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Ana Lygia Vieira Schil da Veiga, Coleção Artes-manuais para Educação:

[Nina Veiga] é doutora em Educação, A Produção de Conhecimento


escritora e educadora Waldorf com Aparecida Xavier entre os Fios da Casa e de Si

A PESQUISA DO CURRÍCULO DOS TRABALHOS MANUAIS NA EDUCAÇÃO STEINERIANA


oficinas e workshops ministrados em
Elaine Cristina Russo

A PESQUISA DO CURRÍCULO
diversos países e no Brasil. Tem livros e
diversos artigos publicados. Suas crôni- Emília Moreira Lima Albano Experimentações para Artes-manuais:
cas são impressas no semanário mineiro Fabiana Zanelato Kuwajima corpos-matérias-oficinas
Trespontano, desde 1996.
Há mais de vinte anos, em seu Jandira Paes de Carvalho de Melo DOS TRABALHOS MANUAIS •

Janice Kirner Providelo


NA EDUCAÇÃO STEINERIANA
atelier pedagógico-terapêutico, cria pe- A Pesquisa do Currículo dos Trabalhos
ças e instalações em arte do fio, além Manuais na Educação Steineriana
Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro
de brinquedos inspirados no conheci-

mento antroposófico, a levar em conta Laura Erig Salimen
a imagem ampliada do ser humano e as Modos de Ser e Viver em
Maria Aparecida de Morais
necessidades da criança contemporânea. Artes-manuais: As Artes da Casa,
Valoriza o trabalho das mãos em Olívia Marinho Silva Lima a Literatura, a Oralidade, a Memória
contato com materiais e concepções que Rosana Lance Saloio e a Ancestralidade.
possibilitem a composição de uma ética,
uma estética e uma política que promo-
Simone Maria de Lima
vam a vida de qualidade. Stella Ferreira Bottino Esta coleção se estabelece entre
Mestre em Cultura e Linguagem os acontecimentos de três linhas
e psicopedagoga artística, doutorou-se de pesquisa do curso de Pós-graduação
pela Universidade Federal de Juiz de Fora em Artes-manuais para Educação
(UFJF) e Universidade de Lisboa. É inves- (2018-19), coordenado pela Profa. Dra.
tigadora das Artes-manuais e da Literatu- Ana Lygia Vieira Schil da Veiga.
ra no Instituto de Estudos de Literatura
Tradicional (IELT) da Universidade Nova
de Lisboa, em Portugal.
Apoia grupos e instituições na arte
de sintonizar pensar, sentir e agir. De- ARTES-MANUAIS
PARA EDUCAÇÃO:
senvolve trabalhos de formação pessoal e
profissional, especialmente para artífices
e escritores no Brasil e no exterior. a produção de conhecimento
Suas oficinas associam o saber teó-
entre os fios da casa e de si
rico-conceitual às artes-manuais como
modo de existir e à escrita como produ- organização
ção de si e do mundo. Ana Lygia Vieira Schil da Veiga
www.ninaveiga.com.br [Nina Veiga]

CAPA_Educação.indd 1 19/01/2021 16:55


A PESQUISA DO
CURRÍCULO DOS
TRABALHOS MANUAIS
NA EDUCAÇÃO
STEINERIANA
A PESQUISA DO
CURRÍCULO DOS
TRABALHOS MANUAIS
NA EDUCAÇÃO
STEINERIANA

ARTES-MANUAIS
PARA EDUCAÇÃO:
a produção de conhecimento
entre os fios da casa e de si
organização de
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga
[Nina Veiga]
Copyright da organização © 2021 by Ana Lygia Vieira Schil da Veiga [Nina Veiga]

Capa e projeto gráfico


Suzana Massini

Imagem da capa
vinicius airumã

Diagramação
vinicius airumã

Edição de texto e coordenação editorial


Cristina Yamazaki e Sofia Amorim

Revisão de prova
Miraci Tamara Castro

Fotos do miolo
Acervo pessoal das autoras, exceto quando indicado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A pesquisa do currículo dos trabalhos manuais na


educação steineriana / organização Ana Lygia
Vieira Schil da Veiga [Nina Veiga]. — 1. ed.
— São Paulo : Hífen Editora : Nina Veiga
Atelier de Educação, 2021. — (Artes-manuais para
educação: a produção de conhecimento entre os fios da
casa e de si ; 1)

ISBN 978-65-88978-01-6

1. Artes 2. Educação artística 3. Filosofia 4. Narrativas 5.


Pedagogia 6. Steiner, Rudolf, 1861-1925 7. Trabalhos manuais I.
Veiga, Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. II. Série.

