (AMADO, J., 1992, p.38).
Como deuses domésticos, antropomórficos, como os considera Bau-
drillard (2009), os objetos se fazem docemente imortais, encarnam, no
espaço, os laços afetivos da permanência do grupo, até que outra geração
os afaste ou os disperse, ou às vezes os reinstaure, em uma atualidade
nostálgica de velhos objetos. E os sapos, ah! Os sapos, estes compunham
uma coleção de todos os feitios, de cerâmica, pedra-sabão, ferro, papel
machê, uma confraria que “[...] se espalha pelos jardins, sob a piscina, ao
lado da varanda, em cima dos móveis, nas estantes, em todas as partes
da casa. Sapos, [pois confessa Jorge] o sapo é o meu bicho” (AMADO,
J., 1992, p. 16), bichos que povoavam espaços da casa, escondendo-se
muitos deles, “nos esconsos das paredes.”
O fato da profusão de objetos que povoam a casa do escritor ser re-
presentativa do seu perfil de colecionador, fomos intuindo a dimensão
e a diversidade da rede de relações por ele tecida, a partir da ocupação
dos ambientes da casa por obras de arte, peças artesanais, advindas das
mais diversas origens e dos mais diversos autores. Nesse momento e a
partir da leitura, identificação e descrição dos objetos, cujas assinaturas
de seus autores constavam nas peças, as correspondências, aproximações,
homologias foram aflorando, possibilitando que um discurso verbal fosse
construído e que uma nova história pudesse ser contada, através dos fios
que iam sendo puxados e tecidos entre a vida e a obra do escritor, dos
artistas e artesãos.
Intuímos que naquela sala estavam presentes as figuras mais repre-
sentativas de suas relações, construídas em tempos e contextos diferentes.
Mesmo que estejam expostas numa desordem aparente, fruto de encontros
insólitos, elas exerceram sobre nós um poder de encantamento como já
previa Foucault (1992, p. 6), quando a esses encontros se refere: “Sabe-se

305
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

o que há de desconcertante na proximidade dos extremos ou, muito sim-


plesmente na vizinhança súbita das coisas sem relação; a enumeração que
as faz entrechocar-se possui, por si só, um poder de encantamento [...]”.
Buscamos um sentido para esse “ordenamento”. Saímos à procura dos
sentidos explícitos - amizades, objetos, mimos e presentes, e dos sentidos
implícitos ao questionar que ordem e valor são dados ao que estava à nossa
vista. Em busca deste entendimento e de compreender esta proximidade
dos extremos, para alcançar o objetivo proposto, percorremos etapas que
viabilizaram identificar e tecer as relações pretendidas.
Passamos a desmontar a sala de visitas do escritor Jorge Amado, o
discurso visual montado pelas imagens fotográficas, através da leitura,
identificação e descrição dos objetos cujas autorias foram identificadas.
Formamos grupos temáticos: Objetos Diversos; Figuras da Cultura Baiana
e Brasileira; Animais; Candomblé; Catolicismo; Flores e Frutos; Marinha
e Mobiliário. Cada uma delas deu margem à construção de um ensaio
nos quais procuramos, através de uma exaustiva pesquisa, tecer, trançar,
urdir os laços criados e mantidos pelo escritor com os artesãos e artistas.
Como uma demonstração, apresentamos aqui a temática ANIMAIS,
deixando claro quão rica é a vida e obra deste escritor e quantas são as
possibilidades de olhares transversais lhes serem dirigidos. Ela foi com-
posta por obras dos artistas Jose Franco, Picasso, Aldemir Martins e
Ignacio Ojeda, com os quais Jorge Amado manteve vínculos de amizade,
de amor ou admiração e que, para entendê-los, recorremos a Bourdieu
(2008,p.225) quando diz:

O limite de todas essas coincidências de estruturas e de


sequências homólogas pelas quais se realiza a concordân-
cia entre uma pessoa socialmente classificada e as coisas e
pessoas – elas próprias, também socialmente classificadas
- que lhe estão vinculadas é representado por todos os atos

306
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

de cooptação da simpatia, amizade ou amor que conduzem


a relações duradouras, socialmente sancionadas ou não.

TEMÁTICA ANIMAIS: HISTÓRIAS DE BICHOS E DE HOMENS

Vou lhes contar uma história de bichos, que saídos das mãos de
homens, artistas e artesãos, aportaram na casa da Rua Alagoinhas, 33,
vindos daqui e do fim do mundo. Na sala de visitas desta casa eles con-
viviam, sintonizados, representativos do espírito eclético e harmonioso
do seu dono: o escritor Jorge Amado. E ademais em uma demonstração
da potencialidade da imagem fotográfica de nos remeter ao passado, de
ser uma fonte de informação e criação de narrativas memorialísticas.

1 2

307
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

4 5

6 7

“O cachorro Fadul, de Jorge Amado e Zélia Gattai, morreu nesta


quarta-feira (11), em Salvador. Ele tinha 16 anos, era da raça pug e morreu
de causa natural.”3Tal morte não poderia deixar de ser assim, anunciada.
Porque a relação de Jorge Amado com os animais, a sua entrega e pai-
xão, declaradamente amor, assim se expressa: “Entre os seres que amei
estranhamente, deles tenho saudades todos os dias, com alguns sonhos
repetidas noites, estão gatos, cachorros, um papagaio, um pássaro sofrê.
” (AMADO, J., 1992, p. 530)

3
Notícia divulgada no site da Rede Bahia. Disponível em: <http://g1.globo.com/
bahia/noticia/2012/04/morre-cao-de-estimacao-de-jorge-amado-e-zelia-gattai.
html>. Acesso em: 6 ago. 2016.

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NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

Conviviam com o escritor, privando da sua intimidade e afeto, por anos,


Mister Pickwick, Capitu, Chacha, Dona Flor, Siri, Pituco, o currupião e
Brabolino Fadul Abdala e Floro, Fusca e Belair, Gabriela, Nacib e Vadinho,
Ofélia e Hamlet, Gipsi e Ventania, os Irmãos Karamazov. Eram gatos, ca-
chorros, papagaio e siriemas, marrecos e pássaros que, nominados e como
símbolos, devotos e não devotos ao seu dono, estavam sujeitos à vida e à
morte. Ao render-se diante da irreversível finitude à qual estavam sujeitos os
seus animais de estimação e culto, Jorge Amado arria as malas e confessa:
“Depois da morte de Capitu e Pickwick decidi não ter mais nenhum bicho
em minha companhia, quando um deles se finava meu sofrimento era por
demais terrível, igual ao que sinto com a morte do amigo mais querido.”
(AMADO, J., 1992, p. 536). Eternizados nas obras de amigos queridos,
de artistas primorosos, nas pinturas, esculturas, azulejos, cerâmicas dentre
todas as de José Franco, Picasso, Ignacio Ojeda e Aldemir Martins, cabras,
corujas, porcos, sapos e gatos vindos de quatro cantos do mundo, ornavam as
paredes, se aninhavam nos móveis, embelezavam a sala de visitas do escritor.
A Cabra, de José Franco, figura/objeto 1, é uma escultura em cerâmica
vitrificada, saída dos fornos do artesão, da aldeia do Sobreiro, do Con-
celho de Mafra, em Portugal. Nesse mesmo fogo foi cozido o barro que
deu forma ao Porco, figura/objeto 5 que, em cerâmica vitrificada e em
formato de jarra, com alça e tubo, reafirma elementos identificadores da
obra do ceramista. A rusticidade do artista encantava o casal Amado,
bem como as tradições que inspiravam o artesão a criar as suas peças.
Quanto ao porco, a tradição da matança é muito antiga em Portugal.
Ela era representativa do status social dos sujeitos, desde quando, aquele
que mais porcos matasse durante o ano e oferecesse os melhores jantares
da matança, quem oferecesse a maior quantidade de pedaços de carne,
mais bem situados estariam na hierarquia social. Tradição mantida e
cultivada pelo artesão.

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II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Reza a lenda que Jorge Amado, convidado para uma matança do porco
na casa de José Franco, onde todos os preparativos e rituais estavam à
espera do ilustre convidado, ao chegar, não permite que a matança seja
executada por pena e dó do animal que seria sacrificado. O Porco, a
figura/objeto talvez simbolize e represente a esperança e o direito à vida
dos animais, bandeira levantada pelo escritor.
Vindos de longe e intercambiados com a moeda do afeto, esses ob-
jetos, cabra e porco e tantos outros que saiam das mãos de José Franco
e que ocupam os espaços da casa do escritor,4 chegavam à casa do Rio
Vermelho vindos de Lisboa, pelo Porto de Salvador, como podemos saber
através da declaração de Zélia Gattai (1999a, p. 227):
Tínhamos a tranquilidade de comprar o que bem quisésse-
mos, sem nos preocupar com o peso. Embarcaríamos tudo
no navio, em Lisboa, e desembarcaríamos tudo no porto de
Salvador, a bem dizer, na porta de casa, sem problemas. [...]
Voltamos sempre ao Sobreiro em nossas visitas a Portugal.
No entanto, o que nos atraia já não era tanto as cerâmicas
como o encontro com nosso amigo José Franco. Homem
de bem, grande artista, grande amigo.
Transitando e cultuando “mestres das artes” e “criadores da cultura
popular,” Jorge Amado (1992), ao cultivar a lei da boa vizinhança, as
cumplicidades e conivências, agrupava e fazia conviver, no mesmo espa-
ço, obras de artistas de origens as mais diversas, tal qual vivia a própria
vida, como a canta em prosa e verso: “Privei com alguns dos mestres
das artes, dos verdadeiros, no universo da ciência, das letras e das artes:
Picasso, Sartre, Frederic Joliot-Curie, meu privilégio foi tê-los conhecido.
4
No livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho, as obras do artesão José Franco
ocupam as páginas 146-149, numa demonstração do apreço e valor que lhe foi
dado pelo escritor Jorge Amado.

310
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

Não menos apanágio de ter merecido a amizade dos criadores da cultura


popular” (AMADO, J., 1992, p. 95).
Foi em Paris, nos idos de 1948, quando do exílio voluntário ao qual
se submeteu, após a cassação do registro do seu mandato de deputado
pelo Partido Comunista Brasileiro, que o escritor conheceu a vanguarda
artística europeia, que o ajudou a tornar o exílio menos amargo. Por
afinidade política, deu-se a aproximação com Picasso que, filiado ao
Partido Comunista Francês, em 1944, foi um artista comprometido com
os acontecimentos de sua época. Em torno da mesa de jantar questões
políticas eram discutidas. Uma prova do nível da intimidade que Jorge
Amado mantinha com o artista, o que nos faz intuir e justificar a presen-
ça, na sua casa, de obras produzidas por Picasso. Um desses momentos
é relembrado por Amado em Navegação de cabotagem: “Paris, casa de
Picasso, em torno à mesa de jantar, somos uns poucos na tentativa de
convencê-lo a comparecer ao Congresso de Intelectuais pela Paz que vai
se reunir em “Wroclaw, na Polônia”. (AMADO, J., 1992, p. 275).
Encontramos na sala de visitas da casa do escritor dois objetos signi-
ficativos, produzidos por Picasso. Adornam o ambiente uma escultura
em formato de Coruja, figura/objeto 2, um animal que traz consigo o
significado do mistério, da inteligência e da sabedoria. Por ser possuidor
de grandes olhos, que enxergam além da escuridão, inspirou Picasso a
pintar, esculpir e conceber inúmeras cerâmicas.5 Uma delas, de grandes
olhos, e em forma de jarro, abanca-se no grande móvel de madeira da
sala de visitas da casa de Jorge Amado e faz companhia aos gatos de Al-
demir Martins e ao sapo mexicano de Ignacio Ojeda. A Cabra de perfil,
figura/objeto 7, em cerâmica e em relevo, queimada, pintada e vitrificada,
cunhada no Atelier Madoura, compõe também essa temática. É uma
5
As corujas de Picasso. Disponível em: <https://www.facebook.com/Atelier-
Fazendo-Arte-DMC-374215092592188/photos/?tab=album&album_
id=1134220643258292>. Acesso em: 28 ago. 2016.

311
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

obra de Picasso, uma peça com formato arredondado, representando


uma cabeça de cabra, de perfil, com inscrição no verso que identifica
a sua numeração - 78/100, e a sua autenticidade: “Empreite original
Picasso, Atelier Madoura.” Segundo a descrição do Escritório de Arte
Soraia Cals, é uma faiança branca, parcialmente esmaltada, do Atelier
Madoura, edição 100, impressão original de Picasso.
Espalhadas, outras obras de Picasso embelezam a casa como afirma
Dona Zelia: “Pelas paredes, desde a entrada, Jorge mandou fixar azulejos
e placas de arte. No terraço estão os de Picasso, de Caribé e mais artistas
estrangeiros”. Reproduções de azulejos persas e uma peça em cerâmica,
que orna a parede do Quarto do casal, testemunham os laços afetivos
e a admiração que o escritor nutria pelo artista. São peças produzidas
no Atelier Madoura, fundado em 1938, na cidade de Vallauris, na Cotê
D’Azur francesa, onde, nos anos de 1950, Picasso, como escultor e cera-
mista, produziu mais de 600 peças em cerâmica e terracota.
E do Ceará, ah! do Ceará, vieram os gatos de Aldemir Martins.
Artista plástico, ilustrador, pintor e escultor, autodidata cujo expres-
sionismo lírico matizado de cores fortes, inspirado na natureza, com
seus animais, flores e frutos encantavam Jorge Amado. Desde os
idos de 1959 que a sua relação com Amado pode ser considerada.
O nacionalismo representado na exuberância das cores e dos temas
de certo o aproximou do escritor, que também o esbanjava em sua
literatura. Dessa sintonia e admiração resultou o Prêmio Jabuti, na
categoria capista, recebido por Aldemir Martins por ter sido ilustrador
das obras do escritor: Os pastores da noite, A bola o goleiro e Navega-
ção de cabotagem, bem como a capa do livro Capitães de Areia. Em
contrapartida, o mesmo Amado fez a apresentação do livro Balaio:
as frutas brasileiras de Aldemir Martins, ou o mistério cearense,
publicado em 1964. O artista moldou um Gato, figura/objeto 3, de

