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Ivan Sant’Anna

30 LIÇÕES
DE
DE

MERCADO
Autor
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investidor.
Ivan: 30 lições de mercado
Ivan Sant’Anna
Ivan: 30 lições de mercado
Copyright © 2014, 2019

por Ivan Sant’Anna

revisão Priscilla Vicenzo

projeto gráfico Eduardo Pignata

arte de capa Telmo Hideki

Prefixo Editorial: 94256

Número ISBN: 978-85-94256-02-7

Título: Ivan: 30 lições de mercado

Tipo de suporte: papel

Inversa Publicações

Rua Joaquim Floriano, 960, 8º andar

Itaim Bibi, São Paulo-SP

Telefone: (11) 4003 3178

contato@inversa.com.br

www.inversa.com.br
“Dedico este livro à Olivia Alonso, que me fez dar uma guinada em

minha vida, em 2017, aos 76 anos de idade, quando achava que

já percorria a reta final. Talvez ainda longa, mas final. O novo ca-

minho, de crônicas, filmagens, palestras, gravações, séries e cur-

sos, já dura dois anos e meio. Espero que continue ainda por longo

tempo, já que tem sido uma fonte de rejuvenescimento para mim.”


Sumário

Prefácio 14

Introdução 18

1. Começos e recomeços 20

2. Reminiscências 27

3. O voo da águia 34

4. Onde fica essa arapuca? 42

5. Nas barrancas do Araguaia 50

6. Galo Cego 57

7. No ritmo das patas de um cavalo 63

8. Ovos, manteiga, queijo e... petróleo 69

9. Em festa de jacu, inhambu não pia (ditado popular) 76

10. Quatro personagens de um crash 81

11. Paixão, paixão, negócios à parte 88

12. Na bacia das almas 94

13. Making of de Rapina 99

14. Onde tudo começou para valer 105

15. Roman à clef (primeira parte) 111

16. Roman à clef (segunda parte) 119

17. Dos 10 aos 80 anos 128

18. Investindo na própria morte 135

19. A farra da Bolsa 141


20. Corner, o trade perfeito 147

21. Eu não jogo 152

22. Profissionalismo sem paixões 158

23. Sangue-frio 165

24. 2054 173

25. Susto paralisante 179

26. Meu amigo Zé Luiz 186

27. Este país está morrendo 192

28. Caça ao tesouro 198

29. Renda fixa não existe 205

30. A era da abundância 212


Ivan: 30 lições de mercado
Prefácio

Certos professores conquistam a gente pelo profundo domínio não

apenas das disciplinas que ensinam, mas também de temas diver-

sos que gravitam em torno de suas matérias, sabendo fazer as cone-

xões entre eles e com eventos atuais.

Outros nos ganham pelo didatismo com que transformam o

aprendizado de assuntos aparentemente incompreensíveis numa

espécie de receita de bolo. Eles pegam a nossa mão, explicam o pas-

so a passo de como chegar a uma solução, recomeçam a explicação

quantas vezes forem necessárias e, de repente, estamos lá resolven-

do sozinhos equações exponenciais em questão de segundos.

Como são apaixonados pelo assunto que ensinam, e tornam sim-

ples questões tidas como abstratas, eles nos estimulam a embarcar

em sua jornada de conhecimento. Sentimos que estamos diante de

algo que faz sentido para a nossa vida, percebemos a evolução e, por

fim, nos pegamos querendo descobrir mais e mais sobre assuntos

que, sob a tutoria de outros docentes, poderiam nos causar apenas

sonolência.

Do currículo profissional de Ivan Sant’Anna, não consta o exercí-

cio do magistério. Mas não por isso, ou justamente por isso, ele dei-

xou de desenvolver qualidades dos melhores mestres e uma forma

própria de transmitir conceitos de duas áreas distintas em que se

tornou referência: a aviação, sua grande paixão; e a indústria finan-


14
ceira, seu campo de trabalho desde 1958.

A bem-sucedida carreira de escritor, construída depois de quase

quatro décadas de operações em bolsas de valores, deu origem a um

professor que faz do storytelling o principal instrumento de sua sala

de aula.

O livro que você tem em mãos é um exemplar de um estilo de en-

sinar investimentos que o Ivan pratica em suas newsletters, publica-

das pela Inversa, o mesmo que o consagrou em obras como Rapina,

Os mercadores da noite e 1929.

Nas próximas páginas, lições sobre commodities, calls, puts, cor-

ner, open market, mercados futuros e IPOs vão se desenrolar em

meio a randevus, aldeias indígenas, cenários futurísticos e diálogos

do passado, e que saíram da imaginação do Ivan, entre personagens

como Charlie Chaplin e Irving Berlin.

Nos textos mais pessoais, o autor não esconde nem mesmo os

dramas mais íntimos de uma vida marcada por reinvenções: o rapaz

que sonhava em ser piloto e se tornou trader; o trader que virou es-

critor, que também virou roteirista; o escritor que se tornou mentor

de investidores não profissionais.

Porém, acima de tudo, é um livro para absorver a experiência e

desfrutar das memórias de uma testemunha das maiores transfor-

mações do mercado de capitais brasileiro.

Esta é uma obra que faz parte de um projeto cujo pontapé inicial

foi o lançamento de um documentário sobre a vida do Ivan – do qual


15
o autor deste prefácio teve a honra de participar da produção. Tam-

bém faz parte do escopo desse projeto um programa de formação de

investidores, o Masters of Money, no qual, com alguns momentos de

improviso, o Ivan narra as crônicas que você vai ler a seguir.

Entre relatos de bastidores do mercado, textos autobiográficos

e contos extraídos completamente da imaginação de seu autor, as

30 lições de mercado são independentes entre si - algumas histó-

rias da vida do Ivan, como você vai notar, repetem-se nas crônicas.

Dessa forma, apenas como um breve guia de leitura, não é preciso

ler necessariamente as lições em sequência para compreender seu

conteúdo.

Apenas sugiro, no entanto, que, caso você queira conhecer me-

lhor quem é o Ivan antes de mais nada, comece a leitura pelas duas

primeiras crônicas. Nelas, está resumida a parte essencial não só da

carreira, mas também da vida pessoal dele.

No momento em que a primeira edição deste livro é lançada, o

Brasil assiste a uma migração inédita de investidores à Bolsa de

Valores. A disposição a assumir os riscos da renda variável cresce

na proporção em que os investimentos seguros em títulos de renda

fixa oferecem retornos cada vez menores, próximos, em alguns casos

no momento em que este prefácio é escrito, de taxas negativas se

descontados impostos e inflação.

O mercado de capitais – um dia, uma roda de pôquer, como des-

creveu o Ivan – vai chegando à praça pública. Nunca antes especia-


16
listas experientes como Ivan foram tão importantes para que este

novo público da bolsa tenha lucidez financeira e represente, de fato,

o nascimento de uma nova cultura de investimento no país.

Eduardo Laguna

Editor das newsletters do Ivan publicadas pela Inversa e produtor do

documentário Ivan: A história proibida do mercado financeiro

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Introdução

Antes de mais nada, se o leitor acha pedante um autor usar o ter-

mo “lições” para algo que está escrevendo, me apresso em dizer que

me refiro a ensinamentos, as tais “lições”, que aprendi nos 60 anos

em que trabalhei ou escrevi sobre o mercado. Alguns, inclusive, me

saíram muito caro.

Meu objetivo é compartilhar as lições que o mercado me deu. E,

ao fazê-lo, estou ensinando. Não poderia ser de outra forma.

Algumas das 30 crônicas que se seguem narram fatos que acon-

teceram comigo, trades ou estratégias que me fizeram ganhar e per-

der muito dinheiro. Cada uma dessas situações encerra um apren-

dizado.

Não me limitarei a contar meus casos e causos, mas também a

narrar outros que testemunhei, além de fatos sobre os quais li ou

ouvi falar, acontecidos não apenas na época em que fui trader, como

muito antes disso, não raro retrocedendo a episódios ocorridos no

século XVII.

Irei além do que fiz, do que vi e do que li. Vou inventar algumas

histórias, partir para ficções que encerram lições. O importante é

que você, caro leitor ou leitora, ao terminar de ler este livro, entenda

melhor o mercado, ou seja, tenha aprendido as tais “lições”.

Quem sabe escape de pauladas como as muitas que levei ao longo

de minha vida de trader, algumas por pura ganância, outras por


18
medo e finalmente outras por não ter dado ouvido a quem tinha

mais experiência e bom senso do que eu. E, assim, você consiga dri-

blar as armadilhas que surgirão à sua frente quase todos os dias.

Não espere encontrar neste livro fórmulas, esquemas e gráficos,

embora talvez eu os mencione. Simplesmente não é o meu feitio de

ensinar, ops, de compartilhar minha vida com os que estão come-

çando agora.

Eu gosto mesmo é de contar histórias, histórias do mercado fi-

nanceiro, histórias daqueles que ganharam, histórias dos que per-

deram, histórias que simplesmente inventei porque julguei que de-

veriam ter acontecido, ou, quem sabe, até aconteceram sem que eu

tivesse tomado conhecimento.

De uma coisa, tenho certeza. Se você gosta do mercado, vai se

divertir muito com o texto que se segue. E, se não gosta, e está len-

do apenas porque o livro lhe foi recomendado, acho que vai começar

a gostar. Porque poucas coisas são tão fascinantes como o volátil e

esfuziante mundo do dinheiro.

19
Lição 1: Começos e recomeços

Eu já falei sobre meu início profissional em outros textos, mas gos-

taria de lembrar ao leitor que entrei no mercado financeiro por puro

acaso. Desde a minha infância, queria ser aviador. Sonhava um dia

pilotar um Constellation ou um DC-6, as joias da aviação comercial

no fim dos anos de 1950.

Estávamos em 1958. Eu acabara de fazer 18. Quis tirar o brevê

no aeroclube do Carlos Prates, em Belo Horizonte, mas meu pai não

concordou em pagar o curso.

“Se você quiser ser piloto, entre para a Força Aérea ou vá para

a escola da Varig, em Porto Alegre. Por minha conta, você não vai

voar nesses teco-tecos que vivem caindo.”

Minha mãe piorou a coisa. Desmoralizou a profissão. “Piloto é

chofer de avião. Chofer de avião”, repetiu.

Como eles não podiam me impedir de tirar o brevê, procurei um

emprego lá mesmo em BH. Justiça se faça: meu pai ajudou a encon-

trá-lo. Fui ser operador de câmbio na H. Picchioni, uma corretora de

valores da cidade. Salário: mínimo. Ia ser duro completar meu curso

no aeroclube.

Como que por encanto, duas coisas se sucederam simultanea-

mente. Me dei bem na nova profissão, a ponto de em menos de um

semestre estar ganhando, em comissões, mais do que o meu pai,

diretor da Usiminas, recebia de salário.


20
Gostei do trabalho. Ganhando aquela nota, pude comprar um

carro esporte (Berlineta Interlagos) e, mais tarde, maravilha das

maravilhas, um monomotor Cessna 180, o PP-ATD (Alfa, Tango,

Delta). A aviação, que deveria ter sido carreira, tornou-se hobby.

Assim foi até 1965, quando o câmbio passou a ser fixado pelo go-

verno, através da Sumoc – Superintendência da Moeda e do Crédito.

Operadores de câmbio tornaram-se meros carimbadores de papel

(CCC, sigla de Certificado de Cobertura Cambial), com salários pro-

porcionais ao trabalho, agora burocrático, tal qual um amanuense

de Eça de Queiroz.

Eu poderia voltar para o sonho antigo e partir para a pilotagem

profissional. Só que, nessa época, o governo dos Estados Unidos,

com medo de o Brasil se “cubanizar” (Fidel Castro assumira o poder

em Cuba seis anos antes), ofereceu, entre dezenas de outros progra-

mas, bolsas de estudo de mercado de capitais em Nova York para 20

brasileiros.

As provas classificatórias eram de inglês e economia. Como eu

fizera parte do primário em Londres, era filho de economista e tra-

balhava no mercado financeiro, passei fácil no teste. E fui com os

outros 18 aprovados para Nova York – não conseguiram preencher

as 20 vagas.

Foi talvez a época mais proveitosa, mas também uma das mais

estressantes de minha vida. Na New York University (NYU), tí-

nhamos provas todos os dias. Pela manhã, aulas em classe. Às tar-


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des, conferências com alguns dos maiores economistas dos Estados

Unidos, professores do porte de John Kenneth Galbraith e William

Edwards Deming, este último o responsável pela recuperação eco-

nômica do Japão no pós-guerra.

Nas férias do verão de 1966, estagiamos nas principais institui-

ções financeiras de Wall Street. De volta ao Brasil, fui trabalhar

como floor trader no pregão da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.

Cheguei bem na hora. Iniciava-se um bull market no mercado de

ações, bull market esse que durou até meados de 1971.

Enriquei, enriquei muito e, melhor que isso, percebi, bem no topo,

que a bolha chegara ao fim, embora o milagre econômico brasileiro

estivesse apenas começando. Com o conhecimento e a experiência

obtidos na NYU e nos estágios em Wall Street, fui um dos pioneiros

do open market no Brasil.

Nesses tempos, além de ter fundado a corretora Fator (mais tar-

de, banco Fator), me tornei diretor e sócio de um conglomerado que

compreendia um banco comercial (Delta), financeiras (Decred, Dix e

Cresa), um supermercado (Dado), uma indústria plástica (Kelson),

redes de lojas de roupas (Ducal), de eletrodomésticos (Bemoreira),

indústria têxtil (Seridó), no Rio Grande do Norte, fábrica de roupas

(Sparta) e de café solúvel (Dínamo), agência de publicidade (Deni-

son), fora outras empresas das quais já me esqueci.

Tudo isso terminou na quarta-feira de 11 de maio de 1977, quan-

do o Banco Central interveio nas empresas financeiras e o resto do


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grupo pediu concordata. Como decidi pagar do meu bolso o prejuízo

em CDBs e letras de câmbio dos meus clientes pessoais, perdi 90%

ou 95% do meu patrimônio.

Fiquei um ano em casa, levando e buscando os meninos no colé-

gio, assistindo televisão e fazendo um quebra-cabeça de 5 mil peças,

que existe até hoje e está na parede do apartamento de um dos

meus filhos, em Belo Horizonte.

Em abril de 1978, fui convidado para ser diretor financeiro e ad-

ministrativo da Flumitur, empresa de turismo do estado do Rio de

Janeiro. De Sant’Anna dos meus tempos de mercado, virei doutor

Sant’Anna. Fiquei lá onze meses. Durante esse tempo, não consegui

abrir uma porta. Alguém sempre chegava primeiro.

De lembrança daqueles meses de funcionário público, guardo al-

gumas sólidas amizades que perduram até hoje e um segundo casa-

mento, já com quatro décadas, que me deu um terceiro filho (uma

filha).

Quando mudou o governador do estado (saiu o brigadeiro Faria

Lima e entrou Chagas Freitas), fui exonerado, coisa que não me

trouxe nenhum prejuízo, já que o salário da Flumitur era uma mer-

reca. Aceitei um convite para ser operador de open da Tecnicorp.

Depois de 13 anos, voltei a trabalhar como empregado. Vesti ra-

pidamente a nova camisa. Reivindicava aumentos em nome dos fun-

cionários e discutia as gratificações semestrais (bichos). Nosso pre-

sidente era o Marcos Viana, que presidira a Cia. Vale do Rio Doce
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e o BNDE (atual BNDES), tinha a Legião de Honra da França, já

jantara com a rainha Elizabeth II, e era amigo pessoal do presiden-

te Jimmy Carter, dos Estados Unidos.

No primeiro dia, fiquei na maior dúvida se o chamava de Marcos

ou de doutor Marcos. Sabia que o “doutor Marcos” não teria volta. E

parti para a intimidade. “É um prazer conhecê-lo, Marcos.”

Deu certo. Nos tornamos grandes amigos, amizade essa que du-

rou até sua morte em 2012. Fiquei na Tecnicorp até o inverno de

1982.

Dei o maior azar. Nas duas ou três semanas nas quais ficaria sem

trabalhar (já conseguira um novo emprego no mercado), meu filho

do meio ficou doente, um tumor (benigno) no cérebro, justamente

quando eu estava sem plano de saúde.

Encurtando a narrativa, passei mais um ano sem trabalhar, ape-

nas estudando a anatomia do cérebro e gastando toda minha pou-

pança em cirurgias, médicos e hospitais. O final foi feliz e aconteceu

no The Hospital for Sick Children em Toronto, no Canadá. Após

uma cirurgia complexa, o garoto ficou bom para sempre. Tanto é

assim que tinha 12 anos ao ficar doente e agora está fazendo 50.

O recomeço seguinte foi o mais difícil. Além de não ter dinheiro,

perdera a qualificação profissional, após um ano fora do mercado,

que mudara muito nesse tempo.

Foi nessa ocasião que decidi operar exclusivamente nas bolsas

internacionais de commodities e futuros e ter como clientes apenas


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especuladores ricos. No início, foi difícil. Não ganhava salários, ape-

nas rebates. Até que, como diz o samba de breque de Moreira da

Silva, acertei no milhar. Ou melhor, acertei no mercado futuro de

soja em Chicago.

Comprei uma casa de praia em Angra, um carro novo, fiz a volta

ao mundo em um transatlântico de luxo? Não. Pirei.

Fui sozinho para Jericoacoara, Canoa Quebrada, Praia da Pipa,

Mangue Seco, Morro de São Paulo. Custei a voltar para o Rio e para

o trabalho. Precisei fazer terapia durante 18 meses, sete dias por

semana, além de frequentar um grupo de análise.

Foi quando resolvi ser escritor. Mais uma vez recomeçar. Daí nas-

ceu Julius Clarence e Os mercadores da noite. Como o livro foi re-

cusado por editores do Brasil e dos Estados Unidos, escrevi Rapina,

sucesso instantâneo, que conta, sem nenhum tipo de inventividade

ou exagero, episódios, não muito éticos, que assisti (e alguns dos

quais participei, confesso) nas mesas de operação do mercado finan-

ceiro carioca.

Desse momento em diante, Ivan Sant’Anna, que àquela altura

da vida deveria estar quentando sol no gramado de seu condomínio,

resolveu ser polivalente, começando por escrever sobre desastres de

avião: Caixa-preta, Plano de ataque, Perda Total e Voo cego.

De minha experiência depressiva no Nordeste, surgiu Que nem

sabão em pó. De uma viagem de carreta pelas estradas do Noroeste

do Brasil, Carga Perigosa. De Carga Perigosa, veio a série de TV


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Carga Pesada, da qual fui um dos roteiristas.

Nunca mais parei de trabalhar. Nunca mais parei de recomeçar.

Durmo pensando num tema, num argumento, numa história e acor-

do com ela prontinha no cérebro, como se ele não descansasse junto

com o resto do corpo.

Após ter escrito Relatório FNJ no final dos anos 1980 e início dos

1990, tornei-me cronista da BM&F, onde publiquei mensalmente

a coluna Bulls & Bears. Pouco antes do Carnaval de 2017, a Olivia

Alonso me convidou para escrever para a Inversa, onde estou no

momento em que este livro é publicado.

Além dos textos das newsletters Os mercadores da noite e Warm

Up, já fizemos diversas séries filmadas, aulas presenciais e sessões

de perguntas e respostas pela internet.

Precisamos inventar mais coisas. Meu DNA exige recomeços. Vi-

tórias, derrotas, alegrias, decepções. Enfim, desafios. Caso contrá-

rio, o coração bate mais fraco, os neurônios não se conectam.

Como sou ateu, não posso pedir nada a Deus. Mas posso recorrer

ao destino. Ou aos búzios. Ou à mãe Dinah. Sei lá. Quero morrer te-

clando uma ficção ao computador, quem sabe a bordo de um Boeing

787 na final longa do aeroporto de Islamabad.

Algo como: “Quando o mercado de feijão vermelho dezembro che-

gou a 112 ienes na Bolsa de Futuros de Tóquio eu decidi...”.

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Lição 2: Reminiscências

Eu me mudei do Rio para Belo Horizonte em 1958, logo após a Copa

do Mundo (a primeira que ganhamos). Tinha 18 anos de idade e fui

para lá contra minha vontade. Mas não havia outra alternativa.

Meu pai fora convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek para

ser diretor financeiro da Usiminas e a sede da empresa era em BH.

Fiquei em Minas de julho de 1958 a janeiro de 1966. Foi a melhor

época de minha vida. Mas suponho que isso não deva causar espan-

to a ninguém. Dos 18 aos 26, ou algo semelhante, deve ser a melhor

época da vida de quase todo mundo.

Fui estudar (primeiro ano do científico) no colégio Marconi, este,

sim, uma exceção. Duvido que as pessoas, ao contrário dos “mar-

conistas”, detestem férias e fins de semana. Pois nós do Marconi

detestávamos.

Tanto é assim que não raro pulávamos os muros do colégio num

sábado à noite para nos reunirmos com os colegas (e as colegas, é

claro) para uma serenata no escurinho da piscina. E para quem

pensa que a libidinagem corria solta, lamento informar que o má-

ximo que a gente (refiro-me aos rapazes) conseguia naquela época

era pegar na mão. Na mão, bem entendido. E não usar a mão para

outras coisas.

Com a testosterona no auge, nós, rapazes, nos virávamos nos

inúmeros randevus da cidade. Aos mais duros, só restava a zona, na


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rua Guaicurus. Os mais abonados iam até na Margarida, na Lagoi-

nha, local onde consegui a suprema das façanhas: uma das garotas

me dispensou do pagamento e até me convidou para jantar num

restaurante (o Rosário, que não fechava na alta madrugada) após o

expediente.

Não sei como as colegas do Marconi resolviam o mesmo tipo de

problema. Se perguntássemos, levaríamos um tapa na cara. Naque-

la época pré-pílula, a virgindade era um tabu.

Minha vida não se resumia ao colégio, no qual cursava o turno da

manhã. Tinha também minhas aulas de pilotagem no aeroclube do

Carlos Prates e meu trabalho em regime de meio expediente numa

corretora de valores, a H. Picchioni, na rua Espírito Santo, no cen-

tro da cidade. Havia também a boemia diária nos bares de BH.

Não sei como conciliava tantas atividades, mas o certo é que con-

seguia fazer tudo. Meu dia normal começava às 5 da manhã, após

ter ido dormir por volta de meia-noite ou uma da madrugada. Eu

tinha de chegar ao aeroclube, para onde ia em minha Lambreta, an-

tes que o primeiro ônibus do dia passasse por lá. Assim, meu nome

era sempre o primeiro da fila para voar, o que acontecia por volta

das seis e meia da manhã.

Entre a minha chegada no Carlos Prates e a decolagem, eu dor-

mia num velho e confortável monomotor Stinson, com banco de cou-

ro. Esse avião mais tarde ficaria famoso ao se perder na floresta

amazônica. O piloto não se feriu, mas morreu de fome, após 70 dias


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no meio da selva, chegando a beber a própria urina. Deixou um di-

ário, que propiciou à revista O Cruzeiro fazer uma série de reporta-

gens com o título de O diário de um piloto na floresta.

Após o voo, eu voava na Lambreta para o Marconi, perdendo sem-

pre a primeira aula e a metade da segunda. Encerradas as aulas,

partia para o centro da cidade, parando num boteco no meio do ca-

minho para engolir às pressas um CAOL, prato da cozinha popular

de BH que consistia em couve, arroz, ovo frito e linguiça, com algu-

mas variações (vale a pena pesquisar no Google).

Esqueci de dizer: desde minha saída de casa, de madrugada, eu

vestia a calça, a camisa e os sapatos do trabalho. Na corretora, bas-

tava pôr o paletó e a gravata.

Na H. Picchioni fiz de tudo um pouco. Comecei como operador de

câmbio, isso até a Sumoc – Superintendência da Moeda e do Crédi-

to –, antecessora do Banco Central, criar o sistema de câmbio fixo,

determinado pelo governo.

Nessa ocasião, antes de a Sumoc acabar com minha festança,

cheguei a ganhar, em comissões, uma grana preta, muito mais do

que o meu pai recebia de salário na Usiminas. Tanto é assim que

comprei um carro esportivo e, sonho dos sonhos, um monomotor

Cessna 180 com trem de pouso convencional, avião difícil de aterris-

sar com vento de través.

Como o operador de câmbio tornara-se um carimbador de papéis,

a H. Picchioni me transferiu para o mercado paralelo, que não tinha


29
nenhum estigma naquela época. Tanto é assim que nos mudamos

para uma loja no quarteirão mais valorizado e movimentado da ave-

nida Afonso Pena, a principal da cidade.

Na ocasião, havia muitas cédulas de 500 e de mil dólares que,

embora continuem valendo até hoje, o Fed recolheria à medida que

surgissem nos caixas dos bancos. Como elas concentravam um

grande valor numa única nota, era a preferida pelos compradores

de pedras preciosas, gente que viajava pelos garimpos do interior de

Minas e Goiás.

Descobri que tinha um dom especial de verificar a autenticidade

das notas, bastando para isso passar os dedos sobre suas superfí-

cies além de examiná-las contra a luz. Se hoje você chegar a uma

sucursal do Fed com um maço de cédulas de 500 ou de mil dólares,

eles serão obrigados a aceitá-las. Mas não duvido que antes as sub-

metam a um sofisticado exame de imagens, tal como o dos hospitais.

Do dólar paralelo passei para títulos de renda fixa e variável,

trabalhando pela manhã (mudei para o turno da noite no Marconi)

como floor trader na Bolsa de Valores de Belo Horizonte, instalada

numa das sobrelojas do Edifício Acaiaca.

À tarde, eu operava no mercado de renda fixa, que se iniciava no Bra-

sil. Os títulos principais eram notas promissórias emitidas pela Compa-

nhia Siderúrgica Mannesmann e apólices do Estado de Minas Gerais.

Os primeiros eram vendidos com deságio. Já as apólices eram cautelas

com cupons picotados, cupons esses que representavam os juros.


30
Com o passar do tempo, foram surgindo as primeiras companhias

de crédito, financiamento e investimento, as chamadas financeiras.

Com elas, as letras de câmbio, também vendidas com deságio.

Nessa ocasião, eu agia mais como broker. A H. Picchioni era uma

empresa séria – tanto que existe até hoje, passadas quase seis déca-

das – e garantia, a qualquer momento, não só a liquidez dos papéis

que vendia aos clientes, como também o reembolso em caso de fa-

lência da financeira.

No início de 1966, logo após meu primeiro casamento, me mudei

para os Estados Unidos, onde cursei Portfolio Management na New

York University (NYU). O curioso é que estudávamos tudo: conta-

bilidade, informática, análise de balanços, bolsa, futuros, commodi-

ties, opções. Mas não havia uma aula sequer sobre ética.

Não é à toa que, anos mais tarde, um time do FBI entrou numa

das bolsas de Chicago e levou uns 20 ou 30 floor traders em cana,

algemados na frente de todo mundo. Seus crimes? Manipulação do

mercado, bonecos (negociar por um preço e passar para o cliente por

outro), etc., etc..

A não ser que seja um scalper ou um home trader que negocia só

para si, um profissional do mercado financeiro tem de ser ético. Nos-

sa mercadoria é o dinheiro. Dinheiro dos outros. Dinheiro é saúde,

é educação, é sobrevivência, é garantia de uma velhice tranquila.

Dinheiro não aguenta desaforo e tem de ser tratado com o maior

respeito.
31
Após o final do bull market brasileiro de ações ocorrido entre o

fim dos anos 1960 e início da década de 1970, o mercado de renda

variável no Brasil passou a depender dos fundos de pensões das

estatais, que, na época, a gente chamava de fundações. A maioria

existe até hoje.

Estou me referindo a fundos como Petros, da Petrobras, Previ, do

Banco do Brasil, Funcef, da Caixa Econômica Federal, Prevhab, do

BNH, Eletros, da Eletrobras, e Postalis, dos Correios.

Em todos (eu escrevi “todos”, não “alguns”) havia gestores de-

sonestos, que cobravam propina para operar com as corretoras e

adquirir produtos de IPOs. Era comum no mercado um corretor per-

guntar ao outro: “Com qual fundação você opera?”.

Pois bem, já escrevi isso em algum lugar, mas vou repetir. Cer-

ta ocasião, fui procurado por um diretor de uma dessas fundações,

oferecendo-se para comprar de mim, com sobrepreço, ações da Usi-

minas, que eram negociadas no mercado de balcão. A gente dividia

o lucro, o que daria US$ 50 mil para ele.

Eu cheguei a comprar os dólares numa casa de câmbio da ave-

nida Rio Branco, no centro do Rio. Pus as notas em uma sacola por

trás da cortina de meu escritório. O cara veio, conversamos, e nada

de eu falar nos dólares. Ele também teve “semancol” e não mencio-

nou o assunto. Voltou para seu escritório, os dólares voltaram para

o doleiro e o negócio com a fundação evidentemente não saiu.

Se aquele episódio tivesse se concretizado, toda vez que visse no


32
jornal que determinado fundo de pensão não estava pagando a tota-

lidade (ou, até mesmo nada) da pensão dos velhinhos, sentiria uma

ponta de remorso. Entre outras coisas, ética faz bem ao espírito.

33
Lição 3: O voo da águia

Desde o final dos anos 1960, sempre que termino de ler um livro

escrevo logo na primeira página a época e o lugar onde estava por

ocasião da leitura.

A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa, por exemplo,

foi lido em maio de 1982, um mês antes de minha filha caçula nas-

cer. Nessa ocasião, eu morava no condomínio Casa das Pedras, no

Alto da Boa Vista, aqui no Rio.

Já O poderoso chefão, de Mario Puzo, eu li três vezes: a primeira

em Guadalajara e na Cidade do México, durante a Copa do Mundo

de 1970; a segunda, também no Casa das Pedras, em 1976, só que

em outra casa, pois ainda estava em meu primeiro casamento; a

terceira e última vez, no condomínio Novo Leblon, na Barra.

Antes de me tornar escritor, eu lia muitos best-sellers, tipo Ar-

thur Hailey e Frederick Forsyth. Gostava também de livros históri-

cos, principalmente sobre a Segunda Guerra Mundial, e biografias.

Senti então que precisava ler os clássicos, que até então ignorara.

Comprei 80 de uma tacada só, em duas coleções, uma patrocina-

da pela Suzano e produzida pela Nova Cultural, a outra da Biblio-

teca O Globo.

Levei três anos para terminar tudo. Foi nessa época que li Crime

e Castigo, de Dostoiévski, em abril de 2004, já aqui onde moro desde

1991, o condomínio Riviera dei Fiori, por sinal o lugar onde foram
34
concebidos todos os meus 17 livros.

Há cerca de três anos ganhei de presente de minha mulher um

carimbo no qual está escrito, em formato circular, From the library

of Ivan Sant’Anna. Decidi então marcar todos os livros de minha

biblioteca, espalhados em estantes e prateleiras nas salas de estar

e de jantar. Nelas, eles estão em ordem alfabética de título, descon-

siderando, quando é o caso, o artigo inicial. A montanha mágica, de

Thomas Mann, se encontra na letra “M”, entre Moll Flanders, de

Daniel Defoe, e A morte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes.

Tenho mais de mil exemplares e resolvi carimbar um por dia.

Após três anos de trabalho, estou chegando ao final. Ontem, ao pôr

minha marca em O voo da águia, de Ken Follet, por conseguinte já

na letra “V”, verifiquei que li o livro entre abril e novembro de 1988.

Caramba! Demorei oito meses para ler as 429 páginas do texto de

Follet, quando o normal é fazer isso em, no máximo, uma semana.

O mais curioso é que, durante a leitura (está tudo anotado nos

exemplares), estive em Londres, Chicago, Nova York, incluindo, é

claro, os voos entre essas cidades, além de diversas praias do Nor-

deste brasileiro, que percorri numa longa e solitária viagem de car-

ro, além de meu apartamento no condomínio Aldeia do Mar, na orla

da Barra, onde eu morava em 1988.

Achei estranho ter levado tanto tempo. Casa de bonecas, de Ibsen,

uma das obras das quais mais gostei na vida, foi devorado em duas

horas no sofá da sala no dia 15 de julho de 2006. É verdade que se


35
trata de uma peça teatral e o número de palavras em cada página

é bem menor.

Por outro lado, li as 597 páginas de Carmen, de Ruy Castro, uma

biografia de Carmen Miranda, em dois aviões da TAP, voando de

Londres para o Rio com conexão em Lisboa na terça-feira de 30 de

maio de 2006.

Por que será que levei tanto tempo para ler O voo da águia? A

resposta é simples. Eu atravessava um período de profunda depres-

são, período esse que durou de 1988 a 1990. Nessa época, eu fazia

análise com dois terapeutas, sete dias por semana. Isso mesmo, até

nos sábados e domingos, fora uma sessão de grupo nas noites de se-

gunda-feira, que acabava com todo mundo bêbado no People Down,

o subsolo de uma boate do Leblon.

Simplesmente não conseguia me concentrar no livro, embora

mantivesse um ritmo alucinante de trabalho, o que explica Londres

(um seminário sobre o mercado futuro de açúcar), Chicago (um en-

contro de traders de soja) e Nova York (conversando com analistas

da Shearson Lehman, brokerage house através da qual eu operava).

Sobre as praias do Nordeste, falarei logo adiante.

“Tudo bem”, deve estar se impacientando o leitor, “mas por que

você entrou numa depressão tão grande? Perdeu uma fortuna nos

mercados?”.

Não, na verdade eu ganhei. Acabara de dar uma das maiores

tacadas de minha vida de broker, transformando, para três clientes,


36
90 mil dólares (cada um) em um milhão de dólares (também para

cada um) em menos de três meses.

A impaciência do leitor deve estar se transformando em perplexi-

dade. Posso vê-lo me interrogando?

“Quer dizer que dá uma tacada e entra em depressão, Ainda bem

que você não é o Warren Buffett. Teria se suicidado no primeiro

bilhão.”

Esse é o problema, caro leitor. Em grande parte da minha vida,

convivi bem com o insucesso e mal com o sucesso. Vá Freud explicar

isso.

No fracasso, eu cerro os punhos e digo para mim mesmo: “Vou

sair dessa, vou à forra”. Na vitória, eu penso: “Tanto esforço, tanta

luta, tantas noites passadas em claro para isso: ganhar dinheiro...”.

Não foi só no mercado que esse meu paradoxo se manifestou. Em

1970, eu era uma espécie de diretor de futebol informal do Flumi-

nense. Informal porque não tinha nenhum cargo na diretoria do clu-

be. Mas acompanhava o time em todos os jogos, fossem onde fossem,

não raro como chefe da delegação. Fazia preleções no vestiário. Mas,

como disse, não tinha nenhum cargo oficial.

Naquele ano, o tricolor carioca foi campeão brasileiro, tendo em-

patado em 1 a 1 com o Atlético Mineiro na final no Maracanã, empa-

te esse que nos valeu o título.

Fui para as Laranjeiras comemorar com a torcida? Não. Saí com

o time para jantar? Não. Os jogadores foram para uma casa noturna
37
no Leblon e fiquei em casa, deprimido. Tinha gasto uma nota preta

em passagens aéreas, deixara de conviver com os filhos no fim de se-

mana. Para quê? Para ser campeão? Eu, que nunca consegui bater

direito um escanteio ou um tiro de meta.

Por outro lado, sete anos mais tarde, em maio de 1977, quando

fiquei sem um centavo porque paguei, do meu bolso, aos clientes que

haviam investido comigo em CDBs do Banco Independência Decred,

que sofrera intervenção do Banco Central, tirei de letra.

Sobrou um dinheirinho que me permitiu um período sabático,

após o qual voltei para o mercado, só que agora como empregado,

operando open market numa distribuidora de valores chamada Tec-

nicorp.

Deu certo. Entre salários e gratificações (que chamávamos de bi-

cho), voltei a ter um padrão de vida alto, assim como juntar dinhei-

ro. Pude até fazer um cruzeiro de navio com minha segunda mulher

e com os dois filhos do primeiro casamento (eu me separara em abril

de 1979).

Só que o destino me deu uma rasteira em 1982. Surgiu uma do-

ença séria na família e gastei tudo com médicos, cirurgias e diárias

hospitalares, no Brasil e no exterior. Fiquei um ano sem trabalhar,

apenas cuidando disso. Quando a doença foi curada, eu estava sem

um centavo, sem emprego e, pior, sem qualificação profissional.

