Você está na página 1de 265

INQUISIÇÃO, PODER, CULTURA E LUGARES

INQUISIÇÃO, A presente coletânea, quarto


livro da Coleção Povos, ob-

Angelo Adriano Faria de Assis • Belarmino de Jesus Souza PODER, CULTURA jetiva divulgar os trabalhos resultantes
de projetos e grupos de pesquisa que

Grayce Mayre Bonfim Souza é professo-


Daniela Calainho • Grayce Mayre Bonfim Souza
Isnara Pereira Ivo • Joana Monteleone
E LUGARES investigam inquisição, poder e cultu-
ra em suas distintas conformidades e
ra da Universidade Estadual do Sudoeste Laís Viena de Souza • Maiza Messias Gomes Entre Portugal e Brasil da época Moderna lugares na época moderna e na con-
da Bahia e membro do Programa de Maria de Fátima de Andrade Ferreira • temporaneidade. “Poder”, “cultura” e
Mestrado Profissional em Ensino de
à Contemporaneidade
Maria do Rosário Gonçalves de Carvalho “lugares” são concebidos como expres-
História. Autora do livro Para remédios sões em suas mais dilatadas formas de
das almas: Comissários, Qualificadores verificação e concebidas por múltiplos
Grayce Mayre Bonfim Souza
e Notários da Inquisição portuguesa arcabouços teórico-metodológicos e
Isnara Pereira Ivo
na Bahia colonia, publicado em 2014 produtos de interpretações interdisci-
Organizadoras
(Edições Uesb) Organizou com Maria de plinares. Os capítulos que compõem o
Deus Beites Manso o livro Difusão da fé livro são exercícios de (re)elaborações
por entre povos e lugares: instituições, reli- Coleção Povos
de conceitos, ideias e interpretações
gião e religiosidades no Império Português • Escravidão: Povos, poderes e legados: Américas, Goa e Angola (Séculos XVI- que orientam as pesquisas dos inves-
(Séculos XVI-XIX). É autora de diversos -XXI) (Isnara Pereira Ivo e Roberto Guedes, orgs). tigadores interessados em reescrever a
artigos e capítulos de livros. história à luz das demandas do presen-
• Trabalhar é preciso, viver não é preciso (Isnara Pereira Ivo, Cristina de Cássia

Grayce Mayre Bonfim Souza


Isnara Pereira Ivo (orgs.)
te, pois reescrever a história nos parece
Pereira Moraes, Maria Lemke, orgs.)
Isnara Pereira Ivo é professora Pleno da condição sine qua non do viver histo-
Universidade Estadual do Sudoeste da • Povos, lugares e dinâmicas sociais no Brasil, entre os séculos XVIII e XXI: Conceitos, riográfico.
Bahia, do Programa de Pós-graduação culturas, políticas, identidades (Isnara Pereira Ivo e Eduardo França Paiva, orgs.)
em Ensino e do Mestrado Profissional • Inquisição, poder, cultura e lugares: Entre Portugal e Brasil da época Moderna
em Ensino de História da Universidade à Contemporaneidade (Isnara Pereira Ivo e Grayce Mayre Bonfim Souza, orgs.)
Estadual do Sudoeste da Bahia. Entre
suas publicações incluem-se O anjo da
morte contra o santo lenho: poder, vin-
gança e cotidiano no sertão da Bahia.
(Edições Uesb, 2017) e Homens de
Caminho: trânsitos culturais, comércio e
cores nos sertões da América portugue-
sa. Século XVIII (Edições Uesb, 2012). É
co-organizadora dos livros do Grupo de
Estudos Escravidão e Mestiçagens.
Inquisição, poder,
cultura e lugares
Entre Portugal e Brasil
da época moderna à contemporaneidade
coleção povos

coordenadora
Isnara Pereira Ivo

conselho editorial
Carmen Bernand
Eduardo França Paiva
Grayce Mayre Bonfim Souza
Helder Macedo
Manuel F. Fernández Chaves
Maria Lemke
Rafael M. Pérez García
Roberto Guedes

conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Andréa Sirihal Werkema
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Inquisição, poder,
cultura e lugares
Entre Portugal e Brasil
da época moderna à contemporaneidade

Grayce Mayre Bonfim Souza


Isnara Pereira Ivo
Organizadoras
Copyright © 2022 Isnara Pereira Ivo & Grayce Mayre Bonfim
Souza (orgs.)

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza/ Joana Monteleone


Assistente acadêmica: Tamara Santos
Projeto gráfico, diagramação e capa: Amanda Martinez e Sá
Revisão: Alexandra Colontini
Imagem da capa: Praça do Comercio da Cidade de Lisboa. 2ª me-
tade do sec. XVII -Museu de Lisboa

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

I45

Inquisição, poder, cultura e lugares : entre Portugal e Brasil da época moderna à


contemporaneidade / organização Grayce Mayre Bonfim Souza , Isnara Pereira Ivo. - 1.
ed. - São Paulo : Alameda, 2022.
262 p. ; 21 cm. (Povos ; 4)

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5966-104-6

1. Brasil - História - Período colonial, 1500-1822. 2. Inquisição - Brasil - História.


3. Inquisição - Portugal - História. I. Souza, Grayce Mayre Bonfim. II. Ivo, Isnara
Pereira. III. Série

22-81624 CDD: 272.2


CDU: 27-9
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

Alameda Casa Editorial


Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista
CEP 01327–000 – São Paulo, SP
Tel. (11) 3012–2403
www.alamedaeditorial.com.br
Sumário

Apresentação: Pensando “Povos” a partir de poder, 7


cultura e lugares
Grayce Mayre Bonfim Souza e Isnara Pereira Ivo

PARTE I
INQUISIÇÃO, RELIGIOSIDADE E SABERES NO
ANTIGO REGIME

Inquisição portuguesa, cultura e poder 15


Daniela Calainho

Misericórdia, justiça e intolerância: a Inquisição 35


portuguesa e o drama da perseguição aos judaizantes:
alguns estudos de caso
Angelo Adriano Faria de Assis

Tortuosos caminhos de uma tardia habilitação: 61


notas do processo de habilitação do comissário de
Manoel Jesus Bahia (1752-1773)
Grayce Mayre Bonfim Souza

Entre panditos e pajés: narrativas jesuíticas sobre 91


saberes e práticas de cura em Goa e na Bahia
(Séculos XVI-XVII)
Laís Viena de Souza
PARTE II
POLÍTICA E CULTURA NA CONTEMPORANEIDADE

Amargura tropical: aspectos do exílio perpétuo 127


de Marcello Caetano (Rio de Janeiro, 1974-1980)
Belarmino de Jesus Souza

Métodos e fontes para a história da alimentação 153


no Brasil no século XIX
Joana Monteleone

Sambas de roda, materiais de memória 177


memórias e trânsitos culturais: as comunidades negras
deGuanambi. Bahia. Século XX.
Isnara Pereira Ivo e Maiza Messias Gomes

Uma descrição etnográfica da construção de lugares 205


espaço-tempos e objetos no movimento cultural
Arte Manha e afroindígena, Caravelas, BA
Maria de Fátima de Andrade Ferreira e
Maria do Rosário Gonçalves de Carvalho

Sobre os autores 259


Apresentação :
Pensando “Povos” a partir de
poder, cultura e lugares

A presente coletânea, quarto livro da Coleção Povos, ob-


jetiva divulgar os trabalhos resultantes de projetos e grupos de
pesquisa que investigam inquisição, poder e cultura em suas
distintas conformidades e lugares na época moderna e na con-
temporaneidade. O ano de 2021 é data comemorativa para os in-
vestigadores da história inquisitorial que têm se debruçado para
entender a dinâmica e engrenagem do Santo Ofício, com base na
documentação gerada pelas ações inquisitoriais em todos os lu-
gares do império luso. A vida da Inquisição portuguesa foi longa
e sua extinção oficial ocorreu em 31 de março de 1821, resultado
então dos ventos do liberalismo português que chegaram com a
revolução do Porto, ocorrida em agosto de 1820. O tribunal da
Inquisição, criado em 1536, nasceu no contexto da formação dos
estados nacionais, serviu como instrumento de consolidação das
monarquias modernas e se inseriram na perspectiva de implan-
tar ordem e disciplina em sociedades com presenças massivas de
neoconversos e, também, com ameaças dos movimentos reforma-
dores, além claro, dos avanços das ideias humanistas. O tribunal
foi representante de uma forma de poder densamente constituída
e incontestável, visto claramente pelas pesquisas apresentadas na
primeira parte desta coletânea.
Ainda que a perceptibilidade do poder esteja comumente
relacionada ao pensamento político e religioso, aqui, também,
8 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

consideramos outros aspectos das relações humanas, sobretudo


em uma dimensão sócio antropológica, aplicadas em diversos
contextos, espaços e tempos, nas relações entre pessoas, grupos
e instituições: igreja e cristãos; senhores e escravos; colonizado-
res e colonizados; missionários e nativos, regimes autoritários e
contraposições de perspectivas democráticas; cultura popular e
cultura erudita. Pensar estas relações como tentáculos das formas
de poder foi um desafio que resultou em sólidas pesquisas decor-
rentes de reflexões que analisaram as maneiras de pensar os lu-
gares e as culturas, igualmente, em suas dimensões plurais como
produtos de historicidades que agregam permanências, exclusões
e coexistências. A pretensão foi perceber como as práticas de po-
der e as práticas culturais dialogam em diferentes lugares por me-
canismos distintos de forças políticas, culturais e religiosas.
As compreensões assimilam a constatação de que os univer-
sos culturais múltiplos, distintos e mestiços abrigados em lugares,
igualmente, multifacetados por povos que sofreram os impactos
das conquistas coloniais e da escravidão moderna. As instituições
daí oriundas, pigmentadas por hierarquias de antigo regime, toni-
ficaram as formas de pensar e de viver das sociedades protagonis-
tas destes encontros que são, antes de tudo, culturais. Tão plurais
quanto as instituições foram os povos, marcadamente resultan-
tes dos encontros de pessoas das quatro partes do mundo que se
tornaram agentes históricos reprodutores e/ou contestadores das
novas ordens recém impostas. Fossem eles, asiáticos, africanos,
americanos ou europeus, considerados brancos, pretos, negros
ou índios, fermentaram as novas categorias sociais resultantes das
novas relações constituídas, cujas expressões são exemplificadas
nas análises da segunda parte do livro.
Inquisição, poder, cultura e lugares 9

A partir destas considerações, absorvemos “poder”, “cultu-


ra” e “lugares” como expressões em suas mais dilatadas formas de
verificação e concebidas por múltiplos arcabouços teórico-meto-
dológicos e produtos de interpretações interdisciplinares. Antes de
tudo, os textos aqui apresentado são exercícios de (re)elaborações
de conceitos, ideias e interpretações que orientam as pesquisas dos
investigadores interessados em reescrever a história à luz das de-
mandas do presente, pois reescrever a história nos parece condição
sine qua non do viver historiográfico. É esta a direção que o livro
“Inquisição, poder, cultura e lugares: entre Portugal e Brasil da épo-
ca moderna à contemporaneidade” visou perscrutar ao congregar
estudos da época moderna que reavaliam as ações do Tribunal do
Santo Ofício em diferentes lugares, as relações estabelecidas entre
os saberes indígenas, no passado e no presente, as experiências
relacionadas aos sabores alimentares experimentadas em práticas
culinárias na modernidade. A contemporaneidade é visitada a par-
tir das vivências culturais rememoradas por reinterpretações de
memórias coletivas dos sambas de rodas de comunidades negras
no interior da Bahia e a partir. Igualmente, memórias políticas são
reescritas a partir da experiência de um exilado português no Rio de
Janeiro e as permanências culturais afro-indígenas no Movimento
Cultural Arte Manha, em Caravelas, sul da Bahia.
Abrindo a primeira parte do livro, Daniela Calainho obser-
va que a Inquisição não pode ser vista isoladamente em relação
aos métodos primitivos e judiciários do Antigo Regime, aborda a
engrenagem de funcionamento do tribunal no contexto do mun-
do moderno, reforçando a instituição como responsável também
pela intensificação de contatos com o Novo Mundo e a configu-
ração de influências recíprocas no plano cultural e religioso. Os
cristãos-novos, com ênfase dada ao papel da mulher sobretudo
10 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

pela função primordial na irradiação deste judaísmo adaptado,


os neoconversos aqui no Brasil e a inserção desses indivíduos na
empreitada colonial brasílica e articulação com outras partes do
império português e Europa são pilares da abordagem de Ângelo
Adriano Faria de Assis. Com igual maestria, a trajetória de vida
de um padre, natural e morador da cidade da Bahia, por meio
do processo de habilitação a comissário do Santo Ofício, tramita-
do por mais de vinte anos é analisada por Grayce Mayre Bonfim
Souza ao analisar que o aparato burocrático-administrativo do
Santo Ofício representava um dos braços da instituição na colônia
e fundamental para manter funcionando a engrenagem inquisito-
rial e o fluxo de comunicação entre o tribunal sede e seus agentes.
Por meio dos escritos de viajantes como François Pyrard,
Pe. Fernão Cardim e missivas de Manoel da Nóbrega, Laís Viena
de Souza analisa a longevidade dos índios, o poder curativos das
ervas, o preparo de mezinhas e os rituais de cura dos feiticeiros,
demonstrando como os jesuítas conseguiam excluir o teor de pa-
ganismo, atribuindo à criação divina as plantas que, atendendo a
um propósito racional, haviam sido feitas para comida, recreação
e medicina. A partir das connected histories, a autora propõe re-
flexões para o estudo das mestiçagens e circularidades de saberes.
Respirando os ares da contemporaneidade, com compe-
tência ímpar, a história de um ex-presidente do Conselho de
Ministro de Portugal - sucessor de António Oliveira Salazar - em
exilio no Brasil, após ter sido deposto pela Revolução dos Cravos
de 25 de abril de 1974, é analisada por Belarmino de Jesus Souza
num contexto extremamente complicado da história recente do
Brasil e sua relação com o além-mar: lá, em terras lusitanas o
Estado Novo chegava ao fim e inaugurava uma novo história po-
lítica com bases democráticas, aqui sob a Ditadura Empresarial-
Inquisição, poder, cultura e lugares 11

militar se vivencia o período mais repressivo e de cerceamentos


de liberdades e direitos. A utilização de livros de receitas como
fontes para a história foi o desafio de Joana Monteleone para
compreender a história da alimentação no Brasil. Para a autora,
tais publicações representam um campo do campo do saber que
deve ser examinado ao lado de outros, tais como, jornais, revis-
tas, relatórios médicos ou sanitários, listas de compras ou livros
de contas, balanças comerciais ou de importação e exportação.
O diálogo e relações teórico-metodológicas entre a história e a
antropologia, bem como o caráter multidisciplinar da pesquisa
foi o alicerce teórico da análise. Os dois últimos capítulos estão
inseridos em uma discussão de cultura, mestiçagem e memória de
grupos e práticas sociais de comunidades afro-indígenas, situadas
no sertão e litoral da Bahia. Isnara Pereira Ivo e Maiza Messias
Gomes refletiram acerca da tradição cultural dos sambas de roda,
mais especificamente do Vai de Virá, Quebra Panela e Reisado
de três comunidades negras situadas da zona rural do município
de Guanambi, no sertão da Bahia. Tradições, ritmos, danças, ins-
trumentos e indumentárias são abordados buscando suas origens
e misturas. Para as autoras, se o samba tem origem africana ou
indígena é de relevância menor do que perceber o caráter mestiço
comprovado nas evidências de coexistências, permanências e ex-
clusões dos materiais de memória oriundos de diversas culturas,
sejam elas indígenas, europeias ou africanas. Numa discussão teó-
rico-metodológica transdisciplinar, Maria de Fátima de Andrade
Ferreira e Maria do Rosário Gonçalves de Carvalho fazem um
recorte etnográfico e examinam como o Movimento cultural Arte
Manha de Caravelas, no sul da Bahia. As investigadoras buscam
compreender as ações políticas, artístico-culturais, na construção
de lugares, espaço-tempos, coisas e objetos na história de seus
12 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

antepassados, demonstrando o processo que constrói subjeti-


vidades referenciadas na imagem e memória negro-africana do
Movimento. A identidade coletiva que representam a construção
simbólica afro-indígena, como meio de preservar a cultura e ca-
racterísticas dos seus ancestrais revelam tradições, crenças, repre-
sentações que caracterizam o Arte Manha é um lugar onde acon-
tecimentos, objetos, técnicas, valores herdados dos antepassados
influenciam até hoje o modo de viver do grupo afro-indígena que
dá sentido às suas ações.
O livro é o resultado de intercâmbios e diálogos en-
tre os integrantes de dois laboratórios da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia: O “Laboratório de Estudos,
Documentação Inquisitorial e Sociedade de Antigo Regime”,
coordenado pela professora Grayce Mayre Bonfim Souza e
criado em 2010, como Grupo de Pesquisa; e o “Laboratório
de Estudos e Pesquisas sobre Escravidão e das Mestiçagens”
que sedia as atividades do Grupo de Pesquisa “Escravidão e
Mestiçagens: poderes, povos, lugares e trânsitos culturais no Novo
Mundo”, estes últimos coordenados pela professora Isnara Pereira
Ivo. Os autores são historiadores experientes, notadamente, es-
pecialistas em escravidão, mestiçagens, hierarquias sociais de
estruturas de antigo regime, práticas religiosas, especialmente,
inquisição e seus tentáculos. A proposta foi um desafio que se
consubstanciou em pesquisas sólidas resultantes dos diálogos en-
tre os pesquisadores, e consideramos que o objetivo proposto foi
alcançado e desejamos que os resultados seja apreciados.

Grayce Mayre Bonfim Souza e Isnara Pereira Ivo


Vitória da Conquista, primavera de 2021
PARTE I
INQUISIÇÃO,
RELIGIOSIDADE E SABERES
NO ANTIGO REGIME
1. Inquisição portuguesa,
cultura e poder
Daniela Calainho

Uma das instituições mais poderosas e estruturadas do


Antigo Regime foi o Tribunal Inquisitorial Ibérico. Surgido em
meio a questões referentes à presença dos judeus na Península
Ibérica, tanto na Espanha, em 1478, como depois em Portugal, em
1536, o Santo Ofício surgia como uma instância da Igreja que vol-
tava-se para combater os suspeitos de heresia, transgressores dos
dogmas e da moral oficial cristã. O foco principal das perseguições
inquisitoriais foram os cristãos-novos, judeus convertidos ao cris-
tianismo que eram suspeitos de continuarem devotos e pratican-
tes de sua religião de origem. Mas a Inquisição ibérica também se
dedicou a condenar bígamos, sodomitas, mouriscos, blasfemos,
idólatras, protestantes, feiticeiros, clérigos que abordavam mulhe-
res no confessionário, indivíduos que se fingiam de sacerdotes e de
funcionários do aparelho burocrático inquisitorial. O Santo Ofício
português combateu tais práticas heréticas não só em Portugal, mas
também em todas as suas colônias no Ultramar. A administração
inquisitorial se fez a partir de tribunais regionais, e se no início de
sua organização era composta por seis tribunais, a partir de 1548
passou a dispor somente de dois, o de Lisboa e o de Évora, cada um
deles com jurisdições específicas. Em 1560 foi criado o de Goa, na
Índia, e em 1565 foi reaberto o tribunal de Coimbra. A consagra-
ção do ideal de Misericordia et Justitia, famoso lema do tribunal,
se fez à custa de muitas vidas, de réus que amargaram sentenças
16 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

variadas, lidas publicamente de modo pomposo e festivo nos au-


tos de fé, desfilando nas procissões que levavam ao ápice do even-
to: o cadafalso, palco dos relaxados ao braço secular, condenados
à fogueira inquisitorial, símbolo para muitos do poder esmagador
do Santo Ofício (BETHENCOURT, 2000; MARCOCCI, 2013).
Instituição metódica nas suas ações, o tribunal se fez presen-
te de modo significativo em todas as sociedades assoladas por seu
ímpeto voraz na busca de hereges através de seus agentes locais –
Comissários e Familiares; das visitações inquisitoriais; das visitas
episcopais e das próprias confissões sacramentais, que redireciona-
ram pecadores para as malhas inquisitoriais, sem falar, claro, na
própria população, envolta no medo que inspirava a Inquisição,
delatando amigos, parentes, inimigos e todos aqueles que tivessem
condutas e crenças heréticas dispostas nos monitórios gerais e edi-
tais da fé apregoados nas portas das Igrejas portuguesas e coloniais.

Inquisição e cultura
Carlo Ginzburg (1987) definiu cultura como uma “massa de
discursos, formas de consciência, crenças e hábitos relacionados a
determinado grupo historicamente determinado”. Inspirado pelo
trabalho de Mikahil Bakthin (2000), distinguiu uma “cultura po-
pular” ou “oral” da “cultura erudita” ou “letrada”, dimensionando
o intercâmbio que se estabelece entre esses níveis culturais, e in-
troduzindo o conceito de “circularidade cultural” para definir essa
dinâmica. Edward Thompson, quando adverte que o uso indiscri-
minado do termo “cultura popular” pode sugerir uma homoge-
neidade, um consenso entre agentes que a protagonizam, propõe
também que próprio termo “cultura” deve ser relativizado, pois
“com sua evocação confortável de um consenso, pode distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e
Inquisição, poder, cultura e lugares 17

oposições existentes dentro do conjunto” (1988). Nesse sentido,


consideramos importante o trabalho de Peter Burke, “Cultura po-
pular na Idade Moderna”, também para enfatizar a diversidade in-
terna da cultura popular e a heterogeneidade que para ele a carac-
teriza. Burke (1998) chama a atenção para a tênue fronteira entre
as várias culturas de uma sociedade, sendo muito mais proveitoso
estudar a interação entre elas. Para este autor, a noção de cultura
possui um espectro amplo que integra as ações da vida cotidiana,
onde se incluem os costumes, comportamentos, conhecimentos e
crenças. Assim, as tradições culturais de uma sociedade engloba-
riam uma “grande tradição”, de uma minoria culta e letrada, e a
“pequena tradição”, referente aos demais, que interagiam entre si.
As reflexões destes autores são opções importantes para
analisarmos a inter-relação do tribunal inquisitorial e as culturas
dos povos que lotaram as salas de audiência do Santo Ofício por-
tuguês, vindos dos mais variados pontos do Império.
Carlo Ginzburg (1991), no seu “História noturna”, ao es-
tudar a construção do estereótipo do sabbat das feiticeiras eu-
ropeias, concebeu este fenômeno não como pura invenção dos
demonólogos, nem tampouco como expressão de uma autêntica
e pura “religiosidade popular”, mas como um resultado híbrido de
diversas culturas, espalhadas no espaço e no tempo. De acordo
com os tratados de época que abordaram o assunto, os sabbats
eram reuniões noturnas entre homens e sobretudo mulheres, que
cantavam, dançavam, comiam, faziam sacrifícios humanos, ado-
ravam o Demônio, mantendo com ele relações sexuais e fazendo
pactos de sangue (DELUMEAU, 1996, p. 368-386).
A propósito do complexo cultural do sabbat, construído na
Europa a partir da difusão, justaposição e mescla de ingredientes
culturais heterogêneos e, não raro, assincrônicos, Ginzburg su-
18 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

geriu o conceito de “formação cultural híbrida de compromisso”.


Esta perspectiva é uma chave de compreensão para algumas das
práticas mágico-religiosas que assolaram a Europa Moderna ao
tempo da existência da Inquisição, e que vieram à tona median-
te as perseguições movidas por aquele tribunal aos indivíduos
considerados “feiticeiros”, ou seja, indivíduos suspeitos de terem
estabelecido um pacto com o Diabo. Citemos o exemplo do por-
te de amuletos protetores, conhecidos como bolsas de mandin-
ga. Vários indivíduos, brancos e negros, foram condenados em
Portugal e no Brasil pelo uso destas bolsas, suspeitos de terem es-
tabelecido para tal um pacto com o Diabo. Contendo dentro de si
vários ingredientes, estes amuletos tinham por finalidade, a pro-
teção física e espiritual de seus portadores, e poderiam também
trazer sorte, dinheiro, afetos. Considerada uma das práticas mais
híbridas do mundo colonial, envolvia elementos africanos, cris-
tãos, pagãos e islâmicos na sua composição (CALAINHO, 2008).
Laura de Mello e Souza (1993), em estudo pioneiro sobre a
religiosidade colonial, demonstrou, através da documentação in-
quisitorial, que crenças católicas, judaicas, indígenas, africanas e
pagãs se articularam em práticas híbridas, consideradas heréticas
e demonizadas pelo Santo Ofício, resultando em diversos proces-
sos contra os moradores do Brasil. A partir deste estudo, se inau-
gurava um novo momento na historiografia brasileira nos estudos
coloniais, transitando no campo da história das mentalidades e
da história cultural, com o uso da documentação inquisitorial.
Em estudo posterior, esta autora aprofundou alguns aspectos do
“Diabo e a terra de Santa Cruz”, relacionando a feitiçaria colo-
nial aos modelos demonológicos do Antigo Regime no espaço do
Império português. Uma das questões que destacaríamos no seu
“Inferno atlântico” é relativa às continuidades e rupturas entre
Inquisição, poder, cultura e lugares 19

Portugal e Brasil no tocante à religiosidade popular. Se por um


lado os vários casos de feitiçaria, em sendo bastante semelhantes
nestas duas regiões, significariam uma continuidade desses pa-
drões culturais, por outro, o mundo colonial, na sua diversidade
de povos para além dos brancos colonizadores, manifestou prá-
ticas e crenças de origem africana, vindas com os escravos, que
se mesclaram às crenças nativas, dos vários povos indígenas que
habitavam o Brasil. Assim sendo, veríamos, além de um enrai-
zamento de práticas mágicas portuguesas, uma diversidade cul-
tural originando práticas mágicas pluriculturais. Laura de Mello
e Souza viu a pena do degredo, muito comum nas sentenças in-
quisitoriais, como um elemento importante de difusão cultural,
pois ao enviar réus para vários cantos do Império, possibilitou que
estes indivíduos difundissem suas crenças e práticas em outros
locais, influenciando outros, que eventualmente também seriam
perseguidos e tornados réus (1993, p. 45-57).
Quando estudamos as práticas mágico-religiosas dos afri-
canos e afrodescendentes em Portugal, em especial o porte das
bolsas de mandinga, deparamo-nos com vários casos de escravos
que circularam pelo circuito Lisboa, Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro. Fossem acompanhados de seus senhores, ou fossem réus
degredados e punidos pelo Santo Ofício, portaram e difundiram o
uso das bolsas, até vendendo-as, num circuito comercial que ficou
conhecido pelos inquisidores de Lisboa no século XVIII, tendo o
Brasil como o local originário desta prática.
Vale destacar que a partir dos anos 80 vários outros autores
da nossa historiografia se dedicaram a estudos que utilizaram a
documentação inquisitorial para estudar aspectos da cultura co-
lonial, mas não é nossa proposta aqui fazer este balanço biblio-
gráfico. Mesmo antes de Laura de Mello e Souza, destacaríamos
20 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

os trabalhos clássicos de Anita Novinsky (1992), pioneira dos


estudos sobre Inquisição no Brasil, abordando a presença dos
cristãos-novos na colônia e as perseguições que sofreram. Último
exemplo é o trabalho de Ronaldo Vainfas (1995), que estudando
um ritual feito por indígenas num engenho na Bahia do século
XVI, conhecido como Santidade, percebeu neste evento uma reli-
giosidade híbrida, envolvendo o catolicismo e crenças indígenas,
bastante documentada pela Inquisição porque foi considerado
herético. Serge Gruzinski, ao analisar o processo de “mundiali-
zação” na Época Moderna, não deixa escapar o registro da conju-
gação de crenças distintas, sincréticas, características dos “quatro
cantos do mundo” e as tentativas da Igreja de extirpá-las, mobili-
zando esforços de muitos clérigos nesta cruzada.

A luta contra os paganismos é mais brutal na América que


na África e na Ásia, onde a relação de forças não facilita
a extirpação das idolatrias. Cultos ameríndios e africanos,
grandes religiões da Ásia, crenças animistas, feitiçarias e
magias constituem as múltiplas faces de um paganismo e
de uma idolatria em face das quais o catolicismo parece
bem minoritário. Mas a confrontação provoca muitas ve-
zes cultos sincréticos que adaptam as crenças indígenas ao
cristianismo, quando não fazem o contrário (2014, p. 178).

Ironicamente, portanto, graças às perseguições inquisito-


riais, as religiosidades vivenciadas em Portugal, no Brasil e no
restante do Império português vem à tona através desta docu-
mentação riquíssima em mostrar aspectos da cultura das socie-
dades que tiveram que lidar com o Tribunal do Santo Ofício.
Ao mesmo tempo em que perseguiu diferentes culturas como
heréticas, auxiliou na difusão de práticas através do degredo,
movimentando hereges no império português.
Inquisição, poder, cultura e lugares 21

Inquisição e poder
Instituição bastante envolvida nas dinâmicas culturais das
sociedades do mundo moderno, o Tribunal inquisitorial se cons-
tituiu como um poder fortemente estabelecido. Mas os proce-
dimentos inquisitoriais modernos, incitando o medo e o terror
àqueles que chegavam como réus à “negra Casa do Rocio”, não
podem ser vistos isoladamente em relação aos métodos punitivos
e judiciários do Antigo Regime. Juízes seculares e inquisitoriais
tinham em comum o uso de testemunhas anônimas, a tortura,
a valorização da confissão, do segredo do processo, etc. Os hor-
rores das penas inquisitoriais, como os açoites públicos; o uso de
vestimentas vexatórias caracterizando os réus como hereges; o
confisco de bens; os trabalhos forçados nas obras públicas e nas
galés do Rei; o degredo e a morte na fogueira, fosse vivo ou gar-
roteado, situaram-se no mesmo plano da era dos suplícios, tão
bem caracterizada por Michel Foucault, ao refletir sobre a justiça
civil moderna europeia e a sua subsequente transformação a par-
tir de meados do século XVIII. Em “Vigiar e punir”, logo no pri-
meiro capítulo, impressiona a narrativa sobre o parricida francês
Damien, que ao ser condenado à morte em 1757, foi antes exibido
nu à porta de uma Igreja, pedindo perdão, depois atenazado em
várias partes do corpo, esquartejado e, por fim, queimado em ple-
na praça pública (FOUCAULT, 1984).
O sistema judiciário moderno, centrado na figura do rei ab-
solutista, entende os delitos como uma afronta ao próprio rei, ao
Estado centralizado, daí o peso dos atos supliciantes e da punição
como meio de revigorar a figura do monarca vingando-o, numa
“graduação calculada de sofrimentos”, nas palavras de Foucault,
até a morte final. O ritual punitivo transformava-se em espetácu-
22 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

lo, afirmando publicamente a força e o poder real, exemplo para


todos que ousassem ir contra o soberano.
Instituição de poder ímpar na história da Igreja e do Estado
português moderno, a Santa Inquisição seguiu à risca um ritual po-
lítico de controle social pelo medo (ALCALÁ, 1984). A reflexão
sobre as estruturas de poder apresentadas por Foucault mostra-nos
que os poderes se exercem em variados níveis do corpo social, em
instituições estatais e não estatais, compondo uma rede que pode
estar integrada ou não ao Estado. Foucault recusa a ideia do poder
centralizado e localizado única e exclusivamente no Estado, estan-
do disperso e se manifestando também em outras instâncias.
Ronaldo Vainfas (1989), em seu “Trópico dos pecados”, cha-
mou-nos a atenção para a especificidade do Tribunal inquisitorial,
que para além das técnicas de busca da heresia em si, inovou ao
tentar esquadrinhar a “personalidade dos réus”, pesquisando “so-
bre o indivíduo, sua natureza, seu passado. Pesquisa até certo pon-
to arcaica, ainda ligada à decifração da alma pecadora e de suas
intenções ou à busca de antecedentes criminais na vida pregressa
do acusado”, antecipando assim a criminologia e processualística de
finais do século XVIII. Diz-nos ainda que no caso da pena capital, a
Inquisição foi mais “moderna” que as justiças civis, menos violenta,
mais rápida, até porque era pena limite, aplicada numa minoria dos
casos, igualmente ao que tribunal espanhol vivenciou.
Através de seus variados mecanismos intimidatórios, o tri-
bunal do Santo Ofício instigava a delação e inspirava o medo nas
sociedades onde atuou, fosse pela ação quotidiana de seus agentes
e das visitações periódicas no Reino e no Ultramar, fosse pela de-
monstração de sua força através de rituais, como nos autos-de-fé,
evento ímpar no cotidiano da ação inquisitorial. Reunindo os al-
tos dignitários da Inquisição e todos os réus condenados, estes
Inquisição, poder, cultura e lugares 23

últimos saíam em procissão pelas ruas nas sedes dos tribunais lo-
cais. Espetáculo público meticulosamente preparado, seu clímax
acontecia no momento da leitura pública das sentenças dos réus,
seguindo-se depois à queima na fogueira daqueles que haviam re-
cebido a pena capital (SARAIVA, 1985, p. 101-112).
A Inquisição portuguesa foi notável pela eficiência com que
desarticulou os laços sociais, estimulando denúncias e vasculhan-
do as vidas pessoais dos indivíduos. Elaborou métodos precisos
de atuação que fortaleceram cada vez mais o temor que desejava
difundir. Foi o que Bartolomé Bennassar chamou de “pedagogia
do medo”, isto é, uma série de práticas que visavam perpetuar o
Tribunal como uma instância respeitável e temida. Além da tortu-
ra e da fogueira, o segredo inquisitorial, fundamental para o mo-
dus operandi do Tribunal; a memória da infâmia, adquirida pela
vivência de sentenças humilhantes, como açoites públicos, dentre
outras; e por fim, o sequestro de bens e a miséria, que tiveram
uma ressonância sem precedentes como mecanismos repressivos
(BENASSAR, 1984).
Exemplo importante para se ter noção da extensão do po-
der inquisitorial são as correspondências trocadas entre os in-
quisidores, os tribunais regionais e alguns agentes inquisitoriais.
Os fluxos de comunicação do Santo Ofício, através de trocas
regulares de correspondência, foram fundamentais para o bom
funcionamento das suas várias instâncias administrativas, sendo
veículo estratégico para o cumprimento do exercício do poder
inquisitorial no Reino e em terras coloniais. O Conselho Geral,
órgão máximo da Inquisição portuguesa, mantinha constante
troca de correspondência com os tribunais regionais de Lisboa,
Coimbra, Évora e Goa, bem como com outras instâncias ecle-
siásticas e seculares.
24 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Este tema de pesquisa nos despertou a atenção quando es-


tudamos os chamados “crimes contra o Santo Ofício”. Às heresias
de ordem religiosa, moral e sexual, se juntaram estes delitos pou-
co estudados ao longo de toda a história do tribunal. Estes réus
foram considerados hereges por atrapalharem a estrutura e bom
funcionamento da Inquisição portuguesa, perpetrando ofensas e
difamações à Inquisição, aos inquisidores e a outros agentes in-
quisitoriais. Também incluídos neste delito foram os indivíduos
que se fingiram de funcionários do Tribunal; que atrapalhavam
ou até impediam prisões; que revelavam os procedimentos inqui-
sitoriais; que roubavam o erário da Inquisição, e por fim, aqueles
que sendo agentes do Tribunal, abusavam de sua autoridade; aco-
bertavam fugidos das prisões; guardas que facilitavam encontros
e contatos entre os presos e mantinham relações íntimas com pre-
sas. Mas ao longo desta pesquisa, encontramos um grupo de in-
divíduos que foram processados por estarem envolvidos em casos
de roubo e violação da correspondência inquisitorial, e entrega de
papéis abertos, infringindo assim o “segredo”, essencial ao modus
operandi do Santo Ofício. Estes casos inspiraram-nos, assim, a de-
senvolver um trabalho voltado para os circuitos de comunicação e
informação estabelecidos entre o Tribunal de Lisboa e o Conselho
Geral do Santo Ofício, os outros tribunais regionais, autoridades
coloniais e demais funcionários do aparato burocrático-adminis-
trativo inquisitorial, com foco específico em temas relativos ao
Brasil, nos séculos XVII e XVIII.
O Tribunal do Santo Ofício foi uma das maiores instituições
produtoras e detentoras de documentação em relação às insti-
tuições portuguesas no Antigo Regime. Logo após a extinção da
Inquisição portuguesa, em 1821, toda a documentação inquisi-
torial foi depositada na Biblioteca Pública de Lisboa, e três anos
Inquisição, poder, cultura e lugares 25

depois, começou a ser incorporada à Torre do Tombo, um dos


arquivos régios mais antigos de Portugal, datando do século XIV.
Ao longo dos séculos XIX e XX, esta documentação foi sendo
pouco a pouco identificada, obedecendo à própria lógica inter-
na do tribunal em organizar e administrar seus papéis. Cada um
dos tribunais regionais tinha arquivo próprio com quantidade ex-
pressiva de documentos, sendo inclusive matéria do corpus legal
da Inquisição a forma de organização deste material (FARINHA,
1990). No Regimento de 1640 estavam definidos núcleos docu-
mentais, como os livros específicos para delatados, decretos de
prisão, listas de autos de fé, registros de diligências, livros de cor-
respondências, dentre outros, bem como os locais de sua guarda.1
Os temas presentes na correspondência expedida e recebida
pelo Tribunal lisboeta foram os mais diversos, abordando procedi-
mentos específicos relacionados ao cotidiano e funcionamento do
Tribunal, como encaminhamento de denúncias, informações sobre
habilitações, prisões, envio de editais, rol de livros proibidos, execu-
ções de diligências, dentre outros, e também discussões sobre casos
de determinados réus, questões econômicas, número de agentes em
diversas localidades, modos de processar certos delitos, pedidos de
comutação de pena de degredo por parte dos réus, etc.
Em outra pesquisa que desenvolvemos sobre os cárceres in-
quisitoriais, por exemplo, localizamos nestas correspondências
várias referências sobre a necessidade de reformas e outros assun-
tos relativos à vida cotidiana dos réus nas prisões. Embora fosse

1 Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal orde-


nado por mandado do Ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo, Dom
Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Ma-
jestade - 1640. In: Revista do instituto histórico e geográfico brasileiro. Rio
de Janeiro, n.392, jul/set.1996, Liv.I, Tit.II.
26 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

proibido qualquer conversa sobre os assuntos do Tribunal, dificil-


mente isto não ocorria. Em carta expedida para a Inquisição de
Évora, em 1698, o Conselho Geral do Santo Ofício recomendava
que “quando dois presos estão por companheiros nos cárceres e
um deles sair no auto e o outro ficar, nunca o que sair, quando se
tornar a recolher, se há de por com o que há de ficar, por não lhe
referir o que passou no auto”.2
Outro exemplo da peculiaridade desta documentação foi
quando estudamos as práticas mágicas e devoções dos negros em
Portugal, assimiladas à feitiçaria. As recomendações do Conselho
Geral do Santo Ofício para que estes supostos feiticeiros con-
fessassem um pacto com o Diabo eram explícitas, enviando ao
Tribunal de Lisboa, em finais do século XVII, instruções para os
exames e sessões. Era fundamental que os inquisidores pressio-
nassem os réus para saber se

tinham se apartado da Fé, adorando o demônio como Deus,


tendo para si que era digno de culto e veneração e poderoso
para salvar as almas e as levar ao Céu, não crendo no Mis-
tério da Santíssima Trindade nem em Cristo Senhor Nosso,
mistérios de nossa Santa Fé católica e juramentos da Igreja.3

Estes exemplos demonstram a potencialidade destas fontes


para analisar diversas questões que possibilitam um estudo ainda
mais verticalizado da ação inquisitorial e seu funcionamento. A
eficiência do tribunal do Santo Ofício em organizar e estruturar

2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Inquisição de


Évora, Instruções - Livro 105.
3 “Exames e sessões de crença para feiticeiros que confessaram pacto com
o demônio e também forma da sessão in genere para feiticeiros negativos”.
Conselho Geral do Santo Ofício, título XXIV, livro 265.
Inquisição, poder, cultura e lugares 27

este circuito de comunicação foi um dos mecanismos fundamen-


tais para o controle dos réus no Império português, e particular-
mente ainda no caso do Brasil, que não contou em suas terras com
uma estrutura administrativa inquisitorial local.
Na historiografia sobre a Inquisição portuguesa o uso da cor-
respondência inquisitorial aparece em trabalhos de toda a natureza
sobre a Inquisição, fossem aqueles de viés meramente institucio-
nal, ou os dedicados a estudos dos delitos heréticos. Ao contrário
dos tribunais inquisitoriais espanhóis, que possuem estudos mais
pontuais sobre este tema (FONTANILLA, 2005, MILLÁN, 1982),
os arquivos inquisitoriais portugueses foram pouco contempla-
dos com análises mais específicas sobre material tão vasto, exce-
ção feita aos trabalhos dos historiadores José Pedro Paiva (2005)
e Fernanda Olival (2006). A correspondência relativa ao Tribunal
de Goa, na Índia, entre 1569 e 1630, mereceu estudo clássico de
Antônio Baião, uma vez que os processos atinentes a este tribunal
se perderam (BAIÃO, 2004). Também o Tribunal de Évora, entre
1700 e 1750, ganhou importante trabalho de Nelson Vaquinhas,
que levantou o quantitativo da correspondência expedida por esta
Inquisição no período, bem como seus respectivos destinatários,
ficando os comissários e notários com os maiores percentuais. Este
autor desvendou ainda o dia a dia árduo do caminho dos portado-
res das missivas e documentos do Santo Ofício, enfrentando longas
distâncias, perigos nas estradas, assaltos e outras intempéries. Os
papéis inquisitoriais eram acondicionados numa bolsa com cadea-
do, e junto a eles muitas vezes era enviado também dinheiro para
os presos e para efetuar pagamentos, estimulando ainda mais os
roubos. Dos temas levantados por este autor, os mais recorrentes
foram as execuções das diligências, as denúncias, a circulação dos
editas da fé e os trâmites dos degredos, que ganharam destaque
28 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

porque Castro Marim, no Algarve, foi região bastante utilizada


para este fim (VAQUINHAS, 2010).
A pesquisa que estamos desenvolvendo tem então por obje-
tivo traçar um quadro temático a partir dos assuntos tratados nos
circuitos de correspondências com o Tribunal de Lisboa, especi-
ficando seus destinatários e remetentes, e os períodos de maior
circulação. Pretendemos ainda tentar desvendar o cotidiano da-
queles que transportavam os documentos a partir dos processos
que sofreram no caso de violações e roubo da correspondência
inquisitorial, enquadrados nos chamados “crimes contra o Santo
Ofício”, percebendo com isso as possíveis fragilidades da estrutu-
ra organizacional da Inquisição portuguesa.
Os livros de correspondência expedida e recebida pelo
Tribunal de Lisboa é documentação bastante extensa, toda ma-
nuscrita, com muitos códices de difícil leitura. No livro 24, por
exemplo, foram vistas 606 imagens e encontrados 1740 corres-
pondências trocadas e registradas entre os anos de 1780 e 1802.4 A
imensa maioria delas foi destinada a localidades subordinadas aos
tribunais regionais de Coimbra e Évora. Os destinatários foram
variados, desde os mais diversos lugares em Portugal até outras
partes de seu império colonial. Desse número total de registros,
9,48% foram relativas ao Brasil, contemplando diversas partes da
colônia como segue abaixo na tabela 1:

4 ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondência Expedida, Livro 24.


Inquisição, poder, cultura e lugares 29

Quadro 1:
Localidades destinatárias da Correspondência Expedida pelo
Tribunal de Lisboa – 1780/1802
Cidades Nº %

Rio de Janeiro 65 39,39


Bahia 25 15,15

Pernambuco 21 12,72

Mariana 13 7,87

São Paulo 10 6

Pará 8 4,84

Maranhão 6 3,63

Sabará 5 3

Recife 5 3

Maricá 2 1,21

Cabo Frio 1 0,6

Vila Boa de Goyas 1 0,6

Vila Rica Minas 1 0,6

Paraíba 1 0,6

Olinda 1 0,6

Fonte: ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondência Expedida,


Livro 2

Mandados de prisão, envio de editais da fé, questões rela-


tivas a processos de habilitação aos cargos inquisitoriais, remes-
sas de presos, pedidos de transferências de réus para os cárceres
inquisitoriais em Portugal, busca de denunciados, documentos
vários referentes ao andamento dos processos e consultas referen-
tes aos delitos heréticos são exemplos das temáticas encontradas
nesta documentação. Dentre estes casos, citemos o de Jose Pereira
Ribeiro, pois junto dos papeis que exigiam que o mesmo fosse
30 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

remetido a Lisboa para ser preso por uma denúncia de bigamia


em 25 de Janeiro de 1781, esse mesmo tribunal requeria também
ao seu destinatário em Recife, Pernambuco, que se realizasse uma
averiguação sobre se a primeira esposa do réu ainda era viva.
Outro caso ilustrativo foi a carta expedida para o Rio de
Janeiro, em abril de 1785, solicitando que fosse comprovado o óbi-
to do primeiro conjugue de Maria Ribeiro, permitindo assim que a
requerente contraísse um segundo casamento sem o perpetrar bi-
gamia. A análise desta documentação permite também constatar o
andamento de diversos casos, como foi o de Jose de Barros, conde-
nado ao degredo no Brasil por bigamia em setembro de 1796, mas
perdoado por este crime antes do fim de sua sentença, em agosto
1798. O quantitativo das cartas relacionadas especificamente a de-
litos heréticos dos casos do Brasil segue no quadro 2. Do restante
dos temas, a maioria se refere a dados processuais e estão em fase
final de classificação para serem incorporados ao quadro 2.

Quadro 2:
Cartas relacionadas a delitos heréticos - Correspondência Expe-
dida pelo Tribunal de Lisboa – 1780/1802
Delitos Nº
Bigamia 20
Sodomia 4
Feitiçaria 3
Blasfêmia 8
TOTAL 25

Fonte: ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondência Expedida,


Livro 24

A maioria dos destinatários eram comissários, agentes in-


quisitoriais clérigos que tinham por função realizar devassas e in-
vestigações dos suspeitos, diligências para habilitação aos cargos
dos Santo Ofício, instruir processos, receber denúncias e remeter
Inquisição, poder, cultura e lugares 31

réus para os cárceres.5 Dada a natureza de suas funções, enten-


de-se tal prerrogativa. O estudo realizado por Nelson Vaquinhas
para a Inquisição de Évora entre 1700 e 1750, constatou tam-
bém que das 360 cartas, 202 foram destinadas aos comissários
(VAQUINHAS, 2010, p. 106).
Estudar os fluxos de informação na Inquisição portuguesa
através da correspondência do Santo Ofício nos remete, portanto,
a um campo mais amplo de reflexão relacionado aos circuitos da
comunicação escrita no mundo ibérico moderno nas suas mais
variadas dimensões (ALGRANTI, 2009). A circulação e trans-
missão de normas, ideias, valores, costumes e saberes, entre os
centros imperiais e as periferias coloniais, sustentou relações de
poder e instituições, ao mesmo tempo em que também difundiu
condutas heterodoxas aos parâmetros religiosos da Europa cristã
(HESPANHA, 2001). O movimento constate de pessoas, de mer-
cadorias, de papéis e documentos diversos, de hábitos, de culturas
distintas e até de doenças imprimiu uma dinâmica sem preceden-
tes no mundo moderno (RUSSEL-WOOD).
Consideramos, por fim, o Tribunal do Santo Ofício como
uma instituição típica do mundo atlântico no mundo moderno,
integrando o período de formação das identidades atlânticas a
partir do século XVI, quando se intensificam os contatos com o
Novo Mundo e a configuração de influências recíprocas no plano
cultural e religioso (GREEN, J. e MORGAN, 2009). Para além do
Atlântico, os contatos com o Oriente vão mostrar um mundo em
conexão, como percebeu Serge Gruzinksy, em especial no perío-
do de junção das monarquias ibéricas, entre 1580 e 1640, confi-
gurando um “planeta filipino” (2014, p. 46). Nos territórios do

5 Regimento do Santo Ofício...., Livro I, Tit.XI


32 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Império português onde a Inquisição se estabeleceu, ao mesmo


tempo em que articulou uma forte estrutura de poder, também
desestruturou padrões culturais. Poder que, com bem percebeu
Antonio Manuel Hespanha, “se infiltra molecularmente em todos
os nichos do tecido social” (2012, p. 69), levando a que as popula-
ções, ao mesmo tempo em que se viram massacradas pelas perse-
guições do Santo Tribunal, também contribuíram decisivamente
para a denúncia de suspeitos que se tornaram réus.

Referências:
ALCALÁ, A. (org). Inquisición española y mentalidad inquisito-
rial. Barcelona: Ariel, 1984.
ALGRANTI, L e Megiani, A.P. (org) O Império por escrito. Formas
de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. Séculos
XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009.
BAIÃO, Antonio. A inquisição de Goa: correspondência dos in-
quisidores da Índia (1569-1630). Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade, 1930; Tavares, Célia. Jesuítas e inquisidores em Goa.
Lisboa: Roma Editora, 2004.
BAKTHIN, Mikail, Cultura popular na idade média e renascimen-
to: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasí-
lia: Ed. Universidade de Brasília, 2010.
BENASSAR, Bartolomé. Inquisición española: poder politico y con-
trol social. Barcelona: Grijalbo, 1984.
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal,
Espanha e Itália – séculos XV–XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
Inquisição, poder, cultura e lugares 33

CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade


negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime. Rio de Ja-
neiro: Garamond, 2008.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. 1300-1800.
Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FARINHA, Maria do Carmo D. Os arquivos da inquisição. Lisboa:
ANTT, 1990.
FONTANILLA, Susana. Las secretarias del Consejo del Inquisi-
ción y su sistema de producción documental. Siglos XV-X-
VII. Boletín de la Sociedad Española de Ciencias y Técnicas
Historiograficas. N. 3, 2005;
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
GINZBURG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes O cotidiano e as ideias
de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1987.
GREEN, J. e MORGAN, P. Atlantic history. A critical appraisal.
New York: Oxford U Press, 2009.
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo. História de uma
mundialização. Belo Horizonte: UFMG/EDUSP, 2014.
HESPANHA, Antônio Manuel. A constituição do império portu-
guês. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In Bicalho,
M.F. et ali. O Antigo regime nos trópicos. A dinâmica impe-
rial portuguesa. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2001.
HESPANHA, Antonio Manuel. Caleidoscópio do antigo regime.
São Paulo: Alameda, 2012.
34 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisi-


ção Portuguesa. 1536-1821. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013.
MILLÁN, José M. La burocracia del Santo Oficio em Valencia du-
rante el siglo XVII. Miscellanea Comillas, tomo XL, Madrid,
1982, n.77.
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. Rio de Janeiro: Pers-
pectiva, 1992.
OLIVAL, Fernanda. Mercês, serviços e circuitos documentais
no Império português. In Santos, M.E. Madeira e LOBATO,
Manuel. O domínio da distância: comunicação e cartografia.
Lisboa: Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2006.
PAIVA, José Pedro. As comunicações no âmbito da Igreja e da In-
quisição. In NETO, Margarida Sobral (org.) As comunicações
na idade moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comu-
nicações, 2005;
RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento. Os portugue-
ses na África, Ásia e América (1415-1808). Rio de Janeiro:
Difel, 1998.
SARAIVA, Antônio José Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Es-
tampa, 1985, pp. 101-112.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico. Demonologia e co-
lonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e In-
quisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campos, 1989.
VAQUINHAS, Nelson. Da comunicação ao sistema de informa-
ção. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Lisboa: Edições
Colibri, 2010.
2. Misericórdia, justiça e
intolerância: a Inquisição
portuguesa e o drama da
perseguição aos judaizantes:
alguns estudos de caso
Angelo Adriano Faria de Assis

“Os cristãos novos têm no sangue o pecado...”