312
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

grande proporção, peça colorida, coberta com desenhos de flores e


animais, motivos fitomórficos, trazendo, no fundo iniciais que não
conseguimos decifrar - P. JIMDN. Um outro Gato, figura/objeto 4,
é malhado, em forma de vaso, cuja assinatura do artista encontra-se na
parte inferior da peça, bem como a sua data de execução - 1965. Peças
que pela exuberância não deixam de ser percebidas, chamando a atenção
daqueles que adentram a sala de visitas da casa do escritor.
Não é preciso, que se faça muito esforço para compreender a apreciação
de Jorge Amado pelos gatos. De mãe para filho, a paixão pelos gatos foi
herdada, como fica explícitada nessa confissão:
Lalu era fanática por gatos, teve sempre um bichano ao seu
lado, eu sou até hoje, gato é meu animal preferido. Zélia
e eu, memórias sagradas em nosso afeto. Sacha, mestiça
persa e siamês de caráter indomável, emprenhou jovem
[...] Nacib era-me devoto quanto Sacha o foi de Zélia, as
horas que concedia ao convívio dos humanos guardava-as
para mim. (AMADO, J., 1992, p. 532)
Para completar a ninhada, declarar a linhagem e confirmar a devoção
de Nacib pelo escritor, Zelia Gattai (2004, p. 93, 96, 97) acrescenta:
Tínhamos três gatos siameses: Gabriela, Nacib e Vadinho,
filho do casal. Apegadíssimo a Jorge, Nacib tornara-se a
sua sombra. Mais de um romance foi escrito com Nacib
servindo de peso de papel. Era ver Jorge sentar-se a máquina
que ele num salto, subia a mesa e acomodava-se sobre as
páginas dos originais. [...] Nem pelo duro, nem felpuda,
Chacha era escura de olhos amarelos, olhar penetrante. [...]
Não posso esquecer, isso não posso, de falar de três gatos
manx, trazidos da ilha de Man, [...] gatos raros, quadris

313
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

levantados, corpo e andar de coelhos, lindos [...] já batiza-


dos: Ofélia e Hamlet, que eram filhotes e Gipsy, já adulta.
Não é de estranhar e até louvar que o escritor, em Paris, sem recursos
e exilado, quando seu filho completa 1 ano de idade, o presenteia com
um conto para criança, o seu primeiro: O Gato malhado e a Andorinha
Sinhá. Nele o bardo canta: “O mundo só vai prestar. Para nele se viver.
No dia em que a gente ver. Um gato maltês casar: Com uma alegre
andorinha. Saindo os dois a voar. O noivo e sua noivinha. Dom Gato e
Dona Andorinha.” (AMADO, J., 2008, p. 11).
A apreciação do escritor pelos bichos não se resumia aos gatos. Como
um colecionador, Jorge Amado povoou a casa e seus cantos com sapos
das mais variadas origens, das mais diversas formas e feituras. Povoou,
com suas representações, as páginas do livro Rua Alagoinhas 33, Rio
Vermelho, no qual lhes deu um lugar de destaque. Suas páginas iniciais.
Simbolizando a fertilidade, a abundância, a riqueza, a prosperidade, a
boa sorte, o êxito, a força, a coragem, a morte, a bruxaria e a magia,
“que tem no olhar algo que fascina” (CIRLOT, 1984, p. 511) os sapos
da coleção do escritor, espalhados pela casa, recepcionavam àqueles que
a ela se achegavam.
Não se contentando com a sua representação, em madeira, ferro,
acrílico, pedra-sabão, um sapo cururu de carne e osso frequentava o
ambiente da casa para deleite do escritor e alvoroço dos amigos. De
Carybé surripiou e tomou para si um grande sapo de cerâmica que
se sobressaia dos demais por carregar, às costas, um pequeno filhote.
Aventura assim se sucedeu como nos conta o escritor: “O sapo enorme,
de cerâmica, abandonado no jardim da casa de Caribé, exposto a chuva,
coberto de limo. Os donos da casa não estão, não posso perder a viagem
[...] transportamos o sapo para o carro. [...] o grande sapo carrega nas
costas um filhote pequenino, lindo.” (AMADO, J., 1992, p. 16)

314
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

A esse sapo, tirado da casa do amigo, o escritor deu-lhe um destino


certo:
Colocado no parapeito do janelão da sala de jantar, sobre
os azulejos de Caribé, as armas de Oxossi e as de Oxum,
o sapão assumiu presidência da confraria de sapos que se
espalha pelos jardins, sob a piscina, ao lado da varanda,
em cima dos móveis, nas estantes, em todas as partes da
casa (AMADO, J., 1992, p. 16)
Como mais um membro da confraria, vindo de longe, do México,
esculpido em madeira, um Sapo, figura/objeto 6, traz gravado o nome
Ignacio Ojeda, é pintado, com grandes olhos e por todo o corpo círculos
amarelos que se assemelham a sóis. Assemelha-se exuberância das telas e
murais do amigo do escritor, o mexicano Diego Rivera, e a exuberância
dos desenhos que cobrem o seu corpo o destaca dos demais e o aproxima
do mundo pintado pelo escritor nas páginas dos seus romances.

E ASSIM ....

Depois de um longo percurso, ficamos convencidas da potencialidade


das imagens fotográficas e dos objetos de que esclareceram as relações
afetivas, identidades cultivadas, apreciação por estilos, afinidades políticas,
religiosas, as influências e trajetórias dos artistas e artesãos cujos roteiros
tangenciaram a vida do escritor Jorge Amado. Como os objetos funcionaram
como indiciadores da qualificação social, das relações estabelecidas pelos
sujeitos motivadas por questões emocionais, afetivas, por apreciação, gosto,
pelas técnicas, pela estética. E por fim ficou mais que delineado o perfil
eclético e catalisador do escritor exposto na convivência harmoniosa entre o
erudito e o popular, no trânsito pelas religiões, no sincretismo representado
pela profusão de santos e orixás, na diversidade dos estilos e das origens dos

315
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

objetos, que compõem o seu museu imaginário, na riqueza e variedade das


relações que por ele foram tecidas e cultivadas. A sua distinção.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. O gato malhado e a andorinha Sinhá: uma


história de amor. Capa e ilustrações por Carybé. Posfácios por Tatiana
Belinky e João Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2008.
AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um
livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.
APADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob
uma perspectiva cultural. Tradução de Agatha Bacelar. Niterói:
EduFF, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Tradução de
Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social.
Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento.
Tradução de Daniela Kernet al. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:
Zouk, 2008.
CHAVES, Gilberbert. Insinuações e fragmentos. In: RUA Alagoinhas
33, Rio Vermelho: a casa de Zélia e Jorge Amado. Textos de Jorge
Amado, Gilberbert Chaves e Paloma Jorge Amado. Fotos de Adenor
Gondim. Arte de Pedro Costa. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 1999.
CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de símbolos. Tradução de
Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Moraes, 1984.

316
NA CASA DA RUA ALAGOINHAS, 33, OBJETOS CONTAM HISTÓRIAS: JORGE AMADO E SUAS DISTINTAS RELAÇÕES

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia


das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
GATTAI, Zélia. A casa do Rio Vermelho. 3. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1999a.
KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização
como processo. In: APADURAI, Arjun. A vida social das coisas:
as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Tradução de Agatha
Bacelar. Niterói: EduFF, 2008. p. 93.
RUA Alagoinhas 33, Rio Vermelho: a casa de Zélia e Jorge Amado.
Textos de Jorge Amado, Gilberbert Chaves e Paloma Jorge Amado.
Fotos de Adenor Gondim. Arte de Pedro Costa. Salvador: Fundação
Casa de Jorge Amado, 1999.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada
subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia
das Letras; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.

317
LER O QUE NÃO EXISTE

LER O QUE NÃO EXISTE

Antonio Carlos Sobrinho1

Quando ingressei no Doutorado em Literatura e Cultura da Uni-


versidade Federal da Bahia, em março de 2013, eu tinha um plano de
pesquisa relativamente ambicioso: cartografar as experiências de liberdade
criadas por Jorge Amado. Isto é, modos de vida, individuais e coletivos,
que se desgarravam de uma existência tangida pelo multifacetado signo da
opressão2. Interessava-me sobremaneira caminhar por entre esses devires
revolucionários, conhecê-los, recolher suas potências de instauração de
uma coisa outra, suas formas de viver junto ou de expulsar dos corpos o
domínio nefasto dos afetos de tristeza. Para tanto, minha proposta era
visitar não apenas um ou outro romance, mas, sim, estabelecer um corte
longitudinal na produção do autor — ainda que o foco se mantivesse
nos romances produzidos a partir de 1958. O corpus era imenso, o que
implicava um desafio à pesquisa. Para tornar as coisas um pouco mais
complexas, havia um texto que me parecia imprescindível ao tema que eu
procurava desdobrar. Tratava-se de um romance cuja ação estaria situada
nos anos mais agudos da ditadura militar brasileira, quando a repressão
multiplicou a quantidade de corpos resistentes presos, torturados, mortos
e desaparecidos. Neste cenário, Jorge Amado queria contar a história de
1
Professor do Centro Universitário Jorge Amado — Unijorge. Doutor em Literatura
e Cultura (PPGLitCult/UFBA) e Mestre em Estudo de Linguagens (PPGEL/
UNEB).
2
Os resultados dessa pesquisa podem ser consultados na tese Das possibilidades
heterotópicas para uma experiência de liberdade — um estudo do universo
ficcional amadiano, orientada pela Profa. Dra. Ívia Alves e co-orientada pelo Prof.
Dr. Eduardo de Assis Duarte. A tese foi defendida em 2017.

319
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

um rapaz sobre quem, há muitos anos, não se tinha qualquer notícia.


Devorada pelos absurdos porões do horror, a memória deste garoto se-
ria tratada segundo duas versões conflitantes: um terrorista subversivo
inimigo da pátria, ou, como um herói do proletariado. A primeira nar-
rativa seria montada pelos inquéritos militares, constituindo, portanto,
o discurso estabelecido pelo poder vigente; a segunda, por sua vez, seria
meticulosamente organizada pelos ideólogos do Partido Comunista, que
apresentariam o rapaz como um modelo de engajamento a ser seguido
pela juventude. O narrador do romance, imbuído do mesmo espírito
daqueles que nos contam dos eventos de Tenda dos Milagres e Tocaia
Grande, rejeitaria ambas as versões, denunciando-as como apropriações
ideologizadas com um único propósito: salvaguardar, de um lado, a
imagem dos militares como defensores da nação contra um inimigo
terrível, o comunismo, e, de outro, potencializar a aura revolucionária do
PC, configurando-o como uma alternativa ética ao regime dos generais.
A estas duas, se oporia uma terceira, aquela produzida, sem desvios de
força ou de ideologia, por um narrador absolutamente irônico:

[...] inicio devagar a pequena história de Boris, o Vermelho.


Mísero vilão, traidor da pátria, vendido ao comunismo
internacional, às ordens de Moscou, a serviço de Cuba,
profissional do terrorismo, bandido sem entranhas e daí por
diante, conforme ficou patenteado na devassa – a maioria
dos inqueridos confessou, dois deles, mais (ou menos)
resistentes, bateram as botas no curso dos interrogatórios
– estabelecida a mando dos Generais. Lídimo paladino da
Revolução Proletária, filho glorioso da classe trabalhadora,
invencível campeão das lutas do povo brasileiro contra a
ditadura militar, dita a Redentora, estupendo, incorruptível,
sublime e por aí afora pois o biógrafo, senhor de rico voca-

320
LER O QUE NÃO EXISTE

bulário, não poupou adjetivos. Duas imagens do mesmo


fulano, duas interpretações de um mesmo acontecimento,
contraditórias decerto mas nem por isso menos corretas.
Assim se escreve a História, assim ela é ensinada nas escolas
a bambinos ou a pioneiros.
Quanto a mim, cidadão vulgar, literato de baixa extração,
de escrita emperrada e sensibilidade tacanha, recordo um
rapazola brasileiro, adolescente, quase um menino, alegre
e arrebatado, sem outro apetite na vida senão vivê-la. Sem
qualquer outra ambição, sem projetos de nenhuma espécie.
A vida lhe bastava.
O acontecido ocorreu naqueles anos, ainda próximos e já
tão distantes, anos confusos quando os jovens repetiam um
slogan condenado pelas sociedades assentadas e governos
estabelecidos, todas as sociedades, todos os governos, e o
slogan era o verso de uma canção: “faça o amor, não faça
a guerra”. 3
Tratava-se do romance Boris, o Vermelho. Havia apenas um problema,
de difícil contorno: ele não existia, nem existe. Embora não soubesse
com exatidão qual metodologia aplicar para ler o que nunca foi escrito,
não conseguia dispensar a convicção de sua importância para o meu
argumento. Afinal, a narrativa giraria em torno do que fora feito de uma
comunidade hippie, este acinte tanto aos generais quanto ao PC. Boris não
era propriamente um hippie, mas guardava relações com a comunidade
e uma certa identificação com a perspectiva de uma vida experimentada
em liberdade, sem qualquer condicionamento a não ser o movimento de
3
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._024, disponível
na Fundação Casa de Jorge Amado – instituição à qual agradeço o acesso a seu
arquivo.

321
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

seus próprios fluxos desejantes. Em depoimento a Maria José Quadros


publicado na edição de 23 de junho de 1991 de O Globo, Jorge Amado
informa pretender:
[...] o perfil de um jovem brasileiro do início dos anos [19]70,
época dos “hippies”, da liberação sexual, da pílula e também
de uma ditadura militar no Brasil. Boris não tem nada de
político, também não chega a ser um “hippie” completo.
Fuma maconha, envolve-se com a chamada liberação
sexual, não trabalha, tem um amigo rico envolvido com
surf, mas a circunstância da ditadura vai levá-lo a praticar
certos atos que fazem com que parte da Polícia, do Governo
Militar, etc., o considere subversivo, um traidor da pátria
a serviço de Moscou, “comuna” vendido. Até que o caso
chega ao conhecimento do Ministro da Guerra, que, como
era comum naquele tempo, tira logo suas conclusões pelo
nome do rapaz — Boris, apelidado o “Vermelho”, já dizia
tudo. Por outro lado, dentro do mesmo jogo de mentiras,
Boris também é visto como herói do proletariado, que
se bate contra a ditadura. [Mas ele] É apenas um jovem
brasileiro que está na dele (AMADO, 1991).
À parte o meu fascínio particular pelos hippies, que vêm a ser o fenô-
meno mais bonito que este mundo jamais viu, o universo em que se daria a
narrativa encaixava-se perfeitamente no critério heterotópico que eu havia
erguido como elemento articulador de minha pesquisa. As heterotopias,
para Michel Foucault (2001), são uma espécie de enclave: correspondem
a um território que opera em diferença ao modo de funcionamento da
sociedade em derredor. Nesse sentido, elas instauram um efetivo ponto
de tensão na rede de posicionamentos do sistema dominante: atuam no
“desde dentro” desta contextura maior, neutralizando-a ou revertendo-a