Depressão? Nenhuma. Isso, como expliquei acima, só acontecia

no sucesso. Simplesmente fui à luta buscar o meu de volta. Deixei


38
de lado o mercado brasileiro e comecei a trabalhar, como broker e

trader, no mercado internacional, na Shearson Lehman.

Em agosto de 1987, numa newsletter que escrevia mensalmente,

previ um crash de grandes proporções na Bolsa de Valores de Nova

York. Comprei puts out of the money do S&P 500 com exercício em

setembro.

O colapso da bolsa, em 19 de outubro daquele ano, ocorreu quan-

do minhas puts já tinham expirado e eu ainda não rolara as opções

para dezembro. Verdade! O crash aconteceu sem que eu nem meus

clientes ganhassem um centavo de dólar.

Veio então o grande bull market da soja, no qual meus clientes

ganharam uma fortuna e recebi deles uma gratificação de 150 mil

dólares, dinheiro que não via havia muito tempo.

Ganhei também uma perua Caravan zerinho, na qual viajei so-

zinho para o Nordeste. E foi lá, numa vila de pescadores chamada

Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, que a (minha) grande de-

pressão se agravou. Fiz um diário de todo o período, que guardo até

hoje, passados 30 anos. Eis como narro o episódio:

“Quarta-feira, 17 de agosto (de 1988). Dia muito chato. Saí de

Natal às 11 horas e fui até a praia da Pipa. O local é maravilhoso,

mas muito deserto. Fui então para Baía Formosa, também bonita,

mas também semideserta, apenas os pescadores locais e alguns sur-

fistas. Fiquei o dia inteiro sem fazer nada, tentando ler ‘O voo da

águia’, mas sem conseguir avançar no livro. Sou o único hóspede da


39
pousada. Almocei peixe e jantei ovo frito num restaurante da cidade.

Tomei uma garrafa inteira de vodca e quatro soníferos para dormir.”

Como relatei no início, só fui sair da depressão em 1990. Quem

me tirou dela: o terapeuta?; a terapeuta?; o grupo de análise? Tal-

vez. Talvez eles tenham ajudado um pouco.

Mas quem tirou Ivan Sant’Anna da depressão, da toca onde ele

se enfiara, foi Julius Clarence, personagem principal de Os merca-

dores da noite, parido numa tarde de domingo na varanda do meu

apartamento.

Eu decidira ser escritor.

Muitos leitores dizem que Julius Clarence é meu alter ego. Quem

sabe. Acho mais provável que Julius seja quem eu gostaria de ter

sido.

Sou ateu convicto. Não acredito em vida após a morte. Mas Cla-

rence vai viver. Não digo para sempre. Mas vai viver centenas de

anos. Nem que seja para uma jovenzinha que irá ler suas aventuras

em, digamos, 8 de abril de 2439, que irá cair numa sexta-feira.

Julius estará no auge de sua vida, cavalgando com Jessica, sua

terceira mulher, nos bosques ingleses de Lakeswater.

Após Os mercadores da noite, escrevi muitos livros. Alguns foram

best-sellers. Outros, nem tanto. Houve também fracassos de venda

e de crítica.

Eu não me entusiasmo mais com os sucessos, nem me deprimo

nos fiascos. Clarence me ensinou a ser assim. E é isso que indico


40
para os jovenzinhos e as jovenzinhas que estão começando no mer-

cado, e que estão lendo este texto agora.

Houve uma época em que eu cobrava demais de mim. Tinha de

dar uma porrada todos os dias. Não sabia ficar sem uma posição.

Liquidava um trade, pensava imediatamente no próximo.

Minha vida era tão tensa que, quando a vitória chegava, eu en-

trava em depressão. Era a combustão interna que se acumulara,

só aguardando o momento de poder explodir sem causar um dano

irreparável.

Não deixe que isso aconteça com você. Como está escrito em três

pequenos trechos salteados de uma inscrição na igreja de St. Paul,

em Baltimore, nos Estados Unidos, de autor desconhecido, e cujo

título é Desiderata:

O mundo está cheio de truques. / The world is full of trickery.

Seja gentil consigo mesmo. / Be gentle with yourself.

Seja cuidadoso. Esforce-se para ser feliz. / Be careful. Strive to

be happy.

41
Lição 4: Onde fica essa arapuca?

O feriado de Finados de 1976 caiu numa terça-feira. Nessa ocasião,

fui com um grupo de amigos, quase todos operadores de mercado,

passar uns dias em Lake Tahoe, na divisa dos estados da Califórnia

e de Nevada. No lado de cá, Nevada, havia cassinos. Esse era o prin-

cipal motivo de nossa viagem. Jogar.

Nessa época, eu era diretor estatutário e um dos sócios majoritá-

rios da corretora Fator, por sua vez ligada a um enorme conglome-

rado comercial, industrial e financeiro, do qual fazia parte o Banco

Independência Decred.

Durante a viagem, um banqueiro que viajava conosco, amicíssi-

mo meu até hoje, me confidenciou que era questão de tempo uma

intervenção do Banco Central no Independência. Entre os grupos

privados do Brasil, era o que tinha a maior dívida, que cada vez

ficava mais difícil de rolar.

Eu não me restringia aos negócios da Fator. Prestava assessoria

financeira a todo o conglomerado. Só não fazia parte da diretoria

porque a lei não permitia que diretores de corretoras o fossem tam-

bém de companhias de capital aberto, o que era o caso da maioria

das nossas: Bemoreira, Ducal, Sparta, Dínamo, Kelson, etc..

Com a informação de meu amigo, eu deveria ter vendido minhas

ações, pedido demissão da Fator e caído fora do grupo. Só do UEB

Center, atual shopping Rio Sul, em Botafogo, na boca do Túnel Novo,


42
eu tinha 10%. Da Fator, quase 50%.

Só que existe uma coisa que se chama lealdade, mesmo que le-

aldade burra. Eu trabalhava na organização desde que voltei dos

Estados Unidos, em 1966, e admirava profundamente seu presiden-

te, um empresário idealista chamado José Luiz Moreira de Souza.

Resolvi continuar trabalhando na Fator, e manter a corretora vin-

culada ao Independência (tanto que naquela época se chamava In-

dependência Fator Corretora de Títulos e Câmbio S. A.). Mas fui

“desalavancando” a empresa.

Os meses foram se passando: 1976 se transformou em 1977. Na

terça-feira de 10 de maio fui almoçar no bar Luiz, um restaurante

de comida alemã na rua da Carioca, no Centro do Rio. Comigo es-

tavam o banqueiro que em Lake Tahoe me alertara sobre a inter-

venção e outro grande amigo cujo rosto é conhecido por pelo menos

metade dos brasileiros, até mesmo adolescentes de 15 ou 16 anos.

Sem meias palavras, os dois me disseram que o Banco Central in-

terviria no Independência às 17 horas do dia seguinte, quarta-feira,

11 de maio. A decisão já fora tomada pelo presidente da República,

Ernesto Geisel, e o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen.

Do próprio restaurante, disparei dois telefonemas: um para o di-

retor de Mercado de Capitais do Banco Central, Sérgio Ribeiro, em

Brasília, solicitando uma entrevista no final da tarde; e outro para

a Líder Táxi Aéreo, fretando um Lear Jet para me levar até lá e me

trazer de volta.
43
Antes de ir para o aeroporto, dei um pulo na Fator para pegar

o último balancete e outros documentos da empresa. Eu precisava

mostrar para o Ribeiro que meu passivo era menor do que o meu

caixa e que uma intervenção na corretora seria descabida.

Já ia saindo para o Santos Dumont quando recebi um telefonema

do deputado federal José Aparecido de Oliveira, político de prestí-

gio em Minas Gerais, ex-secretário particular do presidente Jânio

Quadros e meu cliente desde os tempos de BH. O assunto dele era

pessoal. Queria fazer uma aplicação em papéis do Independência.

Só me faltava essa, vender para um deputado CDBs de um banco

que iria fechar no dia seguinte. Como não podia lhe revelar isso,

ofereci uma taxa baixíssima. Mesmo assim, ele quis fazer o inves-

timento. Não tive outra alternativa senão a de confidenciar que o

risco era muito grande. Ele continuou insistindo. Disse então que

estávamos sem papéis em carteira e desliguei o telefone sem me

despedir direito.

Já em Brasília, no início da noite, após um longo chá de cadeira,

fui recebido pelo Sérgio Ribeiro e pude lhe explicar a situação da Fa-

tor. Disse-lhe que poderia pagar de meu próprio bolso as aplicações

de clientes. Ele afirmou que eu não precisava fazer isso pois, ao in-

vestir seu dinheiro em papéis do Independência, os clientes tinham

ido atrás de juros altos, assumindo os riscos.

No dia seguinte, quarta-feira, exatamente às 17 horas, as tropas

de choque de auditores do Banco Central tomaram de assalto as


44
instituições financeiras do grupo Independência. Embora a Fator

tivesse sido poupada dos lacres nos cofres e gavetas, as salas eram

misturadas às do banco e não havia como não me sentir invadido

também.

Fui para casa aquela noite, num condomínio do Alto da Boa Vista,

e discuti a situação com minha primeira mulher. Disse a ela que se

eu pagasse o prejuízo dos clientes específicos da Fator, perderíamos

95% do nosso patrimônio, com exceção da casa onde morávamos.

Ela concordou que era melhor pagar. Do contrário, eu teria de

passar o resto de minha vida mudando de calçada toda vez que um

dos meus clientes prejudicados viesse em direção a mim.

Para ser totalmente honesto nesta narrativa, confesso que se

os compradores dos meus papéis fossem o Bradesco, o Unibanco, o

Banco do Brasil, os fundos de pensões, etc., eu não teria pago nin-

guém. Mas eram conhecidos meus, boa parte deles técnicos, prepa-

radores físicos e jogadores de futebol que haviam aplicado em CDBs

Ivan Sant’Anna, não CDBs Independência.

Havia também o Sadi Cabral, ator da TV Globo, que interpretava

Seu Menelau (o Grego) em Duas Vidas, novela de Janete Clair que

era o grande sucesso de audiência daquele ano.

Encontrei Seu Menelau no elevador do edifício do banco na ma-

nhã de 12 de maio, dia seguinte ao da intervenção. Lá mesmo, no

próprio elevador, ele me mostrou alguns CDBs e perguntou: “Você

sabe onde fica essa arapuca?”.


45
“Claro que sei, Seu Menelau (eu me esquecera o nome do ator

mas o do personagem todo o Brasil conhecia). Sou um dos diretores

da arapuca. Lá em cima a gente conversa em minha sala.”

Para não alongar a história, paguei todo mundo: Seu Menelau, os

jogadores e técnicos de futebol (alguns moravam no Oriente Médio,

treinando times e seleções de lá). Mas fiz todos sofrerem. Só paguei

no dia do vencimento dos títulos.

Houve alguns clientes que me ofereceram receber com deságio,

desde que eu os pagasse ali na hora. Eu tinha o dinheiro, aplicado

em dólares, mas recusei a oferta. “Só no vencimento.” Paguei um

por um.

Que lição esta minha história traz para os brokers que estão co-

meçando? Recorro à política que norteia a atuação da SEC – Secu-

rities and Exchange Commission, a agência americana equivalente

à nossa CVM – Comissão de Valores Mobiliários. O princípio da

SEC é Full and Fair Disclosure que, numa tradução livre, significa

Transparência Total e Justa.

Você, amigo leitor, se é broker, ou pretende ser, não venda gato

por lebre. Conheça bem os papéis que está vendendo e explique to-

dos os riscos ao cliente. Se ele quiser assim mesmo, venda. Assim

jamais terá de fazer o que eu fiz: pagar prejuízos do próprio bolso.

Após vender minha parte da Fator, ainda tentei ser broker em

outra instituição. Foi então que descobri que nenhum daqueles

clientes reembolsados por mim quiseram voltar a comprar meus pa-


46
péis. Na verdade, depois que receberam seu dinheiro, deixaram de

atender minhas chamadas.

Na época, fiquei revoltado. Me senti altamente injustiçado. Com

o passar dos tempos, passei a lhes dar razão. Se fora preciso pagá-

-los com meus recursos pessoais, não valia a pena confiar em mim

novamente. O caso poderia se repetir e, na segunda vez, quem sabe

eu não teria dinheiro, ou disposição, para reembolsá-los.

Aliás, eles é que mudavam de calçada quando me viam. A novela

Duas vidas acabou e nunca mais vi Seu Menelau, nem na tela com

esse nome, nem na rua como Sadi Cabral. Se a gente se encontrou

numa calçada qualquer, ele provavelmente caiu fora antes que nos

esbarrássemos.

Foi nessa ocasião que morreu Ivan Sant’Anna, o trader e broker

conservador, e nasceu o Sant’Anna que só gostava de riscos e de

clientes do mesmo perfil. Por sinal, uma turma muito mais interes-

sante, que preferia operar no mercado internacional, para onde eu

me mudara de armas e bagagens. Os diálogos eram mais ou menos

assim (com exceção do meu, os nomes estão trocados).

“E aí, Paulão, tá a fim de perder uma grana hoje?”, eu pergunta-

va descontraído. “Coisa de uns 200 mil dólares.”

“Pra ganhar quanto?”, o Paulão não se interessava por merreca.

“No mínimo, 2 milhões. Tô de olho em uma deep out of the money

de lumber.”

“Taubas?”, ele brincava. “Tô nessa. Onde se negocia isso?”


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“Em Chicago. Tem uma lei florestal que será votada na Câmara

dos Representantes. Será difícil de passar. Mas, se isso acontecer,

as “taubas”, como você diz, vão bater limites e mais limites de alta.

A call poderá dar exercício.”

Tal como a maioria do mercado esperava, a lei não passou, o cara

perdeu duzentos quilos de verdinhas e não reclamou. Mas gozou:

“Taubas! Só você mesmo.”, ele me disse alguns meses depois,

numa mesa de bacará de um cassino de Paradise Island, em Nas-

sau, nas Bahamas, onde o Paulão acabara de perder 80 mil dólares

em uma única parada.

“Isso não vai ficar assim”, ele disse, em português mesmo, para o

crupiê. “Hoje eu quebro tua banca.”

Apesar de não ter entendido a frase, o negão percebeu o sentido.

Abriu um belo sorriso de marfim.

“Be welcome, sir. You can play how much as you wish.” (Seja bem-

vindo, senhor. Pode apostar o quanto quiser).

Havia outro cliente para quem jogo era jogo. E tinha de ser joga-

do. Além disso, gostava de se divertir. De sentir emoções. Digamos

que tivesse comprado café futuro para dezembro em Nova York a

US$ 1,9812. Uma hora após a compra, ele ligava. Eu já ia dizer a

cotação, quando ele me interrompia: “O primeiro algarismo é par ou

impar?”.

É evidente que se fosse par ele estaria ganhando pois o preço do

café com vencimento em dezembro teria ultrapassado dois dólares.


48
Como cada centésimo de dólar equivalia no mercado futuro a US$

3,75, nesse caso o lucro do especulador já seria, na pior das hipóte-

ses, de 705 dólares por contrato, correspondente a 37.500 libras-pe-

so de café arábica. Eu já não me recordo do lote que ele comprara,

mas era grande. “É impar”, eu respondia, meio sem graça.

Nesse caso, ele poderia estar ganhando um pouco se a cotação

estivesse entre US$ 1,9812 (o preço de compra) e US$ 1,9999. Por

outro lado, se estivesse abaixo de US$ 1,9812 ele estaria perdendo.

Então, vinha a segunda pergunta:

“A soma do segundo com o terceiro algarismo é maior ou menor

do que 17?”

“Maior”, eu respondia. Ou seja, para quem sabe fazer contas, o

mercado estava acima de US$ 1,9900 e abaixo de US$ 2,0000.

“Zera esta merda”, ele concluía, sem querer saber o preço na tela.

“Não estou aqui para ganhar um Fusca. Quero um Lamborghini ou

nada”. Assim era o pessoal para quem eu operei até 1995, ano em

que troquei os números pelas letras.

Voltando a você, caro leitor, se é ou pretende ser broker, dance

conforme a música. Seja um prolongamento de seu cliente. Não vá

indicar um trade arriscado para alguém que precisa de um pecúlio

para aposentadoria. Muito menos fique trocando bolinhas no meio-

campo para quem quer ir para o tudo ou nada, ou para quem tem

um jatinho Gulfstream G650 de mais de 60 milhões de dólares, que

usa para ver seus cavalos correrem no Dubai.


49
Lição 5: Nas barrancas do Araguaia

Entre meados dos anos 1960 e a primeira década do século 21, eu

ia praticamente todos os anos ao rio Araguaia, mais precisamente

à ilha do Bananal, que é a segunda maior ilha fluvial do mundo,

com 270 quilômetros de comprimento em seu eixo maior: norte-sul/

sul-norte.

Certa ocasião, viajei sozinho de carro os 1.720 quilômetros que

separam o Rio de Janeiro e o porto de Luiz Alves, no Araguaia. De

lá, eu seguiria para a ilha rio abaixo. Meu tio avô, Ubaldino, e o filho

dele, Marcius, que é médico e pouco mais velho do que eu, tinham

uma fazenda, chamada São Pedro, nas proximidades de uma aldeia

dos índios carajás, chefiada pelo cacique Cachoeira que, além de ser

o velho mais velho da tribo, era também o mais sábio. Tio Ubaldino

e meu primo Marcius já me aguardavam na fazenda.

Nesse tempo, eu operava no mercado internacional de commo-

dities, futuros, opções e derivativos, os mais diversos. Então, esco-

lhia uma semana com um feriado americano no meio para fazer a

viagem. Zerava minhas posições e punha meus clientes em contato

direto com meu broker, Alvaro Ancede, em Chicago.

Pois bem. Estava eu lá em Luiz Alves. Contratei um barqueiro

para me levar em sua voadeira (canoa de alumínio com motor de

popa) na jornada de cinco horas rio abaixo – a volta, rio acima, leva-

va o dobro do tempo.
50
Tudo acertado, deixei meu carro num rancho de bambu e folhas

de bananeiras da casa do barqueiro. Já estava passando as mochilas

para a canoa quando vi, a uns 50 metros de distância, um orelhão.

Dei 20 passos em direção ao telefone, outros 10 de volta para a

canoa, mais 20 para o orelhão, e nesse ritmo vai e vem (com mais

“vai” do que “vem”) acabei chegando. Liguei a cobrar para a Shearson

Lehman em Chicago, torcendo para que aquele aparelho no fim do

mundo não fizesse aquele tipo de ligação. Mas fez.

Atendeu a voz da secretária Diane, que me passou para o Alvaro.

“Já voltou?”, ele perguntou, surpreso.

“Não, ainda não fui... quero dizer... já fiz a parte do carro, mas

agora vou descer o rio de barco e desaparecer da civilização. Como

estão as posições dos clientes?”

“Foi bom você ligar. Tá todo mundo ganhando uma grana preta

em paládio. O governo da Califórnia passou uma legislação exigindo

que, a partir do próximo ano, todos os carros novos que saírem das

fábricas sejam equipados com um novo tipo de catalisador de polui-

ção, que é basicamente feito de paládio. Estamos num bull market”,

ele emitiu uma risadinha satisfeita.

“E você comprou para mim também, é claro”, meu misto de per-

gunta e afirmação era totalmente desprovido de esperança. Eu dis-

sera ao Alvaro para não fazer nada em minha conta.

“Claro que não. Você me proibiu categoricamente.”

“Mas, poxa, esse caso é diferente. Compra 20 contratos. Quero ga-


51
nhar dinheiro enquanto estiver pescando meus tucunarés. Auira!”

“O quê?”

“Nada, Alvaro. Auira é uma palavra da língua carajá que tem vá-

rios significados: bom, saboroso, mulher jovem e bonita, cachaça e,

por que não, paládio... E auira uaititira significa muito bom, muito

saboroso, mulher jovem muito bonita, cachaça da boa, muitos con-

tratos de paládio.”

O broker não teve como dar uma gargalhada.

“Acontece, Ivan, que depois que os clientes compraram, a cotação

do paládio já subiu 30 dólares, de 110 para 140 a onça.”

“E vai a quanto?”

“Ivan, se eu soubesse essas coisas não estaria aqui. Teria uma

mansão na beira da praia em Saint Barthélemy, no Caribe, e só

operaria para mim. E pra você também, é claro” – broker é broker

e nunca deixa de fazer um agrado especial. Mas acho que o paládio

pode chegar a 200.”

“Compra 40... 40, não, 50 contratos, pra ser um número redondo.

Compra a mercado. Vou desligar o telefone porque o cara já acionou

o motor do barco. Temos de chegar na fazenda antes do anoitecer.”

“E o stop, Ivan?”

“Pra que stop se vai a 200? Vende tudo a 190. Na volta você me

passa os fills (confirmação de ordens executadas) de compra e ven-

da.” Desliguei o telefone e corri para a embarcação.

Se “auira” significa bom, “binare”, também em carajá, quer di-


52
zer ruim, mulher feia, velho, amargo, estragado, falta de cachaça

e, numa contribuição espontânea que faço agora à filologia daquela

língua indígena, paládio em baixa.

Quando, cinco dias mais tarde, voltei ao orelhão de Luiz Alves

e liguei para a Shearson Lehman, fiquei sabendo que comprara 50

contratos de paládio a um preço médio de 143 dólares e o mercado

caíra para 120. Mandei zerar tudo e tive um prejuízo de US$ 155

mil.

“E os clientes, se ferraram também?”, eu perguntei, ansioso. Afi-

nal de contas, eles eram o meu maior patrimônio.

“Não, Ivan. Foi tudo auira pra eles. Venderam seus lotes no dia

em que você comprou.”

Não vou repetir nestas linhas as palavras que disse para o Alva-

ro, mas posso garantir que elas não estão contempladas na língua

carajá nem na boca de pessoas de fino trato.

Eu era assim, viciado no mercado. Se ficava zerado, tinha síndro-

me de abstinência. Operava demais. Ainda bem que era estudioso

e no geral acabava saindo no lucro, que poderia ser muito maior se

tivesse a sabedoria de esperar as boas oportunidades e, principal-

mente, de não correr atrás dos preços, como fiz naquele dia fatídico

em Luiz Alves. Um dos momentos mais binares de minha vida de

trader.

Mas não era só eu. Havia muitos especuladores que só conse-

guiam respirar quando estavam posicionados. Tinham de ter algu-


53
ma coisa para torcer. Me lembro agora de alguns. Os nomes são

falsos.

Alberto Silésio vendeu sua parte em um banco e recebeu seis

milhões de dólares. Isso em 1978, que equivalem hoje a R$ 24,4

milhões. Foi ser sócio e diretor de uma distribuidora de valores, por

sinal muito lucrativa.

O problema de Silésio é que ele não resistia a nenhum apelo es-

peculativo. Para piorar as coisas, era um consumista nato. Cons-

truiu uma mansão na Zona Sul do Rio, onde organizava festas que

varavam a madrugada. Comprou uma casa em Angra dos Reis e

outra em Teresópolis. Nesta última, os empregados tinham ordem

de estar sempre preparados para a chegada do patrão e de sua mu-

lher, com tudo limpo e varrido e despensa cheia. Acontece que ele só

apareceu lá por duas ou três vezes.

Aficionado por tênis, assistia a torneios do Grand Slam. Em Ro-

land Garros, Wimbledon e no US Open, era presença constante.

Como recebera os tais seis milhões, e como em sua distribuidora,

na qual era diretor administrativo, ganhava um belo salário e pol-

pudas gratificações, Alberto Silésio teria conseguido tocar sua vida

mesmo na gastança não fossem suas especulações.

“Qual é a barbada na bolsa hoje?”, ele perguntava tão logo punha

os pés no escritório.

“Tão falando em.... deixa pra lá...”, respondia um dos operadores

de ações.
54
“Tão falando em quê?”, Silésio fechava a carranca. “Você está me

escondendo o jogo.”

“Não, nada de mais...”, como era empregado da empresa, a últi-

ma coisa que o trader queria era que um dos seus patrões perdesse

dinheiro. Mas já que ele insistia:

“Tão falando em Paranapanema. Parece que descobriram uma

nova jazida de estanho em Alta Floresta, no Mato Grosso.”

“Quanto eu tenho no open?”, O Silésio parecia eu no porto de Luiz

Alves, só que elevado ao cubo.

“Calma, Silésio. O mercado já subiu muito. Vamos esperar uma

correção. Além disso, e se essa jazida for cascata? Ações de minera-

dora são muito especulativas.”

“Quanto eu tenho no open? Zera tudo e compra Paranapanema.”

Foi assim que Alberto Silésio perdeu sua participação na distri-

buidora, sua mansão na Zona Sul, suas casas em Angra e Teresó-

polis.

José Salustiano era sócio-controlador de uma das maiores cor-

retoras de São Paulo. Associou-se com banqueiros internacionais e

sua empresa transformou-se em banco de investimento.

Especulação, especulação desenfreada, especulação baseada em

boatos, em diz que diz o levaram a bancarrota. Pior, antes de que-

brar, deu um desfalque em seu próprio banco, ou seja, roubou de

seus sócios estrangeiros.

Salustiano só não foi preso porque no Brasil daquela época rico


55
nunca ia. Mas mora hoje com a mulher, ambos com mais de 80 anos,

num conjugado do Centro antigo de São Paulo, cujo aluguel e con-

domínio são pagos por um dos seus filhos. A renda do casal vem

apenas de aposentadorias do INSS, que por sinal estão convergindo

para o salário mínimo.

Como o Silésio e o Salustiano, foram tantos que já perdi a conta.

De vez em quando vejo um desses meus antigos camaradas na rua.

Ou no Maracanã, no metrô, no BRT, lugares onde idosos não pagam.

Só pelos trajes, por uma prótese de má qualidade bamboleando na

boca, pelo olhar triste de cachorro de mendigo, sei que a vida não foi

boa para ele. Com a deterioração das aposentadorias, o mercado de

capitais é a única maneira de uma pessoa se garantir para o futuro.

Mas tem de ter paciência. Saber ficar de fora. Não raro por meses a

fio. Eu, por exemplo, aprendi. Sou capaz de ficar anos sem fazer uma

operação de risco. Foram as açoitadas no lombo que me ensinaram

a ser assim antes que a vaca fosse para o brejo.

É preciso lembrar que o mercado não acaba nunca. Se você não

respeitá-lo, quem acaba é você, meu amigo leitor. Deixe passar a

oportunidade auira e espere a auira uaititira, que acontece no mí-

nimo duas ou três vezes por ano. Pelo menos é o que ensinaria o

cacique Cachoeira. Isso se ele entendesse de mercado como enten-

dia de pescaria com arco e flecha e se não estivesse enterrado nas

barrancas do Araguaia, na barra do rio Caracol.

56
Lição 6: Galo Cego

Em 1996, o jornal O Estado de S. Paulo tomara partido nas eleições

para prefeito da capital, que aconteceriam em outubro daquele ano.

Embora não pudesse declará-lo abertamente, o candidato preferido

do Estadão era José Serra, do PSDB.

O problema é que as pesquisas apontavam para uma vitória, já

no primeiro turno, de Celso Pitta, do PPB, apoiado pelo prefeito

em exercício, ninguém menos do que Paulo Maluf. Serra não estava

nem em segundo lugar nas sondagens de intenção de voto, posto

esse ocupado por Luiza Erundina, do PT.

Por ordem da alta cúpula do jornal, um dos repórteres investi-

gava negócios supostamente escusos feitos por Pitta em sua gestão

como secretário de finanças de Maluf. Quem sabe nas vésperas do

primeiro turno um escândalo dos bem graúdos pudesse sensibilizar

os eleitores e alterar o panorama.

Em abril daquele ano, eu lançara meu primeiro livro, Rapina,

uma ficção, muito pouco ficcional, confesso, que tratava, usando o

pretexto do sequestro de um banqueiro, de falcatruas no mercado

financeiro.

Deve ter sido por isso que o jornalista do Estadão ligou para mim.

E logo disse ao que veio. Me passou o nome de diversas distribuido-

ras de valores de São Paulo e do Rio de Janeiro que ele suspeitava

que haviam negociado, de modo prejudicial aos cofres públicos, pre-


57
catórios da prefeitura da capital.

Aqui cabe um parêntese. Um ano antes, o presidente da Repú-

blica, Fernando Henrique Cardoso, lançara o Proer, programa que

saneou o sistema bancário brasileiro, afetando principalmente os

bancos estaduais, quase todos privatizados.

Em contrapartida, os estados e municípios foram proibidos de

emitir títulos de suas dívidas públicas. Havia uma exceção. Quando

uma prefeitura ou um governo estadual tinha uma dívida calcada

numa decisão judicial, eles podiam emitir títulos no valor dessa dí-

vida, títulos esses negociáveis no mercado.

Era aí que a esbórnia corria solta. Inventavam precatórios, ou

inflavam seus valores, lastreavam neles os papéis e os vendiam aos

bancos, corretoras e distribuidoras. Essas instituições, por sua vez,

usavam os papéis como lastro de negócios no open market.

Voltando à minha conversa telefônica com o repórter, eu, que lar-

gara a profissão de trader havia um ano e cinco meses, justamente

para me tornar escritor, não conhecia nenhuma das distribuidoras

mencionadas por ele. Mas conhecia quem conhecia.

Pedi ao jornalista para ligar duas horas mais tarde. Imediata-

mente telefonei para A. C. T., amicíssimo meu e dono de uma distri-

buidora de valores. Ele sabia todos os segredos do mercado.

Inventando um pretexto qualquer, passei o nome das instituições

citadas pelo jornalista. “Xi, Ivan, esses caras são da pesada”, A. C.

T. foi logo entregando. “Estão metidos numa série de trampas com


58
títulos da prefeitura de São Paulo, de outras capitais e de alguns

estados. Negociam precatórios e corre muito dinheiro por fora.”

Quando o repórter voltou a ligar, eu, sem citar minha fonte, é

claro, confirmei a bandalheira. No dia seguinte, o Estadão fez um

escândalo que ocupou quase toda a primeira página do jornal. Foi

suficiente para que Pitta não se elegesse no primeiro turno, mas não

para que Serra entrasse no páreo. Permaneceu mesmo em terceiro.

Veio a segunda rodada e Pitta deu um chocolate em Erundina:

62,28% a 37,72%. Dois meses e poucos dias após a posse do novo pre-

feito, recebi um telefonema do jornalista Mario Sergio Conti, então

diretor de redação da revista Veja.

“Esse negócio de precatórios é muito complicado”, ele disse, “para

o leitor entender. Você toparia escrever uma ficção, um conto, no

qual ficasse explicado, em linguagem simples, do que se trata?”

“Conto?”, eu estranhei. “Confesso que não sabia que a Veja publi-

cava contos.”

“Nunca publicamos”, ele explicou, “mas para tudo sempre há

uma primeira vez.”

Escrevi então Ciranda da Alegria, ficção na qual inventei um

estado, Alto Madeira, sua capital, Duas Pontes, um governador,

Teresiano Flores, um banco, o Banco Esquema, e seu dono, Celso

Damasceno.

Nessas locações, e com esses personagens, Ciranda da Alegria foi

publicado no nº 1.488 da revista, de 26 de março de 1997, do qual a


59
capa foi justamente o prefeito Celso Pitta.

No texto, em tom de galhofa, ficou explicado direitinho como fun-

cionavam as transas com precatórios. Foi um sucesso e alavancou

minha carreira literária − eu me preparava para lançar meu segun-

do livro, Os Mercadores da Noite.

Nessa ocasião, o Senado Federal instituíra a CPI dos Títulos Pú-

blicos, que imediatamente passou a ser conhecida pela imprensa e

pelo grande público como CPI dos Precatórios. Tinha como presi-

dente o senador Bernardo Cabral, relator da Constituinte de 1988,

e como relator Roberto Requião, do PMDB do Paraná.

As sessões eram transmitidas na íntegra pela TV Senado e da-

vam o maior Ibope. A audiência, não raro, ultrapassando um milhão

de telespectadores. Eu as assistia sempre, algumas vezes entrando

pela madrugada. Como se tornara minha praia, dava entrevistas

sobre elas, inclusive uma para o programa Bom Dia Brasil, da Rede

Globo, e duas para a Globo News.

Nessa época, em determinada tarde, o telefone soou em meu

cantinho de trabalho. “É Ivan Sant’Anna quem fala? Aqui é o Galo

Cego.”

Para quem não sabe, Galo Cego é um dos personagens principais

de Rapina, chefe do tráfico do morro do Borel, na Zona Norte do Rio

de Janeiro, que, no livro, sequestra e chantageia o banqueiro Erios-

valdo Matos.

Passada a surpresa inicial, reconheci a voz inconfundível do se-


60
nador Requião.

Ele me convocou para prestar depoimento, na condição de teste-

munha, no plenário da CPI. Queria que eu explicasse aos senadores

toda a negociata dos precatórios e estendesse um pouco o assunto

mostrando como os bancos espoliavam seus clientes.

Como falar no Senado é coisa séria, diferente do que palestrar

num convescote literário, ou dar uma entrevista à TV, precisei reci-

clar meus conhecimentos sobre o sistema bancário brasileiro para

não dizer asneiras. E recorri a quem? A um banqueiro de São Paulo,

muito amigo meu. Para minha sorte, ele estava no Rio.

Era véspera de minha ida a Brasília e saímos para jantar no

Florentino, um restaurante do Leblon. Fui extremamente franco e

esclareci do que se tratava. Foi mais do que útil. Recebi, totalmente

em off, e em base única de camaradagem, as informações das quais

precisava. Anotei tudo em um bloquinho de anotações.

“Se um banco está precisando aumentar o faturamento”, entre

outras coisas, ele me explicou, “cobra uma taxa de cadastro de cinco

reais de cada correntista. Dois em cem se dão ao trabalho de recla-

mar. Eles estornam a cobrança abusiva desses poucos apenas”.

Seguiram-se diversos exemplos de como os bancos faturavam,

inclusive com a compra e repasse de títulos de precatórios, renden-

do para os investidores taxas muito inferiores às propiciadas pelos

emitentes (estados e prefeituras).

Saí de lá totalmente atualizado sobre as, digamos, práticas em


61
voga na ocasião. No dia seguinte, durante o voo do Rio de Janeiro

para Brasília, escrevi algumas palavras-chave, copiadas do bloqui-

nho, na palma de minha mão esquerda, só para não perder o se-

quenciamento durante minha exposição a Suas Excelências.

Foi uma boa ideia, pois falei durante duas horas, seguidas de

mais duas de perguntas dos senadores. Tudo transmitido ao vivo

para todo o país pela TV Senado.

Roberto Requião, Bernardo Cabral, Romeu Tuma, Esperidião

Amin, José Serra, Eduardo Suplicy, Emília Fernandes, etc... esta-

vam todos lá. Respondi a cada um deles. Se os senadores e telespec-

tadores tiraram proveito de minhas explicações, não sei. Só sei que

aprendi muito naquele período do escândalo dos precatórios.

Gostaria que você, caro amigo leitor, tivesse sempre consciência

de que os bancos não têm como meta defender o seu suado dinheiri-

nho de poupador, mas sim levar adiante seus projetos, que eles cos-

tumam chamar de produtos, mais lucrativos. Mais lucrativos para

eles, bem entendido.

Quando for se encontrar com seu gerente bancário, anote na pal-

ma de sua mão: “Galo Cego”. Só para se lembrar desta crônica e ter

consciência de que você, e só você, é dono do destino de seu dinheiro.

62
Lição 7: No ritmo das patas de um cavalo

A municipalidade de Waterloo é um povoado campestre ao sul de

Bruxelas. Tem aproximadamente 30 mil habitantes. Fica a pouco

menos de 20 quilômetros da capital da Bélgica. O acesso se dá pela

estrada N5. Eu conheci o lugar em 1953, quando tinha 13 anos e

morava na Europa com meus pais e meus irmãos.

Não era bem assim no verão de 1815, mais precisamente no do-

mingo de 18 de julho. Para começar, não existia a Bélgica. Waterloo,

assim como Bruxelas, fazia parte do território do Reino Unido das

Terras Baixas (Holanda).

Aquele sítio entrou para a história universal porque ali, naquela

data, se travou a celebrada batalha de Waterloo. Esta pôs fim ao im-

pério do conquistador francês Napoleão Bonaparte, que chegara a

dominar grande parte do continente, seus domínios indo de Lisboa

até os arredores de Moscou.

Quem hoje quiser ter uma ideia bem precisa de como os comba-

tes foram travados naquele dia, pode visitar o interior de um prédio

circular construído no local especialmente para ilustrar a batalha.

