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Angelo Adriano Faria de Assis • Belarmino de Jesus Souza PODER, CULTURA jetiva divulgar os trabalhos resultantes
de projetos e grupos de pesquisa que
coordenadora
Isnara Pereira Ivo
conselho editorial
Carmen Bernand
Eduardo França Paiva
Grayce Mayre Bonfim Souza
Helder Macedo
Manuel F. Fernández Chaves
Maria Lemke
Rafael M. Pérez García
Roberto Guedes
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Andréa Sirihal Werkema
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Inquisição, poder,
cultura e lugares
Entre Portugal e Brasil
da época moderna à contemporaneidade
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
I45
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5966-104-6
PARTE I
INQUISIÇÃO, RELIGIOSIDADE E SABERES NO
ANTIGO REGIME
Inquisição e cultura
Carlo Ginzburg (1987) definiu cultura como uma “massa de
discursos, formas de consciência, crenças e hábitos relacionados a
determinado grupo historicamente determinado”. Inspirado pelo
trabalho de Mikahil Bakthin (2000), distinguiu uma “cultura po-
pular” ou “oral” da “cultura erudita” ou “letrada”, dimensionando
o intercâmbio que se estabelece entre esses níveis culturais, e in-
troduzindo o conceito de “circularidade cultural” para definir essa
dinâmica. Edward Thompson, quando adverte que o uso indiscri-
minado do termo “cultura popular” pode sugerir uma homoge-
neidade, um consenso entre agentes que a protagonizam, propõe
também que próprio termo “cultura” deve ser relativizado, pois
“com sua evocação confortável de um consenso, pode distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e
Inquisição, poder, cultura e lugares 17
Inquisição e poder
Instituição bastante envolvida nas dinâmicas culturais das
sociedades do mundo moderno, o Tribunal inquisitorial se cons-
tituiu como um poder fortemente estabelecido. Mas os proce-
dimentos inquisitoriais modernos, incitando o medo e o terror
àqueles que chegavam como réus à “negra Casa do Rocio”, não
podem ser vistos isoladamente em relação aos métodos punitivos
e judiciários do Antigo Regime. Juízes seculares e inquisitoriais
tinham em comum o uso de testemunhas anônimas, a tortura,
a valorização da confissão, do segredo do processo, etc. Os hor-
rores das penas inquisitoriais, como os açoites públicos; o uso de
vestimentas vexatórias caracterizando os réus como hereges; o
confisco de bens; os trabalhos forçados nas obras públicas e nas
galés do Rei; o degredo e a morte na fogueira, fosse vivo ou gar-
roteado, situaram-se no mesmo plano da era dos suplícios, tão
bem caracterizada por Michel Foucault, ao refletir sobre a justiça
civil moderna europeia e a sua subsequente transformação a par-
tir de meados do século XVIII. Em “Vigiar e punir”, logo no pri-
meiro capítulo, impressiona a narrativa sobre o parricida francês
Damien, que ao ser condenado à morte em 1757, foi antes exibido
nu à porta de uma Igreja, pedindo perdão, depois atenazado em
várias partes do corpo, esquartejado e, por fim, queimado em ple-
na praça pública (FOUCAULT, 1984).
O sistema judiciário moderno, centrado na figura do rei ab-
solutista, entende os delitos como uma afronta ao próprio rei, ao
Estado centralizado, daí o peso dos atos supliciantes e da punição
como meio de revigorar a figura do monarca vingando-o, numa
“graduação calculada de sofrimentos”, nas palavras de Foucault,
até a morte final. O ritual punitivo transformava-se em espetácu-
22 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
últimos saíam em procissão pelas ruas nas sedes dos tribunais lo-
cais. Espetáculo público meticulosamente preparado, seu clímax
acontecia no momento da leitura pública das sentenças dos réus,
seguindo-se depois à queima na fogueira daqueles que haviam re-
cebido a pena capital (SARAIVA, 1985, p. 101-112).