322
LER O QUE NÃO EXISTE

em seu ímpeto universalizante e subjugador, uma vez que se organizam


a partir de outros modos de existir. Desta forma, as espacialidades do-
tadas de relações heterotópicas se configuram como “[...] uma espécie
de contestação [...] do espaço em que vivemos [...]”, diz Michel Foucault
(2001, p. 416). Ora, e o que é uma comunidade hippie, em sua negação
radical de todos os modelos políticos que produziram a guerra, se não
uma potente heterotopia? Abandonar a presença fantasmática de Boris,
o Vermelho não era uma opção.
Com a perspectiva de me aproximar o máximo possível de Boris,
fui aos arquivos da Fundação Casa de Jorge Amado, onde pude acessar
não apenas o vasto acervo de entrevistas e reportagens que envolvem o
escritor, como também os datiloscritos digitalizados do romance – estes
se tratam de registros esparsos e incompletos, de modo que eu não pude
estabelecer uma sequência narrativa mais ou menos coerente; rascunhos
com marcas que sugerem o descarte, anotações manuscritas ilegíveis e
muitas páginas reescritas, que apresentam pequenas variações umas em
relação às outras. De qualquer sorte, ali estava a arquitetura possível
de Boris, a qual eu deveria suplementar com as informações coletadas
junto às entrevistas em que o autor soltava um detalhe ou outro do que
planejava para o romance.
Para abordar Boris, o Vermelho, estou desconsiderando o fato de a
revista Playboy, em sua edição de agosto de 1982, ter publicado, sob cessão
de Jorge Amado, algumas cenas do romance, intituladas “O episódio
de Siroca” — texto que veio a ser republicado como conto na edição
número 8 de Exu e na coletânea Cinco histórias, de 2004. Procedo desta
maneira levando em consideração dois motivos: 1982 é o ano em que
ocorre a primeira tentativa de escrever Boris, o Vermelho, de modo que
o projeto não estava ainda suficientemente maduro para Jorge Amado.
Aliás, o autor faz questão de mencionar isto no texto de apresentação
que produziu especialmente para a edição de Playboy:

323
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

“Boris, o Vermelho” ainda é uma ideia minha [...]. Uma


ideia que está em suspenso, mas que me atrai. Voltarei a
ela em breve, com certeza. “O episódio de Siroca” é um
dos diversos começos com os quais tentei colocar em pé a
história ainda imatura de Boris. Entrego aos leitores uma
curiosidade em matéria de ficção: a tentativa de um primeiro
capítulo de romance que de futuro será ou não aproveitado
(AMADO, 1982, p. 67).
O episódio em questão destoa do tom utilizado pelo romancista na
maioria dos datiloscritos de Boris, o Vermelho, além de as personagens
— à exceção de Siroca e do próprio Boris — não figurarem nos arquivos
digitalizados. Trata-se de uma narrativa leve acerca do compromisso
de amor que ela devota a José Daniel, com quem fora impedida de se
relacionar por ser homem casado e com filhos. Para afastá-la, a família
mudou-se do Rio de Janeiro para Salvador, onde a jovem conheceu Boris.
Ainda que tocada pelo rapaz, e por ele envolvida, ela se recusa a perder
a virgindade com o Vermelho, narrando o seu sentimento e sua vontade
de fugir de volta para o Rio de Janeiro.
O fragmento não tem inserção alguma na trama de Boris, o Vermelho
a não ser como uma possível razão pela qual a polícia está atrás do jovem
rapaz, uma vez que, em segredo, ele teria planejado e executado a sua fuga.
Ainda assim, novamente a julgar pela maioria dos datiloscritos, o episódio
se ajusta mal. Ao que parece, o caso de Siroca foi posteriormente esquecido:
entre os originais do romance, ganha relevância a repercussão em torno da
primeira relação sexual de Clarinha, a filha do reitor da Universidade, como
escândalo que inicialmente acarreta a perseguição policial ao jovem Boris.
O segundo motivo para o descarte se dá pelo fato de o mesmo texto
ter sido publicado, em 1989, como um conto. Nesta nova condição, o
fragmento ganha contornos de uma narrativa finalizada, que não se re-

324
LER O QUE NÃO EXISTE

laciona a qualquer outro projeto. Texto produzido ainda nas primeiras


tentativas de escrever Boris, o Vermelho, a publicação de “O episódio
de Siroca” como conto — desgarrando-se da trama projetada para o
romance — deu-se ainda em meio às tentativas de realizar o projeto, o
que parece sugerir o abandono dos fatos ali narrados.
Considerando os datiloscritos suplementados pelo material observado
junto às entrevistas, é possível defender que Boris, o Vermelho comporia o
que, em minha tese de doutorado, eu chamei de arco ficcional revisionis-
ta, isto é, um conjunto de romances cuja estrutura narrativa é montada
como tensionamento dos discursos já estabelecidos sobre o passado, de
maneira a fazer emergir na cena as vozes soterradas pela história. Seria,
portanto, um romance consanguíneo a narrativas como “Os amigos do
povo”, Tenda dos Milagres e Tocaia Grande. No caso de Boris, a pers-
pectiva revisionista caminharia na direção de uma crítica das ideologias
políticas, sejam de direita ou de esquerda, as quais resultaram em regimes
totalitários, ditatoriais, organizados em torno de um discurso único e da
força descomunal dos aparelhos repressivos. De fato, um dos datiloscritos
de Boris, o Vermelho traz o seguinte trecho:
Cansado antes mesmo de iniciar a briga de foice com a
máquina de escrever e o papel em branco, vejo-me em assus-
tadora companhia de policiais e ideólogos, duas categorias
que abomino. Detestáveis, uns e outros, tiras e teóricos,
apóstolos e soldados da opressão, trabalham para liquidar
os direitos individuais, praticam o desrespeito, o desprezo
ao ser humano, sua meta é a supressão da liberdade4.
Como o projeto pouco avançou em romance, todas as perguntas a
respeito de como a trama se desenvolveria restam sem resposta e uma
4
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._028, disponível na
Fundação Casa de Jorge Amado.

325
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

curiosidade permanece fadada a nunca ser suprida: caberia à comuni-


dade Hippie, heterotopia radical que é, criar as experiências de liberdade
impossíveis sob a direção do regime militar ou dos dirigentes-ideólogos
do Partido Comunista?
Em paralelo ao processo de levantar informações acerca de Boris,
o Vermelho junto aos periódicos situados entre 1982 e 1994 – período
aproximado em que o autor insistiu na história que não conseguiu re-
solver –, observei a insistência dos entrevistadores em perguntar sobre
um outro romance, A guerra dos santos. A priori, não dei maior atenção
ao caso, pois julguei tratar-se de uma referência a O sumiço da santa,
livro de 1988, que apresenta A guerra dos santos como um de seus títulos
alternativos. Contudo, não demorou para que uma certa desconfiança
começasse a surgir, uma vez que não havia equivalência entre o que era
dito em jornais e revistas e o que fora impresso como O sumiço da santa.
Aliás, as discrepâncias eram enormes entre as duas narrativas, de modo
que era impossível sustentar que houvesse qualquer tipo de ligação entre
elas. Aliás, não havia traço em comum com nenhum outro romance de
Jorge Amado, o que suscitou a certeza de este ter sido um projeto des-
cartado. A rigor, isso não seria de todo estranho: no acervo de entrevistas
é possível localizar uma ou outra ideia de romance que não chegou a
ser desenvolvida. No entanto, nenhum outro projeto descartado foi tão
duradouro quanto A guerra dos santos, cujo período de escrita envolveu
quase três décadas, sendo que a primeira informação obtida sobre o ro-
mance localiza-se em uma matéria do Jornal do Brasil datada de 25 de
novembro de 1958. Assim como Boris, portanto, A guerra dos santos se
trata de um romance que não existe — sua associação com O sumiço da
santa talvez tenha sido apenas uma estratégia amadiana de pôr termo ao
assunto sempre retornado nas entrevistas.
Talvez eu parasse neste ponto, apenas acrescentando uma nota de ro-
dapé em minha tese quando fosse tratar, no último capítulo, de O sumiço

326
LER O QUE NÃO EXISTE

da santa, não fosse o fato de uma curiosidade sem fim ter se acendido:
Por quê? Por qual razão Jorge Amado abortaria uma narrativa tão lon-
gamente maturada? Evidentemente, esta é uma pergunta impossível de
ser respondida, a não ser com alguma liberdade e muitas inferências, o
que pode contrastar com o rigor de uma academia mais ortodoxa, regida
ainda pelo espírito da modernidade e, portanto, avessa ao caráter mais
aberto dos desdobramentos ensaísticos. Ainda que representasse um risco,
resolvi seguir o rastro ondulante de A guerra dos santos, pois algo de sua
composição interessava à tese: sua perspectiva única sobre o candomblé.
Acontece que um dos pontos principais do argumento que desenvolvo
na tese se refere ao fato de as comunidades-terreiro se constituírem como
heterotopias africano-brasileiras, o que significa dizer que elas engendram
um modo de vida outro em relação à norma estabelecida pela matriz
colonial de poder. Uma outra ética; uma outra organização social, uma
outra economia dos afetos, uma outra cosmovisão, um outro regime de
encontros com a diferença, uma outra dimensão de vida. De fato, ao
se investigar a presença do candomblé nos romances de Jorge Amado,
tem-se que ela se organiza em torno de cinco pilares:

a) a experiência comunal absoluta, baseada nas inquebrantáveis vin-


culações entre os membros de uma mesma espacialidade, renovada e
expandida segundo os preceitos e os rituais do candomblé;
b) o ethos do povo-de-Axé, dotado da capacidade de transigir e de
uma abertura positiva para o outro em contraste com a posição dog-
mática e intolerante da sociedade branca, cristã e burguesa;
c) a intervenção dos Orixás no plano terreno em prol do sentido de
comunidade estruturante dos Terreiros, da proteção e do cuidado aos
Seus filhos, e da resistência e da luta pela preservação da identidade
coletiva cuja matriz é o candomblé;

327
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

d) as experiências da sexualidade a partir de uma visão de mundo


desprovida da noção de pecado e de uma existência sob o signo do
ayò, a alegria, enquanto afeto responsável pelo aumento de nossa
potência de agir5;
e) a associação do candomblé a um espaço histórico de resistência à
sociedade opressora em derredor, no qual são visualizadas experiên-
cias guiadas por valores e regras sociais identificadas como menos
repressoras do que aquelas instituídas como hegemônicas.
A partir da conjunção dos elementos acima, Jorge Amado projeta uma
experiência de liberdade relacionada à dinâmica de vida do povo-de-Axé,
a qual configura as comunidades-terreiro como potências heterotópicas
em relação ao modo de existir balizado pelos lugares de hegemonia deli-
neados a partir da matriz colonizadora ocidental. Não é à toa, portanto,
que o romancista faz alguns de seus personagens migrarem do mundo
claustrofóbico e triste em que vivem na direção desta experiência outra
de vida, os candomblés. São os casos, por exemplo, de Quincas Berro
d’Água, Manela e Adalgisa, que têm os seus corpos potencializados a
partir do momento em que se deslocam para o signo do Axé.
No plano original de A guerra dos santos, porém, radicalmente outra
seria a imagem do candomblé. Na já citada declaração de 1959 ao Jornal
do Brasil, Jorge Amado situa que sua ideia é tematizar os conflitos que
envolvem a sucessão de liderança nos terreiros de candomblé. Ou seja,
diferentemente do que veio a fazer em outros romances, trabalhar o choque
de forças entre uma sociedade que pretende exterminar o candomblé e
5
“Potência de agir” é uma formulação conceitual do filósofo Baruch Spinoza (2017)
e significa, a grosso modo, a capacidade de um corpo colocar-se de modo ativo no
mundo. A potência de agir pode oscilar para mais ou menos a depender do regime
de afetos pelo qual o corpo é atravessado: os afetos de alegria a aumentam enquanto
as paixões tristes a diminuem.

328
LER O QUE NÃO EXISTE

um povo-de-Axé que não se deixa vencer e resiste heroicamente, em A


guerra dos santos a tensão se daria da porta para dentro do terreiro, cindin-
do a comunidade em disputas e em toda sorte de afetos tristes — a “[...]
guerra é quando as facções de um candomblé entram em dissidência, aí
a sucessão [da Iyalorixá ou do Babalorixá] não se dá de forma pacífica”,
afirma Jorge Amado à edição de 31 de outubro de 1981 de Programe.
Um dos depoimentos mais importantes sobre A guerra dos santos
é dado em entrevista a Valdemir Santana, publicada pelo Correio da
Bahia de 31 de março de 1981:

C.B.: [Em A guerra dos santos] O senhor pretende mos-


trar o emaranhado político que domina os terreiros hoje?
J.A.: Sim, isso teria que aparecer sempre. É uma luta pelo
poder, como em toda parte. O poder por exemplo de uma
mãe de santo é um poder imperial, que não tem discussão
possível, ela manda mesmo. Só pode ser uma grande mãe
de santo, ou um grande pai de santo, quem tenha uma
grande capacidade de comando.
A montagem do plano ficcional em que o povo-de-Axé estaria presente
em A guerra dos santos, enfim, não destoaria em nenhum grau daquela
sempre reincidente no que se refere à ficcionalização amadiana dos espaços
da porteira para fora dos Terreiros, uma vez que “é uma luta pelo poder,
como em toda parte” — e se é “como em toda parte”, não há, decerto,
heterotopia possível, apenas uma reprodução sem fim do mesmo. Uma
vez equivalentes, reduzidas a um enfrentamento mesquinho pelo poder, as
organizações sociais dentro e fora dos Ilê Axé estariam assim condenadas
à impossibilidade de encenar qualquer experiência de liberdade.
O único fragmento narrativo conhecido de A guerra dos santos
refere-se a um breve material intitulado “Declaração de guerra em língua

329
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

de sotaque”, que foi publicado na Revista do Homem em sua edição de


agosto de 1975 — muito provavelmente, as cenas iniciais do que seria o
romance. Neste texto, o foco se estabelece em situar a tensão decorrente
do falecimento de Mãe Leocádia de Oxum, Iyalorixá do Ilê Axé Obá
Kossô, e a necessidade de se proceder à retirada do oxu, processo sem o
qual não se pode dar início ao axexê, ciclo de cerimônias fúnebres. No
terreiro, a pessoa mais apta e dotada de direito de realizar a incumbência
é Alvina, Iyakekerê da casa. No entanto, sua relação com Mãe Leocádia
é atravessada por afetos tristes, variando entre a mágoa, o ressentimento,
o ódio e o desejo de vingança.
Dividida em dois pontos de vista, a narrativa ora registra a versão
de Mãe Leocádia de Oxum, estendida às demais personagens e por elas
endossada, ora demarca a posição solitária da Iyakekerê Alvina, cuja
história é reconstituída parcialmente pelo narrador:
Nos vinte e cinco anos decorridos da confirmação de
Leocádia, Alvina, superando o impacto inicial, fizera-se
mãe-de-santo respeitada e o Axé Ilê Ajaká, num subúrbio
do Rio, reunia na roda dos santos, nos dias de grande festa
para mais de trinta filhas, sem falar nas ausentes, outro
tanto. A débil mão incapaz de empunhar o gládio na pe-
leja transformara-se em pulso forte no trato da navalha.
A moça enfatuada, sem malícia, fácil presa para Leocádia
e mesmo para a finada Cora, crescera em experiência e
saber – apenas o orgulho conservava-se igual. Ah! Desta
vez será diferente, a serva de Xangô tem cabeça, pulso, voz
firme e aliados poderosos (AMADO, 1975, p. 36).
O que sustenta o ressentimento mútuo, bem como as hostilidades
também de via dupla entre a Iyalorixá Leocádia de Oxum e a Iyakekerê
Alvina de Xangô são os resíduos permanentes da disputa empreendida