D. Luís de Melo (Sermão do Auto de Fé celebrado em 11
de outubro de 1637)

Quem diria que eu quase consegui ser feliz. Mas foi sem-
pre o quase... quase... quase... Nunca fui cristã, fui quase
cristã; nunca fui judia, fui quase judia; nunca fui portu-
guesa, fui quase portuguesa; nunca fui brasílica, fui quase
brasílica, quase professora de meninas, quase senhora de
engenho de açúcar, quase mãe feliz, quase esposa feliz,
nem viúva por completo sou...
(REAL, 2009, p. 32)

A passagem que abre este trabalho, um trecho do romance


de Miguel Real sobre Branca Dias, personagem célebre e um dos
baluartes do esforço de sobrevivência judaica vivenciado na lu-
so-América, das mais denunciadas durante a primeira visitação
da Inquisição ao Brasil, em fins do Quinhentos, ilustra a situação
de dubiedade tanto externa quanto interna em que vivam os cris-
tãos-novos durante o tempo de vigência do monopólio religioso
36 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

e da ação persecutória do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição


no mundo português durante a Modernidade. Como Branca, não
foram poucos os que viviam na lâmina, divididos entre a apa-
rência de bons cristãos, e a ansiedade por viver sem receios ou
disfarces os ensinamentos da Torá, pressionados cotidianamente
pelo medo da delação que poderia levá-los à morte social ou às
fogueiras que ardiam em nome de Deus.
O drama neoconverso vem sendo relatado seguidamente e em
minúcias nas últimas décadas por pesquisadores dos dois lados do
Atlântico, e tem colaborado para produzir uma bibliografia bastan-
te variada e consistente, a retratar não apenas os estudos de caso dos
indivíduos alcançados e processados pelo Santo Ofício, mas ainda
os motivos que levavam à perseguição dos cristãos-novos; o coti-
diano de resistência e da perseguição contra os suspeitos de manter
a fé dos antepassados; a estrutura e funcionamento da Inquisição e
a atuação de seus representantes; as aproximações, distanciamen-
tos e os desdobramentos sociais no convívio entre cristãos velhos
e novos através dos tempos. Um leque de temáticas desenvolvido
em programas de pós-graduação portugueses e brasileiros (mas
não só), mostrando a vitalidade da presença neoconversa no Brasil
desde os primórdios da chegada dos portugueses.
A história dos cristãos-novos e da posterior instauração do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal tem início
no apagar do século XV, quando um decreto “d’O Venturoso”, D.
Manuel I, acabaria com séculos e séculos de bom convívio entre
judeus, cristãos e mouros e ordenaria a expulsão dos judeus do
reino, aos moldes do que já fizera a Coroa de Espanha cerca de
quatro anos antes, em 1492.
Proibidos de permanecer na Espanha, Portugal tornou-se
um dos destinos de eleição de muitos dos judeus que deixaram a
outra banda da Ibéria com o processo de Reconquista, fosse em
Inquisição, poder, cultura e lugares 37

trânsito, rumo a outros destinos, fosse para eleger o reino funda-


do por Afonso Henriques como novo lar. Colaborou para tanto a
vasta fronteira seca, a proximidade cultural e o longo convívio dos
grupos judaicos dos dois reinos, que mantinham contatos há tem-
pos, fazendo com que a comunidade hebraica em Portugal, com a
chegada do reforço dos judeus espanhóis, atingisse um contingen-
te estimado (e muitíssimo significativo) em cerca de cem a cento e
cinquenta mil almas, a representar por volta de dez a quinze por
cento de toda a população portuguesa. Porém, os acordos com
o reino vizinho, ratificados num contrato nupcial que envolvia o
enlace do monarca lusitano com D. Isabel, a infanta hispânica,
segunda na lista de sucessão à Coroa de Fernando e Isabel, elegia a
expulsão dos judeus de Portugal como elemento indiscutível para
que fossem seladas as negociações, visto que esta só aceitava ser
rainha de um reino exclusivamente cristão.
Ciente da importância para o reino tanto dos judeus quanto
dos acordos com os Reis Católicos, sem poder abrir mão de am-
bos, em dezembro de 1496 o monarca luso fixaria um prazo de
dez meses para que os seguidores de Israel deixassem Portugal.
Diferente do que ocorrera no caso espanhol, porém, quando o
tempo estipulado para a saída fora muito menor, o espaço de dez
meses dava certa margem de manobra a D. Manuel no intuito de
amealhar condições para tornar a partida menos traumática aos
interesses lusitanos.
A expulsão dar-se-ia, ao cabo, não sem antes promover uma
série de tentativas em convencer os judeus ao batismo para que
pudessem permanecer como cristãos no reino, acenando com
uma série de vantagens aos que abdicassem de Moisés em nome
de Cristo – tentativas estas, diga-se de passagem, nem sempre di-
38 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

plomáticas, e por vezes cercadas de violência tanto física quanto


psicológica, muitas fracassadas, outras, de relativo sucesso.1
Findo o prazo, em outubro de 1497, exatamente no mo-
mento marcado para a partida, a expulsão dos que optaram por
permanecer judeus e migrar para outras regiões onde pudessem
manter livremente a fé dos antepassados seria transformada em
conversão forçada dos descendentes de Abraão ao cristianismo,
consciente o monarca do papel que estes representavam para
Portugal naquele momento de expansão ultramarina. Alguns
destes judeus agora convertidos à fé de Cristo eram homens de
posses, que financiavam as viagens de conquista com capitais
oriundos de seus negócios, além de serem, muitos dentre eles,
mão-de-obra qualificada, homens letrados e de ciência, de cabe-
dal e conhecimento, profissionais capacitados para desenvolver
da melhor forma as funções necessárias que a busca por novas
terras e mercados cobrava aos anseios lusitanos.
Assim, batizados em pé, contra a vontade e forçadamente,
ganhavam – ou melhor, lhes era imposto - o direito de permane-
cer, agora, oficialmente católicos, no território que não os aceitava
mais como grupo distinto; ironicamente, como numa diáspora

1 Merece destaque, neste sentido, o sequestro de crianças judias de suas ca-


sas, causando terror e espanto geral, para que fossem espalhadas por vilas
e lugares do reino, onde seriam criadas e doutrinadas por famílias católi-
cas. Muitos pais contaram com o auxílio de cristãos velhos para esconder
os rebentos, ou mesmo preferiram a morte dos próprios filhos a entregá-
-los aos cuidados dos cristãos. (COSTA, 2005, p. 84). Não fora a primeira
vez que tal medida havia sido tomada: Já D. João II, seu antecessor, poucos
anos antes, ordenara que os filhos de judeus fossem igualmente retirados
de suas famílias e enviados para serem criados por famílias cristãs nas
recônditas ilhas de São Tomé e do Príncipe, desejando não apenas frear o
crescimento de judeus no reino, mas também habitar aquela região insu-
lar com cristãos (novos). Na ficção, o drama das crianças judias arranca-
das de seus lares foi representado pelo escritor português Mário Cláudio,
no romance Oríon (2003).
Inquisição, poder, cultura e lugares 39

sem partida, não eram aceitos como iguais entre os que os obriga-
vam à nova fé. Eram cristãos, mas cristãos-novos, para que fosse
marcada a distinção dos demais cristãos de família e origem, de-
nominados lindos, puros ou velhos.
Cristianizados sem opção, coagidos a deixar a crença que
lhes fora repassada desde as primeiras palavras, e batizados à força
numa religião que lhes acolhia com certa suspeição, entre outras
coisas, por serem considerados como povo deicida, o certo é que
os neoconversos seriam vistos, de forma genérica, como suspeitos
de judaizar e de falta de adesão completa e sincera ao cristianis-
mo, vistos, pela população em geral, como a principal ameaça ao
cristianismo. Não tardariam, por conseguinte, os conflitos entre
os cristãos separados pelo sangue.
O fato é que o batismo oficial não significou, no mesmo
grau, a conversão real de todos: embora alguns judeus tenham
adotado o cristianismo e tentassem aceitar os preceitos católicos
com sinceridade, outros procurariam manter, ocultamente, em
intensidades e formas variadas, dentro das contingências e do
quadro possível, práticas e crenças dos antepassados. Que fique
bem claro, a experiência de manutenção judaica não apenas lon-
ge está de ter sido totalizante, mas também variou no tempo e
no espaço, e não podemos entender o criptojudaísmo como um
comportamento uno e invariável: na prática, cada cristão-novo
que insistisse em manter a tradição hebraica o fazia ao seu modo,
dependendo das suas condições, conhecimentos e possibilidades,
o que expande praticamente ao infinito as especificidades do ser
criptojudeu, cada um o sendo ao seu modo, embora alguns há-
bitos fossem comuns a boa parte deles. Isso sem contar aqueles
forçados que se tornavam cada vez mais laicos, insatisfeitos igual-
mente com a crença que fora banida e a outra, que não queria
40 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

aceitar, descrentes de ambas. Anita Novinsky assim definiu a ca-


tegorização dos cristãos-novos portugueses:

1) os marranos que seguiram determinados princípios ju-


daicos, sabiam algumas orações e acreditavam na redenção
e na vinda do Messias; 2) os marranos ‘alinhados’, (agnósti-
cos, céticos), que se opunham a qualquer dogma cristão e
não acreditavam em nenhuma religião; não eram criptoju-
deus, mas se identificavam com os judeus; e 3) os que, por
convicção ou interesse, assimilaram sinceramente a fé cristã
e desapareceram, como judeus, da sociedade portuguesa
(NOVINSKY, 2001, p. 67-75).

Elvira Mea, por sua vez, atenta para o que denomina de “in-
filtração invisível do cristianismo” com o avançar do tempo e as
novas gerações, que faz com que os neoconversos adotem com-
portamentos que acabam por destoar do judaísmo normativo:

Não é só a agressão do Santo Ofício nem o caráter clan-


destino da religião judaica que mandam, mas sobretudo o
ambiente e a vivência cristã, que educam, criam referên-
cias, mentalizam, gerando todo um conjunto de valores,
sentimentos e atitudes que nada têm a ver com o Judaísmo
(MEA, 2007, p. 141).

Para Sonia Siqueira, a inquietude sobre a situação do neo-


converso longe estava de se limitar apenas aos cristãos-novos,
sendo vivenciada – claro, em sentido e intensidades bem distintas
– pelos dois grupos:

Na área cristã, suspeitava-se da existência de um cripto-


judeu em cada neoconverso. Na área judaica, bipartia-se
ainda o grupo cristão-novo que se esforçava por assimilar
à sua nova condição e entre o grupo criptojudeu que man-
Inquisição, poder, cultura e lugares 41

tinha uma dupla face religiosa, política e social. Os cripto-


judeus comprometiam a posição dos cristãos-novos, pois
mantinham acesa a desconfiança (SIQUEIRA, 1978, p. 71).

Deste modo, desvirtuava-se a ideia sobre o cristão-novo, gene-


ralizando de forma pejorativa sua real entrega religiosa, feita a partir
da associação do criptojudaísmo com todo indivíduo neoconverso.
Rapidamente, a sociedade portuguesa identificaria no proces-
so de conversão forçada e na suposta falta de sinceridade religiosa
dos neoconversos a causa primeira para a diminuição da pureza
cristã no reino, fazendo com que as desconfianças sobre os cris-
tãos-novos – herdeiros diretos dos preconceitos anteriormente di-
rigidos aos judeus – fosse um dos mais fortes motivos para a instau-
ração da Inquisição em 1536, já entrados os tempos de D. João III.
Com a implantação e a posterior estruturação do Santo
Ofício no reino, aumentaria o clima de perseguições e hostili-
dades contra o grupo neoconverso, e o permanente controle in-
quisitorial acabaria por alimentar profundas transformações nas
relações sociais, intensificando as hostilidades e as delações de
comportamentos tidos como desviantes, enxergando no criptoju-
daísmo a maior das ameaças. Por conta disto, não foram poucos
os cristãos-novos que optaram por migrar para outras regiões, fu-
gindo do Santo Ofício.
A máquina inquisitorial, embora de forma equivocada te-
nha muitas vezes enxergado um judaizante em potencial em cada
cristão-novo, tinha razão em perceber que o judaísmo continuava
bem ativo em Portugal, o que, é bem verdade, não era exatamente
uma novidade... Posto está que não estamos a defender ou justi-
ficar a lógica de perseguição inquisitorial e as abomináveis medi-
das de punição impostas aos réus do Santo Tribunal – muitíssimo
longe disto! -, mas é verdade que uma considerável parcela dos
42 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

neoconversos continuou a tentar manter vivas as tradições da re-


ligião mosaica. As denúncias, confissões e processos inquisitoriais
– guardando-se o cuidado e os filtros que se fazem necessários
para a análise destas fontes – são a prova disto. Que fique claro,
guardados os exageros dos denunciantes e o olhar viciado tan-
to da sociedade quanto de muitos representantes da Inquisição,
que não raro viam em qualquer comportamento diferenciado da
prática católica uma prova inequívoca de judaísmo, o certo é que
muitos continuaram, dentro das possibilidades – muitas vezes, ín-
fimas – a judaizar em segredo, no seio familiar, na privacidade do
lar, alimentando uma memória que, conforme passava o tempo e
se afastava do período de livre crença, cada vez menos conheciam.
No século XVI, principalmente nas primeiras décadas, no
momento anterior ao surgimento da Inquisição, quando muitos
dos antigos judeus, inclusive os que foram rabinos e ainda con-
tinuavam vivos e guardavam a memória judaica, com a manu-
tenção de algumas festas e costumes e o acesso (embora limita-
do) a textos sagrados, o judaísmo sobreviveu e foi repassado aos
descendentes. Conforme afastamo-nos do período de conversão
forçada, contudo, algumas práticas mais denunciadoras acabaram
sendo abandonadas em prol de outros comportamentos que per-
mitiam, aos criptojudeus, manterem sua fé sem serem percebidos.
Mas, no geral, a prática do judaísmo ainda era evidente, a ponto
de alguns apelos pela conversão ganharem força, como o texto-
-advertência de Frei Francisco Machado em 1541, “Deixai a Lei
de Moisés”! (VAINFAS, 2005).
Os rituais judaicos sofreriam, ao longo do tempo, alterações
das mais diversas no intuito de impedir o seu completo desapa-
recimento, permitindo uma sobrevida diante do quadro social de
hostilidade que enfrentavam. Nesta perspectiva, agiganta-se o pa-
Inquisição, poder, cultura e lugares 43

pel da mulher. E assim foi durante todo o tempo de perseguição,


ocupando função primordial na irradiação deste judaísmo adapta-
do, dissimulado, escondido e diminuto, tornando-as das principais
responsáveis pela resistência e organização de suas novas bases,
tendo a privacidade dos lares – embora esta fosse relativa – como
espaço privilegiado de divulgação, e as mulheres, como grandes
guardiãs, repassando a “Lei de Moisés” às novas gerações (ASSIS,
2012). Práticas religiosas multiformes, mas que tinham no esforço
e estratégias de resistência o elo comum neste mundo à margem:

Os preceitos doutrinários mosaicos diferem de pessoa para


pessoa; o isolamento do mundo exterior, inclusive do ju-
daico, conduziu à autonomia ideológico-religiosa; longe
dos ensinamentos rabínicos, cada qual possuía o conheci-
mento que a família, o meio socio-cultural em que vivia,
permitia. Havia, todavia, dirigentes espirituais, nascidos
entre os que detinham maior saber e fazer da Lei mosaica.
Foram mulheres as principais iniciadoras: a memória das
cerimónias, dos rituais, dos textos, dos preceitos dietéticos
foi preservada e transmitida no feminino, favorecendo a
fidelidade ao judaísmo. Baptizavam-se, crismavam-se, iam
à missa, comungavam. Mas que interessava, se no foro ínti-
mo, por determinação, por vontade, se mantinham judeus?
Como confessam nos processos, a máscara de cristãos ser-
via “... para cumprimento do mundo”. Enquanto crianças,
aprendiam a doutrina católica; era uma defesa no exterior,
e no caso de prisão pelo Santo Ofício, uma aprendizagem
útil. Iniciados mais tarde no Judaísmo aprendiam o segre-
do, desenvolviam estratégias de dissimulação por forma a
fazer crer numa assimilação. Dependendo da conjuntura
das terras de acolhimento, abandonaram alguns ritos, res-
tringiram e recriaram outros. As situações foram variadas
decorrentes, também, do carácter, da ousadia, da tolerân-
cia individuais (GARCIA, 1999, p. 140).
44 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Não por acaso, o processo efetivo de colonização do Brasil


a partir da década de 1530, mesmo momento em que se dava a
estruturação da Inquisição e o consequente aumento das per-
seguições aos neoconversos em Portugal, com a realização dos
primeiros autos-de-fé já em 1540, significariam o aumento das
migrações de cristãos-novos para o Brasil, tornando-os, desde
cedo, figuras de destaque na empreitada colonial brasílica, onde
a produção de açúcar ganhava destaque e transformava o trópico
em uma das pontas-de-lança da economia do império. Aqui, tor-
navam-se participantes ativos da colonização, galgavam posições
econômicas, transformados em destacados senhores de engenho,
muitos deles homens riquíssimos e com grande influência, com
ligações com os principais da terra, catapultados a figuras de des-
taque da sociedade colonial, envolvidos nas mais diversas fun-
ções, ramos e atividades do cotidiano. Sinal deste bom convívio
é a presença dos neoconversos em praticamente todos os espaços
da economia e o grande número de casamentos mistos entre cris-
tãos velhos e novos, ratificando a maior aceitação social destes
enlaces e a diluição dos atritos entre os grupos na região brasílica
se comparado ao que ocorria em Portugal.
Mantinham, ainda, importantes ligações com outros cris-
tãos-novos e mesmo judeus migrados para outros espaços do
mundo conhecido, dentro e fora dos domínios portugueses –
Cochim, Goa, Macau, Japão, Malaca, México, Caribe, Espanha,
França, Itália, Amsterdã, Moçambique, Guiné, Marrocos, Angola,
São Tomé, Madeira... –, estruturando ou comandando redes de
comércio e de contato, negociando produtos e circulando infor-
mações que, no limite, ajudavam no suporte solidário e na pro-
teção do grupo neoconverso das perseguições da “Santa Forca”
(SOUSA & ASSIS, 2009).
Inquisição, poder, cultura e lugares 45

Na colônia, as longas distâncias – que, mui constante-


mente, faziam com que os homens se ausentassem por longos
períodos de suas residências – acabaram por intensificar ainda
mais o papel que já no reino havia sido destinado à mãe neo-
conversa, responsável por ensinar as primeiras lições de fé aos
rebentos. Eram responsáveis não só pela organização, funcio-
namento e limpeza da casa, preparando alimentos e cuidando
da saúde e educação dos filhos, mas, não raro, pela organização
dos negócios do clã, pela provisão de mantimentos, manutenção
da ordem e ensino das primeiras letras, bons modos e lições de
moral. Os lares transformaram-se em células da resistência e di-
vulgação judaicas. Mas não só no Brasil. Por todo o mundo luso,
coube, em grande parte ao núcleo familiar - mulheres à frente -
tornar possível esta sobrevivência. Vejamos alguns destes casos,
nos dois lados do Atlântico.
Foi assim, por exemplo, que informaria uma certa Ana de
Sequeira, meio cristã-nova, filha de pai de sangue puro, ao Santo
Ofício de Coimbra como aprendera a crença na antiga fé: menina
de dez anos, pouco mais ou menos, ouvira em casa de seus tios,
na cidade de Buarcos que

se queria salvar sua alma, e ser honrada e digna nesta vida,


havia de crer na lei de Moisés e encomendando-se a Deus
dos céus, crendo nele, com a oração do Padre Nosso, e que
havia de fazer dos sábados domingos, começando a guarda
deles à sexta-feira à tarde, varrendo as casas, consertando
os candeeiros com azeite limpo e torcidas novas, deixando-
-os acesos até por si se apagarem, e que havia de lançar len-
çóis lavados nas camas, e vestir camisas lavadas, e que não
havia de comer carne de porco, lebre, coelho, nem peixe
sem escama, e havia de jejuar as segundas e quintas feiras
da semana, sem comer nem beber em todo o dia, senão à
46 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

noite, já depois de saída a estrela. E de fato logo ali se apar-


tou de Nossa Santa Fé Católica e se passou à lei de Moi-
sés, tendo crença nela e esperando salvar-se, e não na fé de
Cristo, em o qual não cria nem tinha por verdadeiro Deus
e messias prometido na lei, antes esperava por ele como os
judeus esperam, e logo assim se declaravam, e deram con-
ta que criam e viviam na lei de Moisés, e nela esperavam
salvar-se, e por sua observância faziam quanto podiam as
ditas cerimônias.2

Da mesma vila de Buarcos, Álvaro Rodrigues, que tinha


parte de cristão-novo por via de sua mãe, homem do mar, qua-
renta e quatro anos, casado com a também cristã-nova Catarina
Antónia, compareceria à mesa do inquisidor para confessar que,
cerca de dez anos antes, reunido em casa de Brites Antonia, sua
mãe, com ela e dois outros seus irmãos,

Disse a dita Brites Antonia a ele declarante e aos ditos seus


irmãos que cressem eles na lei de Moisés porque era boa
para salvação da alma, e que ela cria nela. E parecendo a
ele declarante e aos ditos seus irmãos que a dita sua mãe
lhe ensinava era bom para a salvação de suas almas, lhe
responderam que assim o fariam, e em efeito ele declarante
se apartou logo então de nossa santa fé católica e se passou
a crença da lei de Moisés, e ficou tendo crença, a qual lhe
durou até agora, que faz sua confissão.
E no tempo em que sua mãe os ensinou disseram logo ali
à dita sua mãe e irmãos e ele declarante que criam viviam
na dita lei de Moisés, e nela esperavam salvar-se, a qual de-
claração e comunicação tiveram todos quatro depois por
outras vezes.3

2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo-Inquisição de Coimbra (doravante


ANTT-IC. Processo 304 (Ana de Sequeira).
3 ANTT-IC. Processo 304 (Álvaro Rodrigues).
Inquisição, poder, cultura e lugares 47

Também Helena Luís, moçoila de quinze ou dezesseis anos,


compareceria à Inquisição de Coimbra para confessar que, quan-
do tinha cerca de oito anos de idade,

em Carção, em casa de seus pais Luís Lopes e Izabel Lopes,


cristãos-novos, natural do Vimioso e moradora no dito lu-
gar, se achou com ela, e estando ambas sós, disse a dita sua
mãe, que a queria ensinar no que mais consinta para a sua
salvação, era que havia ela de crer na lei de Moisés, que era
só a boa para o dito efeito, e por guarda dela havia de fazer
o jejum do dia grande, que vem no mês de setembro, estan-
do nele sem comer nem beber senão à noite, ceando então
cousas que não fossem de carne, que ela dita sua mãe assim
fazia, e cria na dita lei, e parecendo-o bem a ela confitente
o que a dita sua mãe lhe dizia e como tal lhe ensinava o
melhor e mais seguro para sua salvação, se apartou logo
aí da fé de Cristo Nosso Senhor, em que até então vivia, e
de que tinha bastante instrução, e se passou à lei de Moi-
sés, crendo e esperando salvar-se nela, e assim o declarou à
dita sua mãe, e lhe disse que na dita lei ficava crendo, e por
guarda dela faria os ditos jejuns, como com efeito fez daí
por diante os anos seguintes, e aí não passaram mais, mas
depois disso se ficaram conhecendo e orando por crentes e
observantes da dita lei.4

Outros cristãos-novos eram iniciados e aceitavam o judaís-


mo influenciados de formas distintas, ou esperavam a saída de
Portugal para comungar com maior liberdade a crença proibida.
Foi o caso, dentre outros, de um tal Álvaro Fernandes, cristão-no-
vo natural de Lisboa, homem de 29 anos, estudante de latim, que,
“com intenção de ser frade ou clérigo” fora moço para Salamanca,
e que depois andou por Roma, Nantes e Florença, onde viveu,

4 ANTT-IC. Processo. Processo 398 (Helena Luís).


48 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

acabando por ser convencido por um frade a abandonar a ideia


da vida religiosa, “porque ainda que fosse frade o não haviam de
ordenar”, provavelmente, por sua origem neoconversa e por al-
guns parentes que abraçaram o judaísmo abertamente no exílio.
Explica, então, como se passara à lei mosaica:

E se foi ter com um seu primo que se chama Francisco Salva-


dor, o qual é casado em Florença com uma Caterina Mendez,
e o dito seu primo ainda que viva no exterior como cristão,
todavia para algumas cousas que lhe ouviu dizer o tem por
judeu, porque o dito seu primo da segunda vez que tornou
ali se declarou com ele como era judeu, aprovando o que ele
confitente havia feito, que era ser judeu. E a dita sua mulher
se declarou também com ele como fazia os jejuns da Lei de
Moisés. E que também um irmão do dito Francisco Salvador
que se chama Álvaro Salvador que vive em Ferrara, solteiro,
de vinte e sete anos, pouco mais ou menos, se declarou com
ele confitente como era judeu.
E por estas e outra visões de seus parentes e por lhe haver
escrito um seu tio que se chama Manoel Fernandes que
vive em Ferrara e é judeu ele se foi a Ferrara, e o dito seu
tio e outros alguns judeus começaram a disputar com ele,
amostrando-lhe como a Lei dos Judeus ainda hoje se havia
de guardar, pelo qual ainda que alguns dias esteve cristão
em Ferrara, todavia se veio a persuadir e creu em seu cora-
ção que a Lei dos Judeus era a boa e que se havia de guardar
e que daí por diante começou a ser judeu fazendo todos os
ritos e cerimônias da Lei de Moisés com intenção e cren-
ça de judeu, tirando circuncidar-se, e trazer um véu que
trazem os judeus quando entram na sinagoga, e trazer os
estafelis,5 o qual não fazia nem trazia por deixar de ser ju-
deu mas porque não no conhecem publicamente algumas

5 Talvez, referência ao Tefilin ou filactério, objeto de oração contendo pas-


sagens bíblicas usado por homens adultos em determinadas atividades
religiosas (UNTERMAN, 1992, pp. 260-261).
Inquisição, poder, cultura e lugares 49

pessoas de fora, por não saber se viria em algum tempo a


este reino ou a outra parte entre cristãos.6

O destino, contudo, o levaria novamente à Lisboa, para


tratar de questões pessoais, e compareceria, no ano de 1577, ao
Tribunal do Santo Ofício para confessar suas culpas e pedir mise-
ricórdia delas. No processo, elenca não apenas os motivos que o
levaram ao judaísmo e as especificidades de sua prática religiosa,
que alegou ter seguido por volta de vinte meses, chegando inclu-
sive a adotar nome judeu, Salomão Serralvo, Cafim de alcunha,
além de nomear pessoas de uma ampla e bem engendrada rede
internacional de judeus e cristãos-novos de origem portuguesa.
Para tudo pedia misericórdia, acabando por ser reconciliado pelo
Tribunal à Santa Madre Igreja, recebendo abjuração em forma,
penitências espirituais e ficando proibido de sair do reino sem li-
cença dos inquisidores.
No Brasil, não seria diferente o quadro. Na documentação
oriunda da visitação que percorreu as capitanias açucareiras do
Nordeste entre 1591 e 1595 encontramos inúmeros sinais do crip-
tojudaísmo que era praticado, onde a importância das mulheres
como propagadoras da memória judaica salta aos olhos. Várias
delas acabariam seguidamente acusadas ao visitador Heitor
Furtado de Mendonça de insistir, celebrar e transmitir a herança
mosaica às novas gerações.
Em geral, as denúncias versavam sobre a recorrência de
cristãs-novas em costumes considerados, ao menos, indícios ex-
plícitos de prática criptojudaica, tais como: guarda dos sábados;
preparação de alimentos e práticas jejunais; celebrações de festas

6 Arquivo Nacional da Torre do Tombo-Inquisição de Lisboa (doravante


ANTT-IL), processo 1929 (Álvaro Fernandes).
50 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

e datas do calendário judaico, a exemplo do Iom Kipur e do Jejum


de Ester, leitura e posse de livros ou textos sagrados, costumes
e ritos funerários próprios, bênçãos e juramentos ao modo dos
judeus, realização de esnoga.
Por vezes, as acusações identificavam qualquer atitude con-
siderada herética como sinal indiscutível de prática judaica, em-
bora comportamentos desviantes da norma católica não se limi-
tassem aos cristãos-novos, nem, por outro lado, todo neoconverso
possa ser considerado judaizante ou tivesse noção da origem de
suas práticas como pertencentes à tradição hebraica. Nem mes-
mo os cristãos velhos, diga-se de passagem, conheciam a fundo a
religião a qual procuravam defender a pureza, cometendo, vez ou
outra, desvios da norma defendida pelo Catolicismo. Se o próprio
cristianismo lhes soava, em alguns momentos, como mistério, o
que dizer do judaísmo, que aprendiam muitas vezes através dos
discursos proferidos pelos padres, pelo “ouvi dizer” das ruas com
juízos de valor despropositados, ou pelos Éditos de Fé pregados
nas portas das Igrejas... Como os cristãos-novos que censuravam,
desconheciam sua própria fé e a (suposta) fé do outro, chegando,
em alguns casos, a misturar ambas.
Desta forma, na fase baiana da visitação, uma denunciante
informaria ter ouvido de uma velha conhecida sobre uma cer-
ta Ana Franca, com quem convivera ainda nos tempos do reino,
“mulher do mundo”, que “era uma cadela judia, que cuspira em
um crucifixo dentro no mosteiro das convertidas de Lisboa, onde
elas ambas tinham estado, e que, quando o fizera, estava a dita
Ana Franca doida, mas que, ao fim, era judia” (Denunciações da
Bahia, 1922-1929, p. 367-369).
Não foram poucas as denúncias a retratar a dubiedade vivi-
da pelas cristãs-novas na colônia, não só externamente – ora fre-
Inquisição, poder, cultura e lugares 51

quentando igrejas, ora reunidas em torno da Torá -, mas também


em seu interior, a confundir muitas vezes a tradição cristã com os
ensinamentos judaicos, divididas entre o catolicismo imposto e
o judaísmo que lhes fora arrancado, desconhecendo ambos, pra-
ticando-os de forma igualmente equivocada, de acordo com as
conveniências e necessidades.
Citemos, como exemplo, alguns casos de comportamentos
tidos como judaizantes pela população e denunciados durante
a visitação quinhentista ao Brasil. Assim, um certo Francisco
Soares, acusaria a própria mãe, Maria Álvares, e a irmã, Guiomar
Soeiro, de mandarem, em caso de falecimento, “lançar fora a
água dos potes que estavam na cantareira da sala”, tornando a
enchê-las de água fresca da fonte (Denunciações e Confissões de
Pernambuco, 1984, p. 373-374).
As precauções alimentares ganhariam destaque nos livros de
confissões e denúncias. A cristã-nova Gracia Fernandes, já faleci-
da, seria denunciada pelo filho Gaspar de seguir algumas das leis
dietéticas atribuídas ao judaísmo: “havendo em casa algumas vezes
coelho e enguia para comer, e comendo-o os de casa, nunca a dita
sua mãe o comeu, dizendo que coelho e enguia não comia ela”, o
que repetia sua filha Isabel, que, enquanto solteira, morando com
a mãe, “nunca comia coelho nem enguia quando o havia em casa”
(Denunciações e Confissões de Pernambuco, 1984, 147-148).
A cristã-nova Ana Rodrigues, moradora em Matoim, no
Recôncavo baiano, primeira vítima da Inquisição no Brasil con-
denada à fogueira apesar de passados por volta de dez anos de
sua morte nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa, teria ofereci-
do à Custódia de Faria, irmã de um dos genros da matriarca dos
Rodrigues Antunes, durante as festas de celebração da Páscoa, dois
ou três pães ázimos, feitos sem fermento, ao modo dos judeus, “por
52 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

razão da amizade e cunhadio”. Questionada sobre o porquê daquela


forma de preparo, “ela lhe respondia que não tinha fermento nem
achava fermento para amassar, e que por isso o seu pão não era
lêvedo” (Denunciações da Bahia, 1922-1929, p. 477-481).
Já a cristã-nova Violante Pacheca confessaria práticas atribuí-
das aos judeus, como a preparação das refeições pelo modo tradi-
cional judaico. Algumas vezes, “tirou a lândoa do quarto traseiro à
rês miúda, o que dizia ter aprendido de um cunhado cristão velho
para se assar bem a carne, e que, muitas vezes, costuma cozer a
panela de carne, quando é magra, com cebola ou alho frito em azei-
te, e que também isto faz sem ruim tenção”. Declarava ainda que,
três ou quatro anos antes, perdera dois de seus filhos, doentes de
boubas, num intervalo de poucos dias, “e quando lhe morreram, os
dias em que os levaram a enterrar, lançou ela fora a água dos potes,
e quebrou os púcaros que estavam nos mesmos potes”.7
A cristã velha Catarina de Lemos informaria ter escutado que
uma tal Catarina Álvares mantinha-se à espera do Messias pro-
metido aos judeus, sem aceitar a Jesus Cristo como o Verdadeiro
Messias, e que teria pronunciado o seguinte juramento, esperan-
do o dia de sua redenção e preparando a vingança sobre os que
considerava seus opressores: “guai, guai, filho, que inda o Messias
não é vindo, e estamos esperando por ele, e como ele vier, estes
cañis [sic] destes cristãos velhos hão de ser nossos escravos”!8
Rica em detalhes também seria a confissão de Antônia d’Oli-
veira, “cristã-nova de todos os costados”, de trinta e oito anos,

7 Confissão de Violante Pacheca, cristã-nova, na graça, em 17/12/1594. De-


nunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1995, pp. 117-118.
8 Catharina de Lemos contra Catharina Alvares, Bárbara Luis e Fuão Ca-
breira, em 13/01/1594. Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-
1995, pp. 142-145.
Inquisição, poder, cultura e lugares 53

mulher casada, moradora em Salvador. Dizia que, quando vivia


em Porto Seguro, quinze anos antes, partindo seu esposo para
Portugal, manteria práticas jejunais “às quartas e sextas-feiras e sá-
bados do carnal, os quais dias ela jejuava encomendando-se a Deus
Nosso Senhor e à Virgem Nossa Senhora, e aos santos do paraíso,
encomendando-lhes também ao dito seu marido ausente, e rezan-
do-lhes pelas contas das orações da Santa Madre Igreja”. Seu primo,
Álvaro Pacheco, a aconselharia a realizar o “verdadeiro jejum, e não
comer e fartar-se ao meio-dia, e que este jejum faziam antepassa-
dos e por ele se salvaram”. E explicava-lhe a forma como os avós
se haviam salvado: “há de jejuar às segundas e quintas-feiras sem
comer, nem beber, nem dormir, nem rezar até noite, até sair estrela,
então, depois de sair a estrela, há de cear uma galinha se a tiver bem
gorda, assada ou cozida, e ceará à sua vontade”. Desse modo, levaria
uma vida “santa” – termo, valer dizer, mais ligado à liturgia católica
do que ao judaísmo, exemplo da confusão religiosa que envolvia os
cristãos-novos –, assim como fizeram os antepassados:

depois de jejuar, fosse ela à dita sua tia, que lançasse a bên-
ção, dizendo-lhe também que, se a dita sua avó Branca
Rodrigues fora viva, ela lhe ensinava a ela como se havia
de salvar, porque fora muito santa mulher e morrera uma
morte santa, dizendo-lhe mais o dito seu primo, que guar-
dasse os sábados, porque os sábados eram os verdadeiros
domingos, e neles se haviam de vestir as camisas lavadas, e
neles se não havia de trabalhar, e que os domingos nossos,
eram dias de trabalho.

Antônia acabou por realizá-las, “cuidando serem boas, não


entendendo então que eram judaicas, não comendo nem bebendo,
nem rezando nem dormindo, até sair a estrela à noite, e depois das
54 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

estrelas saídas, ceou e comeu o que achou em casa”. Mas os fizera


“duas vezes somente, e lhe parece que os fez ambos em uma semana”.
Lembraria ainda que, pelas bandas do Espírito Santo, ou-
vira de um compadre, enquanto rezava: “como reza, e não sabe
como se há de salvar, dizendo-lhe que os seus antepassados, dela,
sabiam como se haviam de salvar, e que todos se salvaram na gló-
ria, e lhe contou a história do bezerro d’ouro, quando os filhos de
Israel idolatraram estando Moisés no monte, e que queriam dizer
que, dos que adoraram procedem os jejuns daquela nação”, e que
se “ela jejuava como se costuma na Santa Madre Igreja, que seus
avós dela” e os avós do seu marido “jejuavam doutra maneira”
(VAINFAS, 1997, p. 162-169).
Dos mais marcantes casos referentes ao período da visitação
inquisitorial na Bahia, estaria a família de Mestre Afonso Mendes,
bacharel cirurgião d’El Rey, que viera para o Brasil acompanhan-
do ao governador-geral Mem de Sá. Ele próprio – falecido catorze
anos antes da chegada de Heitor Furtado –, seria acusado de açoi-
tar um crucifixo, e de ser mal cristão, sem frequentar a Igreja por
longos períodos, entre outras heresias.
Durante o tempo em que lá viveu, Mestre Afonso fora con-
selheiro dos familiares e dos criptojudeus nas questões religiosas
e no respeito às tradições. Depois da sua morte, mulher e filhos
continuariam a celebrar a antiga lei. A esposa do cirurgião d’El
Rey compareceria à mesa do visitador para contar sua versão das
culpas que lhe eram imputadas. E eram elas, as mulheres da fa-
mília – uma vez mais –, as grandes responsáveis pela prática e
sobrevivência do judaísmo oculto no silêncio do lar.
A mulher de Mestre Afonso, Maria Lopes, seria acusada
de várias práticas tidas como judaizantes. Diziam, entre outras
Inquisição, poder, cultura e lugares 55

coisas, que manteria um crucifixo por debaixo dos colchões, e


que possuía uma imagem sagrada no interior da almofada em
que sentavam suas alunas na época em que era mestra de lavrar.
Seis meses antes da chegada do inquisidor, teria sido flagrada
lavando a louça no quintal da casa sobre um crucifixo de pau
grande que ficava enterrado no local. A própria Maria Lopes
confessaria ao visitador alguns hábitos característicos, como os
cuidados que seguia na preparação dos alimentos, todos eles
recorrentes no cotidiano alimentar judaico: “quando mandava
matar alguma galinha, para rechear ou para mandar de presente,
a mandava degolar e pendurar a escorrer o sangue por ficar mais
formosa e enxuta do sangue, e que sempre, quando em sua casa
se assa quarto traseiro de carneiro ou porco, lhe manda tirar a
lândoa”. E explica os motivos, desviando a atenção da prática
religiosa para os efeitos culinários: «porque se assa melhor e fica
mais tenro, e não se ajunta na lândoa o sangue evacuado, e assim
mais, quando a carne de porco é magra, alguma vez a manda
cozinhar lançando-lhe dentro azeite ou grãos na panela com ela,
e isto mesmo mandou fazer alguma vez à carne de vaca quando
era magra”, e que seguia alguns dos costumes funerários atri-
buídos aos judeus, como lançar a água em caso de falecimento
e o trabalho em dias sagrados para os cristãos, veementemente
condenado pela Igreja.
Sua filha, Branca de Leão, já falecida, acabaria acusada de
desrespeitar o crucifixo, arremessando-lhe certa vez um púcaro de
água, repreendendo, em seguida, aos que a repreendiam: “calai-vos,
mana, que isto não é Deus, que é papel, porque Deus está nos altos
céus”. Fora ainda vista a picar com os dedos e fazer descortesias a
um crucifixo, e de beliscar e romper uma carta de Nossa Senhora,
56 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

indagando: “para que presta isso?” Seu marido, Antônio Lopes


Ilhoa, seria acusado de possuir uma esnoga (espécie de sinagoga
clandestina) de judeus ao lado da capela em seu engenho.
O caso que mais chama a atenção dentre os judaizantes da fa-
mília, todavia, estaria reservado a Ana d’Oliveira, outra das filhas de
Mestre Afonso e Maria Lopes, responsável pelo único documento
conhecido relativo à primeira visitação que faz referência à obser-
vância do preceito da circuncisão, tão caro ao judaísmo tradicional.
Pelo que informam as denúncias, Ana deve ter herdado do
pai algumas de suas práticas, repetindo as tradições judaicas com
os próprios filhos. As notícias sobre a realização de rituais especí-
ficos dos judeus ganhariam fama por toda a capitania: “haverá dez
anos que, nesta cidade, ouviu dizer não lhe lembra a quem que
Ana d’Oliveira, filha de mestre Affonso, cristã-nova, mulher que
foi de Belchior da Costa, circuncidava as crianças que paria de-
pois que vinham de batizar, e que uma vez fora vista uma criança
sua ensangüentada, e fora ouvida chorar quando a circuncidava”
(Denunciações da Bahia, 1922-1929, p. 333).
No judaísmo, a circuncisão ou brit milá remonta à tradi-
ção da aliança de Deus com Abraão (Gen. 17:11-12), salvando
os circuncidados de serem castigados por Abraão após a morte.
Representa a iniciação do menino judeu como integrante pleno
do povo judaico, ao assinar com o próprio sangue seu contrato
com Deus, que ficará marcado eternamente em sua carne.
O que torna ainda mais excepcional a atitude é que o papel
da mulher durante a circuncisão, de acordo com a tradição, está
longe daquele exercido por Ana d’Oliveira, pois em nenhum mo-
mento as mulheres tomam parte direta na cerimônia. É presumí-
vel que Ana tenha aprendido a prática com o pai, e assumido sua
realização entre os familiares e os judaizantes da região quando
Inquisição, poder, cultura e lugares 57

do falecimento de Mestre Afonso, na falta de outro alguém para


levar a termo a tarefa.
Ana acabaria processada pelo visitador por atos de judaís-
mo, por não ter confessado durante o período de graça. Porém,
“considerando ser nova quando delinqüiu, recebeu pena bran-
da: abjuração de leve suspeita na fé, feita na mesa” – julgada pelo
próprio visitador, na Bahia, sem que o caso fosse enviado para
o Conselho Geral em Lisboa -, mais “admoestação e penitências
espirituais”. Pena branda, cabe salientar, se levarmos em conta o
peso e gravidade das acusações contra si. Se fosse enviada para
Lisboa, é provável, até, que acabasse na fogueira.
As mulheres aqui citadas, dentre tantas e tantas outras, al-
cançadas ou não pelo Santo Ofício, foram das representantes
máximas do criptojudaísmo durante o tempo de perseguição in-
quisitorial. Como elas, outras mulheres e homens cristãos-novos
viveriam ambiguamente, divididos entre o catolicismo que não
lhes aceitava como iguais e o hebraísmo que lhes fora arrancado,
praticando ora um, ora outro, de acordo com o local, as possibili-
dades e as conveniências. Foram, durante o período em que teve
vigência o estatuto de pureza de sangue e funcionou o Tribunal do
Santo Ofício, mártires de uma religião que muitos deles próprios
desconheciam, lutando constantemente contra a perseguição de
que eram vítimas. Se não é verdade que tinham no sangue o pe-
cado, como lhes imputava D. Luís de Melo na epígrafe que ilustra
este trabalho, o certo é que a herança judaica que lhes percorria
as veias servia de motivo para todo tipo de acusação. Nada mais
justo do que serem lembrados num estudo sobre Intolerância.
58 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Referências
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da colônia – Criptoju-
daísmo feminino na Bahia. São Paulo: Alameda, 2012.
CLÁUDIO, Mário. Oríon. 2. ed. Lisboa: Publicações Dom Qui-
xote, 2003.
COSTA, João Paulo Oliveira e. D. Manuel I (1469-1521): Um prín-
cipe do Renascimento. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.
GARCIA, Maria Antonieta. Judaísmo no feminino – Tradição Po-
pular e Heterodoxia em Belmonte. Lisboa: Instituto de So-
ciologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de
Lisboa, 1999.
MEA, Elvira Cunha de Azevedo. A problemática do judaísmo (sé-
culos XVI-XVII). In: BARRETO, Luís Filipe, MOURÃO, José
Augusto, ASSUNÇÃO, Paulo de, GOMES, Ana Cristina da
Costa, FRANCO, José Eduardo (Coords.). Inquisição portu-
guesa – Tempo, razão e circunstância. Lisboa, Prefácio, 2007.
NOVINSKY, Anita W. Os cristãos-novos no Brasil colonial: re-
flexões sobre a questão do marranismo. In: Revista Tempo 
Dossiê Religiosidades na História. Vol. 6, no 11. Rio de Janei-
ro: 7letras, 2001.
Primeira visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licencia-
do Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nos-
so senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio.
Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado,
1922-1929.
Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denuncia-
ções e Confissões de Pernambuco 1593-1995. Recife: FUN-
DARPE. Diretoria de Assuntos Culturais, 1984, Coleção Per-
nambucana, 2ª fase, vol. XIV.
Inquisição, poder, cultura e lugares 59

REAL, Miguel. Memórias de Branca Dias. 3ª ed. Lisboa: Quidno-


vi, 2009.
SIQUEIRA, Sonia A. A Inquisição portuguesa e a sociedade colo-
nial. São Paulo: Ática, 1978.
SOUSA, Lúcio Manuel Rocha de; ASSIS, Angelo Adriano Faria
de. A Diáspora Sefardita na Ásia e no Brasil e a Interligação
das Redes Comerciais na Modernidade. In: Revista de cultura
do instituto cultural de Macau, 2009, v. 31, pp. 100-117.
UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
VAINFAS, Ronaldo. ‘Deixai a lei de Moisés!’ Notas sobre o Es-
pelho de cristãos-novos (1541), de frei Francisco Machado.
In: GORENSTEIN, Lina e CARNEIRO, Maria Luiza Tucci
(Orgs.). Ensaios sobre a intolerância. Inquisição, Marranismo
e Anti-semitismo. 2ª. ed. São Paulo: Associação Editorial Hu-
manitas, 2005.
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: santo ofício da
inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
3. Tortuosos caminhos de
uma tardia habilitação:
notas do processo de habilitação
do Comissário de Manoel Jesus
Bahia (1752-1773)
Grayce Mayre Bonfim Souza

Os commissários do Santo Officio. Além de haverem de


ter todas as qualidades, que, conforme ao Regimento,
se requerem nos Ministros da Inquisição, serão pessoas
Ecclesiasticas, e de prudência, e virtude conhecida. [...].1

Desde a última década, as investigações acerca das ações


inquisitoriais no universo luso-brasileiro têm crescido satisfato-
riamente, e isto se deve à possibilidade de maior acesso às fontes
proporcionadas, sobretudo pela digitalização e disponibilização
online de conjuntos documentais pertencentes ao fundo do Santo
Ofício português, custodiado pelo Arquivo Nacional da Torre do
Tombo. Assim, a documentação legada pela instituição inquisi-
torial entre os séculos XVI a XIX, em especial pelo conjunto do-
cumental do Conselho Geral do Santo Ofício e o do Tribunal da
Inquisição de Lisboa, em sua totalidade e, notadamente, nas par-
tes relacionadas aos territórios de controle luso na América, tem
grande significado e representa, pela sua riqueza de detalhes, um

1 REGIMENTO dos Comissários do Santo Ofício. Em 1990, Luiz Mott pu-


blicou pelo Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia
os Regimentos dos Comissários E Escrivães De Seu Cargo, Dos Qualifica-
dores e Dos Familiares (MOTT,1990).
62 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

testemunho vivo das relações interpessoais, vida material e reli-


giosidade presentes no universo cultural da população colonial
(SOUZA, 2014, p. 272).
Embora na América portuguesa não fora estabelecido um
tribunal do Santo Ofício, as ações inquisitoriais ocorreram desde
o início da colonização, cujo primeiro processo – o do donatá-
rio da capitania de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho – é
datado no ano de 1546. Daquele período até os últimos anos do
século XVIII, foram mais de 270 indivíduos sentenciados, entre
naturais e moradores da Bahia. A princípio, as ações inquisitoriais
na colônia foram confiadas aos bispos e também aos reitores de
Colégios dos Jesuítas, outros clérigos delegados pelos inquisido-
res de Lisboa, ou mesmo por meio das visitações.2 Mas a liga-
ção efetiva entre a América portuguesa e o tribunal lisboeta só
foi possível a partir do final do século XVII com a formação de
uma rede de agentes inquisitoriais composta por Comissários,
Familiares, Qualificadores e Notários, conforme podemos obser-
var no quadro que se segue.

2 Na Bahia, ocorreram duas visitações: a primeira, conduzida pelo Licenciado


Heitor Furtado de Mendonça, no final do século XVI e a segunda no início
do XVII por Marcos Teixeira. Cópias dos manuscritos resultantes dessas
visitações estão disponíveis para download no site do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (Doravante ANTT). Também é possível acesso ao conteú-
do dos livros da Visitação em Salvador (1592 a 1593) por meio dos traba-
lhos de Capistrano de Abreu, publicados em 1922 e 1925; e da Visitação de
1618-1620, ocorrida em Salvador e Recôncavo, também chega até nós por
meio do trabalho de Eduardo de Oliveira França e Sonia Siqueira.
Inquisição, poder, cultura e lugares 63

Quadro 1:
Agentes inquisitoriais nomeados para a Bahia -
Séculos XVII-XIX
Visitador
Século Comissários Familiares Qualificadores Notários Total
de Nau
XVII 3 88 1 - 1 93

XVIII 54 685 19 14 - 772

XIX 2 52 2 - 56

Total 59 825 20 16 1 921

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo


Ofício. Conselho Geral. Habilitação do Santo Ofício

De todas as categorias de agentes, a dos Comissários, auxi-


liados pelos Familiares, foi de fato a que representou uma ligação
mais direta da Colônia com os tribunais de distrito e colaborou
efetivamente para a administração de informação inquisitorial en-
quanto movimentadores de “circuitos e de tipologias documentais
na periferia” (VAQUINHAS, 208, p. 172). Foram eles que tiveram
a incumbência de conduzir inquirições e diligências de habilitação,
“ouvir confissões e denunciações, tomar testemunhos, montar su-
mários de culpas, prender e enviar os réus para os cárceres no pa-
lácio inquisitorial em Lisboa, dentre outras atribuições” (SOUZA,
2014, p. 113). É na perspectiva de ser um agente inquisitorial e o
alcance do posto de oficiais da inquisição, tão almejado por vários
seguimentos da elite colonial, que ora apresentamos este capítulo,
cujo objetivo é revelar alguns aspectos da vida do Padre Manoel
de Jesus Bahia, sua geração, suas histórias familiares em tempos e
lugares distintos que chegaram até nós por meio do seu processo de
habilitação que tramitou entre 1752 a 1773.
Manoel de Jesus Bahia – cujo primeiro despacho do proces-
so de habilitação é datado de 11-2-1752, e a carta expedida em 26-
64 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

3-1773 – nasceu na freguesia de Santo Antônio Além do Carmo,


em 1712, e foi criado em Água de Meninos, ambos os lugares na
cidade da Bahia. Graduou-se em Artes, fez teologia no Colégio da
Companhia de Jesus, tornou-se escrevente de advogado, Cônego
da Sé da Bahia e secretário do arcebispo D. José Botelho de Matos.
Quando entrou com o pleito ao cargo de Comissário do Santo
Ofício, tinha 40 anos de idade. Informa-se na sua petição que era
filho do português Manoel Gomes Lisboa, negociante com “boa
nota” e já defunto quando do pleito, e de Francisca Assunção,
natural da Bahia. Para reforçar sua solicitação e ficar mais perto
do objetivo de tornar-se um agente da Inquisição, presta a infor-
mação de que dois tios avós do lado paterno foram habilitados
à Familiatura do Santo Ofício: Antonio Cruz e Caetano Alberto
Negreiro, com cartas emitidas, respectivamente, em 1741 e 1743.
Já na primeira folha do processo,3 encontramos informações
transmitidas pelos inquisidores Manoel Varejão, Joaquim Hansen
Moller e Luis Barata de Lima a partir dos pareceres emitidos pelo
padre Bernardo Pinheiro Barreto, Comissário da Bahia, e pelo
Notário Manoel Teixeira Cunha, de Lisboa. Com base nessas duas
extrajudiciais4 (a de Lisboa, assinada em novembro de 1752, e a

3 ANTT, Tribunal do Santo Ofício (doravante TSO), Habilitação do Santo


Ofício (doravante, HSO), Manoel, Maço 236, Documento 1391. Esta é a
referência do Processo de Habilitação de Manoel de Jesus Bahia, com car-
ta emitida em março de 1773.
4 A informação extrajudicial era muito comum nos processos de habilitação.
Segundo Nelson Vaquinhas, existiam “duas tipologias que envolviam as in-
formações extrajudiciais: a que era produzida pelos agentes locais, os infor-
mantes, em regra comissários e notários, e a outra, pelo tribunal de distrito,
assinada pelos Inquisidores, enquanto documento de consulta, em resposta
à solicitação de um parecer. A primeira era elaborada in loco, resultante das
averiguações informalmente realizadas (daí a designação de extrajudiciais)
junto de pessoas cristãs velhas e fidedignas da localidade pretendida, e ser-
via de suporte para a elaboração da segunda. Eram apresentadas à margem
ou no verso do próprio pedido da informação extrajudicial, como conven-
Inquisição, poder, cultura e lugares 65

da Bahia, em fevereiro do ano seguinte), a habilitação do padre


Manoel de Jesus Bahia não teria grande dificuldade, embora o
Notário informe que existiam rumores de cristã-novice do lado
paterno do postulante, mas que logo percebeu serem falsos, tendo
visto haver pessoas da família de Manoel Gomes Lisboa habilita-
das ao Santo Ofício.

Tomamos informação com o Comissário Bernardo Pinhei-


ro Barreto e com o Notário Manuel Teixeira Cunha a res-
peito da pureza de sangue e mais requisitos de Manoel de
Jesus Bahia, que pretende ser Comissário do Santo Ofício
contendo e confrontando [na petição] inclusa, que Vossa
Senhoria nos manda informar; Achamos que o habilitando
por si, seu pais e avós, é legítimo e inteiro cristão velho, de
limpo sangue e geração, sem conhecimento da fama, ou ru-
mor de cristão novo ou mulatisse, de que dá notícia o dito
Notário, porque ele mesmo nos informa que desta família
pela parte donde dão o defeito ao Pai do dito habilitando
se acham algumas pessoas habilitadas pelo Santo Ofício,
em cujas diligências se tratou do mesmo defeito, ou falso
rumor; É o sobredito habilitando de bom procedimento,
vida e costumes, com capacidade para negócios de impor-
tância e segredo, vive limpamento, é cônego na Sé da Bahia,
e não consta que tenha filho nem que ele ou algum de seus
ascendentes incorressem em infâmia pública ou pena vil de
feito, ou de direito.5

Nestas primeiras informações, apenas o questionamento da


pureza de sangue é levantado, mas nada é dito acerca da suspeita
de que o padre Bahia tivesse filhos mulatos com uma escrava da

cionalmente era solicitado” (VAQUINHAS, 2010, p. 35).