A Inquisição portuguesa foi notável pela eficiência com que
desarticulou os laços sociais, estimulando denúncias e vasculhan-
do as vidas pessoais dos indivíduos. Elaborou métodos precisos
de atuação que fortaleceram cada vez mais o temor que desejava
difundir. Foi o que Bartolomé Bennassar chamou de “pedagogia
do medo”, isto é, uma série de práticas que visavam perpetuar o
Tribunal como uma instância respeitável e temida. Além da tortu-
ra e da fogueira, o segredo inquisitorial, fundamental para o mo-
dus operandi do Tribunal; a memória da infâmia, adquirida pela
vivência de sentenças humilhantes, como açoites públicos, dentre
outras; e por fim, o sequestro de bens e a miséria, que tiveram
uma ressonância sem precedentes como mecanismos repressivos
(BENASSAR, 1984).
Exemplo importante para se ter noção da extensão do po-
der inquisitorial são as correspondências trocadas entre os in-
quisidores, os tribunais regionais e alguns agentes inquisitoriais.
Os fluxos de comunicação do Santo Ofício, através de trocas
regulares de correspondência, foram fundamentais para o bom
funcionamento das suas várias instâncias administrativas, sendo
veículo estratégico para o cumprimento do exercício do poder
inquisitorial no Reino e em terras coloniais. O Conselho Geral,
órgão máximo da Inquisição portuguesa, mantinha constante
troca de correspondência com os tribunais regionais de Lisboa,
Coimbra, Évora e Goa, bem como com outras instâncias ecle-
siásticas e seculares.
24 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Quadro 1:
Localidades destinatárias da Correspondência Expedida pelo
Tribunal de Lisboa – 1780/1802
Cidades Nº %
Pernambuco 21 12,72
Mariana 13 7,87
São Paulo 10 6
Pará 8 4,84
Maranhão 6 3,63
Sabará 5 3
Recife 5 3
Maricá 2 1,21
Paraíba 1 0,6
Olinda 1 0,6
Quadro 2:
Cartas relacionadas a delitos heréticos - Correspondência Expe-
dida pelo Tribunal de Lisboa – 1780/1802
Delitos Nº
Bigamia 20
Sodomia 4
Feitiçaria 3
Blasfêmia 8
TOTAL 25
Referências:
ALCALÁ, A. (org). Inquisición española y mentalidad inquisito-
rial. Barcelona: Ariel, 1984.
ALGRANTI, L e Megiani, A.P. (org) O Império por escrito. Formas
de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. Séculos
XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009.
BAIÃO, Antonio. A inquisição de Goa: correspondência dos in-
quisidores da Índia (1569-1630). Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade, 1930; Tavares, Célia. Jesuítas e inquisidores em Goa.
Lisboa: Roma Editora, 2004.
BAKTHIN, Mikail, Cultura popular na idade média e renascimen-
to: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasí-
lia: Ed. Universidade de Brasília, 2010.
BENASSAR, Bartolomé. Inquisición española: poder politico y con-
trol social. Barcelona: Grijalbo, 1984.
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal,
Espanha e Itália – séculos XV–XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
Inquisição, poder, cultura e lugares 33
Quem diria que eu quase consegui ser feliz. Mas foi sem-
pre o quase... quase... quase... Nunca fui cristã, fui quase
cristã; nunca fui judia, fui quase judia; nunca fui portu-
guesa, fui quase portuguesa; nunca fui brasílica, fui quase
brasílica, quase professora de meninas, quase senhora de
engenho de açúcar, quase mãe feliz, quase esposa feliz,
nem viúva por completo sou...
(REAL, 2009, p. 32)
sem partida, não eram aceitos como iguais entre os que os obriga-
vam à nova fé. Eram cristãos, mas cristãos-novos, para que fosse
marcada a distinção dos demais cristãos de família e origem, de-
nominados lindos, puros ou velhos.