330
LER O QUE NÃO EXISTE

pelas duas em torno do processo sucessório de Mãe Agripina, fato acon-


tecido há vinte e cinco anos em relação ao presente da escrita.
Naquele contexto, o narrador descreve Alvina como “ingênua”, “vai-
dosa”, “deslumbrada”, “sem malícia” e “incapaz de empunhar o gládio na
peleja”, imagens que conotam o seu despreparo para lidar com as estra-
tégias próprias de uma “guerra de santo”, tornando-se “fácil presa” para
outras concorrentes ao poder, personificado na figura de uma Iyalorixá.
Entretanto, as qualificações indicativas da imaturidade de Alvina jazem
no passado, sepultadas naquela primeira batalha. Agora, com o cargo
novamente vago, e munida da experiência acumulada e maturada ao longo
dos anos, a Mãe-pequena está apta a guerrear novamente. Deste modo, a
imagem do candomblé que a narrativa projeta é a de um povo atravessado
por guerras sazonais entremeadas por períodos de tensão latente.
Do outro lado do embate, a perspectiva de Mãe Leocádia de Oxum
é remontada, embora com menos detalhes, por Mário Obá Telá, único
dos Ministros de Xangô presente no Ilê Axé quando da morte da Iyalo-
rixá. Além de filho sacerdotal, Obá Telá é amigo íntimo e de longa data
da Iyalorixá, o que lhe assegura a condição de portador de significativas
memórias sobre ela. Nesse sentido, da mesma forma que o narrador se
aproximou na observação de Alvina para poder reproduzir suas lembranças
e seus sentimentos mais íntimos, o faz em relação a Mário para recons-
truir a perspectiva de Leocádia. Nesse processo, se o tom adotado para
registrar o ponto de vista de Alvina tende a ressaltar os sentimentos de
mágoa, frustração, revolta e vingança; aquele utilizado para recriar o lado
da Mãe-de-santo é francamente atravessado pelo ódio e pelo desprezo:

[Leocádia de Oxum] Cuspia groso ao pronunciar cer-


tos nomes, cuspia desprezo e condenação, mas o nome
de Alvina ela não o pronunciava nunca. A desavença a
separá-las prolongara-se além da disputa pela sucessão da

331
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Mãe Agripina, talvez tivesse a ver com Manu, Mário não


tem certeza, mas, fosse o que fosse, levantara um muro de
ódio, intransponível (AMADO, 1975, p. 37).
É absolutamente imprescindível compreender a inimizade brutal,
bem como o cultivo mútuo de afetos tristes entre Leocádia e Alvina para
visualizar a intensidade do conflito que se estabelece ante a necessidade
ritual, uma vez que “[...] repouso e glória vão depender de quem toque
na cabeça [de Leocádia] e desamarre o oxu” (AMADO, 1975, p. 36)
– atribuição que caberia à Iyakekerê Alvina de Xangô, agora a iniciada
com maior cargo litúrgico no Ilê Axé, “não fosse o passado de ódio”
(AMADO, 1975, p. 37).
A partir da imagem montada em função do que consegui reunir
sobre A guerra dos santos, elaborei uma hipótese para aquela dúvida
acerca da razão pela qual o romance havia sido abandonado. Creio
ser possível constatar o fato de que há uma coerência em relação ao
modo como o candomblé é convocado a se fazer presente nos roman-
ces efetivamente escritos e publicados por Jorge Amado. Trata-se de
inscrevê-lo como uma heterotopia radical, absoluta e positiva em
relação ao modo de existir das sociedades fundamentadas na matriz
colonial de poder. Em A guerra dos santos, porém, tal perspectiva
seria fissurada, o que talvez viesse a anular a possibilidade de a matriz
africano-brasileira constituir modelos alternativos à dinâmica ocidental
moderna capitalista burguesa judaico cristã.
Isto porque, uma vez incluída no universo romanesco amadiano, a
“guerra de santo” deslocaria o conflito entre duas organizações sociocul-
turais distintas — duelo em que é perceptível um engajamento autoral
em tematizar a configuração comunal do candomblé como alternativa
à experiência de mundo ocidental – para tratar dos conflitos na própria

332
LER O QUE NÃO EXISTE

interioridade dos Ilê Axé, então reprodutores das mesmas relações situadas
da porteira para fora e sinalizadas de forma negativa.
Neste cenário atípico para a literatura amadiana, os Terreiros já não
seriam “lugares outros”, de onde emanariam vislumbres possíveis de uma
configuração social potencializadora dos corpos, mas a triste imagem da
desesperança de quem procura por alternativas e não as encontra.
Boris, o Vermelho e A guerra dos santos a rigor não existem. Nunca
foram escritos e publicados. No entanto, lê-los a partir dos restos sobrevi-
ventes do que seriam, dispersos aqui e ali sob alguma camada de poeira e
de silêncio, ajuda a dimensionar o invariável compromisso ético de Jorge
Amado em produzir aberturas e pensar saídas em relação ao erro absurdo
que nós temos sido (e ainda somos) como sociedade.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Cinquentenário do futuro. Programe, Salvador,


31.out.1981. Sem crédito de entrevistador.
AMADO, Jorge. Declaração de guerra em língua de sotaque. A
Revista do Homem, São Paulo, ano I, n. 1, p. 32-38, ago.1975.
AMADO, Jorge. Episódio de Siroca. Playboy, São Paulo, ano 8, n.
85, p. 67-68/184-186, ago.1982.
AMADO, Jorge. Jorge Amado planeja três novos romances; um deles:
“Guerra de Santo”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25.nov.1958.
Sem crédito de entrevistador.
AMADO, Jorge. Jorge Amado: 50 anos no país do carnaval. Correio
da Bahia, Salvador, 31.mar.1981. Entrevista a Valdemir Santana.
AMADO, Jorge. O fim da lei Sarney foi um desastre. O Globo, Rio
de Janeiro, 23.jun.1991. Entrevista a Maria José Quadros.

333
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: ______. Estética:


literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran
Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 411-422. (Ditos e
escritos, v. 3).
SPINOZA. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3.ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.

334
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E


UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

Camila Fernandes da Costa1

INTRODUÇÃO

O letramento literário define-se como uma prática social, consiste


em um processo de significação do texto literário, levando em conta uma
tríade: texto, intertexto e contexto. Essa construção de sentidos, desen-
volvida através das práticas que Cosson discute em Letramento Literário:
Teoria e Prática (2019), ilustra, por meio de sequências, como o trabalho
com o texto literário deve ser promovido na escola, objetivando-se a
desenvolver a competência literária dos alunos.
Nessa perspectiva, este artigo busca apresentar um projeto literário,
realizado em 2020, que esboça possibilidades de trabalho com o texto
literário em sala de aula no contexto de pandemia da Covid-19, em que
se fez necessário adaptar-se ao ensino remoto. Tal prática ilustra uma
situação de ensino de literatura que leva em conta o contexto dos alunos,
conforme os paradigmas social-identitário e do letramento literário,
nos quais se entende que o estudante é um ser ativo e participativo, é o
protagonista da intervenção.
1
Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Especialista em Literatura Afro-brasileira pela UFRN e
Ensino de Literatura pelo IFRN. Mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN.
Doutoranda em Estudos da Linguagem pela UFRN. Email – fernandes.camila23@
gmail.com

335
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

A obra indicada para a turma foi Suor (1934) de Jorge Amado. Ela
foi escolhida de maneira coletiva (pelos professores de Língua Portu-
guesa, História, Geografia, Biologia, Espanhol, Artes, Educação Física e
Filosofia), levando em conta aspectos que perpassam as disciplinas, mas,
sobretudo, a denúncia da violência social, os preconceitos e as discrimi-
nações sofridas pelas minorias.
Na narrativa, cada capítulo apresenta uma personagem exercendo sua
profissão (seja de violinista, costureira, prostituta, lavadeira, sapateiro,
vendedor, motorista, pedreiro, professor, ator e etc). Todavia esses ofícios
não resultam em uma qualidade de vida, pelo contrário, configuram
condições subumanas que consomem todas essas famílias e não resultam
em mínimo de bem-estar para se ter uma vida de qualidade. São vinte
capítulos que ilustram os mais diversos dramas dessa população excluída,
contudo, a partir do décimo oitavo capítulo (68, ladeira do Pelourinho),
esses moradores, com narrativas tão diversas, porém similares, unem-se
contra a exploração.
O texto selecionado pretendia simbolizar a sociedade em que esses
discentes estavam inseridos, para que fosse possível fazer eles pensarem
fora do conforto dos lares deles e refletir sobre a dificuldade das mino-
rias. Além desse contexto mimético, todas as atividades desenvolvidas
buscaram unir esses alunos, pois ambos vivenciavam um contexto de
isolamento devido ao novo Coronavírus, semelhante a obra: da fragmen-
tação à união, essa conciliação foi possível por meio de tecnologias da
informação e do trabalho desenvolvido. De resto, esse trabalho, realizado
de forma remota e interdisciplinar, verificou como essa prática docente
coletiva contribui para a formação de alunos leitores.

336
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

1 — PARADIGMAS PARA O ENSINO DA LITERATURA EM SALA DE


AULA

Os estudos sobre letramento literário discutem acerca da apropriação


da escrita e das práticas sociais relacionadas à leitura literária, logo a leitura,
pura e simplesmente, não pode ser encarada como a única atividade escolar
de leitura do texto literário. Pensando nisso, o professor deve trabalhar
com os diversos mecanismos de interpretação, precisa adentrar na obra
e explorar os mais variados sentidos dela, além das potencialidades dos
alunos que também devem ser levadas em conta.
Dessa maneira, para que seja possível realizar esse trabalho, deve-se
levar em conta que existem vários níveis de leitura e diferentes tipos de
paradigmas voltados para o ensino de literatura. Para Cosson, em Pa-
radigmas do Ensino da Literatura (2020), há, pelo menos, seis tipos de
modelos de práticas literárias, são elas os paradigmas: moral-gramatical,
histórico-nacional, analítico-textual, social-identitário, da formação do
leitor e do letramento literário. Cada um desses padrões de ensino apre-
senta a sua concepção de literatura, o valor que ela tem para a escola e
para a sociedade, o objetivo do ensino da literatura, o conteúdo propa-
gado quando se ensina literatura em sala de aula, a metodologia de cada
uma dessas práticas, o papel do professor, do aluno e da escola em meio
a esses paradigmas. Além disso, o lugar da disciplina literatura varia em
cada um desses modelos, assim como a seleção dos textos é realizada
obedecendo a diferentes critérios, podendo utilizar ou não auxílio de
algum material pedagógico em sua prática. Ademais, cada prática irá
utilizar de diferentes tempos e abordagens de leitura do texto literário,
atividades e formas de avaliação.
Dentre os paradigmas discutidos por Cosson (2020), procurou-se
enfatizar dois deles para a concretização da prática realizada em sala de
aula: os paradigmas social-identitário e o do letramento literário.

337
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

O paradigma social-identitário privilegia o conteúdo em detrimento


dos aspectos formais do texto, logo a literatura expõe e insere juízos
sobre as relações de poder, dessa maneira, os valores éticos e políticos se
sobressaem no paradigma em questão. Observa-se a recusa ao silêncio,
uma busca pela representação dos mais variados grupos sociais. Conse-
quentemente, busca-se uma humanização dos leitores, uma empatia com
o diverso - o considerado subalterno, marginal.
Enquanto produção cultural que representa as relações sociais
e expressa identidades, a literatura é um instrumento de re-
sistência cultural e de luta em busca da construção de uma
sociedade mais justa e igualitária. Nesse caso, a literatura
pressupõe um engajamento político que se enfatiza pela
valorização de autores e obras, que representam e são voz
e protagonismo àqueles que foram e ainda são socialmente
excluídos e discriminados por suas diferenças em relação
à sociedade patriarcal e desigual. Ao representar positi-
vamente existências e percursos de vida que reafirmam
e defendem as identidades étnicas, sexuais e culturais, as
obras literárias garantem reconhecimento e legitimidade
à identidade de grupos minoritários, funcionando como
uma forma de empoderamento simbólico dos integrantes
desses grupos. (COSSON, 2020, p. 101, grifo do autor)
Nesse paradigma, o valor da literatura está situado num discurso de
combate aos preconceitos, discriminações, exclusões e silenciamentos,
o lugar dessa disciplina é de importante ferramenta para a formação
cidadã dos jovens. O objetivo de tal prática está voltada a desenvolver a
criticidade dos alunos, analisando questões políticas, éticas e sociais da
sociedade. O conteúdo é voltado para a desconstrução de estereótipos e a
representação de vozes que foram silenciadas ao longo dos séculos. Logo,

338
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

a discussões estão voltadas para a “[...] ressignificação, pertencimento,


alteridade, outridade, diversidade, legitimidade, gênero, reterritorialização,
subalternidade, multiculturalismo, fundamentalismo, hibridismo cultural,
sexualidade desviante, normatividade etc.” (COSSON, 2020, p. 107).
Ademais, tal prática acontece a partir da análise crítica dos textos lite-
rários, observando tanto as denúncias realizadas por meio das narrativas,
quanto a legitimação de grupos marginalizados. O papel de professor
é de colaborador, promovendo e organizando os debates críticos acerca
do texto indicado. O texto é indicado pelo docente e visa incitar uma
conscientização política sobre as questões presentes na obra, logo o mate-
rial de ensino deve ser classificado como relevante socialmente. O papel
do aluno, semelhante ao do professor, é ativo e colaborativo, todavia,
enquanto o docente propicia o debate, o aluno discute acerca dos temas
solicitados e desenvolve empatia para com as minorias abordadas. Já o
papel da instituição escolar é assegurar uma atmosfera de socialização e
garantir acesso aos textos que foram considerados subalternos ao longo
dos anos.
As atividades desenvolvidas, por meio dessa prática, envolvem ati-
vidades interdisciplinares e intertextuais, visto que abordam o contexto
político, social, étnico, econômico etc. Além da possibilidade de desen-
volver projetos temáticos envolvendo questões de identidade, gênero, raça,
sexualidade, minorias, entre outras. Sendo assim, as atividades têm o
objetivo de desenvolver a empatia, criticidade, criatividade, produtividade
e o protagonismo do discente.
Já o paradigma do letramento literário valoriza o desenvolvimento
de apreensão enquanto construção literária de sentidos, isto é, valoriza
o processo de aquisição dos saberes literários. Tal procedimento leva em
consideração o coletivo e o individual dessa apropriação de saberes. Para
esse paradigma, a literatura engloba tanto os textos dados pela tradição
literária quanto os resgatados e ressignificados, além disso, leva em conta

339
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

outras formas de reprodução que vão além do livro físico (vídeos, filmes,
produtos digitais, podcast, performances de dança etc).
Em suma, para dizer de forma sintética, a literatura, tal
como concebemos no paradigma do letramento literário, é
uma linguagem que se apresenta como um repertório de textos e
práticas de produção e interpretação, pelos quais simbolizamos
nas palavras e pelas palavras a nós e o mundo que vivemos.
(COSSON, 2020, p. 177, grifo do autor)
Para o letramento literário, a literatura proporciona uma troca de
saberes, uma transferência de sentidos que ocorre na relação entre o
leitor e os textos, assim o ledor é um ser ativo, visto que a leitura traz
para o texto as experiências, a cultura e as emoções dele. Essa prática de
leitura literária busca desenvolver a competência leitora dos discentes,
levando em conta que o aluno não é uma tábula rasa, ele já traz alguma
competência literária e essa deve ser ampliada por meio do letramento
literário.
Conforme Cosson, “[...] esse paradigma tem como conteúdo do ensino
da literatura a linguagem literária, compreendida como um repertório
de textos e práticas de ler e produzir obras literárias.” (COSSON, 2020,
p. 183), nesse momento, entra a importância de levar em conta a tríade
(texto, intertexto, contexto). Assim, o texto leva em conta o momento de
leitura, união entre a obra e o legente; o intertexto leva em consideração
a relação entre o texto indicado e outros textos existentes que se relacio-
nam, direta ou indiretamente, ao texto lido; o contexto relaciona o texto
ao seu momento de compreensão, o espaço-tempo que ele é entendido e
debatido. Acerca dos métodos utilizados no paradigma letramento lite-
rário, deve-se levar em conta principalmente essas estratégias de manejo
do texto e compartilhamento de sentido por parte do alunado, levando
em conta a tríade mencionada.