5 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
66 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

família e que também houvesse desconfiança de que ele não fosse


filho de Manoel Gomes Lisboa, conforme nomeado na petição.
Em termos regimentais, todo o processo de habilitação te-
ria que constar de certificações de “nada consta” emitidas pelos
notários dos tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra, informando
que não existem nos reportórios gerais de homens e mulheres,
referência a condenação de nenhum nome listado pelo habili-
tando na petição: o pleiteante, pais, avós e esposa (em caso de
Familiar casado), o que não era o caso do nosso investigado. Dos
três documentos correspondentes às informações prestadas pelos
tribunais, apenas o de Évora informa que consta em dois reportó-
rios, identificando inclusive quais deles e as folhas em que foram
localizadas informações sobre Manoel Gomes, mas não parece se
tratar da mesma pessoa.
Voltamos então à extrajudicial encaminhada pelos inquisi-
dores e realizada pelo Notário Manoel Teixeira Cunha, em final
de 1752, na cidade de Lisboa e na freguesia da Vila de Belas, para
obter dados do pai e avós paternos de Manoel de Jesus Bahia. Já
na solicitação, temos as informações acerca da profissão (alferes
e homem de negócio) do dito pai do habilitando e a suspeita de
padecer de alguma nota de cristão novo e “mulaticidade” que
provém da avó paterna, fama esta que vem do lugar de Idanha,
termo da Vila de Belas, terra natal desta dita avó conhecida por
Catariana Francisca. Nesta localidade Catariana, antes de se ca-
sar, exercia a profissão de forneira, era chamada de saloya e aos
parentes, os Saloyos.
Com relação à identificação da família como sendo saloios,
cabem algumas considerações: atualmente, essa denominação é
dada a moradores que vivem no entorno de Lisboa (Amadora,
Inquisição, poder, cultura e lugares 67

Alenquer, Loures, Odivelas, Sintra, Mafra dentre outros), áreas


denominadas de região saloia, portanto uma boa identificação do
lugar de morada de um determinado grupo. Mas vamos ver de
onde remonta tal acepção. Partimos então da definição que nos
apresenta Raphael Bluteau:

Deyxando el Rey D. Afonso Henriques ficar no Termo


de Lisboa os Mouros, em sua fazendas, & lugares, com
obrigação de pagar o mesmo, que aos seus Reis Mouros, e
estes chamavão Saloyos, ou C,aloios, que quer dizer gente
da C,alaa, & daquella feyta de Mouros, & o mesmo foy no
Reyno do Algarve, em tempo del Rey D. Dinis; & o que
entre nòs significa Christão, seja Portuguez, ou Italiano,
ou de outra nação, he entre elles Micelanni, de maneyra
que C,aloyo, quer dizer Mouro, não por ter de Maurita-
nia, senão daquella feyta; pelo que não ha divida procede-
ram estes nossos Saloyos destes, que el Rey Dom Affonso
deyxou por todo o Termo de Lisboa: & diz Miguel Leytão
na sua Miscellanea, pag. 342. que bemo mostrão porque
saõ muyto barbaros; porèm de tal maneyra se forão fazen-
do Christãos, & esquecendo sua progenie, que nem me-
moria ha disto, mais que a retenção do nome de Saloyos.
De tudo isto se colhe, que o P. Bento Pereyra no seu The-
souro da lingua Portugueza, chama com judiciosa restris-
ção ao Saloyo, Mulier rustica ex territorio Ulyssiponensi.
Ouvi dizer a alguns, que os Rusticos de Lisboa se chamão
Saloyos; porque devião ser de Salè, ou em razão do Salè
malè dos Mouros, de que descendem (1728, v. 7, p. 450).

Se seguirmos à risca o que diz o verbete do dicionário de


Bluteau, podemos concluir que, no vulgo, a família do lado pa-
terno de Manoel de Jesus Bahia, ou ao menos o que ele indica
como sendo seus ascendentes, tem fama de não serem cristãos-
68 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

-velhos.6 Decifrando o texto acima, observamos que a origem do


termo Saloio no século XVIII estava associada à história ances-
tral moura, origem que se inicia quando Dom Afonso Henrique,
que reinou 1112 a 1139, de que estes mouros permanecessem no
Temo de Lisboa, em suas fazendas com a obrigação de pagar à
Coroa o mesmo que pagavam antes aos “Reis Mouros”. Conclui
o autor que esses indivíduos deveriam ser de Salé (Salè malè dos
Mouros), cidade localizada ao noroeste de Marrocos.
Voltando para o processo, percebemos então que, além da
referência a ancestrais mouriscos, encontramos também suspei-
tas de cristã-novice. Mas, apesar de tantas vezes a indicação de
falta de pureza de sangue, muitos foram os momentos que a ge-
ração e Manoel Gomes foram examinados. Segundo o já referi-
do Notário do Tribunal de Lisboa, o Padre Manoel Teixeira da
Cunha, a pureza fora posta à prova pelo Juiz Eclesiástico na Mesa
de Consciência e até no Santo Ofício, e em todos foi abolida. No
Santo Ofício, a comprovação foi dada por meio da habilitação, em
1741, de Antônio Cruz e Caetano Alberto Negreiro, ambos tios
avós do lado de Catarina Francisca. Também o padre Gaspar de
Negreiros “purificou em suas diligências de genere” a má fama,
que era apenas de um lado do primeiro casamento de um ante-
passado do qual ele não descendia”. Conclui essa etapa dizendo
que não consta das pessoas relacionadas ou seus ascendentes re-
gistro de presos ou penitenciados. Essas são as informações que
saíram das diligências realizadas em Portugal, encerradas em
novembro de 1752. As informações são prestadas por diversas
testemunhas moradoras na cidade de Lisboa e respaldam aque-
le primeiro parecer emitido pelos inquisidores Manoel Varejão,
Joaquim Hansen e Luis Barata no início do processo.

6 Ser cristão velho era pré-requisito para se tornar um agente inquisitorial.


Inquisição, poder, cultura e lugares 69

A extrajudicial encaminhada para a Bahia com objetivo de


averiguar vida, geração e capacidade do padre Bahia, sua mãe e
avós maternos foi conduzida, como dito anteriormente, pelo co-
missário Bernardo Pinheiro Barreto. Para obter as informações
solicitadas na comissão, o padre Bernardo ouviu o frei Pedro da
Purificação (Religioso de Nossa Senhora do Monte do Carmo),
os padres José Ferreira Sampaio e José dos Santos Fialho e o
Tenente General da Artilharia João da Rocha Rocha. Este último
também foi ouvido pelo Comissário Antonio da Costa Andrade
na diligência iniciada em Salvador em julho de 1757. Todas essas
testemunhas disseram conhecer bem o habilitando, descreveram
suas funções como clérigo – sacerdote do hábito de São Pedro,
Cônego desta Sé da Bahia, e secretário que foi de Sua Excelência
Reverendíssima –, elencam os familiares que conheciam e, por
fim, qualificam-no dizendo que é pessoa de boa vida e costumes,
muito capaz de servir encarregado de negócios de importância e
segredo, como são os do Santo Ofício, e que vive com bom trata-
mento, asseio e cabedal de aproximadamente três mil cruzados,
isso por ter servido de cura à Sé da Bahia; “trata-se com fausto de
carruagem e lacaio, e anda muito asseado”. Conclui o Comissário
Barreto reforçando as informações prestadas pelas testemunhas,
mas acrescenta que, em Salvador, Manoel Gomes Lisboa, pai do
habilitando, era “difamado de cristão novo; porém hoje é tido
e havido por cristão velho”.7 Reforça a pureza de sangue que foi
assegurada pelo Comissário do Santo Ofício e desembargador
da Relação Eclesiástica, o Reverendo doutor Francisco Pinheiro
Barreto (que também é seu irmão), que habilitou o Manoel de
Jesus Bahia às ordens sacras, diz antes ter o habilitando um irmão
religioso da ordem do Carmo, o frei Elias da Piedade.

7 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


70 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

O tribunal de Lisboa novamente solicita averiguações in-


dicando a consulta às diligências de habilitação de generi na
Câmara Eclesiástica e dela obter os nomes e naturalidade de
seus avós maternos e recorrer a novas diligências, caso neces-
sário, para conseguir informações seguras com relação à natu-
ralidade e também tirar certidão de nascimento do habilitando,
de sua mãe, avós maternos e recebimentos (casamentos) destes.
Essa nova consulta se deveu às informações que colocavam em
dúvida a ascendência do cônego Manoel de Jesus Bahia, se era
pura de sangue, também modo de vida e costumes – sobretudo
com relação à “pureza moral” –, bem como os meios utilizados
para a habilitação canônica e seu ingresso na carreira eclesiásti-
ca. Quando o acórdão foi proferido – junho de 1743 –, o padre
Bahia já era um homem de quase 31 anos de idade e habilitou-
-se à ordem sacerdotal como sendo filho de Manoel Gomes,
mas também com desconfiança do Provisor João de Oliveira
Guimarães, que pretendeu realizar novas diligências para ave-
riguar filiação e o verdadeiro parentesco do pai com habilitados
à Ordem de Cristo e ao Tribunal do Santo Ofício. Esta descon-
fiança irritou o arcebispo D. José Botelho de Matos, que estava
presente, e que afirmou que Manoel de Jesus Bahia era limpo e
puro – caso contrário, não o teria admitido como secretário. A
defesa do prelado influenciou decisivamente na votação a favor
da sentença de genere no domínio diocesano, levando os adjun-
tos a votar a seu favor.
Nessa segunda consulta, respondida em março de 1754,
o Comissário Bernardo Pinheiro Barreto diz ter solicitado
Habilitação de Genere, Vita et Moribus, mas que o secretário da
Câmara não conseguiu localizar os autos de habilitação do referi-
do Cônego. Completa-se a averiguação com novos depoimentos:
Inquisição, poder, cultura e lugares 71

e fazendo mais diligência, por pessoas fidedigna, e cristãs ve-


lhas, sobre a geração do habilitando, apenas pude descobrir,
com grande trabalho por não haver hoje papéis antigos, ao
Padre Mestre e Frei Raimundo de Santo Antonio Boim, pes-
soa de grande virtude, e Provincial, que foi de sua Religião e
Comissário atual dos Terceiros da mesma ordem, e me disse,
que conhece muito bem ao habilitando, ser natural da Ma-
triz de Santo Antonio Além do Carmo, e que filho natural
de Manoel Gomes Lisboa, e qual diziam que era natural da
mesma Lisboa, e da sua mãe Francisca de Assunção, mulher
viúva, e que conheceu muito bem ao seus avós maternos,
porém, que não sabe dizer os seus nomes, por não fazer re-
flexão deles; porém, que foram sempre tidos, e havidos por
brancos legítimos, e cristãos velhos, sem coisa que duvida
possa fazer, e que todas naturais da mesma Matriz de Santo
Antonio Além do Carmo, onde foram moradores, e que o
dito habilitando fora exposto8 em casa de certo homem, por
ser a dita sua mãe viúva de boa reputação e que lhe parecia
morar este [...] nas partes da água de meninos, sitio da mes-
ma Matriz de Santo Antonio Além do Carmo; porém, que
sempre fora tido e havido por filho do dito Manoel Gomes
Lisboa, e Francisca de Assunção.9

Interrompemos aqui a transcrição da resposta do comissá-


rio por julgarmos interessante fazer alusão ao termo “exposto”
apresentado pelo frei Raimundo de Santo Antonio Boim.10 A prá-
tica de enjeitamento de crianças no período colonial foi constante
e é possível analisar de duas maneiras: uma por meio das rodas
dos expostos mantidas pelas Santas Casas de Misericórdia para

8 Grifo nosso.
9 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
10 Raimundo de Santo Antônio Boim era Qualificador do Santo Ofício, com
carta emitida em 22-3-1737, portanto já havia quase 30 anos.
72 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

o recolhimento dessas crianças e a exposição em casas de parti-


culares que, segundo Silvia Maria Jardim Brügger (2006), era a
forma mais praticada, embora seja a menos estudada pelos histo-
riadores, devido à dificuldade de documentação, enquanto que na
primeira há uma maior disposição documental.
Em Portugal, como informa Russell-Wood, a ocupação e
cuidado com os enjeitados eram das municipalidades, mesmo
daquelas crianças acomodadas pelo Hospital de Todos os Santos.
Em outras partes do império, inclusive na Bahia, também os “con-
selhos municipais eram responsáveis de juri. Mas em todos os ca-
sos eram as perspectivas Misericórdias quem recebiam, alimen-
tavam, vestiam e abrigavam as crianças abandonadas pelas mães”
(RUSSELL-WOOD, 1981, p. 234). Continuando nessa análise, no
final do século XVII e primeira metade do XVIII, o crescimen-
to do número de crianças abandonadas foi constante11 e chegou
mesmo a ser considerado como “desleixo moral”; uma situação
que deixou as autoridades civis e religiosas preocupadas com a
“ira divina”, conforme podemos observar no trecho citado abaixo:

No século XVIII, a Bahia podia rivalizar com Macau como


cidade de luxúria e vício. D. João V exortou o arcebispo e o
vice-rei a fazerem algo para remediar essa mancha de repu-
tação nacional. O rei temia vivamente que a Bahia tivesse
o destino de Sodoma. Na noite de 19 de março de 1721,
houve uma violenta tempestade elétrica sobre a Bahia. Um
relâmpago fendeu uma pedra da varanda da Ordem Ter-
ceiro do Carmo. Outro caiu sobre a janela da casa de um
juiz. No dia seguinte, um pequeno deslizamento de terra
destruiu algumas casas no distrito de Preguiça. Ao saber
desses acontecimentos, D. João V escreveu ao arcebispo da

11 Segundo Russell-Wood (1981), estima-se que, na Bahia entre 1699 a 1726,


aproximadamente 121 crianças foram enjeitadas, período mesmo de nas-
cimento de Manoel de Jesus Bahia e sua irmã.
Inquisição, poder, cultura e lugares 73

Bahia sugerindo que se aplacasse a ira do Todo-poderoso


mediante a celebração de penitências. O valor de redenção
desta última era duvidoso. O vice-rei considerava que elas
geravam mais vício do que virtude no coração dos baianos,
porque os homens simplesmente se deitavam com as mu-
lheres nas ruas, depois que as procissões terminavam, no
fim da noite. Sua sugestão um tanto impraticável de que
os sexos fossem separados teve a resposta realista do ar-
cebispo de que tal providência “lhes esfriaria a devoção”
(RUSSELL-WOOD, 1981, p. 238).

A preocupação das autoridades civis e religiosas, com a vida


desregrada da população soteropolitana, está ligada ao número
cada vez mais crescente de enjeitados deixados em casas e tam-
bém largados nas ruas de Salvador.

O número de crianças abandonadas nas ruas causou es-


cândalo público. As mães deixavam os filhos à noite nas
ruas sujas. Freqüentemente eram devoradas pelos cães e
outros animais que rondavam pelas ruas da capital brasi-
leira. Em outras ocasiões, morriam simplesmente de fome
ou de exposição aos elementos. Algumas mães deixavam
os filhos nas naves das igrejas ou às portas dos conventos
na esperança de que algum padre ou freira bondosos os
alimentassem e lhes conseguissem um lar. Outros abando-
navam as crianças na praia para que se afogassem com a
maré enchente (RUSSELL-WOOD, p. 237-238).

É exatamente nesta modalidade que encontramos o nos-


so investigado. Segundo o assento de batismo contido no pro-
cesso, sabemos que o padre Manoel de Jesus Bahia foi exposto
em casa de Antônio Lopes Soares e batizado em 12 de setembro
de 1712. No final do processo, já com o comissário Gonçalo de
Souza Falcão na condução, encontramos na íntegra a cópia do
documento de batismo do habilitando e de sua irmã, identifica-
74 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

dos como “Traslado fiel dos assentos dos batizados do Reverendo


Cônego Manoel de Jesus Bahia e de sua Irmã Francisca Maria da
Trindade” como referência a freguesias, livros e folhas. Segue, en-
tão, o conteúdo das certidões:

Aos doze de setembro de mil setecentos e doze, batizei e


pus os santos óleos nesta Matriz de Santo Antonio Além do
Carlo a Manoel, exposto em casa de Antonio Lopes Soares,
padrinho eu que o batizei, e por verdade fiz este assento,
digo termo, que assinei. Dia e era ut supra. O padre Gregó-
rio de Araujo Nogueira.
[...]
Aos vinte, e sete de maio de mil, setecentos, e quatorze, ba-
tizei e pus os santos óleos a Francisca, de pais incógnitos, e
exposta em casa de Dr. Francisco Ximenes. Foram padri-
nhos o dito Dr. Francisco Ximenes, e sua irmã Florência de
Jesus por seu procurador, e o irmão o Dr. Antonio Correa
Ximenes. O padre Cura João Borges de Barros.12

Quando o padre Manoel e sua irmã nasceram, ainda não


havia sido instituída a roda de enjeitados. A roda dos expostos,
como foi comumente conhecida, é um artefato embutido na pa-
rede, feito de madeira em forma de tambor com uma portinha e
que gira em torno de seu próprio eixo. A porta ficava virada para
a rua, e ali os bebês eram colocados sem que a mãe ou depositante
fossem identificados, e ao se impulsionar o cilindro, a criança era
conduzida para o interior do local em que a roda fora estabeleci-
da. Normalmente, o local era mantido por irmandades de carida-
de, e no Império português essa era uma prática das Santas Casas

12 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


Inquisição, poder, cultura e lugares 75

de Misericórdia. No Brasil colônia, a primeira estabelecida foi na


Santa Casa de Salvador, em 1726.13
Manoel de Jesus Bahia, conforme refere o documento trans-
crito, foi exposto na porta de Antônio Lopes Soares, que o bati-
zou. Segundo depoimento prestado, em 12 de julho de 1757, por
João Teixeira da Maceno, pescador de 72 anos de idade, o dito pa-
drinho foi também quem criou e colocou o habilitando em uma
escola para estudar que, posteriormente, tornou-se “sacerdote, e
cônego que se trata com asseio e limpeza e nunca ouviu falar mal
do seu procedimento, nem sabe que tenha bens patrimônios, ou
rendimento algum além do da sua conezia”.14
Voltaremos a esse assunto no final do texto, quando anali-
saremos os argumentos utilizados pelo Conselho Geral do Santo
Ofício português para deferir a solicitação do Cônego Manoel de
Jesus Bahia. Por ora, gostaríamos apenas reforçar a ideia de que,
em momentos anteriores, esse processo seria indeferido por não
atender a legislação inquisitorial. Segundo o Regimento de 1640,
os ministros e oficiais do Santo Ofício deveriam proceder em tudo
de “maneira que dêem de si bom exemplo, tratar-se-ão com a mo-
déstia e decência conveniente a seu estado” (Regimento de 1640,
Livro 1, Título 1). Assim, podemos perceber que este não foi um
requisito atendido – pelo menos aos olhos da sociedade colonial.
O processo de habilitação ao cargo de Comissário da
Inquisição pleiteado pelo padre Manoel nos revela muito acerca
da sua vida e de seus familiares. Entretanto, aqui daremos ape-
nas algumas notas contidas na documentação, atentando para
as questões relacionadas à instituição inquisitorial, a aspectos da

13 A segunda só 12 anos depois, em 1738 no Rio de Janeiro, depois em Recife


em 1789. As demais somente após o primeiro quartel do século XIX.
14 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
76 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

vida de alguns indivíduos e lugares de inserção do investigado.


O processo é bastante longo, consta de 110 fólios e mais de vinte
anos de tramitação – possível de um maior aprofundamento, que
ficará para um segundo momento.
Nos próximos parágrafos, daremos destaque para as informa-
ções acerca de sua mãe, Francisca da Assunção. Segundo testemu-
nhas e acentos de livros de batismo e casamento, é possível traçar
um perfil dela desde o nascimento até o momento das diligências
de habilitação do seu filho. Francisca nasceu em Salvador, foi bati-
zada em 12 de janeiro de 1680 na Igreja Matriz de Santo Antônio
Além do Carmo – local também onde se casou, em 20 de agosto
de 1697, com José Luis Moreira (mestre padeiro e aqui também
apresentado como oficial de carabina), de quem era viúva, e des-
se matrimonio nasceu um filho (irmão uterino do padre Manoel),
que ingressou na ordem dos Carmelitas com nome de Frei Elias da
Piedade,15 também já falecido quando se iniciam as diligências em
questão. Segundo o testemunho do Padre Simão da Costa Gama,
que conheceu bem a família de Francisca da Assunção, diz que
Elias foi seu “condiscípulo” na escola do mestre chamado Bernardo
Cardoso e depois ingressou na “Religião do Carmo”, onde foi mes-
tre. Outro testemunho, o de João da Rocha Rocha, em 1757, afirma
que ele foi bom religioso e, se não fosse a “brevidade da morte”,
teria se tornado um provincial da ordem carmelita. Segundo de-
poimentos do padre frei José de São Cosme e Damião – franciscano
e Qualificador do Santo Ofício –, Elias seria afilhado de Manoel
Gomes Lisboa, identificado como pai do padre Manoel de Jesus
Bahia – e, portanto, compadre de Francisca. Completa o frei José

15 Na documentação consultada, não conseguimos identificar o nome de


nascimento do Frei Elias.
Inquisição, poder, cultura e lugares 77

que não sabia ao certo se ela era viúva ou apartada do marido, pois
este havia se “retirado para o sertão em negócio”.16
Sendo Francisca da Assunção comadre de Manoel Gomes
Lisboa – e este pai de Manoel de Jesus Bahia, ocorreu entre eles
por meio do “ajuntamento carnal” uma transgressão sujeita a
pena, segundo as Constituições do Arcebispado da Bahia, no que
se refere a crime de incesto, incorrendo neste delito também rela-
ções sexuais entre comadres e compadres.

E conta os leigos que forem convencidos de terem ajunta-


mento carnal, havendo entre eles impedimento de cogna-
ção espiritual por via dos sacramentos do batismo e con-
firmação, se procederá com as penas de direito e as mais
arbitrárias que parecerem bastante para o delito ficar casti-
gado, e os mais acautelados nesta matéria.17

Essa categoria de crime relacionado ao incesto era vista


como uma das mais pecaminosas, pois afrontava diretamente
a instituição familiar. O depoimento do padre frei José de São
Cosme e Damião dá conta de que o marido de Francisca da
Assunção, José Luiz Moreira, desapareceu no sertão, e quem fez
as diligências de busca foi seu compadre Manoel Gomes Lisboa,
mas ele já havia morrido.
Ainda no rol de anotações apresentado pelo Comissário
Bernardo Pinheiro Barreto, em março de 1754, vamos encontrar
também o registro de casamento dos avós maternos de Manoel

16 Outro Qualificador do Santo Ofício, que também foi arrolado como tes-
temunha no processo de habilitação de Manoel Jesus Bahia, foi o carme-
lita Frei Raimundo Bohim de Santo Antônio, ouvido pelos Comissários
Bernardo Germano de Almeida em julho de 1757, mas nada disse que
desabonasse o habilitando e confirmando que era filho legitimo de MGL e
Francisca de Assunção, sendo esta já viúva.
17 Livro 5º, Título 20, 973 (CONSTITUIÇÕES, 1853, p. 973)
78 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

de Jesus. O casamento ocorreu em 18 de novembro de 1667, na


Igreja de Santo Antônio Além do Carmo. Nesse documento é
possível dirimir uma dúvida com relação ao nome da avó ma-
terna que, aparece em alguns depoimentos com o nome de Ana
Esteves, mas na verdade, a mãe de Francisca era Domingas de
Brito, casada com Manoel Pacheco. Entretanto, encontramos vá-
rias referências de que a mãe de Francisca fosse Ana, dúvida que
esclarecemos no depoimento de João de Souza de Matos (que vive
do ordenado que lhe dá sua majestade por ter sido oficial maior
da secretaria de Estado e serviços de secretário do mesmo) pres-
tado em 1757, quando diz que conheceu a dita viúva vivendo, po-
bremente, do que lhe dava sua tia, Ana Esteves. Acreditamos que
a confusão com relação ao nome da avó materna do habilitando
consiste nessa ligação. A informação acerca da vida de pobreza
aparece em outros depoimentos e, também, pode ser a fonte para
compreensão do abandono de dois filhos em portas de pessoas
com melhores condições de vida e, talvez, vínculos de afetivida-
de. Como podemos observar na documentação, Manoel de Jesus
Bahia era mais velho que sua irmã Francisca Maria da Trindade,
um ano e oito meses.
Continuando com as informações acerca de Francisca da
Assunção, encontramos vários depoimentos de testemunhas, a
partir de 1757, afirmando conhecer a dita Francisca ou por ouvir
do vulgo que ela se desonestava com Manoel Gomes Lisboa e,
também, com vários outros homens. A fama de “mulher deso-
nesta” fica bastante evidente nas diligências realizadas em 1766,
conduzida pelo Comissário Gonçalo de Souza Falcão. Em um
desses, no depoimento, o do Padre José de Magalhães afirma
que a mãe do postulante “se facilitava e prostituía com vários ho-
mens”. Daí a dificuldade de identificar o verdadeiro pai do cônego
Inquisição, poder, cultura e lugares 79

Manoel de Jesus Bahia. Entretanto, ela também foi apresentada


por outras testemunhas como uma “viúva recatada e honesta e
somente tivera errado com o dito Manoel Gomes Lisboa, do qual
teve o habilitando”18. Mas o que prevalece na exposição das últi-
mas testemunhas, inclusive de agentes inquisitoriais, era de uma
vida mesmo desregrada. Assim, em 1766, o Comissário Gonçalo,
em parecer final, apresenta quatro supostos pais do habilitando:
Manoel Gomes Lisboa, Dr. Antonio Carneiro Ximenes, o escri-
vão da Câmara João de Couros Carneiro e o Desembargador João
de Sá Souto Maior. Com exceção deste último, os demais tinham
fama de serem cristãos novos.
Anselmo Dias, homem de 63 anos de idade, morador que
foi na Vila de São Jorge dos Ilhéus, Alcaide-mor, Provedor da
Santa Casa da Misericórdia e Familiar do Santo Ofício, cuja ha-
bilitação ocorrera em julho de 1716, diz no seu depoimento que
conheceu muito bem Manoel Gomes Lisboa, desde menino, que
este se casou, já com “bastantes” idade, com Ignacia de Espinoza,
“hoje falecida”, e que ela era viúva de dois casamentos anteriores –
com João Correa Granja e com o Doutor de Brás – e nenhum dos
três matrimônios teve filho. Em relação a Manoel de Jesus Bahia,
Anselmo diz que sempre ouviu dizer que ele era filho de adulté-
rio cometido por Francisca da Assunção contra seu marido José
Moreira que, segundo testemunha, diz ser irmão de Domingos
Luís Moreira, que era oficial maior da secretaria de Estado entre
os governos do Conde de Sabugosa e do Conde de Galveias.19 Na
continuação, afirma-se que o habilitando foi feito criado do arce-

18 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


19 Vasco Fernandes César de Meneses, o Conde de Sabugosa, foi Vice-rei do
Brasil entre novembro de 1720 a maio de 1735. Quem o sucedeu foi André
de Melo e Castro, o Conde de Galveias, governando até dezembro de 1749.
80 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

bispo D. José Botelho de Matos, que o ordenou e o fez secretário,


mesmo como todos os murmúrios gerados na cidade com relação
à suspeita da pureza do pleiteante. Essa ascensão na hierarquia so-
cial e eclesiástica ocorreu, segundo opinião de Anselmo Dias, por
“milagres do Brasil são, como diz o famoso Gregório de Matos nas
suas decantadas obras”.
Dom José Botelho de Matos foi o oitavo arcebispo do Brasil,
nomeado pelo Rei Dom João V e confirmado pelo Papa Bento
XIV em novembro de 1741, vindo para o Brasil logo em seguida.
Teve este sua atuação marcada pela edificação canônica de várias
paróquias, realizou missões com o auxilio dos jesuítas, capuchi-
nhos e seculares e fez prolongadas visitas pastorais, andou por ca-
minhos difíceis e conferiu “crisma por si e por seus visitadores a
mais de 193 mil pessoas” (MAGALHÃES, 2001, p. 45). O prelado
foi um desafeto do Marquês de Pombal por ser contrário à polí-
tica de perseguição aos jesuítas20 desenvolvida pelo ministro de
Dom José I. Talvez, essa rivalidade tenha sido também um motivo
da demora do processo de habilitação de padre Manoel de Jesus
Bahia, uma vez que este era um protegido do arcebispo.

Ainda durante o “governo pombalino”, houve bispos que


foram perseguidos por não terem acatado ordens régias
relativamente à expulsão dos jesuítas, como sucedeu com
o bispo de Cochim, D. Clemente José Colação Leitão, ele
próprio um padre da Companhia de Jesus; ou com o do

20 Segundo Maria de Deus Manso, quem acompanhou os momentos de gló-


ria das missões dos Jesuítas no ultramar ficou surpreso com o declínio a
que chegou a Companhia em meados do século XVIII. “A expulsão je-
suíta, em 1759, em Portugal foi seguida por França, Espanha e demais
cortes borbónicas até à sua extinção com a publicação do breve Dominus
ac Redemptor, em 1773” (2016, p. 199).
Inquisição, poder, cultura e lugares 81

Maranhão, D. Frei António de S. José, ou o da Baía, D. José


Botelho de Matos (PAIVA, 2006, p. 211).

Os mais de 25 depoimentos de testemunhas da Bahia que


se estendem por mais de 80 laudas, trazem riquezas de detalhes,
muitos destes, girando em torno da vida desregrada de Francisca,
a incerteza de quem era o pai do padre Bahia e também com re-
lação aos filhos que este tivera com uma escrava de nome Tereza.
Este último elemento tem um destaque importante no processo,
tanto que a Mesa inquisitorial, após registrar alguns pontos das
diligências anteriores – reforçar o fato de o habilitando ter sido
exposto faz referência a todas as falhas, qualifica as testemunhas,
apresenta dúvidas com relação à filiação do postulante no vul-
go da cidade – enfatiza a necessidade de uma nova averiguação
com relação à existência dos filhos mulatos e procedimentos de
Francisca da Assunção, mãe do habilitando. Como dito anterior-
mente, essa diligência, iniciada em 24 de julho de 1766, foi condu-
zida pelo Comissário Gonçalo de Souza Falcão. Dos depoimentos
colhidos desse novo procedimento na Bahia, foram sete testemu-
nhas ouvidas, seis eram padres e uma, mulher chamada Joana
Maria, branca, cristã velha e viúva de Vicente de Souza Pereira
que, por ser mulher, foi ouvida em sua própria casa de morada,
conforme determinam as normas inquisitoriais.
A conclusão a que o Comissário Falcão chegou foi resumi-
da em duas folhas. Começa ele dizendo que conhece o habili-
tando desde o tempo que versavam estudos de Filosofia juntos,
conheceu também Manoel Gomes Lisboa, que diz seu pai, infor-
mação que passa desde o momento de sua habilitação na ordem,
mas não sabe, ele comissário, se é verdade e também não pode
assegurar por ter nascido no mesmo ano que o postulante Por
isso, faltam-lhe “as verdadeiras notícias das presunções, e con-
82 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

jecturas, que deviam anteceder o seu nascimento e inculcasse


com positiva certeza por argumentos prováveis, e convincentes
a dita filiação”.21
Continua ele o seu parecer levantando as possibilidades
de filiação apresentadas pelas testemunhas e tendendo a consi-
derar como pai do padre Manoel Bahia, o Dr. Antonio Carneiro
Ximenes, devido às semelhanças físicas, sobretudo nos gestos do
corpo. Essa conclusão ele chega por seguir o depoimento do cô-
nego Miguel Honorato Guirard – que era um clérigo considerado
digno de todo crédito – e também pelo fato de ele, comissário,
conhecer pessoalmente os outros três supostos pais do cônego
Bahia, a saber, Manuel Gomes Lisboa, João de Couros Carneiro e
João de Sá Souto Maior.
Na sequência do parecer, o Reverendo Gonçalo de Souza
Falcão reforçou os seus argumentos de que o postulante, prova-
velmente, não seria filho de Manuel Lisboa, assim como suas duas
irmãs, trazendo alguns aspectos da história de vida de vários en-
volvidos e citados no processo.

Há uma delas, e a mais velha, chamava se Maria, que fa-


leceu no mês de janeiro do corrente ano, assistindo em
companhia do habilitando, e outra Francisca, que foi pri-
meiramente casada com Dr. José de Bessa Teixeira, e de
presente com o Capitão José Felix, de uma das compa-
nhias do Regimento novo, que se achará agora nessa Cor-
te, para onde foi na Nau da Índia, que saiu deste porto em
Dezembro passado. Era eu estudante, quando ela casou
[...], e foi então público, que era filha de um dos Ximenes,
que foram três irmãos, e um adotou, que foi o Dr. Fran-
cisco Ximenes, e outro lhe deixou um copioso legado, não
sei ao certo se o dito Dr. Antonio Correa Ximenes, ou se

21 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


Inquisição, poder, cultura e lugares 83

Agostinho Ximenes ou se o dito Francisco, do qual co-


brou nove mil cruzados, que era o resto do Legado, o dito
José Felix, que os consumiu logo, como eu ouvi queixar-se
ao mesmo habilitando [...]. Na casa destes tais Ximenes
foi exposta, e educada a dita irmã e ainda que tanto exces-
so, assim do dotes, como do legado, poderia nascer [...]
provável a opinião dos que diz é ser a dita filha de um
dos ditos Ximenes. E se atendo, a que o habilitando foi
batizado em 12 de setembro de 1712, e a dita Francisca
sua irmã em 27 de maio de 1714, fica me sendo mais du-
vidosa a filiação do mesmo habilitando, e qual dos dois é
o verdadeiro pai, se Manuel Gomes Lisboa, ou o dito Dr.
Antonio Correa Ximenes, suposta aja dita liberdade da
mãe. É Também cousa notória que José Jerônimo de Bes-
sa filho da dita Francisca, e do seu primeiro matrimônio,
hoje sacerdote secular, sendo admitido noviço na Religião
de S. Bento, fora dela expulso, sem professar; por ser no-
tado de infecção no sangue. Publico é, e notório que os
tais Ximenes foram infamados de Cristãos novos.22

Referente ao relacionamento entre Manuel Gomes Lisboa e


Francisca de Assunção, o que conseguimos aprender das leituras
dos depoimentos é que – em alguns poucos momentos – apare-
cem como marido e mulher, mas a maior parte das vezes essa re-
lação não é confirmada, reforçando, portanto, a opinião de que
ela se “desonestava” com ele. O certo é que Manuel Lisboa viveu
como próspero homem de negócio e de muitas propriedades e
morreu pobremente após ter perdido todos seus bens e se homi-
ziara no consistório da Irmandade do Rosário dos Pretos, onde
faleceu. Os depoimentos também nos dão conta de que ele pagou
os estudos do habilitando e deixou alguns poucos bens, pois o
tinha como filho.

22 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


84 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

No tocante à suspeita de que padre Manoel tenha tido filhos


e que estes sejam mulatos, fruto de um relacionamento que teve
com uma escrava que foi de sua mãe, conhecida pelo nome de
Tereza, isso aparece em vários momentos nos depoimentos, so-
bretudo na última diligência que também tinha por objetivo ave-
riguar a veracidade dessa informação. Na nova comissão enviada
para a Bahia, os inquisidores indicaram como deveriam ser con-
duzidos os interrogatórios e o último item a ser perguntado diz
respeito à suspeita da paternidade dos filhos de Tereza: “pergunte
se é verdade ter o habilitando alguns filhos mulatos de uma preta
crioula chamada Tereza escrava da casa da mãe ou irmã do habili-
tando, se conhece Francisco Xavier Bahia, de quem é este filho”.23
Aqui escolhemos reproduzir os testemunhos prestados pe-
los padres Pedro da Silva Pinto e Miguel Honorato Guirard, este
último referido anteriormente quando do parecer do Comissário
Falcão. O padre Pedro diz que, segundo “consta no vulgo, o Padre
Manoel teve dois filhos, ambos mulatos”. O primeiro filho é co-
nhecido pelo nome de Francisco Xavier Bahia e uma “fêmea” co-
nhecida pelo nome Úrsula, ambos havidos de uma escrava preta
crioula que foi da mãe do habilitando. Acrescenta ele que a infor-
mação prestada é pública e notória e acredita ser verdade tam-
bém, porque os dois filhos de Tereza são fisicamente parecidos
com o cônego Manoel Bahia e, muitas vezes, Úrsula, “por modo
de graça”, coloca os óculos do postulante e perguntava com quem
se parecia, querendo assim imitá-lo.
O depoimento do Reverendo Miguel Honorato Guirard
traz todas as mesmas informações que o depoente anterior, mas
acrescenta dois elementos novos: um diz respeito à nomeação do
habilitando como secretário, acreditando que o Arcebispo Dom

23 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


Inquisição, poder, cultura e lugares 85

José Botelho de Mattos não soubesse da existência dos filhos, pois,


caso tivesse conhecimento, não o aceitaria por seu secretário; e
a outra questão está relacionada ao mestre de campo Caetano
Lopes Vilas Boas, parente de Manuel Gomes Lisboa, que nunca
“tratou ao habilitando por parente, senão depois que foi secretá-
rio do dito Excelentíssimo Prelado do que o mesmo habilitando
muitas vezes se queixou publicamente”.24
O comissário Falcão, a respeito da questão dos filhos de
Manoel Bahia, conclui seu parecer da seguinte maneira:

Pelo que toca a ter o habilitando filhos mulatos, havidos da


sua negra Tereza, / que não inquiri pelo perigo da revelação
/ estou em que em juízo contraditório não poderão pro-
vá-lo os tais filhos; porque a negra / que conheço / nunca
foi recolhida. Porém é certo, que a terra sabe, que ele se
desonestou com ela, de que era público o escândalo; e que
ao menos julga [serem] seus filhos o mulato Francisco, e a
mulata Úrsula, e eu estou na mesma opinião, por [terem]
alguma semelhança com ele.25

Terminamos então essa incursão em torno da habilitação do


Manoel de Jesus Bahia com parte do parecer emitido, no início
do mês de março de 1773, pelo deputado do Conselho Geral do
Santo Ofício Francisco Antônio Marques Geraldes de Andrade
e corroborado por Luís Barata de Lima e José Ricalde Pereira de
Castro. O deputado se debruça no processo, composto até ali por
108 fólios, fazendo referência a deliberações anteriores, principal-
mente à do deputado Francisco Medo Trigoso, escrita em abril de
1758, de Comissários e testemunhas que prestaram depoimen-
tos em Portugal e Salvador. Diante da análise da documentação,

24 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.


25 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
86 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

em especial, informações acerca da habilitação de genere deferida


com o aval do arcebispo D. José Botelho de Matos em 1743, o
deputado chega à conclusão de que o postulante é de fato filho de
Manuel Gomes Lisboa26 e que é puro de sangue tanto pelo lado
paterno (comprovado pela habilitação ao Santo Ofício e Ordem
de Cristo de familiares seus) como do lado materno. Conclui com
uma observação com relação à paternidade dos filhos da escrava
Tereza, dizendo que não se certifica “que os sejam também do
habilitando por modo legítimo e concludente nesta dubiedade
achando-se o habilitando revestido da qualidade de Cônego e
com as mais que prescreve o nosso regimento, não duvido se lhe
passe carta de Comissário do Santo Ofício como pretende”.27
O processo de habilitação do Comissário Manoel de Jesus
Bahia, pela sua dimensão, pessoas envolvidas e longo tempo de
tramitação, merece um estudo mais aprofundado, sobretudo no
que se refere ao desenvolvimento da sociedade colonial na segun-
da metade do século XVIII e à instituição inquisitorial, pois, ao se
comparar esse processo com milhares de outras habilitações que
foram abortadas pelo simples fato de suspeita de cristã-novice –
ou por não ter informações satisfatórias –, deixa-nos convencidos
de que o padre Manoel era uma pessoa extremamente influente
na sociedade soteropolitana e que a não habilitação dele poderia
afetar gravemente as instituições religiosas na sociedade colonial,
sobretudo o arcebispado da Bahia por ter habitado à ordem sacra
um individuo não exemplar, tê-lo elevado a secretário do prela-
do e cônego. A Inquisição portuguesa e a Mesa de Consciência

26 Diz Francisco Antônio “contra a qual não vejo documento que a destrua e
as conjecturas em que se estribam as testemunhas que a dividam que são
muito menores em números do que as que acreditam e que fazem provada
a comum estimação”.
27 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
Inquisição, poder, cultura e lugares 87

e Ordens também poderiam ser questionadas, pois parentes do


Padre Manoel foram habilitados à Familiatura do Santo Ofício e à
Ordem de Cristo. Enfim, um cônego, graduado em arte e teologia
pelo Colégio da Companhia da Bahia, foi escrevente de advogado
e o mais importante e influente secretário do Arcebispo D. José
Botelho de Matos, na época, morador do palácio episcopal. Por
este último, podemos perceber a gravidade e o peso de uma não
habilitação. Apesar dos 21 anos de tramitação do processo, o im-
portante era a aprovação (SOUZA, 2014).
Enfim, trabalhar um processo de habilitação do Santo Ofício
nos possibilita contato com histórias individuais e coletivas e ul-
trapassa o tempo de produção dele, pois, por meio dos depoimen-
tos e certidões emitidas, podemos atingir até um século antes, evi-
denciando povos e lugares diferentes, dando voz e movimento a
indivíduos que viveram séculos atrás.

Referências
ABREU, Capistrano de. Primeira visitação do Santo Offício às
partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações da Bahia, 1591-1592. São Paulo: Paulo Prado,
1922.
ABREU, Capistrano de. Primeira visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça
– Confissões da Bahia, 1591/1593. São Paulo, Paulo Prado,
1925.
ABREU, Capistrano de. Um visitador do Santo Officio à cidade do
Salvador e ao Recôncavo da Bahia de Todos os Santos (1591-
1592). Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1922.
BLUTEAU, Raphael. Diccionario da língua portugueza composto
pelo padre D. Rafael Vocabulario portuguez & latino: auli-
88 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

co, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes


da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. volume 2, p. 356-357.
http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1. Acesso em
19/04/2019.
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim http://www.scielo.br/pdf/to-
poi/v7n12/2237-101X-topoi-7-12-00116.pdf. Acesso em
15/05/2019.
CONSTITUIÇÕES Primeiras do arcebispado da Bahia. Feitas e or-
denadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo senhor D. Sebastião
Monteiro da Vide em 12 de junho de 1707. São Paulo, 1853.
FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUEIRA, Sonia Aparecida.
“Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo
inquisidor e visitador Marcos Teixeira. Livro das confissões e
ratificações da Bahia - 1618-1620”. Anais do Museu Paulista,
XVII, 1963. p. 493-519.
MAGALHÃES, Walter. Pastores da Bahia. Salvador: Fundação
Odebrecht, 2001.
MANSO, Maria de Deus. História da Companhia de Jesus em Por-
tugal. Lisboa, Edições Parsifal, 2016.
MOTT, Luiz. Regimentos dos comissários e escrivães de seu cargo,
dos qualificadores e dos familiares. Salvador: Centro de Estu-
dos Baianos, 1990 (Publicações da Universidade Federal da
Bahia, 140).
PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do império. 1495-1777.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006.
REGIMENTO do Santo Ofício da inquisição do Reino de Portu-
gal – 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bah-
ia, Jul./set. 1996, p. 693-883.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa de
Misericórdia da Bahia (1550-1755). Brasília: UNB, 1981.
Inquisição, poder, cultura e lugares 89

SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédio das almas: comis-


sários, qualificadores e notários na Bahia colonial. Vitória da
Conquista: Edições UESB, 2014.
VAQUINHAS, Nelson Manuel Cabeçadas. Da comunicação ao
sistema de informação: o Santo Ofício e o Algarve (1700-
1750). Dissertação de Mestrado em Arquivos, Bibliotecas e
Ciência da Informação – Universidade de Évora, Évora, 2008.
4. Entre panditos e pajés:
narrativas jesuíticas sobre saberes
e práticas de cura em Goa e na
Bahia (Séculos XVI-XVII)
Lais Viena de Souza

No ano de 1549, foram remetidas duas cartas com notícias


acerca das missões nas Índias Orientais e no Estado do Brasil ao
Colégio da Companhia de Jesus em Coimbra. Ambas as missivas
buscavam apresentar uma narrativa de edificação ao público lei-
tor. A escrita epistolar se tornou uma importante estratégia para
a organização e crescimento das missões, e se estruturava sob a
forma de tópicos, com um relato sobre as atividades missioná-
rias, apontando os perigos enfrentados e enaltecendo os frutos
até então alcançados. Era comum que dedicassem algum espaço
às curiosidades sobre os povos missionados, e de como a evan-
gelização começava a destruir o paganismo e as gentilidades nos
territórios atrelados ao Império Português. É neste cenário que
podem ser compreendidas as narrativas a seguir.
De Goa, o irmão Emanoel de Morais1 descreveu alguns dos
costumes observados em sua estadia em Travancor (uma das mis-

1 Buscou-se acrescentar a cada padre e irmão apresentados nesse capítulo


suas datas de nascimento e morte para melhor ilustrar o leitor. Contudo,
no curso da investigação de doutoramento, da qual esse artigo se origina,
não foi possível encontrar algumas referências. No caso particular do Ir.
Emanoel Morais foram encontradas informações de que chegou em Goa
no ano de 1546, era homônimo de um padre que chegou às Índias em
1551, e escreveu outras missivas que se encontram no Volume 1 do Docu-
menta Indica (WICKI, 1948).
92 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

sões ao sul da Índia). Entre as tradições, apontou como os não


convertidos se comportavam em suas enfermidades em relação
aos chamados brâmanes. Afirmou que muitos despendiam di-
nheiro, tecidos finos, arroz e ofereciam bodes, cabras e galinhas,
tocando trombetas, sinos e atabaques aos ídolos. O jesuíta narrou
ainda que havia uma cerimônia em que um “gentio”, vestido como
um “diabo” com guizos nos pés, entrava na casa do doente com
danças e “fazendo mil diabruras”. Acreditavam que com esse ri-
tual seria recuperada a saúde (Wicki, vol 1, 1948, p. 465).
Da recém fundada cidade de Salvador da Bahia, Pe. Manoel
da Nóbrega (1517-1570) enviou algumas informações sobre as
missões nas terras do Brasil. Corria apenas poucos meses desde a
sua chegada e o padre buscou dar notícias gerais. Provavelmente
tratando dos Tupinambá, descreveu a crença em certos “feiticeiros”
do “sertão” e as festas que se seguiam quando os mesmos chegavam
em suas aldeias. Narrou alguns ritos que envolviam ídolos feitos de
cabaça, promessas de longevidade e retorno da mocidade, e ofer-
ta de alimento abundante sem que precisassem cultivar ou caçar
(Leite, 1956, p. 150-151). Apontou que os chamados “gentios” pro-
curavam estes “feiticeiros” quando estavam enfermos. E que eram
enganados com muitas “feitiçarias” e acusações de que eram os
missionários que lhes causavam as enfermidades no corpo através
das facas e tesouras e “outras coisas semelhantes” para assim os ma-
tar (Leite, 1956, p. 152). Segundo o jesuíta, eles eram os principais
adversários que enfrentavam na empresa missionária.
Os relatos acima se situam em espaços distintos das missões
da Companhia de Jesus, apresentando em comum mais do que a
expressa condenação da influência de “feiticeiros” entre povos da
Índia e do Brasil. As duas breves passagens evidenciam a relação
entre saberes e práticas de cura e as disputas no campo religioso
Inquisição, poder, cultura e lugares 93

no período moderno. Apesar de não serem mencionadas nestas


cartas, duas categorias sociais encarnavam os saberes de cura para
hindus e Tupinambá: respectivamente, os panditos e os pajés. Na
Índia portuguesa, os médicos hindus (vaidyas), que tradicional-
mente pertenciam à casta dos brâmanes, foram genericamente
denominados pelo termo Pandit, que em sânscrito significa es-
tudioso (Figueiredo, 1984, p. 228). A palavra pajé, que tem raiz
na língua tupi, aparece de modo recorrente na documentação do
século XVI como sinônimo de “feiticeiro” (Anchieta, 1933, p. 41).
Contudo, o termo estava associado a uma figura com papéis mais
complexos na sociedade Tupinambá, como curandeiros, detento-
res de saberes sobre plantas e ervas, e também fazendo a ligação
com o sobrenatural (Resende, 2003).
A questão que aqui se coloca é: qual a relação de panditos
e pajés e os saberes e práticas médicas nos espaços coloniais do
Império Português? As narrativas inacianas, fontes indiciárias
desse estudo que ora se apresenta, revelam indagações sobre
ideias e terapias de variados grupos que foram contactados e con-
frontados no processo de evangelização. Desse modo, hindus e
Tupinambá, distantes geograficamente, mostram-se entrelaçados
pelas acusações de feitiçaria, e também pelos embates, adaptações
e assimilações. Para melhor entender a trama a que este capítulo
se lança, faz-se necessário considerar que as análises históricas
feitas sobre o período moderno devem compreender as distintas
dinâmicas e as conexões entre as várias partes do mundo.
Partindo da perspectiva dos “estudos conectados”, aponta-
da por Sanjay Subrahmanyan (1997, p. 744-748), a história sobre
ideias e práticas de cura no Império Português deve considerar
as múltiplas conexões entre os espaços, os agentes, e os produ-
tos. Importa seguir as reflexões de Serge Gruzinski (2001, 2014)
94 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

e abandonar o eurocentrismo, passando a considerar as muitas


formas de mestiçagens e de circularidade de saberes, produzi-
dos e interpretados pelos povos locais e europeus, assim como
a multiplicidade de centralidades entre Europa, Ásia, América e
África. A indagação sobre os conhecimentos dessas sociedades
faz emergir um debate mais profundo sobre o projeto de “colonia-
lidade dos saberes” e apontam para reflexões atuais de elaboração
de outras epistemologias, que não se aceitem mais etnocêntricas
e ocidentalizadas (Santos, 2019). É necessário construir histórias
com outras vozes dissonantes e dissidentes (Bhabha, 1998, p. 24).
Os discursos historiográficos apontam para a construção de este-
reótipos, de simplificação e negação da possibilidade da diferença
(Bhabha, 1998, p. 116). Indicam a inexistência - por não estarem
de acordo com os cânones, e a ausência - por serem considerados
incapazes pela sua condição “naturalmente” inferior, o dito e o
não dito nos debates epistemológicos sobre medicina na moder-
nidade (Santos, 2019; Foucault, 1996).
Este capítulo objetiva debater os panditos e os pajés nas nar-
rativas inacianas e no âmbito da missionação entre os séculos XVI
e XVII.2 Para tanto, lança-se a um debate sobre os “saberes de mis-
sões” e as letras dedicadas a povos desde o Estado da Índia até o
litoral da América Portuguesa. Como fontes, foram selecionadas
cartas, tratados e crônicas sobre as muitas sociedades que rece-
beram as missões jesuíticas no primeiro século da sua fundação.
Dessa documentação emergem descrições, representações e este-
reótipos que precisam ser questionados para construção de novas

2 Este capitulo é parte da tese de doutoramento em História na Universida-


de de Évora (Portugal), desenvolvida sob orientação das professoras dou-
toras Maria de Deus Beites Manso (Universidade de Évora) e Lígia Bellini
(Universidade Federal da Bahia). Ver: (SOUZA, 2018).
Inquisição, poder, cultura e lugares 95

epistemologias e histórias. O norte desse capítulo é fazer revelar


e evidenciar as presenças e omissões sobre os saberes de pandi-
tos, pajés e os sistemas de cura que eles representavam. Embora
as fontes os apresentem como personagens anônimas, revelam
embates, violências, e uma presença indiciária em produtos que
abastecerem as prateleiras das boticas dos colégios da Companhia
de Jesus nas redes dos Impérios ibéricos.

Saberes de missões e as descrições do “outro”


Sob a égide e proteção da Igreja de Roma e do Império
Português e Ibérico, missionários fizeram registrar e circular di-
versos conhecimentos nas suas correspondências, nas crônicas, nas
relações das províncias e nos tratados de cunho científico sobre as
mais distintas partes do globo terrestre (Ledezma e Figueiroa, 2005;
Torres Londoño, 2002; Manso, 2020). Esta extensa documentação
descreveu os climas e as gentes, a fauna e a flora, o andamento das
missões e as políticas que envolviam a conquista e a catequese. Por
certo, o objetivo desta produção não era apenas sanar a curiosida-
de. Em um claro tom apologético, buscava, também, narrar as vitó-
rias da missão além da Europa e, não menos importante, fornecer
informações para a empresa colonial e a missionação.
Charlotte Castelnau-L’Estoile et al. (2011b, p. 5-6) analisa-
ram a epistemologia dos “saberes das missões”, e destacaram que
as missões (nas Américas, na África e no Oriente) foram campo
de produção de saberes pelos missionários coadunados aos sabe-
res do período moderno. Seu repertório abrangia teologia, direi-
to, história, cosmologia, retórica, matemática, astronomia, medi-
cina, demonologia, quiromancia, astrologia e alquimia. Ledezma
e Figueiroa (2005, p. 9) definiram o “saber jesuítico” como uma
“combinação da herança aritostotélica e da hermenêutica cristã,
96 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

da orientação humanística do Ratio Studiorum e de suas práticas


institucionais”. Evidentemente o repertório desses escritos se al-
terou ao longo do tempo. Na primeira metade do XVI tinha uma
clara preocupação com a divulgação das novas espécies botânicas
e zoológicas e seus valores comerciais e utilitários, enquanto que
“as do século XVII se interessavam em encontrar, na natureza,
valores espirituais que se supunham cifrados com seus segredos
e mistérios, ao invés de informação imediata para utilização na
medicina ou de intercâmbio comercial” (Figueiroa, 2005, p. 54).
Ao passo que cuidavam em descrever as terras das missões
a partir de saberes da Cosmografia e da História Natural, os mis-
sionários também registraram suas impressões sobre as “gentes”.
Descreveram a fisionomia geral, costumes e crenças, alimenta-
ção e práticas de cura de diversas culturas entre o Oriente e o
Ocidente. Faz-se necessário traçar algumas reflexões teóricas so-
bre essas narrativas que, comumente, aparecem na historiografia
com destaque para o seu teor “etnográfico”. Castenau-L’Estoille
(2011a, p. 269-274) destacou, em suas análises sobre os saberes
ameríndios e as narrativas dos missionários, que há um paradoxo
ao denominar as descrições dos inacianos sobre os costumes dos
povos nativos como uma espécie de etnografia. A autora observou
que os relatos atendiam a critérios institucionais: administrativos
de reportar aos superiores, de edificação espiritual e de curiosi-
dade. A contrariedade da premissa etnográfica nestes escritos do
século XVI e XVII se apresenta na compreensão de que os missio-
nários participaram no processo de negação da diferença, justa-
mente o oposto pretendido etnologicamente.
Em seu texto clássico, Michel de Certeau (2002) apontou
reflexões teóricas sobre etnografia e história na modernidade.
Certeau contextualizou a organização da etnografia como campo
Inquisição, poder, cultura e lugares 97

científico a partir do século XVII, conforme as quatro noções que


a delimitam: oralidade, espacialidade, alteridade e inconsciência.
A partir da análise da narrativa do missionário calvinista Jean de
Léry (1534-1611), debateu a “hermenêutica do outro”, apontando
que as descrições sobre a Natureza e a Sociedade estavam criva-
das pelo “aparelho exegético cristão”. A este respeito, utilizou o
conceito de que o texto constituía uma “atividade tradutora” entre
“antigo e novo mundo”. A compreensão sobre este jogo de alte-
ridade entre o vivido e o registrado pelo religioso revela as opo-
sições entre civilizados e “selvagens”, marca discursiva presente
também nos relatos inacianos.
Pe. Alessandro Valignano (1539-1606)3 afirmou que as
Índias Orientais se estendiam a muitas outras partes, a Oriente,
“por infinitas terras”, abrangendo desde a Pérsia, Bengala, Malaca,
China e Japão. E, nesta infinidade, afirmou, havia “multidão de
províncias e reinos e muito grandes e poderosos, uns de gente
branca, outros baços, e outros morenos, que diferem grandemen-
te entre si”, com grande distância de climas, qualidades e costu-
mes, o que seria coisa infinita a tratar. Cuidou em esclarecer que
o Estado da Índia se estendia por cerca de 250 léguas, entre Diu
e o Cabo Comorim, sendo “senhoreada” de Goa para o sul, pelos
gentios, e as terras do norte, pelos mouros. Segundo o padre, toda
esta gente do “Industão” era “de cor baça” o que se devia à região
estar situada a “vinte e um graus ao norte; e por isto ser todo o
ano de verão e calores contínuos” (Valignano, 1944, p. 22-24). Sua
opinião não se apresentou das mais respeitosas:

3 Para melhor fluidez do texto, todas as citações em língua estrangeira fo-


ram traduzidas para o português.
98 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

É universalmente esta gente (a qual é sobre o preto e andam


meio desnudos) depreciada e reputada por vil dos portu-
gueses e das demais gentes da Europa; e a verdade, com-
parada com eles, é de pouco e pouco primor, e gente que
parece como disse Aristóteles, de natureza produzida para
servir, porque comumente é pobre, miserável e escassa, que
por qualquer ganância fazem muitas baixezas. Sobre tudo
isso tem eles conceito contrário, porque se estimam por
gente nobre e limpa; e quando querem louvar muito aos
da Europa dizem que se parecem alguma coisa com eles
(Valignano, 1944, p. 25).