Cristianizados sem opção, coagidos a deixar a crença que
lhes fora repassada desde as primeiras palavras, e batizados à força
numa religião que lhes acolhia com certa suspeição, entre outras
coisas, por serem considerados como povo deicida, o certo é que
os neoconversos seriam vistos, de forma genérica, como suspeitos
de judaizar e de falta de adesão completa e sincera ao cristianis-
mo, vistos, pela população em geral, como a principal ameaça ao
cristianismo. Não tardariam, por conseguinte, os conflitos entre
os cristãos separados pelo sangue.
O fato é que o batismo oficial não significou, no mesmo
grau, a conversão real de todos: embora alguns judeus tenham
adotado o cristianismo e tentassem aceitar os preceitos católicos
com sinceridade, outros procurariam manter, ocultamente, em
intensidades e formas variadas, dentro das contingências e do
quadro possível, práticas e crenças dos antepassados. Que fique
bem claro, a experiência de manutenção judaica não apenas lon-
ge está de ter sido totalizante, mas também variou no tempo e
no espaço, e não podemos entender o criptojudaísmo como um
comportamento uno e invariável: na prática, cada cristão-novo
que insistisse em manter a tradição hebraica o fazia ao seu modo,
dependendo das suas condições, conhecimentos e possibilidades,
o que expande praticamente ao infinito as especificidades do ser
criptojudeu, cada um o sendo ao seu modo, embora alguns há-
bitos fossem comuns a boa parte deles. Isso sem contar aqueles
forçados que se tornavam cada vez mais laicos, insatisfeitos igual-
mente com a crença que fora banida e a outra, que não queria
40 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Elvira Mea, por sua vez, atenta para o que denomina de “in-
filtração invisível do cristianismo” com o avançar do tempo e as
novas gerações, que faz com que os neoconversos adotem com-
portamentos que acabam por destoar do judaísmo normativo:
depois de jejuar, fosse ela à dita sua tia, que lançasse a bên-
ção, dizendo-lhe também que, se a dita sua avó Branca
Rodrigues fora viva, ela lhe ensinava a ela como se havia
de salvar, porque fora muito santa mulher e morrera uma
morte santa, dizendo-lhe mais o dito seu primo, que guar-
dasse os sábados, porque os sábados eram os verdadeiros
domingos, e neles se haviam de vestir as camisas lavadas, e
neles se não havia de trabalhar, e que os domingos nossos,
eram dias de trabalho.
Referências
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da colônia – Criptoju-
daísmo feminino na Bahia. São Paulo: Alameda, 2012.
CLÁUDIO, Mário. Oríon. 2. ed. Lisboa: Publicações Dom Qui-
xote, 2003.
COSTA, João Paulo Oliveira e. D. Manuel I (1469-1521): Um prín-
cipe do Renascimento. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.
GARCIA, Maria Antonieta. Judaísmo no feminino – Tradição Po-
pular e Heterodoxia em Belmonte. Lisboa: Instituto de So-
ciologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de
Lisboa, 1999.
MEA, Elvira Cunha de Azevedo. A problemática do judaísmo (sé-
culos XVI-XVII). In: BARRETO, Luís Filipe, MOURÃO, José
Augusto, ASSUNÇÃO, Paulo de, GOMES, Ana Cristina da
Costa, FRANCO, José Eduardo (Coords.). Inquisição portu-
guesa – Tempo, razão e circunstância. Lisboa, Prefácio, 2007.
NOVINSKY, Anita W. Os cristãos-novos no Brasil colonial: re-
flexões sobre a questão do marranismo. In: Revista Tempo
Dossiê Religiosidades na História. Vol. 6, no 11. Rio de Janei-
ro: 7letras, 2001.
Primeira visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licencia-
do Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nos-
so senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio.
Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado,
1922-1929.
Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denuncia-
ções e Confissões de Pernambuco 1593-1995. Recife: FUN-
DARPE. Diretoria de Assuntos Culturais, 1984, Coleção Per-
nambucana, 2ª fase, vol. XIV.