Do meio do círculo, onde fica a plateia, dá para ver uma instalação

engenhosa de pinturas e figuras moldadas, ao modo de um presépio,

abrangendo 360º de visão.

Com explicações em várias línguas, os guias turísticos mostram,

na montagem que rodeia o público visitante, o posicionamento das


63
tropas de cavalaria, artilharia e infantaria do exército de Bonaparte,

assim como de seus inimigos, os britânicos comandados pelo duque

de Wellington e os prussianos liderados pelo príncipe de Wahlstatt,

Gebhard Leberecht von Blücher.

O que os guias não contam, talvez porque não saibam, ou quem

sabe porque não consideram o fato relevante, é que ali, naquele dia

e local, teve origem uma das especulações mais importantes do mer-

cado financeiro em todos os tempos. Estou falando de um negócio de

fazer George Soros se sentir um scalper principiante.

***

David Ricardo nasceu em Londres em 18 de abril de 1772, terceiro

dos 17 filhos de uma família de judeus sefarditas de origem portu-

guesa que acabara de imigrar da Holanda. David começou a traba-

lhar com o pai, o corretor de ações na City, Abraham Ricardo, aos 14

anos. Mas foi deserdado pela família quando, aos 21, se converteu

ao protestantismo por conta de seu casamento com Priscilla Anne

Wilkinson, que professava a fé quaker.

O jovem se afastou da família, mas não da profissão, entrando

para o quadro de funcionários de uma brokerage house, a Lubbocks

and Forster. Mais tarde, passou a trabalhar por conta própria. Ti-

nha 43 anos de idade e quase 30 de mercado à época da batalha de

Waterloo, evento que escolheu para dar sua grande tacada.


64
O objetivo de David Ricardo era saber, antes de qualquer outro

broker, trader, especulador, investidor ou banqueiro, quem ganha-

ria o embate. Em caso de vitória de Napoleão, os títulos públicos e

privados ingleses despencariam. O oposto aconteceria na hipótese

de uma vitória de Wellington.

Dois observadores de Ricardo, ambos exímios cavaleiros e pro-

fundos conhecedores das artes da guerra, se deslocaram furtiva-

mente na escuridão da noite de sábado para domingo para um ponto

elevado nas proximidades de Waterloo. De lá, com um pouco de aju-

da da sorte, poderiam antecipar o desfecho da batalha.

Quando os combates começaram a pender fortemente para a

coalizão britânico-prussiana, um dos olheiros do corretor londrino

partiu a todo galope para o porto de Ostend, na boca de entrada

norte do canal da Mancha (English Channel para os ingleses), 108

quilômetros distante do teatro da guerra.

Mudas com cavalos ligeiros e descansados aguardavam o agente

de David Ricardo ao longo do percurso, de modo que ele pôde fazer o

trajeto em pouco mais do que três horas.

Em Ostend, um veleiro rápido aguardava o espião. A travessia

marítima, com todas as velas da embarcação enfunadas, entre o

porto holandês e Ramsgate, no extremo leste do litoral da Ingla-

terra, durou pouco menos de 10 horas. Outras três foram gastas,

durante a clara madrugada de verão inglês, para que o enviado pu-

desse chegar a Londres e dar a notícia a Ricardo.


65
“A batalha ainda não acabou totalmente, mas os franceses já es-

tavam começando a debandar quando eu saí. Nossos exércitos cer-

cavam o inimigo em movimento de pinça”, ele revelou esbaforido.

Assim que o pregão da bolsa de Londres abriu na manhã de se-

gunda-feira, dia 19 de junho, os operadores de David Ricardo com-

praram grandes lotes de títulos públicos e privados britânicos. Cer-

to? Errado!

Os floor traders de Ricardo entraram vendendo esses papéis.

Quando os demais corretores perceberam isso, o pânico se instalou

na City e o mercado despencou.

Sem perda de tempo, David Ricardo se ofereceu para emprestar

dinheiro ao Banco da Inglaterra. Com os títulos tão desvalorizados,

ele exigiu uma taxa de juros altíssima.

Enquanto isso, o outro emissário de David partia de Waterloo

para Londres, já com a certeza da fragorosa derrota de Napoleão

Bonaparte. Tão logo ele chegou à City, confirmando a informação

do primeiro enviado, Ricardo recomprou seus papéis na bacia das

almas e se alavancou ao máximo em títulos ingleses.

Passaram-se mais 24 horas até que a notícia oficial da vitória da

coalizão britânico-prussiana surgisse em Londres. Wellington es-

magara Napoleão. Um clima de euforia nunca visto antes tomou

conta do mercado. Investidores e especuladores se acotovelavam no

pregão da bolsa para repor suas carteiras.

“Compro!”, “compro!”, “compro mais!”, “compro tudo!”, era só o


66
que se ouvia.

Em seus trades daqueles dias, David Ricardo ganhou nada mais

nada menos do que um milhão de libras esterlinas, quantia inima-

ginável na época. Imediatamente largou o mercado e se retirou para

uma propriedade que adquiriu em Gloucestershire. Ao mesmo tem-

po comprou, por quatro mil libras, um assento na Câmara dos Lor-

des, onde teve uma atuação proeminente até sua morte em 11 de

setembro de 1823, com a idade de 53 anos.

Na profusão de artigos, ensaios e livros que escreveu durante

seus últimos anos de vida, Lorde Ricardo deixou um legado de con-

ceitos sobre commodities em geral e sobre o ouro em particular.

Só não deixou nenhum texto sobre o mais importante dos ativos

do mercado financeiro. Refiro-me a informação, informação rápida,

informação em primeiro lugar, interpretação correta das informa-

ções recebidas.

***

Hoje em dia, a diferença de tempo entre a informação de um e outro

trader pode ser medida em segundos. Um contraste impressionante

com o que acontecia no início do século 19, época da grande tacada

de David Ricardo.

Recapitulando, a notícia mais rápida de uma batalha distante

não mais do que 330 quilômetros – que foi justamente a que ele re-
67
cebeu de seus emissários − levou 16 horas para chegar e propiciou

ao notável especulador um lucro extraordinário. Insider trading,

manipulação, esses conceitos não existiam naquela época.

Ricardo não foi o pioneiro das informações relevantes para o mer-

cado. Muitos anos antes dele, no século 14, antes mesmo das gran-

des descobertas, quando mercadores de Veneza, Florença e Gênova

criaram os primeiros negócios futuros de commodities e de moedas,

os mais bem informados eram os vencedores.

Logo, chegará o dia em que o limite será um piscar de olhos,

ao invés do ritmo das patas de um cavalo galopando pelos prados

da Holanda e da Inglaterra e de um veleiro singrando as águas do

Atlântico Norte.

68
Lição 8: Ovos, manteiga, queijo e... petróleo

Estranhamente, a commodity petróleo só começou a ser negociada

nos mercados futuros da Nymex (New York Mercantile Exchange)

no início da década de 1980 – portanto após as guerras de Suez, dos

Seis Dias e do Yom Kippur. Porém, se esses negócios já existissem

desde meados do século 19, teriam tido, em certas ocasiões, uma

volatilidade fantástica. Seriam “o mercado”.

Muito antes do petróleo, as bolsas de futuros gostavam de traba-

lhar com commodities prosaicas e pouco emocionantes como ovos,

manteiga e queijo. Poderiam até ter unido tudo numa cesta só, de-

nominando-a de breakfast contract.

Mas vamos começar pelo princípio. Na tarde de sábado de 27 de

agosto de 1859, o coronel Edwin L. Drake, na verdade um antigo

maquinista de estrada de ferro que se intitulara com a patente de

oficial superior para impressionar as pessoas que tentava recrutar

para sócio, encontrou petróleo num regato não por acaso chamado

Oil Creek, junto ao vilarejo de lenhadores de Titusville, no noroeste

da Pensilvânia.

Foi uma euforia enorme do “coronel” e do grupo que trabalhava

com ele ver que o óleo que haviam encontrado no córrego não só era

combustível como também tinha a viscosidade necessária para ser-

vir como lubrificante.

Naquela época usava-se para essas funções (queima e lubrifica-


69
ção) o pouco eficiente óleo de carvão e o ótimo, mas caríssimo, óleo

de baleia. Logo se descobriu que a região de Oil Creek suava petró-

leo por todos os poros. Como não podia deixar de ser, tal como acon-

tecia quando se encontrava um veio de ouro em algum lugar, houve

uma corrida de aventureiros em busca da nova riqueza.

Nesse momento, se em Nova York ou Londres houvesse um ho-

mem de visão premonitória, poderia ter sido criado o mercado futu-

ro de petróleo. Que começaria com um bear market, pois descobriu-

se óleo demais.

Já o mercado futuro de barris de uísque, também se existisse, ex-

perimentaria um tremendo bull market¸ pois era o único recipiente

usado para acondicionar, transportar e estocar o novo produto.

Com o refino do óleo cru extraía-se o querosene, que caiu no gosto

das donas de casa americanas. Mas, tal como acontece no início das

negociações da maioria das commodities, a oferta e a demanda de

petróleo volta e meia se dessincronizavam.

Em janeiro de 1861, por exemplo, o preço do barril era cotado a

dez dólares. Cinco meses depois, em junho, valia meio dólar e ao fi-

nal de dezembro, não mais do que dez centavos. Um ano mais tarde,

os preços haviam se recuperado para quatro dólares. Em setembro

de 1863, US$ 7,25.

Imagine, caro leitor, os mercados futuro e de opções de um ativo

como esse. Seria a festa dos especuladores. Mas os traders de Wall

Street e Chicago preferiam negociar os estáveis ovos, manteiga e


70
queijo, o prosaico café da manhã dos americanos.

No processo de refino do petróleo, um rejeito acabava sobrando.

Seu nome: gasolina. Inadequada, fedorenta e perigosa para ser usa-

da como iluminação, os produtores de óleo aproveitavam a escuri-

dão da noite para lançá-la nos rios.

Graças à grande aceitação do querosene, jazidas de petróleo fo-

ram prospectadas e encontradas em outras partes do mundo. Entre

elas, Baku, no litoral do mar Cáspio, à época no Império Russo e

agora no Azerbaijão; ilha de Sumatra, nas Índias Orientais Holan-

desas (atual Indonésia).

O aumento da produção de querosene, propiciado pelas novas

descobertas, foi acompanhado por igual crescimento no consumo.

Só que uma enorme ameaça iria surgir para aniquilar o mercado de

óleo de iluminação, assim como as bolsas de futuro e de opções do

produto, caso elas existissem.

Thomas Alva Edison, de Milan, Ohio, um gênio mecânico de 32

anos de idade, após diversos inventos importantes, entre eles o mi-

meógrafo, o teletipo, o fonógrafo, as baterias armazenáveis e o cine-

matógrafo, descobriu como produzir a luz elétrica em 1878. Edison

criou a lâmpada.

É evidente que até que o novo produto chegasse às residências

dos Estados Unidos e de outros países demandaria tempo. Mas a

morte lenta do querosene acabara de ser decretada.

Obviamente, os preços dos mercados futuros antecipam os fatos


71
inevitáveis, tal como aconteceria com a disseminação das lâmpadas

elétricas. Só que, em 1878, não havia mercado futuro de petróleo

nem de seu subproduto querosene.

Quando tudo indicava que a história do petróleo, um hidrocarbo-

neto pegajoso e fétido, se limitaria a pouco mais do que meio século,

eis que surgiu o motor a explosão, movido justamente a gasolina,

aquele derivado do petróleo que era descartado nos rios.

Substituição: saiu o querosene e entrou a gasolina. Nos Estados

Unidos, um empresário audaz e engenhoso, de nome Henry Ford,

que tinha 36 anos de idade na passagem do século 19 para o século

20, logo começaria a produzir automóveis em série nas linhas de

montagem de sua fábrica em Dearborn, um subúrbio de Detroit,

Michigan.

Embora o querosene continuasse existindo, tal como acontece até

hoje, a gasolina tornou-se o principal produto da indústria petrolífe-

ra. As frotas de automóveis jamais pararam de crescer, assim como

não parou de crescer a produção de óleo cru em diversos lugares do

mundo.

No domingo de 28 de junho de 1914, na cidade de Sarajevo, então

pertencente ao Império Austro-húngaro, o arquiduque Franz Fer-

dinando e sua mulher, Sofia, foram assassinados por um fanático

separatista bósnio chamado Gavrilo Princip, dando origem à Gran-

de Guerra, que mais tarde ficaria conhecida como Primeira Guerra

Mundial.
72
Durante o conflito, que durou até 1918, o petróleo exerceu um pa-

pel importantíssimo nos carros de combate, nas forças navais e na

aviação. Consolidou-se como a mais importante das commodities,

papel que desempenha até hoje.

Ao longo dos quatro anos de guerra, o preço do barril de petróleo

só não subiu muito porque houve racionamento de consumo. Os di-

versos governos balancearam a oferta e a procura.

Nos Esfuziantes Anos Vinte (The Roaring Twenties), enquanto

o consumo de derivados de petróleo aumentava em proporções ge-

ométricas, o mesmo acontecia com a descoberta de novas jazidas,

equilibrando a relação oferta/demanda.

Veio então a Grande Depressão. Naqueles tristes anos, o barril

de petróleo chegou a ser negociado a 13 centavos. E continuou bai-

xo, não raro abaixo do custo de produção, até o advento da Segunda

Guerra Mundial.

Durante a maior tragédia da História, que durou de 1939 a 1945,

mais de 50 milhões de pessoas, entre combatentes e vítimas civis,

perderam suas vidas. Nessa ocasião, embora os campos, as refina-

rias e os depósitos de combustível tenham sido um dos alvos prin-

cipais das forças aéreas de todas as partes envolvidas, o preço ficou

estagnado porque o racionamento de combustível prevaleceu em

quase todo o mundo.

Petróleo, só para o esforço de guerra. Era a regra vigente. Se já

houvesse um mercado futuro da mercadoria, o pregão provavelmen-


73
te teria sido suspenso por todos aqueles anos.

Terminada a Segunda Guerra, o consumo aumentou em propor-

ções colossais. Mas foi compensado pela descoberta de enormes re-

servas no Oriente Médio. Além disso, o preço passou a ser contro-

lado por companhias petrolíferas. Talvez por isso ninguém tenha

pensado em, finalmente, instituir o mercado futuro de petróleo.

Um dos acontecimentos que mais influenciariam os preços do

petróleo foi a criação, em 1948, do Estado de Israel, para abrigar

judeus de todo o mundo, principalmente os sobreviventes do Holo-

causto.

A volatilidade na cotação dos combustíveis ainda teria de esperar

um quarto de século. Tanto é assim que, na crise de Suez (outubro

de 1956) e na Guerra dos Seis Dias (junho de 1967), os preços per-

maneceram estáveis, impostos pelas Sete Irmãs, nome que se dava

às companhias ocidentais que controlavam a extração, o refino e a

comercialização de petróleo e seus subprodutos em todo o mundo.

Talvez por isso, pelo fato de os preços dos hidrocarbonetos serem

administrados, ninguém pensou em criar um mercado futuro de pe-

tróleo na ocasião. Afinal de contas, seus preços eram mais estáveis

do que os dos ovos, leite, etc..

Essa estabilidade durou até 6 de outubro de 1973, quando estou-

rou a Guerra do Yom Kippur, entre o Egito e a Síria, de um lado, e

Israel, do outro. Se em 1973 o petróleo fosse negociado em merca-

dos futuros, teríamos tido um dos maiores e mais fulminantes bull


74
markets da história, mesmo se considerarmos todas as commodities.

Em apenas três meses, entre o início da guerra e a virada do ano,

o preço do barril subiu de três para 22 dólares, que foi quanto uma

trading japonesa pagou por uma remessa nigeriana.

Foi preciso haver um segundo choque do petróleo, por ocasião da

Revolução Iraniana que depôs o xá Reza Pahlavi, com os preços do

barril subindo até 35 dólares, para que finalmente se criasse o mer-

cado futuro na Nymex.

Do primeiro dia de negociações até meados de 2018, a cotação os-

cilou entre oito e 147 dólares, o que faz do petróleo um dos produtos

mais atraentes para negociação futura e para o mercado de opções.

Quando o preço do barril de petróleo começa a oscilar treslouca-

damente, todos os demais mercados param e olham para ele. Por

isso sugiro a você, caro leitor, que nunca deixe de observar as cota-

ções da Nymex. Elas poderão afetar seus outros trades, sejam eles

quais forem.

Quanto aos ovos, a manteiga e o queijo, se é que ainda existe

mercado futuro para esses produtos, quem é que quer saber dele?

75
Lição 9: Em festa de jacu, inhambu não pia (ditado

popular)

Muito antes do advento da internet, dos e-mails e do WhatsApp,

na época em que os títulos públicos eram comprados e vendidos ao

telefone, entre os diversos players do mercado havia alguns traders

tão bons de negociação que certos operadores de instituições concor-

rentes simplesmente se recusavam a falar com eles.

Dois desses espadas antológicos, ambos dealers do Banco Cen-

tral, eram o Antônio José de Almeida Carneiro (que todo mundo

conhecia como “Bode”), sócio e presidente da corretora Multiplic, e

Jorge Paulo Lemann, da Garantia (que viria a se tornar o homem

mais rico do Brasil e empresário de projeção internacional).

Quando alguém de uma trading desk (seja de corretora, distri-

buidora de valores ou banco) ligava para outra instituição, tanto

podia ser atendido pelo dono da empresa como por um operador

iniciante contratado na véspera.

Vamos agora simular uma operação, sob forma de escaleta do

roteiro de um filme ou de uma série televisiva, para que o preza-

do leitor possa entender melhor como a coisa funcionava naqueles

tempos. Comecemos pelo mercado de dinheiro, que ia das nove da

manhã ao meio-dia e que era o mais simples.

Cena 1 – Split na tela. Duas trading desks – Interior – Dia

À esquerda, Barbosa, operador do banco Chumbinho, aperta um


76
dos botões do painel à sua frente. À direita, uma luzinha, na qual

está escrito Chumbinho, se acende no painel de Maciel, um dos tra-

ders da corretora Audaz.

MACIEL (apertando o botão e atendendo o telefone): − Maciel

BARBOSA – Dinheiro?

MACIEL – Tomo a 21, dou a 23.

(Explicação fora do roteiro: Eram aqueles tempos de inflação des-

controlada. Maciel tomava dinheiro em cruzeiros novos a 18,21%

ao mês e dava a 18,23%. O prefixo, 18, não era mencionado porque

todos os envolvidos sabiam que o mercado operava nesse nível na-

quele exato momento).

BARBOSA – No meio?

MACIEL – Levo.

BARBOSA – Lote?

MACIEL – Dois tri.

(Explicação nº 2: por simples mania de grandeza, os operadores

de open market chamavam um bilhão de um trilhão, como se o cru-

zeiro, cujo símbolo era Cr$, ainda não tivesse sido substituído pelo

cruzeiro novo, NCr$)

BARBOSA – São seus.

MACIEL – Braço (abraço).

Esse tipo de negociação levava menos de 10 segundos.

Em suas respectivas instituições, Barbosa e Maciel passavam um

papelucho (boleto) cada um aos seus caixas, que geralmente ficavam


77
posicionados na ponta da mesa. Mais tarde, auxiliares bateriam o

tipo. Isso quer dizer que confirmavam o trade e que a instituição

tomadora dos dois “tris”, a Audaz, passava para o banco Chumbinho

os números das ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacio-

nal) ou das LTNs (Letras do Tesouro Nacional) que correspondiam,

ao preço de mercado do dia, aos dois bilhões, ops, trilhões.

Esses títulos públicos eram o lastro que garantiam a segurança

da operação.

À tarde, geralmente entre 16 e 17 horas, às vezes esticando um

pouco mais, é que a coisa se tornava sofisticada. Nesse horário, os

diversos players negociavam títulos e não aquela banalidade de di-

nheiro, fossem bilhões ou trilhões.

Além das ORTNs e LTNs, havia os papéis emitidos pelos tesou-

ros estaduais e até municipais. Durante essa segunda rodada diária

de negociações é que os dois espadas citados, Antônio José (o Bode)

e Jorge Paulo, costumavam “traçar” os concorrentes.

Alguém já disse que é melhor passar alguns segundos de vergo-

nha do que uma vida inteira de arrependimento. Devia ser isso que

motivava certos operadores a simplesmente desligar seus telefones

quando as feras surgiam na linha.

“Quem”?

“Jorge Paulo”

Silêncio absoluto no outro lado.

“Quem”?
78
“Antonio José”

Mudez total.

Eu não quero dar uma de machão, mas jamais desliguei o tele-

fone na cara de nenhum dos dois. Com o Jorge Paulo, fiz apenas

algumas operações, logo após ter deixado de ser operador de pregão

na bolsa e ir para o open.

Se não me engano, fiquei no zero a zero. Caso tivesse levado uma

cravada, me lembraria. E lembraria mais ainda se tivesse dado uma

sova nele. Já o Bode me ferrou.

As ORTNs eram negociadas pelo PU (preço unitário). Portanto,

era normal um trader dizer: “Compro a quatro e vendo a sete”. Já

as LTNs eram operadas por taxa de desconto. Explicando melhor,

vender a 12,34 significava que o desconto sobre o valor nominal do

papel era de 12,34%. E comprar a 12,37% queria dizer que o preço

era menor, já que o desconto era maior.

Foi difícil entender? Se foi, não se chateie. O que você não en-

tendeu de primeira foi apenas o parágrafo de uma crônica. Pior foi

comigo.

Eu tinha acabado de negociar alguns lotes de ORTNs e era nor-

mal considerar, por exemplo, 8 maior do que 6. Foi aí que o Bode

me pegou. Pior, ele era (e continua sendo) um dos meus melhores

amigos, quase um irmão.

Confundi PU com taxa de desconto e comprei um lote grande de

Letras do Tesouro Nacional por preço totalmente fora do mercado.


79
Amarguei uns 15 dias de profunda dor de corno, fora as gozações de

meus colegas de mesa.

Naquele dia, quando o Bode me ligou, perguntando como eu ope-

rava LTNs, eu deveria ter ficado repetindo “alô”, “alô”, “alô”, até que

ele saísse da linha. Ou, então, emudecido quando ele se identificou.

O mundo seguiu seu curso, assim como a história de cada uma

das pessoas narradas neste texto. Antônio Jose de Almeida Carnei-

ro fez um dos melhores negócios da história do mercado brasileiro

de capitais. Pegou dinheiro emprestado fora do Brasil, a uma taxa

de juros baixíssima, e aplicou tudo aqui em crédito direto ao con-

sumidor. Correu apenas o risco cambial, praticamente desprezível

com o spread gigantesco que obtinha em suas operações. Para satis-

fação dos otários, o Bode já saiu das trading desks há muitos anos.

Jorge Paulo Lemann tornou-se o maior tycoon brasileiro de todos

os tempos. Brasileiro é apenas maneira de falar. Ele, junto com seus

dois sócios, Marcel Teles e Beto Sicupira, montou um formidável

conglomerado comercial, financeiro e industrial que opera em todo

o mundo.

Só o prazer de me lembrar que fiz negócios com esses caras − e

mesmo apesar do dia em que me lasquei todo, quando achei, bur-

ramente, que oito era um número maior do que três − já me causa

uma enorme satisfação. Inhambu piou na festa do jacu, saiu todo

depenado, mas sobrou para contar a história.

80
Lição 10: Quatro personagens de um crash

Entrar no mercado de ações não costuma ser uma decisão muito

difícil. Seja através de sua análise, ou por intermédio de um espe-

cialista ou de uma publicação de confiança, escolhe-se uma empresa

promissora, que tenha bom potencial de valorização, e compra-se o

papel. Para não perder muito dinheiro (é preciso admitir que toda

decisão pode estar errada), é prudente se colocar um stop pouco

abaixo do preço de entrada. Aliás, bons negócios na Bolsa costumam

ser bons desde o primeiro dia.

Nesta crônica, vou falar de quatro entradas e saídas bem-sucedi-

das, todas elas ocorridas nos Esfuziantes Anos Vinte (The Roaring

Twenties) na Bolsa de Valores de Nova York. Os personagens são

um cômico, um músico, um banqueiro e um multimilionário opor-

tunista.

Tal como relato, com alguma dose de licença poética nos diálogos,

em meu livro 1929, o comediante Charles Chaplin e o músico Ir-

ving Berlin foram jantar juntos num restaurante de Hollywood. Isso

aconteceu em outubro daquele ano, poucos dias antes da Terça-feira

Negra, como ficou conhecida a data mais importante e simbólica do

grande crash da Bolsa de Valores de Nova York.

Ambos, Chaplin e Berlin, estavam no auge de suas carreiras ar-

tísticas. Charles Chaplin lançara o filme O Circo (The Circus), que

lhe valera um prêmio (que ainda não se chamava Oscar) na primei-


81
ra cerimônia da Academia de Cinema, realizada em 16 de maio de

1929 no Hollywood Roosevelt Hotel. Ao mesmo tempo, ele trabalha-

va na produção de Luzes da Cidade (City Lights) que, tudo indicava,

seria mais um êxito.

Já Irving Berlin liderava as paradas de sucesso com sua canção

Blue Skies, escrita em 1926, além de ter feito, naquele ano, a trilha

sonora do filme The Cocoanuts.

Como sempre acontecia quando duas pessoas conversavam na-

quela época (e com os dois gênios das artes não tinha como ser dife-

rente), o assunto resvalou para o mercado de ações.

“Eu tenho vários milhões de dólares aplicados na bolsa”, Berlin

disse para Chaplin. Observação: aqui acho importante acrescentar

que um milhão de dólares de 1929 equivale a 14,5 milhões de 2018.

“Milhões? Você está ficando louco, Irv?”, Charles Chaplin se as-

sustou. “O mercado está se esfarinhando”, prosseguiu. “Vai perder

toda a sua fortuna. Eu liquidei minha carteira de ações na primave-

ra do ano passado, seguindo recomendação expressa de meus corre-

tores na Merrill Lynch.”

“Ano passado?”, Berlin não fez a menor questão de disfarçar sua

risada de deboche. “Então você deixou de ganhar um dinheirão. Per-

deu toda essa alta.”

“Mas não vou perder na baixa. Eu já disse e repito. O mercado vai

levar um tombo sem precedentes. Liquida tudo.”

“Não se aborreça comigo, Charlie” – a fisionomia do compositor


82
assumiu um ar severo de recriminação –, “mas acho que esse negó-

cio de vender impatriótico, antiamericano. Ainda mais para gente

como nós, que chegou na América com uma mão na frente e outra

atrás, eu do Império Russo e você da Inglaterra.”

Como todo mundo sabe, o crash de 1929 deu origem à Grande

Depressão, que durou até o início da Segunda Guerra Mundial, dez

anos mais tarde. Nos Estados Unidos, nos piores momentos da cri-

se, um em cada quatro trabalhadores ficou desempregado.

Durante o dia, as pessoas se alinhavam nas filas de distribuição

de sopa. À noite, se acotovelavam na entrada dos albergues públi-

cos. No campo, trabalhadores da lavoura e caubóis trabalhavam em

troco de um prato de comida. Milhares de americanos gastavam seu

tempo, e se abrigavam das intempéries, viajando para lá e para cá

em vagões ferroviários, não raro em companhia de gado.

Com toda sua fortuna anterior preservada, e apesar do advento

do cinema falado, Charles Chaplin, que foi o maior mímico de todos

os tempos, continuou a fazer filmes mudos, sempre com ótimas bi-

lheterias. O mesmo aconteceu com algumas de suas fitas sonoras,

com destaque para O Grande Ditador (The Great Dictator), uma

sátira desmoralizante de Adolf Hitler.

Embora seu portfólio de ações tenha se desvalorizado em aproxi-

madamente 90% por ocasião do crash, Irving Berlin não abdicou de

suas compras em Bolsa. Tal como fizera na alta, continuou adqui-

rindo papéis, agora a preços irrisórios.


83
Como, a despeito da Grande Depressão, os Anos Trinta foram de

grande prosperidade para a indústria fonográfica, Berlin continuou

a ser um dos artistas mais bem-sucedidos dos Estados Unidos, mu-

sicando filmes e peças teatrais e compondo uma canção atrás da

outra.

Os dólares que ganhou de direitos autorais ao longo de toda sua

vida (ele morreu em 1989 com 101 anos de idade) nunca deixaram

de ser direcionados para o mercado de ações. No dia da morte de

Irving Berlin, 22 de setembro de 1989, sua carteira valia US$ 1,1

bilhão.

Para os banqueiros tradicionais, Amadeo Peter Giannini, filho de

imigrantes italianos, era um carcamano arrivista que não tinha sta-

tus social nem lastro financeiro. Nada disso impediu que Giannini

fundasse sua própria casa bancária, o Bank of Italy, com sede em

São Francisco, na Califórnia.

Quando, em abril de 1906, um terremoto e um incêndio devastado-

res haviam arrasado praticamente toda a cidade, Amadeo Giannini

emprestou dinheiro para que os homens de negócio reconstruíssem

suas lojas e fábricas. Isso o tornou popular e conhecido em todo o

país, assim como seu banco.

Como a inadimplência nesses empréstimos ficou próxima de zero,

o Bank of Italy ganhou credibilidade. Mais do que isso, ganhou no-

vos depositantes e pôde abrir filiais em diversos estados americanos.


84
Os negócios bancários de Giannini não fizeram outra coisa a não ser

crescer. O banco teve seu nome alterado para Bank of America.

Vinte e um anos após a hecatombe de São Francisco, Amadeo

Giannini protagonizou a maior fusão bancária da história dos Es-

tados Unidos até então, ao reunir, numa só instituição, o Bank of

America, o Bancitaly, o Liberty Bank of America e o Italian Ameri-

can of San Francisco. O novo banco era uma empresa de US$ 500

milhões, US$ 500 milhões de 1927.

A partir da criação de seu novo colosso bancário, Giannini, as-

sustado com a alta exagerada dos papéis em Nova York, passou a

vender a carteira de ações de sua tesouraria, assim como indicar aos

seus clientes que fizessem o mesmo.

Junto com a corretora Merrill Lynch, a mesma que operava para

Charles Chaplin, foram os primeiros a perceber que a ganância e a

irresponsabilidade de Wall Street iriam afundar o país e destruir

as economias dos pequenos, médios e grande poupadores e o capital

dos especuladores.

Em fevereiro de 1928, portanto um ano e oito meses antes da Ter-

ça-feira Negra, Amadeu Giannini recomendou a seus clientes ven-

der as ações de seu próprio banco, numa atitude sem precedentes na

história do mercado. “Elas estão sobrevalorizadas”, escreveu num

comunicado oficial dirigido aos acionistas.

Veio o crash. Tal como os demais bancos, o Bank of America, de

Giannini, perdeu dinheiro. Só que menos. Amadeo Peter Giannini


85
morreu em 1949, aos 79 anos. Não pôde ter a alegria de ver seu ban-

co se tornar o maior do mundo.

Ninguém comprou ações em momento mais certo, ninguém vendeu

ações em momento mais certo, ninguém lucrou tanto com a alta,

ninguém lucrou tanto com o crash e com a Grande Depressão quan-

to Joseph (Joe) Kennedy.

Misto de político, produtor cinematográfico, industrial, banquei-

ro, embaixador, contrabandista de bebidas, autoridade pública, em

sua vida profissional Joe foi um dos homens de negócios mais bem-

sucedidos de seu tempo.

O mesmo não pode se dizer de sua vida particular. Perdeu seu

filho mais velho, Joe Jr., piloto da Marinha, numa missão durante

a Segunda Guerra. O segundo, John, eleito presidente dos Estados

Unidos, assassinado em Dallas. O terceiro, Robert, candidato à pre-

sidência, morto em Los Angeles. Entre os homens, restou o quarto,

Edward (Ted), que se envolveu num acidente de carro mal explicado

no qual uma jovem morreu afogada enquanto Ted se salvou.

Descontadas as desventuras de sua história pessoal, Joseph (Joe)

Kennedy foi o grande vencedor do mercado de ações nos Anos Vinte,

no crash e na Grande Depressão. Esteve comprado na alta, vendido

a descoberto no crash e comprou ativos quase de graça durante a

década de crise econômica.

Enquanto Charles Chaplin, Irving Berlin, Amadeo Peter Gianni-


86
ni e Joseph Kennedy souberam comprar no momento certo, cente-

nas de milhões de pessoas em todo o mundo perderam com o crash

de 1929 e com os tempos tenebrosos que se seguiram.

Neste capítulo, eu preferi falar dos que fizeram fortuna. Aqueles

que souberam entrar e sair, mesmo após décadas de teimosia como

Irving Berlin, que, para isso, precisou viver 101 anos.

Quem não tem a mesma expectativa de vida, nem uma excepcio-

nal renda extra como Berlin, é melhor aprender a sair na hora certa,

sem se deixar levar pela ganância, marca registrada daqueles anos.

87
Lição 11: Paixão, paixão, negócios à parte

Quando, aos 18 anos de idade, em julho de 1958, me mudei do Rio

para Belo Horizonte, fui estudar no colégio Marconi. No início, fi-

quei aborrecido por sair da capital federal para o interior. Mas logo

me habituei com BH, onde acabei fazendo grandes amigos.

Algumas dessas amizades começaram no colégio – por sinal, um

lugar tão sensacional que a gente não gostava quando chegavam as

férias −, entre elas a de um garoto de minha idade chamado Mário

(Marinho) Zicker.

O Marinho era de família judia, na qual aconteceu uma coisa

curiosa, que talvez fosse normal para eles. Eram dois, os irmãos

Zicker: Claudio e Mário. Acontece que um tio deles, incorporador

muito bem-sucedido aqui no Rio, também era casado, mas não tive-

ra filhos.

Então, o que fez a família, com a intermediação de um rabino?

Simples: o Claudio veio morar no Rio, onde os tios o adotaram como

filho. E o Marinho ficou em Belo Horizonte, onde saíamos sempre

juntos. Ele era apaixonado por carros. Eu me lembro, ganhou do tio

um reluzente Karmann Ghia vermelho, que era o sonho de consumo

de dez em cada dez jovens de nossa idade.

Quando tinha vinte e poucos anos, Marinho quis abrir um comércio,

mais precisamente uma loja de acessórios de automóveis. Para poder

viabilizar sua ideia, veio ao Rio pedir um empréstimo ao tio milionário.


88
“Claro que financio”, disse o pai adotivo de seu irmão, “mas não

no ramo de automóveis. Você é apaixonado por eles e paixão não

combina com negócios. Com o dinheiro, você vai abrir uma loja de

brinquedos aqui no Rio.”

Assim nasceu a Rozenlândia Brinquedos, inicialmente montada

na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. Com o tempo, o negócio

floresceu. Uma filial, duas filiais, três filiais, diversas filiais, o negócio

se espalhou pela cidade do Rio, inclusive pela maioria dos shoppings.

Tornou-se a maior cadeia do ramo na cidade, uma referência em

brinquedos nacionais e importados.

Talvez, e isso a gente não vai saber nunca, se o Marinho tivesse

aberto sua loja de carros em Minas, as coisas não tivessem ido tão

bem. Simplesmente porque ele era apaixonado pelo produto. Acaba-

ria adquirindo, quem sabe, o que mais gostava e não o que vendia

bem.

O episódio explica a lição do título deste capítulo: “Paixão, pai-

xão, negócios à parte.”

Eu sou tão apaixonado por aviões que, quem sabe inspirado pela

decisão do tio do Marinho, jamais comprei ações de companhias aé-

reas nem de fabricantes de aviões. Porque provavelmente iria ad-

quiri-las movido pela ilógica dos sentimentos e não pela lógica das

análises frias das performances das empresas.

Quando comecei a operar ações na Bolsa de Valores de Nova York,

entre as grandes companhias aéreas americanas havia a Braniff In-


89
ternational Airways, que inclusive tinha linha para o Brasil, a Con-

tinental Airlines, que também voava para cá, e a Eastern Airlines,

que fazia diversas pontes aéreas nos Estados Unidos (New York/

Washington, New York/Boston, New York/Miami, etc.), na qual voei

muitas vezes. Havia também a Northwest Airlines, a mítica Pan

American (PanAm, cujas rotas percorriam toda a esfera terrestre,

e na qual voei dias antes de sua falência), a Trans World Airlines

(TWA) e mais de uma centena de outras, todas tendo encerrado

suas operações.

Claro que naquela época existiam também a American Airlines

e a United. Estas duas superaram todas as crises no setor. Mas só

sobreviveram à maior delas, a dos ataques terroristas do 11 de se-

tembro, graças a um auxílio governamental de US$ 5 bilhões a fun-

do perdido e outros 10 bilhões de empréstimo de longo prazo e taxa

de juros próxima de zero.