Interessante notar alguns aspectos desta passagem de Pe.


Alessandro Valignano: inicialmente, destaca-se a clara oposição en-
tre as concepções do inaciano sobre a gente da terra e a opinião dos
locais sobre os europeus. A pobreza e miserabilidade de um povo,
por certo, são estabelecidas por parâmetros culturais de cada uma
das sociedades. Dentre as obras analisadas com descrições sobre
os povos, o então padre visitador legou uma das descrições menos
amistosas sobre os “indianos”. Sua tônica soou mais intolerante que
o habitual nos textos dos missionários da Companhia.
Vale apontar, ainda, a menção a Aristóteles e o debate sobre
a condição natural de servidão. Giuseppe Marcocci (2012, p. 53,
317, 415), em suas análises sobre a construção da ideia e consoli-
dação de poderes do Império Português, destacou esta discussão
nos meios letrados em relação à guerra aos infiéis e à escravidão
desde o século XIV. A ponderação do jesuíta sobre a gente “preta”,
“desnuda” e com “a natureza produzida para servir” estava coa-
dunada à ideia de justificação da escravidão em razão da barbárie
e inferioridade, com marcado crivo pela cor da pele de um povo.
Em um debate próximo a este, Angela Barreto Xavier (2014, p.
Inquisição, poder, cultura e lugares 99

111-133) observou a construção de uma tópica comum às des-


crições sobre os povos desde, pelo menos, o século XVI, entre a
ligação da cor da pele com seu grau civilizacional.
Ainda dissertando sobre o povo do “Industão”, Pe.
Alessandro Valigano (1944, p. 29-31) explicou sumariamente
o sistema de castas hindu e a estratificação da sociedade. Face a
muitos outros lugares, o padre afirmou que isto lhe pareceu da
“maneira mais estranha do mundo”, com os graus, hierarquias e
dignidades. Até mesmo os ofícios eram diferenciados pelas castas,
“de maneira que nunca podem subir a outra dignidade nem outro
ofício”. Os panditos, pertenciam a casta dos brâmanes, conside-
rada da mais alta dignidade, com prerrogativa de poder temporal
e espiritual. Qualificou a todos como de “pouco entendimento”
e sem qualquer tipo de ciência, especialmente nas coisas de após
a morte. Apontou que todo o seu entendimento estava posto em
coisas de comer e da terra e destacou que alguns tinham conhe-
cimentos em Medicina e Astrologia: “sabem tanto sobre eclipses
como nós”. De modo geral, sabiam “escrever e compor seus livros
de histórias e canções em prosa e verso”.
A menção do jesuíta sobre a ausência de qualquer ciência, ou
nos termos da modernidade, de “conhecimento certo e evidente
pelas suas causas” (Bluteau, 1720, vol. 7, p. 523), e a breve passagem
de que no mais sabiam fazer livros de canções em prosa e verso
mostra-se bastante interessante e indiciária. Coaduna-se às críticas
sobre a fundamentação da epistemologia moderna e eurocentra-
da, que tornou ausente e buscou invalidar saberes produzidos pelos
grupos considerados “incapazes” ou não “plenamente humanos”
(Santos, 2019). Mostra-se uma afirmação também contraditória e
imprecisa, uma vez que os jesuítas não apenas conheciam as pro-
100 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

duções intelectuais dos povos de diversas missões e sobre as mais


variadas matérias, como a consulta e estudo sobre esse material foi
considerada uma importante estratégia para a conversão dos povos.
Em 1557, Dom Gonçalo da Silveira (1556-1559) avaliou a
utilidade da liberação do estudo sobre “os livros dos ritos e errores
dos infiéis que há, scilicet, mouros, gentios, judeus, na nossa ou
na própria língua”, justificando para tal, o fato de assim se poder
conhecer as “mentiras e desatinos e abominações” que seus livros
propagavam, esperando que “o próprio caminho para os conver-
ter por razões é sabendo-lhe a língua e lendo-lhe os livros, e deles
os arguindo” (Wicki, 1956, vol. 4, p. 4). A autorização para a con-
sulta dos livros gentílicos foi enviada, por Roma, em 1558, dado
necessitarem confrontar os “erros de suas seitas” com o conheci-
mento cristão (Wicki, 1956, vol. 4, p. 65).
Vale ainda mencionar um outro episódio que exibe a tensão
e o combate aos saberes que não fossem considerados perfeita-
mente cristãos. Em meados do século XVI, há a notícia de que
a livraria do Colégio de Goa abrigava as obras comuns para as
classes e, também, livros hindus. A essa respeito, vale mencionar
o caso narrado pelo Ir. Luis Fróis (1532-1597) sobre uma obra
clássica da literatura védica O Mahabhata, atribuída a Veda Vyasa
(Buck, 2014). A compilação desta narrativa, poema épico desen-
volvido entre 400 a.c e 200 da era cristã com mais de 70 mil versos
de cunho moral e filosófico, havia sido feita por um certo doutor
brâmane que nela trabalhou por cerca de oito anos. Segundo o
inaciano, as páginas foram levadas (furtadas) por Manoel d’Oli-
veira, jovem brâmane convertido. No colégio, esta obra foi trans-
ladada e serviu, segundo o irmão, para desbaratar e confundir os
brâmanes que, com seus “enganos”, eram, em suas palavras “imi-
tadores” do demônio (Wicki, 1956, vol. 4, p. 335).
Inquisição, poder, cultura e lugares 101

Nas missões jesuíticas do outro lado do mundo, as descrições


sobre as “gentes” e seus costumes não foram menos carregadas.
Entre os cronistas inacianos houve opinião quase universal sobre
a bem-aventurança da terras brasilis. Contudo, a mesma boa im-
pressão não se espalhava quanto aos povos nativos. As acusações
sobre a animalidade e ferocidade dos ameríndios aparecem desde
os primeiros textos escritos sobre o território americano. Imagens
que se cristalizaram e foram reproduzidas muitas vezes através
dos séculos (Cunha, 1990). Não apenas nos textos de religiosos
e cronistas, como também na iconografia e os exemplos a esse
respeito se multiplicariam.
Na carta quadrimestral de 1554, Pe José de Anchieta (1534-
1597) escreveu algumas notícias gerais sobre a missão na “India
brasilica”. Afirmou que eram os índios “bárbaros e indômitos” e
sua natureza parecia “aproximar-se mais” de “feras do que a dos
homens” (Anchieta, 1933, p. 35, 46). A natureza tão “dadivosa, &
liberal” com a terra, o mar e o ar do Brasil, é “escassa & avaren-
ta” com os homens desta terra, afirmou Pe. Baltasar Teles (1596-
1675). Segundo o inaciano, sendo os ares “tão benignos e tempe-
rados”, o terreno “tão fértil, & abundante”, e existindo animalia
“com instintos tão maravilhosos”, eram “os homens tão rudes, tão
bárbaros. & ignorantes”. Ponderava o padre se poderiam tais seres
serem chamados de racionais e concluiu, “parece que a natureza
trocou as mãos, & para a terra se mostrou mãe, & para os homens
madrasta” (Teles, 1645, vol. 1, p. 445).
Esta mesma opinião foi repetida nos escritos de diversos
missionários e tratadistas. Corroborando a opinião sobre a bo-
çalidade dos índios brasílicos, Pe. Fernão Guerreiro (1550-1617)
sublinhou a dificuldade na “conversão e cultivação desta gente”.
Afirmou serem pouco doutos pela sua própria natureza, desco-
102 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

nhecendo outra gente “mais boçal no mundo”. Contudo, afirmou


que, embora fosse custoso para os padres conseguir “domesti-
cá-los e fazê-los capazes das coisas de Deus”, não havia fera tão
brava que com boas obras não abrandasse (Guerreiro, 1605, p.
374-375). Dentre os fatores apontados para a acusação sobre a
“animalidade indígena”, estava a nudez dos corpos e a prática de
consumo de carne humana em seus rituais.
Pe. Baltasar Teles (1645, vol. I, p. 449-450) mencionou ain-
da a sentença “nem FLR” que embora não tivessem “Rei, nem
Príncipe, nem justiça” [...] “em cada aldeia há um como maioral, a
quem os outros guardam algum modo de respeito”. Suas funções
na comunidade envolviam decidir sobre assuntos de paz e guer-
ra, e “feitiçaria, o que faz com grande alvoroço, & fervor, dando
de si, gritando, & arrazoando, com grande cópia de palavras, &
com muita variedade de aspectos”. Manuela Carneiro da Cunha
(1990) apontou que esta tópica da ausência de fé, lei e rei esteve
presente em muitas descrições sobre indígenas no Brasil desde o
século XVI. A antropóloga concluiu que era uma forma retórica
para legitimar a necessidade de sujeição política (e religiosa) des-
ses povos.
Serge Gruzinski (2001, p. 82-85) destacou os diversos
processos de Ocidentalização do mundo entre os séculos XVI
e XVIII. A evangelização de populações foi um das faces dessa
europeização, que passava pelo convencimento e pela violência.
Outros choques de cultura se fizeram presentes na formação das
sociedades coloniais através da conquista e colonização pelos
Impérios Ibéricos. Como por exemplo, a compreensão sobre as
enfermidades e a necessidade premente de adaptar-se para con-
servar a saúde ou restabelecê-la fez confrontar e acomodar dis-
tintas ideias, produtos e práticas para a cura. Contudo, como des-
Inquisição, poder, cultura e lugares 103

tacou o autor, a cura deveria ser expurgada de qualquer teor de


paganismo, “as dimensões ‘metafísicas’” do mundo não europeu
deveriam ser “censuradas, ignoradas ou desprezadas”. Negação e
combate que não impediram a formação, apropriação e circula-
ção de uma medicina mestiça.

Medicina ayurveda e tupinambá na botica dos jesuítas?


Quando os portugueses alcançaram Calecute, em 1498,
e o território que viria a ser a Bahia, em 1500, levaram consigo
suas suas ideias sobre a saúde e a doença. A compreensão sobre
o corpo humano e seu funcionamento, o aparecimento das en-
fermidades e as práticas para a conservação da vitalidade, ges-
tadas na Antiguidade Clássica, foram vigentes no Ocidente até,
pelo menos, o século XVIII. Essas ideias, que foram organizadas
no Corpus Hipocrático e nos escritos atribuídos a Galeno (130-
210), se centravam na teoria humoral segundo a qual, em linhas
gerais, os quatro humores correspondentes aos quatro elementos
da natureza se conjugavam nos corpos: bílis amarela (fogo), san-
gue (ar), bílis negra (terra) e fleuma (água). A saúde consistia no
equilíbrio natural desses humores e sua desproporção incorria em
enfermidades. O desequilíbrio poderia ser causado pelas sex res
non naturales (ar, alimentação/bebidas, esforço/descanso, sono,
retenções/evacuações e as paixões da mente). As concepções de
conservação da saúde foram reproduzidas em uma variada gama
de obras, das quais destaca-se os Regimina Sanitatis (prescrições/
recomendações para a sanidade dos corpos). (Conrad, 1998, vol.
1, p. 11-70; Lindemann, 2002, p. 9; Powell, 2003, p. 66-69).
Quando essas teorias e práticas chegaram a bordo das naus
europeias, confrontaram e dialogaram com um sistema de medi-
cina milenar sob influência hinduísta na Índia, denominadas de
104 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Ayurveda. Seguindo a etimologia da palavra, a medicina ayurvé-


dica pode ser compreendida como o conjunto de conhecimentos
e práticas para alcançar a longevidade (Rocha Neto, 2009, p. 78).
Herdeira de tradições orais ancestrais, a medicina ayurvédica,
antecedeu os escritos galênicos, possuindo registro de um corpus
escrito desde o século V (Deveza, 2013; Wujastyk, 1998, p. 39;
ROCHA NETO, 2009). A principal chave interpretativa é a teo-
ria dos humores (tridosa-vidya) − o vento (vata), o calor (pitta)
e a fleugma (kapha) −, que interagem com os sete constituintes
do corpo: “linfa, sangue, carne, gordura, ossos, medula e sémen”.
Assim como na medicina Ocidental moderna, para conservar a
saúde, fazia-se necessário ter moderação e prevenção, abrangen-
do todos os fatores da vida, “incluindo limpeza dos dentes, dieta,
exercício, regimes, moralidade” (Wujastyk, 1998, p. 3). As doen-
ças seriam causadas por fatores internos (humores e má digestão),
externos (influência do ambiente) e mentais (“por não se ter o que
se quer”) (Wujastyk, 1998, p. 70).
Muitos séculos antes da chegada e conquista dos portugue-
ses em Goa, havia centros de estudos avançados em diversas áreas
do conhecimento, incluindo a Medicina chamados de agraharas
e brahmapuris (reservadas aos brâmanes) (FIGUEIREDO, 1984,
p. 226). No Compedium de Caraka apontou-se que havia mais de
uma forma de prática médica ligada à ayurvédica e ao hinduís-
mo. Havia a (1) sacra (ligada à ritualística e às cerimônias hindus,
com recitação de mantras e oferendas aos deuses); a (2) racional
(utilizando princípios terapêuticos na “dieta, medicinas e dro-
gas”); e uma ainda uma (3) que combinava bons pensamentos e
se afastar de tudo que pudesse ser prejudicial ao indivíduo. Sobre
os médicos, afirmou que o bom e virtuoso deveria saber conciliar
conhecimentos teóricos e as práticas (Wujastyk, 1998, p.72-73).
Inquisição, poder, cultura e lugares 105

Observa-se a permanência da medicina ayurvédica em institui-


ções médicas em Goa até ao menos princípios do século XVIII.
Os estudos de John M. de Figueiredo (1984) e Timothy Walker
(2002) a partir de relatos, decretos e correspondências entre a
Coroa e o governo do Estado da Índia, evidenciaram a presença
de médicos e funcionários indianos (e mestiços) e de medicamen-
tos do repertório asiático em hospitais, farmácias e enfermarias.
Quando os grupos europeus adentraram a baía posterior-
mente batizada como de Todos os Santos, encontraram comu-
nidades pertencentes ao subgrupo ameríndio Tupinambá, per-
tencente ao grande grupo Tupi. Desde ao menos o século XIII,
estavam espalhados pelo atual território da Bahia, sendo regis-
trada uma grande concentração no litoral. Há ricas informações
sobre esses grupos através das investigações arqueológicas sobre
seus vestígios. Sambaquis, artefatos líticos, ossadas e principal-
mente cerâmicas são alguns dos registros que os Tupinambá dei-
xaram sobre a sua história. Os seus fragmentos contam que eram
comunidades de horticultores ceramistas, sedentários, organiza-
dos em aldeias (núcleos familiares ou plurifamiliares), com uma
estrutura social complexa de distribuição de papéis e funções co-
munitárias (ETCHEVARNE e Fernandes, 2011, p. 27-46).
O viajante francês François Pyrard (1578-1623) em sua pas-
sagem pela Bahia no início do século XVII descreveu os “natu-
rais” da terra e alguns dos seus costumes. Em uma ótica muito
semelhante a outras narrativas sobre a sanidade da terra brasilis,
afirmou que os indígenas eram bastante longevos, alcançando 150
anos, sendo de uma forma geral bastante sadios. Afirmou que se
eram acometidos por alguma dor, tomavam “o suco de certas er-
vas, que se conhece serem apropriadas”. Apontou por fim que não
tinham nem “médicos nem cirurgiões” (PYRARD, 1944, p. 233).
106 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Essa afirmação sobre a condição de saúde dos indígenas, que nem


ao menos tinha médicos e cirurgiões pode ser coadunada com a
afirmação do saber erudito e acadêmico médico, em detrimento
dos saberes tradicionais e populares de cura. Pode ainda estar re-
lacionado a tentativa de afastamento de práticas consideradas de
feitiçaria, com o empirismo da medicina na modernidade.
Como todos os grupos humanos, os Tupinambá possuíam
seu próprio sistema de cura. Contudo, o estudo histórico sobre es-
sas ideias e práticas apresenta-se atrelado aos registros e impressões
escritos pelos grupos europeus que empreenderam a conquista e
colonização. Os missionários jesuítas deixaram indícios sobre a
compreensão de doença e saúde pelos nativos. Desse modo, ob-
serva-se que havia ideias e práticas de cura que combinavam te-
rapêuticas e a crença no sobrenatural (ANZOLIN, 2015, p. 21-36;
APOLINÁRIO, 2013, p. 180-227; RESENDE, 2003, p. 231-272 ).
Pe. José de Anchieta (1933, p. 331-332) afirmou que cada
um dos “feiticeiros” possuía suas “invenções”. Relatou ter ouvido
de alguns terem eles o poder de colher sem plantar, de outro que
a caça do mato iria sozinha para a casa ou, ainda, que as velhas
poderiam se fazer moças com “lavatórios de algumas ervas” e que
tinham o poder de matar e comunicar espíritos através das suas
defumações. O ritual de cura dos chamados “feiticeiros”, segundo
o inaciano, consistia em “esfregar, chupar e defumar os doentes
nas partes que têm lesa”, afirmando que, pelo desejo da cura, mui-
tos se deixavam levar por essas práticas. Ao padre, tudo isto pare-
cia “obra do demônio”, com suas mentiras e enganos.
Dentre as terapias, observa-se nos relatos dos jesuítas a práti-
ca de sucção de partes enfermas. Pe. Fernão Cardim (1549-1625)
ao tratar das práticas gentílicas entres “índios do Brasil”, afirmou
que havia certos “feitiços e feiticeiros”, mas que não se cria muitos
Inquisição, poder, cultura e lugares 107

neles, e nem os adoravam. Antes, se deixavam “chupar em suas feri-


das, parecendo-lhes que receberão saúde, mas não por lhes parecer
que há neles divindade, e mais o fazem por receber saúde que por
algum respeito” (Cardim, 2009, p. 175). Este trecho do jesuíta é
particularmente interessante pela tentativa de dissociação dos sabe-
res medicinais de suposto paganismo indígena (RESENDE, 2003).
Durante a epidemia da bexiga (varíola) entre os anos de
1562 e 1563, Pe. José de Anchieta (1933, p. 238-239), que tinha re-
putação de ser “bom cirurgião”, declarou havia o realizado muitas
sangrias (flebotomia). Havia ainda outra prática arrolada pelo pa-
dre, que consistia em esfolar a pele das pernas e pés e cortar fora
“a pele corrupta com tesoura”, lavando depois com água quente,
relatando que, “pela bondade do Senhor”, muitos sararam, como
um que, em grandes dores, teve os pés esfolados e recobrou a saú-
de. Contudo, os indígenas fugiam das sangrias dizendo que elas
“os matavam”. Segundo o inaciano, procuravam se curar enter-
rando os enfermos em covas quentes e com ervas, de modo que
muitos se queimavam e acabam morrendo.
Esta passagem mostra-se interessante pelo evidente conflito
e disputa entre os missionários, e sua medicina baseada na teoria
humoral, e a descrição do sistema de cura Tupinambá. Vale ob-
servar que a descrição do padre não necessariamente correspon-
dia aos intentos e práticas dos ameríndios. Em 1552, Ir. Vicente
Rodrigues registrou a história de um casal de convertidos que os
feiticeiros convenceram com “muitas imaginações do demônio”
que os religiosos levavam a morte, de modo que ficaram com
esses pensamentos e caíram em tão “grande tristeza” que disto
vieram a morrer (LEITE, 1956, vol. 1, p. 304). Em outra missiva
deste mesmo ano, o irmão relatou que, chegando em uma aldeia,
sob acusação dos “feiticeiros” lhe foi atribuída a culpa da doença
108 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

reumática de um dos “Principais” e dos inchaços de seu filho, de


modo que os indígenas “medrosos” nem mesmo recebiam os reli-
giosos em casa (LEITE, 1956, vol. 1, p. 415).
Contra estas supostas práticas demoníacas e de feitiçaria, os
inacianos mobilizaram não apenas suas prédicas, como também
registram o que denominaram de “perseguição às gentilidades”
nos espaços do Império português. A retórica do embate e as ações
mais ostensivas e violentas de intolerância devem ser compreen-
didas em um espectro mais amplo do catolicismo moderno, cujo
fruto mais conhecido foi a reformulação e estabelecimento dos tri-
bunais do Santo Ofício. Vale lembrar que entre os anos de 1541 e
1565, a Inquisição foi implementada no Reino (com jurisdição nos
territórios coloniais) e em Goa (Souza, 2014, p. 96-113; TAVARES,
2002, p. 148-214). Com este pano de fundo que as narrativas a se-
guir de combate aos panditos e pajés podem ser compreendidas.
Pe. Pedro de Almeida (WICKI, 1956, vol. 4, p. 204-205),
em carta enviada no ano de 1558, de Goa, noticiou aos padres e
irmãos de Portugal a proibição e o impedimento às práticas gen-
tílicas naquelas partes. De início, indicou o crescimento da cris-
tandade no período do governo de Pe. Dom Gonçalo com o au-
xílio do Pe. Francisco Rodriguez para a execução das provisões e
privilégios de forma que “nenhum gentio servisse ofício nenhum
da república e que todos os servissem os cristãos” e, ainda, que
as rendas reais, antes de gentios, passassem somente aos cristãos.
Além disso, começaram a fazer cumprir “as penas e castigos” no
impedimento das cerimônias públicas e “ocultas”.
Pe. Alessandro Valignano, no “Regimento pera os padres que
estão nas Costas de Travancor e Pescaria” (1575), instruiu sobre os
perigos da conservação de ritos e cerimônias gentílicas, recomen-
dando que fossem feitas investigações para que não se permitisse
Inquisição, poder, cultura e lugares 109

construir pagodes, que não se façam “nem feitiços, nem agouros”,


não houvessem adivinhadores, encantadores de peixe, feiticeiros,
que se buscasse mudar os costumes, como as bebedeiras, os divór-
cios, os amancebamentos e que sempre se inquirisse “se os mestres
dos lugares curam com feitiços e augouros” e se havia “casa de alco-
ve ou alcoviteiras” (WICKI, 1970, vol. 11, p. 16-17).
Nas missões no Brasil podem ser encontradas uma varieda-
de de cartas com testemunhos de combate aos pajés. Por exemplo,
na quarta quadrimestral de maio de 1556, o Ir. António Blázques
relatou que, na aldeia do Rio Vermelho (cidade de Salvador), per-
manecia o costume dos indígenas de oferecer raízes para “um seu
feiticeiro” para que viessem a ter boas colheitas e que este, constan-
temente, blasfemava e desprezava a doutrina. Por ordem do gover-
nador Duarte da Costa, o tal feiticeiro foi preso e aumentaram as
conversões e a aceitação da religião, vindo então a serem batizados
muitos meninos entregues pelos pais antes de morrerem e adultos
doentes pelas admoestações do pajé de que logo morreriam se o
fizessem. Este relato revelou a prisão e a punição a estes feiticeiros
pelas autoridades civis como sintomática dos conflitos entre os fei-
ticeiros, detentores dos saberes e práticas de cura tradicionais nas
aldeias, e os missionários (LEITE, 1957, vol. 2, p. 270).
Na missiva de 5 de julho de 1559, Pe. Manoel da Nóbrega
narrou alguns episódios de disputa entre os religiosos e os pajés
na Bahia. Relatou que os “feiticeiros” eram perseguidos pelos mis-
sionários em razão dos muitos abusos cometidos dos quais um,
em especial, revela a disputa e a violência da sociedade colonial.
­­O assassino acabou por receber punição exemplar pelo crime, foi
açoitado e teve alguns dedos cortados (LEITE, 1958, vol. 3, p. 53).
Outro “feiticeiro”, denunciado por um menino da escola dos je-
suítas por gloriar-se de ter realizado uma cura com seus incensos,
110 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

foi publicamente repreendido e ordenado que o levassem para ser


preso pelo governador, provavelmente Mem de Sá (1500-1572). O
acusado, ainda segundo o inaciano, após ter fugido e andado mal-
trapilho pelos matos, tomou bom conselho e, posteriormente, foi se
humilhar e pedir penitência aos padres (LEITE, 1958, vol. 3, p. 65).
Evidencia-se assim, que as disputas pela cura eram feitas
não apenas pelas concepções médicas e envolviam, sobretudo, a
preocupação com a salvação das almas. Conflito evidenciado nas
acusações contra os pajés e na compreensão das doenças como
um fenômeno sobrenatural, sendo sua cura intermediada atra-
vés dos rituais. O registro da relação entre feitiçaria e cura esteve
presente não somente nas partes longínquas do Império como
também no próprio reino. Keith Thomas (1991, p. 132-215) des-
tacou as crenças para a cura, na Europa, no período medieval e
moderno através de curandeiros, benzedeiros e feiticeiros. De
forma inequívoca, o autor apontou que a ação do sobrenatural era
reconhecida pela Igreja e seus agentes, cabendo apenas atribuir
a origem desse poder ser divina ou diabólica e que apresentava
prestígio entre a população europeia seiscentista. Destacou ainda
“o lado teatral da cura pela magia, a encenação ritual da doença e
o tratamento simbólico da enfermidade em seu contexto social”
apresentavam atrativos, frente à medicina moderna entre a flebo-
tomia e a busca do equilíbrio dos humores. Para o autor, pouco
se distanciava aos olhos contemporâneos, a estranheza na crença
sobre a magia que a as práticas da medicina galênica. A medici-
na, no período moderno, foi perpassada pela complexidade das
relações entre medicina acadêmica/erudita e a chamada “medi-
cina popular”, assim como por elementos da religiosidade e pelo
contato com as diversas compreensões do divino, do mágico e do
sobrenatural (LINDEMANN, 2002, p. 1-4; THOMAS, 1991, p.
Inquisição, poder, cultura e lugares 111

155-236; WALKER, 2013, p. 15-19). Contudo, para os missioná-


rios importava assegurar a propagação da fé católica, e extirpar
qualquer sinal de gentilidade.
Excluindo qualquer teor de paganismo, Pe. José de Acosta
(1539-1600) atribuiu à criação divina todas as plantas que, aten-
dendo a um propósito racional, haviam sido feitas para comida,
recreação e medicina. Destacando esta última utilidade, afirmou
que todas poderiam servir para a saúde dos homens quando delas
se tivesse conhecimento e fossem bem aplicadas. Para cada doen-
ça havia Deus criado uma planta e uma erva para seu tratamento
e cura (1590, p. 263). Assim, no âmbito do “inventário médico do
mundo”, expressão tomada de empréstimo de Gruzinski (2014, p.
219), os inacianos legaram um vasto corpus documental. Ines G.
Županov e Ângela Barreto Xavier destacaram o papel dos missio-
nários na circulação de saberes e produtos através das correspon-
dências, obras impressas e redes de envio de medicinas (2014, p.
528). Vale observar ainda que há uma vasta e consolidada histo-
riografia sobre a circulação de saberes e produtos medicinais no
período moderno (GRUZINSKI, 2014, p. 213-219, 440; RUSSEL-
WOOD, 1998, p. 193-226; Županov, 2002, p. 1-43).
Nesse âmbito compreende-se as descrições feitas entre os
anos de 1583 e 1590 pelo Pe. Fernão Cardim (2009). Coligindo
saberes e, muito provavelmente, contando com sua observação di-
reta, descreveu de modo bastante detalhado plantas, assim como
características das espécies animais, serpentes e peixes. Forneceu
ao leitor informações sobre sabores, cheiros, modos de consumo
na alimentação e na medicina e alertou sobre peçonhas e perigos.
Grafou a maior parte das plantas e animais com palavras tupis e
variantes, apontando os usos, virtudes e malefícios indicados. De
maneira bastante curiosa, o padre apontou os usos e aplicações
112 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

dados pelos índios para os variados artigos, sem mencionar nem


ao menos uma vez os pajés.
Pe. Fernão Cardim (2009, p. 134-135) também não men-
cionou o uso comum nos ritos Tupinambá com a chamada “erva
santa”, conhecida hoje em dia como tabaco. Segundo o jesuíta, a
erva servia para “feridas, catarros”, e também para “doentes da
cabeça, estômago” e (espantosamente) “asmáticos”. Afirmou que
os portugueses e os “naturais” tinham por costume utilizar um
canudo com a erva, colocar fogo em uma ponta, e “beber o fumo”.
Em sua palavras era essa uma das delícias e mimos desta terra”, e
“grande vício” com que muitos perdiam dia e noite deitados em
redes. A planta teve rápida difusão pela Europa e Ásia, desde as
primeiras décadas do século XVI, alcançando grande importância
nas redes comerciais portuguesas através do Atlântico. Russell-
Wood (1998, p. 263-264) apontou sua presença, na Espanha, des-
de 1520, sendo levada pelos espanhóis do México até as Filipinas.
No cenário do Império Português, conquistou os mercados ará-
bico e indiano, sendo registrado nas mais ricas cortes orientais.
As folhas foram indicadas nos mais diversos modos de uso,
como mascar, fumar, aspirar ou ferver. O renomado médico espa-
nhol Nicolás Monardes (1493-1588), citado no texto do Pe. Fernão
Cardim, descreveu o tabaco como sendo um antigo costume indí-
gena que, havia alguns anos, adornava jardins na Espanha sendo
assim planta estimada por suas virtudes e beleza. Enumerou sua
experiência na aplicação da erva como medicina: útil para tratar
feridas por flecha envenenada, conforme relato recebido dos índios
de San Juan de Porto Rico; eficaz na cura da garganta de um ca-
chorro, aplicada pelo médico da câmara de Vossa Majestade; e sa-
nava caspas na cabeça assim como, parece que por seu próprio uso,
como emplastro, depois da sangria (MONARDES, 1580, p. 32-36).
Inquisição, poder, cultura e lugares 113

Sem especificar sobre qual povo indígena se refe-


ria, Monardes (1580, p. 37) descreveu o uso do tabaco pelos
“Sacerdotes dos Índios”. Narrou que, quando havia algo de muita
importância a resolver com os caciques ou principais do povo,
pegavam as folhas e queimando-as, tomavam o fumo pela boca
e pelos narizes, caindo em um sono profundo como se estives-
sem mortos. Quando acordavam, obtinham a resposta ou a solu-
ção pretendida, fosse através da interpretação dos sonhos ou de
fantasmas que, adormecidos, haviam visto ou, ainda, segundo o
que o Demônio os aconselhava, ponderou o médico. Apontou,
também, o uso do sumo da erva como passatempo pelos demais
indígenas. Declarou, ainda, que estes usos eram engano do Diabo,
que possuía conhecimento das propriedades das ervas e as utili-
zava com fantasias e imaginações.
No Oriente, a erva de betle era bastante utilizada pelos
“indiáticos” e foi apontado como parte dos costumes gentílicos.
“Nas partes orientais”, afirmou Pe. Sebastião Gonçalves (1557-
1619), havia “grande uso” e mouros e hindus a consumiam co-
tidianamente. Apontou que apresentava propriedades cordiais
e confortativas para o estômago e sendo, também, aromática,
quando mascada com cardamomo fazia o “bafo cheiroso”. O
próprio padre parece ter provado dela, afirmando ser “amarga a
quem não é costumado a comê-lo” e aconselhou a misturar com
areca e cal de ostra em pouca quantidade que assim “diziam ser
muito saboroso”. Outras combinações poderiam ser feitas, pelas
“pessoas poderosas”, com cânfora, linaloés, almiscre ou ambre
(GONÇALVES, 1962, p. 18-19).
Segundo Manuel Godinho Erédia (1558?-1623) o betle,
pela compleição quente e seca era recomendada para “deitar ven-
tosidades e matar lombrigas” (ERÉDIA, 2001, P. 30). Erédia era
114 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

mestiço, filho de português com uma malaia, egresso do Colégio


de São Paulo em Goa, humanista, cosmógrafo respeitado, e or-
ganizou a “Suma de árvores e plantas” (1614). Curiosamente, em
sua obra classificou e compôs 73 estampas com uma variedade de
frutos comestíveis com propriedades medicinais não somente de
origem asiática, mas, também, africana e americana. Interessante
notar que as descrições sobre as propriedades medicinais pare-
ciam seguir indicações da teoria humoral, envolvendo assim tanto
a medicina ayruvédica e hipocrática-galênica.
Os exemplos sobre os saberes sobre ervas e plantas atribuí-
dos a gentios, e ressignificados pelos inacianos são abundantes. O
óleo de copaíba, por exemplo, foi descrito pelo Pe. Fernão Cardim
(2009, p. 113). Apontou a árvore da qual se extrai o azeite curativo
como “Cupaigba”, nome que se assemelha a vocábulos tupis, atri-
buindo propriedades para cura de feridas e marcas. O óleo teve
suas virtudes medicinais atribuídas e reconhecidas, estando pre-
sente no rol das mezinhas das boticas da Companhia, nas diversas
partes das missões inacianas. Bruno Boto Leite (2013, p. 84-86)
identificou a presença do extrato na composição de bezoártico
apolético e da tintura estomacal, em Macau. Também fazia par-
te da famosa triaga do Colégio Romano. O bálsamo foi arrolado
dentre os frascos na botica do Colégio de Bragança, do Colégio de
Alcalá de Hernares e no Noviciado do Colégio de Madri, demons-
trando a permanência da sua reputação ainda no século XVIII
(AUC, Dep. IV. Seção 1°. E, Est. 22, Tb. 4, cx. 5, 118: AHN, 16,
63, Lib. 128; AHN Legajo 214, n° 11-23, 28). Seu comércio era
pautado pela Casa da Índia, em Lisboa, listada dentre as drogas
de origem americana (ACL, Ms Azul, 213).
Algumas mezinhas alcançaram enorme reputação de pro-
priedades curativas e foram atribuídas ao engenho dos jesuítas.
Inquisição, poder, cultura e lugares 115

Um bom exemplo foi a quina (ou quinina) que ficou conhecida


como “mezinha dos padres”. Tratando-se da cinchona, planta ori-
ginária da região andina, conhecida e utilizada pelos quechuas,
foi atribuída, na história da farmacologia, aos jesuítas, para tra-
tamento da malária (CALAINHO, 2005, p. 66; WALKER, 2009,
p. 267). Na botica de Goa era produzida a Mirigânga (SOUZA,
2018, p. 145-147). No século XVIII, o doutor Joseph Rodrigues
de Abreu (1682-1747) descreveu o composto como uma pe-
dra de origem asiática, e sua formulação apresentava elementos
como “aço, calaim, chumbo, cobre, estanho, ouro, prata e tal-
co” e também “âmbar, almíscar, pedra Bazar” (ABREU, 1739, p.
155). Atribuiu o remédio à “boa inteligência do Padre Antonio
de Azevedo”, que em “dilatadas missões” adquiriu “com indústria
a receita deste célebre medicamento dos gentios, donde florescia
em grande estimação pelos seus prodigiosos efeitos, e a que cha-
mam os naturais Jatuapadramadú, que vale o mesmo que Pedra
de Mirigânga” (ABREU, 1739, p. 156).
As prateleiras das boticas dos Colégios da Companhia de
Jesus estavam repletas de produtos e saberes não europeus, e os
exemplos a esse respeito seriam numerosos. Patrícia A. Maia
(2012, P. 96-108) destacou, em suas análises, a importância das
boticas e a comunicação e circulação de produtos através a rede
de instituições da Companhia de Jesus. Isso foi evidenciado com
a análise da “Colleção de Varias Receitas e segredos particulares
das principais boticas da nossa companhia de Portugal, da Índia,
de Macau, e do Brazil”, cujo título completo atestava terem sido
“compostas, e experimentadas pelos melhores médicos, e boticá-
rios mais celebres que tem havido nessas partes” datado de 1766.
Apenas para citar algumas mezinhas, o “Balsamo Apopletico”
era produzido nas boticas da Bahia e de Macau. Seus ingredien-
116 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

tes eram de origem animal (como o almíscar, âmbar griz, entre


outros) e vegetal (óleos de cravo, canela, alfazema, noz moscada,
etc.), originários da Europa e do Oriente e era indicado para, além
das apoplexias, confortar o cérebro e preservar da peste. Ou, ain-
da, o “Emplastro para dores de cabeça”, que combinava bálsamo
do Brasil com benjoim e canela da Índia, e a “Pílula de Rezina de
Batata” que, além do tubérculo que a nomeava, era formada de
creme tártaro em pó (Maia, 2012, p. 154, 166, 194). Por vezes,
produtos de várias partes do mundo e os saberes que os mesmos
ensejavam, se misturavam em compostos.

Considerações finais
Retornando a problemática que norteou esse capítulo sobre
os panditos e pajés e seus saberes nos espaços coloniais do Império
Português entre os séculos XVI e XVII, podem ser apontadas algu-
mas breves e incipientes considerações. A primeira que se alcan-
çou está relacionada à presença/ausência nas descrições dos ina-
cianos como “feiticeiros”. Vale a pena explicar o jogo de palavras.
Estavam esses grupos sociais dos panditos e pajés presentes nas
muitas notícias em cartas e tratados enviados pelos missionários da
Companhia desde Goa e da Bahia. Contudo, estavam ausentes, por
apenas serem considerados de forma estereotipada, negados do di-
reito à diferença, postos por vezes em representações que os afastava
de condições plenamente humanas. Estavam mais aptos a servir e
tinham pouca ciência das coisas, dizia o Pe. Alessandro Valignano.
Eram brutos, rudes e ignorantes, descreveu o Pe. Baltasar Teles. A
segunda ponderação que pode ser lançada diz respeito a evidência
de que se faz necessário abandonar o eurocentrismo para se com-
preender a História. Não apenas a história dos saberes e práticas
de cura, mas toda a experiência de povos colonizados e territórios
conquistados desde as Índias Orientais, até as Américas. O Zeitgeist
Inquisição, poder, cultura e lugares 117

exige novas epistemologias, alertou Boaventura de Sousa Santos


(2019), ressonando as vozes de outros narradores/ sujeitos, e tantas
outras teorias sociais não-etnocêntricas.
Por fim, e em seguimento a isso, este capítulo buscou evi-
denciar as contribuições de saberes não apenas ocidentais para a
Medicina ocidental moderna. Os embates, adaptações e assimila-
ções das ideias e práticas de cura de panditos e pajés obtidos nas
missões inacianas são apenas pequenas parcelas dessa presença nas
sociedades coloniais e no mundo ibérico. As prateleiras das boticas
dos Colégios da Companhia, nas mais variadas partes do mundo,
desde a Bahia até Macau, revelam esses saberes. Os sistemas cultu-
rais hindus e Tupinambá, complexos, distintos e tão exóticos aos
olhos dos missionários foram negados e combatidos no espaço co-
lonial. Muitas vezes, e justamente por isto, foram descritos e repre-
sentados, possibilitando o seu debate enquanto fontes indiciárias
para o estudo da história dos saberes e práticas de cura na Índia e
na América portuguesa entre os séculos XVI e XVII.

Fontes Manuscritas
Academia das Ciências de Lisboa (ACL). Série Azul. Manuscri-
tos, 213
Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Dep. IV, Seção 1°
E, Est. 22, Tb. 4, cx. 5.
Archivo Histórico Nacional − Madrid, España (AHN). 16, 63,
Lib. 128; Legajo 214, n° 11-23.

Fontes impressas
Abreu, José Rodrigues de. Historiologia medica, fundada e estabe-
lecida nos principios de George Ernesto Stahl... Lisboa Ociden-
tal: Na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, 1739.
118 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Acosta, José de. Historia natural y moral de las Indias… Seuilla: en


casa de Iuan de Leon, 1590.
Anchieta, Pe. José de. Cartas, informações, fragmentos historicos
e sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. Cartas
Jesuiticas 3.
Bluteau, Rafael C. R. Vocabulario portuguez e latino...Coimbra:
Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728.
Cardim, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo:
Hedra, 2009.
Godinho de Erédia, Manuel. Suma de árvores e plantas da Índia
intra Ganges. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemora-
ções dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
Gonçalves, Sebastião. Primeira parte da história dos religiosos
da Companhia de Jesus e do que fizeram com a divina graça.
Coimbra: Atlântida, 1957, 1960, 1962.
Guerreiro, Fernão. Relaçam annal [sic] das cousas que fezeram os
padres da Companhia de Jesus nas partes da India Oriental,
& no Brasil, Angola, Cabo Verde, Guine… Lisboa: per Jorge
Rodrigues impressor de livros, 1605.
Leite, Serafim. Monumenta brasiliae. Roma: Monumenta Histori-
ca Societatis Iesu, III (1558-1563) 1956-1960. 4v.
Monardes, Nicolás. Primera y segunda y tercera partes de la histo-
ria medicinal: de las cosas que se traen de nuestras Indias Oc-
cidentales que siruen en Medicina. Sevilla: Casa de Fernando
Diaz, 1580.
Pyrard de Laval, François. Viagem de Francisco Pyrard de Laval:
Contendo a notícia de sua navegação às Índias Orientais. Por-
to: Livraria Civilização, 1944.
Teles, Baltasar. Chronica da Companhia de Jesu, na Provincia de
Portugal…Lisboa: Paulo Craesbeeck, 1645.
Inquisição, poder, cultura e lugares 119

Valignano, Alessandro. Historia del principio y progresso de la


Compañia de Jesús en las Indias Orientales: 1542-64. Roma:
Institutum Historicum; Bibliotheca Instituti Historici, 1944.
Wicki, Joseph, ed. Documenta Indica. Roma: Tipografia Pio X,
1948-1988, 18 vols. Monumenta Historica Soc. IESU. Dispo-
nível em: http://www.sjweb.info/arsi/Monumenta.cfm. Aces-
so em: 12 ago. 2019.
Wujastyk, Dominik. The Roots of Ayurveda: Selections from
Sankskrit Medical Writings. New Delhi; New York: Penguin
Books, 1998.

Referências
Anzolin, André Soares. Entre Mortes e Lembranças: Notas sobre
as Reações dos Tupi à Pandemia de Varíola de 1562-64. Revis-
ta latino-americana de história, 3, 12 (2015).
Apolinário, Juciene Ricarte. Plantas Nativas, Indígenas Coloniais:
Usos e Apropriações da Flora da América Portuguesa. In:
KURY, Lorelai Brilhante (org.). Usos e circulação de plantas no
Brasil: Séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson
Estúdio, 2013. p. 180-227.
BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
BUCK, William. O Mahabharata. São Paulo: Cultrix, 2014.
Calainho, Daniela Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial.
Tempo 10, 19 (2005): 61-75.
Castelnau-L’Estoile, Charlotte. De Observation à la Conversa-
tion: Le Savoir sur les Indiens du Brésil dans l’Oeuvre d’Yves
d’Évreux. In Castelnau-L’Estoile, Charlotte (et. al.). Missions
d’évangélisation et circulation des savoirs: XVIe-XVIIIe siècle.
Madrid: Casa de Velázquez, 2011a. p. 269-293.
120 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Castelnau-L’Estoile, Charlotte [et al.]. Introduction. In Castel-


nau-L’Estoile, Charlotte (et. al.). Missions d’évangélisation et
circulation des savoirs: XVIe-XVIIIe Siècle. Madrid: Casa de
Velázquez, 2011b. p. 1-22.
Certeau, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
Conrad, Lawrence I. ed. The western medical tradition: 800 BC to
AD 1800. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1998. vol. 1.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: o
século XVI. Estudos avançados, São Paulo , v. 4, n. 10, p. 91-
110, Dec. 1990 .
DEVEZA, Antonio Cesar Ribeiro Silva. Ayurveda: A medicina
clássica indiana. Revista de medicina, São Paulo, v. 92, n. 3, p.
156-165, 2013.
Etchevarne, Carlos; FERNANDES, Luydy. Patrimônio arqueoló-
gico pré-colonial. Os sítios de sociedades de caçadores cole-
tores e dos grandes grupos de horticultores ceramistas, antes
da chegada dos portugueses. In: Etchevarne, Carlos; PIMEN-
TEL, Rita (orgs.) Patrimônio arqueológico da Bahia. Salvador:
SEI, 2011. p. 27-46.
Figueiredo, John M. de. Ayurvedic Medicine in Goa According To
European Sources in The Sixteenth And Seventeenth Centu-
ries. Bulletin of the history of medicine, Baltimore, v. 58, n. 2,
p. 225-235, 1984.
Figueroa, Luis Millones. La Intelligentsia Jesuíta y la Naturaleza
del Nuevo Mundo en el Siglo XVII.” In Figueroa, Luis Mil-
lones; LEDEZMA, Domingo. El saber de los jesuitas, historias
naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt am Main: Vervuert,
2005. p. 27-51.
Inquisição, poder, cultura e lugares 121

FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola,


1996.
Gruzinski, Serge. As quatro partes do mundo: História de uma
mundialização. São Paulo: EDUSP/EUFMG, 2014.
Gruzinski, Serge. O Pensamento mestiço. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
Ledezma, Domingo. Figueroa, Luis Millones. Introducción: Los
jesuítas y el Conocimiento de la Naturaleza Americana. In:
Figueroa, Luis Millones; LEDEZMA, Domingo. El saber de los
jesuitas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt am
Main: Vervuert, 2005. p. 9-26.
Leite, Bruno Martins Boto. Verdes que em Vosso Tempo se Mos-
trou: das Boticas Jesuíticas da Província do Brasil Séculos
XVII-XVIII. In: KURY, Lorelai Brilhante (org.). Usos e circu-
lação de plantas no Brasil: Séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro:
Andrea Jakobsson Estúdio, 2013. p. 52-93.
Lindemann, Mary. Medicina e sociedade no início da Europa mo-
derna: Novas Abordagens da História Europeia. Lisboa: Re-
plicação, 2002.
Maia, Patrícia Albano Práticas no império colonial português: Me-
dicamentos e boticas no século XVIII. Tese de Doutorado,
Universidade de São Paulo, 2012.
Manso, Maria de Deus Beites. A Companhia de Jesus na Índia
1542-1622: Actividades Religiosas, Poderes e Contactos Cul-
turais. Macau: Editora da Universidade de Macau; Évora: Edi-
tora da Universidade de Évora, 2009.
Manso, Maria de Deus Beites. História da Companhia de Jesus em
Portugal. Lisboa: Parsifal, 2016.
122 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

MANSO, Maria de Deus Beites. A Companhia de Jesus em Por-


tugal. Identidade e Historiografia. Temas americanistas, 44,
jun. 2020, PP. 264-292.
Marcocci, Giuseppe. A Consciência de um Império: Portugal e o
seu Mundo, Séc. XV-XVII- Investigacão. Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2012.
Powell, Owen. Galen: On the properties of foodstuffs de alimen-
torum facultatibus. Cambridge, UK: New York: Cambridge
University Press, 2003.
Resende, Maria Leônia Chaves de. Entre a Cura e a Cruz: Jesuítas
e Pajés nas Missões do Novo Mundo. In Chalhoub, Sidney
(org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: Capítulos de História
Social. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003. p. 231-272.
Rocha Neto, Anderson Moreira da. Um estudo dos textos clássicos
do Ayurveda em perspectiva histórico-antropológica. 2009. 258
p. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medi-
cina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Russell-Wood, Anthony John. Um mundo em movimento: Os por-
tugueses na África, Ásia e América 1415-1808. Trad.Vanda
Anastácio. Lisboa: DIFEL, 1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. O fim do império cogni-
tivo: A afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019.
SOUZA, Grayce Meyre Bonfim. Para remédio das almas: comis-
sários, qualificadores e notários da Inquisição portuguesa na
Bahia Colonial. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014.
SOUZA, Lais Viena de. Missionários do corpo e da alma: Assistên-
cia, saberes e práticas de cura nas missões, colégios e hospitais
da Companhia e Jesus (Goa e Bahia, 1542-1622). 2018. 382 p.
Inquisição, poder, cultura e lugares 123

Tese (Doutorado em História) - Universidade de Évora, Évo-


ra, 2018.
Subrahmanyam, Sanjay. Connected Histories: Notes Towards a
Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern asian stu-
dies, 31, 3 (1997): 735-62.
Tavares, Célia Cristina da Silva. A Cristandade insular: Jesuítas e
Inquisidores em Goa 1540-1682. 2002. 319 p. Tese (Doutora-
do em História) - Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002.
Thomas, Keith. Religião e o declínio da magia: Crenças Populares
na Inglaterra, Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
Torres Londoño, Fernando. Escrevendo Cartas: Jesuítas, Escrita
e Missão no Século XVI. Revista brasileira de história, 22, 43
(2002): 11-32.
Walker, Timothy Dale. Acquisition and Circulation of Medical
Knowledge within the Early Modern Portuguese Colonial
Empire.” In: Bleichmar, Daniela (org.) Science in the spanish
and portuguese empires, 1500-1800. Stanford, Cf: Stanford
Univ Press, 2009. p. 247-270.
Walker, Timothy D. Evidence of the Use of Ayurvedic Medicine
in the Medical Institutions of Portuguese India, 1680-1830.
In: SALEMA, A. Ayurveda at the crossroads of care and cure.
Lisboa: Centro de História de Além-Mar Universidade Nova
de Lisboa, 2002. p. 74-104.
Walker, Timothy D. Médicos, medicina popular e inquisição: A
Repressão das Curas Mágicas em Portugal durante o Ilumi-
nismo. Rio de Janeiro: Lisboa: Fiocruz; Imprensa de Ciências
Sociais, 2013.
124 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Xavier, Ângela Barreto. “Parecem Indianos na Cor e na Feição”: A


Lenda Negra e a Indianização dos Portugueses. Etno-gráfica.
Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia
18, 1 (2014): 111-33.
Županov, Ines G. Drugs, Health, Bodies and Souls in the Tropics:
Medical Experiments in Sixteenth-Century Portuguese India.
The indian economic & social history review 39, 1 (2002), 1-43.
Županov, Ines G.; XAVIER, Ângela Barreto. Quest for Permanen-
ce in the Tropics: Portuguese Bioprospecting in Asia 16th-
-18th Centuries. journal of the economic and social history of
the orient, 57, 4 (2014): 511-48.
PARTE II
POLÍTICA E CULTURA NA
CONTEMPORANEIDADE
5. Amargura tropical:
aspectos do exílio perpétuo
de Marcello Caetano
(Rio de Janeiro, 1974-1980)
Belarmino de Jesus Souza

Início das investigações e o acesso à documentação1


Os arquivos pessoais do ex-Presidente do Conselho de
Ministro de Portugal foram cedidos à guarda do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo pela família Caetano em março de 1999. Parte
do acervo já está disponível ao acesso público desde 26 de outu-
bro de 2015, 35 anos após o falecimento do Dr. Marcello2 e parte,
a maior, estará após disponível após o dia 26 outubro de 2030,
cinquenta anos após sua morte. Todo material doado foi organi-
zado e, posteriormente, catalogado por Antônio Frazão e Maria
do Céu Barata Filipe.3
Apesar das limitações contratuais de acesso aos documen-
tos indisponíveis, existem possibilidades mais amplas de contato
com o acervo, mediante algumas condições: Têm acesso apenas os

1 Esta abordagem é fruto das investigações nos Arquivos Marcello Caetano


(doravante, AMC) sob a guarda dos Arquivos Nacionais da Torre do Tom-
bo (doravante, ANTT), Lisboa, Portugal e foram realizadas no pós-douto-
ramento vinculado à Universidade de Évora.
2 Marcello José das Neves Alves Caetano, nascido em 17 de agosto de 1906
em Lisboa e falecido em 26 de outubro de 1980 no Rio de Janeiro. Juris-
consulto, professor de direito e político.
3 Arquivistas do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal.
128 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

sucessores de Marcello Caetano e pessoas expressamente autori-


zadas por estes, o pedido por escrito tem que ser feito ao Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, a quem cabe encaminhar aos suces-
sores. No pedido deverá constar a qualificação do investigador e
das instituições as quais está vinculado e os objetivos da pesquisa.
Os sucessores terão até 30 dias para responder, sendo que qual-
quer sucessor poderá vetar o uso dos documentos.
Tais limitações foram, primeiramente, motivo de grande
preocupação, posto que o período do pós-doutoramento corres-
pondesse ao ano de 2014 e ao início de 2015, em outras palavras,
um projeto que pretendia lidar com os Arquivos Marcello Caetano
não alcançaria nem mesmo a abertura parcial do mesmo, estava
inviabilizado, portanto. Mas não dava para lamentar e retornar.
Após contato com a relação do acervo contido nos arquivos fi-
zemos opção de recorte cronológico coerente com o objeto de
Estudo do pós-doutoramento (relações Brasil e Portugal nos ar-
quivos pessoais de Antonio Oliveira Salazar e Marcello Caetano).
Preliminarmente fizemos uma lista de toda a documentação re-
lativa ao Brasil, na sequência identificamos os documentos pau-
tados às ações governamentais da Presidência do Conselho de
Ministros de Portugal sob Marcello Caetano e documentos acerca
do período do exílio do ex-chefe de governo na cidade do Rio de
Janeiro. Após este primeiro levantamento partimos para buscar
a autorização de acesso às fontes tão cobiçadas, em poucos dias,
graças à gentil resposta positiva do Sr. Miguel Caetano (filho do
Dr. Marcello) à solicitação de acesso aos documentos, cuidado-
samente, relacionados, foi possível o compilar de 43 documentos
que estão sendo analisados e o primeiro resultado parcial foi uma
reflexão sobre a atuação do Dr. José Manuel Fragoso, enquanto
embaixador de Portugal no Brasil em um período em que, sob a
Inquisição, poder, cultura e lugares 129

liderança do Prof. Marcello Caetano, o regime autoritário declina-


va em Portugal, mas que a Ditadura empresarial-militar do Brasil
marcava o seu momento de mais aguda e brutal repressão.4

