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O GLOBO G PROSA & VERSO G PÁGINA 4 - Edição: 30/12/2006 - Impresso: 29/12/2006 — 01: 49 h PRETO/BRANCO

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PROSA & VERSO O GLOBO Sábado, 30 de dezembro de 2006
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DARWINISMO LITERÁRIO • Continuação da página 1

Neuroestética busca princípio biológico do belo


Cientistas estudam como o cérebro é estimulado por quadros, esculturas, peças de música e imagens de dança
Márcia Foletto/17-04-2003
Marilia Duffles com a área do cérebro ligada à
linguagem percebendo o ritmo,
A habilidade de Aleijadinho e sua área visual o tom.
para infundir vida em suas fi-
guras da paixão é tão impres- Células explicam o
sionante quanto as próprias “contágio” da dança
esculturas. Igualmente ator- Como esperado, a dança tam-
doante é a capacidade de Leo- bém apela ao nosso modus ope-
nardo da Vinci de capturar a randi universal. Quando as pes-
natureza humana com meras soas assistem a filmes de balé
pinceladas. E a qualidade or- ou capoeira, são ativadas em
gânica da escultura “Boy jo- seus cérebros as mesmas áreas
ckey and horse” também é ina- usadas para executar aqueles
creditável, dada sua origem movimentos. Giacomo Rizzolatti
helenística. Como artistas em e sua equipe na Universidade de
séculos tão distantes foram Parma, Itália, descobriram que
capazes de retratar a mesma isso se deve a células chamadas
gestalt criativa? neurônios-espelho, que imitam
O trabalho de Da Vinci co- as ações de outros. Imitar ou-
mo cientista certamente in- tros é empatizar, usando o mes-
fluenciou sua arte e simulta- mo ensaio mental da linguagem
neamente o levou a refletir so- do corpo do outro para nos bo-
bre esse enigma. Ele com ra- tarmos no lugar deles. E é por is-
zão se voltou para a “tela” so que dançar é contagioso.
mental em nossas cabeças, Mas por que a música tem o
concluindo que o olho tem dez poder de fazer até mesmo o
funções e que embora as ima- Príncipe Charles sambar duran-
gens viajem da frente do olho te o carnaval? De acordo com
para a imprensiva (agora cha- Petr Janata, neurocientista na
mada retina), elas na verdade Universidade da Califórnia, Da-
se formam no sensus commu- vis, depois de apenas 15 segun-
nis (o cérebro). ESCULTURA DE ALEIJADINHO em Congonhas, Minas Gerais: figuras ativam células do cérebro especializadas em perceber o movimento dos ouvindo música as mesmas
Séculos mais tarde, filóso- regiões do cérebro que imitam e
fos alemães seguiram esse ra- sar em seu trabalho a fisiologia como forma, movimento, cor, ção visual utilizados pelo cére- nece um importante paralelo vi- compõem seqüências de ação
ciocínio. Schopenhauer sabia- cerebral. A pesquisa fez com textura. O córtex visual é dividi- bro para formar uma imagem sual para a preferência do cére- são fortemente ativadas — mes-
mente acreditava que as cores que ele lançasse uma cruzada do em cerca de duas dúzias de mental que os artistas também bro por estímulo visual especí- mo que sejamos forçados a ficar
existem dentro do observa- internacional, o Instituto de áreas especializadas. usam, intuitivamente. Não é fico, como os quadrados colori- parados. Ezra Pound foi quem
dor, e não fora dele. E Imma- Neuroestética (a raiz grega de Quando Da Vinci disse “as surpreendente que Aleijadinho dos e linhas de Piet Mondrian. A disse melhor: “A música começa
nuel Kant disse “devemos exa- “estética” quer dizer tanto co- cores mais agradáveis são as tenha representado o movi- pesquisa de Hideo Sakata, da a se atrofiar quando se separa
minar quanto do conhecimen- nhecimento quanto beleza). que constituem oposições”, ele mento melhor do que qualquer Nihon University, em Tóquio, muito da dança”.
to depende da contribuição A pesquisa de neurociência estava prescientemente se refe- fotografia. Ele esculpia gestos sobre como percebemos pro- A beleza da neuroestética é a
formal do cérebro”. do último quarto de século ex- rindo à fisiologia das cores que apelavam especificamente fundidade, joga luz sobre uma descoberta dessa essência uni-
plora isso explicando como nós complementares, não desco- para as células cerebrais que das mais difíceis habilidades ar- versal que une o homem e seus
Estudos mostram que enxergamos. A visão, demonstra berta até o século XX. A cor é reagem ao movimento. Ao tísticas. Ele descobriu que ma- esforços artísticos a apreciação
a visão é um ato criativo Zeki, é um ato criativo. Diante de percebida quando o cérebro abandonar inteiramente a cor cacos (que possuem sistema vi- da arte. E confirma porque o
Semir Zeki, professor de uma imagem, o cérebro procura compara comprimentos de on- numa pintura ou escultura, co- sual análogo ao nosso) têm neu- samba tão facilmente comunica
neurobiologia na University os traços necessários e (como das refletidos em superfícies. mos nos móbiles negros de Ale- rônios que combinam dicas de a essência de ser brasileiro para
College London, prestou home- uma caricatura faz) destila a es- Arranjadas em pares opostos, xander Calder, os artistas mini- profundidade (sombreamento, o resto do mundo. I
nagem científica a isso. Sua sência do que vê, por causa de células ativadas pelo vermelho mizam a ativação de células textura) com perspectiva linear.
pesquisa sobre o sistema vi- sua memória limitada. Ele des- são inibidas pelo verde, e vice- sensíveis à cor, enquanto esti- Também é possível entender MARILIA DUFFLES é jornalista,
sual do cérebro mostra que o cobriu ainda que o cérebro ana- versa. O mesmo vale para ou- mulam ao máximo as áreas sen- a música a partir de nossa arqui- colaboradora da revista “The
gênio presciente de artistas co- lisa separadamente, em regiões tras combinações. síveis ao movimento. tetura neural. Ouvir música en- Economist” e do jornal “Financial
mo Da Vinci foi expor e expres- diferentes, atributos da imagem São esses blocos de constru- A arte moderna também for- volve pensamento metafórico, Times”