A American e a United continuam voando até hoje e estão entre

as maiores do mundo em tamanho de frota e número de passageiros.

Na Europa, também diversas empresas saíram, literalmente, do

ar. Entre elas, a BOAC (British Overseas Airways Corporation), a

BEA (British European Airways), a British Caledonian e a tradi-

cionalíssima Swissair, sendo que a falência desta última pegou o

mercado acionário de surpresa pois não foi antecipada por nenhum

analista do setor aéreo.

No Brasil, a história não foi diferente. Nem um pouco diferente.


90
Quando eu era menino, e em muitos casos até bem depois disso, as-

sisti um enorme desfile de empresas aéreas que surgiam, cresciam,

encolhiam e desapareciam – às vezes com falência total, em outros

casos engolidas por companhias maiores.

Se nos Estados Unidos sobraram a United e a American, aqui

não restou nenhuma das antigas.

A lista é de dar dó. Transbrasil, Varig, que voava para todo o

mundo, Vasp, Aerovias Brasil (cansei de voar em seus DC-3s), Lóide

Aéreo Nacional, Nacional Transportes Aéreos (voei muito também),

a lendária Panair do Brasil, cuja malha chegava ao Oriente Próxi-

mo, a Paraense, a Real Transportes Aéreos (eles sempre punham

um corcundinha no pé da escada do avião para que os passageiros

pudessem passar a mão na corcunda do “mascote” para dar sorte),

a Rio Sul (subsidiária da Varig), a Cruzeiro do Sul, a Votec, além de

dezenas de outras menores.

Elas deram lugar à Latam (parceria de chilenos com brasileiros),

à Gol, à Azul, à Avianca e três ou quatro companhias de menor por-

te, quase todas recentes.

Portanto, quem, do início da segunda metade do século 20 até os

dias de hoje, investiu em ações de empresas aéreas no Brasil e no

exterior teve tudo para perder dinheiro.

O filé do mercado mudou de mãos e hoje pertence às companhias

do Oriente, como a Emirates, a Turkish Airlines, a Etihad e a Sin-

gapore Airlines. Com os fabricantes de aviões de grande porte acon-


91
teceu a mesma coisa. No começo da segunda metade do século pas-

sado, além da Boeing e da Airbus, que permaneceram no mercado,

havia a McDonnell Douglas, fabricante da linha DC (do DC-3 ao

DC-10), a Lockheed (que produziu, entre outros, o Constellation, o

Electra, o Hercules e o Tristar) e a Convair, fabricante dos Convair

240, 340, 440 e do Convair Tornado, que se parecia com o Boeing

707 e o DC-8.

As fabricantes, tal como as companhias aéreas, foram fechando

as portas ou sendo absorvidas por concorrentes maiores. A conclu-

são é que o setor aéreo é de alto risco, e não tão rentável assim, para

que mereça constar na lista das melhores ações. Principalmente

para gente como eu, que tem paixão pelos aviões.

É melhor investir em uma fábrica de fertilizantes orgânicos, ou

qualquer coisa similar sem o menor romantismo.

O raciocínio acima vale para todos os investimentos. Se você tem,

como eu, uma filha que mora na Inglaterra, e é apaixonado pelos

britânicos, não compre títulos ingleses. Pode se sentir traidor na

hora de liquidá-los.

Já imaginaram se um dia no Brasil os times de futebol se torna-

rem empresas de capital aberto, com títulos negociados em bolsa?

Corintiano vai querer comprar Corinthians, palmeirense só vai en-

trar numa IPO do “verdão”. O mesmo acontecerá com torcedores do

Atlético Mineiro e do Cruzeiro, do Grêmio e do Colorado, do Vasco e

do Flamengo, do Vitória e do Bahia.


92
Existe um ex-deputado federal daqui do Rio de Janeiro, R. C. C.,

que, em certo momento de sua vida, foi secretário de Saúde da pre-

feitura da capital. Acontece que ele era também o maior acionista

pessoa física da Companhia de Cigarros Souza Cruz. Quando soube

do caso, a imprensa fez um escarcéu.

Pois eu acho que R. C. C. não cometeu nenhum erro, o que seria

o caso se, como secretário de estado da Saúde, diminuísse as proi-

bições de fumo nos lugares fechados ou cancelasse as campanhas

contra o cigarro. O ex-deputado (que por sinal não fuma) fez bem em

não misturar as coisas.

A única coisa que deve preocupar um investidor é se aquele ativo

que está comprando tem potencial de crescimento, de aumento de

lucratividade. Aplicar em bolsa não tem nada a ver com sentimen-

talismo. É apenas um negócio no qual a paixão só prejudica.

Se gosta de aviões, e tem dinheiro para tanto, compre um teco-te-

co para passear nos fins de semana. Se é corintiano roxo, vá assistir

aos jogos no Itaquerão. Paixão é paixão, negócios à parte.

93
Lição 12: Na bacia das almas

Existem momentos na vida de um investidor ou de um trader pro-

fissional em que determinados ativos chegam no fundo de um poço

tão óbvio, um preço de tal modo fora da realidade, que ele (o preço)

dificilmente se repetirá nos 20, 30 ou mesmo 50 anos seguintes. Isso

quando não irá se repetir nunca. É evidente que desse raciocínio de-

vem ser excluídas as empresas falidas ou em estágio pré-falimentar

que, por alguma razão, ainda são negociadas no mercado.

Uma dessas ocasiões inesquecíveis ocorreu na segunda-feira de

19 de outubro de 1987, dia em que Wall Street, com sua notória

ausência de criatividade semântica, optou por denominar de Black

Monday (Segunda-feira Negra).

Eles têm esse hábito, que por sinal se tornou politicamente in-

correto, de chamar de black tudo que é ruim, catastrófico, sinistro,

desastroso, trágico. Assim como a Black Monday de 1987, existe a

Black Tuesday de 1929, quando ocorreu o pior momento do grande

crash da Bolsa de Valores de Nova York naquele ano, e o Black Sun-

day, dia mais terrível da Dust Bowl (Tigela de Poeira). Refiro-me ao

tenebroso domingo de 14 de abril de 1935.

Bem, vamos começar pelo meio. E, cronologicamente, o meio en-

tre 1929 e 1987 é 1935. A Dust Bowl foi uma tragédia no meio de

uma tragédia causada por uma tragédia inicial.

Tragédia nº 1: Colapso da bolsa de Nova York e quebradeira dos bancos;


94
Tragédia nº 2: Grande Depressão dos anos 1930;

Tragédia nº 3: Dust Bowl, violenta seca em 1935.

Se o caro leitor ou leitora já assistiu a algum filme passado du-

rante a Grande Depressão, deve se recordar das imagens de pedaços

soltos, secos, retorcidos e redondos de arbustos, mais parecendo pa-

lha, literalmente rodando pelas pradarias ao sabor do vento.

Quem descreve bem essa época é o autor John Steinbeck, Nobel

de Literatura de 1962, em seu antológico As Vinhas da Ira (The

Grapes of Wrath). Vejamos um trecho da versão em português. A

tradução é de Ernesto Vinhaes e Herbert Caro.

“…O ar prenhe de poeira abafava e encobria tudo com mais per-

feição que um nevoeiro. As pessoas, sufocando nas camas, ouviam o

vento parar. Acordavam com a ida do vento. Deixavam-se ficar quie-

tas, investigando o silêncio com os olhos e ouvidos abertos. Os galos

cantaram, depois, e seu canto soava fraco, e as pessoas nas camas

esperavam extenuadas pelo romper do dia. Sabiam que levaria lon-

go tempo até que a poeira se desfizesse no ar. Pela manhã a poeira

pendia pesada, qual espessa neblina, e o sol ressurgia cor de sangue.

O dia todo a poeira peneirava sobre a terra, e peneirava sobre ela no

dia seguinte ainda. Sentava sobre as espigas e os moirões das cercas

e os fios; pousava nos telhados, cobria as plantações, as árvores….”

Um trust familiar, desses que passam de geração para geração,

que por acaso tenha adquirido algumas centenas de dólares em

ações da General Motors, da Ford, da United Airlines, da General


95
Electric, da Standard Oil ou da ITT durante a Dust Bowl, e não as

vendeu no crash de 1987, tem hoje no mínimo reservas para mais

dois séculos. Porque adquiriu os papéis no fundo do poço seco do

auge da seca da Depressão, época em que quem conseguia um prato

de sopa rala para comer, e um celeiro ou vagão de gado de estrada de

ferro para se abrigar dos ventos e da poeira, já se dava por felizardo.

Isso sem contar os dividendos que o trust recebeu ao longo desses

últimos oitenta e poucos anos.

O crash de 1929 era inevitável. Simplesmente tinha de aconte-

cer. Pois foi uma época de ganância irrefreável. Quase todo mundo

perdeu o juízo. Dos papéis negociados na Bolsa de Valores de Nova

York, boa parte deles não passava de fundos que compravam cotas

de outros fundos, que compravam cotas de outros fundos que por

sua vez não compravam nada. Apenas folhas de papéis com um va-

lor nominal. Como se fossem cédulas de três dólares.

Já o crash de 1987 foi um crash burro. Foi detonado por program

tradings, que, como o próprio nome indica, eram programas de com-

putador, praticamente idênticos, concebidos para operar baseados

unicamente em análise técnica. O pânico deu conta do resto e a

irracionalidade prevaleceu em Wall Street.

Explicando melhor: quando, na sexta-feira de 16 de outubro de

1987, o mercado, no fechamento, rompeu todos os suportes dos gráfi-

cos diário, semanal e mensal simultaneamente, ficou óbvio que a que-

da da segunda, dia 19, seria inevitável e de proporções assustadoras.


96
Noite de domingo, 18, para segunda, 19. Nova York ainda dorme

e as máquinas maquinam (com o perdão pela redundância) para

vender. Todas a mercado. Todas ao mesmo tempo. Tal avalanche

de vendas fez com que o tombaço do índice Industrial Dow Jones

fosse de 508 pontos, ou 23%, a maior queda percentual de todos os

tempos.

Hoje em dia, ao estudarmos o mercado daquela, vá lá, Segunda-

feira Negra, vemos claramente que era um ponto santo de compra

segundo os fundamentos da ocasião. Só que na hora deu paralisia.

Tanto é assim que a maioria das compras foi de realização de lucros

de felizardos vendidos.

Quem adquiriu ações naquelas mínimas que, presumo, jamais

irão se repetir, está ganhando uma baba até hoje. Bem mais do que

mil por cento em três décadas. Fora os dividendos. Mas passou por

diversos sustos. Precisou ter muito sangue-frio para aguentar os

trancos que o Dow levou no meio do percurso.

O maior tombo foi a crise do subprime, e a falência do Lehman

Brothers, aliada ao passivo a descoberto apresentado pelas compa-

nhias de hipoteca e financiamento imobiliário Fannie Mae e Freddie

Mac, das quais o Departamento do Tesouro precisou comprar US$

100 bilhões em ações preferenciais para que não quebrassem.

Nessa ocasião, muitos traders e analistas acharam que uma nova

Grande Depressão estava começando. Como o Dow Jones levou seis

anos para se recuperar do baque, aquele trust familiar imaginário


97
que comprou ativos em meio à poeira da Dust Bowl poderia ter liqui-

dado sua carteira se fosse de verdade.

Além do subprime, houve a invasão do Kuwait pelo Iraque em

agosto de 1990, a Guerra do Golfo que se seguiu e os ataques de 11

de setembro de 2001, além de outros incidentes menores, sendo que

todos eles derrubaram o mercado de ações.

Evidentemente sei que tudo isso é passado e quem gosta de pas-

sado é museu. Mas fica aqui a lição. Existem algumas ocasiões nas

quais os diversos mercados sobem tanto, e com tamanha velocidade,

que se tornam pontos santos de venda.

O mesmo acontece quando outros ativos, principalmente commo-

dities, que não quebram como as empresas, despencam abaixo de

qualquer limite lógico admissível.

Acho que o caro leitor deve ficar atento a esses momentos de pâ-

nico ou de euforia em excesso. Basta captar um ou dois deles em

toda a vida.

Para finalizar, eu conheço um investidor brasileiro que comprou o

S&P 500 nas mínimas do dia 19 de outubro de 1987, a Segunda-feira Ne-

gra. Sei porque ele estava ao meu lado, e usando o meu telefone, quando

fez a aquisição. Eu só não fiz a mesma coisa porque estava com o raciocí-

nio congelado. Simplesmente não conseguia entender aqueles números.

98
Lição 13: Making of de Rapina

No segundo semestre de 1995, após ter tentado, sem sucesso, ven-

der The Sunday Night Traders para o mercado americano, decidi

oferecer a versão em português, Os mercadores da noite, para edito-

ras brasileiras.

Primeiro enviei os originais, impressos em caderno espiral, para

a Record. A resposta do editor Sérgio Machado veio através de um

fax: “Li os originais de Os mercadores da noite e não gostei. Não te-

nho interesse em publicá-lo”.

Mostrei, então, o livro para Alfredo Gonçalves, da Objetiva. Ele

leu o texto e o devolveu após algumas semanas, com uma resposta

parecida, declinando da publicação.

Naquela época, eu não tinha como saber que Os mercadores da

noite seria o meu livro de maior sucesso, publicado em português

por cinco editoras (BM&F, Rocco, Sextante, Arqueiro e Inversa) e

em inglês pela BM&F. Muito menos que venderia os direitos de fil-

magem para Hollywood, através da RT Features, venda essa que só

aconteceria em 2008.

Como, ao sair do mercado financeiro, onde trabalhara por 37 anos

(entre 1958 e o início de 1995), tinha dinheiro para viver apenas 18

meses, e esse prazo se esgotaria em novembro de 1996, só tinha

duas opções: tentar conseguir outro emprego no mercado; trabalhar

em um novo livro.
99
Foi nessa época que me deu um estalo na cabeça, estalo esse que

se chamaria Os predadores. Mas, para minha decepção, alguém lan-

çou um livro com esse título. Então Os predadores virou Rapina.

De uma coisa eu tinha certeza: Rapina provocaria um escândalo

no mundo das finanças do Rio, onde se desenvolve a trama. E, como

todo escândalo que se preze, mereceria destaque da imprensa, o que

é básico para o início da carreira de um escritor, principalmente de

alguém jejuno como eu. Pior do que jejuno. Já com um fracasso no

currículo.

Duvido que alguém que leu Rapina percebeu, logo na página ini-

cial, em letras miúdas, a seguinte observação: “Esta é uma obra de

ficção. Qualquer semelhança dos fatos aqui narrados, com pessoas,

empresas e acontecimentos da vida real é mera coincidência. Em

alguns casos, uma notável coincidência” (o grifo não aparece

no original).

Pois é. Escrevi Rapina em apenas dois meses e meio. Porque tudo

que está no livro, com exceção do sequestro, aconteceu na vida real.

De muitos episódios, fui testemunha; de outros, participante (con-

fesso humildemente).

Como eu tinha todos os acontecimentos de mercado na cabeça,

escrevi primeiro o texto e, só então, fui fazer as pesquisas de campo.

Passei vários dias indo ao centro de comando do tráfico do morro

do Borel, na zona norte do Rio, inclusive travando relacionamento

com o gerente da boca de fumo, de nome (ou apelido) Lader, que


100
provavelmente já morreu – os traficantes, como todo mundo sabe,

morrem cedo.

Escolhi o local do sequestro do banqueiro Eriosvaldo (na estrada

das Paineiras) e o do cativeiro, no município de Magé, como se re-

almente estivesse planejando um sequestro. Dividi os personagens

entre “Os de cá”, ou seja, o pessoal do mercado financeiro, e “Os de

lá”, os bandidos do tráfico.

Percorri em meu carro todos os trajetos dos personagens da his-

tória. Jantei nos restaurantes dos bacanas, como o Grill One, na

praça Mauá, o Antiquarius, no Leblon, e o Claude Troisgros, entre

a Lagoa e o Jardim Botânico.

Do luxo passei para o brega. Comi um frango assado no Solano,

birosca do morro do Borel, frequentada pelos “meus” traficantes,

o Galo Cego à frente. Jantei no Beco da Fome, no Posto 2, em Co-

pacabana, muito conhecido pelo pessoal da madrugada (policiais,

bandidos, taxistas, prostitutas, strippers, etc.).

Fui também aos restaurantes exóticos onde os traders de mer-

cado eram habitués. Estou me referindo ao Nova Capela, na Lapa,

onde se come o melhor cabrito assado da cidade, e ao Sentaí, perto

da Central do Brasil, referência para quem gosta de lagosta.

Minha maior prova de coragem, pelo menos no meu modo de ver,

foi visitar o Instituto Médico Legal de Duque de Caxias, na Baixada,

onde um assistente de autópsia não descansou antes que eu visse,

numa das gavetas refrigeradas, um cadáver carbonizado desovado


101
por alguém (polícia ou bandido; no Rio, nunca se sabe) nas matas

de Xerém.

Se Os mercadores da noite foi aquela angústia interminável an-

tes de ser rejeitado por todos, Rapina foi vapt-vupt. Entreguei os

originais para uma agente literária, Marisa Gandelman, indicada

por meu irmão, no dia 23 de dezembro de 1995, véspera do Natal.

Pois bem, três dias depois, na terça-feira de 26 de dezembro, Lu-

ciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, comprou os direitos

autorais do livro.

No primeiro trimestre de 1996, a Record promoveu a maior cam-

panha publicitária já feita no país para um livro de autor inédito.

Saiu um encarte com os primeiros capítulos de Rapina na revista

Isto É, a Veja publicou uma resenha de duas páginas.

Voando sobre a orla carioca, teco-tecos rebocaram faixas nas

quais se lia apenas “Rapina”, assim como “Rapina” era o que apare-

cia num letreiro piscante que eu vi em um helicóptero que sobrevo-

ava a Barra da Tijuca.

Anúncios foram publicados no Jornal do Brasil, em O Globo, na

Folha de S. Paulo, no Estadão e no Jornal da Tarde. A primeira

edição, de cinco mil exemplares, se esgotou no primeiro dia. Houve

operador de mercado, tanto no Rio como em São Paulo, que comprou

20 unidades.

Quem compareceu às noites de autógrafo no Rio, em São Paulo e

Belo Horizonte já adquiriu livros da segunda edição. Rapina largou


102
em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. E na lista permane-

ceu durante cinco meses.

Evidentemente que as pessoas que se viram retratadas no livro

ficaram indignadas comigo. Errado! O mercado simplesmente ado-

rou. Quem não gostou foram aqueles que se sentiram alijados da

história. “Pô, Ivan, sacanagem. Você se esqueceu de mim. A gente se

conhece há tantos anos.”

Um diretor de um banco de investimentos se identificou no livro.

E veio falar comigo: “Eu sou o Pedro Henrique, não sou?”.

“Não sei, não posso dizer. Isso é uma ficção.” Simplesmente não

pude resistir a um suspense. Mas Pedro Henrique Barroso, sócio

do Eriosvaldo Mattos no Banco Bullish, era o próprio. Só que, na

vida real, não comia Sarita Gomes D’Auvignois, mulher de Phillipe

Almenara D’Auvignois, diretor do Bullish. Na ficção.

Três duplas de gêmeos do mercado vieram me perguntar se eles

eram os gêmeos Lontra, donos da Flush D. T. V. M. Como, ao escre-

ver o livro, eu fizera um blend das duplas, não tive remédio a não ser

o de mantê-los na dúvida. “Não sei, não posso dizer, isso é segredo

de autor.”

Houve um personagem, Asdrúbal de Almeida Vasconcelos, di-

retor do Banco Agro Mercantil do Mato Grosso, que todo mundo

identificou corretamente. Assim como a maioria dos profissionais

adivinhou quem era Generoso Mascarenhas, presidente da Funcoop,

Fundação de Previdência dos Funcionários da Minerbrás. Mas, evi-


103
dentemente, eu tive de negar, negar inclusive aos próprios. A Veja

especulou que o governador de São Paulo, Hercílio Queluz, era o O...

Q... Eu não confirmei nem desmenti.

Escrever Rapina foi, portanto, uma sopa no mel. E quem ler o

livro agora vai se assustar com a semelhança entre os acontecimen-

tos de minha “ficção” e o que iria acontecer mais tarde com o Pos-

talis, com a Petros, com a Funcef e com outros fundos de pensão de

estatais durante as investigações da Lava-Jato.

Embora Rapina tenha sido escrito única e exclusivamente com o

objetivo de entreter as pessoas, sempre é gratificante constatar que

quase todos os cambalachos de mercado citados no livro já não são

possíveis nos dias de hoje.

Não que não haja candidatos a Asdrúbals (do Agro Mercantil do

Mato Grosso) Sandôs (da Funcoop), Arthurzinhos (da Gyp). Exis-

tem aos montões. Só que o terreno se tornou minado para eles.

Para mim, Rapina foi uma mão na roda. Aplainou o terreno para

publicação de Os Mercadores da Noite e dos outros 15 livros que

escrevi e publiquei até hoje. Ao sequestrar o banqueiro Eriosvaldo

Matos, e trancafiá-lo num quarto de uma casa isolada de Magé, ao

parir o traficante Galo Cego, e sua namorada Bete Boa, dei o ponta-

pé inicial de minha carreira literária.

104
Lição 14: Onde tudo começou para valer

Antes das grandes viagens dos descobrimentos, nos séculos XV, XVI

e XVII, o futuro de cada cidadão europeu podia ser praticamente

determinado por ocasião de seu nascimento. Filhos de nobres se-

nhores de terras jamais precisariam trabalhar. Sua renda por toda

a vida viria do suor dos agricultores e pastores de seus condados,

baronatos, ducados, etc.

Na Rússia, o regime era ainda mais injusto. Bastava o nome que

o definia, servidão, para se deduzir isso. Lá, os proprietários rurais

tinham direito perpétuo sobre seus servos, podendo açoitá-los a pre-

texto de qualquer coisa, desvirginar suas filhas e até enforcar os

empregados que, obviamente, não podiam sair da propriedade para

tentar a vida em outro lugar. Os que tinham alguma deficiência físi-

ca ou mental eram simplesmente expulsos das terras.

Mais a oeste, na Inglaterra, Escócia, Irlanda, França, Espanha,

Portugal e nos estados que um dia iriam se transformar na Alema-

nha, a conjuntura, embora não tão opressiva quanto a da Rússia,

não permitia que uma pessoa que não fosse de sangue azul, ou rica

de berço, melhorasse de vida, o mesmo acontecendo com seus des-

cendentes.

Pedreiro era filho de pedreiro e pai de pedreiro. O mesmo com os

ferreiros, marceneiros, lenhadores, cocheiros, cirurgiões-barbeiros

e dentistas. No campo, os nobres senhores de terras tinham seus


105
empregados rurais, que também transmitiam suas funções para os

filhos. Os criados domésticos e domadores de cavalos eram apenas

um pouco mais privilegiados.

Havia um meio termo entre os nobres e a plebe: comerciantes,

artistas plásticos, artesãos mais habilidosos e armeiros. Essas clas-

ses podiam acumular algum dinheiro. Só não havia onde aplicá-lo.

Com as expedições marítimas intercontinentais, a situação mu-

dou muito. E mudou para melhor. Qualquer um que se dispusesse a

correr o risco da navegação por mares desconhecidos, podia melho-

rar de vida, ou até mesmo enricar, nos eldorados das Américas do

Norte, Central e do Sul, nas ilhas do Caribe, na longínqua Oceania

ou no Oriente, onde havia civilizações tão ou mais avançadas do que

as europeias, como a chinesa, por exemplo.

Logo, aqueles artesãos e artistas que dispunham de economias

podiam participar de uma espécie de sociedade por ações, precur-

sora das atuais bolsas de valores. Para financiar, por exemplo, uma

viagem às Índias ou à China, em busca de especiarias e de seda, ao

México ou ao Peru, à procura de prata, ou Brasil, para trazer pau-

-brasil.

Se o empreendimento fosse bem-sucedido, um investimento po-

dia render dez ou vinte vezes o dinheiro aplicado. Mas também ha-

via a possibilidade, que não era pequena, da expedição se perder,

por causa de um naufrágio ou de um ataque de piratas.

Os investidores não precisavam aguardar o desfecho da viagem.


106
Podiam vender suas cotas para outros. Os preços costumavam osci-

lar muito. Caso se ficasse um longo tempo sem ouvir falar de deter-

minado navio, a cotação caía.

Por outro lado, se surgia a notícia de que o barco fora visto, por

exemplo, no porto de Cartagena, na costa da América espanhola,

abarrotado de riquezas, o certificado de participação no investimen-

to disparava, mesmo considerando que o veleiro ainda teria de con-

tornar o cabo Horn, no extremo sul do continente sul-americano,

com suas águas sempre revoltas, antes de costear o litoral leste da

América do Sul e depois seguir para o destino na Europa.

Evidentemente, quando surgia a notícia de um naufrágio, ou de

um saque de piratas, não raro vários meses após o acontecimento,

as cotas dessa expedição viravam pó, tal como acontece hoje com

uma call ou uma put que não dá exercício.

Não demorou muito e os investidores passaram a diversificar. Ao

invés de aplicar todas as suas economias numa só viagem, adqui-

riam cotas-partes de diversas, diluindo o risco, tal como se faz hoje

quando se investe em um fundo de ações. Era o mercado de capitais

em processo de criação e aprimoramento.

Uma das maiores concentrações de investidores habitava os ar-

redores do sempre apinhado porto de Amsterdam, na República da

Holanda, país que conquistara sua independência dos Habsburgo

da Espanha e que privilegiava a livre iniciativa.

Os holandeses eram um dos povos mais avançados do mundo.


107
Avançados, pacíficos, liberais e tolerantes. Protestantes das mais

variadas vertentes, católicos, judeus, e mesmo gente com pouca ou

nenhuma religião, viviam em harmonia.

Como boa parte do território holandês fica em solo criado, abaixo

do nível do mar e protegido por diques, o povo local costumava dizer

que “se Deus criou o mundo, eles criaram a Holanda”.

No século XVII, ali exerciam seu ofício os melhores engenheiros

hidráulicos do mundo. Usavam moinhos de vento para subtrair, das

águas do mar e do lago Markermeer, cerca de mil hectares de terra

por ano. Lençóis d’água de até 4,5 metros de profundidade eram

bombeados do canal Zuider Zee, que ligava o mar do Norte ao lago,

e lançados, através de uma rede de canais, num ponto mais distante

do oceano. Novos aterros estavam sempre surgindo.

Os engenheiros construíam diques para cercar e proteger o solo

criado. Só que, de vez em quando, o mar recuperava suas terras e

o trabalho tinha de ser refeito. Com tantos técnicos competentes

e bem remunerados, a classe média era próspera em Amsterdam.

Sem contar que, além dos engenheiros, havia queijeiros, hortelãos,

pescadores, donos de tavernas, albergues e bordéis, atravessadores

e atacadistas de grãos, tecidos, vinhos e arenque (peixe das águas

geladas do Atlântico Norte e do Báltico), comandantes de navios

e proprietários de barcaças que transportavam mercadorias pelos

inúmeros canais que cortavam a cidade.

Toda essa gente tinha algum dinheiro para investir. Havia tam-
108
bém os ricaços, atacadistas de mercadorias, em especial o arenque

salgado, produto tão valioso que não raro servia como moeda local,

tão aceita quanto o florim.

“Quanto você quer por esse garanhão?”, um comerciante pergun-

tava a um engenheiro.

“Cinquenta molhos de arenque.”

Negociar, especular, trocar florins por arenque, e arenque por flo-

rins, fazia parte da cultura da Holanda e da cidade de Amsterdam

em especial. Portanto, não é de se espantar que lá tenha surgido o

surto especulativo mais estranho da história dos mercados. Estou

me referindo à tulipomania.

Na década de 1630, alguns especuladores mais audaciosos cis-

maram que tulipas eram um produto ideal em que investir. E que

não havia cidade melhor do que Amsterdam para iniciar esse movi-

mento.

As tulipas eram originárias da Turquia e estavam em moda nas

principais cortes da Europa. Logo, floricultores holandeses, na ex-

pectativa de um lucro fácil e rápido, cruzaram espécies e criaram

tulipas de uma beleza extraordinária.

Negociar com bulbos de tulipa tornou-se uma febre em Amster-

dam. Criou-se um mercado futuro de bulbos, com regras de negocia-

ção bem estabelecidas.

Os preços subiram rapidamente, logo atingindo níveis inimagi-

náveis. No auge do boom, os canteiros de tulipas eram protegidos


109
dia e noite por soldados armados. Um bulbo foi trocado por uma

carruagem com sua correspondente parelha de cavalos. Bancos pas-

saram a financiar as compras.

Como sempre acontece nas epidemias de especulação, as pessoas

achavam que as cotações subiriam para sempre. Até que, sem que

houvesse um motivo especial, a bolha estourou. Simplesmente su-

miram os compradores. Fortunas foram perdidas. Famílias próspe-

ras havia várias gerações se viram na miséria.

Que isso sirva de lição para os traders de hoje. Como o mercado

é movido por ganância e medo, outros tipos de tulipomania podem

e vão acontecer, assim como aconteceram do século XVII para cá. O

crash de 1929 é um bom exemplo. A crise do subprime (2007/2010),

outro. Basta os especuladores cismarem que determinado ativo vai

subir, todos se atropelam para chegar primeiro na corrente.

Nova York, que hoje é a Meca dos mercados, já se chamou Nova

Amsterdam. Para fazer justiça aos pioneiros das bolsas e dos merca-

dos, principalmente os mais especulativos, esse nome jamais deve-

ria ter sido alterado. Pois foi no porto da República Holandesa que

tudo começou.

110
Lição 15: Roman à clef (primeira parte)

Roman à clef é um romance, um conto ou uma novela no qual a

ficção se mistura à realidade. O texto abaixo é um desses. Trata-se

do lançamento de uma ação, Forjas Cruzeiro do Norte, na Bolsa de

Valores do Rio de Janeiro durante o grande bull market de 1971.

Essa empresa, Forjas Cruzeiro do Norte, jamais existiu. Mas, na-

quela época, houve colocações de papéis no mercado tão esdrúxulas

que, se realmente tivesse acontecido, essa das Forjas, produto de

minha fértil e até sádica imaginação, não teria nada de extraordi-

nária. Como todo mundo sabe, em 1971, houve de tudo, até a “histó-

rica” negociação da Merposa – Merda em Pó S. A.

O objetivo deste capítulo é alertar o leitor sobre o risco represen-

tado por essas arapucas. Lançamentos iguais ao da Merposa (acon-

teceu) e ao das Forjas Cruzeiro do Norte (inventei) jamais voltarão a

existir. Pelo menos, assim acredito. Mas quem não tem a capacidade

de avaliar com segurança o preço e o potencial de uma empresa, ou

não tem um profissional de confiança para assessorá-lo, pode muito

bem cair num desses contos do vigário, mesmo que em dimensão

menor.

Mas vamos ao nosso caso, nosso roman à clef, nossas Forjas.

Os planos ambiciosos e não muito éticos de Navi Annatnas (“Ivan

Sant’Anna” ao contrário, para que ninguém me acuse de estar re-

tratando um colega de carne e osso daquela época) começaram com


111
uma nota, em janeiro de 1971, na coluna social da Folha da Guana-

bara, um vespertino de grande circulação na Cidade Maravilhosa

(em 1971, ainda era maravilhosa; depois enfeou).

Dica

Comenta-se, à boca miúda, nos círculos financeiros do Rio e de

São Paulo, que os grandes investidores já estão fazendo fila para

comprar ações das Forjas Cruzeiro do Norte. O aumento de capital

da empresa, 100% nacional, e líder em seu setor de atividade, deverá

ocorrer ainda no primeiro trimestre deste ano e será coordenado pela

Sociedade Corretora Smart, da família Annatnas.

Como se pode ver, a nota não dizia em que região do país as For-

jas se encontravam. Isso seria dar muita munição aos enxeridos.

Mesmo porque, os operadores de mercado, público-alvo da nota,

naqueles tempos de especulação desenfreada não se interessavam

muito por minudências geográficas.

Eles desejavam apenas comprar papéis, papéis novos, muitos

papéis. E queriam principalmente saber quanto custavam e para

quanto iriam subir. Estudar detalhes era pura perda de tempo.

O que valia eram boas dicas, tal como dizia o título da notinha,

por sinal plantada por Romero Catanduva, veterano jornalista, e

agora assessor de imprensa freelancer, especialmente contratado

por Navi Annatnas para o plano Forjas.

Enquanto o lançamento da Cruzeiro do Norte era minuciosamen-

te preparado, a bolha especulativa do mercado de ações não parava


112
de inflar. Pudera. Os tempos eram de otimismo sem precedentes.

A seleção brasileira de futebol sagrara-se tricampeã do mundo,

no México. O progresso do país parecia não conhecer limites. Obras

punham cartazes em seus tapumes: “contratamos trabalhadores,

mesmo sem experiência”.

Celebrava-se o milagre econômico, pois o Brasil crescia a taxas

de duplo dígito jamais registradas. Nesse cenário gozoso, as empre-

sas, estimuladas pelo governo, procuravam abrir seus capitais, sob

a forma de novas ações.

Conforme a mecânica desses lançamentos, primeiro os papéis

eram vendidos diretamente ao público, pelos bancos, corretoras e

distribuidoras, através do que se chamava de mercado primário. Só

que os investidores em geral só conseguiam comprar pouquíssimas

ações.

Mais tarde, quando elas passavam a ser negociadas em bolsa, aí,

sim, lotes grandes, a preços muito maiores. Era esse o pulo do gato

dos underwriters, para não dizer estelionatários.

Para ganhar dinheiro, muito dinheiro, com seu plano, Navi pre-

cisava cercar as Forjas Cruzeiro do Norte de uma auréola de vence-

dora desde o início. Por isso, à nota na coluna do vespertino logo se

seguiram outras, agora em formato de notícias.

Uma delas relatava que a Cruzeiro do Norte acabara de fechar

um vultoso contrato de exportação para o Canadá. Outra, publicada

com grande destaque no caderno econômico de um jornal de São


113
Paulo, dizia que a diretoria das Forjas recusara uma oferta de fusão

feita pela Silmington Steel, de Pittsburgh, gigante da indústria si-

derúrgica americana.

Segundo o jornal, a Silmington (nome inventado por Navi) deseja-

va usar o parque industrial da Cruzeiro para aprimorar a qualidade

de seus aços especiais. Mas a notícia que ouriçou verdadeiramente

o mercado saiu no boletim informativo Insider’s Letter, publicação

semanal que costumava ser lida avidamente pelos operadores. Di-

zia o prestigiado hebdomadário, com todas as letras, que, embora o

lançamento primário das Forjas Cruzeiro do Norte tivesse sido feito

ao preço de Cr$ 1,00, já havia gente pagando um ágio de 100% pelas

ações.

Ágio, aliás, era a palavra da moda. Daí a avalanche de telefone-

mas de especuladores cobiçosos (pleonasmo?) para as Organizações

Annatnas. Gente que queria o papel.

Enquanto isso, os advogados de Navi cuidavam da aprovação do

lançamento. Nos últimos anos, a burocracia fora simplificada, pois o

governo queria promover uma melhor divisão de renda no país atra-

vés da democratização do mercado de ações. Quanto mais empresas

se lançassem em bolsa, melhor, raciocinava Brasília.

Na segunda-feira de 4 de fevereiro, jornais do Rio e de São Paulo

publicaram o comunicado oficial do lançamento, dele constando o

preço unitário inicial de Cr$ 1,00. Nesse dia, Navi e seus sócios e

corretores tiveram de se desdobrar para atender os telefonemas dos


114
interessados. Venderam pouquíssimos papéis.

“De seu pedido de mil ações”, dizia um broker para uma cliente,

“só podemos ceder cinquenta. E isso porque é para a senhora.”

Uma fúria epilética especulativa se seguiu à falsa escassez. No

mercado de balcão, a Cruzeiro do Norte já era negociada acima de

quatro cruzeiros, fato nada incomum naquele bull market.

O lote total do aumento de capital era de 100 milhões. Mas na-

quele preço (um cruzeiro) só foram vendidas 5 milhões de ações, a

maior parte a pessoas que Navi desejava (e precisava muito) agra-

dar, fora os bagrinhos que legitimavam o golpe com seus lotes ra-

quíticos.