Inquisição, poder, cultura e lugares 59
Quadro 1:
Agentes inquisitoriais nomeados para a Bahia -
Séculos XVII-XIX
Visitador
Século Comissários Familiares Qualificadores Notários Total
de Nau
XVII 3 88 1 - 1 93
XIX 2 52 2 - 56
8 Grifo nosso.
9 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
10 Raimundo de Santo Antônio Boim era Qualificador do Santo Ofício, com
carta emitida em 22-3-1737, portanto já havia quase 30 anos.
72 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
que não sabia ao certo se ela era viúva ou apartada do marido, pois
este havia se “retirado para o sertão em negócio”.16
Sendo Francisca da Assunção comadre de Manoel Gomes
Lisboa – e este pai de Manoel de Jesus Bahia, ocorreu entre eles
por meio do “ajuntamento carnal” uma transgressão sujeita a
pena, segundo as Constituições do Arcebispado da Bahia, no que
se refere a crime de incesto, incorrendo neste delito também rela-
ções sexuais entre comadres e compadres.
16 Outro Qualificador do Santo Ofício, que também foi arrolado como tes-
temunha no processo de habilitação de Manoel Jesus Bahia, foi o carme-
lita Frei Raimundo Bohim de Santo Antônio, ouvido pelos Comissários
Bernardo Germano de Almeida em julho de 1757, mas nada disse que
desabonasse o habilitando e confirmando que era filho legitimo de MGL e
Francisca de Assunção, sendo esta já viúva.
17 Livro 5º, Título 20, 973 (CONSTITUIÇÕES, 1853, p. 973)
78 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
26 Diz Francisco Antônio “contra a qual não vejo documento que a destrua e
as conjecturas em que se estribam as testemunhas que a dividam que são
muito menores em números do que as que acreditam e que fazem provada
a comum estimação”.
27 ANTT, HSO, Manoel, mç, 236.
Inquisição, poder, cultura e lugares 87
Referências
ABREU, Capistrano de. Primeira visitação do Santo Offício às
partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações da Bahia, 1591-1592. São Paulo: Paulo Prado,
1922.
ABREU, Capistrano de. Primeira visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça
– Confissões da Bahia, 1591/1593. São Paulo, Paulo Prado,
1925.
ABREU, Capistrano de. Um visitador do Santo Officio à cidade do
Salvador e ao Recôncavo da Bahia de Todos os Santos (1591-
1592). Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1922.
BLUTEAU, Raphael. Diccionario da língua portugueza composto
pelo padre D. Rafael Vocabulario portuguez & latino: auli-
88 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Considerações finais
Retornando a problemática que norteou esse capítulo sobre
os panditos e pajés e seus saberes nos espaços coloniais do Império
Português entre os séculos XVI e XVII, podem ser apontadas algu-
mas breves e incipientes considerações. A primeira que se alcan-
çou está relacionada à presença/ausência nas descrições dos ina-
cianos como “feiticeiros”. Vale a pena explicar o jogo de palavras.
Estavam esses grupos sociais dos panditos e pajés presentes nas
muitas notícias em cartas e tratados enviados pelos missionários da
Companhia desde Goa e da Bahia. Contudo, estavam ausentes, por
apenas serem considerados de forma estereotipada, negados do di-
reito à diferença, postos por vezes em representações que os afastava
de condições plenamente humanas. Estavam mais aptos a servir e
tinham pouca ciência das coisas, dizia o Pe. Alessandro Valignano.
Eram brutos, rudes e ignorantes, descreveu o Pe. Baltasar Teles. A
segunda ponderação que pode ser lançada diz respeito a evidência
de que se faz necessário abandonar o eurocentrismo para se com-
preender a História. Não apenas a história dos saberes e práticas
de cura, mas toda a experiência de povos colonizados e territórios
conquistados desde as Índias Orientais, até as Américas. O Zeitgeist
Inquisição, poder, cultura e lugares 117
Fontes Manuscritas
Academia das Ciências de Lisboa (ACL). Série Azul. Manuscri-
tos, 213
Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Dep. IV, Seção 1°
E, Est. 22, Tb. 4, cx. 5.