20-47964CDD-370.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação artística 370.1

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

2021
Nina Veiga Atelier de Educação
www.ninaveiga.com.br

Hífen Editora
cristina@entre-hifen.com.br
SUMÁRIO

Mais uma dobra na pesquisa… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8


Ana Lygia Vieira Schil da Veiga (Nina Veiga)

O fio da linha de pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12


Elis Stela Mello de Oliveira

Políticas de narratividade: artes-manuais e escrita . . . . . . 20


Luciana Aguilar

Edição-composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Cristina Yamazaki e Sofia Amorim

O hífen e a pesquisa em artes-manuais . . . . . . . . . . . . . . . 28


Sofia Amorim

Elaine Cristina Russo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30


Construindo memórias:
revalorizando as artes-manuais como aprendizado de afeto
nas relações intergeracionais

Laura Erig Salimen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54


Vivências com a lã:
a criança, a fibra e as artes-manuais dentro e fora da escola

Um dia para contar sobre crianças e carneirinhos . . . . . . 80


Elis Stela Mello de Oliveira
Emília Moreira Lima Albano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
O feltrar de si através das artes-manuais:
a feltragem como ponte entre a autogestação e a gestação do outro

Stella Ferreira Bottino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98


Trabalhos manuais com fios no jardim da infância:
práticas da Pedagogia Waldorf na escola pública

Janice Kirner Providelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111


Fiando com um fio sem fim:
reflexões sobre oficinas de trabalhos manuais e histórias

Rosana Lance Saloio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133


Ensinar com vida e arte:
experiências em trabalhos manuais em uma escola Waldorf

Simone Maria de Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150


Fios, brincadeiras e poesia:
as artes-manuais na sala de aula da Educação Básica da Rede Pública

Jandira Paes de Carvalho de Melo . . . . . . . . . . . . . . . . 159


Caderno cartonero:
um espaço potente de experimentações criativas com crianças

Olívia Marinho Silva Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168


Ponto provocação:
estar vivo meu ser professora
Maria Aparecida de Morais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
Artífice comunitária:
a criação de um espaço para o exercício do agir

Fabiana Zanelato Kuwajima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200


O encontro dos gestos:
a cerimônia do chá, a percepção de si e do outro

Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro . . . . . . . . . . . . . 212


Escutas que o fio traz:
as artes-manuais como caminho de cuidado de si e do outro

Aparecida Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236


Encontrando o fio da meada:
o despertar dos processos criativos através dos trabalhos manuais

O que propõe o currículo das artes-manuais


na Pedagogia Waldorf? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246
Elis Stela Mello de Oliveira

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252

As autoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260
MAIS UMA DOBRA NA PESQUISA…
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga 1
(Nina Veiga)

“No início, não é fácil ao indivíduo crer que sentimentos


[...] tenham a ver com conhecimento. Isto provém
do hábito de considerar o conhecimento como uma
faculdade em si, que não apresenta ligação alguma com
o que ademais ocorre na alma. Com isso não se leva em
conta, porém, que é precisamente a alma que conhece. E
para a alma, sentimentos são o que para o corpo são as
substâncias, constituindo seu alimento.”