Na véspera do lançamento em bolsa, Navi, apesar de todo o es-

palhafato, vendera apenas 20 milhões de ações, um quinto do lote

total, ao preço médio de Cr$ 3,32. Oitenta milhões permaneciam na

tesouraria da corretora Annatnas.

Para Navi, era importantíssimo que o papel abrisse acima de Cr$

4,00, e continuasse subindo, para que ele pudesse detonar o lote

todo. Investidor, ele sabia, só compra na alta.

Dias antes, o balanço das Forjas, referente ao ano de 1970, fora

publicado nos jornais. Tratava-se de uma obra-prima de ficção. O

lucro por ação, nesse exercício, já descontados os impostos, fora de

Cr$ 2,00. Sim, dois cruzeiros.

Ao ler os números, os que haviam comprado o papel por Cr$ 3,00,

Cr$ 3,50, Cr$ 4,00, vibraram. Já os poucos privilegiados que tinham


115
preço de custo de Cr$ 1,00 entraram em êxtase. Para muitos deles,

era a porrada do ano. E olhe que o ano de 1971, embora mal come-

çado, já vinha sendo pródigo em porradas.

Finalmente, chegou o Dia D. Quando soou a campainha da Bolsa,

abrindo o mercado, a maioria dos operadores de pregão se encontra-

va junto ao posto designado para as Forjas Cruzeiro do Norte.

“Forjas Cruzeiro do Norte, vendo”, apregoou um floor trader.

“Forjas, compro”, rebateu outro.

Navi entrou na roda: “Vendo a cinco e cinquenta!”

“Lote?”, perguntou um rapaz, deixando explícito que aceitava o

preço.

“Um milhão”, berrou Navi. “Vendo um milhão de Forjas a cinco

e cinquenta.”

“Fechado!” Tal como um galo de rinha, o comprador pulou para o

centro da roda, espalmou a mão direita e comprimiu-a contra o peito

de Navi. Com este gesto teatral, inaugurou, a 5,50, a carreira das

Forjas Cruzeiro do Norte na bolsa de valores.

Os touros (profissionais que apostam na alta) só faltaram ter um

orgasmo ali mesmo. Mas nem os mais otimistas podiam esperar o

show que se seguiu, protagonizado por Jadilson Maputo (que os co-

legas chamavam de Meu Puto), operador com quem Navi jantara na

véspera.

“Forjas, compro a 60, compro a 70, Forjas, compro a 80, Forjas,

compro a 90. Forjas, pago seis cruzeiros. Pago 6,50. Compro a sete.
116
Compro a 7,50. Forjas, compro um milhão a 7,90 e vendo o mesmo

lote a oito cruzeiros” – Maputo metralhou sem se dar ao trabalho de

parar para respirar.

O pregão emudeceu, como se fosse o público de um estádio de

futebol no início de uma decisão por pênaltis. Se alguém vendesse

um milhão a Cr$ 7,90 (e isso não era provável pois, além de Navi,

mancomunado com Maputo, poucos tinham esse lote), formava-se

um teto. Se, por outro lado, alguém comprasse um milhão a oito,

iniciava-se um novo patamar.

E foi justamente a segunda hipótese que aconteceu. Clodoaldo

Borges, que tinha o apelido de Berro Solto, era operador do fundo de

pensão de uma estatal. E fora um dos beneficiados pelos Annatnas,

tendo adquirido cem mil ações nos primeiros dias a Cr$ 1,00. Com o

mercado a oito, ele lucraria 700%, ou 700 mil cruzeiros.

Fazendo jus ao apelido, Berro Solto fez tremer os alicerces da

bolsa, ao trovejar:

“Fechado, Meu Puto. Um milhão a oito. Tomei”. E, para incre-

dulidade da roda, gritou: “Forjas Cruzeiro do Norte, compro mais.”

O mercado se estabilizou ao redor desse preço. Pois muitos dos

que haviam comprado antes do lançamento em bolsa realizaram lu-

cro. Mas surgiram novos compradores, os otários de sempre, gente

de fora que telefonava para seus corretores, achando que iriam ficar

ricos de uma hora para outra. A todos, Navi Annatnas ia vendendo

lotes gordos. Quando soou a campainha de encerramento, as Forjas


117
Cruzeiro do Norte se encontravam na máxima do dia: CR$ 8,28.

Navi Annatnas saiu da bolsa satisfeito. Satisfeito mas assustado.

Enquanto caminhava pela Praça XV, em direção à Sete de Setem-

bro, ele acendeu um legítimo cubano H. Upmann. Sentiu um frio na

espinha ao se lembrar de que o parque industrial das Forjas Cru-

zeiro do Norte era apenas um terreno na periferia de Caxias do Sul,

em meio ao qual, sob um telheiro carcomido, repousavam, inertes,

quatro ou cinco máquinas enferrujadas.

Desculpe-me, caro leitor, mas o desfecho desse roman à clef você

só vai saber na segunda parte desta crônica.

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Lição 16: Roman à clef (segunda parte)

No pregão que se seguiu ao do lançamento em bolsa das Forjas Cru-

zeiro do Norte, quase não houve negócios com o papel. Pois a ação

grudou no limite de alta, Cr$ 9,11, 10% acima do fechamento da

véspera.

Sem vendedores (alguns exagerados comentavam que a cotação

iria a Cr$ 20,00), o mercado simplesmente parou. Mas no banheiro

e na sala do cafezinho surgiram alguns negócios, por baixo do pano,

a Cr$ 10,02, limite de alta do dia seguinte. Diversos boletos foram

preenchidos e assinados nesse preço.

Como Cr$ 10,00 é um valor redondo, no terceiro dia de transa-

ções da Cruzeiro do Norte, que caiu numa segunda-feira, o mercado

não permaneceu no limite o tempo todo. Mas ficou próximo, ora indo

a Cr$ 10,02, ora sendo negociado a pouco abaixo de dez cruzeiros.

Isso já era esperado por Navi Annatnas. Pois, na bolsa, núme-

ros redondos costumam ser difíceis de superar. Esses obstáculos são

chamados de resistências, pontos nos quais surgem muitos vende-

dores, gente que dissera ao comprar: “A dez, eu vou vender”.

Uma vez transpostas, essas resistências tendem a se tornar su-

portes, níveis em que o preço bate pique e ricocheteia para cima.

Mas, ao longo de toda aquela semana, as Forjas não apresentaram

uma tendência definida. Trabalharam ao redor dos dez cruzeiros,

“acumulando”, que é como são definidas essas paradas nas quais o


119
mercado recupera o fôlego antes de voltar a subir.

A Cr$ 10,00, os profissionais que haviam comprado as Forjas a

preços menores passaram a oferecê-los aos clientes. Também nesse

patamar, Navi, atuando diretamente no pregão, ou usando outras

sociedades corretoras, desovou 20 milhões de ações de sua carteira.

Finalmente, após essa, digamos, “saudável realização de lucros”,

o papel retomou a trajetória de alta, passando dos Cr$ 11,00, com o

surgimento de novas levas de compradores.

No segundo dia da terceira semana de negócios, o preço voltou a

colar no limite de alta, agora de Cr$ 12,21. Percebendo a força do

mercado, Navi Annatnas não fez nada. Preferiu aguardar o pregão

seguinte, oportunidade em que vendeu mais dez milhões de ações,

também no limite, agora de Cr$ 13,34. Tudo corria dentro do pre-

visto, mas faltava ainda um lote grande (55 milhões de ações) para

completar o lançamento.

Como havia diversas IPOs ocorrendo simultaneamente nas bol-

sas do Rio e de São Paulo, seria preciso um fato novo para que os

especuladores mantivessem seu foco concentrado na Cruzeiro do

Norte. Por isso, Navi decidiu promover uma visita dos profissionais

mais influentes do mercado financeiro às instalações da empresa

em Caxias do Sul. Resolveu expor seu plano a Jadilson Maputo, que

estava a par de toda a putaria.

“Você ficou maluco, Navi?”, Jadilson se surpreendeu com a ideia.

“Se a empresa não existe, é só um telheiro no fundo de um quintal,


120
como é que você quer levar o pessoal lá? Está querendo ir para a

cadeia? Eu sei que no Brasil ninguém vai (o Sérgio Moro nem tinha

nascido), mas assim também é demais.”

“Confie em mim, Meu Puto. Lembre-se de que a história não fala

dos covardes. Vou passar uma semana no Sul. Enquanto isso, vo-

cês trabalham o papel no pregão. Não precisam vender muita coisa,

mas, pelo amor de Deus, não deixem o preço cair. Em Caxias do Sul

eu vou cuidar da visita. Pode confiar. Ainda não estou senil.”

Em cinco dias de viagem, Navi tomou uma série de providências

no Rio Grande do Sul. De lá, telefonou para Jadilson:

“Pode organizar a lista dos visitantes das Forjas. Eu já arran-

jei tudo por aqui. Garanto a você que ninguém vai se decepcionar.

Aliás, já tomei a iniciativa de fretar um Boeing 727, com quase 120

lugares. Vamos sair do Rio no sábado, 27 de fevereiro, às oito da

manhã. Estaremos de volta no domingo, dia 28, à noite. O avião vai

parar em São Paulo para pegar o pessoal de lá.”

Jadilson Maputo não se sentiu muito confortável enquanto fazia

os convites, pois continuava com medo de que alguma coisa desse

errado. Isso não o impediu de caprichar na lista. Se o Boeing caísse,

as instituições financeiras do Rio e de São Paulo perderiam a fina

flor de seus executivos, operadores e analistas. Os principais espe-

culadores das duas cidades morreriam também.

Quando regressou ao Rio de Janeiro, Navi revelou a Jadilson os

detalhes de seu plano. E assim, no dia e na hora marcados, o avião


121
partiu, levando do Rio mais de 60 convidados. Quarenta e cinco mi-

nutos depois, pousou no aeroporto de Congonhas, onde outros 40

subiram a bordo. Um pouco mais tarde, enquanto voavam para o

Sul, Annatnas, copo de uísque na mão, passeava sua simpatia pelo

corredor da aeronave, conversando com os convidados.

A duração do voo entre São Paulo e Caxias do Sul estava prevista

para uma hora e meia. Mas, faltando 15 minutos para o horário de

chegada, Navi dirigiu-se à cabine de comando. Regressou logo de-

pois, dirigiu-se à galley dianteira e se apossou do microfone do PA

(Passenger Adresser) exclusivo dos comissários de bordo.

“Meus caríssimos convidados”, ele avisou, “tenho uma informa-

ção da qual vocês poderão não gostar muito. O comandante acaba

de me informar que o aeroporto de Caxias do Sul está fechado para

pousos e decolagens, por causa de uma rachadura na pista, conse-

quência de um deslizamento de terra ontem à noite.”

Um murmúrio de decepção ecoou entre os passageiros.

“Então, tive uma ideia”, prosseguiu Navi. “E o comandante a

aprovou. O avião irá fazer um sobrevoo baixo sobre as Forjas Cru-

zeiro do Norte, para que vocês possam ter uma dimensão do ta-

manho da empresa. Depois voaremos para Montevidéu, de onde

seguiremos de ônibus para Punta del Este. E lá passaremos o fim

de semana. Tudo, o hotel, a comida e as bebidas serão por conta

das Forjas Cruzeiro do Norte. Open bar, entendem? Ah!, lembro aos

queridos amigos que em Punta existe um cassino. E antes que um


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engraçadinho pleiteie, o prejuízo do jogo, se houver, sairá por conta

de cada um. E as garotas de programa também. Pois não tenho a

menor intenção de ser gigolado por marmanjos.”

O speech foi recebido com mais murmúrios, agora de sincera ale-

gria. Ninguém fazia a menor questão de visitar a empresa. Um so-

brevoo era mais do que suficiente. Quase todos os profissionais ha-

viam aderido à comitiva só pela farra. E a farra em Punta del Este

tinha tudo para ser muito melhor.

O Boeing começou a perder altura, enquanto perfazia um longo

semicírculo. Sempre ao microfone, Navi avisou que as Forjas iriam

passar à direita da aeronave. A maioria dos passageiros se deslocou

para aquele lado, obrigando o comandante, lá na frente, a dar uma

compensação no estabilizador horizontal.

Minutos mais tarde, dois enormes galpões, compridos e parale-

los, desfilavam sob as asas do jato. Quatro chaminés de tijolo pude-

ram ser vistas exalando espessas colunas brancas de fumaça. No

teto de um dos galpões, estava escrito “Forjas Cruzeiro do Norte”,

em garrafais letras brancas.

“Visto!”, proclamou Navi, em alto e bom som. “Agora vamos para

o Uruguai”. Na cabine de comando, enquanto reconduzia a aeronave

à altitude de cruzeiro, o comandante virou-se para o copiloto:

“Estranho”, perguntou, “aquela fábrica que o fretador do voo pe-

diu para sobrevoar baixo não era a Metalúrgica Horst Selke?

“Com certeza”, respondeu o copiloto. “Eu sou daqui da Serra


123
Gaúcha. Tenho até um tio que trabalha no alto-forno da Selke.”

“Então, por que será que estava escrito Forjas Cruzeiro do Sul no

teto de um dos galpões?”

“Cruzeiro do Sul? Eu li Cruzeiro do Norte. Achei até engraçado

pois Cruzeiro do Norte não existe.”

“É, pode ser. Eu devo ter visto errado. Cruzeiro do Sul ou do Nor-

te, achei esquisito. Só se a Horst Selke foi vendida. Mas, enfim, não

temos nada a ver com isso.”

“Por falar em estranheza”, disse o copiloto, “tudo é esquisito nes-

ta viagem. O despachante operacional, no Galeão, me garantiu, no

momento em que você preenchia o plano de voo no balcão do DAC,

que nosso destino seria uma surpresa para os convidados do freta-

dor. Que nenhum deles sabia que iríamos para Montevidéu. As pró-

prias comissárias foram instruídas a não dizer nada sobre o destino.

Parece que o pessoal aí atrás estava pensando que pousaríamos em

Caxias do Sul. Porra, será que ninguém sabe que o aeroporto de

Caxias não é homologado para o Dois Sete (Boeing 727)?”

A conversa dos pilotos foi interrompida por uma das aeromoças,

que surgiu na cabine de comando.

“Comandante, aquele passageiro desinibido, que parece ser o

chefe da comitiva, e que esteve aqui no cockpit agora há pouco, dis-

se, pelo sistema de som da cabine de passageiros, que o aeroporto

de Caxias estava fechado. O senhor não acha que fica mal para a

empresa esse tipo de brincadeira? Alguém poderia nos processar.”.


124
“Que nada, filhota. Deixa pra lá. Ninguém vai processar nin-

guém. Isso é coisa de ricaço. O cara está pagando o fretamento. É

isso que interessa. Esse pessoal aí de trás é da Bolsa. Lá só tem

bacana, gente que vive de jogatina. Nenhum deles trabalha. São

pessoas que gostam de emoções e de surpresas até na hora de fazer

uma viagem. Deixa pra lá.”

“Por falar em jogatina”, interrompeu o copiloto, “Carrasco (ae-

roporto de Montevidéu) está avisando que, logo que pousarmos, os

passageiros serão transferidos, na própria pista, para quatro ônibus

que os levarão a Punta del Este. De onde regressarão amanhã no

final da tarde. Você tem razão. É tudo coisa de jogador e de ricaço.

Hoje não vai ter puta pobre no Uruguai. Você não quer se habilitar,

querida?”, perguntou à comissária.

A moça não gostou nem um pouco do gracejo grosseiro e saiu ba-

tendo a porta da cabine.

Na guarita de entrada da Metalúrgica Horst Selke, depois que o

jato, após o voo rasante, sumiu no horizonte, indo para o Sul, um

guarda de segurança da empresa perguntou a um colega que acaba-

ra de chegar para rendê-lo no posto:

“Você viu aquele avião grande voando baixinho? Do jeito que ele

veio descendo, até achei que iria passar entre duas das chaminés.”

“Claro que vi. É o pessoal da televisão.”

“Que pessoal? Não estou sabendo de nada.”

“A fábrica vai aparecer numa novela. Por isso eles vieram filmar
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os galpões de cima. Você não viu que, anteontem, pintaram um le-

treiro no teto de um dos galpões? Isso é por causa das filmagens. Eu

só não sabia que iriam usar um avião tão grande. Pensei que fizes-

sem isso com helicópteros.”

Tal como Navi Annatnas estimara, a excursão a Punta del Este

foi um sucesso. Nenhum de seus mais de 100 convidados reclamou

de não ter visitado a fábrica. Pelo contrário.

“Ó, meu, puta fábrica, a Cruzeiro do Norte”, dissera-lhe na noite

de sábado um operador de pregão de São Paulo, debruçado sobre o

pano verde de uma das mesas de bacará do cassino Nogaró.

Depois que retornou ao Brasil, o pessoal da comitiva não poupou

elogios à Cruzeiro do Norte.

“Puta merda”, disse um operador ao outro, na segunda-feira, no

pregão da Bolsa do Rio, “tu precisa ver o tamanho da empresa. O

avião passou raspando, só pra gente poder enxergar direito. Sabe de

uma coisa? Cem milhões de cruzeiros de aumento de capital é pouco

para aquela fábrica. O patrimônio é enorme. Esse papel ainda vai

subir pra burro, vai dar muita alegria. Aliás, estou mesmo preci-

sando dar uma porrada. Levei o maior ferro na roleta em Punta del

Este. Peguei até dinheiro emprestado. Mas, apesar do desfalque, foi

ótimo. Há muito tempo que eu não me divertia tanto.”

Naquela segunda-feira, e nos dois pregões que se seguiram, a

ação da Cruzeiro do Norte, estimulada pela simpatia gerada pela

viagem ao Sul, bateu limite de alta. Navi Annatnas pôde vender o


126
restante do lote a 13,43, 14,77 e 16,35.

Movido pela inércia, e pela febre especulativa daquele ano de mi-

lagres nas bolsas brasileiras, mesmo com Navi Annatnas de fora, o

papel subiu até Cr$ 27.00.

Depois caiu. Caiu um pouco. Caiu muito. Caiu tudo. O que é mais

do que normal, já que não valia nada. Acontece que o resto dos pa-

péis da bolsa, mesmo empresas de primeira linha, negociadas até

hoje, caíram também. Muitas ao longo de toda a década de 1970.

Como escrevi antes, esta minha história é pura ficção e exagero.

Mas houve alguns casos parecidos que aconteceram de verdade. Eu

fui testemunha de vários, já que era floor trader lá no meio da roda.

Se alguém pesquisar na internet ou em uma biblioteca os jornais

da época, vai descobri-los um a um. Isso fez com que muita gen-

te, alguns hoje septuagenários ou octogenários, boa parte já morta,

nunca mais investisse em ações e perdesse ótimas oportunidades.

Passados quase cinquenta anos do bull market de 1971, penso

que o mercado hoje está livre desses assaltos a mão desarmada. De

uma coisa, eu posso ter certeza. Se aquele Boeing 727 tivesse mes-

mo decolado para Montevidéu, com certeza eu seria um dos passa-

geiros. E teria dado uma boa beliscada nas Forjas.

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Lição 17: Dos 10 aos 80 anos

Tal como os demais articulistas da Inversa, escrevo para leitores de

todas as idades. Quem vai ler o meu texto tanto pode ser um trader

iniciante e sonhador, que pretende ganhar seu primeiro milhão de

dólares antes dos 30 anos, como um investidor tarimbado, sofrido

na carne, cético ao extremo, vencedor em algumas pelejas, perdedor

em outras.

Há também aqueles totalmente realizados financeiramente que,

já tendo entrado na Terceira Idade (que não é a melhor, posso ga-

rantir), aspira apenas preservar o que já ganhou e ter um final de

vida sem sobressaltos.

Nesta crônica, vou falar das várias idades, não de meus leitores,

mas minhas. Como pensei, como agi, como ganhei, como perdi, como

encarei o mundo ao meu redor, como eu era aos 10, 20, 30, 40, 50, 60,

70 e agora chegando aos 80. Vou destacar principalmente o aspecto

renda e investimentos, mas sem deixar de lado outros tópicos que

foram importantes enquanto eu crescia e mais tarde envelhecia.

Aos 10 anos, assisti, ao lado de quase 200 mil pessoas, o Maraca-

nazo, derrota do Brasil para o Uruguai, por 2 a 1, na final da Copa

do Mundo de 1950, tragédia que perdeu muito de sua importância

quando sobrevieram os 7 a 1 do Mineiraço, 64 anos mais tarde, que

tive a sorte de não presenciar ao vivo.

Mas, voltando ao Maracanazo, eu estava sentado, junto com


128
meus pais e minha irmã, na fila L do setor 1 das cadeiras cativas.

Lembro bem de um grupo de torcedores uruguaios violando, com

sua legítima vibração, o silêncio que se apossou do Maracanã quan-

do a Celeste fez o segundo gol. Recordo até o número da placa do

carro no qual fomos ao estádio, DF 50-60, um Chevrolet 1936 que

pertencia ao meu tio Alcindo.

Naquela época, eu já era investidor. Compulsório, diga-se a bem

da verdade. Meu pai depositava todos os meses, em meu nome, um

dinheirinho na caderneta da Caixa Econômica (era uma caderneti-

nha mesmo, onde o caixa da Caixa fazia as anotações), que rendia

6% fixos ao ano e que a inflação iria comer. Evidentemente que eu,

nem ninguém, sabia disso. Mas, como todo garoto de 10 anos que se

preze, teria preferido aqueles cruzeiros em cash para comprar uma

Coca-cola ou um Chicabon.

Mil novecentos e sessenta. Aos 20 anos, eu morava em Belo Ho-

rizonte, para onde minha família se mudara. Tornara-me um rapaz

rico, sem que meu pai o fosse e sem ter recebido nenhuma herança.

O Brasil vivia os “cinquenta anos em cinco” do governo JK e eu

ganhava uma nota preta como operador de câmbio. Tanto é assim

que tinha sempre dois ou três carros, sendo um deles de corrida, e

um monomotor Cessna 180, prefixo PP-ATD (Alfa Tango Delta, para

os iniciados).

Ah, um detalhe. Morando com meus pais, eu tinha casa, comi-

da e roupa lavada. O dinheiro das comissões do câmbio ia para ex-


129
travagâncias, como assistir a todos os jogos do Fluminense, mesmo

morando em BH e o Flu jogando no Rio. Tinha até um cartão espe-

cial da Vasp, pagando as passagens mensalmente, através de uma

fatura.

Sempre adiava meu sonho de infância de ser piloto comercial.

Não dava para largar o emprego de operador de câmbio da H. H.

Picchioni, corretora onde eu era, regiamente, comissionado.

Por mais que gastasse, sempre sobrava alguma coisa no final do

mês. Eu aplicava esse saldo em apólices do governo de Minas Ge-

rais, notas promissórias da Cia. Siderúrgica Mannesmann e mo-

edas de ouro que guardava em uma caixa de sapatos em cima do

armário de meu quarto. Acumulara mais de 100 delas, entre libras,

dólares, pesos mexicanos, xelim austríaco, tudo de ouro.

Um dia, as moedas, que hoje valeriam uma fortuna (o ouro era

cotado a US$ 36,50 a onça naquela época), foram furtadas. Como

havia uma roda de pôquer lá em casa, só de meus amigos, um dos

jogadores deve tê-las roubado. Suspeitei de dois deles, mas jamais

revelei seus nomes a ninguém, pois não podia ter certeza. Mas parei

com a jogatina e até hoje lamento a perda de boa parte de minhas

economias.

Trinta anos de idade. Eu me casara com minha primeira mulher

em 1966 e me mudara para Nova York, onde estudei mercado de

capitais na NYU. Voltara para o Brasil em 1967, trabalhando na fi-

nanceira Decred, no Rio de Janeiro, ganhando dez salários mínimos


130
por mês, fora duas gratificações anuais.

Em outubro de 1968, recebi uma oferta de emprego para ganhar

dez vezes mais: 100 salários. E não é que a Decred cobriu a oferta,

pagando os mesmos 100? Achei que nunca conseguiria gastar tanto

dinheiro. Só que rapidamente me habituei ao novo padrão de renda.

Entre outras coisas, troquei meu Gordini por um Galaxie 500.

Durante a Copa do Mundo de 1970, embora eu estivesse lá no

México, assistindo aos jogos, continuava ganhando, no mercado de

ações da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, uns US$ 8 mil (dólares

de 1970, bem entendido) por dia. Sim, por dia. Falando com o pre-

gão da bolsa através do telefone da piscina do hotel Camino Real na

Cidade do México.

Pela terceira ou quarta vez estava enricando. E ainda tinha mui-

to mais para ganhar, pois o bull market de ações de 1971 estava em

seus prolegômenos.

Estamos agora em 1980 e já sou quarentão. Depois de ter morado

numa cobertura na beira da praia, em Ipanema, me mudara para

uma casa em um condomínio de classe média no Alto da Boa Vista,

da qual saí quando terminou o primeiro casamento.

Tudo que eu tinha, perdera no dia 11 de maio de 1977, quando

o Banco Central interveio no Banco Independência Decred, cujos

CDBs eu vendera para meus clientes, os quais reembolsei de meu

bolso, um a um. Fiquei duro feito um coco.

Depois de um ano sabático, e outro trabalhando como diretor


131
financeiro e administrativo de uma empresa pública estadual, ga-

nhando uma mixaria, eu conseguira um emprego de operador de

open market numa distribuidora do Rio.

Já casado com minha segunda mulher, morávamos num apar-

tamento alugado na Barra da Tijuca. Não posso dizer que ganhava

mal no open, mas gastava muito. Além disso, especulava em opções

e ganhava. Especulava em opções e perdia. Ficava nesse vaivém.

Outros dez anos se passaram. Já chegamos a 1990. Aos 50 anos

de idade, acabo de sair de uma depressão profunda que durou 18

meses. Fui tratado, e curado, por profissionais.

Eu me tornara um trader internacional, operando futuros e op-

ções os mais diversos nas bolsas de derivativos de Nova York e Chi-

cago. Só aceitava clientes ricos e dispostos a assumir riscos imensos

para tentar retornos colossais, o que acabou acontecendo em 1988,

no bull market dos grãos.

Morando, e pagando aluguel, num belo apartamento de praia, na

Barra, e indo a Nova York e Chicago como quem vai a São Paulo, eu

não queria saber de investimentos tradicionais: ações, títulos de ren-

da fixa, fundos, nada disso. Achava muito monótonos. Meu negócio

era dar, ou levar, porradas. Dei algumas, levei outras. Num dos acer-

tos, comprei um apartamento, onde moro até hoje com minha mulher.

Os três filhos e os três netos estão cada um em um lugar do mundo.

Em 2000, com a chegada do novo milênio, o trader Ivan Sant’Anna

morrera. De suicídio. Dera lugar ao escritor Ivan Sant’Anna, um


132
recém sexagenário que já publicara quatro livros, sendo dois deles

best-sellers: Rapina e Os mercadores da noite. E escrevia Caixa-pre-

ta, que ficaria na lista dos mais vendidos durante sete meses.

Se antes especulara em bolsas e futuros, desde 1996 trocara os

números pelas letras. Talvez por teimosia, já que diversas pessoas

haviam dito que era impossível viver de literatura no Brasil e eu

estava conseguindo. Às vezes mal e porcamente, mas conseguindo.

Chegamos em 2010. Eu me tornara roteirista da TV Globo, es-

crevendo episódios das séries Carga Pesada e Linha Direta. Era

o responsável pela coluna Bulls & Bears, publicada pela Resenha

BM&F. Concorrendo com mais de 200 escritores americanos, me

debruçara sobre os atentados de 11 de setembro, resultando no livro

Plano de ataque, cuja primeira edição se esgotou em duas horas.

Algum tempo depois, pesquisando em Londres, em parceria

com um jornalista da ITV e uma ex-funcionária da corregedoria da

Scotland Yard, descobri a farsa do assassinato do eletricista brasi-

leiro Jean Charles de Menezes na estação de Stockwell, no metrô

londrino. Dois anos mais tarde, permaneci várias semanas na fron-

teira do Paquistão com o Afeganistão pesquisando a Al-Qaeda e o

Talibã.

Nos últimos anos, me tornei um investidor cauteloso. Os tempos

de aventura no mercado ficaram para trás. Só vou na certa. Meu

maior patrimônio são os direitos autorais e de filmagem dos livros

que escrevi, que deverão sustentar, com um mínimo de conforto e


133
dignidade, a mim e a minha mulher até que a gente se vá.

Minha recomendação a você, caro leitor, é simples. Poupe, poupe

todos os meses, não importa o que acontecer. Pague a si mesmo um

dízimo e o invista em um ativo seguro. Jamais confie no governo,

pois ele fatalmente irá lhe deixar na mão. Muito menos confie numa

caixa de sapato.

134
Lição 18: Investindo na própria morte

Durante a fase de pesquisas dos quatro livros que escrevi sobre tra-

gédias aéreas (Caixa-preta, Plano de ataque, Perda total e Voo cego),

entrevistei um incontável número de pessoas, principalmente viú-

vas e filhos de vítimas fatais, gente que, da noite para o dia, se viu

privada de sua principal fonte de subsistência, o salário do marido

ou do pai, fossem estes passageiros ou integrantes das tripulações.

É verdade que cônjuges e dependentes das pessoas que morrem

em desastres de aviação têm direito a indenizações. Mas o valor

dessas reparações financeiras não é negociado com as companhias

aéreas operadoras do avião sinistrado, que têm apólices de seguros

contra danos a terceiros, inclusive indenizações morais.

A negociação, é preciso que se diga, se dá com tarimbados advo-

gados das seguradoras, profissionais que costumam tirar partido da

notória lentidão da Justiça brasileira para obter acordos vantajosos

para suas empresas clientes.

No início da tarde de quarta-feira de 11 de julho de 1973, um

Boeing 707 345C da Varig, prefixo PP-VJC, procedente do aeroporto

do Galeão, no Rio de Janeiro, com destino a Paris e Londres, pegou

fogo quando se aproximava do aeroporto de Orly, na capital france-

sa. Simplesmente não deu para alcançar a pista.

Embora os pilotos, comandantes Antônio Fuzimoto e Gilberto

Araújo da Silva, tenham conseguido pousar a aeronave em uma


135
plantação de repolhos próxima à localidade de Saulx-les-Chartreux,

apenas oito quilômetros a sudoeste da cabeceira do aeroporto, e a

poucos minutos de trajeto das viaturas de socorro, o incêndio que

se seguiu foi tão devastador que 116 dos 117 passageiros morreram

intoxicados ou queimados. Entre os mortos, o jornalista Celso Leite

Ribeiro, de O Estado de S. Paulo.

Maísa, viúva de Celso, não tinha emprego nem fonte própria de

renda, o que ainda era muito comum entre as mulheres naquele

início dos anos 1970. Na verdade, ela nem sabia direito onde e como

o marido movimentava sua conta bancária, além de jamais ter pre-

enchido um cheque na vida, totalmente dedicada às tarefas de dona

de casa e de mãe das duas filhas do casal, de 15 e 13 anos.

Sendo as três dependentes do salário de Celso, que cessou com o

desastre, Maísa se viu obrigada a aceitar, sem contestação – que só

poderia ser materializada através de um custoso e demorado pro-

cesso judicial −, o pequeno valor que lhe foi oferecido a título de

indenização.

Felizmente, ela conseguiu reconstruir sua vida. Obteve um em-

prego no departamento comercial de uma editora e mais tarde ca-

sou-se de novo. Mas tudo teria sido muito mais fácil se Celso Leite

Ribeiro tivesse feito um seguro particular.

Com dinheiro no bolso, para se sustentar durante o longo proces-

so judicial, Marisa poderia ter acionado a Varig e a Boeing, respec-

tivamente operadora e fabricante da aeronave sinistrada, e recebido


136
uma polpuda indenização, até mesmo através de um acordo extraju-

dicial, o que é comum nessas situações.

Junto com a compra de casa própria, fazer um seguro de vida

deve ser uma das primeiras providências de uma pessoa que tem

dependentes, principalmente se entre eles há crianças, adolescen-

tes ou jovens universitários.

Há um “atrativo” extra. A maioria das apólices de seguro de vida

paga indenização em dobro quando a morte do segurado se dá por

acidente, casos em que a família, tal como escrevi acima, é pega to-

talmente desprevenida.

Meu avô materno, Waldemar Lisboa de Avellar Andrade, morreu

em 1932, de um fulminante ataque cardíaco. Tinha apenas 49 anos

de idade. Deixou viúva minha avó Dolores, que jamais trabalhara

fora de casa, quatro filhos que ainda estudavam e uma pensão men-

sal no limite da linha de subsistência.

Como não tinha casa própria – vovô Waldemar pagava aluguel –,

a família ficou quase à míngua. Minha mãe, aos 22 anos de idade,

teve de abandonar seu sonho de fazer universidade – pretendera

ser médica – e foi trabalhar como tradutora da RKO Pictures, le-

gendando filmes. Todo fim de mês ela entregava o salário para vovó

Dolores. Seus três irmãos tiveram de se dividir entre o trabalho e os

estudos para também ajudar no sustento da casa.

Cinquenta e nove anos mais tarde, em 1991, quando o mundo já

era outro, minha mulher e eu, ao regressarmos de uma viagem ao


137
exterior, ficamos sabendo do falecimento de um amigo muito chega-

do. Durante uma cirurgia, tida como descomplicada, o coração não

resistiu e ele morreu na mesa de operações.

Fomos logo visitar a família, mulher e duas filhas que tínhamos

visto crescer. Tal como nos casos de minha avó e da viúva do desastre

de Orly, a morte do marido e pai as pegara totalmente de surpresa.

A companhia da qual ele era engenheiro se limitou a pagar dois

ou três salários, além de férias e décimo terceiro proporcionais. Elas

receberam também o FGTS e o PIS. E ficou nisso. Comeram o pão

que o diabo amassou até que, felizmente, cada uma das três, com

muita garra, ajeitou sua vida.

Nessas ocasiões, e geralmente só nelas, é que se percebe a impor-

tância de um seguro. A morte do provedor ou da provedora da casa

deixa os dependentes totalmente sem rumo. É como se lhes tirasse

o chão sob os pés.

A esta altura do texto, o caro amigo leitor deve estar supondo que

nunca deixei de manter minha família amplamente protegida pelo

cobertor de um seguro. Não, lamento dizer que não fiz isso. Com ex-

ceção dos seis anos em que trabalhei como roteirista na Rede Globo

de Televisão, que segura todos os seus funcionários, sempre deixei

meus dependentes descobertos, embora não totalmente porque mi-

nhas duas mulheres sempre trabalharam.

Em meus quase 80 anos de existência, sofri dois acidentes de

avião, um de paraquedas, incontáveis quedas de motocicleta, uma


138
de cavalo, que me rachou o crânio, e grande número de desastres de

automóvel, um deles seriíssimo, no qual me arrebentei todo, ficando

entre a vida e a morte durante várias semanas.

Ao pesquisar para a elaboração de meu livro Carga Perigosa,

viajei de carro para a Bolívia. Percorri estradas clandestinas, as

chamadas cabriteiras, na fronteira seca com o Brasil, em busca de

ladrões de carga e de caminhões e de laboratórios de fabricação de

cocaína.

Seis anos antes, para escrever meu primeiro livro, Rapina, fui

ver como funcionava o tráfico de drogas no morro do Borel, na Tiju-

ca, Zona Norte do Rio de Janeiro.

No outono (do Hemisfério Norte) de 2008, viajei ao Paquistão

para colher material para uma ficção. Uma semana antes de mi-

nha partida, terroristas islâmicos ligados a Al-Qaeda explodiram o

Hotel Marriott, na capital do país, Islamabad, no qual eu tinha re-

serva, causando a morte de 54 pessoas e ferimentos em quase 300.

Mesmo assim, mantive a programação, quem sabe estimulado

por algum tipo de deformação profissional, típica de jornalistas, cor-

respondentes de guerra e autores de livro-reportagem, deformação

essa que me compele a estar na hora certa para as minhas pesqui-

sas e na hora errada para a minha segurança pessoal.

Nessa mesma viagem, após eu ter me hospedado no Hotel Pearl

Continental, em Peshawar, capital da província de Khyber Pakh-

tunkhwa, à época considerada por alguns como a cidade mais peri-


139
gosa do mundo, o hotel também foi explodido por terroristas, só que,

nessa segunda ocasião, do Talibã. O ataque matou 18 hóspedes e

empregados e feriu outras 55 pessoas.