Archivo Histórico Nacional − Madrid, España (AHN). 16, 63,
Lib. 128; Legajo 214, n° 11-23.
Fontes impressas
Abreu, José Rodrigues de. Historiologia medica, fundada e estabe-
lecida nos principios de George Ernesto Stahl... Lisboa Ociden-
tal: Na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, 1739.
118 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Referências
Anzolin, André Soares. Entre Mortes e Lembranças: Notas sobre
as Reações dos Tupi à Pandemia de Varíola de 1562-64. Revis-
ta latino-americana de história, 3, 12 (2015).
Apolinário, Juciene Ricarte. Plantas Nativas, Indígenas Coloniais:
Usos e Apropriações da Flora da América Portuguesa. In:
KURY, Lorelai Brilhante (org.). Usos e circulação de plantas no
Brasil: Séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson
Estúdio, 2013. p. 180-227.
BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
BUCK, William. O Mahabharata. São Paulo: Cultrix, 2014.
Calainho, Daniela Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial.
Tempo 10, 19 (2005): 61-75.
Castelnau-L’Estoile, Charlotte. De Observation à la Conversa-
tion: Le Savoir sur les Indiens du Brésil dans l’Oeuvre d’Yves
d’Évreux. In Castelnau-L’Estoile, Charlotte (et. al.). Missions
d’évangélisation et circulation des savoirs: XVIe-XVIIIe siècle.
Madrid: Casa de Velázquez, 2011a. p. 269-293.
120 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
ficou sob a guarda do Dr. Serrão que lançou mão do acervo para
fundamentar a sua obra, que foi concluída graças às cobranças
insistentes de amigos em comum com Caetano, dentre os quais
o autor dá especial destaque ao professor Pedro Calmon, então
presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, apon-
tado como “companheiro dilecto de Marcello Caetano” (1985, p.
11). O livro, nos dois primeiros capítulos, foi voltado para episó-
dios anteriores a 1974, dos primeiros contatos entres os dois ami-
gos até a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos iniciais,
dando especial destaque ao período em que o autor foi reitor da
Universidade de Lisboa.
Com uma fidelidade passional, Dr. Serrão apresenta o
Presidente do Conselho deposto no dia 25 de abril, como um
“bode expiatório” de uma burguesia portuguesa que apostou em
largas franjas na mudança. O historiador percebia virtudes na go-
vernança do Dr. Marcello tais como: grandes ideais de ação, res-
peito da pessoa humana, ânsia de justiça social e a defesa dos va-
lores históricos portugueses. Apresenta a convicção de que o povo
“laborioso e humilde”, sem qualquer dúvida, “amava Marcello
Caetano por ver nele um estadista honesto e um defensor do bem
público” (SERRÃO, 1985, p. 13).
Ao abordar o período governamental de Marcello Caetano,
Joaquim Veríssimo aponta uma condição desconfortável para o
exercício do poder, acossado pelos mais conservadores que o acu-
savam de destruir a obra do antecessor, Antonio Oliveira Salazar
e combatido pelos liberais e progressistas de ser vagaroso num
prometido processo de renovação. O autor destaca em especial
a visão geopolítica e a percepção da questão africana por parte
de Marcello Caetano, onde se destacavam o posicionamento de
Portugal na defesa do Ocidente no contexto bi-polar da Guerra
Inquisição, poder, cultura e lugares 131
Mas o homem que foi de certo modo estóico diante dos des-
dobramentos que a vida lhe reservara, segundo Manuela Soares
(2009), não se conformou a ausência de sua biblioteca particular e
desenvolveu todos os esforços para transladar os seus livros para o
Brasil, ao longo de 1975 e 1976, o professor e seus familiares lança-
ram mão de requerimentos oficiais e contatos pessoais e por fim o
conjunto com cerca de 30.000 volumes cruzou o oceano. O acervo
foi doado à Universidade Gama Filho, instituição que arcou com
as despesas de transporte. A doação teve uma contrapartida:
EMBAIXADA DE PORTUGAL
Rio de Janeiro
11 Ibid. nº 3.
12 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 18.