Rudolf Steiner2

A coleção Artes-manuais para Educação: A Produção de


Conhecimento entre os Fios da Casa e de Si  surge como uma
ampliação da pesquisa que teve início com o meu doutoramento.
Compor escrita junto às artes-manuais3 foi exercício intenso na tese
Fiar a escrita: Políticas de narratividade – exercícios e experimen-
tações entre arte-manual e escrita acadêmica. Um modo de existir
em educações inspirado numa antroposofia da imanência. Intensi-
dades escritas que seguem agora como proposta de produção de
conhecimento a partir dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC)
da segunda turma da Pós-graduação em Artes-manuais para
Educação (2018/2019), idealizada e coordenada por mim, como
projeto autoral, em parceria com a Faculdade de Conchas (Facon).

1. Ver: www.ninaveiga.com.br.
2. O conhecimento dos mundos superiores. GA 10. São Paulo: Editora Antroposófica, 2010, p. 20-21.
3. Ver texto “O hífen e a pesquisa em artes-manuais”, de Sofia Amorim, neste volume.

8
O território híbrido constituído agencia diferentes forças a
corpos também distintos e se efetua na produção de uma diagonal
que alinha as artes, as manualidades, as educações e as escritas.
Exercício de transversalidade em contínuo movimento. Ação que
se dá na vida mesma e constrói um projeto de ciência viva, junto
à vida que se vive, no cotidiano mais simples e seus possíveis.
Investigação que ganha amplitude rente ao multiverso da casa e
seus modos, na produção de si e do mundo. Pondo em questão os
motivos do si em contato com a lã, com o fio, com os panos, suas
costuras e bordaduras. A visitar antigas e inventar novas técnicas
e práticas. Materialidades em experimentação ativa que se dá no
processo de tornar-se quem se é, na modificação do si-mesmo em
composição com o mundo, ato o qual chamamos: educação.

Esta coleção se estabelece entre os acontecimentos de três


linhas de pesquisa: Experimentações para Artes-manuais: corpos-
-matérias-oficinas; A Pesquisa do Currículo dos Trabalhos Manuais
na Educação Steineriana4 e Modos de Ser e Viver em Artes-manuais:
As Artes da Casa, a Literatura, a Oralidade, a Memória e a Ances-
tralidade. Cada uma das linhas de pesquisa amplia a investigação,
dando densidade ao território, construindo paisagens, em múlti-
plas tonalidades.

4. Adotamos a expressão “Educação Steineriana” em vez de “Pedagogia Waldorf”, mais usual, como
forma de marcar posição e de nos mantermos afastadas de termos registrados como marca e patente.

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Experimentações para Artes-manuais: corpos-matérias-oficinas

Atelierista responsável: Carlos Vinicius de Oliveira Bressan


(vinicius airumã)

EMENTA

Investigar, experimentar e cartografar o conceito de artes-ma-


nuais, entre a produção e os desdobramentos de uma estética,
de um vocabulário, de componentes num plano de consistên-
cia. Seriam as artes-manuais a produção de modos de existir
que vinculem a expressão e invenção de si a objetos úteis e ne-
cessários dando suporte a existência? As artes-manuais como
um campo autônomo se abre para experimentações afetadas
pelo encontro com as tradições artífices; as filosofias da dife-
rença; os processos cognitivos ligados ao material; e a criação
de si como obra de arte. O processo se dá na pesquisa de três
territórios: i) os corpos – gestos, forças, sensações, artífices; ii)
as matérias – matérias-primas, técnicas, formas, obras; e iii) as
oficinas – espaços, aprendizagens, ferramentas, tecnologias.

A Pesquisa do Currículo dos Trabalhos Manuais na Educação


Steineriana

Atelierista responsável: Elis Stela Mello de Oliveira

EMENTA

Pesquisar as bases propostas pelo currículo e os conceitos an-


tropológicos que orientam a prática pedagógica dos trabalhos
manuais na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio
nas escolas que adotam a metodologia da Pedagogia Waldorf.
Vivenciar as atividades propostas pelo currículo, desenvolver
reflexões sobre seus efeitos através da pesquisa e observação.
Cartografar as experiências e desenvolver estudos que apon-
tem alternativas para viabilizar sua aplicabilidade.