Sobre o exílio de Marcello Caetano


Marcello Caetano, sucessor de Antonio Oliveira Salazar na
Presidência do Conselho de Ministros5 desde 1968, foi deposto
no processo que eclodiu em Portugal a partir da Revolução dos
Cravos6 de 25 de abril, chegou ao Brasil em maio de 1974 para o
seu exílio, que seria perpétuo.
É bem conhecido o trabalho do professor Joaquim Veríssimo
Serrão, historiador e incondicional amigo do ex-presidente do
Conselho de Ministros de Portugal, que reuniu 291 correspon-
dências na publicação “Marcello Caetano – confidências do exí-
lio”, publicadas pela Bertrand pouco tempo após o falecimento
do Dr. Marcello. A obra escrita no verão português de 1980 seria
uma homenagem ao amigo Marcello Caetano nas comemorações
do seu 75º aniversário em 1981, mas com o seu falecimento em
26 de outubro de 1980, acabou por se tornar um tributo póstumo.
Por desejo de Marcello Caetano, parte do seu espólio documental

4 Algumas reflexões podem ser vistas em: (SOUZA, 2019).


5 O presidente do Conselho de Ministros, dirigia o corpo ministerial da
República Portuguesa, função equivalente em outras repúblicas contem-
porâneas ao Primeiro Ministro.
6 Processo insurrecional deflagrado pelo médio oficialato do Exército Por-
tuguês em 25 de abril de 1974, que serviu de ponta de lança e catalizador
dos grupos e movimentos pró-democracia de Portugal, a resultar na der-
rubada do governo liderado pelo Sr. Marcello Caetano e fim do regime
autoritário implantado com o golpe militar de 28 de maio de 1926. Após
a aprovação da Constituição de 1933, os propagandistas do regime passa-
ram a denominá-lo de Estado Novo, que contou com marcante liderança
de António Oliveira Salazar até 1968 e daquele ano até o seu final ficou sob
a liderança Marcellista.
130 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

ficou sob a guarda do Dr. Serrão que lançou mão do acervo para
fundamentar a sua obra, que foi concluída graças às cobranças
insistentes de amigos em comum com Caetano, dentre os quais
o autor dá especial destaque ao professor Pedro Calmon, então
presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, apon-
tado como “companheiro dilecto de Marcello Caetano” (1985, p.
11). O livro, nos dois primeiros capítulos, foi voltado para episó-
dios anteriores a 1974, dos primeiros contatos entres os dois ami-
gos até a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos iniciais,
dando especial destaque ao período em que o autor foi reitor da
Universidade de Lisboa.
Com uma fidelidade passional, Dr. Serrão apresenta o
Presidente do Conselho deposto no dia 25 de abril, como um
“bode expiatório” de uma burguesia portuguesa que apostou em
largas franjas na mudança. O historiador percebia virtudes na go-
vernança do Dr. Marcello tais como: grandes ideais de ação, res-
peito da pessoa humana, ânsia de justiça social e a defesa dos va-
lores históricos portugueses. Apresenta a convicção de que o povo
“laborioso e humilde”, sem qualquer dúvida, “amava Marcello
Caetano por ver nele um estadista honesto e um defensor do bem
público” (SERRÃO, 1985, p. 13).
Ao abordar o período governamental de Marcello Caetano,
Joaquim Veríssimo aponta uma condição desconfortável para o
exercício do poder, acossado pelos mais conservadores que o acu-
savam de destruir a obra do antecessor, Antonio Oliveira Salazar
e combatido pelos liberais e progressistas de ser vagaroso num
prometido processo de renovação. O autor destaca em especial
a visão geopolítica e a percepção da questão africana por parte
de Marcello Caetano, onde se destacavam o posicionamento de
Portugal na defesa do Ocidente no contexto bi-polar da Guerra
Inquisição, poder, cultura e lugares 131

Fria, e na crença que Guiné, Angola e Moçambique representa-


vam para a comunidade lusíada com a formação de uma elite
qualificada academicamente das duas etnias (brancos e nativos)
um futuro de “novos Brasis” com um riquíssimo patrimônio de
história comum, juntamente com Portugal e o Brasil formariam
um grandioso mundo lusófono. A obra é posta aí para além da
homenagem e afago ao amigo exilado um depoimento para a de-
fesa da visão de mundo de Marcello Caetano.
No ano de 2009, a jornalista Manoela Goucha Soares lan-
çou o livro “Marcelo Caetano O Homem que perdeu a fé” onde
também faz referências à temática aqui trabalhada, trata-se de
um trabalho muito mais amplo, onde em verdadeira investiga-
ção jornalística a autora mergulha em acervos em Lisboa e Rio
de Janeiro, busca todos os contatos possíveis dos que conviveram
com Marcello Caetano, para por fim apresentar uma biografia
onde não apenas narra a vida, mas busca perceber as peculiarida-
des da personalidade de Marcello Caetano.7
Para o nosso recorte cronológico – o período do exílio entre
1974 e 1980 – no livro de Manuela G. Soares dou maior destaque
ao capítulo XII – O Brasil que acolheu Marcello (SOARES, 2009,
p. 189-243). A autora ponderadamente aborda múltiplos aspectos
da vinda e permanência do ex-chefe de governo de Portugal, a
começar pelo seu deslocamento juntamente com o ex-presidente
Américo Thomás para São Paulo, após cerca de um mês retidos na
Madeira. Na sequência destaca as instáveis condições do exilado
que sem recursos financeiros e passaporte, esteve a depender da
acolhida por parte de membros da comunidade lusa no Brasil –

7 Obra esgotada nas livrarias de Portugal e que felizmente a Doutora Ma-


nuela Goucha Soares muito gentilmente nos presenteou com um exem-
plar no verão lisboeta de 2018.
132 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

com os quais manteve contatos anteriores –, a rápida estada em


hotel da capital paulista, mudança para o Rio de Janeiro e a se-
qüente acolhida no Mosteiro de São Bento, espaço que lhe per-
mitiu isolamento, tranquilidade, possibilidade de leitura, enfim,
conveniente repouso até criar bases possíveis na nova terra. Tais
bases foram permitidas pela oferta de emprego na Universidade
Gama Filho, com proventos de Cr$ 10.000,00 (Dez mil cruzeiros),
que equivalia US$ 1.500,00 dólares, ou 26,5 salários mínimos do
Brasil à época, pois o menor valor destinado a um trabalhador
brasileiro legalizado de então era Cr$ 376,80 (trezentos e setenta
e seis cruzeiros e oitenta centavos). Também lhe foi concedido
um apartamento na zona sul da capital carioca e um automóvel
com motorista para os seus deslocamentos pela cidade. A autora
se estende pelos contatos com a comunidade luso-brasileira, in-
telectuais brasileiros, freqüência no Gabinete Português de leitura
e, especialmente, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Manuela Soares destaca a postura diferenciada de Marcello
Caetano e do ex-presidente português Américo Tomás:

No Brasil, o professor nunca quis dirigir um requerimento


ao presidente da República Ramalho Eanes, pedindo para
regressar ao país onde nascera – como fez o almirante To-
más, que voltou em Julho de 1978 e, algum tempo mais
tarde, passou a receber uma pensão de aposentação de 48
400$00 mensais.
Marcello aceitou o exílio, a perda da reforma, da casa, do
recheio desta e, também, o facto de os filhos viverem do ou-
tro lado do Atlântico. Os bens que possuía em Lisboa fo-
ram congelados, incluindo as poupanças bancárias. (...) Este
bloqueio durou até finais de 1978; 30 de outubro desse ano,
Marcello comunicava a Veríssimo Serrão: “Hoje deve ser ce-
lebrada a escritura de venda de minha casa da Rua Duarte
Lobo. E quanto aos valores que tinha no banco [e] estavam
Inquisição, poder, cultura e lugares 133

congelados, agora que foram libertos, doei-os aos filhos”


(SOARES, 2009, p. 216 e 220).

Mas o homem que foi de certo modo estóico diante dos des-
dobramentos que a vida lhe reservara, segundo Manuela Soares
(2009), não se conformou a ausência de sua biblioteca particular e
desenvolveu todos os esforços para transladar os seus livros para o
Brasil, ao longo de 1975 e 1976, o professor e seus familiares lança-
ram mão de requerimentos oficiais e contatos pessoais e por fim o
conjunto com cerca de 30.000 volumes cruzou o oceano. O acervo
foi doado à Universidade Gama Filho, instituição que arcou com
as despesas de transporte. A doação teve uma contrapartida:

Esta doação gerou um lastro de tranquilidade em Mar-


cello. Funcionou como um seguro de vida no país de
acolhimento, pois o acordo de doação impôs obrigações
contratuais à universidade fundada no Bairro da Piedade
em 1939. Esta recebeu a biblioteca do professor português
“na suposição de que a Universidade Gama Filho não dei-
xaria de prover à subsistência do declarante enquanto vi-
ver, mesmo que fique impossibilitado de trabalhar pela
idade ou mesmo pela doença (SOARES, 2009, p. 219).

Ao tratar de múltiplos aspectos da vida de Marcello Caetano


nos revela o homem para além do acadêmico e político, com
maestria humaniza-o em sua complexidade.
Por fim, mais recentemente, o professor da Universidade de
São Paulo e especialista em “História da direita e dos regimes autori-
tários ibéricos”, Francisco Carlos Palomanes Martinho, publicou em
outubro de 2016: “Marcello Caetano, uma biografia 1906-1980”, no
qual o capítulo 10 (Exílio uma vida em balanço) é totalmente desti-
nado aos últimos e amargos anos do governante português deposto.
134 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

É possível perceber que predomina nestes trabalhos uma va-


lorização da intensa correspondência do Dr. Marcello com os seus
compatriotas, bem como, com autoridades e intelectuais brasileiros,
onde os autores destacam traços de nostalgia e ressentimento em
relação a Portugal, defesa de si, do “marcellismo”8 e do Estado Novo,
tudo envolto em habitual amargura. No então a citada valorização
pode levar os leitores a imaginar uma projeção de Marcello Caetano
durante o seu exílio no Brasil maior do que ela realmente foi.
Uma análise mais cuidadosa dos documentos, em especial das
correspondências, pode permitir apresentar elementos e traçar um
quadro mais próximo da realidade vivida pelo Dr. Marcello em seus
anos de exílio perpétuo nos trópicos. Para tanto, considero necessá-
rio apresentar uma pouca das relações diplomáticas entre Portugal
e Brasil no período final do Estado Novo português e como o vulto
do professor Marcello Caetano se projetava naquele âmbito.
Durante a maior parte do governo de Marcello Caetano, José
Manuel Fragoso foi o representante diplomático português no
Brasil. Este embaixador era um bom observante das circunstâncias
políticas brasileiras, bem com, dos sinuosos caminhos das rela-
ções entre os principais sujeitos atuantes no regime brasileiro e dos
ensejos daí possibilitados. Isto fica bem claro, quando em corres-
pondências do início de 1969, o embaixador – em meio a encami-
nhamentos de publicações de obras de Marcello Caetano por uma
editora brasileira e participação em amenidades sociais – insistiu
com o Presidente do Conselho a aceitar o convite do Governo bra-
sileiro para visitar o país e enfatizou que, desde dezembro de 1968,
o Brasil atravessava “uma crise de prestígio no mundo”.9

8 Marcellismo – alusivo ao período e segmentos políticos portugueses in-


fluenciados pela liderança de Marcello Caetano.
9 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 1.
Inquisição, poder, cultura e lugares 135

EMBAIXADA DE PORTUGAL
Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, 27 de Fevereiro de 1969

Senhor Presidente do Conselho

Tomo a liberdade de vir à presença de Vossa Excelência a


propósito de uns poucos assuntos em relação aos quais o
parecer de V. Excelência é insubstituível, e só isso explica
que ouse importuná-lo.

O primeiro diz respeito ao desejo que foi manifestado pela


conhecida e conceituada “Gráfica Record Editora” de edi-
tar no Brasil algumas das principais obras de V. Excelência.
O assunto já me tinha sido aventado antes do Natal, mas
conhecendo o entusiasmo por vezes inconsequente deste
amável povo achei preferível aguardar nova manifestação
que atestasse a genuinidade da proposta. Hoje tive a almo-
çar na Embaixada o Director da Editora, o escritor Herme-
negildo de Sá Cavalcante, que me deu a confirmação que
eu aguardava. A ideia deles era que V. Excelência indicasse
as cinco ou seis obras que preferisse fossem publicadas em
primeiro lugar – pois não exclui fazer a edição das obras
completas – e se possível mandasse fornecer um exemplar
de cada. Uma vez obtido o acordo de principio, os arranjos
respectivos seriam então objecto de troca de cartas entre a
Editora e quem V. Excelência, de seu lado, designar para o
efeito. Penso que umas das poucas condições que eles so-
licitarão é serem-lhes concedidos direitos exclusivos para
o Brasil.

Por mim posso dizer que considero a sugestão séria e van-


tajosa do ponto de vista português no Brasil. A casa tem
muito bom nível e ainda o ano passado editou o livro do
Presidente Frei, do Chile, lançando-o em cerimónia em
136 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

que este mesmo esteve presente, autografando os exempla-


res adquiridos na ocasião. Aliás era desejo do Director que
V. Excelência concordasse em se fazer o lançamento dos
primeiros volumes quando da sua visita ao Brasil. Não o
dissuadi dessa logo, mas fui lhe dizendo não saber ainda V.
Excelência quando a visita poderia realizar-se.

Muito agradeceria se, em face destes elementos, o Senhor


Presidente me pudesse mandar comunicar o seu parecer,
tão breve quanto possível. O Dr. Cavalcante, que é um
homem muito culto, tenciona passar por Lisboa em Maio
próximo, mas disse-me que desejaria ter, então, o assunto
em andamento.

O segundo ponto diz respeito à honrosa missão que me foi


cometida de representar pessoalmente V. Excelência como
paraninfo da turma de finalistas da Faculdade de Direito
de Uberlândia em 13 de março. Acontece que tendo a co-
municação de Lisboa sido mandada para o Rio de Janeiro
durante a minha ausência, só há poucos dias me foi dado
conhecê-la. Anteriormente, porém, e depois de muita difi-
culdade em conciliar datas, eu tinha marcado para o pró-
prio 13 de Março a cerimónia de entrega da Grã-Cruz de
Aviz ao Ministro do Exército na Embaixada. Para efeito
convidei já a quase totalidade dos oficiais generais – o que
quer dizer dos dirigentes deste país. Sentir-me-ia embara-
çado em alterar agora o arranjo. Ocorreu-me, por isso, que
V. Excelência autorizasse o Conselheiro Cultural da Em-
baixada, o Doutor Mendes da Luz, a substituir-me nessa
missão, da qual tanta honra teria em me desempenhar não
tivesse havido ente lamentável lapso. A Faculdade, apurei
discretamente, aceitaria de bom grado o Mendes da Luz.
Se, contudo, V. Excelência entender inconveniente eu des-
locarei a cerimónia da Embaixada para outra data. Neste
caso apenas me permito pedir a V. Excelência o favor de
encarregar um dos seus secretários de me telegrafar tão
breve quanto possível.
Inquisição, poder, cultura e lugares 137

Quanto ao último ponto, não é sem alguma hesitação que o


levanto e peço a V. Excelência me releve a falta se conside-
rar inoportuno eu aborda-lo. Refere-se à hipótese da visita
de V. Excelência ao Brasil. Tenho presentes, a esse respeito,
as dúvidas e observações que V. Excelência se dignou con-
fiar-me. Mas não posso deixar de ponderar que, do ponto
de vista da política brasileira e da política portuguesa no
Brasil – e só esses óbviamente me compete considerar – os
próximos meses seriam excelentes ensejo. O Governo mi-
litar dificilmente será abalado se, como a maioria pensa e
deseja, a autoridade do Presidente Costa e Silva continuar a
consolidar-se depois dos acontecimentos de Dezembro. O
Brasil está atravessando uma crise de prestígio no mundo –
e a visita do Presidente do Conselho de Portugal sensibili-
zaria especialmente os seus dirigentes, que sempre viveram
à sombra de popularidade universal. O actual Governo
é o mais pró-lusitano que o Brasil independente alguma
vez teve, segundo creio firmemente. Se, do nosso lado
estivermos dispostos a dar alguns passos no caminho de
um intercâmbio de interesses económicos um pouco mais
amplo, creio que poderíamos tirar algum proveito político.
Começa a falar-se já com certa frequência, na área mili-
tar e até num ou noutro artigo de jornal, na identidade de
interesses estratégicos luso-brasileiros no Atlântico Sul. O
Brasil, muito discretamente, aproxima-se da África do Sul
– o que até já lhe valeu uma reprimenda da ONU a respeito
da inauguração de um voo regular Joanesburgo-Rio de Ja-
neiro – Nova York. Por fim, a demagogia demo-liberal está
neste momento no seu ponto baixo, o que elimina ou reduz
grandemente o campo de fricção crónico das relações luso-
-brasileiras dos últimos quarenta anos.

Por todas estas razões, a visita de V. Excelência no decur-


so deste ano seria de extrema oportunidade e de grande
utilidade se, como julgo, a posição do Brasil continuar a
ser por nós tida como importante no contexto da nossa
política externa. Recordo ter-me V. Excelência feito obser-
138 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

vações: a falta de pretextos vários e o facto de não dever


V. Excelência fazer visita demorada. Quanto ao primeiro,
não sei se a “missão boa vontade e de fraternidade” não
seria, por si só, pretexto suficiente e até com a vantagem
de não levantar, ostensivamente, problemas políticos; mas
não de desejando esse, poderíamos encontrar uma justifi-
cação e qualquer grande manifestação de órgão prestigioso
da Colónia, como o Real Gabinete Português de Leitura ou
a Beneficencia Portuguesa; ou, por fim, se houvesse o de-
sejo da nossa parte, não creio impossível encontrar uma
justificação de caracter político, que poderia constar em
termos mais ou menos concretos do comunicado final, a
exemplo do que aconteceu o ano passado com a visita da
Senhora Ghandi. Quanto à duração da viagem, não creio
necessário que ela excedesse quatro dias, contando com os
dias de chegada e da partida. Nesse caso, a Colónia enviaria
representantes ao Rio de Janeiro, não tendo evidentemente
V. Excelência que se deslocar senão a Brasília.

Perdoe-me Senhor Presidente, abordar este problema


cuja dificuldades e até melindres não ignoro. Mas após a
audiência que V. Exa. Se dignou conceder-me, ficou-me a
ideia de não ter apresentado, como me competia, a todos os
elementos que habilitariam V. Excelência a tomar a decisão
final. O que faço agora, pedindo a V. Excelência que não
veja na iniciativa senão o desejo de bem servir.

[Peço a Vossa Excelência, Senhor Presidente, se digne a


aceitar as [ilegível] das minhas mais [ilegível] consideração
e de meu respeito.]

José Manoel Fragoso.10

Estava correto, em 13 de dezembro de 1968, o General


Presidente Costa e Silva havia publicado o Ato Institucional nº

10 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 1.


Inquisição, poder, cultura e lugares 139

5 que consolidou o autoritarismo do Regime suprimindo, prati-


camente, todos os direitos civis. Manuel Fragoso assinalou que a
visita sensibilizaria os dirigentes brasileiros que “[...] sempre vi-
veram à sombra da popularidade universal [...]”; que o governo
brasileiro de então era o mais pró-lusitano desde sempre e por fim
que circulava nos meios militares e em alguns artigos de jornais
afirmações de interesses comuns dos dois países no Atlântico Sul.
Destacava ainda que a “demagogia demo-liberal” estava em baixa
no Brasil, o que reduzia grandemente “[...] o campo de fricção
crônico das relações luso-brasileiras dos últimos quarenta anos”.
Enfatizava também que a visita poderia amenizar as contendas
entre os dois países na Organização Internacional do Café.11 A
proposta foi aceita e Marcello Caetano visitou o Brasil entre os
dias 8 e 13 julho de 1969, passando por Brasília, Minas Gerais,
São Paulo e Rio de Janeiro. A visita foi vista como o mais im-
portante gesto diplomático entre os dois países desde o Tratado
de Amizade e Consulta firmado em 1953. Naquela conjuntura,
a presença de Marcello Caetano era uma marca de prestígio e
muito aclamada pelos dirigentes da ditadura empresarial-militar
brasileira.
Três anos depois, no início de 1972, José Manuel Fragoso
voltou a praticar com realce o seu trabalho de justapor as polí-
ticas externas de Portugal e Brasil, passou a articular a partici-
pação do Presidente do Conselho de Ministros e do Presidente
da República, Marcello Caetano e Américo Thomaz respectiva-
mente, nas comemorações dos 150 anos de independência do
Brasil.12 As cartas ao longo do período entre fevereiro a agosto
expõem um planejamento de uma bem detalhada agenda de visita

11 Ibid. nº 3.
12 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 18.
140 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

que tratava desde horários, aos trajes, alojamentos e protocolos.13


A visita ocorreu entre os dias 6 e 8 setembro de 1972 e teve o
seu ponto alto a transferência dos restos mortais de D. Pedro I
(Pedro IV de Portugal) do Mausoléu dos Bragança da igreja de
São Vicente de Fora (Lisboa) para Monumento do Ipiranga em
São Paulo. Em mais este momento, Marcello Caetano se via al-
tamente prestigiado pela elite dirigente do Brasil de então.14 É
verdade que, não obstante o sucesso das visitas organizadas por
José Manuel Fragoso e do nível de identidade ideológica entre os
dois governos que tinham em comum o autoritarismo, anti-libe-
ralismo, anti-comunismo, enfim o caráter ditatorial, a ponto de se
ponderar a promoção de cooperações entre o Instituto de Altos
Estudos de Defesa Nacional de Portugal e a Escola Superior de
Guerra do Brasil, o que foi aludido em mensagem de 24 de agos-
to de 197215 ou ainda de empresários articulados com o núcleo
de poder da ditadura empresarial-militar brasileira, como Olavo
Setúbal do Banco Itaú, no dia 3 de abril de 1974 remover anúncios
e publicidades de órgãos de imprensa que externassem críticas ao
governo Português,16 as estratégias das diplomacias dos dois paí-
ses permaneceram divergentes. Apesar dos esforços do Dr. José
Manuel Fragoso, a agenda diplomática entre Portugal e Brasil não
foi alterada na sua essência.
Quando ocorreu a Revolução dos Cravos em Portugal, o
Brasil já estava sob a presidência do general Ernesto Beckmann
Geisel que assumiu o poder em 15 de março de 1974, as diretrizes
da política externa brasileira adquiririam uma improvável con-

13 Ibid. AMC,
14 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 19. Anexo 2.
15 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 22.
16 Ibid. nº 25.
Inquisição, poder, cultura e lugares 141

duta se comparada aos governos anteriores do ciclo ditatorial: foi


assumido o “pragmatismo responsável e ecumênico”. O mesmo
governo que deu asilo político a Marcello Caetano foi o mesmo
que reconheceu quase de imediato a independência de Angola
frente a Portugal.17
Qual seria o tipo de relação mantida entre o Marcello
Caetano e o governo que o acolheu? O teor das correspondências
para autoridades da Ditadura Empresarial-militar brasileira, o
tempo de resposta e o conteúdo da mesma, podem permitir a per-
cepção do nível de atenção e deferência dos governantes brasilei-
ros ao outrora Presidente do Conselho de Ministros de Portugal,
tão festejado e bajulado em visita oficial pouco tempo antes do
exílio. A documentação trabalhada revela que o exilado Marcello
Caetano não era destino de quase nenhuma deferência por parte
dos governantes brasileiros. O que fica em evidência nas corres-
pondências trocadas com o Ministro da Justiça, em carta desti-
nada a Armando Falcão, datada de vinte e oito de maio de 1975,
Marcello pleiteou facilidades para os portugueses emigrados se
instalarem no Brasil.

Senhor Ministro: (Dr. Armamor Falcão)

A afabilidade do seu acolhimento anima-me a dirigir-me a


V. Exc. Para lhe expor um problema que todos os dias me
preocupa.

Trata-se da concessão da carteira nº 19 aos portugueses que


afluem agora ao Brasil.

17 Com presença portuguesa desde o século XV, o território ultramarino de


Angola após mais de uma década de lutas anticoloniais galgou sua inde-
pendência frente a Portugal em 11 de novembro de 1975.
142 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Como decerto V. Exc. Sabe o regime comunista instaurado


de fato já há meses em Portugal tem procedido metódi-
ca e cientificamente a repressão da burguesia: expulsando
os apelidados de fascistas dos lugares onde ganhavam a
vida, bloqueando-lhe as contas bancárias e suprimindo a
propriedade privada, pelo confisco de empresas, o aniqui-
lamento dos valores mobiliários, a ocupação de terras e a
invasão de locais de habitação.

Aos burgueses (fica) resta uma só opção: ficar e, após uma


vida de vexames, morrer de fome, ou emigrar.

Quando ao que se passa em Angola e Moçambique tam-


bém certamente o governo brasileiro está informado. A
vida está se tornando impossível para os brancos e não
tardará que não lhes reste mais esperança de permanecer.

Calcula-se que, incluindo os que emigraram para a Áfri-


ca do sul, devem estar hoje foragidos no estrangeiro (para
cima) à roda de 200000 portugueses, na maior parte per-
tencentes ao escol intelectual, financeira, econômico e pro-
fissional do País.

Em vários dos países demandados, e especializo a França,


tem sido dados aos imigrados grandes facilidades de es-
tabelecimento para que possam imediatamente começar a
ganhar a vida.

Não sucede assim no Brasil. Aqui não tem sido dispensa-


dos nenhuns documentos ou formalidades aos portugue-
ses que pedem para se fixar como residentes e analista os
processos demora para a entrega da carteira de identidade.

E enquanto a carteira não é apresentada os empregadores


não admitem as pessoas como empregados, e não lhes pa-
gam.
Inquisição, poder, cultura e lugares 143

Constantemente testemunho as preocupação e aflições


desses portugueses, torturado pela aflição de não lhes po-
der valer.

Por isso me permito apelar para Vª. Excª. Em nome da fra-


ternidade luso-brasileira, em nome da defesa da liberdade
contra o comunismo, em nome dos princípios cristãos de
humanidade para com seres acossados do covil da que fera
que a sua Pátria, para que se facilite ou pelo menos acelere,
o processo de regularização da permanência destes infeli-
zes exilados.18

Nesta missiva cometeu a gafe de errar o nome do Ministro,


trocando por “Amamor” Falcão.19 A resposta vaga e evasiva, onde
não se dava nenhuma garantia ao pleito apresentado só ocorreu
quatro meses depois, em 22 de setembro.20

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA GABINETE DO MINISTRO

SEPAR – 4 445/75

Brasília, DF

22 de setembro de 1 975

Segunda-feira

[carimbo de reservado]

Eminente e prezado

Professor Marcelo Caetano

Tive na devida atenção a sua carta de 28 de maio e, des-


de então, recomendei ao Departamento Federal de Justiça

18 AMC, cx 6. Exílio no Brasil, documentos políticos, nº 4


19 Ibid. nº 4.
20 Ibid. nº 5.
144 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

que procurasse das aos portugueses, pelo fato de o serem


e ainda pelas circunstâncias que os fazem, neste momento,
procurar o nosso país, tratamento compatível com a situa-
ção de emergência em que se encontram. Foi preciso pro-
curar entendimento com outros órgãos da administração
que interferem, também, na admissão e na colocação de
estrangeiros. Como, possivelmente, já seja do seu conhe-
cimento, inicia o seu trabalho hoje o que se denominou
de força tarefa, para no Rio de Janeiro, São Paulo e Santos,
coordenar e facilitar a permanência e o encaminhamento
ao trabalho dos portugueses. O visto a ser dado por ocasião
do desembarque permite o trabalho imediato, os exames
de saúde gratuitos e não será permitida a intervenção de
intermediários.

Estou na expectativa de que essas providências surtem o


efeito procurado e, no que estiver ao alcance deste Minis-
tério e no meu próprio, pode estar certo de que os portu-
gueses que vêm para esta sua segunda casa terão as facili-
dades que forem compatíveis com o mínimo necessário à
regularização de suas situações e à triagem de elementos
possivelmente indesejáveis.

Excusando-me pela demora desta resposta, subscrevo-me


com apreço e a consideração que lhe são devidos.21

O nível de influência do outrora festejado chefe do Estado


Novo Português junto aos governantes brasileiros era praticamente
nulo. Também as relações com o mundo acadêmico devem passar
pelo mesmo crivo crítico, para termos a real dimensão do reconhe-
cimento intelectual e profissional do professor em sua expatriação.
Em termos profissionais a vida de Marcello Caetano teve um
recomeço rápido no Brasil logo após a sua chegada, em primeiro

21 Ibid. nº 5.
Inquisição, poder, cultura e lugares 145

de junho de 1974, foi nomeado pelo então reitor da Universidade


particular Gama Filho, José Murta Ribeiro, como diretor do
Instituto de Direito Comparado daquela instituição. O curioso
é que o referido instituto apenas seria efetivamente criado deze-
nove dias depois, o que pode indicar um afã solidário de seto-
res conservadores da sociedade carioca ao exilado português, ou
senso de oportunidade de empresários do setor da educação, ao
recrutar para os quadros da sua instituição um professor de reco-
nhecimento internacional. Merece ênfase o fato que a instituição,
Universidade Gama Filho, não figurava entre os centros univer-
sitários de referência no Brasil de então. Além deste vínculo com
a Universidade Gama Filho – onde também entre 1974 e 1975
participou da criação do Plano de Curso de História do Direito
ao nível de Mestrado – Marcello Caetano publicou quatro livros.
Todavia, não galgou projeção em meio às principais instituições.
Por intermédio do seu amigo, Pedro Calmon,22 manteve vínculos
com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual era vi-
ce-presidente de honra desde 1972, nas fichas catalográficas do
Instituto constam 12 trabalhos com a participação de Marcello
Caetano e seis que fazem referências a ele, destes, quatro póstu-
mos. A não projeção no meio acadêmico pode ser percebida na
documentação trabalhada. Ao longo de seis anos de exílio, entre
palestras e conferências, participou apenas de doze eventos (mé-
dia de dois por ano, contudo mal distribuídos), sendo oito em
1975, portanto meses após a chegada ao Brasil, nenhum em 1976,
dois em 1977, um em 1978 e dois em 1979. Outros quatro, sem
data definida.

22 Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, nascido em Amargosa (Bahia) em 23


de dezembro de 1902 e falecido no Rio de Janeiro em 16 de junho de 1985.
146 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Outro traço que podemos destacar na documentação traba-


lhada é o contato de Marcello Caetano com a imprensa brasilei-
ra. Correspondências direcionadas a órgãos de imprensa – vale
enfatizar: uma imprensa conservadora e subserviente à Ditadura
Empresarial-militar – revela uma quixotesca defesa do Estado
Novo e de sua política no ultramar. Em 3 de julho de 1975,
Marcello enviou uma carta ao diretor do Jornal O Globo, o em-
presário Roberto Marinho,23 onde reclamou da abordagem fei-
ta pelo semanário televisivo Globo Repórter, exibido pela Rede
Globo de televisão acerca das condutas de agentes do governo
português em Moçambique no ano de 1971.

Exmo. Sr. Dr. Roberto Marinho, meu prezado amigo:

Na emissão de ontem dia 1, do “Globo Repórter”, na Tv


Globo, a propósito da independência de Moçambique, foi
afirmado que em 1971 o Governador geral da então pro-
víncia portuguesa dera instruções para o extermínio das
populações nativas sem poupar homens, mulheres e crian-
ças, instruções em cujo cumprimento teriam colaborado
tropas portuguesas e rodesianas.

Tenho a certeza de que tais instruções não existem. Primei-


ro porque elas iriam contrariar frontalmente as ordens do
Governo de Lisboa. Segundo, porque em 1971 o Governa-
dor geral de Moçambique era um ilustre engenheiro com
larga folha de serviço ao País, geralmente conhecido pela
sua integridade, pelo seu equilíbrio, pelo seu senso moral
e que as atas do Conselho de Defesa da província, a que
ele presidia, mostram constantemente empenho em evitar
quaisquer excessos na atuação dos militares.

23 AMC, cx 6. Exílio no Brasil, documentos políticos, nº 8.


Inquisição, poder, cultura e lugares 147

Tudo indica que a notícia provenha de alguma fonte em-


penhada em alimentar a onda de calúnias que hoje infeliz-
mente, no meu desgraçado País e no antigo Ultramar, não
respeita nada nem ninguém.

Com a maior consideração me subscrevo,

Atenciosamente,

Marcelo Caetano, Rio

Em respostas às suas queixas foi-lhe aberto espaço na par-


te denominada “carta dos leitores” do Jornal O Globo para que
pudesse tecer as suas considerações e ajustes de informações que
ponderasse necessários.24

Rio, 10 de Maio 1975

Snr. Diretor:

Ao ler hoje O Globo encontro o anuncio de uma publica-


ção onde se fala do “meu antigo entusiasmo pelos métodos
nazistas de Adolfo Hitler”.

Como nunca, expressa ou implicitamente esses métodos,


só com textos falsificados, truncados ou deturpados essa
pseudo-demonstração pode ser feita.

Pelo contrário há numerosas passagens de escritos meus a


condená-los. E lembro, em especial, por saber que existe
em várias bibliotecas jurídicas brasileiras, o que escrevi nas
Lições de Direito Penal publicadas em 1939.

Fica-lhe muito grato pela publicação desta carta,

24 AMC, cx 6. Exílio no Brasil, documentos políticos, nº 8, Anexo 1.


148 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Oportunidade que considero inócua, posto que, o alcance


nacional de um programa televisivo era infinitamente maior que
a do público leitor do espaço: “carta dos leitores”. Com conteúdo
semelhante encontramos na carta destinada ao Diretor do jornal
O Tempo,25 datada de 29 de maio de 1979, onde o Dr. Marcello
rebatia indignado a afirmação de que protegera o general Spínola
antes do 25 de abril.

Chegou às minhas mãos o numero do jornal Tempo de 24


do corrente em que, sob o título de “Caetano protegia Spí-
nola”, são publicadas declarações atribuídas a um recém-
-naturalizado cidadão brasileiro.

As relações que mantive com o general Spínola antes do


25 de abril e nesse dia e a minha atitude em face do livro
“Portugal e o futuro” já foram mais de uma vez esclarecidas
por mim.

A minha palavra chega para as pessoas de bem. As outras


não me interessa.

Agradecendo a publicação desta carta subscrevo-me.

P.S. Já agora desejaria frisar que, resolvido a não abrir nem


alimentar polemicas na imprensa, não facultei a nenhum
jornal as notas lançadas à margem do ultimo livro do ge-
neral Spínola e comunicados a algum amigo em Portugal
para esclarecimento deles. A publicação dessas notas na
íntegra por um semanário do Pará foi feita sem prévio es-
clarecimento meu e, portanto, sem minha autorização

Outro episódio que corrobora com a imagem de solidão e


isolamento no exílio é quando o católico conservador Marcello
Caetano, também teve entraves com setores da Igreja, não com

25 AMC, cx 6. Exílio no Brasil, documentos políticos, nº 12.


Inquisição, poder, cultura e lugares 149

setores progressistas, da Teologia da Libertação ou próximo à es-


querda, não, mas curiosamente o atrito foi com o Arcebispo o Rio
de Janeiro, o reconhecidamente conservador Dom Eugênio Salles.
Em carta datada de dezenove de julho de 1975.26 Caetano retru-
cou o escrito publicado pelo Prelado no dia anterior no Jornal O
Globo, no qual o líder católico rotulou o Estado Novo português
de fascista.
Em seu texto de cinco páginas, o ex-presidente do Conselho
aponta de forma velada para a conjuntura política repressiva do
Brasil e o silêncio de autoridades eclesiásticas em relação a tal quadro.
A documentação relativa ao Brasil contida no Arquivo
Marcello Caetano revela um montante considerável de tributos e
convites feitos ao doutor Marcello para múltiplas e variadas ho-
menagens, todas do período em que era Presidente do Conselho
de Ministros de Portugal, o leque é amplo, desde instituições
da comunidade lusa instaladas por todo o Brasil, Câmaras de
Vereadores, turmas de formandos de faculdades de direito país
a fora (a rigor de Belém do Pará e do interior do Rio Grande do
Sul). Para todas foram providenciados representantes por parte
do corpo diplomático português no Brasil, pois era óbvia a im-
possibilidade do seu deslocamento Atlântico a fora para parti-
cipar destas amenidades sociais. Todavia, quando se torna um
exilado em terras brasileiras tudo cessa, não ocorrem mais convi-
tes ou homenagens do teor das anteriores. As homenagens serão
retomadas apenas após o dia 26 de outubro de 1980, data do seu
falecimento. E apenas três constam na documentação do Arquivo
Marcello Caetano. Homenagens da casa de Portugal, da Câmara
Municipal da pequena Poá no interior do Estado de São Paulo
– presidente da Câmara era o português José Lourenço, que no

26 AMC, cx 6. Exílio no Brasil, documentos políticos, nº 9.


150 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Brasil teve atuação como líder conservador em partidos de direi-


ta, líder do “Centrão” na época do Governo Sarney – e do Orfeão
Português, respectivamente nos dias 28, 29 e 30 de outubro. Isto
revela um melancólico fim.
A documentação analisada expõe que o exílio do Dr.
Marcello Caetano não foi dourado sob o calor dos trópicos, bem
como, revela aspectos das especificidades e contradições de um
Brasil sob a Ditadura Empresarial-militar.
O sol dos trópicos ao lançar-se sobre o Dr. Marcello Caetano,
projetava a sombra amarga do homem, intelectual e político que
outrora foi em Portugal.

Referências
CABRERA, Ana. Marcelo Caetano: Poder e imprensa. Lisboa –
Portugal: Livros Horizonte, 2006.
MARTINHO, Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biogra-
fia 1906-1980. Lisboa, Objectiva, 2016.
MENESES, Filipe Ribeiro. Salazar – biografia definitiva. São Pau-
lo: Leya, 2011.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Marcello Caetano – confidências
no exílio. 9ª Ed. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1985.
SOARES, Manuela Goucha. Marcello Caetano – o homem que
perdeu a fé. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
SOUZA, Belarmino de Jesus. Sonhos neocoloniais brasileiros no
ocaso colonial português: Franco Nogueira, diplomacia bra-
sileira e as questões do ultramar. IN: Perspectivas – Portu-
guese Jornal of Political Science and International Relations.
University of Minho, Braga and University of Évora, Évora,
Portugal, 2013, p.p. 131-140.
Inquisição, poder, cultura e lugares 151

______. Ação Diplomática sob Regimes Autoritários: aspectos


das relações Portugal-Brasil (1969-1974). In: PICCOLO, Mô-
nica; SILVA, Fábio Henrique Monteiro. (Org.). Agentes, agên-
cias e imprensa na construção e dinâmica dos regimes ditato-
riais contemporâneos. 1ed. São Luís, Maranhão: EDUEMA,
2019, v. 1, p. 179-204.
TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. Bauru, São
Paulo: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PO: Institu-
to Camões, 2000.
6. Métodos e fontes para a
história da alimentação no Brasil
no século XIX
Joana Monteleone

Como costumava dizer meu professor Leslie White, um


macaco não é capaz de apreciar a diferença entre água
benta e água destilada pois não há diferença, quimica-
mente falando [...]. Essa ordenação (e desordenação) do
mundo em termos simbólicos, essa cultura é a capacidade
singular da espécie humana.
Marshall Salins (1997).

O bibliófilo José Mindlin costumava dizer que os amantes e


colecionadores de livros procuravam os volumes com paixão, mas
que os livros também achavam seus donos e quem os apreciava
(MINDLIN, 1997, p. 15 a 25). Este caso em relação aos inúme-
ros volumes de livros de receitas antigos que foram consultados
para essa pesquisa fazem parte do meu acervo pessoal, com 278
volumes, doados por diferentes pessoas ao longo dos anos e, tam-
bém, adquiridos em sebos e viagens. Livros antigos de cozinha
são objetos raros que se escondem nas estantes dedicadas a uma
espécie de “literatura técnica para mulheres”, ou nas prateleiras de
livros de etiqueta, em manuais para criação de filhos, ou mesmo
na seção de livros de viagens ou manuais de saúde.
154 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Como eram livros de cozinha para mulheres, não exis-


tia grande preocupação em guardá-los e a maneira como eram
manuseados na cozinha, contribuiu para que diversas edições se
estragassem – muitos eram, inclusive, guardados em lugares su-
jeitos à gordura, às farinhas e açúcares e ao manuseio constante.
Na época, o papel desses livros de receitas era o mesmo dos ou-
tros livros técnicos: ensinar como se fazia algo, um doce ou um
prato especial. Isso causava mais estragos aos livros, fascículos e
folhetos por conta do manuseio na cozinha. Também eram con-
siderados uma espécie de livros menores, menos importantes por
serem dirigidos às mulheres e às donas de casa. Desta forma, os
livros de receitas editados antes de 1930 são extremamente raros.
Por muito tempo, pensou-se que seriam apenas três os livros
de receitas editados no Brasil do século XIX. O primeiro seria “O
cozinheiro imperial”, de autoria desconhecida, editado em 1839-
1840; o segundo, “O cozinheiro nacional”, editado entre 1874 e
1878; e o último, “O doceiro nacional”, de 1883. Os dois últimos
têm autoria desconhecidas e não são assinados. Sacramento Blake,
em seu “Diccionario biobliographico brasileiro”, afirma que são
escritos por Paulo Salles, jornalista contratado da editora Garnier
(BLAKE, 1883-1900, p. 366).
Claramente, três dos muitos livros de receita que habitam
minha estante formavam um conjunto coeso de fontes essenciais
para a História da Alimentação no Brasil, mais essencialmente
para o século XIX. E, foi a partir deles que esta pequena análise
começou a se a esboçar, pensando em diferentes formas de abor-
dá-los como historiadora, pensando também sobre sua impor-
tância para uma área que ainda está em formação no Brasil, a da
História da Alimentação.
Inquisição, poder, cultura e lugares 155

O estudo dos livros de receita implica em diferentes formas


de análise. A primeira, e mais evidente, é a análise das receitas
propriamente ditas: se é um livro específico de doces ou licores,
como as receitas estão divididas, quantas receitas de salgados,
quantas de doces, o nível de dificuldade das receitas, se as recei-
tas vieram de outros livros publicados antes ou se parecem ter
sido testadas pelos autores ou autoras. Mas a análise desses livros
também implica em se descobrir outras informações sobre os vo-
lumes: qual editora publicou o livro, qual o papel da editora, em
que mercado ela se inseria e como distribuía os livros. A maneira
como os autores e autoras se inserem no catálogo da editora tam-
bém é fundamental. Se fosse um jornalista ou uma dona de casa, o
livro seria vendido em livrarias, no segundo caso, era uma edição
caseira e/ou seria comercializado apenas em eventos de caridade.
Esse circuito de leitura e inserção do livro de receitas é fundamen-
tal para se entender como e por quem ele era lido.
Os três livros formam também um conjunto que tem aju-
dado os historiadores interessados em alimentação a se debruçar
sobre o período. Já foram objetos de estudo e de algumas reedi-
ções, atualizadas ou não.1 Mas a noção de que seriam poucos li-
vros editados no Brasil do século XIX está mudando com várias
pesquisas de estudiosos de diferentes áreas, já que a História da
Alimentação vem ganhando novo fôlego no país, com a abertura
de faculdades especializadas e novos cursos.2 Diferentes pesquisas
mostram que existiram vários outros livros de receitas que apare-
cem em anúncios de jornais ou acervos individuais.

1 Ver: O cozinheiro imperial. Adaptação: Vera Sandroni; prefácio de Antô-


nio Houaiss. São Paulo: Best Seller, 1996
2 Ver a graduação e a pós-graduação dos cursos do Senac e da Anhembi-
-Morumbi e a abertura de cursos de gastronomia na Universidade Federal
do Ceará e a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
156 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Entre os novos livros encontrados recentemente pelos pes-


quisadores estão: o “Doceira Brasileira”, de Constança Oliva de
Lima publicado em julho de 1850;3 o “Doceira Doméstica”, de
Ana Correa, pela editora Ed. J.G. de Azevedo, editado em 1875;
“A dona de casa ou A doceira nacional”, de Cecília Pires Ferreira
da Costa e Almeida, editado pela Livraria Antunes, descrita em
alguns anúncios da década de 1880 nos jornais; o “Dicionário do
doceiro brasileiro”, do Dr. Antonio José de Souza Rego, de 1892;
“Confeiteiro popular”, de Francisco Queiroz, de 1911;4 o “Doceira
Paulista”, de Honoria C. Martins de Mello, publicado pela Editora
Pocai, em 1916 e o “Variadíssimas receitas escolhidas de cosinha,
doces, bolos, licores, etc, etc.”, Lucia Queiroz, editado pela Casa
Genoud, de Campinas também em 1916.5 Abaixo, um pequeno
quadro com os livros.

3 Ver o primeiro anúncio do livro que saiu no Jornal do Comércio no sá-


bado, 20 de julho de 1850. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
aspx?bib=364568_04&pesq=doceira&pasta=ano%20185.
4 Os livros Doceira Brasileira, de Constança Oliva de Lima, o Doceira
Doméstica, de Ana Correa; A doceira nacional; o Dicionário do doceiro
brasileiro, de Dr. Antonio José de Souza Rego e o Confeiteiro popular, de
Francisco Queiroz foram encontrados na pesquisa para o TCC de Larissa
Alves de Lima intitulada A Arte de Fazer toda qualidade de doces: mercado
editorial de confeitaria do século XIX. (Rio de Janeiro, 1850 – 1938).
5 Os dois livros escritos por mulheres de Campinas, Doceira Paulista, de Ho-
noria C. Martins de Mello e Variadíssimas receitas escolhidas de cosinha, do-
ces, bolos, licores, etc, etc., Lucia Queiroz estão arrolados na tese doutorado
de Elaine Morelli, Os receituários manuscritos e as práticas alimentares em
Campinas (1860-1940), defendida em 2014 junto ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
Inquisição, poder, cultura e lugares 157

Lista de livros de receitas publicados no Brasil


entre 1850 e 1930
Local de
Data Título Autoria Editora
publicação
Doceira Constança Rio de
1850 Laemmert
Brasileira Oliva de Lima Janeiro
Doceira Ed. J.G. de Rio de
1875 Ana Correa
Doméstica Azevedo Janeiro
A dona de Cecília Pires
c. casa ou Ferreira da Livraria Rio de
1880 A doceira Costa e Antunes Janeiro
nacional Almeida
O doceito Anônimo Rio de
1883 Garnier
nacional (Paulo Salles) Janeiro
Dicionário Dr. Antonio
Ed. J.G. de Rio de
1882 do doceiro José de Souza
Azevedo Janeiro
brasileiro Rego
Confeiteiro Francisco Francisco Rio de
1911
popular Queiroz Alves Janeiro
Honoria C.
Doceira Elvino
1916 Martins de São Paulo
Paulista Pocai
Mello
Variadíssi-
mas receitas
escolhidas
1916 de cosinha, Lucia Queiroz Genauod Campinas
doces, bo-
los, licores,
etc, etc

Esse conjunto de livros é impressionante e abre muitas pos-


sibilidades de análise – desde pesquisadores que podem ir pro-
curar mais livros nas suas respectivas regiões até análises mais
apuradas sobre os que foram encontrados. A tese de doutorado
de Eliane Morelli (2014), que encontrou os livros nos acervos das
senhoras campineiras. A ideia aqui é entender a importância dos
livros de receita publicados no período e não analisá-los, caso a
caso, já que a descoberta de alguns nos jornais ainda é recente e
precisa de mais pesquisa.
158 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Capa interna do Dicionário do Doceiro Brazileiro de 1892


Inquisição, poder, cultura e lugares 159

Página de rosto em que aprece a participação de Constança Oliva de


Lima, edição de 1887.
160 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Os livros de receitas formam uma das mais importantes fon-


tes para os historiadores da alimentação, mas estão longe de ser
a única fonte desse novo campo do saber. A história da alimen-
tação – e por analogia, dos hábitos à mesa e das maneiras de pre-
parar e consumir os alimentos – é terreno fértil para discussões
que envolvem diferentes fontes documentais e campos do saber. É
preciso cruzar informações que veem dos mais diversos lugares,
como relatos, memórias, diários, romances, poesias, notícias de
jornais, livros de etiqueta. Por isso que a pesquisa em história da
alimentação é uma pesquisa multidisciplinar por excelência. Para
“encontrar as pistas” que revelam o mundo da alimentação, as re-
ferências à comida e aos hábitos à mesa, numa clara referência
ao paradigma indiciário de Carlo Ginsburg,6 é preciso ter à mão
uma vasta gama de material no qual os costumes e o cotidiano são
esmiuçados. Por isso os livros de receitas são importantes, mas
precisam ser analisados ao lado de outras fontes como jornais, re-
vistas, relatórios médicos ou sanitários, listas de compras ou livros
de contas, balanças comerciais ou de importação/exportação.
A história da alimentação, ainda que seja novidade na his-
toriografia brasileira e atualmente esteja em rápido crescimento, é
fundamental dentro do campo de estudos da história: “Esta nova
história já não é mais ‘pequena’; ao contrário, pretende abarcar to-
dos os aspectos da ação e do pensamento humanos. Ela tampouco
é – como parecera a princípio – uma versão ‘diferente’, ‘alternativa’,
da história tradicional: os historiadores da alimentação afirmaram,
com humildade, mas de forma resoluta, o papel central de seu ob-
jeto de pesquisa, sua posição estratégica no sistema de vida e de
valores das diversas sociedades, a possibilidade, portanto de abar-

6 Veja o clássico artigo “Raízes de paradigma indiciário”, de Carlo Ginzburg,


presente no livro Mitos, emblemas e sinais (2007, p. 143-180).
Inquisição, poder, cultura e lugares 161

car, de um só golpe, todas as variáveis possíveis” (FLANDRIN, e


MONTANARI, 1998, p. 22). E, portanto, a metodologia do traba-
lho se insere dentro da tradição da história da alimentação, da an-
tropologia e também da história da cultura. Mas, pegando empres-
tada uma imagem de Fernand Braudel, em “O Tempo do Mundo”,
podemos dizer que o estudo da história seria um rio sem margens,
sem começo nem fim (BRAUDEL 1996, p. 6). Braudel, que era um
dos mais entusiasmados historiadores da alimentação, abriu ele
mesmo vários rios ou caminhos de investigação.
Para uma história da alimentação o essencial é saber que é
preciso navegar nestes rios que, frequentemente, se cruzam e se
interpenetram, mesclar diferentes áreas do saber para recolher os
fragmentos dos hábitos do passado, já que o cotidiano é fugidio e,
muitas vezes, escapa pelos caminhos tortuosos da memória:

...a história já não se ocupa das façanhas dos grandes ho-


mens, especialmente quando se trata das estruturas do co-
tidiano, às quais pertencem os hábitos alimentares dos po-
vos. No interior dessas estruturas, os mais insignificantes
acontecimentos da vida cotidiana têm algo de necessário
e um sentido muito preciso. Embora deem a impressão de
serem estáticos em relação a outros fenômenos históricos
– acontecimentos ou ciclos conjunturais – eles evoluem
num tempo muito mais lento, o longo tempo das estruturas
(BRAUDEL, 1996, p. 22).

Ainda citando Braudel: “Deixemos de lado, desde sempre,


a ideia de que o cotidiano não tem história, de que tudo, desde
sempre, foi igual ao que conhecemos atualmente” (BRAULDEL,
1996, p. 22).
Pensar fontes para a história da alimentação é se debruçar
sobre os diferentes temas que permeiam esse campo do saber, e
162 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

os livros de receita se inserem no meio dessas fontes. Braudel vai


conclamar os historiadores a analisarem diferentes áreas do saber
humano, a voltarem-se para o cotidiano, a tirarem de lá os objetos
de estudo. Assim, ao se falar de livros de receitas, por muito tempo
vistos como objetos menores ou mesmo descartáveis, refere-se de
um dos mais essenciais documentos sobre a existência humana:
a maneira como comemos, a maneira como cozinhamos, nossos
hábitos à mesa. Pensamos, afinal sobre o que nos faz humanos:
a cultura7. Marx dizia: “Fome é fome, mas a fome que se sacia
com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa
da fome que devora carne crua com a mão, unha e dente” (2011,
p. 58). A cultura é, portanto, a chave de análise para os livros de
receitas que veremos a seguir. Dessa forma, a cultura é essencial
para nos debruçarmos sobre os livros de receitas brasileiros da
Belle Époque, mas também para todos os livros de receitas que
vieram antes ou depois.
Livros de receita podem ser objetos de pesquisa maçantes,
completamente descontextualizados, se não forem bem trabalha-
dos, com ingredientes e técnicas do passado se amontoando numa
sinfonia estranha. Algumas perguntas me nortearam na análise
dos livros de receitas que tinha em mãos. Como pensar livros
técnicos na virada do século XIX para o XX? O que pensavam os
editores que publicaram esses trabalhos? Como pensar livros para
mulheres, algumas vezes escritos por mulheres? As altas tiragens
indicavam que os livros foram um sucesso, mas como isso foi vis-
to na época? De que maneira os livros espelhavam a necessidade
da sociedade de ver suas receitas escritas e publicadas? Essas eram
algumas das muitas questões interessantes referentes aos livros de
receita que eu possuía na minha biblioteca.