340
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

Nesse método, o papel de professor é de desenvolvedor de projetos,


de resolvedor de problemas e elaborador de práticas cooperativas entre
os alunos. O texto escolhido deve levar em conta a necessidade da tur-
ma e especificidades subjetivas de cada aluno, visando o crescimento da
competência literária desse grupo de leitores. O papel do aluno, simi-
larmente ao do paradigma social-identitário, é ativo e colaborativo, logo
discute acerca dos temas solicitados, interagindo com sua comunidade
de leitores (sua turma), dessa forma, a leitura é entendida como um ato
individual e coletivo. E a escola deve garantir um espaço adequado para
o ensino de literatura.
As atividades desenvolvidas, por meio dessa prática, organizam-se
por intermédio de sequências, que pode ser básica ou expandida. Essas
sequências buscam sistematizar o trabalho com o material literário, pois
entende-se que o ensino de literatura deve partir do conhecido para o
desconhecido, na tentativa de ampliar a competência literária e o reper-
tório cultural do aluno.

2 — JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO


EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

É fato que a leitura literária no Ensino Médio já possui uma série


de desafios, visto que, nesta etapa, os conteúdos passam a ter um peso
maior, as aulas são voltadas para o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM), e isso acarreta uma desvalorização da leitura em sala de aula.
Além disso, é indubitável que o contexto atual pandêmico resultou em
um afastamento dos alunos do convívio social na escola. Dessa forma,
foi preciso amparar esses alunos de forma remota e inserir o letramento
literário por meio de multiletramentos que envolveram o uso de tecno-
logias da informação.

341
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver


(normalmente envolverá) o uso de novas tecnologias de
comunicação e informação (“novos letramentos”), mas
caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de
referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêne-
ros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar
um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático - que
envolva uma agência - de textos/discursos que ampliem
o repertório cultural, na direção de outros letramentos,
valorizados ou desvalorizados. (ROJO, 2012, p. 08)
Nesse contexto atípico de ensino, a tecnologia foi utilizada como
aliada para o ensino. Assim, após a necessidade de isolamento, as aulas
passaram a ocorrer pela plataforma Google Meet (um serviço de comu-
nicação por vídeo desenvolvido pelo Google). Todavia, uma ferramenta
que deveria unir, auxiliar na participação dos alunos durante a pande-
mia, acarretou em um ambiente de incertezas de desenvolvimento dos
discentes e ausência de parte do alunado nas aulas.
Dessa forma, ao constatar uma desmotivação por parte de uma
turma de 3° série de Ensino Médio, surgiu a necessidade de desenvolver
um trabalho coletivo com o intuito de verificar como a prática docente
interdisciplinar contribui para a motivação e formação de alunos leitores.
Após constatar uma ausência de participação durante as aulas, a falta
de interesse de leituras dos livros indicados, os docentes criaram um gru-
po de Whatsapp e discutiram acerca de um indicação comunitária que
levasse em conta aspectos conceituais de cada campo do conhecimento
de sua área, conforme está descrito no Apêndice A - , mas acima de
tudo, que discutisse sobre direitos, respeito, empatia, empoderamento e
reconhecimento da diversidade social e cultural. Pensando nisso, o livro
Suor (1934) de Jorge Amado foi indicado pelos professores de Língua

342
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

Portuguesa, História, Geografia, Biologia, Espanhol, Artes, Educação


Física e Filosofia.
Ademais, a narrativa escolhida poderia ser relacionada ao contexto
atual (a crise do novo coronavírus), um momento marcado pela frag-
mentação das relações sociais, devido à obrigatoriedade de isolamento,
e a necessidade de pensar coletivamente para o bem da comunidade.
Outrossim, o texto ilustra uma história de resistência e força de mem-
bros pertencentes a grupos marginalizados que poderiam ser associados
também a necessária tentativa contemporânea de manter-se firme em
tempos tão conturbados, a necessidade união.
A obra apresenta diversas histórias de maneira fragmentada, logo, é
possível ler cada capítulo separadamente, visto que a narrativa não apresenta
elementos tradicionais de romances que os organizam em uma estrutura
sincrônica — de início, meio e fim — as observando juntas, que se faz pos-
sível notar a representação de um q não há um enredo, são várias narrativas,
que, ao final, unem-se. O leitor se depara com uma série de imagens, uma
realidade que, de tão fragmentada, parece, aparentemente, sem relação.
Todavia, ao final, percebe-se que essas fotografias se entrelaçam e repre-
sentam uma mesma realidade que, sendo observadas na solidão de cada
quarto do sobrado, parecem situações individuais, mas, atentando para a
combinação dessas histórias, é perceptível a representação da indigência
em cada pequena imagem esboçada. Assim, só unindo todas pequenas
narrativas/imagens, por meio da relação entre os capítulos, - ou da colagem
dessas imagens — as observando juntas, que se faz possível notar a repre-
sentação de um quadro chamado: miséria. Logo, após a leitura do todo
da obra, vem o momento de epifania por parte do leitor, visto que o que
parecia individual ilustra uma polifonia, são várias vozes que se cruzam e
denunciam a pobreza extrema, a violência e as mazelas sociais.
Dessa maneira, a narrativa de Jorge Amado é considerada como um
espaço para a formação cidadã, pois, por meio das discussões que per-

343
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

passam a obra, se faz possível adquirir uma consciência crítica e, assim,


se faz exequível a possibilidade de se posicionar de forma ética em relação
a sociedade em que vive. Logo a narrativa e prática desenvolvida em
muitos sentidos se relacionam ao aspecto social-identitário, visto que o
texto escolhido é categorizado como “socialmente relevante” (COSSON,
2020, p. 116). Todavia, a prática realizada não se restringe, tão somente,
a esse paradigma, visto que as atividades realizadas levaram em conta
o encontro do aluno com o texto (instância do texto), o momento da
construção do texto pela leitura de outros textos (instância do intertexto)
e a construção de sentido do texto, levando em conta o social e o cultural
(instância do contexto). Logo, através desses dois paradigmas, a prática
interdisciplinar de leitura literária pode ser realizada.
Assim, o projeto literário foi organizado em quatro passos: motivação,
introdução, leitura e interpretação. A motivação, parte destinada a preparar
o leitor para adentrar no texto, foi composta das seguintes estratégias:
primeiro os professores buscaram estabelecer relações textuais - apresentar
associações entre a obra que seria lida e as obras (filmes, séries, youtubers,
livros) já conhecidas dos alunos, exercendo um trabalho comparativo;
para estabelecer essas conexões entre a obra e o saber já adquirido pelos
alunos, os professores utilizaram as suas “lives” a fim de promover a
aproximação da obra Suor (1934) ao contexto dos alunos. O segundo
momento utilizado para motivar a leitura foi a mediante a propagação
de mensagens recorrendo às plataformas de comunicação da escola - a
sala de aula virtual (Google Sala de Aula) e a plataforma de avisos da
escola (Webnotas). Além disso, no terceiro momento de motivação, os
professores gravaram vídeos que foram postados nas redes sociais da escola
(Instagram) para reforçar a importância da leitura literária do bimestre
para cada uma das disciplinas envolvidas no projeto.
O segundo passo, a introdução, levou em conta: a apresentação do
autor/obra (dados críticos, biográficos, bibliográficos, justificativa da

344
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

seleção); informações das disciplinas que se ligavam ao texto (Cubismo,


Naturalismo, Modernismo, higiene e doenças, Socialismo); apresentação
física da obra (capa, elementos paratextuais).
O terceiro momento do projeto, e mais essencial, foi o da leitura,
nessa fase os professores estipularam um prazo de 30 dias para os alunos
concluírem a leitura, porém, a cada semana, havia intervalos de verificação
para tirar dúvidas acerca do andamento da narrativa, resolver problemas
relacionados a interpretações equivocadas, lembrar os nomes de perso-
nagens, sanar questões em torno do vocabulário, auxiliar a estabelecer
relações entre capítulos, isto é, acompanhar o andamento da leitura e
auxiliar os alunos caso houvesse dúvidas.
O livro indicado estava disponível em uma plataforma de leitura
virtual (Árvore de Livros), nela o professor consegue acompanhar o
andamento da leitura, dessa forma, houve a possibilidade, no momento
de verificação, de salientar àqueles que ainda não tinham começado a
leitura a iniciar o processo, e de motivar a dar continuidade àqueles que
haviam começado e abandonado o livro do decorrer de algumas sema-
nas. Ademais, por meio dessa plataforma, foi possível verificar um maior
engajamento da turma em realizar a leitura, visto que se tratava de um
projeto que abarcava diversas disciplinas.
Após o prazo estipulado para a leitura, ocorreu um momento de
primeira interpretação, nele os alunos relacionaram o título ao enredo,
expuseram o seu entendimento sobre o texto, ou seja, o leitor expõe a
sua experiência literária com a obra indicada. Posteriormente, houve a
contextualização, nessa etapa ocorreu a “live” interdisciplinar, nessa aula
foi possível concretizar uma contextualização interdisciplinar, histórica,
estilística, poética, crítica, presentificadora, temática. Nesse momento,
ocorreu o compartilhamento das diversas interpretações, mediante à
explanação suscitada pelas diversas áreas do conhecimento, e isso acar-
retou em uma ampliação dos sentidos desenvolvidos individualmente,

345
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

possibilitando uma análise crítica do texto literário, por meio dos debates
em torno do seu conteúdo, as tensões sociais que perpassam o enredo e
as identidades das minorias sociais que são representadas.
Logo após o debate desenvolvido pelos professores, os alunos nova-
mente expressaram a sua opinião sobre a obra e também sobre o encontro
interdisciplinar. A maioria dos alunos demonstrou achar bastante pro-
dutivo e positivo esse tipo de aula, relataram acerca da necessidade de se
desenvolver mais momentos semelhantes ao ocorrido. Assim, observa-se,
nessa etapa, comentários avaliativos e autoavaliativos.
Por fim, o projeto desenvolveu a avaliação da leitura do texto literário,
ela se deu da seguinte forma: os professores elencaram coletivamente
alguns temas que perpassam a obra. Como se tratava de uma turma de
terceira série do ensino médio, foi definido, em conjunto, que os alunos
deveriam produzir um texto dissertativo-argumentativo, nos moldes do
ENEM, tentando relacionar a obra Suor (1934) de Jorge Amado a um
dos temas propostos, de forma clara e coesa, inserindo a narrativa em
questão às estratégias argumentativas que esse gênero propõe. Os temas
em questão foram: “Combate ao trabalho análogo à escravidão no Bra-
sil”, “Desafios para a garantia ao direito à saúde no Brasil”, “Meios para
superar a desigualdade social no Brasil”, “O acesso ao saneamento básico
no contexto social do Brasil”, “A questão do planejamento familiar no
Brasil do século XXI”. Posteriormente, ocorreu o momento de análise e
discussão dos textos desenvolvidos, debate sobre os temas não contem-
plados nas avaliações, além de ocorrer, novamente, uma avaliação da
prática interdisciplinar.
Apesar de ter sido desenvolvida a atividade de produção textual ao
final para concretizar o entendimento do texto e expor, ainda mais, a
experiência literária, deve-se enfatizar que a avaliação, quando se trata
de uma sequência que visa desenvolver o letramento literário, se dá de
forma processual. Dessa maneira, todas as etapas do processo são leva-

346
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

das em consideração, as primeiras impressões dos alunos, assim como a


interpretação após a discussão, nesse viés, defendem-se que as individua-
lidades dos alunos devem ser respeitadas, pois os paradigmas utilizados
organizam suas atividades pedagógicas no manuseio do texto literário
e no compartilhamento da experiência literária pelos alunos. Portanto,
não se buscou uma leitura correta do texto, mas como o aluno associou
o texto indicado ao seu conhecimento de mundo, as suas experiências,
consoante ao pensamento de Cosson:
Da mesma forma, a avaliação não pode ser um instrumento
de imposição da interpretação do professor; antes deve
ser um espaço de negociação de interpretações diferentes.
São essas negociações que conduzem a ultrapassagem das
impressões iniciais individuais e configuram o coletivo da
comunidade de leitores. (COSSON, 2019, p. 115)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse projeto literário surgiu da necessidade de unir uma turma que se


mostrava bastante desmotivada diante do novo formato de aulas exigido
pela propagação da Covid-19. Assim, os professores se uniram para au-
xiliar esses alunos e promover o letramento literário, isto é, os docentes
reinventaram as práticas de ensino para tornar o saber mais atrativo e
significativo para a turma em que o projeto foi executado. Os professores
abriram-se para os alunos a fim de que fosse possível compreendê-los, a
partir de seus saberes e vivências, dessa forma, foi exequível realizar tal
prática de maneira solidária.
Tal projeto levou em consideração que a leitura é um conjunto de
muitas vozes, seja dos alunos seja dos professores, e isso favoreceu o
interesse dos discentes para realizar a leitura literária e possibilitou o

347
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

desenvolvimento da competência leitora deles, visto que o número de


leitores, no bimestre em que foi realizado esse projeto, saiu de cerca de
10% da turma (que era média de leitura em bimestres anteriores) para
em torno de 50% (bimestre em que foi realizado o projeto). É fato que
realizar um projeto de tal importância com somente metade da turma
realizando a leitura dos textos não parece um número bom, todavia, por
consequência do ensino remoto, alguns estudantes da turma, mesmo se
tratando de uma escola privada, deixaram de assistir às aulas que ocor-
riam na plataforma de reuniões on-line e isso impossibilitou que mais
alunos participassem do projeto, mesmo havendo todo um trabalho de
motivação a fim de instigar o interesse pela leitura e a importância de
participação nas “lives”. No dia da “live” interdisciplinar, por exemplo,
somente 14 alunos dos 22 matriculados participaram do momento - esses
eram os alunos que costumavam assistir às aulas.
A partir desses dados, entende-se que a tecnologia, aliada a interdis-
ciplinaridade e ao desenvolvimento de projetos de letramento literário
vêm incentivando a leitura e o acesso a obras literárias. Além disso, tais
práticas entendem a literatura como um espaço de saber, e todas as es-
tratégias e abordagens utilizadas nesse projeto auxiliaram esses alunos a
realizar uma busca por esses saberes.
Vale ressaltar acerca da importância do texto literário indicado (a
obra Suor de Jorge Amado), ela possibilitou a utilização da literatura para
humanizar, fazer conhecer o outro, a diversidade, sem deixar de levar
em consideração os elementos estéticos que perpassam a obra literária.
Por meio do trabalho com o texto foi possível pensar eticamente sobre a
sociedade e sobre a condição atual que estava/está sendo vivenciada, o novo
coronavírus, visto que embora haja uma distinção entre esses seres que
são rapidamente apresentados na obra (uns tristes, outros doentes, outros
que sentem prazer com a desgraça dos seus semelhantes), essas diferenças
são postas de lado quando se faz necessário se unir contra a exploração.