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Modos de Ser e Viver em Artes-manuais: As Artes da Casa,
a Literatura, a Oralidade, a Memória e a Ancestralidade

Atelierista responsável: Karla Santori

EMENTA

As artes perdidas em sua composição com os modos de ser


e viver no contemporâneo. A casa. O feminino. A pesquisa
cartográfica em artes-manuais. A investigação das técnicas
tradicionais. O campo de pesquisa e suas vozes. A pesquisa
bibliográfica. As práticas em artes-manuais: rodas de fazeres,
oficinas, laboratórios de aprendizagens.

A cada momento, outras perguntas me surgem: quando há


um fazer manual, o que ocorre? Pode esse fazer tornar-se terapia?
Pode a linguagem dizer desse fazer? Poderá esse fazer permitir
a ultrapassagem que se pretende, no aquém do fio, pelo impulso
do brincar? Perguntas que se desdobram em outros territórios de
pesquisa: Artes-manuais para Terapias, Artes-manuais e Lingua-
gem, Artes-manuais para o Brincar. Pós-graduações promovidas
pelo Nina Veiga Atelier de Educação, na intenção mesma de dar
visibilidade às artes-manuais como potência afetiva, na construção
de conhecimento vivo.

11
O FIO DA LINHA DE PESQUISA
Elis Stela Mello de Oliveira1

Inúmeras expectativas, o anseio em investigar um tema, a busca


por roteiros de estudo, referências para a pesquisa, aulas teóricas e
práticas, perguntas, muitas perguntas... Assim foi o início das aulas na
segunda turma de pós-graduação em Artes-manuais para Educação.

O currículo era o objeto de observação e estudo da linha de


pesquisa A Pesquisa do Currículo dos Trabalhos Manuais na
Educação Steineriana. E começamos pela Educação Infantil.

Ouvir a história e o kântele (uma pequena lira), lavar a lã, secar,


esguedelhar, cardar e fazer o fio e depois trocar as percepções sobre
a experiência. Antropologia da primeira infância e pensar sobre um
tema de pesquisa. Já nesse momento inicial foi possível perceber uma
mudança na atmosfera do grupo.

Inicialmente os temas estavam direcionados para a necessi-


dade de qualificação profissional. Mas, após revisitar – por meio
da vivência com a lã, da música e das histórias – aquela conhecida
criança que mora em um canto da nossa própria biografia, elas
perceberam que era possível definir um tema de pesquisa a partir
de sua essência, do seu modo de ser e pensar o mundo.

1. Atelierista responsável pela linha de pesquisa A Pesquisa do Currículo dos Trabalhos Manuais na
Educação Steineriana. Educadora Waldorf e contadora de histórias, é pós-graduada em Arteterapia de
Abordagem Junguiana e em Artes-manuais para Educação. Atua desde 2009 com projetos de apoio
à aprendizagem, como professora de trabalhos manuais no Ensino Fundamental e Médio e como
facilitadora de grupo de mulheres. É autora do livro De ponto em ponto, um conto: o saber que nasce
das experiências em artes-manuais e das histórias (Círculo das Artes, 2018).

12
Então, aos poucos, cada uma compreendeu o que era signifi-
cativo e pôde se aproximar do que é mais genuíno nesta proposta
pedagógica: tudo o que fazemos não deve ser alheio ao ser humano
e à própria vida.

No decorrer de dezoito encontros, os olhares foram se ampliando.

Com toda sua ânsia pela definição do sentimento, Laura queria


descortinar boa parte da infância. E durante o processo de escrita da
pesquisa, percebeu que falar apenas sobre sua experiência e paixão
sobre o ciclo da lã, desde o cuidado com a ovelha até a fiação, era o
suficiente para uma existência única.

Emília nos conta sobre a feltragem como caminho de autoges-


tação: gestando e feltrando, encontra outras vidas a caminho. Sua
escuta, seu olhar e seu gesto transformam-se em ninho para que ou-
tras gestantes possam tornar-se calor – que irradia para um novo ser.

Stella descobre nos dedos de sua mão a possibilidade de en-


contrar-se com a essência da criança. O fio que passeia pelos dedos
cresce e ganha forma de serpente – que faz o menino correr ou se
junta com pompons e se enrola no pescoço da criança, aquecendo seu
sentir e envolvendo-o com um gesto de amor e respeito pela infância.