7 Aqui a cultura é entendida dentro da chave de análise de Massimo Monta-


nari em seu livro Comida e cultura (São Paulo: Senac, 2008, 2a edição).
Inquisição, poder, cultura e lugares 163

Raras vezes conseguimos reproduzir técnicas ou mesmo re-


ceitas – e quando se alcança o resultado nos parece esquisito, um
sabor fora do seu tempo. Imagine fazer nos dias de hoje uma re-
ceita com 24 ovos! (TAVARES, 1999). Ou um manjar branco com
peito de frango!8 Para usá-los como fontes de pesquisa seria preci-
so ir além do conteúdo e pensar no contexto de produção do livro.

Capa do livro Livro de Cozinha da Infanta d. Maria9:


influência árabe

8 Ver: LIVRO de cozinha da infanta d. Maria. Lisboa: Casa da Moeda, 1987,


p. 67.
9 Sem autor. Livro de cozinha da infanta d. Maria. Lisboa: Casa da moeda/
Imprensa nacional, 1966. Acervo pessoal.
164 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Por muito tempo, não entendia como fazer isso. Olhava os


livros de receitas de várias formas, virando suas páginas com avi-
dez sem encontrar uma chave de análise. Não queria fazer uma
contabilidade de receitas, tantas receitas de doces ou tantas de sal-
gados, tantas de cozinha francesa, outras tantas de cozinha brasi-
leira – ainda que achasse que isso fosse importante em algum mo-
mento, em alguma outra pesquisa. Eu queria entender o contexto
de produção dos livros, sua importância social, sua influência na
cozinha e na formação do gosto. Mais uma vez, as ideias de José
Mindlin voltaram a me rondar. Quando ele fala do prazer sen-
sitivo dos livros, sem escrever exatamente isso, Mindlin aponta
para os significados culturais do livro. “Além do conteúdo, edição,
encadernação, diagramação, tipografia, ilustração, ou papel, o li-
vro exerce sobre mim uma tração física. Não me satisfaz ver um
livro numa vitrine, sem poder pegá-lo” (MIDLIN, 1997, p. 22),
ele afirmou. Analisar esses livros em conjunto com tudo o que faz
de um livro um livro, é entender como era o mercado de livros no
final do século XIX. Além disso, esse conjunto de significados que
vão além apenas do conteúdo: a capa, a ilustração, a tipografia,
o papel. E também a maneira como o livro se inseria no circuito
cultural da época em que foi editado.
O historiador norte-americano Robert Darnton, que se de-
bruçou sobre o mercado de livros no século XVIII, escreve sobre
a história dos livros dentro de uma tradição historiográfica de es-
tudos ligados à história social e cultural. “[...] sua finalidade [a da
história do livro] é compreender como as ideias foram transmi-
tidas sob forma impressa e como a exposição à palavra impressa
afetou o pensamento e a conduta da humanidade nos últimos 500
anos” (DARNTON, 2009, p. 190). Nada mais verdadeiro também
para os livros de receitas – pensar que são ideias que traduzem
Inquisição, poder, cultura e lugares 165

determinado tempo histórico, modificando comportamentos,


marcando sociedades e maneiras de existir.
As histórias que são contadas em forma de livro reafirmam
que toda cultura, toda tradição, toda identidade é um produto da
história, dinâmico e instável, gerado por complexos fenômenos
de troca, de cruzamento e de contaminação. Os modelos e as prá-
ticas alimentares são o ponto de encontro entre culturas diversas,
frutos da circulação de homens, mercadorias, técnicas, gostos de
um lado para o outro do mundo. Digamos mais: as culturas ali-
mentares (e as culturas em geral) são mais ricas e interessantes
quanto mais os encontros e as trocas tenham sido vivazes e fre-
quentes como nas fronteiras”(MONTANARI, 2011, p. 189).
Os livros de confeiteira citados aqui partem de uma época
em que o mercado editorial nacional estava bastante ativo, com a
publicação de inúmeros autores nacionais, traduções e livros téc-
nicos. Eram os anos antes da disseminação do rádio como cultura
de massa (SEVCENKO, 1998), os anos do fim do império e do
começo da República em que a população do país e, em especial,
a população do Rio de Janeiro estava mais alfabetizada.
O mercado se expandia visivelmente (EL FAR, 2002). Dessa
maneira, a primeira década do século XX foi um momento especial
para a edição de impressos periódicos no Brasil – e o Rio de Janeiro
era uma cidade que atraía esse tipo de empreendimento. Era a ca-
pital da nova república – havia sido a corte – e, portanto, o local
da política e, consequentemente, da sátira política. A cidade ainda
possuía o maior parque gráfico do país, o maior número de pessoas
alfabetizadas, de editoras, de autores, de jornalistas, de ilustradores
e fotógrafos e também de leitores do país (BESSONE, 2014).
Ao falar exatamente sobre a expansão do mercado editorial
no período, Tânia Bessone Ferreira diz que “o número de leitores
166 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

em potencial na cidade do Rio de Janeiro era maior que no con-


junto das cidades brasileiras da época”.10 O Rio de Janeiro, na épo-
ca, possuía então “[...] livrarias, muitas bibliotecas públicas, colé-
gios, alguns cursos superiores, publicações variadas como jornais
e almanaques e um razoável número de bibliotecas particulares.”11
A grande pergunta da pesquisadora diz respeito aos tipos de “Best
sellers” que conquistaram as leituras cariocas domésticas e oito-
centistas, atentando-nos para o fato de que na transição do século
XIX para o XX, toda espécie de literatura exposta nas livrarias
possuía consumidores, “homens e mulheres, que eram atraídos
por este objeto de consumo cada vez mais acessível”.12
Era um momento de efervescência política e editorial do
país. O significativo aumento da edição dos livros técnicos refle-
tem as tensões, conflitos e mudanças do período. Por um lado,
tínhamos as prementes necessidades e desejos de modernização
do país, traduzidos nos discursos de educação da população e das
instituições políticas, econômicas e sociais. De outro, estava uma
população pobre recém-saída da escravidão, aliada a uma enorme
massa de imigrantes europeus pobres, que constituíam um caldo
de cultura popular sempre em ebulição.
Os livros de confeitaria falavam para um público novo, as
mulheres alfabetizadas e, ainda que no limite podiam ser usados
para treinarem técnicos de confeitaria para os novos estabeleci-
mentos comerciais ligados à alimentação que surgiam nesse pe-
ríodo e que precisavam de uma mão de obra especializada.13 A

10 http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R2053-1.
pdf. p. 01.
11 Idem, p. 01
12 Idem, p. 03.
13 A crescente urbanização das cidades é um dado importante para a análise
tanto do aumento da alfabetização como no número de publicações. Ver:
Inquisição, poder, cultura e lugares 167

inspiração para a publicação dos livros vinha de fora, em especial


da França e da Inglaterra, que tinham um mercado de livros de re-
ceitas para as donas de casa já consolidado há mais de um século.
Mas esse também foi o momento de construção da ideia de
que as meninas tinham que se educar, frequentando a escola. A
educação feminina constituía-se de uma série de disciplinas espe-
ciais: a religião, o francês, o desenho, o piano e arte de fazer doces
(PAIVA, 1973). Essa última uma característica marcadamente de
influência portuguesa, que não se percebe em outros países.
Temos que levar em conta que, naquele período, estavam
chegando ao mercado brasileiro novos maquinários e novas téc-
nicas de impressão, que transformariam o mundo gráfico e edi-
torial, tendo como consequência o investimento financeiro dos
proprietários de gráficas para que fosse possível acompanhar o
avanço tecnológico e permanecessem no ramo. Os livros de con-
feitaria muitas vezes mostram esse avanço em suas impressões:
capas coloridas (separamos uma em vermelho), com impressão
em relevo, desenhos de utensílios úteis para a cozinheira, clichês
espalhados pelo livro.

COSTA, Carlos. A revista no século XIX. A história da formação das pu-


blicações, do leitor e da identidade do brasileiro (São Paulo: Alameda Edi-
torial, 2012) e DAECTO, Marisa Midori. O império dos livros: instituições
e práticas de leitura na São Paulo Oitocentista. (São Paulo: Edusp, 2011).
168 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Capa do Doceiro Nacional, com clichê de sobremesas da Belle Époque.14

14 Sem autor. Doceiro nacional ou a arte de fazer toda a qualidade de doces.


Rio de Janeiro: Garnier, 1895, 4 edição.
Inquisição, poder, cultura e lugares 169

Verbete com morangos, uma fruta exótica ao Brasil, do Doceiro


Nacional.15

Desta forma, pode-se perceber que os manuais de confei-


taria se multiplicaram nesse período e constituíam um corpo de
publicação razoavelmente consolidado. O escritor Machado de
Assis, sempre atento ao que acontecia ao seu redor, notou esse
aumento e ironicamente usou o fato em uma de suas crônicas,

15 Idem.
170 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

nas “Notas Semanais” de 2 de junho de 1878. Naquela época já


haviam sido publicados, pela pesquisa feita até agora, os livros
“Doceira Brasileira”, de Constança Oliva de Lima, publicado
pela Laemmert em julho de 1850 (e várias vezes reeditado) e o
“Doceira Doméstica”, de Ana Correa, pela editora Ed. J.G. de
Azevedo, editado em 1875. Provavelmente o escritor falava de
ambos ou de outro que ainda desconhecemos. Diz ele:

No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam


os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de
um manual de confeitaria só pode parecer vulgar a espíri-
tos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente
significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma
restauração, é a restauração do nosso princípio social. O
princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce
de côco e a compota de marmelos. Não foi outra também
a origem da nossa indústria doméstica. No século passa-
do e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o
minuete, ou iam ver correr argolinhas; mas todos os dias
faziam renda e todas as semanas faziam doce, de modo que
o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de
Estado de Sã, lançaram os alicerces da sociedade carioca.16
Ora qual é nossa situação há dez ou quinze anos? Há dez ou
quinze anos, penetrou nos nossos hábitos um corpo estra-
nho, o bife cru. Esse anglicismo só tolerável a uns sujeitos,
como os rapazes de Oxford, que alternam os estudos com
regatas, e travam do remo com as mesmas mãos que fo-
lheiam Hesíodo, esse anglicismo, além de não quadrar ao
estômago fluminense, repugna aos nossos costumes e ori-
gens. Não obstante, o bife cru entrou nos hábitos da terra;
bife cru for ever, tal é a divisa da recente geração.

16 ASSIS, Machado. Notas Semanais de 2 de junho de 1878. Ver link: http://


www.cronicas.uerj.br/home/cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1878/
02jun78.htm
Inquisição, poder, cultura e lugares 171

Embalde alguns fiéis cidadãos vão ao Castelões, às quatro


horas da tarde, absorver duas ou três mães-bentas, exce-
lente processo para abrir a vontade de jantar. Embalde um
partido eclético se lança ao uso do pastel de carne com açú-
car, conciliando assim, num só bocado, o jantar e a sobre-
mesa. Embalde as confeitarias continuam a comemorar a
morte de Jesus, na quinta-feira santa, armando-se das mais
vermelhas sanefas, encarapitando os mais belos cartuchos
de bombons, que, em algum tempo, se chamaram confei-
tos, recebendo enfim um povo ávido de misturar balas de
chocolate com as lágrimas de Sião. Eram, e são esforços ge-
nerosos; mas a corrupção dos tempos não permite fazê-los
gerar alguma coisa útil. A grande maioria acode às urgên-
cias do estômago com o sanduíche, não menos peregrina
que o bife cru, e não menos sórdido; ou com o croquete,
estrangeirice do mesmo quilate; e a decadência e a morte
do doce parecem inevitáveis.
Nesta grave situação, anuncia-se o novo manual de confei-
taria. Direi desde já que o merecimento do autor é inferior
ao que se pensa. Sem dúvida, há algum mérito nesse cava-
lheiro, que vem desbancar certo sábio do século anterior.
Dizia o sábio que se tivesse a mão cheia de verdades, nunca
mais a abriria; o confeiteiro tem as mãos cheias de receitas,
e abre-as, espalma-as, sacode-as aos quatro ventos do céu,
como dizendo aos fregueses: – Habilitai-vos a fazer por
vossas mãos a compota de araçá, em vez de a vir comprar à
minha confeitaria. Vendo-vos este livro, para vos não ven-
der mais coisa nenhuma; ou, se me permitis uma metáfora
ao sabor do moderno gongorismo, abro-vos as portas dos
meus tachos. Concorrentemente, auxilio o desenvolvimen-
to das liberdades públicas, porquanto alguns vos dirão que
tendes o direito de jejum e o direito de indigestão: é apenas
uma verdade abstrata. Eu congrego ambos os direitos sob
172 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

a forma do bom- bocado: é uma verdade concreta. Abs-


tende-vos ou abarrotai-vos; está ao alcance da vossa mão.17

A citação é longa, mas dá a ideia precisa da recepção dos ma-


nuais de confeitaria do período. Podemos perceber a importância
do doce para a formação na nacionalidade brasileira, assim como a
arte de fazer esses mesmos doces pelas mulheres de elite da socieda-
de carioca. Machado também coloca a entrada de estrangeirismos
na cozinha brasileira: o bife cru, influência inglesa, os coquetes, os
sanduíches e, pecado supremo, um eventual pastel doce de carne,
que substituiria uma refeição completa. Na história da alimentação
um dos maiores tabus está justamente na inversão da ordem dos
pratos à mesa. O lugar do doce era sempre ao final da refeição.
O sociólogo Gilberto Freyre lança seu livro “Açúcar” em
1939. Freyre destaca tanto o papel feminino na confecção dos do-
ces como a importância do açúcar para a identidade nacional. A
grande importância do livro reside do destaque que o sociólogo
pernambucano dá ao feitio e ao consumo dos doces, vistos no âm-
bito da sociabilidade feminina. Em seu prefácio à 5ª edição, Maria
Lecticia Monteiro Cavalcante, autora de “História dos sabores
pernambucanos” (2013), ressalta a importância desempenhada
pelas mulheres na arte de fazer doces e receitas regionais que “se
mantiveram em segredo como tesouros preciosos”, muitas vezes
guardados em famílias.
Nessa primeira tentativa de analisar novos livros receitas pu-
blicados durante a Belle époque pode-se deparar com elementos
fundamentais de análise: a importância das mulheres no mercado
editorial de livros técnicos domésticos e o açúcar como elemento
fundador de certa identidade nacional e regional. Muitas perguntas

17 Idem.
Inquisição, poder, cultura e lugares 173

ainda estão sem resposta numa pesquisa que está começando Leila
Angranti descreve, em “Os doces na culinária luso-brasileira: da
cozinha dos conventos à cozinha da casa ‘brasileira’, séculos XVII a
XI”, dos elementos constitutivos de certa doçaria nacional: “o hábito
do consumo de doces; a permanência de certos doces e de técnicas
culinárias dos portugueses; a utilização de produtos das colônias na
confecção dos doces” (2005, p. 140). Nesses novos livros de receitas
desse período e as perguntas que eles trazem, se lidos em conjunto,
certamente contribuem para os estudos da doçaria brasileira.

Referências
ALGRANTI, Leila Mezan. Os doces na culinária luso-brasileira:
da cozinha dos conventos à cozinha da casa ‘brasileira’, sécu-
los XVII a XIX. In: Anais de História de além mar, vol. VI,
Barbosa e Xavier Ltda, Braga, 2005.
BESSONE, Tania Maria. Palácios de Destinos Cruzados: bibliote-
cas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. São Paulo:
Edusp, 2014.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario
biobliographico brasileiro, Rio de Janeiro: Tipografia Nacio-
nal, 1883-1900, pg. 366. Versão eletrônica.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. São Pau-
lo: Martins Fontes, 1996.
COSTA, Carlos. A revista no século XIX. A história da formação
das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro. São
Paulo: Alameda Editorial, 2012.
COZINHEIRO Nacional. São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
DAECTO, Marisa Midori. O império dos livros: instituições e prá-
ticas de leitura na São Paulo Oitocentista. São Paulo: Edusp,
2011.
174 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e fu-


turo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 190
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Pau-
lo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Edi-
ções do Senado Federal. 2003.
EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e
pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2002.
FERREIRA, Tania Bessone da Cruz, RIBEIRO, Gladys e GON-
ÇALVES. O Oitocentos entre livros, livreiros, impressos e bi-
bliotecas. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2013.
FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da
alimentação. São Paulo: Estação Liberdade 1998.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2007.
JANOVITCH. Paula. Preso por trocadilho. São Paulo: Alameda
cada Editorial, 2005.
LIVRO de cozinha da infanta d. Maria. Lisboa: Casa da Moeda,
1987,
LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (re)vista (s) do Brasil
(1916-1944). São Paulo: Ed. da Unesp, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858:
esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo;
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.
MINDLIN, José. Uma vida entre livros: reencontros com o tempo.
São Paulo: Edusp/Companhia das Letras, 1997.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Edi-
tora Senac São Paulo, 2013.
Inquisição, poder, cultura e lugares 175

MORELLI, Elaine. Os receituários manuscritos e as práticas ali-


mentares em Campinas (1860-1940). Tese de Doutorado/
Campinas/ São Paulo. Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
PADILHA, Márcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida
urbana na São Paulo dos anos 1920. São Paulo: Annablume,
2001.
PAIVA, Vanilda. História da educação popular no Brasil; educação
popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.
R.C.M. O cozinheiro imperial. Adaptação: Vera Sandroni; prefá-
cio de Antônio Houaiss. São Paulo: Best Seller, 1996
SALINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” e a expe-
riência etnográfica: por que a cultura não é um “obje-
to” em via de extinção. Mana, vol. 3, n.1, Rio de Janei-
ro, Abril, 1997. Ver o link:(http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131997000100002).
SEVCENKO, Nicolau. “A Capital irradiante: técnica, ritmos e ri-
tos do Rio”. In: Fernando A. NOVAIS (coordenador geral da
coleção). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1998.
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina. São Paulo: Cosac &
Naify, 2010.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões e criação
cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.
TAVARES, Paulino. Mesa, doces e amores no século XVII portu-
guês. Lisboa: Colares, 1999.
7. Sambas de roda, materiais de
memórias e trânsitos culturais:
as comunidades negras de
Guanambi. Bahia. Século XX.
Isnara Pereira Ivo
Maiza Messias Gomes

O lugar: espaço conectado


Atualmente, município de Guanambi, situado na região
Sudoeste da Bahia, próximo à fronteira com o estado de Minas
Gerais, foi cenário de uma complexa rede de contatos entre dife-
rentes agentes históricos a partir dos processos de exploração das
minas da Capitania da Bahia. A ocupação desta região remete ao
século XVIII e explica-se pelas expansões empreendidas a partir
da Comarca do Serro do Frio em direção aos sertões da Bahia. Os
movimentos de pessoas e produtos entre as vilas e cidades vizi-
nhas, inserem-se nas linhas de comércio que interligavam os inte-
riores da Colônia ao mundo Atlântico das coroas ibéricas.
As experiências vivenciadas nestas localidades foram e con-
tinuam sendo resultados de contatos estabelecidos entre grupos
indígenas, os quais, originalmente, habitavam a região, e indiví-
duos provenientes da África, da Europa e da Ásia. Ademais, os
trânsitos e as mobilidades culturais verificados nos sertões da
Bahia, ainda no século XVI, extrapolaram os interesses iniciais,
exclusivamente, econômicos. Assim, as conexões culturais esta-
belecidas no sertão de Guanambi estenderam-se para além das
178 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

trocas comerciais, as quais construíram experiências e tradições


culturais de distintas origens. Após as conquistas ultramarinas,
os espaços americanos – e aqui se incluem os sertões – tornaram-
-se, por excelência, espaços de mediação cultural, resistências,
trocas culturais e coexistências entre indivíduos e grupos sociais
de mundos distintos (IVO, 2012).
A ideia de “sertão em movimento” pressupõe o deslocamen-
to do olhar para outros universos culturais, com o objetivo de
comparar, conectivamente, outras culturas com suas fronteiras,
algumas vezes, permeáveis e frágeis. A noção de espaços conec-
tados significa, acima de tudo, pensar nas impermeabilidades e
resistências culturais que separam universos díspares, mas, ao
mesmo tempo, os aproximam e forjam o novo com materiais do
antigo que podem se modificar ou não. Não se trata de conceber
misturas de puros, a ideia de alteridade se relativiza ao se com-
preender o processo histórico como eivado de misturas e trânsitos
culturais milenares (IVO, 2012).
As permeabilidades e impermeabilidades culturais não são
totais e nem gerais, mas seletivas, pois a análise de um proces-
so de mediação deve ser precedida do reconhecimento de alguns
elementos envolvidos, tais como: os agentes e objetos, os mecanis-
mos utilizados e os espaços da mediação, uma vez que os univer-
sos culturais constituem fronteiras de níveis diferentes. As fron-
teiras podem ser brandas e passíveis de transposição, o que facilita
a mediação, porém a riqueza das culturas abriga limites rígidos,
resistentes e impermeáveis, dificultando, e mesmo impedindo, os
processos de mestiçagem. As experiências podem ser marcadas
por vitórias e derrotas, construindo um espaço novo e peculiar,
sincretizando elementos heterogêneos e distintos, abrigando va-
Inquisição, poder, cultura e lugares 179

lores, crenças e saberes que podem se incluir ou não (REBOLLO,


1997, 1999).
Impossível pensar que as culturas são puras, singulari-
zadas: “as misturas datam das origens da história do homem”
(GRUZINSKI, 2001, p. 41). O conceito de “cultura” foi, constan-
temente, aplicado alimentando-se a compreensão de que pode
existir uma totalidade coerente, estável, capaz de orientar e con-
dicionar os comportamentos de determinados grupos sociais ou
espaços sócio-históricos (GRUZINSKI, 2001, p. 51). A mundia-
lização que envolveu o continente americano a partir do século
XV, com a expansão ibérica ultramarina, aproximou universos
culturais, fomentando, de maneira intensa, um sistema de trocas
e amálgamas em larga escala:

[...] culturas se renovaram e se adaptaram, mas também


se preservaram. Os responsáveis por esses processos – na-
vegadores, exploradores, comerciantes, religiosos, auto-
ridades, viajantes, naturalistas, índios, escravos africanos,
contrabandistas, trabalhadores navais, entre outros – me-
diaram culturas por meio do tráfico da natureza e do mara-
vilhoso, assim como, em alguns casos, ajudaram a montar
verdadeiros laboratórios de adequação e de ajuste biológi-
co e cultural (PAIVA, 2006a, p. 107-122; 2006b, p. 99-122).

Das comunidades
Neste capítulo, as histórias das comunidades negras rurais
revelam-se com base nas memórias contadas por seus participan-
tes e moradores. Assim, à medida que os relatos de experiências
vão surgindo, os quadros das memórias dessas comunidades se
mostram (MONTENEGRO, 2007). Situadas no município de
Guanambi, a 796 km de Salvador, as comunidades negras de
180 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Tabua Grande, Morro de Dentro e Queimadas faziam parte da an-


tiga fazenda Brejo, também conhecida como Brejo Grande, Brejo
das Carnaíbas ou Brejo de Matias João da Costa; posteriormente,
passou a ser chamada de Carnaíba de Dentro e Carnaíba de Fora
(NEVES, 2008).
Nos dias atuais comunidades apresentam uma população
negra que possui laços familiares e mantém tradições de cultivo
da terra e de práticas culturais que configuram e reconfiguram
suas identidades como sujeitos individuais e/ou pertencentes
a um grupo. Dentre estas comunidades, Queimadas é a única
comunidade negra do município de Guanambi que recebeu da
Fundação Cultural Palmares a certificação de autodefinição como
Remanescentes de Quilombo, em 5 de junho de 2015.
A denominação comunidades negras rurais parte do con-
ceito contemporâneo de quilombos (GOMES, 2015; MOURA,
2012), ou seja, comunidades rurais ou urbanas onde habitam ou
se agrupam descendentes de escravos e remanescentes de quilom-
bos, com laços de parentesco entre si e vínculos ancestrais. Estes
aspectos são de suma relevância para a nossa análise, uma vez
que as comunidades negras rurais de Guanambi se inserem neste
contexto por manterem laços de parentesco, tradições culturais e
fortes ligações com a terra.
Quilombos, comunidades quilombolas, comunidades ne-
gras, terras de pretos, remanescentes de quilombos ou territó-
rios de pretos são algumas das denominações encontradas na
bibliografia sobre esses grupos sociais. Sem fazer generalização
dos termos, o conceito de quilombo ganhou notoriedade no cam-
po das ciências humanas e sociais em meados dos anos de 1970.
Atreladas a essas reflexões, as intensas movimentações alavan-
cadas pelo movimento negro contribuíram, significativamente,
Inquisição, poder, cultura e lugares 181

para a mobilização pelo reconhecimento e titulação das chama-


das “terras de pretos”. Essas negociações resultaram na incorpora-
ção do artigo 68 à Constituição Federal de 1988, a qual, é preciso
ressaltar, ocorreu tardiamente, ou, como define Arruti (2006),
no “apagar das luzes”. Mesmo sendo territórios historicamente
esquecidos pelo discurso das políticas públicas e pela sociedade
brasileira, os quilombos assumem uma nova condição a partir do
momento em que a lei passa a garanti-los como direito dos habi-
tantes, que passam de povos invasores a donos (DUTRA, 2015;
MIRANDA, 2013).
Nos últimos anos, surgiram novas proposições a respei-
to do conceito de quilombos, em meio a fatores determinantes
que envolvem esta categoria numa série de situações sociais e
culturais, distanciando-se do conceito cristalizado de quilombo
isolado e longínquo. Assim, os estudos, por meio de uma nova
compreensão histórica, nos permitem entender que os povos dos
quilombos, ou aquilombados, viviam imersos nas dinâmicas so-
ciais, políticas e culturais da sociedade local e/ou global. Com as
novas demandas e as múltiplas relações dos quilombos, fez-se ne-
cessária uma ressignificação do conceito de quilombo, no intuito
de compreendê-lo não apenas como um símbolo de resistência
histórica, mas, sobretudo, como produtos de espaços conectados
e plurais que abrigam distintas culturas em movimento, assim
como os demais universos culturais.
Quanto à identidade social e cultural dos remanescentes
de quilombo, as referências apontam para o reconhecimento e
identificação com base em noções de pertencimentos construí-
dos e legitimados no interior dos grupos, emergindo como uma
reivindicação (LEITE, 2010). Embora as comunidades de Tabua
Grande, Morro de Dentro e Queimadas constituam-se como re-
182 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

ferências de comunidades negras rurais do sertão de Guanambi,


identificamos que as atribuições identitárias não são reconhecidas
com base na autorreferência, mas por meio da referência de ter-
ceiros. Isto significa que, mesmo passando pelo processo de auto-
definição como remanescentes de quilombo, caso da comunidade
de Queimadas, a população não se identifica como quilombola.
Entende-se, portanto, que esta pode ser uma identidade construí-
da, externamente às comunidades, pois as evidências reforçam a
ideia de associação do quilombo à escravidão, uma vez que a cor
da pele, para a sociedade que os cercam, remete à escravidão e o
fato de serem identificados como um grupo de negros, por si só,
já lhes parecem uma lembrança que desejam negar. Logo, nota-se
que há, na comunidade, ações de negação da memória pretérita,
tanto no que se refere ao passado escravo, quanto ao que se refere
ao lugar como espaço de resistência à escravidão.
Diante do fato de os moradores da comunidade, em especial
os mais jovens, demonstrarem o seu não reconhecimento como
quilombolas, consideramos que Queimadas, assim como Tabua
Grande e Morro de Dentro, vivenciam modos de vida que po-
dem assegurar e certificar estas questões identitárias, tais como
as festas, os sambas de roda, as músicas, a memória, o trabalho,
a história e tantos outros saberes e fazeres populares, sejam eles
religiosos, artísticos ou de práticas cotidianas representativas de
um universo de dinâmicas pouco visíveis aos olhos da sociedade
em seu entorno.

Dos sambas de roda


No Brasil, resultou no aparecimento de novos ritmos cultu-
rais, artísticos e religiosos e há indícios de sua origem ser africana,
na verdade, congoleza: “Os sambas proviriam talvez das nascentes
Inquisição, poder, cultura e lugares 183

do Lucala, na província de Umbamba, no reino do Congo, e seriam


governados por reis-ferreiros, como atestaria o fato de ter sido o seu
lendário fundador, Angola Musuri, quem primeiro fez instrumen-
tos de ferro” (SILVA, 2011, p. 526). O samba e suas diversas moda-
lidades são a continuação de práticas continuadas e reelaboradas
no decorrer dos processos históricos de encontros e migrações cul-
turais de um e outro lado do Atlântico. Movimentos que resulta-
ram em práticas bastante diversas daqueles sambas praticados em
África ao longo do tempo, mais precisamente, no reino do Congo:

samba-amarrado, dançado no Recôncavo Baiano; samba-


-batido, denominação baiana do antigo batuque; samba-
-canção, andamento lento, de melodia romântica e letras
sentimentais; samba-choro, de andamento médio; samba-
-chulado ou samba-chula, samba baiano de melodia mais
complexa e extensa que a do samba de roda; samba-cor-
rido, o mesmo que samba de primeira; samba-de-breque,
samba de caráter humorístico; samba-de-caboclo, cântico
ritual dos candomblés de caboclo; samba-de-chave, varia-
ção do samba baiano, os dançarinos solistas simulam pro-
curar uma chave perdida; samba-de-embolada, samba can-
tado no improviso, como na embolada; samba-de-matuto,
originário do maracatu, dançado e cantando nos sertões
nordestinos; samba-de-partido-do-alto, antiga modalidade
de samba instrumental; samba-de-primeira, samba antigo,
intermediário entre o primitivo samba rural e o moderno
samba urbano; samba-de-roda, protótipo do samba rural
e, especialmente, do samba baiano; samba-de-velho, sam-
ba típico de Juazeiro-BA; samba-duro, denominação de
batucada ou pernada carioca; samba-exaltação, de caráter
grandioso, patriótico-ufanista e arranjo orquestral pom-
poso; samba-lenço, dançado em filas, homens e mulheres
acenam os seus lenços para aqueles com quem desejam
sambar; samba-reggae, estilo moderno de samba baiano
184 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

surgido nos blocos afro; samba-trançado, antiga forma de


samba, dançado em Pernambuco; samba-enredo, que con-
siste em letra e melodia criadas com base no resumo do
enredo que for escolhido por uma escola de samba; dentre
outras modalidades de sambas (LOPES, 2011, p. 617, grifos
no original).

Os processos de reinvenções e transformações dos sambas


são verificados nos movimentos performáticos da roda, canto,
instrumentos, vestimentas, cores e os sons. Além disso, o universo
do samba é vasto e consiste na difusão de outras práticas culturais
que, em razão do intenso processo de misturas culturais viven-
ciadas em território americano, pode ser chamado de mestiço. A
expressão samba de roda referencia as características encontradas
em sua performance, acompanhadas de um repertório musical e
coreográfico: disposição dos participantes em círculo ou, como é
mais comumente aludido, em roda – daí o nome do samba.
A ideia de “sertão em movimento” absorve a compreensão
de que o processo de expansão do Velho Mundo, impulsionado
pelas conquistas das monarquias ibéricas, reuniu povos prove-
nientes de vários espaços, conectou diferentes formas de governo
e promoveu o contato de tradições religiosas, culturais e sociais
distintas (IVO, 2012). É neste sentido que se compreende o sam-
ba como resultante de encontros que estabeleceram relações e di-
zem respeito às mudanças nos modos de vida, sob o efeito das
apropriações, reelaborações e adaptações culturais. Atualmente,
os sambas de roda das comunidades negras de Guanambí podem
ser exemplos de processos de permanências e trocas culturais ve-
rificadas nos sertões que produziu encontros de materiais de me-
mórias que marcaram as práticas culturais das comunidades. As
influências dos batuques praticados na época da escravidão e suas
Inquisição, poder, cultura e lugares 185

variações regionais foram marcantes, tanto na formação como na


manutenção da memória dessas tradições. Apesar de não signifi-
carem apenas uma reprodução dos batuques africanos tal como
existiram na África, os elementos disponíveis contêm indícios de
que os sambas praticados pelas comunidades negras rurais das
comunidades de Tabua Grande, Morro de Dentro e Queimadas
têm ligação com os praticados na África e, também, com os ele-
mentos da cultura indígena e europeia.
Desde os tempos da colônia já se tem registro do uso de ins-
trumentos musicais nas celebrações indígenas, muitos já conhe-
cidos de europeus ou por eles levados ao Brasil. Em 1583, Fernão
Cardim descreveu festividades em que índios, aos som de canti-
gas pastoris, utilizavam viola, pandeiro, tamboril e flauta:

Os cnnumis (XVI) se meninos, com muitos molho de fre-


chas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e
davam sua grita, e pintados de várias cores, nusinhos, vi-
nham com as mãos levantadas receber a benção do padre,
dizendo em portuguez, “louvado seja Jesus Christo”. Ou-
tros sairam com uma dança d’escudos á portugueza, fazen-
do muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro
e tamboril e frauta, e juntamente representavam um breve
dialogo, cantando algumas cantigas pastoris. Tudo causa-
va devoção debaixo de taes bosques, em terras estranhas,
e muito mais por não se esperarem taes festas de gente tão
barbara. (CARDIM, 1925, p. 291-292).

Apesar dos estudos sobre os sambas de roda1 afirmarem que


não há influências da cultura índigena, para Alves Filho (2002),
o legado vai além das continuidades de uso dos instrumentos

1 Mais informações sobre o samba de roda, ver especialmente IPHAN.


Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Dossiê Iphan: 4). Brasília, DF:
Iphan, 2006; (WADDEY, 1980).
186 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

musicais. Para ele, a origem do samba é indígena e atribui seu


surgimento às festas dos índios Kiriri, habitantes do Nordeste do
Brasil, antes mesmo da chegada dos europeus e africanos. Afirma
que as danças e os cantos faziam parte da cultura indígena, a pon-
to de serem efetivamente explorados nos processos de catequiza-
ção, os quais eram acompanhados por instrumentos, conforme
descrito por Cardim:

[...] Chegando o padre á terra começaram os fraulisías to-


car suas frautas com muita festa, o que tambem fizeram
em quanto jantámos debaixo de um arvoredo de aroeiras
mui altas. Os meninos indios, escondidos em um fresco
busque, cantavam varias cantigas devotas enquanto co-
memos, que causavam devoção, no meio daquelles matos,
principalmente uma pastoril feita de novo, para o recebi-
mento do padre visitador, seu novo pastor [...] Estas festas
acabadas, os indios Murubixa, ba (XVIII), sc. principaes,
deram o Ereiupe (XIX) ao padre, que quer dizer Vieste? e
beijando-lhe a mão, recebiam a benção. As mulheres nuas
(cousa para nós mui nova) com as mãos levantadas ao Céo,
também davam seu Ereiupe, dizendo em portuguez, “lou-
vado seja Jesus Christo” (CARDIM, 1925, p. 291-292).

Ainda no século XVI, Gabriel Soares de Souza, ao descre-


ver celebrações dos Tupinambá, revela o uso não só do maracá e
tamboril, mas também o uso da roda na festa e os passos da dança
executada pelos índios:

Os tupinambás se prezam de grandes músicos, e, ao seu


modo, cantam com sofrível tom, os quais têm boas vozes;
mas todos cantam por um tom, e os músicos fazem motes
de improviso, e suas voltas, que acabam no consoante do
mote; um só diz a cantiga, e os outros respondem com o
fim do mote, os quais cantam e bailam juntamente numa
Inquisição, poder, cultura e lugares 187

roda, na qual um tange um tamboril, em que não dobra as


pancadas; outros trazem um maracá na mão, que é um ca-
baço, com umas pedrinhas dentro, com seu cabo por onde
pegam; e nos seus bailes não fazem mais mudanças, nem
mais continências que bater no chão com um só pé ao som
do tamboril; e assim andam todos juntos à roda, e entram
pelas casas uns dos outros; onde têm prestes vinho, com
que os convidar; e às vezes anda um par de moças cantando
entre eles, entre as quais há também mui grandes músicas,
e por isso mui estimadas (SOUSA, 1851, p. 316-317).

Os excertos de Gabriel Soares de Sousa, ilustram como os


instrumentos musicais compunham o cotidiano dos nativos, seja
em momentos de paz ou de guerra:

[...] Estes tupinaés são os fronteiros dos tupinambás, com


os quais foram sempre apertando até que os fizeram ir vi-
zinhar com os tapuias, com quem têm sempre guerra sem
entenderem em outra coisa, da qual saem como lhes orde-
na a fortuna [...] Costumam estes índios nos seus canta-
res tangerem com um canudo de uma cana de seis a sete
palmos de comprido, e tão grosso que cabe um braço, por
grosso que seja, por dentro dele; o qual canudo é aberto
pela banda de cima, e quando o tangem vão tocando com
o fundo do canudo no chão, e toa tanto como os seus tam-
bores, da maneira que eles os tangem (Sousa, 1851, p. 334).
Trazem os amoipiras os beiços furados e pedras neles como
os tupinambás; pintam-se de jenipapo, e enfeitam-se como
eles; e usam na guerra tambores que fazem de um só pau,
que cavam por dentro com fogo tanto até que ficam mui
delgados, os quais toam muito bem; na mesma guerra usam
de trombetas que fazem de uns búzios grandes furados, ou
da cana da perna das alimárias que matam, a qual lavram e
engastam num pau. Em tudo o mais seguem os costumes
188 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

dos tupinambás, assim na guerra como na paz, dos quais fica


dito largamente no seu título. (SOUSA, 1851, p. 336).
E em amanhecendo, depois de almoçarem, toma cada um
seu quinhão de farinha às costas, e a rede em que há de
dormir, seu pavês e arco e flechas na mão, e outros levam
além disto uma espada de pau a tiracolo. Os roncadores
levam tamboril, outros levam buzinas, que vão tangendo
pelo caminho, com que fazem grande estrondo, como che-
gam à vista dos contrários (SOUSA, 1851, p. 320).

Com base nas leituras dos viajantes do século XVI, principal-


mente Fernão Cardim, Sílvio Romero (1888) atribui aos índios a
origem do samba de roda. Também reivindica a origem do samba,
ao referendar o que foi dito por Cardim (1925). Contrapõe a músi-
ca dos negros à dos índios, definindo a primeira com característica
monótona e acompanhada por poucos instrumentos, ao passo que a
segunda seria mais vibrante, com saltos, giros e outros movimentos
performáticos, e composta por um número maior de instrumentos:

A música dos negros é monótona: os seus instrumentos


não passam do marimbau, do mutungo (uma cuia com
ponteiros de ferro), do tambaque (espécie de tambor) e do
pandeiro. A dança é uma série de pulos, requebros e gati-
manhos. A música dos índios era mais variada, e os seus
instrumentos mais numerosos. – O samba, estou hoje con-
vencido, é de origem indígena.

[...] É claramente a origem dos nossos xibas e sambas atuais


em que são exímias as populações do interior. Não os acho
ridículos, como supôs Fernão Cardim; são a música e a
dança na infância, e a infância é ingênua e não ridícula.
Os principais instrumentos dos índios são: – o mimbita-
rará (espécie de buzina); o pemi (cometa); o caruqué (feito
Inquisição, poder, cultura e lugares 189

de um tronco de madeira leve ocado); o mimê (buzina);


o muremuré (feito de ossos); o chicuta (feito do espique
do jupati); o membi-chuê (feito de taboca), etc (ROMERO,
1888, p. 33).

Interessa-nos menos a certeza da origem indígena ou afri-


cana do samba, mas o seu caráter mestiço comprovado nas evi-
dências de coexistências, permanências e exclusões dos materiais
de memória oriundos de diversas culturas, sejam elas indígenas,
europeias ou africanas. No que concerne à contribuição europeia
ao samba, Sodré (1998) destaca a influência do gênero musical,
com o processo harmônico, compasso e a síncopa,2 além de al-
guns instrumentos, como a viola e o pandeiro, que, apesar de se-
rem difundidos pelo mundo, teriam vindo para a América com
os ibéricos. Para ele, dos indígenas vieram a forma de constru-
ção poética dos versos, o tema, a improvisação, a melancolia e o
hábito de beber em rituais. Dos africanos vieram a definição do
próprio termo samba, os instrumentos mestiços, como o tambor,
os ritmos, a sensualidade dos batuques, o jeito singular e plural
do sambador, manifestado na malícia e na malandragem comum
também ao jogo dos capoeiristas (SODRÉ, 1998). Para Câmara
Cascudo (2010, p. 784), “os portugueses e os africanos trouxeram
as suas danças de roda, mas os indígenas também tinham as suas.
Nenhuma novidade maior, porque a informação sobre as danças
de roda é milenar”.
A memória do samba de roda remete a um conjunto de ma-
teriais com diversidade de origens de distintos universos culturais,

2 Síncopa “é uma alteração rítmica que consiste no prolongamento do som


de um tempo fraco num tempo forte. [...] se na Europa ela era mais fre-
quente na melodia, na África sua incidência básica era rítmica” Ver: (SO-
DRÉ,1998. p. 25).
190 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

tais como instrumentos musicais indígenas, africanos e europeus.


A eles se agregam as palmas, vestimentas, cantos, roda, dança e
corpo. Assim, mesmo incorporando novos sentidos e significados,
esses materiais remetem sempre a uma memória maior, mais an-
cestral e mais significativa: a memória coletiva do samba de roda
que extrapola as demarques culturais de determinados povos.

Materiais de memória do samba de roda


As dinâminas dos processos de encontros culturais com suas
resistências, acomodações e coexistências conformam o univer-
so cultural dos sambas de roda. Suas memórias se preservam no
seio das comunidades, principalmente por meio das festividades
costumeiras e tradicionais, onde a memória é manifestada com
o uso dos materiais de memória que corporificam seus sambas:
instrumentos musicais, palmas, vestimentas, cantos, roda, dança
e corpo, sejam estes elementos nativos ou não.
Os materiais de memória são documentos, construções de
determinados sujeitos históricos, testemunhos, narrativas, relatos,
objetos que podem ser transformados em monumentos, quando
passam a ser fruto da memória coletiva do grupo ou sociedade, ou
da memória coletiva das práticas culturais (LE GOFF, 2003). Pode-
se considerar que a elevação do documento à categoria de monu-
mento é pura construção discursiva do relato historiográfico.
Na roda de samba, o canto, o tambor, as palmas, o pandeiro,
o atabaque, as vozes e as danças dão ritmo aos sambas. No entan-
to, as atribuições inerentes a esses materiais de memória vão além
das propriedades sonoras e estéticas das rodas, consistindo numa
espécie de marca identificadora das mestiçagens e da tradição cul-
tural das comunidades. Não obstante, na roda de samba, ainda
que certos materiais de memória, mesmo os mais reconhecidos,
Inquisição, poder, cultura e lugares 191

não estejam presentes, é possível haver roda de samba. Dito de


outro modo, é possível fazer uma roda simplesmente com cantos,
palmas e outros objetos que estiverem à mão dos sambadores.

Dos instrumentos musicais


No sertão de Guanambi, durante muito tempo, foram os
instrumentos do cotidiano e do trabalho das comunidades que,
na ocasião da roda de samba, se transformaram em instrumentos
musicais. A lata de zinco, por exemplo, que era usada para trans-
portar água, armazenar alimentos e colher frutos, também servia
como um instrumento sonoro do samba; adaptada às rodas, a lata,
com o passar do tempo, deu lugar à caixa, e houve a incorporação
de outros materiais, como o tambor, pandeiro, caixa, reco-reco,
triângulo, bumbo, maracá, gaita e sanfona – símbolos e produtos
dos encontros culturais
O tambor, instrumento de origem árabe, influenciou forte-
mente a cultura africana, vinculado, tanto na África quanto no
Brasil, a religiosidades, festividades e tradições africanas:

árabe a-anbūr, por influência do persa tabῑr. Subcategoria


de membranofones que pode ter uma ou duas membranas
com formatos muito diversificados, cilíndrico, longo, côni-
co. Podem ter forma de ampulheta, de taça ou de barril. A
sarronca é um tambor de fricção, dado que a membrana é
posta em vibração por um pau.3

O tambor evidencia a mestiçagem dos instrumentos: “indí-


genas, portugueses [europeus] e africanos que usavam do tambor,
de vários tamanhos e formas” (CASCUDO, 2010, p. 850). Como

3 Biblioteca Virtual do Gov. do Estado de São Paulo, Dicionário de Instru-


mentos Musicais. 2010, p. 27.
192 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

já demonstrado, índios utilizavam o tamboril em vários momen-


tos do seu cotidiano, conforme relembra Cascudo, que acrescenta
seu uso entre os portugueses:

os tupinambás cantavam e dançavam ao som de ‘um tam-


boril, em que não dobra as pancadas’, levando-os para a
guerra” [...] do português é dispensável a informação, co-
nhecedor, há séculos, de toda a diversidade do instrumen-
tal de percussão, e com a boa cópia trazida pelos árabes
dominadores (CASCUDO, 2010, p. 850-851).

O pandeiro, instrumento de percussão, constituído por um


aro de madeira com soalhas – rodelas de metal – e uma das bases
recoberta ou não de membrana ou, menos comumente, recober-
ta de folha de metal. Esse instrumento musical tem uma longa
ancestralidade e parece ter sido encontrado na maior parte do
mundo, desde a antiguidade. Os egípcios usavam para o luto e os
israelitas em sinal de júbilo. Tornou-se popular por toda a Europa
durante a Idade Média e no Brasil popularizou-se nas áreas rurais,
sendo muito usado na música folclórica, nos cucumbis, pastoris,
Folias do Divino e sambas.4
O instrumental dos sambas do Vai de Vitá, do Quebra
Panela e do Reisado, também, é composto por uma caixa, um ou
dois pandeiros, um reco-reco e um triângulo. Dentre estes, a caixa
é o instrumento de maior importância e destaque na roda, e são
poucos os participantes que sabem “bater a caixa”5 que é um ins-
trumento de percussão presente em vários estilos musicais, com-
posto por um corpo cilíndrico médio de madeira, com duas peles
tensionadas e fixadas em aros de metal, presas a uma corda que

4 Ibid. 21 e 22.
5 Bater caixa é uma expressão usada pelos praticantes dos sambas.
Inquisição, poder, cultura e lugares 193

serve de sustentação no momento da execução do samba. É um


tambor cilíndrico de membrana dupla.6 A utilização deste instru-
mento pelo Vai de Virá, Quebra Panela e Reisado, junto com duas
baquetas de madeira, passou a ser indispensável às apresentações.
O som emitido pela batida da caixa, nas rodas de samba
do Vai de Virá e do Reisado, possui grande identificação com o
som da batida na contradança do Reis; esta é uma característica
presente nas tradições culturais praticadas nessa região, as quais,
como dissemos, resultam do encontro entre as culturas de indí-
genas, africanos, europeus, e, posteriormente, conformam a natu-
reza mestiça dos praticados, não só nos sertões da Bahia, mas em
todos o Brasil.
Reis, Reisado, Folias de Reis ou os Foliões de Reis, como são
conhecidos, teriam chegado ao Brasil por intermédio dos portu-
gueses no período da colonização. É uma manifestação cultural
que era realizada por toda a Península Ibérica, sendo comum a
doação e recebimento de presentes a partir da entoação de can-
tos e danças nas residências (CASCUDO, 2010). No Brasil, ainda
hoje esta tradição é praticada em várias regiões, apesar de apre-
sentar algumas variações, como a dança, música, ritmo, devoção
e homenagem ao Menino Jesus, a São José, à Virgem Maria ou aos
Reis Magos. Desde as práticas do Reisado na Península Ibérica até
as ocorridas atualmente, no Brasil, é possível perceber mudanças
e adaptações no ritual em diferentes regiões do Brasil.
No município de Guanambi, os grupos de Foliões de Reis
guardam muitas especificidades que apontam para influência da
cultura indígena, africana e europeia, cujas cores, formas, cantos,
instrumentos e sons regionais próprios indicam as apropriações

6 Biblioteca virtual do Governo do Estado de São Paulo, Dicionário de ins-


trumentos musicais (2010, p. 5).
194 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

culturais adquiridas. Encenam uma representação dramática,


normalmente curta e singela de enredo, sem muitos adereços,
acompanhada e precedida de canto. O Reisado de Guanambi se
distancia um pouco da característica principal do Reisado que é
apresentado em outras regiões do Brasil.7 De acordo com Cascudo
(2010, p. 774), na região Sudeste, Centro-Oeste e até mesmo em
alguns estados da região Nordeste, os Foliões se apresentam com
trajes de cores quentes e chapéus ricamente enfeitados, caracteri-
zados com as personagens dos três Reis Magos, do rei, do mestre,
do contramestre, do Mateus e do palhaço, diferentemente do que
se verifica em várias regiões do Nordeste do Brasil.
O Reco-reco é uma designação dada a instrumentos de per-
cussão, idiofone produtor de som pela fricção de uma baqueta so-
bre a superfície de um pedaço de madeira ou bambu, com sulcos
transversais abertos para esse fim, feitio mais conhecido do ins-
trumento. Presente em várias manifestações musicais africanas,
como o candomblé, o instrumento é muito usado no acompanha-
mento de músicas carnavalescas, principalmente na bateria das
escolas de samba. Na Bahia, encontra-se um outro tipo: uma mola
de aço estirada sobre uma caixa de 10 cm x 15 cm. Em Piracicaba,
São Paulo, é comum aparecer a mola estendida sobre uma tá-
bua. Atrita-se o arame com uma haste de ferro, onde se enfiam
tampas de garrafas que produzem ruído peculiar ao ser tocado
o instrumento. Aparece em várias manifestações musicais afro-
-brasileiras, como o Candomblé. O instrumento é muito usado
no acompanhamento de músicas carnavalescas, principalmente
na bateria das escolas de samba. É também chamado de ganzá ou

7 Reisado é uma designação dada, no Brasil, a cada um dos grupos organiza-


dos, que, tradicionalmente, saem de casa em casa para festejar o Natal e o
dia de Reis, em 06 de janeiro. Para melhores informações: (LOPES, 2011).
Inquisição, poder, cultura e lugares 195

canzá na Bahia, raspador no Amazonas, casaca, catacá, caracaxá,


querequexé, reque-reque, dentre outros.8
Ao longo do tempo, a musicalidade do samba foi incre-
mentada, ainda, pela presença do triângulo, idiofone metálico
percutido que consiste num ferro em forma triangular, aberto,
no qual se bate com um pequeno ferro. O triângulo também faz
parte do instrumental de outras manifestações culturais africanas
e europeias. Feito de ferro ou aço, é um artefato que emite o som
através das vibrações resultantes do movimento do bastão e do
triângulo, sincronizados pelo movimento da mão, determinando
o som aberto ou fechado. Tem-se conhecimento deste instrumen-
to desde o século XIV. No Brasil, foi introduzido pelos portugue-
ses, após ter sido largamente difundido por toda a Europa. Muito
usado nas Folias de Reis e do Divino, daí o reconhecimento de
instrumento sagrado. Para alguns foliões, o instrumento tem três
lados porque representa a Santíssima Trindade. Aparece também
no acompanhamento de gêneros da música nordestina, sobretudo
nos forrós,9 indispensável ao lado da zabumba.10
O bombo ou bumbo foi muito usado pelos índios tupinam-
bás (SOUSA, 1851). É um tambor cilíndrico de grande dimen-

8 Biblioteca Virtual do Gov. do Estado de São Paulo, Dicionário de Instru-


mentos Musicais (2010, p. 24).
9 De acordo com o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo
(2010), o nome forró é derivado de forrobodó, “divertimento pagodei-
ro”. Dança popular nordestina, que carrega o mesmo nome da música.
Para o Dicionário Aurélio, Forrobodó é um termo africano que, signifi-
ca “arrasta-pé (1), 2. farra, troça, 3. confusão, desordem, v. rolo (16). [F.
red: forró.]”(FERREIRA, 1999). A segunda teoria diz que forró deriva do
anglicismo for all, introduzida no Brasil no início do século XX, quando
engenheiros britânicos se instalaram em Pernambuco para construir a
ferrovia Great Western.
10 Biblioteca Virtual do Gov. do Estado de São Paulo, Dicionário de Instru-
mentos Musicais (2010, p. 28).
196 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

são, de som grave e seco. Em desfiles ou em fanfarras, o bombo é


transportado à frente do peito, pendurado nos ombros por cintas
de couro, e normalmente é percutido em ambas as membranas,
por duas macetas, uma em cada mão.11
A maracá ou chocalho é um instrumento idiofone cons-
tituído por uma cabaça seca e oca, um coco ou outro material
com sementes, em seu interior. De acordo com Cascudo (2010, p.
552), a maracá é o primeiro instrumento indígena no Brasil. Para
Vainfas, trata-se de um “instrumento mágico feito do fruto seco
da cabaceira (cohyne), que funcionava como chocalho nas danças
tupis, furado nas extremidades, perpassado por uma seta feita de
brejaúba, enchido com milho miúdo, sementes ou pedras, e ador-
nado com penas e plumas de arara” (VAINFAS, 1995, p. 54).
O maracá é muito utilizado na América Latina e encontra-se
presente no samba do Reisado, assim como a gaita, aerofone dota-
do de fole, um saco para onde o tocador sopra. Este instrumento
é segurado com o braço e o ar é empurrado através de um tubo
para as gaitas, produzindo o som. É muito utilizado nas regiões de
influência celta, incluindo Escócia, França, Espanha e Portugal.12
O uso destes instrumentos nos sambas de roda do sertão de
Guanambi evidencia o caráter mestiço do samba, cujo modo de
tocar se altera conforme a comunidade. A conexão dos sambas de
roda com outras culturas, no entanto, vai além dos instrumentos,
à medida que as letras, canto, palmas, indumentária e tudo mais
que compõe essa tradição cultural parece atuar no sentido de as-
segurar o seu caráter mestiço.
Assim, é no espaço da roda de samba que os materiais de
memória se encontram e coexistem, dando som, ritmo, cores e