‘A arte é um subproduto da função evolutiva do cérebro’


Para o neurobiólogo Semir Zeki, o prazer que sentimos diante do belo está ligado à aquisição de conhecimento
Divulgação

ENTREVISTA conhecimento. No entanto, zerosas de se ver. É incrível que mulher inatingível?


quando percebemos algo como esse tipo de discussão ocorra ZEKI: Claro, mas nos trovado-
Semir Zeki belo, é difícil pôr este sentimen- sem nenhuma referência aos res a consumação se dá pela
to em palavras. mecanismos de dor e prazer do imaginação. No próprio Dante,
ZEKI: As pessoas imputam mui- cérebro, que são bem estuda- a imaginação reina suprema. O
G Diretor do laboratório de neu- tas funções à arte, mas elas têm dos. Não podemos trabalhar em amor de Dante por Beatriz era
robiologia da University College que entender que a arte é um isolamento. As questões pare- um amor in absentia, pois ela
London, Semir Zeki é o principal subproduto da principal função cem diferentes, mas são com- estava morta. Ele diz, em “La
nome de um campo em expan- evolutiva do cérebro, que é a plementares. Os historiadores Vita Nuova”, que vai escrever
são: a neuroestética. Zeki quer aquisição de conhecimento. Es- estudam as variações no concei- sobre “la gloriosa donna della
entender o que acontece no cé- se é um dado mais fundamental to de belo em diferentes cultu- mia mente”. É uma construção
rebro quando nos deparamos do que implicações políticas e ras. Eu faço uma pergunta ao inteiramente mental.
com algo que julgamos feio, ou sociológicas. O cérebro visual e mesmo tempo mais elementar e
belo. Ele defende que a arte ape- o cérebro auditivo levaram mi- maior: qual é o sistema do cére- G Existe um padrão ou estrutura

la aos mecanismos de aquisição lhões de anos se desenvolver. O bro para sentir a beleza? Para is- universal que o cérebro sempre
de conhecimento do cérebro, e cérebro verbal tem alguns mi- so, tenho que ir além de diferen- reconhecerá como bela?
é um subproduto da evolução lhares de anos, no máximo. Não ças culturais, procurar recorrên- ZEKI: Acho provável (hesita)...
(posição que não é unanimidade é tão refinado quanto os outros. cias, e aí há um trabalho histó- Acho que todos cérebros hu-
em seu meio). Por telefone, de Portanto, você pode comunicar rico. Se você pesquisa a literatu- manos têm um sistema de be-
Londres, Zeki falou ao GLOBO. pela visão coisas que não pode ra do amor, por exemplo, verá leza, todos são capazes de
descrever pela linguagem. Eu alguns conceitos que emergem classificar algo como sendo
Miguel Conde posso sentar e descrever para em todas as épocas e lugares. bonito. Mas se há uma carac-
você em 20 volumes a “Pietá” na terística aplicável em todas as
O GLOBO: Num de seus traba- Basílica de São Pedro, mas dez G Há características universais sociedades, é uma questão di-
lhos, o senhor diz que Kant segundos olhando-a terão um em nossas idéias sobre o fícil, não tenho resposta.
abriu o caminho para um estu- impacto maior. Você terá um co- amor?
do científico da arte. Por quê? nhecimento emocional daquilo SEMIR ZEKI: “Qual é o sistema do cérebro para sentir a beleza?” ZEKI: Sim, e pos- G Seria possível,