Janice descobre que os fios desse mesmo tricô podem contar


histórias. E nos conta aquela da menina que cresceu presa em uma
torre... “Rapunzeeeeeeel, jogue-me suas tranças para que eu suba
até a torre”, diz a mãe extremamente protetora. Ela faz isso por
muitos anos, mas um dia percebe que o fio de suas tranças são fortes

13
Tricô de cinco agulhas.
exercício da linha de pesquisa A Pesquisa do Currículo
dos Trabalhos Manuais na Educação Steineriana
o suficiente para que ela possa descer e seguir seu destino mundo
afora. E foram muitas outras histórias...

Enquanto isso, Rosana se prepara, com coragem e determi-


nação, para assumir as aulas de trabalhos manuais em uma escola.
Muitas angústias, perguntas, cursos de formação e tudo isso não
parece o bastante, falta alguma coisa... Ao preparar histórias para
as aulas, descobre por meio das imagens que o “ser professor” é um
devir cotidiano.

Simone nos manda notícias de sua rotina como educadora na


educação pública. As vivências no curso de pós-graduação abriram-
-lhe possibilidades para o trabalho em projetos. Ao associar temas
da literatura brasileira às artes-manuais propostas no currículo da
Educação Steineriana, ela abre um caminho de fuga e resistência
aos métodos convencionais na sala de aula. E nos leva a crer: se-
mente germina a partir da intenção, do gesto e da vontade para
fazer acontecer.

Jandira traduz a magia e o encantamento da criança em idade


de alfabetização, registrando as imagens e traduzindo em palavras as
vivências em uma oficina de encadernação na escola pública. Crian-
ças aparentemente incrédulas com a possibilidade de confeccionar o
próprio caderno transformam-se em confiantes pescadores de sílabas
e palavras que depois completarão as páginas ainda em branco.

Com seus questionamentos, Olívia nos provoca sobre o ser


professor. Segue na contramão de nos indicar qualquer planeja-
mento ou metodologia que aponte um caminho seguro para bons
resultados pedagógicos. Põe-se diante das crianças, na altura delas, e
as observa atentamente, buscando apenas o que existe nelas de mais
genuíno. Não nos apresenta métodos, só aponta uma pista: É mais
fácil desenrolar um novelo quando se começa pelo meio...

Maria Aparecida, pequena em tamanho e enorme em dis-


posição, inspira-nos com seu exemplo de força. Faz reverência ao

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saber ancestral em sua oficina voltada às avós de sua comunidade
escolar e, atenta ao futuro, desenvolve projetos para jovens e crian-
ças. Fiando e entrelaçando seus fios de experiências com os fios de
outras educadoras, tece sua teia de artífice comunitária.

E voltando um pouco o olhar para fora do ambiente escolar,


minhas companheiras de jornada seguem com suas pesquisas.

Fabiana nos convida a visitar culturas distantes e mostra a


importância do gesto por meio de vivências com a cerimônia do chá.
Gesto e ritualística unidos ao fazer manual, apontando um olhar
para a importância do fazer no tempo para cada coisa.

Juliana, inserida no contexto escolar da Educação Steineriana


e a partir de suas experiências como mãe, volta seu olhar para o
cuidado e encontra nas artes-manuais o pano de fundo para cria-
ção do ambiente que convida ao convívio, ao cultivo do bem-estar
e da vitalidade no fazer com as mãos. Sua escrita sugere o contato
com o material, o ambiente e o fazer em si, atuando como recursos
sanadores e organizadores da vida dos sentimentos. A arte-manual
torna-se um convite à escuta e ao cuidado de si e do outro.

De olhos observadores, ouvidos atentos e poucas palavras,


Aparecida busca um caminho nas artes-manuais. Executou com
capricho e delicadeza as peças propostas durante a formação e nos
surpreendeu com sua apresentação. As palavras saltaram de sua boca
em forma de história e assim ela segue o fio de seu destino, com mãos
dispostas ao fazer manual e coração aberto ao trabalho voluntário.