11 Ibid. p. 5.
12 Ibid.p. 14.
Inquisição, poder, cultura e lugares 197

expressão cultural. É na roda, também, que os laços de amizade


são fortalecidos e se compartilham diversas emoções e memórias,
o que confere a essa tradição cultural características essencial-
mente festivas, alegres e sociáveis.
Além dos objetos já mencionados, o samba do Quebra Panela
traz, em seu instrumental, o uso de um elemento de memória bem
conhecido no Nordeste brasileiro: a sanfona ou acordeão. No ins-
trumento do tipo do acordeão, dotado de teclado, registros e bo-
tões, o som é produzido pela compressão e distensão de um fole
sanfonado, característico da música popular do Nordeste brasilei-
ro. O ar provoca vibrações nas palhetas livres que ficam dispostas
em suas extremidades. Em alguns momentos, foi usado em igrejas
que não possuíam órgãos. Considera-se que chegou ao Brasil no
contexto da Guerra do Paraguai, entre os anos de 1864 e 1870. Em
Portugal é também chamado de fole ou acordeão.13
O corpo assume papel principal na transmissão e na recep-
ção de informações a respeito das tradições antigas para as novas
gerações. A maneira de mexer os pés, o quadril, as mãos, a cabeça,
o balançar da saia, os giros, o movimentar pelo espaço circular, o
bater das palmas, os toques de palmas, o momento de se mexer
e também o momento de ficar no lugar, a posição do dançarino
em relação aos músicos e à roda são ensinados e aprendidos no
momento da roda, sendo reelaborados e reinventados por meio
da memória da tradição, a exemplo, o passo do miudinho.14
A roda do samba caracteriza-se por um momento alegre,
dinâmico e festivo, em que as experiências do cotidiano e os mo-
vimentos se encontram. Constitui-se num espaço de organização

13 Ibid. p. 25.
14 Miudinho é uma um dos passos do samba, no qual quase não se movem
as pernas.
198 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

social e simbólica, onde se transmite a memória e se reelabora a


tradição do samba.
O samba de roda das comunidades negras não constitui
uma expressão individual, mas coletiva, tanto dentro como fora
da roda. Trata-se de uma comunicação não apenas simbólica, pois
o corpo que se apresenta entra em sintonia com o corpo que as-
siste o momento de prática e reinvenção da tradição. Apesar de
a roda de samba assumir um formato fechado, é um espaço de
misturas entre os corpos e, consequentemente, entre as culturas e
as inovações. Na roda de samba, o movimento é reconhecido por
meio do corpo daquele que participa da roda ou do que está em
seu entorno. A roda é o corpo do samba e abriga várias memórias,
uma vez que o samba é o dono do corpo e é o corpo que obedece
ao desejo da memória do próprio corpo (SODRÉ, 1998).
Tudo começa com a formação de uma roda, ao som da mú-
sica e na presença dos instrumentos tocados, quase sempre, por
homens. Palmas, sambadores e sambadeiras adentram a roda de
dois em dois, logo samba de roda, dança e música tormam-se um
só elemento. Todos os participantes, homens e mulheres, exer-
cem o papel importante de cantar e dançar. Os membros da roda,
sejam eles músicos ou sambadores, posicionam-se em círculo e,
normalmente, ficam um ao lado do outro. Os instrumentos per-
manecem juntos, tais como tambor, caixa, pandeiro, reco-reco,
triângulo, sanfona, numa posição sempre de frente para os par-
ticipantes da roda que, por sua vez, se deslocam para o centro,
para executar os passos do samba. O ritmo da roda é acelerado,
o toque rápido é marcado pelas batidas da caixa, que se sobressai
em relação aos outros instrumentos.
No samba do Vai de Virá, as posições do corpo dentro da
roda é que dão o nome ao samba. Em movimentos circulares, os
Inquisição, poder, cultura e lugares 199

participantes vão dando voltas da seguinte maneira: o primeiro


membro entra na roda e dá uma volta circular, com alguns giros;
logo depois, quando já está na sua segunda volta dentro da roda,
este cede lugar ao sambador ou sambadeira que estava posiciona-
do ao seu lado no início; este segundo participante entra na roda,
faz o mesmo “percurso”, depois é seguido pelo terceiro, e assim
sucessivamente. Cada dançarino dá duas voltas dentro da roda e
retorna ao seu lugar e, desta forma, o samba vai se desenvolvendo
e a roda vai seguindo a ordem dos sambadores, que esperam a sua
vez de entrar, cantando e batendo palmas. No Vai de Virá, a tro-
ca acontece de forma diferente de outros sambas, como a Chula,
sinalizada pelo tradicional movimento da umbigada. Apesar de
não ser uma exigência, a posição dos participantes e a troca de
sambadores acontecem, na roda do Vai de Virá, de acordo com a
sequência do círculo.
A composição da roda é um espaço de celebração da me-
mória, dá vazão às emoções, ao respeito, à alegria e à festividade.
As diferenças são visíveis apenas nos movimentos individuais,
quando cada um segue inventando e reinventando formas de se
expressar por meio do próprio corpo. Os movimentos são rápidos
e corridos, com saltos e giros, variando de dançarino para dança-
rino, conforme suas características e performances. Na roda, po-
de-se identificar movimentos com traços de outras manifestações
culturais de outros lugares, como, por exemplo, a contradança do
Reisado, que aparece nos movimentos de alguns dançarinos e no
toque dos instrumentos.15 A proximidade com os elementos da

15 De acordo com Monteiro (2001, p. 824), “o termo Contradança, que teria


o significado de dança de pares, vis-à-vis; ou viria do inglês, Country Dan-
ce”. Em oposição a Alvarenga (1982), Monteiro (2001) defende a segunda
hipótese, alegando ser mais importante o fato de abandonar a forma an-
tiga do baile, uma vez que, “introduzindo agora a dança de muitos pares
200 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

cultura do Reisado tem permitido a coexistência do Reis e do Vai


de Virá na mesma roda, o que pode ser atestado pelos materiais
de memória, como a caixa, instrumento marcante da roda do Vai
de Virá, que também é usado na Folia de Reis, que é uma prática
cultural presente no município de Guanambi e adjacências, o que
remete às festas realizadas no interior das irmandades negras e
incorporadas às celebrações católicas.16

Considerações finais
O universo do samba, compreendido pelos desdobramen-
tos dos encontros culturais, mediante os movimentos de pessoas,
objetos, ideias e sentimentos, produziu, ao longos dos tempos,
conformações inéditas que abrigaram cantos, movimentos, ins-
trumentos, religiosidades, representações e tradições resultantes
dos processos de mundialização verificados aos longos do sécu-
los. Práticas e materiais culturais americanos, africanos, asiáticos
e europeus conectaram-se em relações de acomodações, coexis-
tências e, mesmo, de resistências e sobreposições que se tornaram
marcantes nas práticas culturais das comunidades negras rurais
de Guanambi e, mais especificamente, nos sambas de roda.
A memória do samba de roda, desde os batuques nas sen-
zalas das fazendas aos sons dos instrumentos de percussão dos
ajuntamentos festivos em algumas regiões do continente africano,

simultâneos, típica do campo inglês, do que a natureza das figuras coreo-


gráficas (de pares vis-à-vis), que pouca novidade apresentam em relação
aos usos da simetria em tempos de Jean-Bastide Lully. A influência inglesa
também me parece plausível e corresponde a um amplo movimento cul-
tural do século XVIII”.
16 Ver: SOUZA, Marina de Mello e. História, mito e identidade nas festas de
reis negros no Brasil: séculos XVIII e XIX. In: JANCSÓ, István; KANTOR,
Iris; (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América portuguesa. Volu-
me I, São Paulo: Hucitec - Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp:
imprensa oficial, 2001. p. 250-260.
Inquisição, poder, cultura e lugares 201

permanece viva e se reinventa em novos tempos e espaços encon-


trados após a travessia do Atlântico. A viagem de dor sublima-se
nas noites americanas que abrigam não somente as similaridades
geográficas tropicais, mas misturas de corpos, sensações, instru-
mentos e os mais variados tipos de emanações que não se podem
definir no presente.
As rodas e as uniões de indíos, sejam por motivos religiosos
ou por desejos de guerra, com seus cantos, instrumentos de sopro
ou de percussão, eternizaram-se ao longo dos encontros com eu-
ropeus e africanos e se deslocam para práticas inéditas de celebra-
ções que sobrevivem até os dias atuais nas comunidades negras de
Tabua Grande, Morro de Dentro e Queimadas.
Os sambas de roda do Vai de Virá, do Quebra Panela e do
Reisado vivos nessas comunidades asseguram a continuidade de
práticas culturais forjadas durante séculos. As influências euro-
peias não se sobrepuseram unicamente. As permanências e con-
tinuidades permitiram mecanismos de coexistências e releituras
personificadas em todos os elementos que compõem o samba,
sejam em seus instrumentos, ou em suas canções ou nas formas
de movimentação dos corpos.

Referências
ALVES FILHO, Bernardo. A pré-história do samba. Edição do au-
tor. Prefeitura de Petrolina – PB, 2002.
ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do
processo de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2006.
CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. Introducções
e notas de Baptista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia.
Editores: J. Leite & Cia. Rio De Janeiro, 1925.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10.
ed. Ediouro, Rio de Janeiro, 2010.
202 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Retalhos da memória: os negros do


Mangal / Barro Vermelho – Comunidade quilombola do Mé-
dio São Francisco-BA. Tese de doutorado – Programa de Pós-
-graduação em história social, Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo - PUC, São Paulo, 2015.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século
XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rev. Amp. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; 1999.
GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos: uma histó-
ria do campesinato negro no Brasil. 1. ed. Claro Enigma, São
Paulo, 2015.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Casa Civil. Subse-
cretaria de Comunicação. Biblioteca Virtual. Dicionário de
instrumentos musicais. [ca. 2010].
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Cia. das
letras, 2001.
IPHAN . Samba de roda do recôncavo baiano (Dossiê Iphan: 4).
Brasília, DF: Iphan, 2006.
IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, co-
mércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século
XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Lei-
tão... (et al.). 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
LEITE, Ilka Boaventura. Humanidades insurgentes: conflitos e
criminalização dos quilombos. Cadernos de debates nova car-
tografia social: territórios quilombolas e conflitos, v. 01, n. 02.
Manaus: Projeto nova cartografia social da Amazônia, UEA
edições, 2010.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4. ed.
São Paulo: Selo negro, 2011
Inquisição, poder, cultura e lugares 203

MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Comunidades quilom-


bolas do Brasil: desafios e perspectivas. Cordis. Revoluções,
cultura e política na América Latina, São Paulo, n. 11, p. 253-
279, jul./dez. 2013.
MONTEIRO, Marina Francisca Martins. A dança na festa co-
lonial. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Iris; (Org.). Festa:
Cultura e Sociabilidade na América portuguesa. Volume II,
São Paulo: Hucitec - Editora da Universidade de São Paulo:
Fapesp: imprensa oficial, 2001. p. 811-825.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História e memória: a cultura
popular revisitada. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
MOURA, Glória. Festas dos quilombos. Editora Universidade de
Brasília, Brasília, 2012.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da ses-
maria ao minifúndio. 2. ed. ver. e ampl - EDUFBA; Feira de
Santana: UEFS, 2008.
PAIVA, Eduardo França. Mandioca, pimenta, aljôfares: trânsito
cultural no império português. In: STOLS, Eddy, THOMAS,
Werner & VERBERCKMOES, Johan. (eds.). Naturalia, mira-
bilia & monstrosa en los imperios ibéricos. Louvain: Leuven
University Press, 2006a. p. 107-122
PAIVA, Eduardo França. Trânsito de culturas e circulação de ob-
jetos no mundo português – século XVI a XVIII. In: ______.
(Org.). Brasil-Portugal. Sociedades, culturas e formas de go-
vernar no mundo português (séculos XVI-XVIII). São Paulo:
Annablume, 2006b. p. 99-122.
REBOLLO, Beatriz Moncó. Misioneros em China. Matteo Ricci
como mediador cultural. In: QUEIJA, Berta Ares; GRUZINS-
KI, Serge. (coord.) Entre dos mundos: fronteiras culturales y
204 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

agentes mediadores. Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-A-


mericanos de Sevilla, 1997. p. 329-349.
REBOLLO, Beatriz Moncó. Mediacióncultural y fronteras ideo-
lógicas. In: LOUREIRO, Rui Manuel; GRUZINSKI, Serge
(Coords.). Passar as fronteiras. Lagos. 1999. (Actas do II Co-
lóquio Internacional sobre Mediadores Culturais. Séculos XV
a XVIII. 1997). p. 339-354.
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Vol. I e vol II,
Rio de Janeiro: H. Garnier, 1888. 2 v.
SANDRONI, Carlos; SANT’ANNA, Marcia (org.). Samba de roda
no recôncavo baiano. Brasília: Iphan, 2007.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. 5. ed., rev. e ampl. - Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2011. ISBN 978-85-209- 3947-5.
SODRÉ, Muniz. Samba – O dono do corpo. 2. ed. - Rio de Janeiro:
Mauad,1998.
SOUSA, Gabriel Soares de. O tratado descritivo do Brasil em 1587.
Ed. Do Instituto Histórico do Brasil. Rio de Janeiro, 1851.
SOUZA, Marina de Mello e. História, mito e identidade nas festas
de reis negros no Brasil: séculos XVIII e XIX. In: JANCSÓ,
István; KANTOR, Iris; (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade
na América portuguesa. Volume I, São Paulo: Hucitec - Edi-
tora da Universidade de São Paulo: Fapesp: imprensa oficial,
2001. p. 250-260
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
WADDEY, Ralph. Viola de samba and samba de viola in the Re-
côncavo of Bahia (Brazil). latin-american Music review, v. 1,
n. 2, p. 196-212, 1980.
Uma descrição etnográfica
da construção de lugares,
espaço-tempos e objetos no
movimento cultural Arte Manha e
afroindígena, Caravelas, BA
Maria de Fátima de Andrade Ferreira
Maria do Rosário Gonçalves de Carvalho

Introdução
O ponto de partida da presente descrição etnográfica é o ma-
terial empírico, coletado nas viagens a campo de março de 2018 a
fevereiro de 2019, que deu origem ao relatório de pós-doutorado
(FERREIRA, 2019), no qual procuramos realizar um estudo et-
nográfico sobre relações interétnicas com um grupo de pessoas
que se autodeclaram afroindígena em Caravelas, no Extremo Sul
da Bahia, buscando estudar o lugar da arte, corpo e memória in-
dividual e coletiva, através de depoimentos dos interlocutores da
pesquisa e suas práticas sociais.
Com esse objetivo, tomamos como ponto de observação,
suas formas de organização social e pensar-saber-fazer a arte e
a construção memorial das diferentes heranças deixadas por
suas ancestralidades, de redes de sociabilidades, relações de pa-
rentesco e relatos de experiências vividas, observando o que tem
contribuído (ou não) com os processos de solidariedade étnica
entre eles, bem como, o modo particular de gestão do território,
distintos de suas práticas sociais e seus modos de vida e saberes
206 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

historicamente construídos. A partir dessa perspectiva, procura-


mos ouvir e compreender, a partir de situações práticas, os modos
que essas pessoas se apresentam e pensam enquanto índios e ne-
gros e o convívio interétnico em um espaço multiétnico e de va-
lorização do corpo e arte como território intercultural, um “local
de cultura” (BHABHA, 2013). E um dos pontos observados foi o
modo como se dá a construção de lugares, espaço-tempos, coisas
e objetos de artes nos ateliês do Arte Manha, sede do movimento.
Afroindígena é um termo explorado por Goldman (2015a)
para designar os agenciamentos entre afrodescendentes e indíge-
nas no continente americano e, provisoriamente, denominado pelo
autor, de “relações afroindígenas”. Nela, coloca-se sob desconfiança
as sínteses e as reduções, pois pensar sobre essa relação é refletir
com alto potencial de desestabilização do nosso pensamento e que,
por isso mesmo, “deve estar no coração de uma antropologia que
encara as diferenças, que leva a sério o que as pessoas pensam, que
é capaz de se manter afastada dos clichês que nos assolam e, assim,
pensar diferente” (GOLDMAN, 2015a, p. 657-658).
Antes de tudo, é importante ressaltar que o tema relações
afroindígenas não é novo, mas vem despertando o interesse de
pesquisadores dedicados a encontrar a melhor maneira para dis-
cutir as relações interétnicas, inclusive quando a questão se re-
fere à (contra)mestiçagem/antimestiçagem, a exemplo de Anjos
(2016), Andrello (2010), Flores (2017), Goldman (2014, 2015a,
2015b), Mello (2007, 2014), Nóbrega (2017), Pacheco (2017),
Pazzarelli, Sauma e Hirose (2017), Vanzolini (2014), dentre ou-
tros. Para Goldman, por exemplo, esse é um processo que tenta
se livrar do mito das três raças (branco, índio e negro) e refle-
tir sobre a forma de pensar das classes dominantes que “têm o
mau costume de produzir efeitos muito reais” e, nesse sentido,
Inquisição, poder, cultura e lugares 207

temos que nos livrar do conceito de suas dimensões representa-


cionais ou mesmo estruturais” (2015a, p. 654). Pois, de qualquer
modo, em todas essas situações, ocasiões e instâncias, o objetivo
da Teoria Etnográfica da (Contra)Mestiçagem sempre foi colocar
em diálogo produções etnográficas e reflexões teóricas oriundas
de dois domínios tradicionalmente separados da antropologia
(GOLDMAN, 2014). A intenção é provocar um diálogo de pro-
duções da “chamada etnologia dos índios sul-americanos e da an-
tropologia dos coletivos afro-brasileiros ou afro-americanos, na
esperança de que, por meio desse diálogo, fosse possível trazer à
luz novas conexões – e novas distinções – entre esses campos” (p.
215). A (contra)mestiçagem é, assim, definida como uma teoria
etnográfica que deve necessariamente se apoiar em teorias nativas.
Os trabalhos de Goldman (2015a) enlaçam um conjunto de temas
e preocupações sobre estas questões e destacam que estas teorias
nunca deixam de opor, ou de distinguir, o cruzamento, a parcia-
lidade, a heterogênese, a modulação analógica, as intensidades,
as variações contínuas, a composição e a (contra)mestiçagem aos
clichês dominantes da síntese, da totalidade, miscigenação, iden-
tificação por contraste, dos interesses, da lógica da assimilação, da
fusão, mestiçagem e/ou sincretismo.
Por essa perspectiva, pode-se abrir espaços para novas for-
mas de expressão artística e cultural e, neles, “as iluminações se
cruzam, as diferenças não existem para serem respeitadas, igno-
radas ou subsumidas, mas para servirem de iscas aos sentimen-
tos, de alimento para o pensamento” (LATOUR, 1996, p. 106).
Essas expressões devem ser reconhecidas como capazes de gerar
novas realidades. Os “clichês dominantes da síntese”, ou seja, as
simplificações da realidade, se estabeleceram durante a coloniza-
208 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

ção brasileira e foram produzidos pelo processo de construção do


imaginário europeu e de sua posição ideológica eurocêntrica.
Nascimento (1978) lembra que esses “clichês” operaram,
no primeiro momento, com informações povoadas de mitos, su-
perstições e preconceitos sobre os costumes dos indígenas que
foram vistos como “selvagens” e observados por visões centradas
na religiosidade e nos modos de vida europeia. Foi assim que no
primeiro momento da colonização do Brasil, diferentes ideolo-
gias sobre a terra e índios brasileiros, sucessivamente, foram po-
voando o pensamento dos colonizadores e colonizados e permi-
tiu formas de relações amistosas, de aceitação e/ou de resistência
entre índios e europeus. Em seguida, operaram contra os negros
africanos trazidos para serem escravos no Brasil, que sem direitos
sociais e políticos, vivenciaram um processo de racismo mascara-
do. A partir de “Quinhentos”, o colonizador se juntou a indígenas
e negros africanos, dando origem a novas formas cognitivas, per-
ceptivas, afetivas e organizacionais e a construção de territórios
existenciais, aparentemente perdidos, mas também, “a recompo-
sição de novas bases do desenvolvimento de subjetividades liga-
das a uma resistência às forças dominantes que nunca deixaram
de tentar sua eliminação e/ou captura” (GOLDMAN, p. 644). As
fontes utilizadas (ALENCASTRO, 1985; COSTA, 2001; COUTO,
1998; GOLDMAN, 2015a, entre outros) apresentam que, apesar
dos numerosos obstáculos, a colonização do Brasil provocou o
encontro entre índios, negros, brancos europeus e, nas zonas de
contato e trocas culturais, “desvendaram saberes, fazeres, crenças,
costumes, tradições e formas de luta de populações tradicionais
orais historicamente invisibilizadas ou estereotipadas pelo poder
das escritas colonialistas” (PACHECO, 2017).
Inquisição, poder, cultura e lugares 209

Para Pratt (1999), a sobrevivência e/ou desenvolvimento


dos grupos e movimentos tem buscado zonas de contato, aqui
nesta pesquisa definidas como espaços sociais onde culturas dís-
pares (africana, indígena e o branco), frequentemente, se encon-
tram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra em relações
interétnicas e formam novas confluências interculturais e mul-
tiétnicas, que conferem espaços à constituição de identidades e
representações mutáveis. Tanto na sua eficácia artística, cultural,
estética e política, como os seus agenciamentos, estão relacio-
nados aos lugares que estes coletivos ocupam em suas redes de
contato e de enunciação, nas suas formas de viver em grupo e
suas especificidades históricas. Os contatos interétnicos entre
colonizadores e colonizados sempre buscavam apagar os vestí-
gios culturais. O primeiro entre missionários, viajantes e povos
indígenas do litoral e, posteriormente do sertão, seja através dos
aldeamentos, que tinham como objetivo “civilizar” e “(re)edu-
car” “aquela gente” e catequizá-los de acordo com a realidade
da política colonial ou por “guerras”. Os permanentes combates
bélicos dizimaram grande parte dessa população, sem preceden-
tes. E o segundo, entre negros africanos, trabalhadores escravos,
viajantes e colonizadores, quando os negros foram submetidos
à mecanismos de reprodução das relações desiguais sempre vio-
lentos, com castigos físicos. Mas também, ocorreram outras for-
mas de encontros entre eles nas zonas de contato, momento que
os negros utilizaram diferentes estratégias, ora de resistência,
ora de acomodação, ora de persistência, para conseguir melhor
tratamento e condição de vida.
Nesse recorte etnográfico, o objetivo é analisar como o
Movimento Cultural Arte Manha de Caravelas busca criar, re-
criar e recontar nas suas ações políticas e artístico-culturais e
210 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

através da construção de lugares, espaço-tempos, objetos e coi-


sas, a sua história e de seus antepassados. Tal processo constrói
subjetividades referenciadas na imagem do afroindígena, uma
memória negro-africana e uma identidade coletiva, que repre-
senta a construção simbólica do sujeito como meio de preservar
a cultura e as características dos seus ancestrais, tradições, cren-
ças, músicas e representações. No primeiro momento, de modo
breve, descrevemos essas relações interétnicas no Extremo Sul
da Bahia, observando o lugar da arte, corpo e memória, tal
qual pensados pelo movimento e seu “Grupo Afroindígena de
Antropologia Cultural Umbandaum”, bem como, acontecimen-
tos que marcaram a história de Caravelas e de sua população e
se misturam com o início da história da colonização do Brasil
de 1500, com a chegada dos europeus. Caravelas é o território
de referência indígena, um lugar de forte identidade negra e in-
dígena, que não pode ser perdida. É um lugar de combinação
de forças operacionais que pressionam a memória dos artistas
desse grupo, em cada vivência e experiência de criação.
A experiência etnográfica com o Arte Manha é, assim, uma
descrição de como tudo começou, os encontros, os acontecimen-
tos, as experimentações com o campo, o reconhecimento de seus
espaço-tempos e território existencial, pessoas, objetos de arte,
teias de cultura e interações, trocas de saberes, e do “saber-fazer-
-fazendo” nas zonas de contato, a performance do corpo-arte, ar-
te-corpo e memória-arte. No segundo, tratamos da construção de
lugares, espaço-tempos, objetos e coisas na sede do movimento,
localizada no bairro periférico de Caravelas. E o último item apre-
senta as conclusões do estudo.
Inquisição, poder, cultura e lugares 211

Relações afroindígenas e o lugar do corpo, arte e memória


no Movimento Arte Manha, Caravelas, BA
A região Extremo Sul da Bahia foi durante muito tempo
ocupada por povos indígenas, desde a chegada da primeira ex-
pedição de Cabral ao Brasil, em 1500. A colonização do litoral
brasileiro pelos portugueses foi intensa, a partir de 1501. É opor-
tuno aqui lembrar que sobre o arrendamento real da exploração
da costa brasileira, em 1502, foi levantada a hipótese da inexistên-
cia do abandono de trinta anos pela colonização portuguesa tão
bem defendida pela historiografia brasileira desde o século XIX.
Caravelas é fruto deste período inicial de exploração por-
tuguesa, com a chegada da expedição liderada por Américo
Vespúcio, que contou com a colaboração de Gonçalo Coelho e
atracaram em terras brasileiras em 1503, iniciando a exploração
portuguesa do seu litoral. Estes foram os primeiros europeus que
chegaram a Caravelas, enviados pelo rei D. Manoel I, de Portugal,
destinada a explorar a faixa litorânea. Com esse objetivo, duas
Caravelas da expedição ancoraram em algum lugar do litoral, en-
tre Caravelas e Mucuri e, assim, a cidade registra a sua história,
com a chegada da expedição que saiu do Tejo em 1503. O navio
Capitânia e outro que pertenciam a essa esquadra naufragaram
próximo a Fernando de Noronha e Américo Vespúcio, consi-
derado um grande marinheiro e mais experiente do seu tempo
conseguiu salvar a sua tripulação. De Fernando de Noronha, a
esquadra comanda por Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho se-
guiram em direção ao Sul e costeou a terra até a latitude de 18
graus, entrando no porto de Caravelas, onde fundou uma feitoria,
que deixou fortificada com 12 peças de artilharia e 24 homens e,
em seguida retornou para Lisboa, Portugal. Não há registro desta
feitoria que, possivelmente, perdeu-se com o tempo, supondo-se
212 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

que foi destruída pelos índios que pertenciam a esta região. A


cidade de Caravelas encontra-se situada na confluência entre os
rios Caravelas, Macaco e Caribe.
Caravelas, como já relatamos em outro momento1, é uma
belíssima e encantadora cidade litorânea, um lugar para se viver
bem, fica no Extremo Sul da Bahia e, como se sabe, é reconhecida
como marco histórico e simbólico na construção de narrativa do
início do Brasil, um espaço hospitaleiro, agregador, onde quem
visita quer morar ou voltar, não pela sua história oficial e coloni-
zadora, construída pelos europeus, mas pela criatividade, força
e hospitalidade de seus moradores. Em especial, dos nativos que
resistiram e ainda resistem até hoje, aos estereótipos, às manifes-
tações de (pre)conceitos, à discriminação racial e étnica e ao des-
caso do poder local, estadual e federal. Esta cidade é considerada
um lugar onde se pode falar-pensar e saber-fazer antropologia e
uma experimentação etnográfica.
Como e onde tudo começou... Um dia de mar agitado, o
vento soprava forte, nada ficava à sua frente, as ondas muito altas
e, com a chegada da segunda expedição portuguesa “a que coube
concluir a verificação do contorno litorâneo do Brasil2, comanda-
da por Gonçalo Coelho que partiu de Lisboa em 1503, um líder
experiente e de confiança da coroa portuguesa. Mas nem a sua
experiência conseguiu driblar o vento que cada vez mais agitava

1 Relatório da pesquisa de pós-doutorado em Antropologia Social, sob a su-


pervisão da professora doutora Maria do Rosário Gonçalves de Carvalho,
pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e recorte desta pesquisa publi-
cado pela Revista Contrapontos, 2021. Doi: 10.14210/contrapontos.v20n1.
p486-507. Disponível em: Disponível em: www.univali.br/perioDicos
2 Ponto 2º - Lição 5ª: Primeiros reconhecimentos e demarcações da costa
do Brasil. Expedições exploradoras portuguesas do Princípio do século
XVI. (p.36). Disponível em: Acesso em: 20 de jun. 2018. http://reficio.cc/
wp-content/uploads/2018/07/max_fleiuss_02_05_primeiros_reconheci-
mentos.pdf
Inquisição, poder, cultura e lugares 213

o mar, as ondas batiam fortes nas caravelas, mar aberto, à vista a


ilha de Fernando de Noronha. Com o temporal que se aproximou,
duas embarcações não resistiram à força do vento e naufragaram.
Por sorte, os tripulantes conseguiram escapar da fúria do vento,
da chuva e do mar. Mas Gonçalo Coelho teve a grande sorte da
companhia do florentino Américo Vespúcio, capitão de uma das
navegações (GUEDES, 1975, p. 243; HOLANDA, 2003, p. 104),
um intelectual, experiente e sabia muito bem calcular as latitudes,
conseguiu escapar e continuar a navegar, a procura de lugar segu-
ro para ancorar e fugir da fúria do mar, do vento, da tempestade.
Na costa brasileira, após ter ocorrido a separação da frota,
na altura da ilha de Fernando de Noronha, devido ao naufrágio
e, tendo-se separado do chefe da expedição, Vespúcio prosseguiu
em direção ao sul, chegando, em 1503, ao território hoje conheci-
do como Caravelas. Um lugar tão caro ao processo de construção
das identidades nacionais, mas as suas belas paisagens naturais,
um rio largo que se encontra com o mar e os menores que exibem
confluências entre eles, suas águas saborosas e bastante peixes,
várias ilhas, umas maiores e outras menores, o vasto litoral e a
riqueza enchiam os olhos daqueles que ali aportaram. A partir
deste “descobrimento”, ocorreram encontros, contatos, conflitos e
negociações com os nativos da costa de Caravelas e, alguns anos
depois, chegaram os negros africanos, aqui escravizados.
Desde esse período, os acontecimentos trazem suas ambi-
guidades, contradições, omissões, como aponta Pereira (1986), a
ambiguidade da Lettera. Pois, “a obrigação contratual da expedição
de 1503, era a de ir 360 léguas além da Baia de Todos os Santos
para erguer fortaleza e guarnecê-la. Isso se fez. Mas onde? Os 18º
S indicados na Lettera”, assim lembra os registros que fazem op-
tar, depois de 100 anos, “Cândido Mendes de Almeida, pelo rio das
214 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Caravelas e não por Cabo Frio”. “Onde o mar é sempre bom nesta
barra (de leste) e na costa circunvizinha; ele é tão calmo quanto
na baia, pelo perfeito abrigo das ‘Paredes’ e todos os recifes que os
prolongam para o N. e para o S”, relata Ernest Mouchez (Les côtes
du Bresil. Paris, 1864, p. 157-158, apud PEREIRA, 1986). Ao chegar
em Caravelas, Vespúcio fundou uma feitoria, nunca localizada.
Segundo relatos, descrições de viajantes e documentos ofi-
ciais (MONTEIRO, 1966; MORENO, 1955, 1968; PEREIRA, 1986;
SOUSA, 1851. 1987, 1946; WIED von NEUWIED, 1940), a história
de Caravelas começa com a própria história do Brasil, em 1503 e,
localizada às margens do rio homônimo, foi uma das mais antigas
vilas do Extremo Sul da Bahia, reconhecida como a maior e a mais
próspera dessa região, vinculada política e administrativamente à
Comarca de Porto Seguro, até meados do século XIX. A sua po-
pulação já foi majoritariamente indígena, assim como as vilas ao
seu entorno. Conforme resultados de estudos sobre relações inte-
rétnicas, no decorrer dos séculos XV e XIX, durante os projetos de
civilização e catequese, os conflitos entre colonizadores e indígenas
foram intensos, “de forma que os grupos indígenas formularam es-
tratégias, lutaram por seus interesses e se movimentaram diante de
um quadro de mudanças significativas decorrente do violento pro-
cesso de conquista e subjugação” (FERREIRA, 2011, p. 12).
A cidade ainda vive de “acontecimentos”, alguns bons e ou-
tros que não gostaria de viver, mas presentes na sua existência e
das pessoas que ali vivem. Nela, um grupo de pessoas vive suas
interações de trocas simbólicas e existências por meio dos acon-
tecimentos que se diversificam no cotidiano do Arte Manha e do
Grupo Afroindígena Umbandaum de Caravelas-BA, fundado em
13 de maio de 1988, depois de uma manifestação que marcou a
vida do grupo e, certamente, do terreiro de candomblé, onde fo-
Inquisição, poder, cultura e lugares 215

ram buscar apoio e parceria para fortalecer suas reivindicações,


luta e resistência negra e indígena. Para Alves (2014), o movimen-
to de Caravelas procura na cultura afro e indígena, raízes para a
sustentação e afirmação do grupo. A contagem recente aponta “o
total de 75 participantes, estes mais assíduos, sendo 35 do sexo
feminino e 40 do sexo masculino” (2014, p. 95).
É interessante que tudo começou, assim, com uma mani-
festação de rua, que foi o suficiente para que o “grupo de ami-
gos”, que já vinha realizando algumas ações artístico-culturais e
legado afrobrasileiro, através do teatro de rua, Capoeira Angola,
o Capoeirangolé, bloco de carnaval, trabalhos literários, especial-
mente, a poesia, se fortalecesse como “ação coletiva”. Hoje, pos-
sui os núcleos: Grupo de Percussão, Ateliê Astúcia de Escultura
e Entalhe em Madeira, Grupo Umbandaum de Dança, Grupo de
Produção e Veiculação de Audiovisual Cineclube Caravelas e de
Comunicação Comunitária, através do jornal “O Timoneiro e tem
participação na política local. Os integrantes do grupo são funda-
dores do Partido do Trabalhadores – PT de Caravelas e percebem
a necessidade de criar estratégias para fortalecer o partido na ci-
dade. Na fala de Itamar, “fomos nós que criamos o PT aqui, me-
nina”. Nas palavras de Dó, “A política tem mudado as coisas por
aqui [em Caravelas]. É preciso reanimar o partido aqui, voltar pra
luta e continuar a ocupar os nossos espaços de luta e valorização
da cultura local.” Jaco lembra: “Somos seres políticos, políticos de
esquerda, mas aqui não é arte e arte é política. Não essa política
como entende aqui (...) [na cidade de Caravelas]”. No entanto, se
considerar o que diz Dó sobre o desejo de voltar a “mexer com a
política”, então, fica claro que algo está incomodando o interlo-
cutor sobre o cenário político atual. Ele afirma: “É preciso voltar
à política e já estamos avançando na ideia de fazer isso, ativar o
216 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

PT. Tudo indica que esta é mais uma “necessidade” que o grupo já
está planejando, buscando estratégias e parcerias para “aprontar”,
isto é, pensando sobre um novo ponto inicial de luta e resistência,
valendo-se de uma boa justificativa.
O grupo não deixa escapar a “ocasião” (CERTEAU, 1996) para
buscar estratégias para suas necessidades. Na década de 80, perío-
do de eleições municipais, grupos políticos de Caravelas tentaram
manipular e induzir grupos culturais locais tradicionais e de ma-
nifestações africanas para comemorar o centenário da abolição da
escravatura, tomar as ruas principais da cidade, com faixas e batu-
ques, na forma de bloco carnavalesco. Do outro lado, se encontrava
ali, um grupo de pessoas, artistas de teatro de rua, capoeira angola,
poesias, literatura de cordel, do jornal Timoneiro, que se desponta
na cidade – uma imagem que o grupo alimenta com todas as suas
lembranças, no mundo em que se imagina os espetáculos da planí-
cie, frequentemente, têm efeitos já gastos e para lhes devolver suas
ações é preciso de uma imagem nova, literária, teatral, corpórea.
Como a lebre que parece olhar pacífica o Universo, busca trégua “de
uma perpétua inquietude, contempla a campina nevoada, torna-se
um sonhador que deseja confiar seus sonhos a esse movimento de
visão que viverá numa tonalidade aumentada a imensidão das cam-
pinas sem fim” (BACHELARD, 1993. p. 32).
Conforme a análise documental, apoiada em Alves (2014),
Ferreira (2011), Mello (2017, 2016, 2014, 2007), Moreira (2015),
Nogueira (2009), foi possível perceber que o Arte Manha parece
continuar em um grande processo de experimentação e na tenta-
tiva de se expressar por outras vias, incorporando em seu interior
questões afroindígenas e da (contra)mestiçagem às tradicional-
mente conhecidas. Em Caravelas, aos poucos, o movimento traz
para si uma renovação em termos de forma e conteúdo que se
Inquisição, poder, cultura e lugares 217

notabiliza, através de pautas e reivindicações, formas de atuação


e espaços de participação, parcerias, encontros, formando uma
teia em zonas de contato. Assim, além de criar espaços de socia-
bilidade política, vem estabelecendo com a comunidade local, seu
entorno e fora do estado da Bahia, outros canais de comunicação,
tão necessários à socialização e divulgação de saberes e intercone-
xões afroindígenas.
Neste movimento, tudo acontece através de parcerias, alian-
ças, chamadas à colaboração e participação. Todas as ações do
movimento são coletivas, compartilhadas, dialogadas em rodas
de conversa, encontros, eventos, reuniões, oficinas – essas não po-
dem e não devem faltar, pois, “aqui, não é apenas para olhar, mas
para participar e aprender a saber-fazer-fazendo”, diz Dó, um dos
fundadores do movimento. Ele é escultor, grafiteiro e ilustrador,
responsável pelo Núcleo de Artes Plásticas, da oficina de entalhes
na madeira, com trabalhos de consciência ambiental, relaciona-
dos à confecção de esculturas com aproveitamento de madeira
“morta”. Comentando a pesquisa de mestrado de Mello (2013),
Goldman (2015a) lembra que Movimento Cultural (o Arte
Manha), Grupo Afroindígena de Antropologia Cultural e bloco
de carnaval Umbandaum, todos os termos são deles.

Neles, desenvolvem uma série de atividades que visam ‘res-


gatar’ a memória afroindígena, usando para isso formas de
expressão artísticas, que envolvem a escultura, os entalhes
em madeira, a pintura, mas também o teatro e a dança.
Além disso, e este ponto é fundamental, sua arte resulta de
pesquisas e debates coletivos sobre suas origens afroindí-
genas e suas formas de expressão. As atividades do movi-
mento se concretizam também no Umbandaum, definido
como ‘bloco-manifestação política’ que, desde 1989, ocupa
as ruas de Caravelas no sábado de carnaval, apresentando
218 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

orixás, caboclos e personalidades históricas marginaliza-


das na história baiana (GOLDMAN, 2015a, p. 651).

Na trajetória de Bosi (1993, p. 281) é possível dizer que “o


tempo nesse lugar não flui uniformemente, o homem que aí vive,
tornou o tempo humano de seus espaços, onde cada classe o vive,
diferentemente, assim como cada pessoa”. Caravelas tem uma tradi-
ção histórica de grupos artísticos e culturais relacionados aos batu-
ques de negros, com manifestações ancestrais, uma cultura plural,
com representações indígenas, portuguesas e africanas. E possui
um patrimônio cultural expressivo em bens materiais e imateriais,
a exemplo, a festa de São Sebastião com a luta de Mouros e Cristãos,
realizada nos dias 19 e 20 de janeiro, a festa de Iemanjá, em 2 de
fevereiro, o carnaval, a festa do Padroeiro Santo Antônio, realizada
de 31 de maio a 13 de junho, festas de São João e São Pedro e outras.
Conforme IBGE (2010), esta cidade possui 18 entidades
sem fins lucrativos e 15 fundações privadas e associações sem fins
lucrativos e conta com ações de grupos e movimentos culturais/
populares, dentre eles, o Coletivo Cultural Barra de Caravelas,
Grupo Afroindígena Umbandaum, Arte Manha, Afro-Feminino
Dandara Zumbi, o bloco de Nagôs e de Índios Tupinambás,
Grupos de festejos de São Benedito e São Sebastião e outros.
Desse modo, tivemos a oportunidade de viver a etnografia
dos acontecimentos e encontros no Arte Manha, especificamente,
no seu núcleo de pertencimento, bem como foi possível participar
de suas ações que provocam inquietações pelas suas reivindica-
ções, luta e persistência, por um país melhor, por dizer não aos
autoritarismos, racismos e dizer sim, ao dinamismo, a vivacidade,
a criatividade, a arte de saber-fazer para repensar a transformação
social no próprio movimento de transformação. O grupo trouxe
provocações e curiosidades quando traz repertórios sociais e his-
Inquisição, poder, cultura e lugares 219

tóricos de suas culturas de origem, a valorização das africanidades


do legado africano e a cultura indígena. E, através de estratégias
que se apropriam da arte, corpo e memória como instrumentos de
luta e reivindicação por espaço, cidadania, respeito à diversidade.
O teatro é valorizado como encontro, presença, contato e cumpli-
cidade, uma atividade que evidencia o corpo-arte, a arte-corpo
e o corpo-memória, por meio da dança, música, percussão, do
corpo sensibilidade. É assim que o movimento elabora suas for-
mulações, constrói lugares, espaço-tempos, coisas, objetos. A im-
portância da arte e do corpo Umbandaum como experimentações
férteis e fecundas por militantes populares e artistas, são formas
de resistência e luta política por direitos sociais.
O espaço do Arte Manha é um lugar de reconhecimento por
meio de produção artístico-cultural e parcerias com grupos cultu-
rais, ONGs, comunidades negras, instituições diversas e de fortale-
cimento de uma memória social da presença indígena e negra em
Caravelas e região em seu entorno. A memória é aqui entendida
como um dos valores fundamentais ao fortalecimento das culturas
indígenas e africana, isto é, um fenômeno coletivamente construí-
do e a pluralidade das memórias corresponde à diversidade dos po-
vos indígenas e afrodescendentes. Este é um aspecto fundamental à
manutenção da identidade social e étnica, abordada numa perspec-
tiva social e cultural, com destaque para as inter-relações entre o in-
dividual e o coletivo no compartilhamento de práticas, representa-
ções, saberes, exercício permanente do saber-fazer-fazendo coisas e
objetos de arte, experiências, crenças e lembranças compartilhadas
entre membros do movimento afroindígena.
Para Bergson (1999, p. 247), a memória é uma “re-criação”
do vivido no presente pelas próprias condições do presente. Uma
persistência do vivido. Ela prolonga o passado no presente, justa-
220 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

mente porque nossa ação irá dispor do futuro na medida exata em


que nossa percepção, aumentada pela memória, tiver condensado
o passado. O presente que parte ao apelo ao qual a lembrança res-
ponde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que
a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (p. 179).
No Arte Manha não há percepção que não esteja impregna-
da de lembranças. A memória e a percepção tornam-se movimen-
tos do ser em conhecimento. Em Halbwachs (1990), a memória é
um fenômeno coletivo, construída por um grupo social e liga-se
à lembrança das vivências e existe quando laços afetivos tecem
o pertencimento ao grupo, mantendo-os no presente. As memó-
rias de um indivíduo nunca são só suas e nenhuma lembrança
pode existir separada da sociedade. Para o autor, memórias são
construções dos grupos sociais, são eles que determinam o que é
memorável e os lugares onde essa memória será preservada” e “o
passado já não se apresenta numa forma ‘pura’, mas, sim, alterado
pela leitura que o presente faz dele” (1990, p. 10). A memória,
como define Halbwachs, é marcada por um funcionamento cole-
tivo e os testemunhos orais são importantes, mas é preciso regis-
trar a memória, diários íntimos, entrevistas, depoimentos, relatos.
E, não resta dúvida, os dirigentes do movimento sabem disso e
valorizam os acontecimentos, a memória, os objetos de arte, as
recordações, as narrações, a construção permanente de zonas
de contato. Ou ainda: a memória é uma vivência do passado, o
qual é presentificado como continuidade. Ela desloca-se de ma-
neira afetiva, quase mágica, entre a lembrança e o esquecimento,
emergindo de um grupo social para manter-lhe os vínculos. Sua
característica fundamental é ser múltipla e desacelerada (NORA,
1993). A memória e as lembranças são frutos da sociedade em
que vivemos e os lugares da memória são visíveis e,
Inquisição, poder, cultura e lugares 221

Quando a memória não está mais em todo lugar, ela não


estaria em nenhum lugar se uma consciência individual,
numa decisão solitária, não decidisse dela se encarregar.
Menos a memória é vivida coletivamente, mas ela tem a
necessidade de homens particulares que fazem de si mes-
mos “homens-memória” (NORA, 1993, p. 18).

Mas o problema, como lembra a autora (1993), é que es-


tes homens-memória já não existem mais. Para Candau (2016),
a memória é a sustentação da identidade, uma construção social,
de certa forma “sempre acontecendo no quadro de uma relação
dialógica com o outro” (p. 9). Sendo a metamemória ou memória
coletiva, um fenômeno que pode ser compartilhado, pois repre-
senta um conjunto de representações da memória. As rememo-
rações “podem partir de muitos lugares, de objetos, de situações.
Podem ser provocados ou emergir involuntariamente motivadas
por qualquer evento externo” (FERNANDES, 2005, p. 169).
Sobre isso, Dó chama atenção e diz: “Se amanhã, nenhum
de nós tiver mais aqui, o Arte Manha tem sua história, está tudo
ali (...). O artista teceu este comentário, apontando para o escritó-
rio, lugar onde eles arquivam documentos, fotografias, relatórios,
inclusive o documento do Padre Venâncio, a placa feita por Lapi,
coisas, objetos produzidos pelo grupo e colaboradores, enfim, a
memória do movimento. No início, ainda sem parceiros, colabo-
radores, o grupo encontra um aliado, o Padre Venâncio, que ce-
deu o espaço, onde hoje é o Arte Manha, para realizar reuniões,
em troca de trabalhos sociais a favor da comunidade da aveni-
da da Liberdade, reconhecida pelos seus moradores, de “Graças
à Deus”. E depois, novas estratégias foram sendo criadas, como
produção de filmes, documentários, eventos itinerantes, todas
realizadas em diferentes espaços, em comunidades negras, aldeias
222 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

indígenas, ONGs ambientais, terreiros de religião de matriz afri-


cana e outros ocupados por minorias sociais.
Para isso, o grupo usa a criatividade, a invenção, a arte, o
corpo e a memória para atender “as necessidades do grupo. Lapi,
cartunista do Pasquim, natural do Rio de Janeiro, jornalista, artista
gráfico e poeta, um ativista político, surge como uma luz radiante
no caminho do grupo e foi fundamental para buscar estratégias e
prosseguir, nomear e fortalecer o movimento. Com ele, o grupo
aprendeu a utilizar o que “sabia melhor fazer”, a arte, a confecção
de coisas, objetos, como instrumentos e veículo de informação
contra ações e práticas colonialistas e autoritárias da sociedade
brasileira. O Padre Venâncio surgiu antes do cartunista, os dois já
falecidos, e foram colaboradores e parceiros importantes para o
fortalecimento da trajetória do movimento.
Silveira (2000) apresenta a presença do povo simples de pe-
riferia como um outro indicador de novidade sobre movimen-
tos dos anos 80 e 90. Em Caravelas, nesse período, o Arte Manha
anuncia a presença de novos atores no espaço público, formado
por um povo simples da periferia, um grupo de amigos, mora-
dores da Avenida da Liberdade, hoje denominado Nova Coréia.
A partir da luta e resistência, o grupo se organizou e não parou
por aí. Persistiu. Agora, com seus oito núcleos de ações artístico-
-culturais, que ainda se encontram em contínua busca de organi-
zação, o Arte Manha incorpora novas formas de luta, resistência
e persistência, com autonomia nas tomadas de decisão coletiva.
Para Mattos (2008, p. 200), as lutas e resistência negra “definiram
formas próprias, através das quais, essas populações ocuparam o
espaço da cidade” e os processos de territorialização foram defi-
nidos nos seus múltiplos sentidos, como local de moradia, traba-
Inquisição, poder, cultura e lugares 223

lho e em seus aspectos culturais, candomblés, batuques, capoeira,


samba, dentre outros.
Gohn (1985) explica que na década de 70 e final de 80, os
movimentos populares ressurgem no cenário político e “se ex-
pressam através de um conjunto de práticas sociais nas quais os
conflitos, as contradições e os antagonismos existentes na socie-
dade constituem o móvel básico das ações desenvolvidas” (p. 46).
Na conversa com Jaco, foi possível perceber a preocupação do
movimento com a atenção do poder público acerca da preserva-
ção do patrimônio cultural da cidade e quando perguntado como
ele avalia o trabalho que o Arte Manha vem desenvolvendo em
Caravelas, e qual a forma de relação entre o grupo Umbandaum
e o Movimento Arte Manha. Ele reconhece que o trabalho que o
movimento vem desenvolvendo na cidade e região é muito im-
portante e sabe que este grupo tem o reconhecimento da popu-
lação, mas antes não entendia o valor desse trabalho. Além disso,
Jaco, um dos coordenadores afirma:

A gente hoje é referência aqui, em Caravelas, é referência


no território, com essa questão sabe de um grupo que tra-
balha com essa questão do negro, do índio, essa questão do
afroindígena, o pessoal lá do Museu Nacional de Antropo-
logia até usaram esse termo afroindígena, tem um grupo
de estudo. Então, eu acho que assim, a gente encontrou
uma forma que não sabe explicar como é que é, mas que
funciona, como se organiza ali o Arte Manha, né... Como
se funciona (...). O Umbandaum é a grande referência, as-
sim, dentro do Arte Manha, né, porque ele tem uma (...), é
mais amplo, ele trabalha com a dança, ele trabalha com a
música, trabalha com a estética, então termina sendo essa
grande referência do (...), é o que aparece mais. Quem dá
as caras, quem vai pra rua é o Umbandaum, quando monta
espetáculo, quando faz o carnaval.
224 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

O bloco de carnaval Umbandaum é um desfile, definido por


Mello (2013) de “um teatro-performance, em que os componen-
tes do movimento incorporam personagens e traduzem suas ca-
racterísticas africanas e indígenas através de expressões faciais e
corporais. O corpo do artista de dança, teatro e percussão é um
corpo que fala, exprime sentimentos, reverencia seus antepas-
sados através da dança, música, toques dos tambores, capoeira,
dialoga com os gestos e produz sentidos e a performance. Nele,
tudo isso “não é apenas a ação do artista, mas também a recepção
do público” (PECH, 2017, p. 16), que sai à rua para ver, aplaudir,
dividir o espaço com o artista e, até mesmo, tentar imitar seus
gestos, jeito de dançar.
Não há dúvida sobre a importância desse movimento para
a cidade de Caravelas, para a vida dos seus integrantes e do seu
reconhecimento como uma referência como “ponto de cultu-
ra”. O Arte Manha se integra às Redes de Pontos de Cultura da
Bahia, pertencente ao Território de Identidade Extremo Sul,
Estado da Bahia, com desenvolvimento de “Programa de Resgate
e Fortalecimento da Cultura Afro-Indígena”, realizando oficinas
permanentes e itinerantes em oito núcleos de produção cultural
integrados. São eles: artes plásticas, artes cênicas, música, capoei-
ra, serigrafia, costura, comunicação e manifestações tradicionais.
As políticas de cultura no Brasil sempre estiveram pautadas
nos financiamentos privados e, desse modo, permitiram a sub-
jugação dos artistas ao capital, prejudicando tanto o desenvolvi-
mento cultural, como o acesso das pessoas às produções cultuais.
Com Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura foram cria-
dos os “Pontos de Cultura com objetivo de estimular a produção
de política cultural dos anos 80. A criação do ponto de cultura em
Caravelas foi muito importante porque permitiu maior visibilidade
Inquisição, poder, cultura e lugares 225

ao movimento e, entre os grupos culturais e populares existentes


na cidade, o Arte Manha se destaca e é o único movimento insti-
tucionalizado desde 1992. Encontra-se sediado na avenida Dr. José
André Cruz, n. 457, bairro Nova Coréia, em Caravelas, BA, sob a
direção dos seus fundadores Itamar dos Anjos Silva, Jaco Galdino
de Santana, Dó Galdino de Santana e Dedé Galdino de Santana
e tem seus membros permanentes que também colaboram com
o seu funcionamento, através de trabalho compartilhado. Na sua
fundação, o grupo foi caracterizado como de “Dança Etnocultura
Afro-Indígena-Brasileira” e, nesse período, contava com, aproxi-
madamente, 17 integrantes e funcionava no Espaço Alternativo de
Cultura e Lazer Dandara Zumbi. Dentre suas atividades principais,
promove cursos de dança com resultados apresentados em espetá-
culos periódicos à população caravelense. Na fase de sua criação
em 1992, passou a ser uma instituição responsável pela execução
do “Projeto PerErê Resgate e fortalecimento da identidade cultural
afroindígena”, através do Programa Mais Cultura nas Escolas, com
apoio da Secretaria de Políticas Culturais, Ministério da Cultura e
Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, nos moldes de Ponto de
Cultura” (ALVES, 2014, p. 9).
O que presenciamos no fazer etnográfico foi impressionan-
te. Observamos que a principal motivação do grupo parece estar
na relação de pertencimento, de não deixar “as necessidades” do
movimento sem estratégias suficientes para realizar suas atividades
artístico-culturais. Outro aspecto é a capacidade de mobilização de
parcerias, aliados e colaboradores à realização de ações coletivas. A
liderança do movimento parece se destacar pela audácia, criativi-
dade, inventividade e, nesse sentido, se diferencia de outros grupos
culturais existentes na cidade e em seu entorno. Mas a diferença
também está na capacidade de “não deixar ninguém para trás”, o
226 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

movimento sempre está disposto a unir, juntar, aproximar e, assim,


avançar e realizar atividades compartilhadas. Nesse sentido, a cons-
trução do saber e de conhecimentos sobre a cidade de Caravelas e
sua população, no passado colonial, não se deu somente com rela-
ção ao objeto de estudo, mas indiretamente aos sujeitos envolvidos
na pesquisa que influenciaram na mesma, provocando situações
imprevistas no campo. Por exemplo, destacamos as teias de rela-
ções que foram se construindo, tecendo fios entre integrantes do
movimento, com pessoas de diferentes movimentos sociais, grupos
culturais da cidade e região, aldeias indígenas, afrodescendentes,
moradores da cidade, funcionários de ONGs ambientais, professo-
res, pesquisadores, alunos de escola da cidade, moradores, terreiros
de religião de matriz africana, dentre outros.
Logo, a dimensão de sociabilidade pelo movimento, espe-
cialmente pelo grupo Umbandaum, chama atenção e, na posição
de pesquisadora, foi possível entender que esse espaço de socia-
bilidade gera novas formas de relações sociais, parcerias, alianças
e contribuições de pessoas que procuram os seus coordenadores
para desenvolver ações artístico-culturais, utilizando estrutura
própria e experiências de alteridade vivenciadas no interior do
movimento. Essas ações são vividas de maneira bastante intensa
através de relações de sociabilidade, da construção e trocas de coi-
sas, objetos, ocupação de lugares, de espaço-tempos que se cons-
troem continuamente. As relações se intensificam em ambientes
de sociabilidade virtual, conectados com localidades dentro e fora
do território baiano, do País e até fora do território brasileiro, com
a interseção com vários mundos (SIMMEL, 1967).
Trocas, alianças e formas de interação com outros grupos
sociais deixam transparecer que a compreensão do movimento de
Caravelas é de que o reconhecimento da diferença é um elemento
Inquisição, poder, cultura e lugares 227

construtivo da sociedade. O grupo promove encontros no espa-


ço de interações, tanto na sede do movimento como no Dandara
Zumbi, para falar, discutir, refletir e socializar conhecimentos e
saberes que eles reconhecem como “saber-fazer”, através de trocas
entre pessoas de experiências diversas e do reconhecimento de in-
teresses e valores diferentes sobre o que “sabem-fazer-fazendo” coi-
sas, objetos. As redes sociais são diversas e, permanentemente, uti-
lizadas pelo grupo para fazer novos amigos (as), parentes, redes de
sociabilidades, trocas de saberes, construir lugares, espaço-tempos,
objetos e coisas para divulgar o Ponto de Cultura e geram novos sa-
beres, novas formas de relações sociais e experiências de alteridade
e pertencimento afroindígena. As redes de sociabilidades mantidas
pelos pesquisados e colaboradores nos levam a interpretar as teias
como redes de comunicação, onde o sentimento de pertença a um
espaço de amizades, trocas e simbólico se constitui.
Para Maffesoli (1987, p. 194), essas redes são espaços da cons-
tituição de microgrupos, “das tribos que pontuam a espacialida-
de” como um espaço que exige novos comportamentos, atitudes,
performance diferenciada em relação a outros espaços de sociabi-
lidade e “se faz a partir do sentimento de pertença, em função de
uma ética específica e no quadro de uma rede de comunicação”.
Nos momentos de ações coletivas ou preparação das performances,
as identidades dos seus antepassados se misturam com o presente
e, nesse ponto de encontro com a etnografia, buscamos apoio de
Pollak (1992), para entender que a memória do grupo “se torna
constituinte do sentimento de identidade sendo importante como
continuidade e coerência individual e de grupos” (p. 5). As suas
ações, vestimentas, adereços, penteados, pinturas do corpo, uso de
tecidos coloridos, extravagâncias de movimentos nos gestos e na
dança, contribuem com a memória pessoal e, de forma comparti-
228 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

lhada, o grupo constrói a memória coletiva. Nesse contexto, estão


os idosos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, todos em sinto-
nia com o espaço, tempo e o lugar. Como diria Benjamin (1996, p.
211), a reminiscência funda uma possível cadeia de tradição, é ela
que “tece a rede que, em última instância, todas as histórias cons-
tituem entre si”. Assim, o grupo constrói uma rede de tradição em
cadeia, que permite a transmissão dos acontecimentos, fatos e tro-
cas de saberes de geração em geração.
Nessa perspectiva, o grupo faz pesquisa, discute temas em
roda de conversa, recolhe fotografias antigas da cidade e da his-
tória de vida do movimento, realiza pesquisa na internet, ler rela-
tos históricos e de viajantes coloniais que visitaram a região e, ao
que parece, está permanentemente antenado e utiliza metodolo-
gias compartilhadas em oficinas. Itamar diz que a performance
do grupo Umbandaum é importante e valorizada pelos seus in-
tegrantes e uma das estratégias utilizadas pelo movimento para
contar a sua história e de seus antepassados. O interlocutor revela
que “não gosta de aplausos”. As atividades que o movimento se
propõe a realizar, “não cabem aplausos naquele momento que se
fala de coisa séria”, diz ele. Ele se refere ao sofrimento, escravidão,
maus tratos, dizimação de indígenas e negros pelos colonizadores
e autoritarismos na sociedade brasileira. Quando questionado so-
bre a performance do grupo Umbandaum, Itamar, coordenador
do grupo, afirma que,

não é uma questão lúdica, um espetáculo, não está à dispo-


sição para turista ver, não é assim (...), é, sim, uma necessi-
dade de mostrar a resistência do grupo afroindígena contra
os preconceitos, a discriminação que ainda sofremos pelas
mãos e olhares dos brancos, dessa elite que acha que tem o
poder (Itamar, 2018).
Inquisição, poder, cultura e lugares 229

Dó, também coordenador do movimento, realça esse co-


mentário sobre o grupo e diz:

O grupo é um espaço de vida, onde nós aprendemos a sa-


ber-fazer, aqui, não tivemos mestre, a capoeira não tinha
mestre, foi na rua que aprendemos, criei meus filhos aqui,
com a arte (Dó, 2018).