Na fronteira afegã-paquistanesa, visitei diversas áreas tribais

onde prevalecem leis locais. Fui atrás de plantações de papoula, ma-

téria-prima do ópio e da heroína. Entrevistei bandidos armados de

submetralhadoras Kalashnikov AK-47. Tudo isso, para enriquecer e

dar legitimidade à minha narrativa.

Se as seguradoras não quisessem me vender uma apólice, isso

seria mais do que normal. O que não é normal é que eu jamais tenha

procurado uma delas, em busca de seus produtos.

Para quem tem dependentes, principalmente menores de idade,

não existe investimento mais importante do que seguro de vida.

Como não fiz isso, espero não ser imitado em minha grave omissão.

Como a morte é uma das poucas coisas que podem ser consideradas

como certas, invista nela.

140
Lição 19: A farra da Bolsa

Em janeiro de 1967, quando era operador de pregão da Bolsa de Va-

lores do Rio de Janeiro, fiquei sabendo que iria sair um decreto-lei

(naquela época o governo militar podia legislar por decreto) através

do qual os contribuintes poderiam destinar 10% de seu imposto de

renda a pagar na compra de ações de empresas de capital aberto.

Eu não tinha muito dinheiro, mas podia comprar ações a termo,

para pagar numa data futura, mediante um pequeno depósito (mar-

gem) de garantia. Esse tipo de alavancagem era, e continua sendo,

praticado nas bolsas de valores e derivativos em todo o mundo.

É o que faz as pessoas ganharem e perderem fortunas nos merca-

dos. É também o que dá lucro aos brokers, porque os especuladores

compram e vendem lotes muito maiores do que aqueles que negocia-

riam se operassem somente à vista.

Voltando ao meu caso naquela ocasião, após saber da notícia

mergulhei de cabeça nas ações. Comprei tudo que podia e, para ser

franco, o que não podia também.

Na sexta-feira de 10 de fevereiro de 1967, um dia útil quase mor-

to, espremido entre a Quarta-feira de Cinzas e o fim de semana,

saiu o Decreto-lei 157. Imediatamente as cotações dispararam, ini-

ciando uma alta que iria durar três anos e meio.

Dizer que ganhei dinheiro nesse bull market é pouco. Simples-

mente me empanturrei. Fiquei até sem saber o que fazer com ele.
141
Não só eu como meus colegas da Bolsa.

Iniciara-se naquela sexta pós-Carnaval mais uma era de irres-

ponsabilidade, de loucura e de ganância desenfreada. Cada profis-

sional queria ganhar mais do que o outro.

Diversos fundos de investimento foram criados para administrar

os recursos do decreto-lei 157. E a coisa funcionava de uma maneira

tão simples quanto indecorosa. Quando uma compra se revelava de-

sastrosa, era lançada no Fundo 157.

Os investidores que, Brasil afora, acreditaram no incentivo, pa-

garam o pato. Enquanto isso, os profissionais do mercado ganhavam

verdadeiras fortunas.

Não era incomum que às sextas-feiras, após o fechamento do pre-

gão, os operadores de bolsa se entregassem a extravagâncias tais

como viajar, na primeira-classe de um Boeing 707 da Varig, com

a mulher ou com a namorada, para Roma, no sábado ir com ela

ao Vaticano, entrar na Capela Sistina, olhar rapidamente para os

afrescos de Michelangelo no teto e exclamar: “Visto!”.

À noite, os dois pombinhos comiam e bebiam do bom e do melhor

na Via Veneto. No domingo, voltavam para o Rio, ele já pensando

nas novas oportunidades (para não dizer “ladroagens”) que os fun-

dos 157 proporcionavam.

Naqueles tempos gozosos, um prestigiado colunista social do Rio

nutria nítida antipatia pelos “gravatinhas”, que é como o jornalista

se referia ao pessoal da Bolsa.


142
“Sábado”, escrevia ele, “um grupo de gravatinhas foi visto liqui-

dando potes e mais potes de caviar Beluga no Le Bec Fin, devida-

mente regados com Cristal Brut. E, para horror dos habitués, os

bem-aventurados disputaram a conta no jogo de palitinhos”. Jogo de

palitinhos, ou, no popular, porrinha…

Eu, Ivan Sant’Anna, não disputei caviar nem champanha desse

modo. Mas costumava disputar fretes de jatinho. Isso mesmo, você

leu direito, fretes de jatinho.

Como eu tinha o hábito de assistir a todos os jogos do Fluminen-

se, fossem onde fossem, às vezes ia de avião fretado junto com um

grupo de amigos tricolores. Todos da Bolsa, é claro. Na volta para o

Rio, decidíamos nos paus de fósforo quem pagava o voo. Assim eram

duas emoções, a do jogo de futebol e a do jogo do avião.

Certo fim de semana, o Fluminense enfrentaria, no domingo, o

Internacional, no Beira-Rio, em Porto Alegre. Ao final do pregão de

sexta-feira, fui reunir a turma de sempre para voarmos para lá. Só

que, dessa vez, surgiram muitos interessados. Não havia jatinho

que coubesse. Fretamos, então, um Boeing 737 da Vasp.

Foi gente que nem era torcedor do Flu, outros que não gostavam

de futebol. Alguns nem chegaram a ir ao estádio. Passaram a tarde

gaúcha no randevu da Mônica, com seu legendário quarto de espe-

lhos (juro que fui ao jogo).

A bolha especulativa terminou em junho de 1971. Ao contrário

dos Estados Unidos em 1929, não houve um crash, nem Black Tues-
143
day, Black Friday ou Black whatever. Não houve manchetes de jor-

nais, tipo “Pânico na Bolsa do Rio”.

As cotações simplesmente chegaram a um topo, ficaram paradas

lá em cima durante alguns dias e começaram a cair. Não despenca-

ram. Apenas caíram, de mansinho, disfarçadamente. A queda du-

rou uma década.

Se não tivesse havido tanta ganância desonesta e irresponsável

naqueles tempos, o Brasil seria um país muito melhor hoje em dia.

Os fundos 157 foram uma ideia engenhosa. Bem administrados e

fiscalizados, permitiriam que a classe média criasse o hábito de se

tornar acionista das grandes empresas.

Fosse esse o caso, o Brasil, tal como acontece nos Estados Unidos

e no Japão, só para citar dois exemplos onde as pessoas aplicam

suas economias nas bolsas de valores, teria se tornado um país onde

ser rico não seria considerado uma imoralidade.

Réu confesso de cumplicidade na ausência de ética reinante na-

quela época, tive a oportunidade de me redimir de meus pecados. No

dia 11 de maio de 1977, o grupo financeiro do qual eu participava

foi liquidado pelo Banco Central. Eu havia vendido certificados de

depósito bancário (CDBs) e letras de câmbio desse grupo a diversas

pessoas e empresas.

Embora não tivesse obrigação legal de fazer isso, decidi pagar

de meu bolso o prejuízo de todos os clientes. Lembro-me dessa data

como se fosse ontem. Cheguei em minha casa à noite, sentei à mesa


144
de jantar e fiz contas. Constatei que tinha dinheiro para pagar as

perdas dos clientes, embora meu patrimônio fosse cair quase a zero

(só sobraria a casa).

Perguntei à Marília, com quem eu era casado, o que ela achava

dessa minha decisão. Ela concordou. Isso me deu enorme alívio. Al-

guns dias mais tarde, zerei o prejuízo de todos pelos quais eu me

julgava responsável.

Curiosamente, nenhum deles jamais voltou a investir comigo,

embora eu tenha continuado trabalhando no mercado por mais 18

anos. No início, senti raiva do que julguei ser uma ingratidão. De-

pois percebi que eles estavam certos em não querer depender da boa

vontade de uma pessoa física, quanto mais um gravatinha da bolsa,

para garantir seus investimentos.

Se você ficou indignado com algumas histórias contadas nesta

crônica, fique sabendo que a minha intenção, ao escrevê-la, era jus-

tamente essa. Eu queria mostrar que o mercado de capitais evoluiu

moralmente e tornou-se muito mais justo e ético.

O avanço que mais me sensibiliza é saber que um pequeno in-

vestidor, residente, por exemplo, em Pimenta Bueno, no estado de

Rondônia, pode acessar o mercado através de seu laptop, tablet ou

smartphone e dar uma ordem de compra ou de venda no mercado

futuro de mini Ibovespa ou de qualquer outro ativo negociado nas

bolsas brasileiras.

Sua ordem terá prioridade cronológica. Isso seria impensável nos


145
anos 1960 e 1970, tempos da farra da Bolsa, onde uma enorme le-

gião de poupadores inocentes pagava o caviar, a champanhe e as

viagens ao exterior dos brokers e traders só porque eles eram privi-

legiados gravatinhas.

146
Lição 20: Corner, o trade perfeito

Todo operador que conhece profundamente a história dos diversos

mercados torce para participar de um corner. Ou melhor, participar

do lado certo. Pois quem é “corneado” (no sentido mercadológico,

bem entendido) geralmente vai à falência ou, no mínimo, sofre um

prejuízo colossal. Quem “corneia”, costuma dar a grande tacada de

sua vida.

Para quem não está muito familiarizado com esse tipo de ope-

ração, deixe-me explicar. Corner é quando alguém, ou um grupo de

pessoas, está comprado em algum ativo no mercado em número su-

perior ao existente daquele ativo.

Por exemplo, você adquire um lote de debêntures de determinada

empresa em quantidade maior do que as debêntures existentes da-

quela série. Nesse caso, para o tresloucado vendedor, só haverá uma

solução: comprar de você para entregar para você. Portanto, o preço

será aquele que você decidir.

O corner mais famoso de todos os tempos aconteceu entre o ou-

tono (do Hemisfério Norte) de 1979 e o início do ano de 1980. Teve

como palco o mercado de prata da Comex, uma das bolsas de futuros

de Nova York. Eu conto essa história na Quinta Parte de meu livro

Os Mercadores da Noite.

Os riquíssimos irmãos Hunt, do Texas, dois dos maiores especu-

ladores dos Estados Unidos, segundo seus próprios e elaborados cál-


147
culos, estavam comprados em contratos futuros de prata em quan-

tidade maior do que toda a prata existente no mundo. Ou seja, os

vendidos teriam de comprar prata dos próprios Hunt para entregar

aos irmãos no vencimento dos contratos.

A operação só não deu certo para os Hunt porque a Comex ape-

lou para o tapetão. Valendo-se de um dispositivo de seus estatutos,

determinou que ninguém poderia aumentar suas posições. Fez mais

do que isso. Forçando a barra, aumentou drasticamente as margens

dos comprados, e apenas dos comprados. Por isso, e só por isso, o

corner fracassou.

***

Quando, no final da década de 1960, eu me iniciei como floor trader

da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, à época a bolsa mais impor-

tante do Brasil, resolvi copiar aqui uma prática que conheci quando

estagiara na New York Stock Exchange. Tornei-me especialista em

uma ação, mais precisamente a Ducal Roupas, empresa comercial

e industrial que fazia parte do conglomerado no qual eu era diretor

na área financeira.

Tal como explico em meu livro 1929, os especialistas de determi-

nado papel dão liquidez a ele. Ou seja, têm sempre um bid and ask.

Com um spread meio largo, mas têm.

Como, entre uma especulação e outra, os floor traders da BVRJ


148
às vezes ficavam com algum recurso disponível, eu espalhei pelo

pregão que a Ducal subiria um centavo por dia e teria um spread

também de um centavo.

“Compro a 42 centavos e vendo a 43”, eu apregoava na segun-

da-feira. “Compro a 43 e vendo a 44”, era o bid and ask da terça.

Quarenta e quatro com 45 na quarta. Quarenta e cinco com 46 na

quinta. E assim por diante.

No início, o pessoal ficou desconfiado. Mas logo a Ducal Roupas

tornou-se a poupança dos floor traders, entre uma especuleta e ou-

tra. Como eu vendia mais papéis do que comprava, a empresa ficou

com seu capital muito diluído. Até que determinado dia um diretor

da Ducal me procurou e disse: “Ivan, você vendeu ações demais”.

“Ih, caramba, nós perdemos o controle acionário da companhia”,

eu fiquei preocupado. Mas não muito. Afinal de contas, acabara de

vir dos Estados Unidos, onde o controle das empresas às vezes é

exercido com apenas 4% ou 5% das ações, tal a pulverização dos

papéis.

“Acho que não está me entendendo, Ivan”, o diretor muniu-se de

paciência. “Você vendeu mais ações do que o capital da empresa.

Estamos entregando papéis sem lastro. Eu descobri isso ontem. Vai

ter de comprá-los de volta.”

Gelei até o tutano dos ossos. Realizara um corner suicida e eu

era o corneado. Àquela altura, a Ducal Roupas estava sendo cotada

a 2,01 para compra e 2,02 para venda, ou algo parecido. Se o pesso-


149
al do pregão desconfiasse do corner, logo surgiriam compradores a

2,50, 3,00, 3,50. O céu seria o limite. Eu pusera em risco um conglo-

merado que empregava mais de 20 mil pessoas, em vários estados

brasileiros. Por pura invencionice.

Pedi encarecidamente ao diretor que me alertara sobre o fato

para não comentar nada com ninguém, nem mesmo com o nosso

presidente, e parti para uma tática camicase.

Após uma noite em claro povoada de pesadelos mesmo acordado,

na manhã seguinte, assim que abriu o pregão, um dos “poupadores”

se acercou de mim. “Qual é o spread de hoje?”, ele esperava algo

como 2,03 com 2,04.

Com a maior cara de pau de meus longos anos de mercado, res-

pondi: “Ducal Roupas? Tô fora. Deixei de ser especialista. O merca-

do agora é livre”.

Devo ter nascido virado para a lua porque meus melhores desíg-

nios se realizaram. “O filho da puta do Ivan largou a Ducal. Tá um

barata-voa lá no posto. Tem vendedor a 1,50. Sem comprador.”

Se eu entrasse comprando naquele nível, poderia até ser lincha-

do. Mas, tal como muitos operadores da época, Ivan Sant’Anna tinha

seu laranja. Ele se chamava Jerônimo (o nome aqui é falso), amigo

e parceiro de várias paradas (algumas não muito éticas, confesso).

Contei tudo para o Jerônimo, prometi-lhe um belo “bicho” e com-

binei que ele seria o comprador. Em dois ou três pregões, a Ducal

estava safa, fora o belo lucro que realizamos na operação.


150
Foi o único corner do qual participei. Do lado errado, é verdade,

mas vitorioso. Enchi as burras de dinheiro. Por mais alguns meses

continuei negociando no pregão da bolsa. Sem nunca mais operar a

Ducal Roupas. Quem ficou com raiva naquela época acabou perdo-

ando, pois quase todo mundo fazia das suas.

Se algum de vocês, caros leitores, conhece alguém que operou

no pregão da Praça XV, 20, no final dos anos 1960 e início dos 1970

(deve ser um velhinho entre 70 e 85 anos), ele vai se lembrar do

episódio, assim como de outros insólitos que aconteceram naquela

ocasião, época em que se amarrava cachorro com linguiça.

151
Lição 21: Eu não jogo

O objetivo inicial desta crônica era descrever os equipamentos usa-

dos no mercado financeiro desde que comecei, em 1958, até os dias

de hoje. Pesquisando sobre o open market, com a intenção de mos-

trar como funcionava uma trading desk no final dos anos 1960, me

deparei com um artigo do Marcio Noronha, papa e decano da análi-

se técnica no Brasil.

Nada havia sobre aparelhagens mas, nesse texto, ao qual dá

o título de “Década de sessenta: os anos folheados a ouro do open

market”, o Marcio fala sobre as pessoas que deram início a essa fase

gloriosa do mercado.

Gloriosa ao menos para nós, operadores, porque todo mundo ra-

chou de ganhar dinheiro. Eis o recorte do relato do Marcio:

“Para que possa ter uma ideia de como se deu o crescimento do

mercado, entre 1966/1967 no Rio de Janeiro tinha cerca de uma

dúzia de corretoras e um único banco (Safra) que tinham montados

departamentos de Open Market. Nesse começo o mercado ainda era

romântico, não havia selvageria. Basta dizer que todas as sextas-fei-

ras a maioria dos operadores se reunia para um almoço de confra-

ternização no segundo andar do restaurante Americana que ficava

na Rua da Quitanda, se não me engano entre as Ruas do Rosário e

Buenos Aires.

Eram figuras fáceis de encontrar por lá o Décio Pelajo, Eduardo


152
Bicalho, Conceto Mazzarela, Ivan Sant’Anna, o Bode (Antônio José

de Almeida Carneiro), Jacob Mizrai (Safra), o Sérgio que trabalha-

va na filial do Rio de Janeiro da Corretora paulista Coranca, Sérgio

Martin da Denasa, o Luiz Antônio que também trabalhava na Pela-

jo, o Sérgio Bopp, de vez em quando o Jorge Paulo Lemann (na época

sócio da Corretora Aliança junto com uma ordem religiosa, se não

me engano a Venerável Ordem Terceira Senhor Bom Jesus do Cal-

vário, dona de vários imóveis no centro da cidade no Rio de Janeiro)

também pintava por lá e mais alguns outros que não me recordo no

momento. Jogávamos conversa fora, o Ivan – um tricolor fanático

– sempre muito criativo vinha com suas apostas futebolísticas tipo:

num Fla x Flu ele dava 1 gol de lambuja para o Flamengo e a aposta

valia 1 contra 5, mas ele deixava você escolher a ponta.”

***

Antes de comentar minhas apostas e de acrescentar mais sobre a

época de ouro do open market, é melhor explicar como tudo começou.

Até o início do período dos governos militares, o Brasil não tinha

dívida interna. Vieram, então, a criação do Banco Central do Brasil,

em dezembro de 1964, e a promulgação da Lei de Mercado de Capi-

tais, em julho de 1965.

Foram emitidas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional

(ORTNs) e Letras do Tesouro Nacional (LTNs), títulos nos quais


153
eram lastreadas as operações de open. Por incrível que pareça, o

negócio era bom para todas as partes envolvidas.

O governo passou a captar dinheiro do grande público (pessoas

físicas e jurídicas) para financiar o desenvolvimento do país, que

se materializaria com o milagre econômico da primeira metade dos

anos 1970.

As instituições financeiras podiam alavancar trinta vezes o va-

lor de seu capital mais reservas. Para isso, captavam dinheiro dos

clientes a uma taxa um pouco inferior à remuneração paga pelo go-

verno: correção monetária mais juros que, no caso das ORTNs, eram

de 6% ao ano.

Ganhar um spread que, mesmo não sendo muito grande, era

multiplicado por 30, não tinha como não ser um ótimo negócio. Fi-

nalmente, os aplicadores passaram a ter uma defesa contra a infla-

ção (ao redor de 25% ao ano – 1967 e 1968).

Já os operadores, quase todos comissionados, nadavam em di-

nheiro. Eu, por exemplo, não conseguia gastar tudo que ganhava. Se

o Fluminense jogava um amistoso na Espanha, pegava um avião na

sexta, assistia ao jogo e regressava no domingo à noite. Passar um

feriadão em Roma ou Berlim era coisa corriqueira em minha vida.

Para melhorar as coisas, nas mesas de open o ritmo de trabalho

era pequeno. Pela manhã, entre 9 e meio-dia, negociava-se dinhei-

ro. À tarde, entre 15 e 17 horas, papéis. Havia tempo de sobra para

outros negócios, principalmente apostas. E nisso, modéstia à parte,


154
eu era rei. Vou dar alguns exemplos:

Quando o Fluminense disputou a final do Campeonato Carioca

de 1971, contra o Botafogo, apostei US$ 57 mil no Flu. Na ponta

contrária da aposta, praticamente um sindicato formado por opera-

dores de open e de bolsa.

Deu 1 a 0 Fluminense, gol do Lula aos 42 do segundo tempo, por

sinal, após uma falta (não marcada pelo juiz Marçal Filho) do nosso

lateral esquerdo, Marco Antônio, no goleiro botafoguense Ubirajara.

Minutos após o apito final, eu estava no meio do gramado ao lado

do Lula, cuja camisa comprei por US$ 7 mil. Lucro líquido: US$ 50

mil.

Em seu livro O Brasil é bom, publicado pela Companhia das Le-

tras em 2014, meu sobrinho André Sant’Anna, que tinha apenas

seis anos de idade na época da partida decisiva, e que foi comigo ao

Maracanã, narra o fato:

“No finalzinho do jogo, finzinho mesmo, teve o gol do Fluminense

e o Fluminense foi campeão, e foi a maior confusão, porque o Marco

Antônio, lateral do Fluminense, tinha empurrado o goleiro do Bota-

fogo e deixou o Lula livre para fazer o gol, e os jogadores do Botafogo

foram pra cima do Marçal, que era o juiz...”

Em 1974, quando o Brasil enfrentou a Holanda pela Copa do Mun-

do da Alemanha, apostei US$ 50 mil nos holandeses, que venceram

por dois a zero. Eu tinha o hábito de fazer apostas totalmente hetero-

doxas, tal como aquela que o Marcio Noronha descreveu acima.


155
Certa vez, por exemplo, o Botafogo jogou contra o Bonsucesso no

Maracanã. Apostei no Botafogo mil cruzeiros (meus), contra vinte

mil (do adversário), só que dando cinco (isso mesmo, cinco) gols de

vantagem.

Havia um rapazote, cujo apelido era Pica-pau, que tinha amizade

com os jogadores botafoguenses. Eu disse para ele: “Diz pro Jairzi-

nho que dou cinco mil para o pessoal do ataque, ele escolhe quem, se

vocês ganharem de seis”.

O jogo foi 5 a 0 e ninguém ganhou a aposta. Mas nos últimos mi-

nutos de partida os jogadores do Botafogo pareciam estar disputan-

do um jogo de Copa do Mundo, tal a disposição com que se lançavam

ao ataque.

Outro truque meu era apostar no Fluminense em jogos contra ti-

mes pequenos recebendo meio gol de vantagem e só valendo, para o

Flu, gols dos zagueiros. Geralmente, nenhum beque fazia gol, mas,

como o adversário ficava no zero, eu ganhava a aposta. Meio a zero,

era o placar a meu favor.

A essa altura, o caro leitor deve estar se perguntando: “Por que o

Ivan está contando todas essas coisas se o objetivo de suas crônicas

é falar de mercado e não de jogatina?”

Simplesmente porque a gente era assim naquela época. E se é

para escrever sobre o mercado, vale a pena mostrar como se com-

portavam as pessoas que o povoavam, embora não todas, é preciso

que se diga.
156
Quando, em 1983, larguei o mercado brasileiro para operar nas

bolsas de Nova York e Chicago, continuei com o mesmo perfil, só que

agora apostando em calls, puts e nos futuros mais extravagantes.

Ganhei muito e perdi muito.

Dei enormes tacadas na soja e no café, mas o petróleo quase me

aleijou quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait me pegando ven-

dido a descoberto em crude oil WTI na Nymex.

Meu ofício hoje é mostrar como era e como é o mercado sem falsas

demagogias e proselitismo. Além disso, os traders atuais são muito

mais técnicos e prudentes. Quem joga por jogar, acaba sendo alijado

da roda.

Tenho arrependimento das coisas que fiz? Nenhum. Eram pró-

prias de meu espírito de especulador. Só espero que os leitores não

me imitem. Ao contrário dos tempos milagrosos do open market, o

mercado hoje é dos que sabem conter seus impulsos especulativos.

É de pessoas que só adotam uma posição quando estão convictos.

A época dos aventureiros acabou, inclusive para mim. O banco

onde aplico minhas reservas em fundos de renda fixa define meu

perfil como o de conservador.

O mercado financeiro foi generoso comigo. Consegui viver dele des-

de os 18 anos de idade e, agora, com quase 80, continuo nele, só que

tentando transmitir experiência para os mais novos. As boas e as ruins.

Se alguém me propõe uma aposta, me limito a dizer, com a maior

cara de pau: “Obrigado, amigo, eu não jogo”.


157
Lição 22: Profissionalismo sem paixões

Estive duas vezes na África do Sul, ambas ainda durante os tempos

de supremacia branca. O país era dirigido pelos africâners, descen-

dentes, principalmente, de holandeses que viviam na região havia

várias gerações.

A primeira dessas viagens aconteceu em 1973, época em que eu

acompanhava o circuito de Fórmula 1 assistindo às corridas ao vivo.

No sábado, dia 3 de março de 1973, o piloto inglês Jackie Stewart

venceu a prova, disputada no autódromo de Kyalami. Foi um feito

inédito porque Stewart largou na última posição devido a proble-

mas mecânicos nos treinos classificatórios, problemas esses que lhe

valeram o pior tempo entre os 24 competidores, entre os quais os

brasileiros Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace.

Nessa ocasião, eu aproveitei a oportunidade para conhecer um

pouco do país, tendo ido ao Kruger National Park, uma das maiores

reservas de animais selvagens do planeta. Mas minha experiência

não ficou só em automobilismo e leoas correndo atrás de antílopes.

Travei contato com o apartheid.

Embora constituíssem ampla maioria da população, os negros ti-

nham de andar com passaportes internos. Se fossem parados pela

polícia sem esse documento, eram imediatamente presos.

A não ser em casos de empregados domésticos, que recebiam au-

torização para dormir na casa de seus patrões, os negros tinham de


158
morar em bairros destinados a eles (sendo o mais conhecido a favela

do Soweto) e viajar em ônibus exclusivos (pintados de verde).

Na principal estação ferroviária de Johanesburgo, assim como

em diversos outros locais públicos, os banheiros eram divididos en-

tre europeans e non europeans. Nos bancos dos parques da cidade,

havia a inscrição “Europeans only”.

Se um negro cruzava com um branco numa calçada pouco movi-

mentada, ele se encostava na parede e abaixava a cabeça. Por sinal,

foi caminhando numa calçada que testemunhei uma das cenas mais

insólitas e humilhantes dessa minha viagem.

Uma senhora branca parou seu carro em frente a uma casa, que

devia ser a dela. Como um negro vinha passando, ela o chamou e

mandou que ele pegasse a bagagem no porta-malas do veículo e a

levasse para o interior da residência, ordem que o rapaz cumpriu

imediatamente e sem nenhum tipo de contestação.

Eu estava acompanhado de minha mulher. Nós fomos a um es-

tádio assistir a um festival de dança guerreira zulu. Aproximada-

mente 60% das arquibancadas eram destinadas a negros. Vinte por

cento, a brancos, essencialmente turistas. Espaços vazios separa-

vam os dois grupos.

Enquanto os brancos se acomodavam onde queriam (em sua área

exclusiva, é claro), os negros, ao entrarem, tinham de se sentar onde

os policiais determinavam, sempre ao lado dos negros que os ha-

viam precedido.
159
Voltei à África do Sul alguns anos depois, também para assistir a

uma corrida de Fórmula 1. Só que, nessa segunda oportunidade, as

coisas haviam se tornado tensas. Ao desembarcar no Kruger Inter-

national Airport, que servia às cidades de Johanesburgo e Pretoria,

já pude sentir o clima abafado de rebelião. O mesmo acontecia nos

arredores do hotel e no autódromo. Era perigoso andar na rua à

noite.

Depois disso, nunca mais voltei lá. Mas continuei acompanhando

de perto a evolução dos acontecimentos, mesmo porque a África do

Sul era o maior produtor de ouro do mundo (já caiu para a nona

posição) e ouro, que eu “treidava” na Nymex, em Nova York, era a

minha commodity preferida.

No cenário internacional, a África do Sul tornara-se um país iso-

lado. As nações de todos os continentes exigiam o fim do apartheid.

Sanções econômicas foram adotadas. Relações diplomáticas, rom-

pidas. O Comitê Olímpico Internacional proibiu os sul-africanos de

disputar as olimpíadas. A Fifa os baniu da Copa do Mundo.

No plano interno, se os negros ainda não tinham forças nem ar-

mas para combater os africâners, eles passaram a atacar os irmãos

de raça que colaboravam, ou eram suspeitos de colaborar, com os

brancos.

Uma das punições mais comuns era a do “colar”, suplício que

consistia em executar pessoas enfiando-lhes um pneu ao redor do

pescoço e ateando fogo à borracha.


160
A situação tornara-se irreversível. O passo seguinte seria a bar-

bárie completa. A única esperança possível, tanto dos brancos como

dos negros de bom senso, seria um acordo para terminar o apar-

theid sem revanchismo.

Só dois homens podiam liderar esse processo de transição. Um

deles era o presidente Frederik Willem de Klerk. O segundo, um

negro preso por traição havia 27 anos. Seu nome: Nelson Mandela.

Sempre operando ouro, eu tinha como guru um inglês chama-

do Edwin (Ted) Arnold, especialista em metais da corretora Merrill

Lynch. Por recomendação de Ted Arnold, eu estava comprado em

uma grande quantidade de contratos de ouro futuro. Simplesmente

porque Arnold achava que Mandela era comunista e iria liderar um

massacre contra os brancos tão logo saísse da prisão.

Nesse cenário, a cotação do metal poderia ir às alturas. De minha

trading desk, assisti, pela CNN, a libertação de Mandela. Levei não

mais do que alguns minutos para perceber que aquele homem, mes-

mo tendo ficado trancafiado durante quase três décadas, parecia

muito mais um novo Mahatma Gandhi ou Martin Luther King Jr.

do que um revolucionário revanchista.

Sem consultar ninguém, reverti minha posição comprada em

ouro. Além de ficar short, comprei puts de diversos strikes.

O resto, todo mundo sabe, é história. Pregando a paz entre todos

os sul-africanos, Nelson Mandela foi eleito presidente do país. Não

houve incidentes impactantes, muito menos massacres. A transição


161
se deu da melhor forma possível. Uma mensagem de Mandela pro-

pondo uma anistia geral foi aprovada pelo novo Parlamento, com-

posto principalmente de negros.

Como seria de se esperar, o preço do ouro despencou. Volta e meia

os mercados dão essas oportunidades de reversão, tal como aconte-

ceu no episódio sul-africano. Mas é preciso ser rápido no gatilho.

Em 2 de agosto de 1990, o Iraque de Saddam Hussein invadiu o

Kuwait. Saddam havia sido iludido pela embaixadora norte-ameri-

cana em Bagdá, April Glaspie, que lhe dera a entender, sutil e ar-

dilosamente, que, caso essa invasão acontecesse, os Estados Unidos

se limitariam a um protesto formal no Conselho de Segurança da

ONU.

Como fora ajudado pelos americanos em sua guerra contra o Irã,

que durara de setembro de 1980 até agosto de 1988, Saddam caiu

na armadilha da diplomacia americana.

Juntando as reservas e a produção de petróleo dos dois países

(Iraque e Kuwait), o Iraque se tornaria a maior potência petrolífera

do planeta. É evidente que os Estados Unidos não aceitariam isso.

O presidente George H. W. Bush (Bush pai) formou uma coalizão

de 32 países para liberar o Kuwait. Espertamente, Israel ficou de

fora dessa aliança, da qual constavam diversos países árabes, tais

como a Síria, o Egito e a Arábia Saudita.

Seria questão de tempo uma vitória, embora Hussein tivesse um

trunfo: cidadãos de várias nacionalidades, inclusive crianças, que


162
moravam no Iraque na ocasião foram tomados como reféns.

Em janeiro de 1991, mais precisamente na quarta-feira do dia

9, o secretário de Estado norte-americano, James Baker III, encon-

trou-se em Genebra, na Suíça, para uma reunião com Tarik Aziz,

segundo homem na hierarquia iraquiana.

Eu concluí o que me pareceu óbvio. Se eles estão se encontrando,

é porque haverá um acordo de paz. O Iraque se retira do Kuwait e os

americanos deixam o dito pelo não dito. Fiquei vendido em petróleo

na Nymex.

Tal como acontecera na soltura de Nelson Mandela, seis meses

antes, eu fiquei sintonizado na CNN, cujos repórteres e cinegrafis-

tas permaneceram postados na entrada da sala de conferências do

hotel Intercontinental, onde os dois estadistas se reuniram.

Só pelas expressões de Aziz e Baker, quando saíram da sala, deu

para perceber que não haviam chegado a um acordo de paz e reverti

minha posição. De short passei para long na Nymex, a tempo de

ganhar uma boa bolada.

Muitos anos mais tarde, o mundo ficou sabendo que James Baker

se comprometera a não invadir Bagdá nem depor Saddam Hussein

em troca da libertação dos reféns, como realmente aconteceu. A

guerra do Golfo, como ficou conhecida, foi facilmente vencida pela

coalizão através da operação Tempestade no deserto (Desert Storm).

Quem acompanha o minuto a minuto dos mercados tem chances

de fazer essas reversões lucrativas. Mas é necessário ter um bom


163
conhecimento dos mercados e dos fundamentos políticos, bélicos e

econômicos. Finalmente, é preciso não se apaixonar por nenhum

dos lados, nenhuma das causas, por mais merecedoras de respeito

que sejam. Operador de mercado não influencia os acontecimentos.

Tem apenas de saber interpretá-los. Faz parte do ofício. E da sobre-

vivência profissional.

164
Lição 23: Sangue-frio

Desta vez, não se tratava apenas de mais uma entrevista de empre-

go. André Vilhena, 42 anos, desempregado havia cinco meses, sabia

que o jantar com Maurício Araújo talvez fosse sua última grande

chance. Por isso alternava, impaciente, o olhar entre o relógio do

carro e o trânsito, lento por causa de uma garoa fina que caía na-

quele início de noite.

Oito horas. Exatamente o horário marcado para o jantar com

Araújo, no Copacabana Palace, não longe dali. Mas, com aquele

trânsito infernal, André iria se atrasar uns 20 minutos. Pegou o

celular e ligou para sua mulher, Sofia, e obteve o telefone do hotel.

Eram oito e cinco quando falou com Maurício Araújo, prevenin-

do-o do atraso. Mas não se esmerou em desculpas, para não parecer

subserviente aos olhos do empregador em potencial. Como este lhe

disse que também se atrasara por causa da chuva, e que ainda iria

tomar banho, André relaxou ao volante.

Eram oito e onze quando dobrou a esquina da rua Francisco Ota-

viano com a Avenida Atlântica e oito e dezoito quando, após ter co-

metido dez metros de contramão no retorno da Prado Junior, encon-

trou uma vaga, duas quadras depois do hotel.

Estacionou seu Toyota Etios Hatch, automático, quatro portas.

Notou que a garoa havia passado. Já fora do carro, vestiu o blazer

que deixara no banco de trás. Limitou-se a um tapinha no ombro do


165
flanelinha, que se materializou do nada. André apressou o passo e

seguiu para o hotel, agora concentrando seu pensamento na entre-

vista com Maurício Araújo.

Desde a manhã, quando Araújo, um dos maiores gestores de fun-

dos de investimento do Brasil, morador de São Paulo, o convidara

para o encontro, André decidira não ensaiar nada. Responderia às

perguntas com absoluta franqueza, sem omitir coisa alguma, sem

procurar se valorizar em demasia.

André Vilhena sabia que os Fundos PSI, geridos por Maurício

Araújo e sua equipe, procuravam traders experientes para o escritó-

rio que haviam acabado de abrir no Rio de Janeiro.

Araújo já descera do quarto e aguardava no lobby, de onde fo-

ram para o bar. André pediu um suco de laranja. “Estou dirigindo”,

explicou. O paulista optou por um Jack Daniel’s. Do bar, passaram

ao restaurante. Mais tarde subiram para a suíte do executivo, onde

conversaram até quase meia-noite.

Ao deixar o hotel, André tinha convicção de que se saíra bem.

A conversa girara primeiro sobre o mercado, depois sobre tomada

de decisões sob grande pressão. “Sangue-frio”, dissera-lhe Maurício

Araújo. “É isso que faz a diferença entre os verdadeiros traders, ho-

mens feitos como nós, e os garotos que estão começando.”

Evidentemente, André Vilhena achou o comentário um ótimo

presságio, embora Araújo lhe dissera que ainda iria entrevistar ou-

tros candidatos.
166
Quando chegou ao carro, André já não encontrou o flanelinha.

“Pudera, meia-noite”, pensou, enquanto punha a chave na ignição.

Ainda não tinha apertado a tecla lock, que trava as portas, quando

dois elementos, um mulato e um branco, as abriram, um a do banco

do carona, o outro a do banco traseiro da esquerda.

Entrada no carro e saque das armas foram movimentos sincroni-

zados dos invasores. Uma apontada para a têmpora direita de An-

dré, outra para a sua nuca.

Como não podia deixar de ser, André Vilhena levou um susto

tremendo. Mas não demorou a se controlar. “Vocês querem o carro?

Podem levar”. E fez menção de abrir a porta. “Ah, levem também o

meu dinheiro”. E levou a mão direita ao bolso interno esquerdo do

blazer.