140 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
13 Ibid. AMC,
14 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 19. Anexo 2.
15 AMC, cx 27, Correspondência/ Fragoso, José Manoel, nº 22.
16 Ibid. nº 25.
Inquisição, poder, cultura e lugares 141
SEPAR – 4 445/75
Brasília, DF
22 de setembro de 1 975
Segunda-feira
[carimbo de reservado]
Eminente e prezado
21 Ibid. nº 5.
Inquisição, poder, cultura e lugares 145
Atenciosamente,
Snr. Diretor:
Referências
CABRERA, Ana. Marcelo Caetano: Poder e imprensa. Lisboa –
Portugal: Livros Horizonte, 2006.
MARTINHO, Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biogra-
fia 1906-1980. Lisboa, Objectiva, 2016.
MENESES, Filipe Ribeiro. Salazar – biografia definitiva. São Pau-
lo: Leya, 2011.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Marcello Caetano – confidências
no exílio. 9ª Ed. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, 1985.
SOARES, Manuela Goucha. Marcello Caetano – o homem que
perdeu a fé. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
SOUZA, Belarmino de Jesus. Sonhos neocoloniais brasileiros no
ocaso colonial português: Franco Nogueira, diplomacia bra-
sileira e as questões do ultramar. IN: Perspectivas – Portu-
guese Jornal of Political Science and International Relations.
University of Minho, Braga and University of Évora, Évora,
Portugal, 2013, p.p. 131-140.
Inquisição, poder, cultura e lugares 151
10 http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R2053-1.
pdf. p. 01.
11 Idem, p. 01
12 Idem, p. 03.
13 A crescente urbanização das cidades é um dado importante para a análise
tanto do aumento da alfabetização como no número de publicações. Ver:
Inquisição, poder, cultura e lugares 167
15 Idem.
170 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
17 Idem.
Inquisição, poder, cultura e lugares 173
ainda estão sem resposta numa pesquisa que está começando Leila
Angranti descreve, em “Os doces na culinária luso-brasileira: da
cozinha dos conventos à cozinha da casa ‘brasileira’, séculos XVII a
XI”, dos elementos constitutivos de certa doçaria nacional: “o hábito
do consumo de doces; a permanência de certos doces e de técnicas
culinárias dos portugueses; a utilização de produtos das colônias na
confecção dos doces” (2005, p. 140). Nesses novos livros de receitas
desse período e as perguntas que eles trazem, se lidos em conjunto,
certamente contribuem para os estudos da doçaria brasileira.
Referências
ALGRANTI, Leila Mezan. Os doces na culinária luso-brasileira:
da cozinha dos conventos à cozinha da casa ‘brasileira’, sécu-
los XVII a XIX. In: Anais de História de além mar, vol. VI,
Barbosa e Xavier Ltda, Braga, 2005.
BESSONE, Tania Maria. Palácios de Destinos Cruzados: bibliote-
cas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. São Paulo:
Edusp, 2014.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario
biobliographico brasileiro, Rio de Janeiro: Tipografia Nacio-
nal, 1883-1900, pg. 366. Versão eletrônica.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. São Pau-
lo: Martins Fontes, 1996.
COSTA, Carlos. A revista no século XIX. A história da formação
das publicações, do leitor e da identidade do brasileiro. São
Paulo: Alameda Editorial, 2012.
COZINHEIRO Nacional. São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
DAECTO, Marisa Midori. O império dos livros: instituições e prá-
ticas de leitura na São Paulo Oitocentista. São Paulo: Edusp,
2011.