Doze olhares voltados para o mundo ao se juntam ao meu.

Seguimos tecendo nossos destinos.

E nessa teia de destinos entrelaçados sonhei-me como


mestra e despertei aprendiz.

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Ao fim da jornada, chega um presente para a composição
deste livro.

Elaine me faz acreditar na beleza deste caminho pleno de sig-


nificados ao descrever sua trajetória de vida por meio das artes-ma-
nuais, de uma ponta a outra da existência. Ela criança, a observar
os gestos amorosos de sua vó na lida da casa e na confecção de suas
primeiras bonecas. O olhar de veneração para o trabalho de sua mãe,
dedicado à escola; e suas próprias vivências transformando-se em
tesouro precioso, que comporia seu ser professora e seu ser mãe.

Os textos deste livro nasceram sob a perspectiva de múltiplos


olhares, dotados de perguntas sobre o ser e o fazer manual inspi-
rados pelos fundamentos e estudos antropológicos que orientam a
prática pedagógica das artes-manuais na Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Médio segundo o currículo praticado nas escolas que
adotam a Educação Steineriana.

As atividades propostas no currículo e as reflexões sobre


seus efeitos – por meio de auto-observação, pesquisa, observa-
ção em salas de aulas da Educação Steineriana e sua aplicação
em instituições que adotam outras práticas – trouxeram às par-
ticipantes da Pós-graduação em Artes-manuais para Educação
a oportunidade de reconhecer a extensão e a profundidade de
suas experiências para além da sala de aula, por atuar de forma
contundente e bastante transformadora na própria vida delas.

Na posição de orientadora da linha de pesquisa, também tive


oportunidade de me transformar, transitando entre minha atua-
ção como docente na disciplina de trabalhos manuais, no Ensino
Fundamental e Médio de uma escola Waldorf, e podendo vivenciar
a concretude de um sonho: compartilhar minhas experiências e a
compreensão do que este encontro de múltiplos olhares foi capaz

18
de produzir em minha prática docente e em meu olhar, agora ainda
mais focado na coerência e relevância das vivências com as artes-
-manuais como caminho de desenvolvimento humano.

Minha expectativa era provocar reflexões e ações que pudes-


sem viabilizar novos caminhos aos trabalhos manuais inseridos no
currículo da Educação Steineriana, para que pudessem se estender a
outras frentes educacionais. De forma que sua atuação contemplasse
as necessidades de desenvolvimento das crianças e dos jovens se-
gundo o contexto socioeconômico e cultural em que estão inseridos.

Movidas pelo desejo de atuar no mundo e pela força de suas


memórias afetivas – sobre a casa, a maternidade, a ancestralidade e
as artes-manuais em suas biografias – cada pesquisadora conseguiu
trilhar um caminho especial a partir de sua escrita e contribuiu para
que eu pudesse reafirmar meu próprio modo de existir neste mundo.

Desejo que esta leitura seja fonte de inspiração a outros múl-


tiplos olhares, e que eles possam afetar a produção científica, os
modelos educacionais e os modos de vida.

19
POLÍTICAS DE NARRATIVIDADE:
ARTES-MANUAIS E ESCRITA
Luciana Aguilar

Uma cartografia do estágio docente1 que costura os encontros


e a potência da escrita produzida pelas alunas do curso de Pós-gra-
duação em Artes-manuais para Educação. Os dispositivos utiliza-
dos em aula produziriam um processo de subjetividade nas alunas?

Os fenômenos de produção de subjetividade possuem


como características o movimento, a transformação, a
processualidade. (Virgínia Kastrup, p. 76 2)

Dispositivos são capazes de produzir tal ação?

Somos Luciana Aguilar e Sofia Amorim, docentes-estagiárias


sob supervisão da Profa. Dra. Nina Veiga. A disciplina? Políticas
de Narratividade.

Bordo agora uma colcha de retalhos, uso um bastidor, fio


na agulha, agulha que entra e sai do tecido, ponto feito.
Combinação de pontos ou composição de pontos?
Tecidos espalhados, fios também,
onde olho vejo bordados.
O que bordo? Faz diferença? É gesto que borda?
Ou é bordado que gesta?
Quais narrativas nos constituem em nosso dia?
Cartografar também é narrar? Existe relação?
Quais dispositivos usados na política de narratividade?