Desta vez, quem se assustou foi um dos assaltantes, o do banco

da frente. “Se botar a mão aí, morre!”, disse o meliante. “E me dá o

celular.”

Como se fosse um boneco de mola, André recolheu o braço. Apon-

tou para o bolso externo direito do blazer. “O celular está aqui.”

O ladrão pegou o celular. Demonstrando grande intimidade com

o aparelho, o desligou pressionando dois botões ao mesmo tempo e

passando o dedo pela tela, da esquerda para a direita.

André deu uma olhada no bandido ao seu lado e outra, pelo retro-

visor, no de trás. Só então percebeu o quanto eles eram jovens. Seu

medo cresceu. Sem saber o que fazer, ficou esperando ordens. Que
167
não demoraram a surgir.

“Arranca devagarinho e vai em frente. Sem correr. A gente vamos

pegar um parça na esquina da Santa Clara.”

Com o trânsito escasso, em um minuto chegaram lá. O terceiro

homem era branco e, com certeza, maior de idade. Estava bem ves-

tido. André Vilhena teve esperanças de que agora seria solto e que o

recém-chegado assumiria o volante. Logo se decepcionou.

O novo bandido se sentou no banco traseiro, do lado direito, pe-

gou o revólver do companheiro ao lado e instruiu André: “Vá para

a Lagoa. Lá tem um posto de gasolina na esquina da Mário Ribeiro

com a Borges de Medeiros, quase em frente ao estádio de remo. Vou

com você na loja de conveniência. Vai sacar todo seu limite do cartão

no 24 horas. A arma vai ‘tar no meu bolso. Lá tem dois seguranças.

Se bancar o engraçadinho, vai morrer gente. Você vai ser o primei-

ro”.

André pensou que aquilo não podia estar acontecendo com ele.

Não com ele. Muito menos naquela noite. Mas estava. E era preciso

ordenar as ideias, não cometer nenhuma sandice.

“Sangue-frio, cara”, André Vilhena se recompôs. “É isso que você

precisa ter. Aquilo que faz a diferença entre os homens e os garotos,

como o Maurício disse lá no Copa. Eles só querem o meu dinheiro.

Sangue-frio.”

Da Santa Clara até o posto na Lagoa, André levou menos de

quinze minutos, respeitando todos os sinais. Não olhou para os la-


168
dos, não tirou as mãos do volante, não fez nenhum gesto suspeito.

Quando chegaram, André entrou com o terceiro homem, o branco

bem vestido. Só havia um segurança, conversando com o caixa. Pro-

curando, e conseguindo, agir com o máximo de naturalidade, André

inseriu seu cartão na máquina. Só então se lembrou que não sabia

seu limite de saque. Disse isso para o bandido. Ele acreditou porque

respondeu de pronto: “Faz por tentativa. Tenta sacar dois mil”.

O 24 horas rejeitou, sem informar qual era o limite. O bandido

instruiu: “Tenta mil e quinhentos”.

André Vilhena teve de repetir toda a operação. Só que, dessa vez,

ao invés de inserir o código 140952, que era a data de nascimento de

seu pai, digitou 170154, que era a de sua mãe.

“Você só tem mais duas chances”, avisou o criminoso. “Caso con-

trário, o cartão é bloqueado, não sai dinheiro e morre gente. Você

primeiro, já disse.”

Pondo as ideias em ordem, e sempre se lembrando do sangue-

frio, do qual agora dependia sua vida, André acertou duplamente: a

senha e o saque do dinheiro. Fez menção de entregar as notas para

o assaltante, mas este, usando apenas o olhar penetrante, mostrou

à vítima que tinha de guardar as células em seu próprio bolso até

que chegassem no carro.

Já com o veículo em movimento, André ia passando o dinheiro para

o meliante à sua direita quando o de trás, o branco que entrara com

ele no posto, fez uma ponte aérea com o braço e interceptou a grana.
169
André Vilhena só aguardava o desfecho. Ser solto em algum pon-

to da Lagoa, ou ser obrigado a levar os bandidos a algum lugar, caso

estes não quisessem ficar com o carro ou não soubessem dirigir.

“Você agora vai com a gente para a Vila do João. Fica no cami-

nho...”

“Eu sei, do Ga… do Galeão...”, André agora se assustou de verda-

de. A Vila do João, uma comunidade de prédios construída em ho-

menagem ao presidente João Figueiredo, era um dos lugares mais

perigosos do Rio. Turistas já haviam sido mortos ao entrarem lá por

engano em seus carros.

Foi nesse instante que André Vilhena resolveu colocar em prá-

tica seu sangue-frio, seu treino de trader em ocasiões de desfecho

imprevisível. Decidiu partir pro risco. Pro risco total. Ou calça de

veludo ou bunda de fora. Como nos momentos decisivos do mercado

financeiro.

Seu sangue agora fervia e, ao mesmo tempo, era frio como o de

um jacaré de madrugada. Aqueles putos haveriam de ver a diferen-

ça entre um homem e um moleque.

Enquanto desenvolvia mentalmente sua estratégia de reação, ar-

rancou suavemente com o Etios, como se tivesse concordado com a

última exigência.

“Vi... Vila... Vila do João? Tu... Tudo bem”, o gaguejo desta vez foi

proposital, para aparentar um medo que não sentia mais. Já estava

quase gostando, antevendo o que iria acontecer.


170
Aos poucos, enquanto seguia pela Borges de Medeiros, em dire-

ção ao túnel Rebouças, ele foi acelerando o veículo. Num movimento

furtivo, travou as quatro portas. Oitenta, noventa, cem, cento e dez.

Cortou um carro pela direita e outro pela esquerda, tentando encon-

trar o que procurava.

“Calma, parceiro”, o brancão de trás se assustou. “Não precisa

correr tanto. O mundo não vai acabar.”

André sentiu o medo na voz do bandido e isso o estimulou a con-

tinuar acelerando. Cento e quarenta agora. Ignorando o Rebouças,

para o qual teria de virar à esquerda, André continuou contornando

a Lagoa no sentido horário. Subitamente viu o que queria. Um carro

de polícia, parado no canteiro divisório entre as duas pistas.

Reduzindo um pouco a velocidade, André Vilhena pisou com o pé

esquerdo no freio, mantendo o direito no acelerador, num talentoso

movimento de punta-taco, resquício de uma adolescência de pegas

ali mesmo na Lagoa Rodrigo de Freitas. Usando o freio de mão, fez

um cavalo de pau e parou exatamente ao lado da viatura policial.

Os PMs já desceram com fuzis AR-15 na mão. André freara tão

bruscamente que deixou todo mundo sem ação. Os policiais e os

bandidos. Destravou então apenas sua porta, deixando os bandidos

à mercê da polícia.

“Pedro Souto, juiz federal”, mentiu André, exibindo aos soldados

não mais do que o cartão 24 horas do banco, a voz firme não ad-

mitindo contestação. “Fui assaltado por aqueles três homens. Me


171
levaram o dinheiro e me ameaçaram de morte.”

Se houve ou não confronto, nunca se saberá. O certo é que a lei

saiu ilesa e a trinca da bandidagem morreu. André explicou aos

PMs que não era juiz nenhum e que só dissera isso para não ser

tomado como meliante. Foi o que repetiu ao delegado de plantão na

14ª DP, no Leblon, antes de ser liberado, com seu dinheiro no bolso.

“Sangue-frio, é isso que separa os homens dos garotos”, pensou o

trader André Vilhena no táxi que o levou para casa. No dia seguinte,

acionaria o seguro para cuidar do carro esburacado de balas. Quem

sabe seria até uma perda total. Precisava agora se concentrar nos

Fundos PSI. Tinha certeza de que o emprego seria seu. Sim, ele sa-

beria agir na hora que o circo pegasse fogo.

172
Lição 24: 2054

No final da década de 1950, por volta de 1959, eu pilotava aviões no

aeroclube do Carlos Prates, em Belo Horizonte. Naquela ocasião,

nós pilotos, alunos, mecânicos e instrutores de voo costumávamos

nos reunir à noitinha na calçada da avenida Afonso Pena, perto da

praça Sete e da esquina com a Amazonas. A gente chamava o lugar

de “chacrinha”.

Como não podia deixar de ser, o assunto era um só: aviação. “Eu

puxei o bicho nos três pontos, toquei a menos de dez metros da cabe-

ceira e parei antes da primeira interseção”, carteava um dos pilotos,

se referindo a um pouso curtíssimo com um monomotor Paulistinha,

com o toque das três rodas ao mesmo tempo e uma freada radical,

quase um cavalo de pau.

Isso quando o papo não descambava para a sacanagem metafó-

rica: “Eu peguei ela nos três pontos e...”. Pois bem, naquela época a

gente gostava de imaginar como seria a aviação no futuro. Os Bo-

eings 707 haviam entrado em linha em 1958 e desenvolviam uma

velocidade de cruzeiro de, maravilha das maravilhas, 977 quilôme-

tros por hora.

“Imagina, cara, ir do Rio a Nova York sem escalas em menos de

dez horas. Daqui a dez anos eu estarei no comando de um desses”,

dizia um.

“Dez anos? Duvido”, debochava outro. “Até lá, você será no má-
173
ximo copiloto de um 707. Só que os aviões em 1970 serão outros.

Estarão voando a pelo menos duas vezes a velocidade do som, o que

dará 2.500 quilômetros por hora. Mesmo levando em conta os voos

de subida e de descida, Rio/Nova York vai ser feito em pouco mais

de três horas.”

“Isso até surgirem os voos suborbitais”, intervia um terceiro. “Do

Rio a Nova York em menos de uma hora. Vai dar pros pilotos verem

o espaço sideral totalmente negro e a curvatura da terra.”

“Pilotos?”, um mecânico espírito de porco estragava a festa. “Os

aviões serão automáticos e controlados de terra por cérebros eletrô-

nicos (que é como os computadores eram conhecidos em 1959). Mas,

claro, continuarão precisando de mecânicos.”

Pois bem, de lá para cá passaram-se seis décadas e os aviões a

jato continuam voando na mesma velocidade. Até menos. Os tops de

linha da Boeing e da Airbus, o 787 (Dreamliner) e o A-380, de dois

andares, cruzam os céus respectivamente a 913 e 907 quilômetros

por hora.

É verdade que nesse tempo surgiu o supersônico Concorde, de

fabricação franco-britânica, que voava a duas vezes a velocidade do

som. Só que as passagens eram caras, a aeronave, muito poluente, e

o rompimento da barreira do som provocava um estrondo tão grande

que só podia acontecer sobre alto-mar, longe da costa. Fora o enor-

me consumo de combustível. Como se não bastasse, o Concorde era

desconfortável, com pouco espaço entre as poltronas.


174
Apenas duas empresas, Air France e British Airways, usaram

Concordes em suas frotas. Só 14 unidades foram fabricadas. Quan-

do, no dia 25 de julho de 2000, um deles se espatifou nos arredores

de Paris, logo após decolar do aeroporto Charles de Gaulle com os

tanques de combustível já em chamas, a história do mítico supersô-

nico chegou ao fim.

O desastre serviu de pretexto para a aeronave ser retirada de

serviço, embora o acidente não tenha sido provocado por nenhum

defeito do aparelho − uma pequena peça de metal caíra na pista

pouco antes, proveniente de um DC-10 da Continental Airlines e

perfurara a asa do Concorde, que decolara na sequência, dando iní-

cio ao incêndio.

Embora nós lá da “chacrinha” de BH tenhamos errado feio em

nossas previsões de velocidade, que, à exceção do desventurado Con-

corde, praticamente nunca saiu do lugar, a aviação experimentou

grande avanço nestes últimos 60 anos.

Antes de mais nada, os aviões se agigantaram. O conforto evoluiu

e os preços das passagens desabaram. Voar tornou-se mais barato

do que viajar de carro, de trem, de ônibus e de navio.

Os jatos atuais gastam muito menos combustível e tiveram o

nível de poluição sonora reduzido. Levando mais de cinco vezes o

número de passageiros do que em 1959, os aparelhos de última ge-

ração precisam de apenas dois pilotos. Os ofícios de engenheiro de

voo (flight engineer) e de navegador desapareceram.


175
Se fomos péssimos profetas lá na praça Sete em 1959, pior acon-

teceu com George Orwell em 1949, quando ele quis antecipar 35

anos de história em seu livro 1984.

Com exceção de alguns episódios isolados, como o da dinastia

norte-coreana, o Grande Irmão simplesmente não aconteceu. O

muro de Berlim caiu, a democracia e a liberdade de expressão, a

despeito de alguns percalços, se expandiram. Pela internet, fala-se

praticamente tudo aquilo que se quer.

Homem hoje se casa com homem; mulher com mulher. Garoto

nasce Pedro e vira Mônica. Mônica se transforma em Joaquim e se

torna sargento do Exército.

O que antes era classificado como sexo grupal (para não dizer

outro nome), prática que podia até levar seus adeptos para a cadeia

por atentado ao pudor, virou “relação poliafetiva”, desde que seus

seguidores sejam maiores de idade.

***

Apesar dos fracassos proféticos da turma da “chacrinha” e de Geor-

ge Orwell, vou também dar os meus pitacos. Escolhi como cenário

o ano de 2054. Se errar, não estarei aqui para levar uma descom-

postura. Ou, então, terei 114 anos de idade e as pessoas respeitarão

minha decrepitude.

Vou começar pelo óbvio. Metade da mão de obra atual será subs-
176
tituída por robôs. O número de horas trabalhadas cairá para, no

máximo, 30 por semana.

Os aviões não terão pilotos (tal como antecipou o mecânico do

Carlos Prates), os trens e metrôs se movimentarão sem maquinis-

tas, um cirurgião de Toronto, sem sair de seu consultório ou hospi-

tal, extirpará um câncer num paciente de Bangladesh.

Acontece que não estou escrevendo este texto para falar de ob-

viedades. Meu assunto é mercado financeiro, decisões sobre inves-

timentos, mostrar como as pessoas pouparão em 2054. Sim, porque

sempre haverá quem poupe e quem gaste tudo que ganha.

Antes de mais nada, aqueles que aplicam de orelhada já terão

sido expelidos das bolsas e futuros, que ficarão restritos aos investi-

dores profissionais, sob a forma de traders eletrônicos programados

por algoritmos de última geração. Estou falando de inteligência ar-

tificial. Vamos aos exemplos.

Saem os dados de produção industrial na China, a maior econo-

mia do planeta. Os mercados (ops, as máquinas) esperavam algo

entre + 0,1533% (a mais pessimista) e + 0,1539% (a mais otimista).

A estatística veio na parte de baixo: + 0,1534.

Imediatamente, a inteligência artificial entra em ação. Os com-

putadores analisam trilhões de dados mostrando o que ocorreu sem-

pre que houve essa relação de + 0,1534 em acontecimentos sazonais

com os números de desemprego da China, dos Estados Unidos, da

Alemanha e de outros países desenvolvidos, com as cotações de to-


177
das as moedas importantes e as taxas de juros dos demais mercados.

O renminbi cai 0,0023%, o preço unitário das obrigações do banco

da China tem uma alta de 1/16 de ponto, o minério de ferro se des-

valoriza 0,000023 centavos de renminbi por tonelada.

Entre as diversas hipóteses (também medidas em trilhões) espe-

radas pelos grandes fundos, as alterações provocadas pela estatísti-

ca chinesa mudam as cotações de quase todos os ativos.

Em comparação com antigamente (2019, por exemplo), as mu-

danças nos preços são ridículas. Só que estamos em 2054 e a ala-

vancagem é muito maior. Então, qualquer centavo de renminbi, de

rupia, de dólar, de marco alemão (o euro soçobrou na Grande Crise

de 2047) e de dólar norte-americano representa o mesmo ganho ou

prejuízo dos velhos tempos, como nas primeiras décadas do século

21.

Bem, isso é fácil de explicar agora em 2054. A evolução tecno-

lógica cortou as asas da volatilidade, porque todas as alternativas

são previstas nos programas de gestão de carteiras de fundos de in-

vestimento, que reagem imediatamente a qualquer dado. Só restou

aumentar o tamanho dos lotes para que se possa ganhar ou perder

de verdade.

Acontece que sempre haverá o imponderável. O terremoto, o tsuna-

mi, o assassinato político, a renúncia do estadista, o escândalo eleitoral.

Pode até acontecer o imprevisível. E, se é imprevisível, nem eu mesmo,

Ivan Sant’Anna, autor do best seller 2054, pude prever neste meu texto.
178
Lição 25: Susto paralisante

Eram nove horas, quarenta e seis minutos e quarenta segundos em

São Paulo quando o voo 11 da American Airlines, um Boeing 767

pilotado precariamente pelo egípcio Mohamed Atta, acompanhado

de outros quatro sequestradores, todos sauditas, se chocou contra a

face norte da Torre Norte do World Trade Center, quase na extremi-

dade sul da ilha de Manhattan.

O caro leitor já percebeu que estou me referindo ao primeiro dos

quatro atentados de 11 de setembro de 2001.

A CNN levou apenas um minuto e oito segundos para pôr no ar a

imagem do rombo na fachada do prédio. Tal rapidez deveu-se ao fato

de que Sean Murtagh, vice-presidente de finanças e administração

da emissora, cuja sede em Nova York fica sete quilômetros ou 80

quarteirões ao norte das Torres Gêmeas, estava olhando pela janela

de seu escritório, justamente uma das que dava para o World Trade

Center, ao longe, quase na margem esquerda do rio Hudson.

Como a sala de redação ficava um andar abaixo do escritório de

Murtagh, ele rodopiou um lance de escadas para dar a notícia aos

repórteres e redatores, naquele momento discutindo a pouco esti-

mulante pauta do dia em Nova York, as primárias das eleições para

prefeito da cidade. No início, as informações circularam truncadas:

“Um avião bateu no World Trade Center.”

“É, um avião, um Cessna. Cessna, não, um jato comercial, um


179
737, foi o Murtagh quem viu. Sei lá, porra, um maldito avião bateu

no Trade Center.”

Se houve hesitação na percepção dos detalhes, o mesmo não acon-

teceu com as providências. Daí os 68 segundos, o tal um minuto e

oito segundos que separou a colisão do AAL11 do momento em que

as imagens se espalharam pelo mundo.

Nas mesas de operação das instituições financeiras de São Paulo

e do Rio de Janeiro, mais do que depressa traders e brokers gruda-

ram seus olhos nos monitores de tevê.

Era um incêndio, um desastre de avião, uma tragédia, mas nada

que fosse influenciar os mercados futuros de Ibovespa, de dólar, de

taxas de juro e de ouro. Aliás, os próprios operadores do pregão viva-

voz da BM&F puseram de lado as ordens de clientes para assistir

aos acontecimentos.

Até mesmo as ordens pararam de chegar. Acidentes aéreos sem-

pre mexem com o emocional das pessoas e todos queriam ver as

imagens da CNN.

Então, 15 minutos e 12 segundos após o surgimento das primei-

ras imagens, um segundo avião, que mais tarde se saberia ser o

United Airlines 175, ou mais simplesmente UAL175, procedente de

Boston, se chocou contra a face sul da Torre Sul.

Mesmo assistindo ao incêndio e vendo os espessos rolos de fuma-

ça saindo da base do terço superior da Torre Norte, a maioria dos

profissionais de mercado foi vítima de um bloqueio mental. Achou


180
que a sequência de imagens do Boeing 767 que acabara de colidir

com a Torre Sul era um replay do primeiro desastre, quem sabe

filmado de outro ângulo. A maioria, mas não todos. Muitos traders

perceberam que era uma segunda colisão e que a hipótese de isso

acontecer era matematicamente impossível.

Aquilo só podia significar que os Estados Unidos estavam sofren-

do um ataque, que outros aviões poderiam estar se chocando com

outros prédios, num atentado terrorista de proporções e audácia

inéditas.

Essa turma mais privilegiada na rapidez de raciocínio não per-

deu tempo. Liquidou a mercado suas posições compradas de ações e

de Ibovespa futuro. Isso sem falar nos que abriram novas posições:

shorts (posições vendidas a descoberto).

Não demorou muito tempo e chegou a notícia de que a Bolsa de

Valores de Nova York não iria abrir, assim como as bolsas de futuros

americanas. Seguiram-se as imagens, agora em todas as emissoras

de TV, daqui do Brasil e lá de fora, de um terceiro ataque, desta vez

o do American Airlines 77, contra o prédio do Pentágono.

Um quarto avião, anunciava um locutor, caíra na Pensilvânia.

Tratava-se do United Airlines 93, um Boeing 757 que saíra da capi-

tal, Washington D. C., com direção a São Francisco, na Costa Oeste.

Como não podia deixar de ser, os pregões da Bovespa e da BM&F

foram suspensos. Quem zerou, zerou. Quem shorteou, shorteou.

Quem continuou posicionado, deu bobeira. Se deixou levar pelo sus-


181
to, pelo sentimentalismo (mais do que natural), pela paralisia de

raciocínio.

Todas as hipóteses possíveis, cada uma pior do que a outra, co-

meçaram a circular:

“Aposto que isso é só o começo. Deve haver uns 100 aviões sendo

jogados contra as cidades. Eles estão escondendo”, deve ter exage-

rado um trader.

“O Bush não vai deixar barato. Vai retaliar. O Oriente Médio vai

pegar fogo”, alguém pode ter deduzido.

“Começou a Terceira Guerra Mundial”, não foram poucos os que

afirmaram isso.

A Bovespa fechou com queda de 9,18% e continuou caindo nos

dias que se seguiram. A Bolsa de Valores de Nova York só reabriu

na segunda-feira seguinte, dia 17 de setembro, o maior período de

interrupção desde 1933. Levou uma tamancada de 7,1%. Só não foi

pior porque muitos americanos consideraram antipatriótico liqui-

dar posições, quanto mais ficar vendido a descoberto.

Raciocinando como operador de mercado, e apenas como opera-

dor de mercado, acho que quem percebeu que se tratava de um ata-

que e vendeu, fez o que devia fazer.

Traders não mudam o mundo. Apenas o interpretam. Gestores de

fundos são responsáveis pelos resultados de suas carteiras. Brokers

têm a obrigação de alertar seus clientes sobre eventuais riscos.

Essas ocasiões, onde aquele que tem o raciocínio mais rápido, que
182
é mais ligeiro no gatilho, que se despe de seus sentimentos e age,

e lucra (ou deixa de perder) com o episódio, são raras de acontecer.

Quando, no domingo de 18 de agosto de 1991, o líder soviético

Mikhail Gorbachev foi preso em sua dacha (casa de campo), muita

gente achou que a Perestroika (reestruturação) e a Glasnost (trans-

parência), que estavam sendo implantadas por ele, iriam por água

abaixo. Segundo esse raciocínio, os comunistas retornariam ao po-

der e voltaria a Guerra Fria com os Estados Unidos.

Quem, na segunda-feira, shorteou o S&P dentro dessa linha, se

deu mal, muito mal. Três dias após sua prisão, Gorbachev foi liber-

tado por Boris Yeltsin. Quatro meses mais tarde, a União Soviética

se esfacelou. Dividiu-se em diversas repúblicas independentes. A

maioria se tornou capitalista e os Estados Unidos passaram a ser a

única superpotência mundial. Ponto para o Dow Jones, ponto para

o S&P 500.

Há traders que acompanham o mercado tecnicamente (através

de gráficos). Outros o fazem em função dos fundamentos. Sim, fun-

damentalistas e grafistas, é assim que o mercado se divide, embora

haja alguns profissionais adeptos dos dois métodos.

Mas sempre haverá a possibilidade do inesperado, do terremoto,

do tsunami, do assassinato político, da renúncia de um chefe de Es-

tado que parecia firme no posto. Pelo menos uma vez na vida de um

trader surgirá o inesperado.

Quando aconteceram os ataques de 11 de setembro, eu estava to-


183
talmente fora do mercado, que acompanhava apenas pelos jornais,

com um time lag de pelo menos 12 horas.

Na hora em que o United 175 atingiu a Torre Sul, eu, sem ter

a menor ideia do primeiro ataque, dormia profundamente. Traba-

lhara até de madrugada em Carga Perigosa, livro que escrevi sobre

caminhões e caminhoneiros. Por isso não liquidei nada na bolsa,

muito menos shorteei índices. Nem conta em corretora eu tinha na-

quele dia.

Quarenta anos e dezessete dias antes do 11 de Setembro, mais

precisamente na tarde de sexta-feira de 25 de agosto de 1961, eu

fiquei sabendo, através de um telefonema de meu pai, que o presi-

dente Jânio Quadros acabara de renunciar.

O vice de Jânio, João Goulart (Jango), rejeitado pelos militares,

encontrava-se na China em visita oficial a Mao Tsé-Tung. Portanto,

a saída de Jânio seria crise na certa, como de fato foi.

Na época, eu, que tinha apenas três anos de mercado, trabalhava

em câmbio, num escritório de Belo Horizonte. Não só câmbio oficial

como paralelo, o black. Liguei para dois ou três doleiros, assuntando

o mercado e jogando conversa fora. Nenhum deles sabia da renún-

cia.

Me sentindo meio que traidor, fiz meu hedge, minha especulação

particular. Comprei os dólares que podia e que não podia, para liqui-

dação na segunda-feira, dia 28.

Passei o fim de semana angustiado. Não com medo de o dólar


184
cair. Meu receio era o de que os doleiros não liquidassem as opera-

ções, acusando-as antiéticas, fraudulentas, sei lá.

Eles não deram um pio. Talvez até tivessem reposto os dólares

com outros doleiros, coisa que nunca saberei. O certo é que, na se-

gunda, entreguei os cruzeiros e recebi os dólares (papel moeda con-

tra papel moeda).

Entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango, 13 dias mais tarde,

e mesmo assim sob um regime parlamentarista de puro casuísmo,

ganhei uma grana preta nos dólares.

Isso me dá a impressão de que se eu estivesse numa trading desk

no dia 11 de setembro de 2001, assistindo a CNN na hora em que o

segundo avião se chocou contra as torres, teria faturado uma baba.

Só que impressão não é certeza. No dia 11 de setembro de 2006,

cinco anos após os atentados, lancei meu livro Plano de ataque, re-

latando minuciosamente tudo que aconteceu naquela manhã em

Nova York.

Como fiquei muito comovido enquanto pesquisava para a elabo-

ração do livro, acho que mesmo se estivesse na linha de frente do

mercado na hora em que tudo aconteceu, eu talvez fosse acometido

de um susto paralisante e não feito nada. Jamais saberei.

185
Lição 26: Meu amigo Zé Luiz

Em 1965, antes de viajar para Nova York, onde fiz o curso de mer-

cado de capitais, fui chamado para trabalhar num grupo financeiro,

comercial e industrial capitaneado pela rede de lojas Ducal e Be-

moreira. O presidente do grupo era o José Luiz Moreira de Souza

(1927/2007), à época um dos empresários mais influentes do Brasil.

Em troca de uma ajuda de custo enquanto estivesse nos Estados

Unidos, assinei com o José Luiz um contrato de dois anos que se

iniciaria após meu regresso. Minha turma na universidade era de

19 alunos, todos brasileiros, a maioria já trabalhando no mercado,

principalmente em São Paulo e no Rio.

Pois bem, certo dia um dos colegas, pessoa bem informada, me

confidenciou que o conglomerado no qual eu iria trabalhar tinha sé-

rios problemas de endividamento. “Paciência”, pensei. “Quem sabe

isso é exagero. Ou, se for verdade, não vai apagar de minha memó-

ria o que estou aprendendo aqui.”

Quando, após o término do curso, retornei ao Brasil, assumi meu

cargo no grupo. Me encarregaram de fundar uma corretora de valo-

res, a qual dei o nome de Fator.

Aos poucos, fui tomando conhecimento das dificuldades do con-

glomerado, a maior parte decorrente das altas taxas de juros prati-

cadas pela dupla Roberto Campos/Otávio Gouveia de Bulhões, res-

pectivamente ministros do Planejamento e da Fazenda durante o


186
governo Castelo Branco.

De acordo com meu contrato com o grupo Ducal, eu trabalharia

na Fator de 1º de janeiro de 1967 a 31 de dezembro de 1968, tendo

como honorários de diretor dez salários mínimos por mês.

Em novembro de 1968, portanto quase ao final de meu prazo con-

tratual, fui convidado a voltar para a H. Picchioni, corretora de va-

lores de Belo Horizonte na qual eu trabalhara antes de ir para Nova

York. Ordenado: 100 (sim, cem) salários mínimos. Minha função se-

ria estabelecer uma filial da Picchioni no Rio. Evidentemente que

aceitei. Ganhar dez vezes mais. Nem sabia o que fazer com tanto

dinheiro.

Como, em dezembro de 1968, iria tirar férias com minha então

mulher, viajando do Rio para Buenos Aires em nosso Renault Gordi-

ni, deixei para avisar o José Luiz Moreira de Souza após o regresso.

Tinha convicção de que ele jamais cobriria a oferta de BH, além de

não gostar desse tipo de leilão: “trabalho para quem pagar mais”.

Deixamos nosso filho de dois anos com os avós e pegamos a es-

trada. Antes disso, confidenciei a meu braço direito na Fator que na

volta pediria demissão. Pedi sigilo absoluto, pois não queria que o

José Luiz soubesse de minha saída por terceiros.

Fomos para Buenos Aires, passando pelo vale do Itajaí, pelos

pampas gaúchos, Montevidéu, Punta del Este e outras localidades.

Deixamos o Gordini em Colônia, cidade uruguaia às margens do es-

tuário do Prata, onde pegamos um aerobarco até a capital portenha.


187
De volta ao Rio, me apresentei ao José Luiz para lhe informar

que, com o fim do meu contrato, estava fora. Expliquei a razão. Ga-

nharia dez vezes mais, cem salários mínimos.

“Mas cem salários é o que você ganha aqui”, ele explicou. “Vou

chamar a chefe do pessoal (o termo RH ainda não existia) para lhe

mostrar seu contrato. Eu até já assinei, assim como as testemu-

nhas. Só falta você. Vamos fazer isso agora.”

Durante minha ausência, o confidente “de confiança”, querendo

ficar no meu lugar, contou ao José Luiz que eu iria sair. Desconcer-

tado, assinei o papel, na verdade radiante por continuar na Fator,

de cujo ambiente e funcionários gostava muito.

Tive, então, de ir a Belo Horizonte “desonrar” a palavra dada.

Segui uma máxima que meu pai sempre repetia: “é melhor ficar

vermelho de vergonha por alguns minutos do que vermelho de raiva

e arrependimento pelo resto da vida”.

Permaneci na Fator até 1977, quando, no dia 11 de maio daquele

ano, o Banco Central decretou a intervenção no Banco Independên-

cia, que se tornara a empresa mais importante do grupo. Já as uni-

dades comerciais e industriais do conglomerado não tiveram outra

alternativa a não ser a de pedir concordata.

Seis meses antes eu participara de uma viagem a Lake Tahoe,

na divisa dos estados da Califórnia e de Nevada, em companhia de

diversos amigos do mercado financeiro.

Um deles, empresário de projeção até hoje, me confidenciara que


188
o Independência estava na mira do Banco Central e que sofreria

intervenção a qualquer momento.

Eu poderia ter saído da Fator. Só que decidi ser leal ao José Luiz

Moreira de Souza e ficar no grupo até o fim, acontecesse o que acon-

tecesse. Mas tomei algumas decisões que iriam evitar que a correto-

ra tivesse o mesmo destino do Banco Independência.

Durante esses seis meses, desalavanquei totalmente a empresa,

de modo que nosso passivo tornou-se menor do que o valor em caixa.

Isso evitou que a Fator também sofresse intervenção. Tanto é assim

que existe até hoje, transformada em banco de investimento, com

sede em São Paulo e muito atuante no setor de IPOs e M&A (fusões

e aquisições).

José Luiz Moreira de Souza foi uma das pessoas mais empreen-

dedoras que conheci em minha vida. Estava sempre olhando para

cima. Mesmo durante os momentos de maior crise, jamais deixou de

fazer projetos e de fundar novas empresas. Prova disso é o shopping

center Rio Sul, construído por ele, e que até hoje é um dos maiores

do Rio de Janeiro.

Moreira de Souza gostava muito de conversar comigo. Certa oca-

sião, após um extenuante dia de trabalho, fui levá-lo à casa na ave-

nida Vieira Souto, em Ipanema. Quando chegamos lá, ele abriu a

porta do lado do carona, pôs o pé direito na calçada e nessa posição

ficou duas horas batendo papo.

Não raro eu acordava num domingo com um telefonema dele me


189
convidando para encontrá-lo na piscina do Country Club. Nesses

dias, a gente só conversava sobre negócios. Nada de banho de pisci-

na, nada de banalidades.

Zé Luiz era empresário 24 horas por dia, sete dias por semana,

365 dias por ano. Certa ocasião, a conselho médico, embarcou com

sua mulher, Maria Carmen, num cruzeiro de navio. Desceu na pri-

meira escala, em Salvador, e voltou de avião para o Rio. Simples-

mente não conseguia se desligar dos negócios.

Seu maior pecado foi o de acreditar no Brasil, um país que, como

sabemos até hoje, tem sempre de ser encarado com um pé atrás. Na

véspera da intervenção no Banco Independência, fui convidado para

almoçar com um amigo, o mesmo que me alertara em Lake Tahoe

sobre a iminente intervenção em meu grupo. Ele me disse que as

equipes do Banco Central entrariam nas nossas instituições às 17

horas do dia seguinte.

Imediatamente, avisei ao José Luiz. “Impossível”, ele me disse.

“Acabo de conversar por telefone com o Geisel (presidente da Repú-

blica) e com o Simonsen (Mário Henrique Simonsen, ministro da

Fazenda). Eles descartaram essa possibilidade.”

Eu apontei para um cofre no canto da sala da presidência e disse:

“Não tem nenhum dólar aí, ou alguma coisa que você queira levar

para casa para ficar a salvo de uma inspeção?”.

“Pode ser que tenha alguma coisa, dinheiro que sobrou de minha

última viagem. Mas não vou mexer nisso. Se o que você está falando
190
é verdade, e continuo não acreditando, que os fiscais do Banco Cen-

tral façam bom proveito. Não vou esconder coisas como se fosse um

escroque.”

Sabendo que intervenções são sempre desmentidas por inter-

ventores, para evitar que os punidos possam tomar alguma medida

preventiva (como esconder papéis comprometedores, por exemplo),

peguei um avião para Brasília, onde avisei ao diretor de Mercado de

Capitais do Banco Central, Sérgio Ribeiro, que tinha condições de

pagar todos os débitos da Fator. Embora também tenha desmentido

a intervenção, Ribeiro, após consultar seus superiores, decidiu ex-

cluir a Fator dos procedimentos.

José Luiz Moreira de Souza trabalhou até o fim dos seus dias. Do

último andar da torre do Rio Sul, acompanhou todo o processo de

liquidação de seu grupo financeiro e conseguiu salvar parte de seus

outros empreendimentos.

A última vez que o vi, em seu escritório na torre, ele me exibiu um

documentário feito na época em que seu grupo estava no auge. Mais

tarde, quando me tornei escritor, e publiquei Rapina, ele me ligou:

“Parabéns, Ivan. O mercado é exatamente assim como você relatou”.

Até hoje sinto saudades do homem que acreditava no Brasil.

191
Lição 27: Este país está morrendo

No fim dos anos 1980 e início da década de 1990, eu trabalhava

numa distribuidora de valores chamada FNJ, iniciais de Felipe

Nery Junqueira, sócio majoritário da empresa.

Nessa ocasião, comecei a escrever relatórios mensais sobre eco-

nomia, política e os diversos mercados nacionais e internacionais,

além de um comentário anual sobre a conjuntura do Brasil e do

mundo. A esses textos, datilografados numa IBM elétrica e distri-

buídos pelos correios, dei o nome de Relatório FNJ.

Meus boletins eram lidos por traders, investidores, dirigentes do

Banco Central e até mesmo por dois governadores: Mário Covas, de

São Paulo, e Fernando Collor de Mello, de Alagoas.

Quando saí da FNJ, e passei a operar única e exclusivamente

nos mercados internacionais de futuros, para clientes altamente

especulativos, deixei de escrever os comentários. Infelizmente, não

guardei nenhuma cópia dos Relatórios FNJ.