348
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

A narrativa pode ser comparada ao contexto atual da necessidade de se


pensar na coletividade para que seja possível diminuir a contaminação
do vírus, de não se pensar somente em si (que não faz parte de nenhum
grupo de risco), mas no todo. A obra traz uma múltipla representação:
há negros, brancos, homens, mulheres, homossexuais, judeu, italiano.
Ambos se unem, apesar de suas diferenças, em prol de uma mudança
social. É a parte que corresponde ao todo, visando transmitir a ideia de
união para que seja possível uma melhoria das condições de vida. Só a
união, a consciência de classe e essa ação proletária pode modificar a
situação penosa que esses seres estão inseridos.
Logo, por meio desse trabalho foi possível criar espaços e situações
que pudessem assegurar a imersão no universo literário, garantindo,
mesmo em um momento tão adverso, um trabalho com a obra, um
compartilhamento de experiências. Além disso, pode-se proporcionar
um sentimento de empatia frente à diversidade representada e frente à
necessidade de união e isolamento que o coronavírus impõe.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Joselia. Jorge Amado: uma biografia. São Paulo: Todavia,


2018.
AMADO, Jorge. Suor. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo:
Contexto, 2019.
COSSON, Rildo. Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo:
Contexto, 2020.
DUARTE, Eduardo Assis. Outras aquarelas do Brasil. In: CUNHA,
Betina Ribeiro Rodrigues; REIS, Carlos (org). Amado Jorge um
retrato de muitas faces Rio de Janeiro: Bonecker, 2018. p. 45-57.

349
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

_______. Suor: fragmentação e consciência de classe. In: DUARTE,


Eduardo Assis. Jorge Amado: Romance em tempo de utopia. Rio de
Janeiro: Record, 1996. p. 62-73.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro:
Record, 1992.
ROJO, Roxane. (Org.). Escola conectada: os multiletramentos e as
TICS. São Paulo: Parábola, 2013.
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social.
São Paulo: Parábola, 2009.

APÊNDICE A - CONTEÚDOS RELACIONADOS À OBRA

3º EM
OBRA LITERÁRIA: Suor, autor Jorge Amado, 1934
DISCIPLINAS CONTEÚDOS RELACIONADOS
ARTE • Manifestações Tradicionais Europeias do Sé-
culo XIX
• Vanguardas Europeias na Primeira Metade do
Século XX
BIOLOGIA • Questões nutricionais e equilíbrio funcional
do corpo
• Higiene e doenças
EDUCAÇÃO • Exercícios Físicos x Atividades Físicas
FÍSICA
FILOSOFIA • Ética - Moral - Liberdade
• Direitos Humanos e Sociais

350
JORGE AMADO NA SALA DE AULA: PLURALIDADE E UNIÃO EM TEMPOS DE ISOLAMENTO

GEOGRAFIA • A divisão social do trabalho; Ativismo político;


Trabalho X Status
• A ideologia socialista abordada na obra literária
HISTÓRIA • Socialismo
• Primeira República
LÍNGUA • Ética Moral e Liberdade da mulher em O Amor
ESPANHOLA Nos Tempos Do Cólera.
LÍNGUA • Paralelo com a obra As Vinhas da Ira de John
INGELSA Steinbeck
LITERATURA • Segunda fase do Modernismo (Geração de
30) – Prosa
• Jorge Amado
• O romance proletário
• Naturalismo
PRODUÇÃO DE • Literatura e domínio sociocultural no ENEM
TEXTO • Análise de aspectos atuais presentes na obra

351
MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

José Otávio M. Badaró Santos1


Marcello Moreira2

A recepção crítica da obra de Jorge Amado, sobretudo a crítica es-


pecializada, constituída por intelectuais, pesquisadores, historiadores
literários, acadêmicos e jornalistas, é um caso incomum na literatura
brasileira no período modernista. São poucos os autores que suscitaram
tantos antagonismos e divergências no debate literário como o escritor
baiano, sua extensa produção literária dividiu as opiniões de grandes
pensadores da cultura e da literatura brasileira e colocou em oposição
direta os fiéis apologistas de seu universo literário e aqueles detratores
mais entusiasmados e diligentes. A recepção de Jorge Amado também é
excepcional por outro motivo, uma vez que é um autor de romances que
alcançou um raro sucesso de público, sendo traduzido em 49 idiomas e
tendo vendido cerca de 21 milhões de livros no Brasil e pelo menos 80
milhões em outros países.
O sucesso de público, no entanto, foi inversamente proporcional à
sua aceitação no ambiente acadêmico, onde predominava, na segunda
metade do século XX, a ideia de uma literatura que fosse alinhada
ao cânone europeu daquele momento, assentado, sobretudo, no tripé
1
Doutorando no Programa de Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS), da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
2
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor
pleno da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).

353
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Joyce-Proust-Kafka, como referiu Alves (2006). Assim, com a insti-


tucionalização da Teoria Literária no Brasil nesse período, ganharam
relevância os experimentos estéticos de escritores como Guimarães Rosa e
Clarice Lispector e, sob grande influência desses ajuizamentos críticos, a
historiografia literária acatou esses valores e foi reservado a Jorge Amado
o lugar de uma “baixa literatura”, ou, a partir da taxionomia criada por
Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira (1970), um
romancista de “tensão mínima” e um “contador de histórias regionais”.
[...] constato que ficam explícitas as hierarquias legitimadas
pela modernidade: a grande divisão entre “alta” cultura e
“baixa” literatura, entre o racional e o instintivo, entre a
cultura e a natureza, entre o integrado na “vida ocidental
e capitalista” e a periferia (atrasada), que se torna espúria
e comparece com seu descompasso em relação à marcha
do “progresso e da industrialização” do país (ALVES,
2006, p. 204).
No entanto, ao identificarmos e analisarmos os diversos usos e
valores ajuizados pela crítica literária sobre os romances de Amado do
chamado primeiro ciclo, tendo como aporte a Estética da Recepção, a
partir de Jauss, notamos a predominância, ao longo da segunda metade
do século XX, de apenas uma perspectiva analítica, qual seja, aquela que
privilegia o mundo social, que toma o texto como um espelhamento do
contexto sócio-histórico, da biografia e da psicologia do autor, sendo a
obra um documento a serviço da historiografia. Identificamos ainda que
essa postura crítica, em certa medida, negligenciou a experiência esté-
tica empreendida por Amado e restringiu seu texto como um romance
proletário, realista, histórico e regionalista. Assim, a predominância
do materialismo histórico na crítica do romance, sobretudo a partir de
teóricos como György Lukács e Lucien Goldmann, impediu que o texto

354
MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

fosse interpretado por outras perspectivas de análise, atribuindo a Jorge


Amado não o papel de um artista da palavra, mas o de um cronista social,
preso aos fatos e aos personagens históricos. À vista disso, entendemos que
esses aportes teóricos, assentados na ideia romântica da criação original
e do gênio autoral, bem como o estruturalismo-genético, subestimaram
a produção do escritor, reservando-lhe este lugar periférico e menor na
literatura brasileira.
Nossa análise se deteve, como dissemos, a partir do levantamento da
memória da recepção do chamado primeiro ciclo, conforme o consenso
da crítica, que inclui Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar
Morto (1936), Capitães da Areia (1937), Terras do Sem Fim (1943) e São
Jorge dos Ilhéus (1944), isto é, em quase todos os textos de Amado até a
publicação de Gabriela, cravo e canela, em 1958. Assim, excetuando-se as
peças de teatro, biografias e romances feitos sob encomenda do Partido
Comunista, em que não identificamos a mesma experiência estética dos
romances referidos anteriormente, temos, de modo geral, a supremacia
de uma única perspectiva de análise.
O que propomos é, justamente, uma investigação a partir do resgate
dos muitos efeitos de sentido atribuídos a estas obras ao longo do tempo
e as variadas leituras que estes textos suscitaram, em uma abordagem
diacrônica, para demonstrar a noção de historicidade dos textos e da
própria crítica, uma vez que esta opera a partir de diferentes interesses,
sejam eles políticos, econômicos, sociais, culturais e até religiosos. De-
fendemos, pois, que não há um sentido único, preexistente à leitura, e
oculto por trás de um texto, posto que ele é, na verdade, a construção
de um conjunto de leitores, ou mesmo de “comunidades interpretativas”,
para usar uma expressão de Stanley Fish (1980).
Com este levantamento, pretendemos demonstrar que a sedimentação
dos significados de um conjunto de obras do chamado primeiro ciclo da
literatura amadiana se deu, de maneira geral, a partir de uma perspectiva

355
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

sociológica do texto, que privilegia a biografia do autor, fazendo passar a


convenção por natureza, dentro de uma tradição aristotélica, humanista,
realista, naturalista e, por fim, marxista. Assim, se formos capazes de
constatar a predominância do materialismo histórico, por meio do que
chamamos de “memória da recepção crítica”, poderemos avançar para
outro ponto: a homogeneização da crítica para a leitura de romances
tão distintos e heterogêneos e a circunscrição do escritor como cronista
social, e não como artista da palavra, poderiam se constituir como uma
operação com o intuito de exclusão de Jorge Amado do cânone do mo-
dernismo brasileiro?
Posto isso, podemos afirmar que a revisão dos textos críticos dessa
primeira fase da produção literária de Amado vai apontar para um novo
caminho nos estudos amadianos: a identificação das razões pelas quais
o escritor baiano foi rejeitado pela crítica acadêmica e sua obra atrelada
à categoria de “literatura menor”. Mais ainda, a partir dessa constatação,
poderemos propor uma reavaliação desse corpus amadiano por meio
do conceito de representação, na esteira dos estudos de Roger Chartier
e Louis Marin, com o objetivo de, por um lado, desvincular a ideia de
transposição da realidade e homologia das estruturas sociais nos textos,
o chamado realismo social, e, por outro, validar a noção de historicidade
dos significados das obras literárias. Com Foucault, aprendemos que nada,
absolutamente nada, é natural, e assim também ocorre com os conceitos
e as categorias da crítica literária, a exemplo da ideia de literatura regio-
nalista proposta ao longo de todo o século XX pelos críticos brasileiros.
A reavaliação, portanto, desse corpus amadiano, de caráter inédito, a
partir da noção de representação, pode agregar ainda a proposta de Paul
Ricoeur de uma mimesis criadora e não, simplesmente, reprodutora. Em
outros termos, a ideia de uma experiência estética que avança do nível
mimético figurativo para o polifigurativo, permitindo uma “redescrição”
inventiva da realidade, ao invés de uma descrição fiel dos fatos, como

356
MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

quis a crítica assentada no materialismo histórico. O chamado “círculo


da mimesis”, proposto pelo filósofo francês em Tempo e Narrativa (2010),
se dá em três estágios, desde a maneira como o texto é prefigurado na
experiência humana, até sua configuração em uma narrativa e, por fim,
sua “refiguração” no ato da leitura. Esses três níveis, respectivamente,
correspondem a ideia de uma tríplice mimesis: a mimesis I, que precede
a configuração poética e diz respeito a toda pré-compreensão de mun-
do compartilhada entre o autor e o leitor; a mimesis II, que constitui
a criação propriamente dita, a configuração narrativa; e a mimesis III,
que dá importância ao receptor e o coloca como elemento fundamental
no momento de significação, em um encontro do mundo do texto com
o mundo do leitor.
[...] é o leitor que termina a obra na medida em que, se-
gundo Roman Ingarden em Das literarische Kunstwerk [A
obra de arte literária] e Wolfgan Iser em A ato da leitura, a
obra escrita é um esboço para a leitura; o texto, com efeito,
comporta buracos, lacunas, zonas de indeterminação, ou
até, como Ulisses, de Joyce, desafia a capacidade do leitor
de configurar ele mesmo a obra que o autor parece ter o
maligno prazer de desfigurar. Neste caso extremo, é o
leitor, quase abandonado pela obra, que carrega sozinho
nos ombros o peso da composição da intriga (RICOEUR,
2010, p. 132).
O percurso da tríplice mimesis é capaz de demonstrar a insuficiência
tanto da tese do estruturalismo, que se fecha na mecânica da linguagem,
quanto do marxismo dogmático que, irrefletidamente, busca encontrar a
transposição do plano social para o texto literário. A referência à realidade
presente no texto ficcional, confundida pela crítica marxista como espe-
lhamento e traço do histórico, é, conforme Barthes, um “efeito de real”.

357
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Contrário a ideia de um realismo social, de que Jorge Amado foi


insistentemente associado, Paul Ricoeur desenvolveu uma filosofia da
imaginação que, diferentemente de uma imaginação reprodutiva, está
mais ligada a uma proposta de refiguração da realidade social no texto
literário. Para o filósofo francês, a experiência fictícia relaciona a tem-
poralidade vivida (tempo fenomenológico) ao tempo percebido como
uma dimensão do mundo (tempo histórico), uma vez que as obras de
ficção não deixam de misturar personagens históricos e acontecimentos
datados, lugares geográficos conhecidos, com os personagens, locais e
acontecimentos imaginários. No entanto, conforme o autor, é um equívoco
concluir que isso arrastaria o tempo da ficção para o espaço de gravitação
do tempo histórico. O que ocorre é, justamente, o contrário, porque todas
as referências a acontecimentos históricos reais perdem sua função de
“representância” no tocante ao passado histórico e se alinham ao estatuto
irreal dos outros acontecimentos da narrativa. Assim, os “instrumentos
de pensamento” que estruturam o tempo histórico, a saber, o calendário,
a sequência de gerações e os vestígios e documentos, são neutralizados,
porque não há necessidade de afirmá-los em um texto fictício.