SEMIR ZEKI: O que Kant disse que palavras não podem descre- so dar os dois analisando o
ver. O conhecimento não é ape- constituintes essenciais de to- gadas a beber, comer, ao sexo,
é que para conhecer as coisas
você tem que se perguntar não nas o que se adquire ou expres- das as formas”. Se você olha ou- mas a origem é essa.
exemplos supre-
mos disto. Um é o “Se eu misturasse que acontece no
cérebro quando
apenas sobre as propriedades sa pela linguagem. Há um co- tra escola moderna, o trabalho conceito da uni- elementos químicos c on te mp la mo s
das coisas, mas sobre o que a nhecimento visual. Quando Mi- dos cubistas, posso citar o crí- G O senhor pode falar um pou- dade em amor. O uma obra de ar-
mente faz com isso, as contri- chelangelo estava pintando, ha- tico de arte Jacques Riviere: “o co sobre o que acontece no cé- forte desejo de teria o mesmo te, criar uma pí-
via teorias sobre proporção, de cubismo é destinado a dar à pin- rebro quando percebemos algo
buições que ela dá. Como o co-
nhecimento que você obtém Vasari, Alberti, Leonardo, mas tura sua verdadeira função, que como sendo bonito ou feio?
estarem unidos
um ao outro que,
prazer de ler Eliot? lula que provo-
casse as mes -
não é apenas das propriedades, ele dizia “não quero usar uma é representar objetos como são, ZEKI: As áreas ativadas em am- no auge da pai- Provavelmente mas reações?
mas também da mediação da régua, pois tenho não como apare- bos julgamentos são as mes- xão, dois amantes ZEKI: Deixe-me
mente, você nunca pode conhe- um sistema supe- cem a cada mo- mas, mas em níveis diferentes. sentem. E, rela- não” responder de um
cer o objeto como ele é. Ele não rior, que está no mento”. Por exemplo, nos dois casos o cionado, está o modo oblíquo.
concebia a beleza como algo meu olho”. Hoje “O conhecimento córtex motor, responsável pelo conceito de ani- Eu sinto um
que residisse apenas no objeto.
A questão muda de “o que é o
diríamos, no cé-
rebro.
não é só o que se prazer e ser inútil movimento,
G Algo pode dar é acionado. Quan-
do vemos algo que considera-
quilamento no amor. Como essa enorme prazer em ler, carrego
união é impossível, há desejo de comigo o tempo todo, os “Qua-
belo” para “porque, e de que expressa pela de um ponto de mos feio, ele é ativado com mais se aniquilar para se unir em ou- tro quartetos”, de T.S. Eliot. Pou-
maneira, percebemos algo co- G E no caso da vista evolutivo? intensidade, como se quisésse- tro mundo, diferente do nosso. cos poemas na língua inglesa me
mo sendo belo”. Além disso, arte abstrata? linguagem. Há um De que maneira, mos fugir. Quando achamos algo Isso ocorre em “Tristão e Isol- deram tanta satisfação e prazer
Kant, em sua “Crítica do julga- ZEKI: Malevitch conhecimento p o r e x e m p l o , bonito, a intensidade é menor, da”, ocorre em lendas árabes, na quanto esse. A questão é: por-
mento”, explorou a maneira co- dizia: “o artista perceber um pôr- mas também está presente. história hindi de Krishna, em que eu gosto tanto desse poe-
mo a arte está relacionada ao não tem necessi- visual” do-sol como bo- Dante, em Petrarca. É um tema ma? Há muitas razões. O uso de
sentimento de prazer e bem es- dade do objeto nito ajuda na lu- G Como artistas, filósofos e universal. O que as pessoas ten- linguagem, a metáfora, o uso do
tar. Kant não podia estudar os como tal”. O que ta pela vida? historiadores da arte têm rea- tam fazer é saber se esses auto- ambíguo, a aplicação de versos
mecanismos de recompensa e devemos fazer é olhar e ver o ZEKI: O sistema de prazer está gido ao seu trabalho? res leram um aos outros, e nem a muitas situações diferentes, o
prazer do cérebro, mas de certa que vem do cérebro. Ele veio profundamente ligado à evolu- ZEKI: Os artistas são os mais sempre se encontra uma rela- senso de humor. O estímulo ver-
maneira essa é uma questão com linhas e ângulos retos, e al- ção, mas não se deve achar que entusiasmados. Entre filósofos e ção. Mas a relação está na orga- bal evoca um prazer que é cau-
científica, que pode ser pelo me- guns círculos. Há uma grande se vai encontrar uma ligação di- críticos, há reações divididas. nização do cérebro, porque so- sado por meio de reações quí-
nos em parte resposta pelo exa- parte do cérebro que responde reta e óbvia entre os dois, pois Recentemente li um livro de crí- mos todos humanos. micas. Se eu tivesse um frasco e
me desses mecanismos. diretamente a linhas retas. Elas muito freqüentemente são sub- tica de arte contemporânea e misturasse elementos químicos
são úteis para construir ima- produtos. O prazer é algo que o havia muita discussão sobre co- G E quanto à literatura me- teria o mesmo prazer de ler
G O senhor diz que há uma re- gens de formas. Mondrian disse cérebro pode usar em outras si- mo certas obras podem ser ao dieval dos trovadores, onde Eliot? A resposta é provavel-
lação entre arte e aquisição de “eu quero saber quais são os tuações que não as originais, li- mesmo tempo dolorosas e pra- um tema freqüente é o da mente não. I

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