Um quarto de século mais tarde, quando iniciei minhas newsletters

na Inversa, um dos leitores escreveu para a empresa informando

que havia guardado meus textos daquela época e que desejava ofe-

recê-los de presente para mim. A Olivia Alonso, publisher da Inver-

sa, foi pessoalmente visitar o leitor, pegou os relatórios, mandou

encaderná-los e me deu. Tive, então, a oportunidade de reler o que

escrevera no século passado.


192
Muitas coisas, principalmente conceitos, não mudaram abso-

lutamente nada. Outras são simplesmente inacreditáveis quando

comparadas aos dias de hoje. Uma das situações que o Brasil viveu

intensamente na época em que eu escrevia os Relatórios FNJ era a

hiperinflação. Se por um lado ela corroía o salário da maioria dos

brasileiros, que nem conta em banco tinha, por outro permitia que

o Tesouro Nacional, através de malabarismos com os números, re-

cebesse os impostos corrigidos monetariamente, enquanto os gas-

tos do orçamento eram mantidos em valores fixos. Em 1988, por

exemplo, a Previdência foi superavitária. Eis o que escrevi sobre o

assunto no início de 1989:

“Os jornais desfilaram sombrias estatísticas econômicas de fim de

ano. Entre elas, vê-se que os salários subiram 585% em 1988, con-

tra uma inflação anual de 933,60%, configurando um dos maiores

arrochos da história do país. Como se não bastasse, o INSS cobriu

seu déficit corroendo a pensão dos aposentados, usando para isso o

estratagema de atrasar os reajustes e os próprios pagamentos dos

benefícios, enquanto corrigiu mensalmente o recolhimento previden-

ciário sobre o salário do pessoal ativo.”

Para quem é jovem, e não testemunhou esse período, eis como

se comportavam os ativos naquele cenário de inflação. Tomo como

exemplo o mês de maio de 1988:

193
Dólar Poupança Over CDBs Ibovespa Inflação
paralelo mensal

+23,08% +18,03% +18,65% +18,82% +18,09% +17,78%

Ou seja, simplesmente para empatar com a inflação, qualquer

investimento tinha de “render” pelo menos 17,78% ao mês. Agora,

imagine o povão que sequer tinha conta bancária, que dirá aplica-

ções no mercado.

Nos relatórios FNJ eu escrevia muito sobre os mercados inter-

nacionais, entre eles os das commodities agrícolas. Sobre o açúcar,

por exemplo, que sempre foi minha paixão, em 30 de junho de 1988,

comentei:

“De 1925 a 1963, o açúcar oscilou entre 3 e 7 centavos de dólar a

libra-peso. Em 1964, ocorreu o primeiro bull market: o preço chegou

a 12 centavos. Entre 1970 e 1973, teve início a base do segundo bull

market. O preço subiu de 8,5 para 12 centavos. EM 1974, O MERCA-

DO EXPLODIU E ATINGIU 66 CENTAVOS NO MERCADO FU-

TURO DE NOVA YORK.

Em 1975, como não podia deixar de ser, houve um crash. O açú-

car despencou em queda livre para 10 centavos de dólar. Em 1976 e

1977, o mercado foi até 12,5 e voltou a 10 centavos. Em 1979, ocorreu

o terceiro bull market. O açúcar foi a 15. EM 1980 O AÇÚCAR EX-

PLODIU DE NOVO E CHEGOU A 46 CENTAVOS.”

Outra de minhas predileções era o mercado internacional de pe-


194
tróleo. Após os dois grandes choques, em 1973 (por causa da guerra

do Yom Kippur) e 1979 (Revolução Iraniana), no final da década de

1980 havia superprodução e guerra de preços. Eis meu comentário

na ocasião:

“Tudo indica que os preços do petróleo deverão permanecer em

baixa nos próximos meses. Em 12.07.88, o petróleo futuro para agos-

to em Nova York atingiu o preço de US$ 14,42 por barril, a menor

cotação desde outubro de 1986.

Além do Iraque, que não tem cota, dois países estão trapaceando

o acordo da OPEP: Kuwait e Emirados Árabes Unidos. O ponto de

equilíbrio reside na ação da Arábia Saudita. Se os sauditas se abor-

recerem com os embustes dos outros países membros e acelerarem

sua produção, os preços poderão sofrer um colapso que levará a cota-

ção do barril para um nível entre US$ 8,00 e US$ 10,00.”

Esse colapso realmente aconteceu. Foi preciso que George Bush

pai, então vice-presidente de Ronald Reagan, fizesse uma viagem a

Riad para pôr fim à queda, que, embora favorecesse os consumido-

res americanos, prejudicava os produtores do Texas, grandes finan-

ciadores das campanhas políticas de Bush. No Relatório FNJ, eu

viajava por todos os mercados e levava os leitores comigo.

Em agosto de 1988, voltei a comentar o quadro brasileiro de in-

flação, cujo índice anualizado chegara a 1.226 % (24,04% mensais).

Eis como os ativos haviam se comportado no mês anterior:

195
Dólar Poupança Over CDBs Ibovespa Inflação
paralelo mensal

+28,94% +24,66% +23,99% +24,66% +3,64% +24,04%

Vejam como era difícil operar em bolsa naquela época. Um “ga-

nho” de 3,64% contra uma inflação de 24,04% era dificílimo de ser

recuperado. Em meu relatório de 31 de outubro de 1988, portanto

um ano antes da primeira eleição presidencial direta após a rede-

mocratização, eu já alertava sobre a possibilidade de um calote na

dívida interna (que se materializaria no confisco do Plano Collor).

Eis o que prognostiquei:

“O novo presidente da República, que irá assumir o governo em

março de 1990, terá quatro anos de mandato pela frente. Não vai

querer passar os quatro anos tentando estancar a inflação na faixa

dos 30% (ao mês, bem entendido), depois na dos 40%, depois na dos

50% e assim por diante. Não vai querer atravessar seus quatro anos

discutindo greve por greve, aumento por aumento, choque por cho-

que.

Vai assumir o poder legitimado por uma maioria absoluta que as

eleições em dois turnos oferecem e tentar resolver o problema de uma

só penada.

E a solução do problema passa por um corte súbito na dívida interna.”

Isso foi publicado no Relatório FNJ 18 meses antes do confisco

de Collor. Não foi nenhuma intuição ou bruxaria de minha parte.


196
Todas as hiperinflações terminam com esse tipo de medida drástica.

Nosso boletim mensal já fizera uma edição especialmente dedicada

ao estudo do fenômeno em diversos países e épocas da História.

Durante a época em que fazíamos aquelas publicações, as taxas

reais de juros no Brasil chegavam a 329,4% ao mês. Sim, repetindo:

329,4% reais ao mês. Isso não é erro de digitação e aconteceu em

março de 1989, um ano antes do confisco.

Sobre a Venezuela, dez anos antes de Hugo Chávez e seu regime

bolivariano (seja lá o que isso significa) chegarem ao poder, escrevi:

“Membro da OPEP, a Venezuela viu o preço do petróleo sair de

US$ 2,00 para US$ 40,00 nos anos 1970 e incrivelmente não se

transformou em uma nação rica. Quis viver com petróleo de US$

15,00 da mesma maneira como vivia com petróleo de US$ 40,00. E

importou tudo: automóveis, pasta de dente, manteiga, etc.”

É sina da Venezuela ser pobre ou simplesmente a maldição do

petróleo? Na página 13 do Relatório FNJ nº 18, de abril de 1989,

ao comentar sobre os direitos adquiridos de alguns privilegiados do

serviço público, e o mal que isso causava ao Brasil, não deixei por

menos: “Este país está morrendo”.

Como se passaram três décadas desde então, pode-se dizer que

meu pessimismo foi exagerado. Mas não dá para se contar nos dedos

quantas vezes fomos para a UTI. Não é à toa que boa parte dos nos-

sos melhores cérebros foi embora. Para eles, o país morreu.

197
Lição 28: Caça ao tesouro

No primeiro semestre de 1971, quando sobreveio a quinta e última

onda do grande bull market daqueles tempos, eu ganhei aproxima-

damente US$ 1 milhão. Naquela época, os lucros obtidos na compra

e venda de ações não eram tributáveis.

Foi uma farra. Deu para comprar uma cobertura em Ipanema,

com piscina e vista para o mar, além de um Galaxie 500 zero quilô-

metro, uma motocicleta Honda 360 e um carro esportivo Karmann

Ghia TC para a cara-metade.

Como se não bastasse, a gente passava feriadões na Europa, via-

jando de primeira classe na Varig, com a naturalidade de quem es-

tivesse indo para Búzios ou Campo dos Jordão.

Ah, antes que me esqueça. Eu comprava praticamente um Re-

nault Gordini por semana, já que praticava autobol (futebol de au-

tomóveis), esporte que simplesmente destruía os carrinhos.

Pois bem, na declaração de imposto de renda de 1972, ano base

1971, informei esses rendimentos na rubrica “não tributáveis”. A

Receita Federal pagou para ver. Algum inspetor, desconfiado com os

números superlativos, me intimou para explicá-los.

Felizmente, eu tinha declarado os valores certos. Como era um

dos donos da corretora (Fator), através da qual operava em bolsa,

não foi difícil preparar as planilhas demonstrativas. Juntei os pa-

péis e levei tudo ao ministério da Fazenda, que ficava na avenida


198
Presidente Antônio Carlos. Em pouco mais de uma hora comprovei

meus lucros e fui liberado.

No fim de semana, em casa, examinando a papelada, verifiquei

que comprei ações da Hime por um preço e vendi por outro logo aci-

ma. Entre outras ações, fiz o mesmo com a Cia. Siderúrgica Belgo

Mineira, com a Cia. Vale do Rio Doce, com a Arno, com a Kibon e

com a América Fabril.

A resultante, convertida em dólares, foi o tal milhão. O que me

deixou surpreso foi a constatação de que não precisava fazer nada

daquilo. Bastava ter comprado um daqueles papéis, qualquer um,

que teria ganho mais. Isso porque cada vez que eu vendia um papel

e comprava outro deixava de ganhar um pequeno gap do mercado.

Ganhar numa bolha epilética especulativa, ser touro com freio

nos dentes e fogo no rabo, é fácil. Quero ver tirar leite de pedra.

Escolher o papel certo num ciclo do urso, ou mesmo no marasmo de

um período de baixa liquidez, quando os traders estão olhando para

outra coisa, como o mercado de commodities.

Pinçar essas oportunidades mágicas é o que chamo de Caça ao

Tesouro. Felizmente, isso já me aconteceu diversas vezes. Nas de-

mais ocasiões, oportunidades em que operei por operar, perdi di-

nheiro ou fiquei no zero a zero.

O primeiro papel mágico do qual tomei conhecimento foi a Xerox

Corporation, nome esse cuja pronúncia certa é “Zirox”. Nessa oca-

sião (segunda metade dos anos 1960) eu morava em Nova York e es-
199
tudava administração de carteiras (portfolio management) na NYU.

Até o advento da Xerox, cópias eram tiradas em copiadoras fotos-

táticas que exigiam um produto químico, espécie de cola, que costu-

mava borrar tudo. Havia também os mimeógrafos, para quantida-

des maiores. A Xerox acabou com a lambança e tornou-se dona do

mercado de copiadoras, situação que permanece até hoje, passado

mais de meio século. Quem comprou suas ações logo no início ra-

chou de ganhar dinheiro.

Outra grande tacada da época foram as ações da DuPont, em-

presa que, embora existisse desde 1802, adquirira nos anos 1960 a

patente da Teflon, produto que, como todo mundo sabe, impede que

a comida grude nas panelas e frigideiras, além de dezenas de outras

propriedades, inclusive nas áreas médica e de construção civil.

Bem, eu testemunhei as altas da Dupont e da Xerox mas nada

ganhei com elas, a não ser aprendizado, já que era apenas estudan-

te e não operava na bolsa de lá.

De volta ao Brasil, e ao mercado nacional de ações, descobri que

o Índice Preço/Lucro, mais conhecido como P/L, não era usado nas

análises da bolsa do Rio.

Mais, descobri que as ações do Banco do Brasil estavam com P/L

1. Ou seja, o lucro por ação do banco era igual ao seu preço em bolsa.

Depositando uma pequena margem, comprei BB a termo e dei mi-

nha primeira grande tacada após o curso em Nova York. Encontrara

meu primeiro tesouro.


200
A segunda tacada foi pura sorte. Em 1967, eu comprara ações

ordinárias nominativas da Petrobras – naquela época, havia papéis

ao portador – por 30 centavos de cruzeiro. Acontece que essas ações

pertenciam a um estrangeiro. De acordo com o estatuto da empre-

sa, só brasileiros podiam comprar ações ordinárias. Estrangeiros, só

preferenciais.

Como eu adquirira os papéis em bolsa, nada tinha a ver com quem

os vendeu. Mas surgiu o impasse. Eu comprara ações, digamos, ile-

gais. A pendência que surgiu durou quatro anos, que foi o tempo que

a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro demorou para desembaraçá-la.

Quando recebi os papéis, e pude vendê-los, a cotação se elevara de

30 centavos para 13 cruzeiros, uma alta de mais de 4.000%, que

me capitalizou para entrar naquela roda viva citada no início desta

crônica: Hime, Belgo, Vale, Arno, Kibon, América Fabril, as tais que

me levaram à toca do Leão em 1972.

Tendo constatado que ficar girando papéis para lá e para cá só

serve para perder dinheiro, passei a dedicar boa parte do meu tem-

po a caçar situações como as da Xerox, Dupont e Banco do Brasil.

E foi assim que descobri a CRI, Companhia Real de Investimentos,

financeira que pagava de dividendos, em um ano, seu preço de ne-

gociação em bolsa.

Se eu tivesse permanecido com as CRIs, poderia até parar de

trabalhar – a essa altura eu tinha 37 anos – e viver só de dividendos

o resto da vida. Mas continuei no mercado, operando nas bolsas de


201
commodities e de futuros de Nova York e Chicago.

Acabei vendendo as CRIs e comprando barras de ouro, uma das

inúmeras burrices que fiz na vida. Prova disso é que as CRIs conti-

nuaram subindo e o ouro caiu de 500 dólares a onça para 350.

Ainda bem que reassumi meu juízo e, na busca de um novo tesou-

ro, descobri a Martin Marietta, empresa líder nas áreas química,

aeroespacial e eletrônica. Eles ganhavam fortunas com patentes.

Além de uma alta formidável, meu lucro com a Marietta engor-

dou ainda mais quando a empresa se fundiu com a Lockheed Cor-

poration passando a se chamar Lockheed Martin. Pena que eu não

tivesse investido muito. Caso contrário poderia estar gigolando a

Marietta até hoje.

No livro Market Wizards, uma coletânea de entrevistas com al-

guns dos traders mais bem-sucedidos da história dos mercados, o

autor, Jack D. Schwager, conversa com o investidor em ações David

Ryan.

Esse capítulo se chama Stock Investment as a Treasury Hunt (In-

vestimento em ações como uma caça ao tesouro). Ryan, que acom-

panha de quatro a sete mil ações ao mesmo tempo, tem um critério

curioso para selecioná-las. Ele gosta de escolher empresas cujas co-

tações acabaram de fazer uma nova máxima de todos os tempos.

“É um momento em que ninguém está perdendo dinheiro com

aquele papel”, diz Ryan. “Sempre há uma razão forte para isso.”

É evidente – e agora sou eu que digo – que todas as grandes


202
altas da história começaram com um novo high. Qualquer pessoa

que queira ganhar dinheiro com ações, ou até mesmo viver disso,

deve ter em mente que o tempo deve ser gasto com análise, seja ela

fundamentalista ou técnica, das cotações, e não com compra e venda

dos papéis. Isso é coisa para scalpers ou day traders, que vigiam o

mercado segundo a segundo, capturando uma distorção aqui, outra

ali, e à noite vão para casa zerados.

Quem ganha dinheiro grosso na bolsa é quem investe, quem es-

colhe o papel certo. Segundo Warren Buffett, o mais bem-sucedido

investidor dos tempos atuais, “alguém está sentado na sombra hoje

porque alguém plantou ali uma árvore há muitos anos”.

Outro trader mítico de bolsa, Jesse Livermore, uma das grandes

figuras do maior dos bull markets, o dos Esfuziantes Anos Vinte

(The Roaring Twenties), sempre dizia que “o mercado de ações nun-

ca é óbvio. Ele é concebido para enganar a maioria das pessoas,

durante quase todo o tempo”.

Se você for um investidor que não se importa de ficar semanas e

mais semanas aparentemente sem fazer nada, apenas estudando o

mercado, e tiver bom senso e sentido de oportunidade, vai encontrar

a empresa que acaba de desenvolver o produto certo, ou aquela que

dobrou seu lucro em cada um dos seus primeiros anos.

Quem sabe você, caro leitor, localiza o laboratório farmacêutico

que está prestes a descobrir o medicamento que vai curar o mal de

Alzheimer ou a esclerose lateral amiotrófica. Quem sabe você encon-


203
tra, sendo lançada na bolsa de valores de Shenzhen, na China, uma

IPO de uma companhia que desenvolveu uma bateria automotiva

que tem a metade do peso e o dobro da autonomia das atuais.

É assim que se acha o tesouro. Pois é certo que ele está lá em

algum lugar. Talvez num artigo da revisa Nature, quem sabe numa

matéria do New England Journal of Medicine, talvez numa conven-

ção de videogamers ou, se você for um tremendo sortudo, na garagem

de fundo de quintal do filho de seu vizinho, um adolescente mirrado,

de óculos de fundo de garrafa. Ele está dando voltas ao redor de sua

bancada, bebendo uma garrafa de cerveja e comemorando algo que

acaba de descobrir e que vai mudar o destino da humanidade.

Como o rapazote é seu parceiro de xadrez, dá um pulo lá para ver

o que aconteceu. Pode ser um novo Thomas Edison, Bill Gates ou

Steve Jobs dando sopa e que precisa de um sócio que entre em seu

negócio com 10 ou 20 mil dólares. Insisto: não é “treidando” o mer-

cado tresloucadamente que se ganha dinheiro. É enxergando antes

dos outros, descobrindo um tesouro.

204
Lição 29: Renda fixa não existe

No início da década de 2010, a Petrobras lançou obrigações de dez

anos no mercado americano. Esses títulos eram em dólares e ren-

diam 6% ao ano, com juros pagos semestralmente. Sob todos os as-

pectos, principalmente, repito, os seis por cento anuais em dólares,

eram um ótimo investimento.

Veio então a operação Lava-Jato. A Polícia Federal e o Ministé-

rio Público descobriram falcatruas descomunais na empresa. Eram

tantas as operações fraudulentas que a estatal, durante a gestão

Graça Foster, se viu impedida de publicar seu balanço por falta de

dados confiáveis. Nem mesmo dados desconfiáveis acho que eles ti-

nham. A contabilidade era um buraco negro.

Nessa ocasião, no mercado de San Juan de Porto Rico, as obriga-

ções de dez anos da Petrobras passaram a ser oferecidas com enor-

me deságio, por temor de que a companhia pudesse falir e não liqui-

dar seus títulos no vencimento.

Como os seis por cento de juros eram calculados sobre o valor de

face dos papéis, e estes eram negociados por um preço muito menor

(por causa do deságio), os seis podiam significar dez, 12 e até 15%,

dependendo do momento.

Eu, como brasileiro macaco velho, sabia que a Petrobras não que-

braria. O máximo que podia acontecer era o governo federal (leia-se,

“o contribuinte”) entrar com um aporte de capital para salvá-la da


205
falência. Além do fato de que as jazidas de petróleo continuavam

intactas.

Fiz, então, um dos melhores investimentos proporcionais de mi-

nha vida. Comprei obrigações e as mantive em carteira. A Graça

saiu, foi substituída pelo Aldemir Bendine e este, com o impeach-

ment de Dilma Rousseff, pelo Pedro Parente.

Os títulos de dez anos da Petrobras passaram a ser negociados

(aleluia!) com ágio, ou seja, rendendo menos de 6% ao ano, mas não

para quem os comprou quando estavam lá na bacia das almas, como

foi o meu caso. Resultado, tendo aplicado US$ 138 mil, tive um lu-

cro de mais de US$ 40 mil quando vendi meus papéis, muitos anos

antes do vencimento que, por sinal, só irá ocorrer em 2023. Como

se vê, renda fixa não é renda fixa, a não ser que você mantenha sua

aplicação até o investimento expirar.

Retroagindo décadas no tempo, em 1966, quando voltei ao Brasil

após o curso de mercado de capitais na NYU, fui trabalhar numa fi-

nanceira chamada Decred. Ela captava dinheiro através da emissão

e venda de letras de câmbio e emprestava recursos sob a forma de

crédito direto ao consumidor.

Essas letras venciam em seis meses e rendiam aproximadamente

3% ao mês, um pouco mais do que a inflação brasileira da época. O

cálculo era simples. Se um investidor aplicava mil cruzeiros, ao final

de um semestre recebia CR$ 1.180,00. Só que, se resolvesse resgatar

antes, a financeira lhe garantia os 3%. Simplesmente porque desco-


206
nhecia o conceito de juros compostos.

Se um espertinho investisse os mil, passasse no caixa três meses

mais tarde, recebesse CR$ 1.090,00 e aplicasse esses 1.090,00 por

três meses, também a 3%, em uma financeira concorrente, ao final

de um semestre punha no bolso CR$ 1.188,10. Ou seja, ganhava

CR$ 8,10 pela esperteza (para não dizer outro nome). Eram 8,10 a

mais para ele e 8,10 a menos para a financeira.

Em menos de uma semana acabei com a mamata. Ao invés dos

CR$ 1.090,00, o cara recebia um valor menor, valor esse que pro-

porcionava ao novo proprietário dos papéis, ele sim, receber três por

cento ao mês. Fui considerado um gênio, só porque sabia a diferença

entre juros simples e juros compostos, bê-á-bá da matemática finan-

ceira.

Mesmo quando você compra um título de renda fixa e fica com ele

até o vencimento, isso não quer dizer que fez um bom negócio. Se a

inflação ou as taxas de juros, ou ambas, subiram ao longo do curso

de sua aplicação, esta foi ruim. Se caíram, foi boa. Simples assim.

Passemos a tempos mais civilizados em termos de moeda. Já es-

tamos no Plano Real. Digamos que você comprou um título renden-

do 6,5% anuais, numa época em que as taxas de juros eram essas e

a inflação, de 4,5% ao ano.

Agora, suponhamos que, no meio do período de sua aplicação, a

inflação suba para 7% ao ano e as taxas de juros, para 10%. Se você,

por alguma razão, precisar vender os papéis, o comprador conside-


207
rará as taxas de juros da ocasião e nem os 6,5% pretendidos antes

você ganhará, uma vez que, sendo um título de valor de resgate fixo,

seu preço unitário de negociação (PU) levará em conta os 10% até o

prazo de vencimento.

Dependendo do prazo, você poderá receber por seus papéis um

valor até menor do que pagou por eles. Em contrapartida, se o caro

amigo leitor compra um título de renda fixa com rendimento de

6,5% e a inflação e as taxas caem, você poderá negociá-lo com um

rendimento superior aos seis e meio.

Por tais razões é que não existe renda fixa. Se os papéis oscilam

de preço, a renda é sempre variável. E mesmo que você os carregue

até o fim, se as taxas nesse período forem maiores, você perderá o

que se chama de custo de oportunidade.

Existem países nos quais a economia é tão confiável que seus

governos lançam títulos de 100 anos. A Áustria, por exemplo, que

já passou por uma hiperinflação (10.000% ao ano) entre janeiro de

1921 e agosto de 1922, aprendeu a lição de casa. Em 2017, vendeu

obrigações com vencimento em 2117 rendendo 2,1% ao ano, taxa

ligeiramente negativa pois nesse ano o aumento de preços foi de

2,2%,

Os compradores ganharão muito dinheiro se a inflação e os juros

caírem, já que o preço dos papéis subirá muito por causa do longo

prazo. Poderão ser negociados com ágio.

Até meados da década de 1950, as cadernetas de poupança da


208
Caixa Econômica Federal eram cadernetas mesmo. Rendiam seis

por cento ao ano. Pagavam juros semestrais. Você tinha de levar a

caderneta numa agência da Caixa, o funcionário aplicava um carim-

bo no quadradinho dos juros correspondentes àquele período e lhe

pagava o valor em dinheiro. Elas não tinham vencimento. A qual-

quer instante o aplicador podia ir na Caixa Econômica e resgatar o

principal.

Os primeiros títulos de renda fixa nos moldes de hoje dos quais

tomei conhecimento eram notas promissórias da Cia. Siderúrgica

Mannesmann que tinham um valor e uma data de resgate fixos.

Eram negociados com deságio. Esse deságio correspondia ao ganho

na aplicação.

Nessa época eu tinha uns 20 anos de idade e trabalhava numa

corretora de valores em Belo Horizonte. Lá, negociávamos os papéis

da Mannesmann assim como apólices do Tesouro de Minas Gerais,

cujos cupons, destacáveis, representavam os juros.

Em 1964, primeiro ano do governo Castelo Branco, foi fundado o

Banco Central do Brasil. Nessa mesma ocasião, instituiu-se a corre-

ção monetária. O BC lançou as ORTNs (Obrigações Reajustáveis do

Tesouro Nacional) com juros de 6% ao ano, também pagos mediante

uma carimbada. Lançou também as LTNs (Letras do Tesouro Na-

cional), cujo deságio inicial era estabelecido pelo mercado, através

de leilão.

Tanto a renda fixa das ORTNs como a das LTNs era variável por-
209
que seus preços unitários variavam a cada dia. Não eram uma reta

ascendente até o vencimento.

Mais tarde, já nos anos 1980, quando a inflação se transformou

em hiperinflação, começaram a surgir os planos econômicos hetero-

doxos, com cortes no número de zeros na unidade monetária, con-

gelamento de salários e preços e tablitas deflatoras. Se renda fixa

nunca fora fixa mesmo, agora já não tinha a menor semelhança. Os

papéis eram sempre de renda variável e de alto risco.

Toda vez que surgia uma tablita, um título do governo ou mes-

mo privado com valor de vencimento de, por exemplo, um milhão

de cruzados, ou um milhão de cruzados novos, podia ter esse valor

diminuído de acordo com a referida tablita.

Correção monetária, corte de zeros, mudança de moeda, tablitas,

tudo isso transformou os operadores de mercado de capitais brasi-

leiros num dos melhores (se não os melhores) do mundo. A gente

tinha de trabalhar com todos os cenários.

Veio, então, o Plano Real, estabilizando a moeda. Os títulos de

renda fixa voltaram a ter um valor inicial e outro de resgate. Mas

quem for negociá-los no meio do caminho terá maior ou menor ren-

tabilidade dependendo das taxas de juros do momento.

Por isso, se você aplicar em um título de mil reais com resgate em

um ano no valor de R$ 1.065,00, isso significa apenas que, se levar

o papel a resgate, ganhará 65 reais. Mas não quer dizer que fez um

bom ou mau negócio.


210
O mercado é sempre de risco. Às vezes maior, às vezes menor,

mas sempre de risco. Daí a necessidade de conhecer os fundamentos

e as projeções da economia ou confiar suas aplicações a um profis-

sional que entenda do riscado (com perdão pelo trocadilho).

Se você é um jovem de 20 ou 30 anos, quem sabe ainda comprará

um papel brasileiro de 100 anos. Isso será um sinal auspicioso de

que o Brasil tornou-se um país insuspeito. Mesmo assim, ele oscila-

rá de preço e sua renda jamais será fixa.

211
Lição 30: A era da abundância

Nos últimos tempos, a gente tem passado por situações tão esdrúxu-

las e aflitivas no Brasil que não paramos para pensar em como o

país e o mundo melhoraram nos últimos 100 anos.

Há pouco mais de um século, a Primeira Guerra Mundial deixa-

ra, entre militares e civis, um saldo de quase 10 milhões de mortos,

mortos esses que logo se somariam a inacreditáveis 50 milhões de

pessoas (3% da população do planeta) dizimadas pela gripe espa-

nhola, pandemia que durou de janeiro de 1918 a dezembro de 1920.

Naquela época, um em cada quatro nascituros brasileiros morria

antes de completar um ano de idade. Dois terços dos cidadãos do

país com mais de 14 anos eram analfabetos.

Na Europa e na Ásia, a situação era tão confusa, com o desapa-

recimento de grandes Estados, como o Império Austro-Húngaro, e o

surgimento de outros, como a Iugoslávia, que reuniu sob a mesma

bandeira povos que não se identificavam entre si.

A expectativa média de vida entre os humanos era de pouco mais

de 40 anos. Portanto, não é exagero afirmar que nos últimos 100

anos a humanidade evoluiu muito, para o bem dos terráqueos. A

renda média per capita mundial triplicou. A expectativa de vida

quase dobrou. O custo dos alimentos diminuiu 30 vezes; ao passo

que o do transporte, 100 vezes; o das comunicações, um milhão de

vezes.
212
Só que isso tudo é passado. E quem vive de passado é museu ou

historiador. O melhor é que esse período de pujança crescente mal

está começando. E quem diz isso não sou eu, mas diversos acadêmi-

cos de grande prestígio internacional. Apenas transcrevo suas opi-

niões, nas quais acredito plenamente, embora, já chegando aos 80

anos, não terei tempo de viver os novos e bons tempos.

A expectativa média de vida, atualmente ao redor de 70 anos

(incluindo nessa estatística os países pobres da África), deverá subir

em 2050 para 80, estimam os integrantes da organização filantrópi-

ca americana MacArthur Research Network, sediada em Chicago.

Pessoas centenárias não serão exceções dignas de espanto. E de-

verão ter a saúde de uma pessoa de 60 anos dos dias de hoje. Isso se

deverá ao enorme avanço da medicina regenerativa.

Todo mundo sabe que a informática avança em progressão geo-

métrica. Mas é importante registrar isso em números. Em 1981, um

gigabyte de armazenamento custava meio milhão de dólares. Hoje,

custa dois centavos. Ou seja, é 25 milhões de vezes mais barato.

Em 1971, quando a Intel lançou seu primeiro chip de computa-

dor, ele continha 2.300 transistores ao custo de um dólar cada um.

Agora, um chip contém 14,4 bilhões de transistores, cada unidade

custando um milionésimo de centavo de dólar. A produtividade cres-

ceu 330 bilhões de vezes. Um smartphone dos dias atuais tem mais

poder computacional do que todos os governos somados da Terra em

1990.
213
Voltando ao tema saúde, a expectativa é que dentro de duas ou

três décadas as pessoas dos países desenvolvidos tenham suas taxas

de glicose, colesterol, triglicerídeos, nível de pressão sanguínea e de

batimentos cardíacos monitorados por uma central, bastando para

isso a implantação subcutânea de um chip quase microscópico.

Você poderá fazer quantos exames de laboratório quiser por dia.

Basta dar uma olhada em seu relógio de pulso. Um exame de DNA

custará apenas 100 dólares e será entregue em uma hora. Tudo isso

irá gerar uma enorme possibilidade de negócios.

“Se você quiser se tornar um bilionário, ajude um bilhão de pes-

soas”. “Que impacto você quer ter na vida do planeta?”. Impactos

serão grandes ativos.

A era da abundância já começou. Do início do século 19 até os

dias atuais, o percentual de pessoas que vivem em extrema pobreza

caiu de 85% (sim, 85% − uma safra ruim matava centenas de milha-

res de seres humanos de fome) para 12%.

O médico, acadêmico, estatístico e palestrante sueco Hans Rosling,

professor do Instituto Karolinska, prevê o fim da extrema pobre-

za na década de 2030. Isso se deverá em grande parte ao enorme

crescimento da China e da Índia, as duas nações mais populosas do

planeta. Mas, eu acrescento, e daí?

“Quando as pessoas deixarem a extrema pobreza”, diz Rosling,

“elas terão famílias menores. Em outras palavras, o desenvolvimen-

to econômico é a chave do controle do crescimento populacional.”


214
“Hoje em dia há aproximadamente 1,9 bilhão de crianças”, o aca-

dêmico prossegue. “Mas esse número parou de subir. A população

mundial continua crescendo, mas tal coisa se deve ao fato de que as

pessoas vivem mais”. “Será mais fácil e mais rápido acabar com a

extrema pobreza nos países pobres de hoje”, Rosling conclui, “do que

foi no mundo ocidental”.

Preocupada com o crescente aumento da idade média da popula-

ção, a China extinguiu a política de “um filho só”. Passou a admitir

dois e agora liberou geral. A mão de obra está se tornando cada vez

mais desnecessária, principalmente na agricultura. Onde antes a

terra era arada pelo homem com a enxada, surgiram os tratores.

Agora essas máquinas dispensarão seus condutores, tal como já

acontece na Case IH, fabricante de veículos agrícolas não tripula-

dos.

Como vai sobrar trabalhadores em praticamente todos os seto-

res, as pessoas terão de trabalhar menos horas. Isso dará grande

impulso às indústrias de lazer e de turismo.

Quem estuda história, não deveria se espantar com esses dados.

Por ocasião da Revolução Industrial, por exemplo, os empregados,

inclusive crianças, trabalhavam de 14 a 16 horas por dia, seis dias

por semana.

O professor Jesse H. Ausubel, da Rockefeller University, diz que

“a agricultura tem sido sempre a grande destruidora do meio am-

biente”. Acontece que, como no mundo de hoje há excesso de alimen-


215
tos, e isso só tende a aumentar, logo terras agriculturáveis poderão

ser devolvidas à natureza.

Um dos maiores progressos da humanidade reside na questão da

renda. Em 1820, mais de 90% da população mundial vivia com me-

nos de dois dólares por dia e 80% com menos de um dólar (valores

ajustados pela inflação).

Já em 2015, de acordo com dados do Banco Mundial, menos de

10% da população do planeta vive com menos de US$ 1,90 por dia,

que é a definição da instituição para a extrema pobreza.

Isso, como seria de se supor, contribuiu para a diminuição da

mortalidade infantil, do analfabetismo e mesmo para a redução da

poluição nos países ricos. E, evidentemente, com a diminuição da

fome.

Significa que meu neto de sete anos de idade terá uma vida útil

praticamente indefinida, simplesmente porque ele se deparará com

uma quantidade enorme de tecnologias médicas, até agora impen-

sáveis. Poderemos estender a expectativa de vida para além dos 120

anos indefinidamente? Sim, nós descobriremos como fazer isso nos

próximos 20 ou 30 anos, e não nos próximos 50 ou 100 anos como se

acreditava havia pouco tempo.

A longevidade permite uma série de aspectos positivos. Por que

se aposentar aos 70 anos de idade, no pico de sua capacidade, quan-

do você pode contribuir para a sociedade por outros 30 anos? Am-

pliando a vida útil de uma pessoa em 30 anos – e adiando sua idade


216
de aposentadoria –, nós iremos gerar o maior boom do PIB global de

todos os tempos.

Independentemente de suas crenças religiosas, você logo irá tirar

partido da opção do uso de tecnologia de extensão do tempo de vida.

E se não quiser viver 250 anos, você não será obrigado a isso.

Estamos nos aproximando da era da abundância. A diferença na

qualidade de vida entre os dias atuais e a dos habitantes da Terra

em 2119 será muito maior do que aquela ocorrida entre 1919 e 2019.

O acadêmico Hans Rosling, acima citado, argumenta que o mun-

do se tornou um lugar bem melhor do que projetávamos. E, ainda

segundo ele, progredirá mais do que muitos acadêmicos conceitua-

dos imaginam. A era da abundância chegou e veio para ficar. Entra-

mos em um bull market do qual talvez não sairemos nunca.

217
tipografia TeX Gyre Schola

papel Pólen Soft 80 g/m2

impressão EGB

tiragem 10.000
Ivan Sant’Anna entrou no mercado financeiro no
fim da década de 1950, quando conseguiu empre-
go em uma mesa de câmbio para bancar aulas
de voo, sua grande paixão. De tão bem-sucedida,
a experiência, que seria temporária, acabou se
tornando o ponto de partida de uma longa car-
reira como operador de bolsa. Em sua trajetória,
Ivan participou das primeiras operações de open
market no Brasil e negociou commodities em
bolsas de Nova York e Chicago, dando a maior ta-
cada de sua vida ao montar uma operação com-
prada em soja antes de o preço do grão disparar
com uma grande seca nos Estados Unidos.
Em meados dos anos 1990, trocou os nú-
meros pelas letras ao iniciar sua jornada como
escritor, de onde saíram as obras Os mercadores
da noite e 1929, ambas publicadas pela Inver-
sa. Hoje, une literatura e bagagem no universo
financeiro para compartilhar experiências e
comentar os movimentos da bolsa a pequenos
investidores.

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