Infelizmente, essa simulação do passado pela ficção foi


obscurecida posteriormente pelas discussões estéticas
suscitadas pelo romance realista. A verossimilhança passa
a ser confundida com uma modalidade de semelhança ao
real que coloca a ficção no próprio plano da história. No
tocante a isso, é verdade que se pode ler os grandes roman-
cistas do século XIX como historiadores substitutos, ou
melhor, como sociólogos avant la lettre: como se o romance
ocupasse aqui um lugar ainda vacante no império das
ciências humanas. Mas esse exemplo acaba sendo o mais
enganador. Não é quando o romance exerce uma função

358
MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

histórica ou sociológica direta, mesclada à sua função es-


tética, que ele levanta o problema mais interessante quanto
à verossimilhança. A verdadeira mimesis da ação deve ser
buscada nas obras de arte menos preocupadas em refletir
sua época. A imitação, no sentido vulgar do termo, é aqui o
inimigo por excelência da mimesis. É precisamente quando
uma obra de arte rompe com esse tipo de verossimilhança
que revela sua verdadeira função mimética” (RICOEUR,
2010, p. 326-327).
A referência à realidade presente no texto ficcional, confundida pela
crítica marxista como espelhamento e traço do histórico, é, conforme
Barthes, um “efeito de real”. Assim, os conectores específicos que a his-
tória obedece (calendário, sequência de gerações, documentos e vestígios)
são, portanto, anulados na ficção. Se estes elementos estão presentes na
narrativa ficcional são apenas para dar verossimilhança ao texto, não
porque dizem sobre a realidade mesma daquilo que ocorreu no passado.
Ricoeur chamou este recurso, presente nos intitulados romances realistas,
de “retórica da dissimulação”, um artifício para convencer o receptor que
o narrado é matéria do tempo histórico, e afirmou que estes procedi-
mentos utilizados pelo autor, embora sejam capazes de enganar o leitor,
não devem iludir o crítico.
Desse modo, podemos, facilmente, abandonar a convicção ingênua e
romântica de Jorge Amado como um gênio criador e original, imbuído
de valores e ideais políticos, que fez do seu texto uma ferramenta de
luta, engajamento e transformação social. Aqui, portanto, iremos optar
pela ideia de uma estabilidade da significação que se dá por meio de um
compartilhamento de disposições e princípios de leitura e que, portanto,
pode ocorrer em dada época e em dado contexto social e histórico. Com
Jauss e Fish, compreendemos que o sentido da obra é construído por meio

359
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

de um intercâmbio entre os receptores da mesma, sedimentando uma


determinada perspectiva crítica em detrimento de outras.
Com o filósofo Henri Bergson, aprendemos que a memória, ainda
que coloque em cena o passado, é sempre uma mobilização a partir do
presente. Assim, nossa proposta de deslocamento da cadeia de recepções,
de que Amado foi objeto, é um esforço de memória “presentista”, mas
nos ajuda, por exemplo, a compreender como este mesmo autor será
lido no futuro. O empreendimento de questionar os paradigmas da
crítica, como tencionamos fazer nesta pesquisa, pode ser um caminho
para evitar que, para as próximas gerações, Jorge Amado seja apenas um
pequeno verbete de enciclopédia e esteja, enfim, excluído completamente
do cânone moderno brasileiro.

REFERÊNCIAS

ALVES, I. I. D. A recepção crítica dos romances de Jorge Amado.


Colóquio Jorge Amado - 70 anos de Jubiabá. 1. ed.Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado; Faculdades Jorge Amado, 2006, v. 1,
p. 99-118.
ALVES, I. I. D. De paradigmas, cânones e avaliações - ou dos valores
negativos da produção literária de Jorge Amado. Letras de Hoje,
Porto Alegre, v. 37, p. 197-208, 2001.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário
Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do
corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1994.

360
MEMÓRIA E RECEPÇÃO NA LITERATURA AMADIANA

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e


representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa:
Difusão Editorial, 1998.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e
inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed.
da UFRGS, 2002.
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Tradução de
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
FISH, Stanley. What makes as Interpretation Acceptable? in: Is there
a text in this class? The Authority of Interpretative Communities.
Cambridge: Harvard University Press, 1980.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à
teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
LUKÁCS, György. A teoria do romance: um ensaio
histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução,
posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000.
MARIN, Louis. Le Portrait du roi. Paris: Éditions de Minuit, 1981.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

361
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS


DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

Maria José de Oliveira Santos1

Se os fantasmas da unicidade, de uma única raiz identitá-


ria podem ser reconvocadas a integrar a trama narrativa,
é também verdade que as identidades compósitas, que se
desenharam no contexto das Américas, geraram escrituras
híbridas abertas à muitiplicidade de origens culturais que
as integram. (ZILÁ BERND).

Segundo Regina Gomes (2018), antes do cinema, a preocupação com


os estudos sobre recepção estética é relevante no campo literário com a
Escola de Konstanz. Ressalta que Hans Robert Jauss (1979; 1994) é um
dos pioneiros da estética da recepção e quem direciona críticas às análises
textuais, propondo uma reflexão sobre a historicidade das obras literárias,
resultado das inúmeras e múltiplas interpretações leitoras ao longo do
tempo. Conforme Jauss (1979), a obra só existe porque é lida. Não existe
história da literatura sem uma história da sua recepção. E, em busca de
romper com a fratura entre a história da literatura e a estética e colocar a/o
leitora/or em uma posição privilegiada, o crítico em seu livro História da
literatura como provocação à teoria literária (JAUSS, 1994. p. 25) afirma:
1
Professora Mestra da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/CAMPUS II),
lotada no Departamento de Linguística Letras e Artes (DLLARTES) do Colegiado
de Letras. E-mail: marmano2010@hotmail.com

363
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

A história da literatura é um processo de recepção e produ-


ção estética que se realiza na atualização dos textos literários
por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz
novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete.
Neste sentido, Jauss considera que a historicidade funciona como um
motor de atualização do texto literário lido, porque resulta de leituras de
camadas diversas que agem em prol de sua vivacidade. Logo, a estética
da recepção ilumina o lugar especial da crítica. Os comentários críticos
aliados aos da recepção leitora formam uma “camada de sentidos” que
manifesta um conjunto de interpretações que se atualizam, contínua e
historicamente, ao longo dos tempos.
Assim, é que a partir dos anos 60 do Século XX os estudos pós-coloniais
possibilitaram uma abertura às discussões, até então, consideradas proi-
bidas. As vozes silenciadas passaram a incomodar. As/os intelectuais de
países considerados terceiro-mundistas revelaram-se no terreno da/o
construtora/or, passando a discutir e questionar o processo de construção:
quais as bases que a/o nortearam e conseguiram desqualificá-las/os como
Outras/os e Inferiores sufocando as Diferenças? E assim se refere Nestor
Garcia Canclini (1997, p. 28) em relação aos recalques das Diferenças
resultantes dessa eficiente, mas não indiscutível, construção e discute a
América Latina como um conglomerado complexo onde diversidade e
pluralidade convivem “[...] respeitando-se as múltiplas lógicas de desen-
volvimento de cada país, de cada povo, de cada cultura”. E continua:
Também na sociedade e na cultura mudou o que se enten-
dia por modernidade. Abandonamos o evolucionismo que
esperava a solução dos problemas sociais pela secularização
das práticas: é necessário passar-se, dizia-se nos anos 60
e 70, dos comportamentos prescritivos aos efetivos [...] a
condutas próprias de sociedades urbanas em que os objetos

364
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

e a organização coletiva seriam fixados de acordo com a


racionalidade científica e tecnológica. Hoje concebemos a
América Latina como uma articulação mais complexa de
tradições e modernidades (diversos, desiguais) um contin-
gente heterogêneo formado por países onde, em cada um,
existem múltiplas lógicas de desenvolvimento.
[...]
Nessa linha, concebemos a pós-modernidade não como
uma etapa ou tendência que substituiria o mundo moder-
no, mas como uma maneira de problematizar os vínculos
equívocos que ele armou com as tradições que quis excluir
ou superar para constituir-se.
É a partir dos anos 1960 que a multidisciplinaridade interfere e/ou
insere-se nesse contexto formado de desigualdades e exclusões, viabili-
zando um estudo onde as relações de poder são revisadas deslocando-se
a visão estática da fortalecida e bem assentada pirâmide secular.
Assim, os estudos identitários passaram a discutir o próprio processo
de colonização, as relações entre colonizadora/or e colonizada/o, mas (re)
discutindo a marca da dependência cultural, aceitando-se e considerando-se
os empréstimos e as influências, sem ressentimentos. Zilá Bernd (1998, p.
5) assim se refere a este novo espaço de discussões das identidades ameri-
canas no ensaio “Identidade compósitas: escrituras híbridas”, discutindo
e destacando a importância dessas produções para visibilizar a remexida
nos critérios que, até então, classificavam determinadas produções literárias
que primavam — e primam — pelo comprometimento da construção
dessa identidade universal:

As literaturas migrantes, que constituem conjuntos plurais


por excelência, interessam na medida em que elas desesta-

365
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

bilizam as certezas e as obsessões da crítica de tudo querer


classificar, organizar e imobilizar em categorias definitivas.
O gesto tradicional de associar um autor a um único quadro
de referências como a etnia, a nação, o gênero ou mesmo
a língua torna-se insuficiente para dar conta do entrela-
çamento de fatores postos em cena [...] Se as identidades
são múltiplas e compósitas, a arte e as escrituras que delas
se originam serão consequentemente híbridas, ‘dúcteis e
maleáveis’, como afirma Nestor Garcia Canclini, um dos
primeiros a valer-se do termo “híbrido” para caracterizar
a cultura das Américas.
Nessa revisão, determinadas produções literárias encontram seu espaço
— sua abertura — através de outras possibilidades críticas perpassadas e
orientadas por outros conceitos teóricos que acompanham, justamente,
os textos considerados polêmicos ao longo do processo de canonização.
Nessa reflexão, Bernd (1988) convoca o “instinto de nacionalidade”
discutido e alertado por Machado de Assis que sugeriu: “O que se deve
esperar do escritor é um certo sentimento íntimo que o faça tornar-se um
homem de seu tempo e de seu país” (BERND, 1998, p. 3) e prossegue
à mesma página: Machado de Assis já pressentia os perigos

[...] de associar ‘identidade nacional’ à homogeneização


dos traços culturais, como já estavam propondo alguns
escritores com nítida tendência essencialista. Podemos,
pois, constatar pelos exemplos evocados que uma concepção
identitária rizomática, heterogênea e conflitual já existia no
início deste século no contexto das três Américas.
Neste contexto, a produção literária de Jorge Amado encontra seu
espaço de discussão nesse cenário onde as minorias, enquanto persona-

366
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

gens suscitam outras perspectivas de interpretações no campo teórico. E,


neste quadro, a prostituição, o alcoolismo, o homossexualismo/LGBT+,
dentre outros temas proibidos não mais o são, assim como o colorido
étnico, a sexualidade e os segredos de alcova. E, nesse emergir de novos
instrumentos de interpretação, o romance Dona Flor e seus dois maridos2
encontra-se bem assessorado: Antropologia, Ciências Sociais, Análise do
Discurso, Imagologia constituem-se em paradigmas importantíssimos
para quem acredita que, em cada período histórico pode ser observada
certa ordem, a partir da qual se estabelecem, “com maior” ou menor
rigidez, as fronteiras do literário (REIS, 1992, p. 129).
Nesse esteio de novos paradigmas de interpretação, Eduardo de
Assis Duarte (1991, p. 242) já se manifestava inquieto com a situação
controversa em torno da recepção literária da produção amadiana no
seu texto “Do rodapé à crítica universitária, Jorge Amado, um caso
polêmico”, ao realizar um comentário a respeito do procedimento da
crítica e propõe:

Diante do rápido painel aqui traçado espero que fique um


incentivo para que se discuta as posturas críticas aponta-
das, bem como a necessidade de uma reavaliação da obra
amadiana como um todo.
Em 1997, Eduardo Duarte em “Classe, gênero, etnia: povo e público
na ficção de Jorge Amado” (1997, p. 88) já observa a existência de um
processo de reavaliação traduzido por

[...] parte da crítica universitária, sendo objeto de pesquisas,


teses, ensaios e discussões em congressos internacionais.
Tal interesse chega em boa hora e contribui para quitar
2
Neste texto, será utilizada a sigla DFS2M para indicar o nome completo do
romance amadiano em estudo neste ensaio.