1. Luciana Aguilar e Sofia Amorim foram alunas da primeira turma da pós-graduação em Artes-manu-
ais para Educação, docentes-estagiárias na segunda turma e docentes da terceira turma.
2. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org.). Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

20
Do que se trata a disciplina?

Trata-se de escrita, mas não qualquer escrita, uma escrita que


deixa um devir, que acontece no entre, que produz pensamento em
quem lê, que escorre e que não se pega. A escrita considerada como
sendo única, subjetiva, sem molde, descolada de uma forma, de um
formato preposto, de um padrão anteriormente preestabelecido.
Pensamos nessa escrita como escritas diários, escritas cadernos,
escritas bordados, escritas crochê, escritas quadrado.

Produção de uma voz mórula, fecunda, para o dizer da


experiência, esta voz é anterior as tentativas de separar
episteme e doxa. (Ana Lygia V. S. da Veiga3)

O que estamos querendo produzir é uma escrita que


traduza os afetos e as intensidades da experiência que
vivemos na pesquisa. (Ana Lygia V. S. da Veiga4)

Usamos o dispositivo para tal experiência de deslocamento. O


dispositivo para Deleuze comentando Foucault:

...é de início um novelo, um conjunto multilinear. Ele é


composto de linhas de natureza diferente. (Deleuze5)

3. VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da. Fiar a escrita: políticas de narratividade – exercícios e experimen-
tações entre arte manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em educações inspirado numa
antroposofia da imanência. 2015. 540 p. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2015.
4. Áudio.
5. DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990.

21
O quadrado foi nossa primeira aula. O texto-têxtil, a segunda.
Faz planejamento de aula, discute planejamento, combina a dinâ-
mica e, na hora mesmo, na hora marcada para início da aula, as
surpresas acontecem.

APRESENTANDO A PERSONAGEM

Passo 1

A estagiária

Preparar aula, reuniões intermináveis para discussão do como


fazer. Uma equipe composta de três pessoas, uma coordenadora,
duas estagiárias. Estagiárias essas que conduziriam uma aula,
chamaremos uma delas de estagiária terra – essa conduziria a
primeira aula de sua vida.

Como descola da tese e da noivinha6?

APRESENTANDO O MÉTODO

Passo 2

A cartografia

Cartografia: 1. conjunto de estudos e operações científicas téc-


nicas e artísticas que orienta os trabalhos de elaboração de cartas
geográficas. 2. Descrição ou tratado sobre mapas. 3. Cartografia,
método usado por cartógrafos para descrever com a maior riqueza
de detalhes uma localização geográfica ou mapa geográfico (dos
dicionários).

Cartografar é acompanhar processos. (Kastrup7)

6. Referência à personagem do livro Cartografia sentimental, de Suely Rolnik (Cartografia sentimental:


transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2016).
7. KASTRUP. Op. cit.

22
APRESENTANDO O DISPOSITIVO

Passo 3

O quadrado

O que pode um quadrado? Quem é você enquanto faz qua-


drado?

Turma separada, 15 alunas para cada uma das professoras-


-estagiárias, estagiária terra inaugurava uma aula, estava tensa,
sua voz tremia ao dizer a proposta do dispositivo. “Convido todas a
utilizarem os materiais que trouxeram para produzir um quadrado.
Enquanto isso, podemos perceber o corpo, pensar esse corpo que faz
o quadrado.”

Provocação através do quadrado para pensar esse quadrado,


pensar o corpo que faz quadrado. Ela lia as anotações que havia
feito em seu caderno; naquele instante, percebeu ter se esquecido
de iniciar pela respiração – tinham combinado, ela pensou. Reinicia
a aula? Pede desculpas? Introduz agora a respiração? Ou simples-
mente vai? Optou por ir.

“Postura, sensações, desconforto, pensamentos. Vai anotando.”