174 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Das comunidades
Neste capítulo, as histórias das comunidades negras rurais
revelam-se com base nas memórias contadas por seus participan-
tes e moradores. Assim, à medida que os relatos de experiências
vão surgindo, os quadros das memórias dessas comunidades se
mostram (MONTENEGRO, 2007). Situadas no município de
Guanambi, a 796 km de Salvador, as comunidades negras de
180 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
4 Ibid. 21 e 22.
5 Bater caixa é uma expressão usada pelos praticantes dos sambas.
Inquisição, poder, cultura e lugares 193
11 Ibid. p. 5.
12 Ibid.p. 14.
Inquisição, poder, cultura e lugares 197
13 Ibid. p. 25.
14 Miudinho é uma um dos passos do samba, no qual quase não se movem
as pernas.
198 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Considerações finais
O universo do samba, compreendido pelos desdobramen-
tos dos encontros culturais, mediante os movimentos de pessoas,
objetos, ideias e sentimentos, produziu, ao longos dos tempos,
conformações inéditas que abrigaram cantos, movimentos, ins-
trumentos, religiosidades, representações e tradições resultantes
dos processos de mundialização verificados aos longos do sécu-
los. Práticas e materiais culturais americanos, africanos, asiáticos
e europeus conectaram-se em relações de acomodações, coexis-
tências e, mesmo, de resistências e sobreposições que se tornaram
marcantes nas práticas culturais das comunidades negras rurais
de Guanambi e, mais especificamente, nos sambas de roda.
A memória do samba de roda, desde os batuques nas sen-
zalas das fazendas aos sons dos instrumentos de percussão dos
ajuntamentos festivos em algumas regiões do continente africano,
Referências
ALVES FILHO, Bernardo. A pré-história do samba. Edição do au-
tor. Prefeitura de Petrolina – PB, 2002.
ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do
processo de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2006.
CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. Introducções
e notas de Baptista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia.
Editores: J. Leite & Cia. Rio De Janeiro, 1925.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10.
ed. Ediouro, Rio de Janeiro, 2010.
202 Grayce Mayre Bonfim Souza & Isnara Pereira Ivo (orgs.)
Introdução
O ponto de partida da presente descrição etnográfica é o ma-
terial empírico, coletado nas viagens a campo de março de 2018 a
fevereiro de 2019, que deu origem ao relatório de pós-doutorado
(FERREIRA, 2019), no qual procuramos realizar um estudo et-
nográfico sobre relações interétnicas com um grupo de pessoas
que se autodeclaram afroindígena em Caravelas, no Extremo Sul
da Bahia, buscando estudar o lugar da arte, corpo e memória in-
dividual e coletiva, através de depoimentos dos interlocutores da
pesquisa e suas práticas sociais.
Com esse objetivo, tomamos como ponto de observação,
suas formas de organização social e pensar-saber-fazer a arte e
a construção memorial das diferentes heranças deixadas por
suas ancestralidades, de redes de sociabilidades, relações de pa-
rentesco e relatos de experiências vividas, observando o que tem
contribuído (ou não) com os processos de solidariedade étnica
entre eles, bem como, o modo particular de gestão do território,
distintos de suas práticas sociais e seus modos de vida e saberes
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Caravelas e não por Cabo Frio”. “Onde o mar é sempre bom nesta
barra (de leste) e na costa circunvizinha; ele é tão calmo quanto
na baia, pelo perfeito abrigo das ‘Paredes’ e todos os recifes que os
prolongam para o N. e para o S”, relata Ernest Mouchez (Les côtes
du Bresil. Paris, 1864, p. 157-158, apud PEREIRA, 1986). Ao chegar
em Caravelas, Vespúcio fundou uma feitoria, nunca localizada.
Segundo relatos, descrições de viajantes e documentos ofi-
ciais (MONTEIRO, 1966; MORENO, 1955, 1968; PEREIRA, 1986;
SOUSA, 1851. 1987, 1946; WIED von NEUWIED, 1940), a história
de Caravelas começa com a própria história do Brasil, em 1503 e,
localizada às margens do rio homônimo, foi uma das mais antigas
vilas do Extremo Sul da Bahia, reconhecida como a maior e a mais
próspera dessa região, vinculada política e administrativamente à
Comarca de Porto Seguro, até meados do século XIX. A sua po-
pulação já foi majoritariamente indígena, assim como as vilas ao
seu entorno. Conforme resultados de estudos sobre relações inte-
rétnicas, no decorrer dos séculos XV e XIX, durante os projetos de
civilização e catequese, os conflitos entre colonizadores e indígenas
foram intensos, “de forma que os grupos indígenas formularam es-
tratégias, lutaram por seus interesses e se movimentaram diante de
um quadro de mudanças significativas decorrente do violento pro-
cesso de conquista e subjugação” (FERREIRA, 2011, p. 12).