367
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

parte da dívida da inteligentsia brasileira para com nosso


escritor mais lido e traduzido.
Apresento, então, visões críticas nacionais e estrangeiras que discu-
tem a identidade de “mão-dupla” representada no romance DFS2M,
considerando como Renato Ortiz (1994, p. 139):
[...] o processo de construção da identidade nacional se
fundamenta sempre numa interpretação e que ao longo
dessa complicada discussão todos, no entanto, se dedicam a
uma interpretação do Brasil, a identidade sendo o resultado
do jogo das relações apreendidas por cada autor.
E a esta interpretação de Ortiz, acrescento: depende de quem fala
embasado de seu repertório e ideias, quando e onde fala e ainda para
quem fala, que são elementos importantes para compreensão do discurso
do Outro, em quaisquer contextos e situações.
Nesse emaranhado de discussões a produção amadiana é defendida
ou atacada, e a/o crítica/o busca alternativas para justificar suas posições:
é o caso de José Guilherme Merquior (1983, p. 178-181), que enumera
uma série de elementos perseguidos pela crítica literária a fim de colocar
a produção de Jorge Amado no patamar do livro que se afasta do padrão
culto (obra amoral e carnavalesca; nos textos de Jorge Amado impera o
“populismo literário”; o romantismo que perpassa no texto do escritor
baiano é assim considerado por Merquior: “romantismo de esquerda”;
“figuras homéricas”; “ciclo da comédia baiana”, são alguns exemplos dos
vários outros citados por Merquior), argumentando, favoravelmente, ao
escritor baiano comparando-o e observando as diferenças locais, culturais
e linguísticas, com Dickens, Rabelais e Diderot:
Nessa ampla galeria, Jorge Amado prima pela seiva
cômico-sentimental do seu narrar, combinada com a

368
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

abrangência do seu registro social. Numa palavra: ele é o


Dickens do nosso regionalismo — mas um Dickens, é claro,
que tivesse trocado o decoro vitoriano pela sensualidade de
cama e mesa da tradição baiana. E assim como o mui român-
tico autor de Grandes Esperanças impregnava seu notável
realismo social de pathos e humor, nosso Dickens moreno
conjuga protesto socialista com uma apologia rabelaisiana
da carne e do prazer. O perfume da prosa amadiana lembra
Diderot: ‘felicidade e prosperidade só podem existir numa
sociedade em que a lei reconhece o instinto’.
Neste rumo de discussões, destaco o texto de Aluysio Mendonça
Sampaio, produzido no ano de 1969, “Dona Flor e seus dois maridos”,
que mostra pela primeira vez na crítica nacional uma leitura do triângulo
amoroso T- D.F. - V (Teodoro, Dona Flor e Vadinho) movida através de
uma escolha mais pela conciliação que pela opção:
[...] em Dona Flor percorreu-se a via da conciliação quase
conformista da personagem, mantendo o matrimônio, for-
talecido pela presença do terceiro da triangulação amorosa.
É como se o romancista proclamasse que vários são os meios
para se investir contra cadeias opressoras do casamento,
lastreado no estreito moralismo de uma sociedade arcaica
e mentirosa. (SAMPAIO, 1969, p. 66)
Em sua análise Aluysio Sampaio (1969) destaca o humor amadiano
como uma estratégia para denunciar os problemas de uma sociedade
preconceituosa e hipócrita. Enfatiza, sobremaneira, o caso da obriga-
toriedade de escolha da mulher por um homem que pode, por sua vez,
manter relações extraconjugais sem problemas sociais e familiares —
filhas e filhos presumem-se, aceitam normalmente as relações sexuais
extraconjugais por parte do homem:

369
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Dona Flor é o inconformismo da mulher contra as limi-


tações a ela impostas pelo casamento, o marido livre para
suas relações sexuais extraconjugais, enquanto é exigida da
mulher fidelidade absoluta. Mas, em face dessa restrição
imposta pela moralidade dominante, resta à mulher o so-
nho de um verdadeiro amor e sexo, em formação de uma
triangulação oportuna. Dona Flor finda possuindo dois
homens, Teodoro e Vadinho, este no diáfano do sonho, o
primeiro representando a insipidez do dia a dia, em medíocre
felicidade, e Vadinho atendendo às aspirações maiores da
mulher em busca de um verdadeiro amor, de uma paixão
intensa. (SAMPAIO, 1969, p. 65-66).
Conforme citação imediatamente anterior, o crítico abre uma pers-
pectiva de discussão para a construção vigente que confere poderes plenos
aos homens em situações várias da vida, em detrimento da constante
desqualificação da mulher, que luta contra uma tradição fortalecida que
a desqualifica, constantemente, perante o homem — a verossimilhança
ficcional permite a discussão: onde está escrito e inscrito que, eternamente,
a mulher deverá estar subalterna ao homem em todos os aspectos inclusive
no caso do adultério, e mais: sem o direito de reclamar, aceitando a situação
passivamente e como algo natural?!... Vale ressaltar que Sampaio valoriza
a estratégia de Jorge Amado que retira as personagens quase sempre dos
ambientes miseráveis e da malandragem, mas também da classe média.
Jorge Amado assim o faz para ratificar seu projeto de defensor das pessoas
pobres, conforme seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras
(ABL), a 17 de julho de 1961 no livro Discursos (AMADO, 1993, p. 19):
Quanto a mim, busquei o caminho nada cômodo de com-
promisso com os pobres e os oprimidos, com os que nada
têm e lutam por um lugar ao sol, com os que não partici-

370
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

pam dos bens do mundo, e quis ser, na medida de minhas


forças, voz de suas ânsias, dores e esperanças. Refletindo
o despertar de sua consciência, desejei levar seu clamor a
todos os ouvidos, amassar em seu barro o humanismo de
meus livros, criar sobre eles e para eles.
No segundo caso, o projeto do escritor baiano exerce-se no sentido de
chamar atenção para o fato de que os problemas sociais tanto se originam
das minorias como das classes privilegiadas econômica e socialmente,
ou seja: o romance DFS2M encontra-se habitado por homens ricos
classificados como pilantras tanto como os populares amigos pobres de
Vadinho. Além do mais, vale a pena considerar: o segundo marido de
Dona Flor, todo “certinho” deveria preencher os requisitos necessários
a um marido ideal. Eis outro elemento que se pode analisar e discutir a
partir do texto de Jorge Amado ora analisado.
Dona Flor é uma personagem que transita entre o ambiente público
(desordem) e o privado (ordem) “deslizando” (BHABHA, 1998, p. 19)
pelos dois espaços em uma convivência “relacional”. Este é o pensamento
de Roberto Da Matta (1997, p. 97-132) no ensaio “Mulher — Dona Flor
e seus dois maridos: um romance relacional”. O antropólogo analisa
a sociedade brasileira do ponto de vista sociológico e, através de um
“triângulo ritual” — rito do carnaval, rito da ordem e rito religioso –
onde se encontram embutidas três éticas distintas e simultâneas. O rito
do carnaval põe a sociedade brasileira, temporariamente, de cabeça para
baixo, mas não impede o exame de outros momentos onde esta mesma
sociedade celebra o equilíbrio e a ordem — o Caxias pode ser também,
um folião, em uma relação onde um comportamento não inutiliza o
outro, pois o mais importante é circular. No rito da ordem observa-se
o peso do governo ao molde da ordem, legalidade e seriedade, contras-
tando com o riso, a liberdade e a malandragem — como Vadinho —,

371
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

elementos articuladores e legitimadores do carnaval. O rito religioso


celebra os paradigmas da Igreja Católica reforçadores da ordem legal,
mas fora deste mundo real, com a proposta de “ajudar a uma saída
da ‘sociedade’ com todos os seus breves prazeres” — o Catolicismo
funciona como um chamamento de atenção através do remorso e do
peso de consciência, estratégias eficientes no processo de construção de
homens e mulheres. Analisando-se o comportamento de Dona Flor,
ao estabelecer quatro momentos na vida da personagem (momento de
viuvez, momento em que resolve frequentar a rua, momento de novas
núpcias e o momento da convivência com os dois maridos) sugere a
ideia de que a mulher aparece no contexto brasileiro como um elo en-
tre todos os tipos de homens, sintetizando antagonismos e conciliando
opostos — Dona Flor estabelece uma relação entre o morto idealizado
e o vivo concreto. Da Matta defende que o estudo relacional possibilita
ultrapassar a visão tradicional de identidade nacional como caráter, ou
traço, determinado por um elemento, ou unidade, naturalizando uma
sociedade de características paradoxais. Assim compreendido, o Brasil
não é nem o país do carnaval, nem do homem cordial, nem o lugar da
violência. Também não é uma sociedade feudal e de desordens admi-
nistrativas, e sim, a junção disso tudo. Observemos outro momento
significativo do ensaio à página 131:

Caberia, finalmente, reafirmar uma posição no que diz


respeito à obra de Jorge Amado e às teorias do Brasil nela
contidas. É impressionante que nenhum crítico tenha
percebido essa chamada “guinada” do autor como um
modo de poder enfrentar os temas não-oficiais da socie-
dade brasileira [...]. Já não se fala mais em formalismos
legais, ou leis econômicas determinativas, ou em mercado
de trabalho, ou em leis e ideais políticos como módulos

372
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

motivadores da ação das personagens. Eles não vivem mais


no mundo das leis impessoais e, quando vão à rua, o fazem
em busca dos amigos e das relações amicais que realmente
embalam o seu mundo e suas existências. Trata-se de um
universo como esse que lemos em Dona Flor. Onde todos
são amigos de todos e onde para cada crise existe um amigo
que ajuda, ampara e consola. Será esse o mundo em que
todos nós brasileiros gostaríamos de viver? (DAMATTA,
1997, p. 131).
Estamos perante outro recurso teórico: a perspectiva socioantropo-
lógica atenta para outras possibilidades de leituras do romance DFS2M,
alertando para relações legítimas e/ou legitimadas na sociedade burguesa
e tais possibilidades revestem-se da ausência de constrangimentos porque
são cotidianas. E, em assim sendo, um texto literário amadiano sugeriria
novas teorias do Brasil.
Em outro texto do mesmo ano e publicado em Cadernos de Literatura
Brasileira: Jorge Amado (1997, p. 122) — esta publicação é composta por
textos de memória seletiva, confluências, entrevista, geografia pessoal, iné-
ditos, variantes, correspondência, ensaios e guias em homenagem a Jorge
Amado — Roberto da Matta (1997, p. 144) afirma o momento marcante
do carnaval no romance DFS2M por meio da personagem Dona Flor
De fato, o dado mais extraordinário da história de Dona
Flor é, obviamente que ela decide não decidir e permanece
casada tanto com o seu segundo marido, o comedido Dr.
Teodoro sem, entretanto, deixar de ser amante do primeiro
cônjuge, o excessivo Vadinho. Do mesmo modo que o car-
naval realiza a mediação entre os universos da tristeza e da
felicidade, da riqueza e da pobreza e do lazer e do trabalho,
Dona Flor também descobre um caminho alternativo.

373
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

Embora os espaços sociais estejam sempre demarcados — no carnaval,


a presença das cordas dos blocos está aí para comprovar e, muitas vezes,
em nome de uma proteção aos componentes — observa-se a alegria es-
boçada nos rostos de pessoas ricas e pobres, brancas e negras. O carnaval
traduz a junção de vários momentos e sentimentos de uma sociedade.
Em meio a tantas discussões em torno do romance DFS2M e embora
não seja objetivo deste texto trabalhar com entrevista (RAILLARD,
1990, p. 296), penso que é valido repetir a opinião do autor a respeito
do comportamento da personagem Flor, bem como, a respeito das difi-
culdades de sua construção:
Em Dona Flor também há um caso característico de
reação do personagem. Eu já chegara ao fim do romance,
exatamente quando Vadinho volta e quer dormir com
Dona Flor; ela, que tem um segundo marido, o doutor
Teodoro, e que é uma mulher honesta, pequeno-burguesa
com todos com todos os preconceitos da pequena burguesia,
não quer deitar com Vadinho, mas ao mesmo tempo ela o
ama, então ela vai fazer um ebó, para que Vadinho volte
ao nada de onde viera.
E é nesta dúvida e no comportamento da personagem que recai a
maior parte da crítica especializada: a abordagem de um assunto por
demais proibido, embora frequente no comportamento social: o adultério.
Passando para a crítica internacional, Thomas Dowling (1970, p.
13-14) inicia a resenha do romance in loco, referindo-se à alegria do
povo baiano e, que, mais do que um romance, acrescenta: trata-se de
um hino de exaltação a vida não tendo defeito nesse sentido. Dowling,
ao abordar o triângulo amoroso — principal motivo do romance para o
crítico — realiza uma significativa interpretação que abre uma perspectiva
de leitura para a relação Flor e Vadinho: fornece dados do romance com

374
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

a finalidade de mostrar o arranjo final e sugere a situação como algo


recorrente na vida real — a morte de Vadinho no carnaval e o fato de
ser um amante talentoso e ardoroso contrastando com o comportamento
comedido e frugal de Teodoro Madureira são elementos que concorrem
para os sonhos eróticos e lascivos de Dona Flor. A análise desenvolvida
a respeito da contradição entre a realidade caótica da Bahia e a alegria
que perpassa no texto são elementos sinalizadores da idealização das
personagens ao longo da trama que reúne uma mulher tímida, doce,
sensual, ao lado de um Vadinho mentiroso, namorador, trapaceiro, en-
cantador, que não gosta de trabalhar, mas é sempre presente na relação
sexual (SANTOS, 2001), conforme o autor, com “ardor tempestuoso”
(DOWLING, 1970, p. 14). Teodoro é um homem de presença na
cama às quartas-feiras e, infalivelmente, aos sábados. Neste sentido, o
farmacêutico reúne qualidades contrárias às de Vadinho, embora seja
companheiro, generoso e educado. Mas, sonhos proibidos passam a
rondar Dona Flor e perturbar sua formação moral. Para o crítico, Flor
merece o melhor da vida, não uma alegria incompleta. E esta alegria
chega com o retorno de Vadinho. Aí, então, configura-se uma ménage-à-
-trois (relação sexual a três) temperado por um adultério e, por outro,
é um casamento aberto, exemplo de exercício dos direitos conjugais.
Admite Dowling, que esta não é uma situação sem problemas para a
personagem, mas Jorge Amado trabalha na mais completa satisfação,
engenhosa e ironicamente. Isto tudo em uma explosão de alegria como
em nenhum outro da literatura.
Assim, Jorge Amado já vislumbrava e rondava a sociedade burguesa,
revelando segredos da classe e até então, comuns e visibilizados apenas
na classe considerada baixa. Acredito que esta é uma atitude que sinaliza
para o dado que vivemos outros tempos. E, para que possamos vivê-lo
sem remorsos e pesares, devemos nos munir de teorias capazes de deses-
tabilizar e/ou remexer o eficiente pensamento eurocêntrico ainda seguido

375
II WEBINÁRIO ESTUDOS AMADIANOS: 20 ANOS DE PERMANÊNCIA

como verdade única e absoluta. Com a palavra a recepção crítica e a


estética da recepção.

REFERÊNCIAS

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AMADO, Jorge. Discursos. Salvador: FCJA, 1993. (Coleção Casa de
palavras, Acervo Jorge Amado - pesquisa).
AMADO, Jorge. Cadernos de Literatura Brasileira. n. 3, mar., São
Paulo, 1997.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam
Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo
Horizonte: UFMG, 1998. (Coleção Humanitas).
BERND, Zilá. Identidades compósitas: escrituras híbridas. Texto
apresentado no Congresso da ANPOLL, em 12 de junho de 1998,
publicado na Revista Matraga 11.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para
entrar e sair da modernidade. Trad. Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza
Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. (Ensaios latino-americanos).
DAMATTA, Roberto. A Casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e
morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DOWLING, Thomas. Dona Flor and her two husbands, Trad.
Harriet de Onís. Review, 69. New York, 1970.
DUARTE, Eduarte de Assis. Do rodapé à crítica universitária Jorge
Amado, um caso polêmico. Anais ABRALIC/Literatura e Memória
Cultural, v. 2. Belo Horizonte: ABRALIC, 1991.
GOMES, Regina. Dona Flor e seus dois maridos e a recepção

376
IDENTIDADE DE “MÃO DUPLA” EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: VISÕES CRÍTICAS

histórica da crítica Dona Flor e seus dois maridos and the historical
reception of criticismo. Revista Travessias. Significação, São
Paulo, v. 45, n. 49, p. 231-246, jan-jun. 2018 | 233. DOI: 10.11606/
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JAUSS, H. R. Estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz
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MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do Apocalipse. Nova
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed.
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SAMPAIO, Aluysio. Jorge Amado: o romancista. São Paulo: Maltese,
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Um grapiúna no país do carnaval. Simpósio internacional de estudos
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Vera Rollemberg; Textos Eliane Azevedo et. al; Capa e ilust. Floriano
Teixeira. Salvador: FCJA / EDUFBA.

377
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