Em cada conversa com Itamar sobre a formação inicial do


grupo e, em seguida, a criação do Umbandaum e do Arte Manha,
surgem pistas das lembranças e uma versão possível da memó-
ria familiar, das trajetórias de vida e movimentos compartilha-
dos, uma memória vivida e construída nas experiências do grupo
e representação de uma família formada por diferentes pessoas
que, ao entrar naquele espaço artístico-cultural, “torna-se mais
um Umbandaum”. Basta entrar. Entrou, então já pertence ao gru-
po”, como pensa Itamar. Com isso, “o passado permanece vivo”
(HALBWACHS, 1990) no grupo e, cuidadosamente, as recorda-
ções coletivas são ordenadas pelos integrantes do movimento, de
acordo com suas próprias percepções que estão constantemente
sendo influenciadas pelos valores do grupo a que pertencem. E,
assim, o passado vai sendo reconstruído e as lembranças de rea-
lidades vivenciadas, permitem pelos fragmentos e rastros, uma
busca elucidativa em determinado tempo e espaço.
Vale lembrar, ainda, que Dó quando foi perguntado sobre a
formação do grupo Umbandaum e do Arte Manha, relatou que
“Itamar e Jaco vinha[m] de um movimento aqui [da cidade de
Caravelas-BA], literário desde 82, junto com Roberto Barata,
Marcos, dito Macrô e Pedrinho, filho de Bernarda Gata; enfim,
eles vinham fazendo entalhes e fazia uma produção literária que
jogava pra revista”. Assim, “o lugar da memória” (NORA, 1993)
230 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

serve para garantir a fixação das lembranças e de sua transmissão


e caracteriza as experiências vividas pelo grupo, ainda que muitos
de seus membros não tenham participado diretamente da forma-
ção inicial dos primeiros movimentos que permitiram a criação
do grupo Umbandaum e, posteriormente, do Arte Manha. Na
concepção de Sarlo (2007, p. 25),

a narração inscreve a experiência numa temporalidade que


não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio come-
ço pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua
lembrança. A narração também funda uma temporalidade,
que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.

Para o artista, apesar desse grupo de pessoas já não fazer


mais parte do movimento por diferentes motivos, por ter conse-
guido emprego em outra cidade, sair para estudar fora, dentre ou-
tros motivos e alguns não se encontram mais aqui, “já não estão
mais aqui, morreram”, diz Itamar, o grupo guardam na memória
e lembra das sociabilidades, vivências e formas de participação
dessas pessoas que já se foram. Mas que continuam nas tramas
e entrelaçamentos da memória individual e coletiva do grupo e
mergulhadas na “função fantástica” que a memória organiza es-
teticamente na recordação (DURAND, 2002), reveladas nas foto-
grafias, nas vestes guardadas, nos objetos de arte, na lembrança e,
ao que parece, guardam uma esperança – seguir em frente, lutar
e resistir. Nessa perspectiva, o artista Umbandaum diz: “Mas o
grupo segue seu rumo e hoje ele ainda continua ativo por conta
de pessoas que acreditaram na força que ele traz desde sua gênese
em 1988” (Itamar, 2018).
Enfim, a potencialidade do movimento e do corpo no
Umbandaum é vista pela interatividade entre as artes e estes cor-
Inquisição, poder, cultura e lugares 231

pos se utilizam de aparatos que potencializam seus movimentos,


sua performance afroindígena. Os objetos são utilizados como
extensão do corpo. O corpo cria seus movimentos a partir de si-
tuações vividas e no ritmo da percussão e se corporifica como um
objeto de arte. O uso do corpo no movimento da dança é como
instrumento de relações e interações, “o corpo sensibilidade”, o
corpo-arte e a arte-corpo. Portanto, é possível compreender a
importância dada pelo movimento para a construção de espaço-
-tempos, objetos e coisas por seus oito núcleos de produção artís-
tico-cultural e representam a identidade individual e coletiva dos
integrantes do grupo e instrumentos necessários para preservar a
cultura e as características dos seus ancestrais, tradições, crenças,
músicas e representações.

A construção de lugares, espaço-tempos, objetos e coisas


no Arte Manha
O Movimento Arte Manha possui dois espaços onde realiza
suas atividades artístico-culturais, rodas de conversa, encontros,
eventos, oficinas de dança, capoeira, pintura. O espaço princi-
pal é a sua sede, os eventos, geralmente acontecem na Arena do
Massapê e o outro é o espaço Dandara Zumbi.
No primeiro espaço, que é a sede do Arte Manha, são realiza-
das atividades artístico-culturais, oficinas de artes, danças, capoei-
ra, confecção de materiais e objetos de arte, oficina de entalhes em
madeira e objetos de cerâmica e, também, é uma arena reservada
para a realização de ensaios dos desfiles de carnaval e do grupo de
percussão Umbandaum, reuniões e encontros com pessoas de ou-
tros movimentos sociais e grupos culturais, dentre outros.
232 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Foto 2: Objetos na exposição, espaço interno do Arte Manha. Fonte:


Arquivo da pesquisa, 2018.

No Dandara Zumbi são realizadas reuniões, rodas de con-


versa, oficinas de dança, capoeira, ensaios, de acordo com as “ne-
cessidades” do Movimento. A visitação de pessoas de fora e de
dentro da cidade acontece em espaço-tempos diversos. O espaço
da sede fica aberto ao público, é um lugar amplo, onde também
reside a família Dó Galdino e Simone dos Anjos, com seus filhos.
Na sala de entrada ficam objetos de arte, colocados à exposição
dos visitantes e, ao lado, fica o escritório, sala de arquivos de do-
cumentos e fotografias e, por toda parte há objetos de arte espa-
lhados, no teto, nas paredes, na divisória da arena de apresentação
de eventos e peças teatrais.
Inquisição, poder, cultura e lugares 233

Foto 1: Área de exposição de objetos de arte e atividades, espaço


externo do Arte Manha, Caravelas, BA Fonte: Arquivo da pesquisa,
2018.

Ao entrar na porta principal, depara-se com um salão à


frente e, ao sair do salão, encontra-se um espaço aberto. O pri-
meiro com cobertura (Foto 1) e outro, a arena do Massapê, sem
cobertura, onde ocorrem festas, encontros e eventos. Este último
possui um pequeno palco de madeira para a produção de shows
e outras atividades. No salão, os objetos de arte estão em mesas,
paredes, chão e teto, todos à disposição dos olhares atentos de
quem chega (Foto 2). No fundo dessa área de entrada, onde fica
localizado o escritório e espaço de exposição de objetos em mesas,
chão e paredes, fica o ateliê do Arte Manha, espaço de criação e
inventividade, coordenado por Dó, um dos líderes do movimen-
to, que encontrando-o próximo a esse espaço, logo aponta e diz:
“ali está o nosso ateliê, uma oficina de criatividade, onde a nossa
filosofia é saber-fazer”. Dó faz descrição do ateliê:
234 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Olhando para este lugar parece que está desorganizado,


para as pessoas que chegam parece que este lugar está ba-
gunçado, mas não, cada coisa está no seu lugar, onde deve
estar para ser usado. É um espaço de trabalho, onde usa-
mos a criatividade e tem produzimos para manter o movi-
mento e renda. E nossa filosofia é saber-fazer e assim faze-
mos tudo aqui (DÓ, 2018).

Durante os preparativos para o carnaval de 2019, foi pos-


sível acompanhar o trabalho de Dó, na construção de objetos de
ornamentação das ruas da cidade, desde os seus primeiros traços
a lápis a mão livre e com desenhos criativos no compensado até
seus detalhes e pinturas a obra finalizada e pronta para ornamen-
tar as ruas para o carnaval. Com muita habilidade as suas mãos
seguram um lápis que desliza sobre a folha de compensado, fa-
zendo contornos finos e delicados e, de repente, a criatividade do
artista Umbandaum, sua inventividade, percepção e sensibilidade
para pensar, criar, traçar, desenhar, pintar e esculpir objetos e or-
namentos carnavalescos, trabalhados à mão livre, impressiona o
espectador. Os desenhos são criações do artista que “surgem da
imaginação criativa”, para fazer uma descrição de uma história de
acordo com o tema do carnaval. Sob o olhar do artista a madeira,
a tinta, os instrumentos de trabalho se transformam, dando for-
ma, beleza e sentidos ao trabalho manual do artesão, acessível ao
público. Dó, sem ser perguntado, faz questão de dizer que “este es-
paço é aberto para todos e todos os dias, quem deseja entrar para
ver, apreciar, pode vir que está tudo aqui”. Nesse momento diz
que “a cultura é de deixar aberto, sempre aberto (...). As figuras,
abaixo, é uma sequência da arte em transformação, objetos para
compor a ornamentação de rua do carnaval de 2019.
Inquisição, poder, cultura e lugares 235

Foto 3: Desenho na madeira à mão livre. Fonte: Arquivo da pesqui-


sa, 2019

Foto 4: Recorte em transformação. Foto 5: Ornamentação da rua-


-passo 3
236 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2019. Fonte: Arquivo da pesquisa, 2019

Combinamos um encontro com Itamar, em 14 de janeiro,


na sede do movimento e quando chegamos às 8 horas da manhã,
para conversar um pouco sobre a visita na aldeia Água Vermelha,
em Pau Brasil e, ao entrar na área aberta, encontramos Dó, preo-
cupado com a produção da ornamentação do circuito do carna-
val. Entramos no seu Ateliê e fomos conversar com ele, observar
a decoração do carnaval que estava sendo produzida. É impres-
sionante a habilidade do artista para traçar o desenho à mão li-
vre na madeira, ganha contorno, vida, ação e, ao que parece, a
sua intimidade com as artes plásticas revela o talento e o domínio
do artista nesta área. Observamos por alguns minutos para não
incomodar, principalmente porque ele estava correndo contra o
tempo, com pouco recurso financeiro e, por isso, teria que fazer
“um milagre” com suas mãos habilidosas para conseguir produzir
uma quantidade suficiente de objetos de arte para ornamentar o
circuito do carnaval. O desenho a mão livre no compensado foi
tomando forma, depois foi recortado com serra fita própria para
trabalhos de contorno na madeira e, em seguida, quando todas as
Inquisição, poder, cultura e lugares 237

peças já estavam prontas, foram pintadas. Entende-se que muita


produção artística como

a própria organização de exposições, gira em torno da fi-


gura do artista, e já não apenas da obra de arte isolada e
deslocada do seu local de criação. E, sendo assim, ao artista
é exigido que viaje constantemente entre os vários locais
onde é convidado a expor e trabalhar, deixando para trás o
seu espaço pessoal e privado de criação (o ateliê na sua de-
finição tradicional), que agora se transforma nos múltiplos
espaços onde cria e expõe (AZEVEDO, 2014, p. 7).

O ateliê do Arte Manha é um espaço construído com madei-


ra, sem portas e janelas, aberto à visitação do público e para todos
que, diariamente, ocupam este espaço para aprender a saber-fazer
objetos, coisas, mobílias com aproveitamento de restos de madei-
ra, encontradas nas matas e outros lugares, tidas como mortas,
sem vida, nas oficinas de carpintaria e marcenaria, serrarias, que
tem como destino o fogo ou apodrecer ali mesmo. Desse modo,
as sobras de madeira que já estão para ser queimadas e/ou jogadas
fora, ganham nova vida nas mãos dos artistas sob a coordenação
de Dó, que lhes dão forma e vida, construindo lugares, objetos,
“coisas” e história afroindígena. O saber-fazer-fazendo do artista,
assim conhecido porque aprendeu a produzir arte na “escola da
vida”, tem como recursos materiais, a reaproveitamento de suca-
tas, sobras de madeiras, ferro, plástico e outras matérias reapro-
veitáveis, que já estão para serem jogados no lixo. Esse processo
de produção artesanal permite aos visitantes uma experiência
mais próxima do ato e do processo criativo dos artistas e, certa-
mente, de modo simultâneo, abrem as portas para novos modos
de pensar e explorar a relação entre o artista, a arte, a sua história
238 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

de vida e a de seus antepassados. Assim, independente do modelo


do ateliê ou lugar de produção,

o seu estudo é sempre revelador do processo criativo de um


artista. Não é por acaso que os escritos de artistas, as entre-
vistas ou os filmes com artistas a trabalhar, são muito usados
como fontes de acesso primário ao pensamento e ao proces-
so criativo de um artista. Todas as fontes podem ser encon-
tradas através do estudo do ateliê e dos vestígios e pistas que
nele possam existir, e que se revelem essenciais para um mais
completo entendimento do corpo de obra de um artista e do
seu método de trabalho (AZEVEDO, 2014, p. 7).

A casa de Itamar, como ele denomina, “o meu cantinho”, é


uma construção de alvenaria, com espaços definidos, conforme
sua criatividade e imaginação. Logo que entramos pela primei-
ra vez ele chamou atenção e diz: “Olhe, vocês viram? Para dar
um toque, coloquei taipa por dentro nesta parede aqui. Deu um
toque. Ficou diferente, né”. A parede ficou muito bonita, um am-
biente rústico e bem natural, combinando com a mobília, os en-
feites indígenas e africanos. Na entrada da casa, do lado direito,
um pequeno altar com os santos católicos e divindades africanas.
Uma das paredes que fica do lado direito da casa foi feita com a
técnica de taipa de pilão, com terra crua, com matéria-prima, rús-
tica e a consistência da parede mostra uma arquitetura simples e
de qualidade, com uma coloração muito bonita, nude, discreta. O
piso em cerâmica, mas em forma de mosaicos preto e branco; em
um outro cantinho da entrada da casa foram colocados objetos da
cultura de matriz africana e, nas paredes, exibe objetos de entalhe
em madeira, cerâmica e quadros com desenhos afroindígenas, fle-
chas, anzóis, cuias, canoas, adereços indígenas e africanos (Foto 6,
7 e 8). Os quadros são bonitos, pintados com cores exuberantes,
Inquisição, poder, cultura e lugares 239

confeccionados com sucatas de ferro, contas, uma obra de arte.


Na porta do banheiro um entalhe em madeira, representa uma di-
vindade africana. Itamar também se dedica à pintura de quadros
de parede, muito bonitos, com detalhes africanos e indígenas.

Foto 6: Máscara africana e parede de taipa na casa de Itamar, artista


Umbandaum, Caravelas, BA. Fonte: Arquivo da pesquisa, 2019
240 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Foto 7: Representação da Deusa da fertilidade


Fonte: Arquivo da pesquisa, 2019
Inquisição, poder, cultura e lugares 241

Foto 8: Representação de um índio e a natureza na colonização.


Fonte: Arquivo da pesquisa, 2019.

Durante a observação etnográfica foi possível voltar o olhar


para aquilo que objetos e lugares desempenham nas atividades
do movimento e, seguindo suas trajetórias, encontros, eventos,
observamos ações, nas quais, essas materialidades fazem pensar,
falar e sentir, para utilizar expressão de Latour (1996), manifesta-
da na condição fundamental dos seres humanos, permitem uma
identidade social ao grupo. Como objetos, coisas, paisagens, o
mundo material se relaciona com o mundo dos humanos, “mas
aos quais é atribuído um sentido” (LATOUR, 1994). Nas repre-
sentações de ações humanas, conforme a abordagem simétrica,
há uma relação entre a ação humana e seus reflexos nas ações dos
objetos, coisas. Mas a relação estabelecida com os objetos obser-
vados se dá por meio da potência de representação, de modos de
vida, de ações que esses objetos possuem. Contudo, essa represen-
242 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

tação não se dá de modo individualizado nos objetos, mas sim,


por categorias de objetos.
Na dinâmica das relações socioculturais, como sugere Olsen
(2003), coisas, artes, objetos, paisagens, possuem qualidades reais,
concretas, que afetam a forma da nossa percepção deles, tanto
quanto a nossa coabitação com eles. Ou ainda, com a materiali-
dade aprendemos a ter domínio dos objetos na constituição de
nossas relações sociais (MAUSS, 2003). E, nesse sentido, é preciso
pensar as características relacionais da materialidade (DELEUZE
e GUATARI, 2004), pois a atenção na socialização das pessoas e
grupos sociais, coisas, objetos, é muito importante para compreen-
der a sociedade, seus grupos e espaços de convivências e trocas de
saberes. No Arte Manha, é possível perceber a importância dada à
construção de espaços, objetos, coisas e que são apropriados pelo
movimento e, assim, mantém o pertencimento da materialidade ao
grupo afroindígena. O espaço aberto possui uma lagoa onde criam
jacarés, peixes em quantidade, um lugar agradável, cheiro de mato,
com bancos de madeira rústica e é o ponto de encontro dos amigos,
de realizações de encontros, rodas de conversa, evento. Esta área é
denominada Arena do Massapê. No Dandara pode-se observar se-
melhante estilo de se organizar o espaço; é mais simples que a sede,
um salão amplo, mas aconchegante, alegre e, também, um ponto de
encontro, reunião, ensaios e conversa.
A etnografia revelou que, nesses espaços, é possível obser-
var um engajamento entre objetos, lugares e pessoas e permite
o aprendizado afroindígena, especialmente no que se refere ao
pertencimento ao movimento cultural e político e rede de pa-
rentesco. As entrevistas realizadas, preferencialmente, com as
pessoas mais atuantes do grupo, seus líderes, coordenadores,
dançarinas, grupo de percussão, colaboradores, foram direcio-
Inquisição, poder, cultura e lugares 243

nadas, no primeiro momento, para a apreensão dos vínculos de


parentesco. Em março de 2018, na observação e descrições et-
nográficas sobre o espaço do Arte Manha, conversamos sobre
a produção artística do movimento e, logo foram mostrados os
objetos de madeira e de barro produzidos com crianças e ado-
lescentes. Essas oficinas são bem planejadas e garante a partici-
pação com envolvimento das crianças e adolescentes do bairro
periférico, onde está a sede e o Dandara, mas também, das que
moram no centro da cidade e visitantes de cidades circunvizi-
nhas e de outras localidades da Bahia e do País. Segundo Dó,
os participantes das oficinas são conscientizados da importância
de, por exemplo, “cuidar da natureza”, da agroecologia e orien-
tados sobre a preservação ambiental, a proibição da pesca de
peixes em extinção, como o mero, e da carcinicultura.

Figura 9: Objetos de arte construídos na oficina Ateliê Astúcia, Arte


Manha, Caravelas, BA Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.
244 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Figura 10: Gigantes de escama do Cassurubá, produção de arte do


Ateliê Astúcia, Arte Manha, Caravelas, BA. Fonte: Arquivo da pes-
quisa, 2018.

Dó veio andando ao nosso lado até a sala de exposição de


objetos de arte, apontou para um peixe mero no entalhe em ma-
deira (Foto 9 e 10) e diz:

Esse é o peixe mero, o mero está em extinção e tenho bus-


cado conscientizar os filhos dos pescadores que é melhor
aprender a produzir o peixe no entalhe em madeira e ven-
der, do que pescar o peixe. Olhe aqui porquanto é vendido
esse aqui. E esse valor pode ser maior, porque vale mais que
isso (Dó, 2019).

Esses objetos ficam à exposição para os visitantes. E, mos-


trando o valor do objeto, Dó explica:

Veja aqui, este trabalho tem um significado importante


para nós (...) é um trabalho produzido pelos meninos e me-
Inquisição, poder, cultura e lugares 245

ninas que participam da oficina e aprende entalhe em ma-


deira, é um mero, um peixe em extinção e nós procuramos
mostrar para os filhos dos pescadores que é mais lucrativo
para eles venderem um objeto desse do que o pescar o pei-
xe para vender. Olhe o valor. Chamou nossa atenção que
verificamos o valor do objeto – o peixe mero (Dó, 2019).

No relato de Dó, os objetos de artes (Foto 11 e 12) que ficam


no salão de entrada e na área externa coberta da sede do movi-
mento, um lugar reservado para exposição de objetos à disposição
de quem vai visitar o espaço, pode ser adquirido por um pequeno
valor, que é repassado para o aluno que produziu.

Figura 11: Objetos de arte construídos na oficina Ateliê Astúcia, Arte Ma-
nha, Caravelas, BA. Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.
246 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

Figura 12: Entalhe em madeira e pintura, produção de arte do Ateliê


Astúcia, Arte Manha, Caravelas, BA Fonte: Arquivo da pesquisa, 20
18.

Os filhos dos pescadores são conscientizados a não pescar o


mero, mas podem aprender a produzir o peixe na oficina de enta-
lhe em madeira seca, pedaços de madeira adquiridas em lugares
onde são dadas como “madeiras mortas” e aproveitadas por eles
para a produção de objetos de arte. Ao ser questionado sobre isso,
Dó diz:

Falo sempre para eles que é melhor assim, do que pescar


o peixe para vender; aqui eles ganho mais e preserva a
vida do animal, e tenho insistido nisso, e vende mesmo, as
pessoas vem, gostam e levam. Essa é uma oficina que vem
dando certo aqui, a gente ensina a eles a produzir e cons-
cientiza educando também (Dó, 2018).

Alguns dias após o carnaval de 2019 visitamos o Arte


Manha e lá encontramos Dó, agora no escritório com seu filho
Ruy, mexendo no computador e, logo que chegamos na sala, nos
recebeu com satisfação, alegria e conversamos um pouco sobre
a festa carnavalesca, a participação e sucesso do Umbandaum e
Inquisição, poder, cultura e lugares 247

da banda de percussão no desfile ao tomar as ruas principais da


cidade. Comentamos sobre a presença e envolvimento dos foliões
com o bloco e trio Afroindígena Umbandaum e as contribuições
dos artistas na ornamentação das ruas do circuito. Com poucos
recursos, o movimento busca coragem, dedicação, inventividade
e criatividade e estes elementos são suficientes para a festa ficar
bastante colorida e alegre. Os personagens africanos e indígenas
são exibidos com um colorido muito bonito, um jogo de cores e
efeitos que as pessoas param e ficam por alguns minutos a apre-
ciar e elogiar a perfeição da produção, filmar e fotografar tudo.
Dó fala com alegria e sorri entusiasmado com os resultados do
trabalho que o movimento vem realizando e mostra os novos
objetos de entalhe em madeira produzidos pelos seus alunos na
exposição, pendurados na parede do fundo do salão de entrada
da sede. Esses ainda estão em processo final de produção, sem
pintura, produzidos na madeira, uma produção artístico-cultural,
simbólica e bem natural. Os artistas acreditam que todo objeto da
natureza é uma verdadeira obra de arte e, assim, os entalhes em
madeiras e outros matérias que eles chamam de “mortas”, ganham
vida, beleza, estética. Dó diz que “não é fácil manter este espaço,
aqui, tudo é muito difícil, mas estamos sempre inventando algu-
ma coisa para poder manter e tem dado certo”.
O Arte Manha desenvolve ações artístico-culturais todos
os anos, em parceria com diversas instituições governamentais
e não-governamentais, associações, movimentos sociais, negros,
indígenas, ambientais, ecológicos e grupos culturais, setores da
sociedade civil organizada, profissionais liberais, ativistas, univer-
sidades e centros de pesquisa. Essa parceria é muito importante
para a manutenção das atividades do movimento, pois recebem
pouco apoio financeiro do governo para a realização de suas
248 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

ações. Neles, são apresentadas dinâmicas participativas variadas.


Sendo assim, os objetivos do Arte Manha e suas articulações com
parcerias diversas para realizar suas ações, dão pistas do que espe-
rar desse movimento, que toma as ruas de Caravelas, desde o ano
de 82, mas, ao mesmo tempo, apresenta um cenário de incertezas
no contexto político em que vive.
Na sociedade brasileira atual se percebe pouco interesse (ou
não existe) de instituições parceiras em dar continuidade a essas
ações artístico-culturais, quando não existe interesse suficiente
do “poder” do Estado em ocupar-se da responsabilidade com as
comunidades tradicionais e os objetivos não são comuns. É im-
portante marcar que a atual visibilidade do movimento pode estar
incomodando “quem se encontra do outro lado”, por exemplo, o
grupo tem encontrado e ainda pode encontrar alguma dificulda-
de, no momento político atual, para enfrentar a discriminação de
raça, etnia, gênero, classe social contra negros e indígenas. Em
diferentes momentos de diálogo com os líderes do grupo, escutei
a palavra cultura, em entrevistas gravadas, conversas informais,
encontros e rodas de conversa. Este termo apareceu em diferentes
momentos, principalmente em relatos de suas experiências sobre
militância política.
O descolamento entre o movimento e as parcerias é um fe-
nômeno que, certamente, os líderes do movimento não desejam
que aconteça. Isto porque, o sentido das ações do movimento
depende desses espaço-tempos participativos e democráticos à
realização de suas atividades artístico-culturais e político-peda-
gógicas. Estes são espaços que o movimento vem criando, ao que
tudo indica, capazes de decidir, da melhor maneira possível, os
seus rumos e de tomar as melhores decisões para atingir seus ob-
jetivos de tornar-se visível para os espectadores e participantes de
Inquisição, poder, cultura e lugares 249

suas manifestações políticas. A participação das parcerias é vista


como instrumentos para ampliar o poder de luta e a resistência
do movimento e formar redes sociais que possam contribuir e, de
alguma forma, fortalecer as suas manifestações afroindígenas e da
militância política local.
No Arte Manha, a rede de articulações dissemina ideias,
propostas, reivindicações socioculturais, concepções políticas, na
mídia e na literatura (SCHERER-WARREN, 2012, 2014), tornan-
do visível o espírito de luta e de reivindicações no movimento. As
manifestações têm um fim específico e articulado a história de
reivindicações e lutas que se propagam (MELUCCI, 2001). Esse
grupo de militantes políticos saiu às ruas também com suas ban-
deiras de reivindicações por posições e por respeito às suas diver-
sidades políticas, de raça, etnia, gênero, e em busca do exercício
da cidadania e fortalecimento da democracia (AVRITZER, 2007).
Enfim, o encontro de jovens amigos foi uma ferramenta es-
sencial à aproximação de pessoas com interesses comuns e deci-
sivo para que o grupo fosse às ruas da cidade manifestar-se e ir às
ruas tornou-se um hábito novo para os manifestantes no ano de
82 e deu certo. Este grupo de jovens criou o Núcleo Afroindígena
de Antropologia Cultural Umbandaum e se tornou mais forte e
reconhecido pelas suas ações e identificação política e artístico-
-cultural. O movimento manifesta-se na rua, cria conflitos e entra
no meio do desfile de bloco culturais da cidade, utiliza a capoei-
ra de Angola Penuá para se fortalecer no manifesto e “apronta”.
Como diz Jaco, o Arte Manha enfrenta políticos, coloca-se em
manifesto atrás do grupo de Nagôs, entra no terreiro de candom-
blé para participar dos rituais africanos e proclama a poesia de
Castro Alves no meio do terreiro, em pleno momento de rituais,
como maneira de criar ferramentas para o grupo de Nagôs, que
250 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

também pertence a esse terreiro e, assim, fortalecer suas lutas e


ação coletiva. Depois desse acontecimento, novos atores surgem,
outros se fortalecem, alianças vão sendo construídas e o panora-
ma de vida e ações do grupo vai se remodelando.
Podemos então concluir que o grupo “apronta” porque pro-
voca situações de debate, de lutas políticas e cria o partido de es-
querda, o PT, e entra na política, numa cidade liderada por uma
elite política perpetrada pelo carlismo, que interferia nas estraté-
gias e nos padrões de reprodução de elite política na Bahia e, con-
sequentemente, na cidade de Caravelas. No entanto, ao que tudo
indica, este movimento utiliza suas origens como ponto de susten-
tação e existência, permanência de vida e atuação no espaço em
que ocupa, cria condições de subsistência, construindo espaços,
coisas, objetos, obras de artes, promove encontros, constrói zonas
de contato, parcerias, festas carnavalescas e outras ações que são
sistematicamente pensadas e realizadas, assim como a construção
de espaço-tempos, objetos, coisas afroindígenas.

Á guisa de conclusão...
É tempo de começar a concluir nossa descrição etnográfica.
Poderíamos ainda buscar um diálogo com as zonas de contato
criadas pelo movimento e a performance do corpo-arte, arte-cor-
po e memória-arte. Um diálogo destes, certamente, seria muito
produtivo. O grupo parece um quasar que se mostra brilhante e
bastante interessante e, precisamos de muito fôlego para acom-
panhar a quantidade de atividades que nos deparamos e quando
concluía uma, já tinha outra em ação. Mas, como anunciamos no
início, é preciso parar.
Inquisição, poder, cultura e lugares 251

Enfim, o Arte Manha é um lugar onde os acontecimentos,


objetos, técnicas, hábitos, valores herdados de seus antepassados
influenciam até hoje o modo de viver do grupo que dá sentido
as suas ações. Desse modo, encontra-se em constante busca de
significados e sentidos para “transformar” a forma colonialista
de pensar de uma sociedade, de um território onde viveu seus
antepassados, lugar onde nasceram e continuam a traçar os seus
percursos de vida. Sendo que, as mudanças que o grupo procura
a todo momento, através de manifestações artístico-culturais, não
deve afetar a sua essência, uma vez que na construção de uma
identidade cultural do grupo, suas ações valorizam o reconheci-
mento coletivo da cultura de seus antepassados índios e negros,
autodeclarando-se afroindígenas. E, assim, o grupo demonstra
que a cultura “que respira”, faz parte de uma memória coletiva do
grupo e, por isso, estão sempre em movimento, buscando par-
cerias que possam contribuir com a realização de suas ações ar-
tístico-culturais e manifestações de rua, na mídia, nos eventos,
encontros, rodas de conversa.
Este texto que se propõe a uma descrição etnográfica da cons-
trução de lugares, espaço-tempos, objetos e coisas no Movimento
Cultural Arte Manha, Caravelas, BA, pretende, assim, contribuir
para a divulgação e socialização do contato entre índios, negros e
brancos europeus, asiáticos, em Caravelas, BA, proporcionando
maior conhecimento sobre a história local e de seus habitantes
que, ao que tudo indica, articulam conceitos, saberes e práticas
de negros e indígenas de modo diferente, plural e compartilha-
do nas relações afroindígenas. As zonas de contato são utilizadas
pelo movimento como teia de saberes que se estabelecem com os
encontros, contatos, alianças, parcerias e colaborações em busca
da afirmação de direitos de cidadania, respeito à diversidade, so-
252 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

bretudo no que se refere a negros e indígenas e a memória de seus


antepassados.

Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Geopolítica da mestiçagem. Tra-
dução Maria Lúcia Montes. Novos estudos, n. 11, pp. 49-63,
jan. 1985.
ALVES, Jaqueline. Práticas organizacionais do movimento vul-
tural Arte Manha: desafios e caminhos no desenvolvimento
institucional. Programa de Pós-Graduação Mestrado Multi-
disciplinar e Profissionalizante em Desenvolvimento e Gestão
Social. Universidade Federal da Bahia. 2014
ANDRELLO, Geraldo. Falas, objetos e corpos: autores indígenas
no alto do rio Negro. Revista brasileira de ciências sociais -
RBCS, v.25, n. 73, junho de 2010.
ANJOS, José Carlos Gomes dos. Conexões afroindígenas no jarê
da Chapada Diamantina. In: Anais do 40º encontro anual da
Anpocs. ST01 – Antropologias afroindígenas: contradiscursos
e contramestiçagens. Caxambu, MG, 24 a 28 de out. 2016.
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro. Memórias históricas do
Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdição do vice-rei
do Estado do Brasil, dedicadas a el-rei nosso senhor Dom João
VI. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820.
AVRITZER, Leonardo. Sociedade civil, instituições participativas
e representação: da
autorização à legitimidade da ação. DADOS - Revista de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro, v. 50, n. 3, p. 443-464, 2007.
AZEVEDO, Teresa. Entre a criação e a exposição: o museu como
ateliê do artista. Breve introdução ao tema. Museus e estudos
interdisciplinares - MIDAS, n. 3, 2014.
Inquisição, poder, cultura e lugares 253

BACHELAR, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de


Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica. Arte e Po-
lítica. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: Ensaio sobre a relação do
corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos)
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávi-
la, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
BOSI, Ecléa. A pesquisa em memória social. Psicologia USP, v.4,
n.1-2, p. 277-284. São Paulo, 1993.
BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Censo 2010: Características Gerais dos Indígenas. Resultados
do Universo. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Or-
çamento e Gestão; IBGE, 2010.
CANDAU, Jöel. Identidade e memória. Tradução Maria Letícia
Ferreira. São Paulo: Contexto, 2016.
CERTEAU, Michel de A. A invenção do cotidiano. 2: Morar, cozi-
nhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
COSTA, Sérgio. A mestiçagem e seus contrários – etnicidade e
nacionalidade no Brasil contemporâneo. In: Tempo social. Re-
vista de Sociologia da USP, v. 13, n.1, pp. 143-158, maio de
2001. São Paulo: USP, 2001.
COUTO, Jorge. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses
e africanos, do início do povoamento a finais de Quinhentos.
Lisboa, Portugal: Edições Cosmos, 1998.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo
e esquizofrenia. v. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto, Ana Lú-
cia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo:
Editora 34, 2004. (Coleção TRANS)
254 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário:


uma introdução à Arquetipologia Geral. Tradução Hélder
Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FERNANDES, Renata Sieiro. A memória dos lugares, dos objetos
e os guardiões da memória na educação não-formal. Revista
História oral, v.8, n.2, pp. 169-193, jul.-dez. 2005.
FERREIRA, David Barbuda Guimarães de Meneses. Entre conta-
tos, trocas e embates: índios, missionários e outros atores. Dis-
sertação de Mestrado em História. Programa de Pós-Gradua-
ção em História. Universidade Federal da Bahia. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, BA: UFBA, 2011.
FERREIRA, Maria de Fátima de Andrade Ferreira. Relatório da
pesquisa (Pós-Doutorado em Antropologia Social). Univer-
sidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. Centro de Estudos Afro-Orientais. Programa
Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Mestrado e
Doutorado). Salvador, BA: UFBA, 2019.
FLORES, Luiza Dias. A guerra comancheira: contribuições a uma
antropologia afroindígena. Revista de @ntropologia da UFSCar,
v.9, n.2, jul-dez, 2017. pp. 43-62. São Carlos: UFSCar, 2017.
GOHN, Maria da Glória. A força da periferia: a luta das mulheres
por creches em São Paulo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
GOLDMAN, Márcio. Documenta. “Quinhentos anos de contato”:
por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. Revista
Mana. Estudos de Antropologia Social, v.21, n.3, pp.641-659,
Dec. 2015a.
_____. Mesa redonda 9: Mestiçagens e (contra)mestiçagens ame-
ríndias e afro-americanas. Márcio Goldman; Francisco Pa-
zzarelli (Coords.). XI Reunión de Antropologia del MERCO-
Inquisição, poder, cultura e lugares 255

SUR: Diálogos, prácticas y visiones antropológicas desde el


sur. 30 nov. al 4 de dic. 2015. Montevideo, 2015b.
_____. A relação afroindígena. Cadernos de Campo, São Paulo, n.
23, pp. 213-222, 2014.
GUEDES, Max Justo. As primeiras expedições de reconhecimento
da costa brasileira. In: Ministério da Marinha: história naval
brasileira, v.1, t.I. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação
Geral da Marinha, 1975, pp. 177-245.
HALBWACHS, Michael. A memória coletiva. Tradução Laurent
Léon Schaffter. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais,
1990.
HOLANDA, Sérgio Buarque. História geral da civilização brasilei-
ra: do descobrimento à expansão territorial. Tomo I: a época
colonial, v.1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)
tiches. Tradução Sandra Moreira. Bauru: EDUSC, 1996. (Co-
leção Filosofia e Política)
______. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétri-
ca. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1994. (Coleção TRANS)
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987.
MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: astúcias,
resistência e liberdades possíveis (Salvador, 1850 – 1888). Sal-
vador: EDUNEB, EDUFBA, 2008.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Nai-
fy, 2003.
MELLO, Cecília Campello do Amaral. Quatro Ecologias Afroin-
dígenas. In: Revista de Antropologia da UFSCar (RAU), v. 9, n.
2, pp. 11-28, jul./dez. 2017.
256 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

______. Notas para uma teoria afroindígena da ação. 40º Encon-


tro Anual da ANPOCS. ST01 – Antropologias afroindígenas:
contradiscursos e contramestiçagens. Caxambu, MG, 24 a 28
de out.2016, pp. 1-17.
_____. “Devir-afroindígena: ‘então vamos fazer o que a gente é’”.
Cadernos de Campo, v. 23, n. 23, pp. 223-239, 2014.
_______. Irradiação e bricolagem no ponto de vista de um movi-
mento cultural afro-indígena. [on line]. In: Cosmos & Contex-
to – Revista Eletrônica de Cosmologia e Cultura. Rio de Janei-
ro, 23 de maio de 2013.
_______. Pessoas, Acontecimentos e Objetos de Arte em um Mo-
vimento Cultural em Caravelas, Bahia. In: Ilha – Revista de
Antropologia, v. 9, n. 1, 2, 2007. Santa Catarina: UFSC, 2007.
pp. 169-193.
MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais
nas sociedades complexas. Tradução Maria do Carmo Alves
do Bonfim. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2001.
MONTEIRO, Jácome (Pe.). Relação da Província do Brasil, 1610.
In LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1966, v. 8, p.
393-428
MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do
Brasil. (1612). Edição crítica, com introdução e notas de Hé-
lio Viana. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955.
______. Livro que dá razão do Estado do Brasil. Edição comemo-
rativa do V centenário de nascimento de Pedro Álvares Ca-
bral, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do LIVRO, 1968.
MOREIRA, Uerisleda Alencar. Africanos em Caravelas, Bahia:
Estratégias de batismo e compadrio (1821-1823). In: Revista
África(s), v.2, n. 4, pp. 72-84, jul./dez. 2015.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: o processo
de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Inquisição, poder, cultura e lugares 257

NÓBREGA, Márcia. Entre “almas” e “caboclos”, um “povo só”: di-


ferença e unidade numa ilha no Rio São Francisco. Revista de
Antropologia da UFSCar, pp. 109-122, jul./dez. 2017.
NOGUEIRA, Fernanda Silveira de. Conflitos em áreas de conser-
vação ambiental: o caso de Caravelas e do Parque Nacional
Marinho dos Abrolhos, Bahia. Dissertação em Desenvolvi-
mento Rural. Programa de Pós-Graduação, da Faculdade de
Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2009.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares.
Revista Projeto História, São Paulo, n. 10, pp. 7-28, dez, 1993.
OLSEN, Bjornar. Material culture after text: re-membering things.
Norwegian Archaeological Review, v. 36, n.2, pp. 87-104, 2003.
PACHECO, Agenor Sarraf. Afroindigenismo por escrito na Ama-
zônia. RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura e Sociedade. v. 3, ed. Especial, dez., 2017, art. n. 645.
____. Astúcias da memória: identidades afroindígenas no corre-
dor da Amazônia. Revista Tucunduba, n. 2, 2011.
PAZZARELLI, Francisco; SAUMA, Julia F.; HIROSE, Maria Be-
lén. (Contra)mestiçagens ameríndias e afro-americanas. Re-
vista de @ntropologia da UFSCar, v. 9, n. 2, jul-dez/ 2017. pp.
9-10. São Carlos: UFSCar, 2017.
PECH, Andrea. Performance, teatralidade e contemporaneidade.
Revista Landa, v. 6, n. 1, p. 7-21, 2017.
PEREIRA, Moacyr Soares. A última escala de Américo Vespú-
cio no Brasil em 1503. Revista IHGB, Rio de Janeiro, v.147, n.
350, jan./mar., 1986, p. 169-173.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históri-
cos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império. Relatos de viagem e trans-
culturação. Tradução Jézio Gutierre. Bauru: EDUSC, 1999.
258 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

SCHERER-WARREN, Ilse. Dos movimentos sociais às manifesta-


ções de rua: o ativismo brasileiro no século XXI. In: Política &
Sociedade. Florianópolis, SC, v.13, n.28, set-dez, 2014, p. 13-34.
SILVEIRA, Ricardo de Jesus. O legado dos movimentos sociais
dos anos 70-80. In: Revista Mediações. Londrina, v. 5, n. 1, p.
79-94, jan.-jun. 2000.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. Tradução Sérgio
Marques dos Reis. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. pp. 13-28.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil [1587]. Re-
vista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 14, 1851.
_____. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Comentários de
Francisco Adolpho Varnhagem. 5. ed. São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1987.
_____. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro:
Typographia de João Ignacio da Silva/Instituto Histórico do
Brasil, 1879; Biblioteca do Senado Federal, 1946.
VANZOLINI, Marina. Daquilo que não se sabe bem o que é: a
indeterminação como poder nos mundos afroindígenas. Ca-
dernos de Campo, São Paulo, n. 23, pp. 271-381, 2014.
WIED von NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil nos
anos de 1815 e 1817. Tradução Edgar Süssekind de Mendonça
e Flávio Poppe de Figueiredo; notas Olivério Pinto. São Paulo:
Editora Nacional, 1940.
Sobre os autores

Angelo Adriano Faria de Assis é Professor da Universidade


Federal de Viçosa, onde atua na Graduação em História e nos
Programas de Pós-Graduação do Mestrado Acadêmico em Letras
e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e
Cidadania. Tem experiência na área de História, com ênfase em
História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes
temas: Inquisição no Brasil; Inquisição no mundo ibérico e colo-
nial; religiões e religiosidades no mundo iberoamericano; crip-
tojudaísmo; cristãos-novos; diáspora sefardita na Modernidade;
ensino de história; literatura, história e memória. Dentre outras
obras, organizou, com Pollyanna Muniz; Susana Mateus e Yllan
de Mattos, Estruturas e Vivências na Modernidade: Sefarditas,
Intelectuais, Religiosos e Inquisição (Lisboa: Cátedra de Estudos
Sefarditas Alberto Benveniste da Universidade de Lisboa, 2020).
Autor, junto com Ronaldo Vainfas, de Ossos Queimados, uma oc-
togenária do Brasil penitenciada em Lisboa. Denúncias, confissões
e peças fundamentais do processo contra Ana Rodrigues (Leiria:
Proprietas, 2021)

Belarmino de Jesus Souza é professor da Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia e membro do Programa de
Mestrado Profissional em Ensino de História. Tem experiên-
cia na área de História, com ênfase em História Moderna e
Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas:
história, vida política, política, Vitória da Conquista, Brasil, rela-
260 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

ções internacionais Brasil - Portugal. É autor do livro Uma cidade


do sertão em meio à ditadura e à rememocratização: poder e socie-
dade – Vitória da Conquista (1962-1992). Edições Uesb, Vitória
da Conquista, 2020. Publicou diversos artigos e capítulos de li-
vros, dentre os quais se destaca: Ação Diplomática sob Regimes
Autoritários: aspectos das relações Portugal-Brasil (1969-1974),
capítulo publicado no livro Agentes, agências e imprensa na cons-
trução e dinâmica dos regimes ditatoriais contemporâneos, organi-
zado por Monica Piccolo, Fábio Henrique Monteiro, Editora da
Universidade Estadual do Maranhão - EDUEMA, São Luiz, 2019.

Daniela Buono Calainho é professora da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Moderna e do Brasil Colônia, atuando
principalmente nos seguintes temas: Inquisição moderna, escra-
vidão, religiosidades populares, história da medicina luso-brasi-
leira. É autora de vários artigos e livros, entre os quais se destacam
Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portu-
guesa no Antigo Regime, publicado pela Garamond e Agentes da
Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial, publi-
cado pela EDUSC.

Grayce Mayre Bonfim Souza é professora da área de História


Moderna na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e
membro do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de
História. Tem experiência na área de História, com ênfase em
História Social, atuando principalmente nos seguintes temas:
Igreja Católica, Bahia colonial, Santo Ofício, América portuguesa
e religiosidade. Publicou em 2014 o livro Para remédios das almas:
Comissários, Qualificadores e Notários da Inquisição portuguesa
na Bahia colonial. Organizou com Maria de Deus Beites Manso o
livro Difusão da fé por entre povos e lugares: instituições, religião
e religiosidades no Império Português (Séculos XVI-XIX). Vitória
da Conquista: Edições UESB, 2020. É autora de diversos artigos e
capítulos de livros, dentre os quais se destaca o capítulo Inquisição
de Lisboa e Sociedade Colonial: Possibilidades Investigativas e
Vidas Reveladas na Bahia Setecentista publicado no livro (Des)
caminhos da fé: Religiões e religiosidades no Mundo Atlântico, or-
ganizado por Tânia Maria P. de Santana, Fabricio Lyrio Santos,
Emily de Jesus Machado.

Isnara Pereira Ivo é professora da Universidade Estadual


do Sudoeste da Bahia e membro do Programa de Pós-Graduação
em Ensino e do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de
História. Tem experiência em teoria e metodologia da pesquisa
em História, história colônia e história da escravidão e das mes-
tiçagens. Dentre outras publicações, é autora do livro O anjo da
morte contra o santo lenho: poder, vingança e cotidiano no sertão
da Bahia. 2ª edição. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2017 e
do livro Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e co-
res nos sertões da América portuguesa. Século XVIII, Vitória da
Conquista: Edições Uesb, 2012. É co-organizadora de uma série
de livros sobre escravidão e mestiçagens no mundo moderno.

Joana Monteleone é pós-Doutoranda na Universidade de São


Paulo (USP) com o tema «Açúcar e Industrialização». Fez pós-dou-
torado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com o títu-
lo «O Almanaque Laemmert e o tempo do Império” (2015-2018).
Defendeu o Doutorado pelo Programa de Pós-graduação em
História Econômica do Departamento de História da Universidade
de São Paulo (USP - 2013), com o título de “O circuito das roupas:
a Corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889)”. Atua,
principalmente, nos seguintes temas: história do consumo, história
da alimentação, história da moda, história e urbanismo. É autora
262 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)

dos livros “Sabores Urbanos” (Alameda, 2015),”Toda comida tem


uma história” (Oficina Raquel, 2017) e co-organizadora de “A his-
tória na moda, a moda na história” (Alameda 2019).

Lais Viena de Souza é professora da Educação Básica Técnica


e Tecnológica no Instituto Federal da Bahia desde 2011, ministran-
do as disciplinas de História (Ensino Médio Integrado) e História
da Bahia (Curso Subsequente de Hospedagem). Defendeu em
2018 o Doutorado pela História pela Universidade de Évora, com
o título de “Missionários do corpo e da alma: Assistência, saberes
e práticas de cura nas missões, colégios e hospitais da Companhia
de Jesus (Goa e Bahia, 1542-1622). Publicou o livro Educados nas
Letras e Guardados nos Bons Costumes (EDUFBA, 2015), fruto
da dissertação de mestrado. Atualmente desenvolve projetos so-
bre práticas e ideias de cura no Império Português (século XVI-
XVII), e ferramentas pedagógicas para o ensino de História no
Ensino Médio através de jogos de RPGs

Maiza Messias Gomes é professora do Instituto Federal


Baiano, Campus Guanambi. Graduada em Educação Física pela
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestre em Cultura e
Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora
em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). Dedica-se, principalmente, nos
seguintes temas: cultura corporal do movimento, tradições cul-
turais, comunidades negras do Sertão de Guanambi e sambas de
roda do Vai de Vira, Quebra Panela e Reisado. Possui vários textos
publicados sobre o tema.

Maria de Fátima de Andrade Ferreira é professora titu-


lar da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e membro
Inquisição, poder, cultura e lugares 263

do Programa de Pós-Graduação em Ensino e do Programa de


Mestrado Acadêmico em Ensino (PPGEN) e do Programa de
Mestrado Acadêmico em Relações Étnicas e Contemporaneidade
(PPGREC) e Departamento de Ciências Humanas, Educação e
Linguagens (DCHEL). Tem experiência em Relações étnico-ra-
ciais; Gênero; Violência, Diversidade e Direitos Humanos. Relações
afroindígenas e (Contra)mestiçagem. Dentre outras publicações,
capítulos e organização do livro Diversidades, igualdade de direi-
tos e cidadania na escola e na sociedade. Vitória da Conquista, BA:
Edições Uesb, 2020, do livro Relações étnico-raciais, diversidades
e educação. Curitiba: CRV, 2020, livro Diversidades e Educação:
múltiplos olhares. Uberlândia, MG: Navegando Publicações, 2018,
livro Violência, Diversidade e Educação em Direitos Humanos na
Escola. Vitória da Conquista, BA: Edições Uesb, 2017.

Maria Rosário Gonçalves de Carvalho é professora associada


da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, membro
do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas. Desde 1990
é coordenadora do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas
do Nordeste Brasileiro, Programa de Pós-Graduação Mestrado
e Doutorado em Antropologia Social, do Centro de Estudos
Afro-Orientais e do Programa Multidisciplinar de Pesquisas
em Relações Étnico-Raciais e Estudos Africanos e Núcleo de
Antropologia Visual da Bahia (NAVBA). É bolsista de produ-
tividade em pesquisa nível 2 do CNPq. Área de atuação: Teoria
Antropológica, Etnologia Indígena e Antropologia Histórica.
Dentre outras publicações, capítulo e participação na organização
do livro Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos e alterida-
des, Natal, RN: Editora da UFRN, 2011, do Índios e Caboclos: A
história recontada. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2012.
Alameda nas redes sociais:
Site: www.alamedaeditorial.com.br
Facebook.com/alamedaeditorial/
Twitter.com/editoraalameda
Instagram.com/editora_alameda/

Esta obra foi impressa em São Paulo


na inverno de 2023. No texto foi uti-
lizada a fonte Minion Pro em corpo
13 e entrelinha de 16 pontos.

Você também pode gostar