A cidade ainda vive de “acontecimentos”, alguns bons e ou-
tros que não gostaria de viver, mas presentes na sua existência e
das pessoas que ali vivem. Nela, um grupo de pessoas vive suas
interações de trocas simbólicas e existências por meio dos acon-
tecimentos que se diversificam no cotidiano do Arte Manha e do
Grupo Afroindígena Umbandaum de Caravelas-BA, fundado em
13 de maio de 1988, depois de uma manifestação que marcou a
vida do grupo e, certamente, do terreiro de candomblé, onde fo-
Inquisição, poder, cultura e lugares 215
PT. Tudo indica que esta é mais uma “necessidade” que o grupo já
está planejando, buscando estratégias e parcerias para “aprontar”,
isto é, pensando sobre um novo ponto inicial de luta e resistência,
valendo-se de uma boa justificativa.
O grupo não deixa escapar a “ocasião” (CERTEAU, 1996) para
buscar estratégias para suas necessidades. Na década de 80, perío-
do de eleições municipais, grupos políticos de Caravelas tentaram
manipular e induzir grupos culturais locais tradicionais e de ma-
nifestações africanas para comemorar o centenário da abolição da
escravatura, tomar as ruas principais da cidade, com faixas e batu-
ques, na forma de bloco carnavalesco. Do outro lado, se encontrava
ali, um grupo de pessoas, artistas de teatro de rua, capoeira angola,
poesias, literatura de cordel, do jornal Timoneiro, que se desponta
na cidade – uma imagem que o grupo alimenta com todas as suas
lembranças, no mundo em que se imagina os espetáculos da planí-
cie, frequentemente, têm efeitos já gastos e para lhes devolver suas
ações é preciso de uma imagem nova, literária, teatral, corpórea.
Como a lebre que parece olhar pacífica o Universo, busca trégua “de
uma perpétua inquietude, contempla a campina nevoada, torna-se
um sonhador que deseja confiar seus sonhos a esse movimento de
visão que viverá numa tonalidade aumentada a imensidão das cam-
pinas sem fim” (BACHELARD, 1993. p. 32).
Conforme a análise documental, apoiada em Alves (2014),
Ferreira (2011), Mello (2017, 2016, 2014, 2007), Moreira (2015),
Nogueira (2009), foi possível perceber que o Arte Manha parece
continuar em um grande processo de experimentação e na tenta-
tiva de se expressar por outras vias, incorporando em seu interior
questões afroindígenas e da (contra)mestiçagem às tradicional-
mente conhecidas. Em Caravelas, aos poucos, o movimento traz
para si uma renovação em termos de forma e conteúdo que se
Inquisição, poder, cultura e lugares 217
Figura 11: Objetos de arte construídos na oficina Ateliê Astúcia, Arte Ma-
nha, Caravelas, BA. Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.
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Á guisa de conclusão...
É tempo de começar a concluir nossa descrição etnográfica.
Poderíamos ainda buscar um diálogo com as zonas de contato
criadas pelo movimento e a performance do corpo-arte, arte-cor-
po e memória-arte. Um diálogo destes, certamente, seria muito
produtivo. O grupo parece um quasar que se mostra brilhante e
bastante interessante e, precisamos de muito fôlego para acom-
panhar a quantidade de atividades que nos deparamos e quando
concluía uma, já tinha outra em ação. Mas, como anunciamos no
início, é preciso parar.
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Referências
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dução Maria Lúcia Montes. Novos estudos, n. 11, pp. 49-63,
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