Ah, combinaram uma coisa antes, ela achava ridículo, mas


cedeu, funcionou até para ela. Entregou uma estrela a cada aluna,
dessas de confete, sabe?, pequenas que, no seu primário, eram
coladas no caderno. Já assim, logo de início. E disse a cada uma
das alunas:

“Nossa que trabalho incrível,


Ficou ótimo seu quadrado,
Quanto capricho,
Maravilhoso,
E as cores que usou
Nossa, que ponto bem-feito!”

23
E assim foi, para cada uma das 15 alunas: uma estrela e um
elogio. O primeiro espanto: “Eu ganhei uma estrela?!”. Parece ter
funcionado, estagiária menos tensa, alunas mais entregues.

Combinou também de ler o texto, seu próprio texto, mas não


conseguiu, ficou encabulada e preferiu não ler. Pôs-se a observar,
então. As mãos rápidas, outras nem tanto. Houve quem preferiu
se esconder num canto, no chão. Silêncio. Houve quem não quis
fazer quadrado.

Um espanto! Duas horas??? O tempo.

APRESENTANDO A PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO

Passo 4

As escritas

Sustentar o processo do outro.

Durante a leitura deste livro, o leitor vai encontrar textos des-


tacados das autoras, onde a voz que percorre é a voz da narrativa.
São textos produzidos em momentos descolados da pesquisa, no
durante do pesquisar.

E então...

Dentro da política de narratividade produzir silêncio.

As especialistas em Artes-manuais para Educação


compondo dispositivos, pensando nos materiais para
o tornar-se (processos de subjetivação). (Aula da Profa.
Dra. Nina Veiga sobre dispositivos)

Ementa: Escrita e narratividade, uma política possível.


Pedagogia Social. Propor dispositivos de escrita. Cartografia dos
processos de subjetivação. Construir um caminho no cuidado de
si e de sua escrita. Produção de conhecimento coletivo. Produção
de artigo.

24
As provocações aconteceram efetivamente em dois encontros:
“O que pode o quadrado?” e “Texto-têxtil”, além de escritas soltas
sobre as aulas, feitas em plataforma digital, o Trello8.

O que fazemos como docentes-estagiárias de Políticas de Nar-


ratividade? Fazemos diferença? Somos provocadoras? Gosto de
pensar que sim, provocamos uma escrita outra... Algo próximo à
maiêutica, ao processo de doulagem, apoiamos nascimentos, tra-
zendo suporte para as alunas que queriam parir textos.

Quadrado,
exercício em Políticas de Narratividade

8. Trello é uma plataforma digital para organização de projetos que se utiliza de quadros. Durante
o curso, as alunas o utilizaram para colocar suas impressões e escritas de cada módulo, de cada
vivência proposta.

25
EDIÇÃO-COMPOSIÇÃO
Cristina Yamazaki
Sofia Amorim

Uma coleção de livros com artigos acadêmicos.

O conhecimento vivo produzido ao longo de uma pesquisa


junto às artes domésticas ancestrais e os fios de si. As intensidades
de uma pesquisa acadêmica.

Um ler atravessado por pesquisares múltiplos. Produções de


texto e de vida singulares.

Um livro constituído por atravessamentos.

Editar: uma forma de ler, um ler que desvenda, que interfere


em textos outros. Trocar de lugar, substituir palavras. Cortar. Cor-
tar muito. Incluir também. E ouvir o outro, no que ele se apresenta:
nas palavras, no ritmo, nas pausas. Nos processos de cada autora,
de cada pesquisa.

Ao apurar a geleia, o que fica da fruta? O sabor mais intenso,


a essência, a marca. Encontrar as marcas, encontrar aquilo que
marca. Olhar com delicadeza a entrega do outro.

Nas múltiplas vozes – autoras, organizadora, docentes, dia-


gramadores, revisores, designer, leitor – livros. Livro-polifonia
pede uma edição que sinta ressoar a diversidade de sons.

Nas múltiplas palavras – autoras, organizadora, docentes,


diagramadores, revisores, designer, leitor – livros. Livro-compo-
sição busca uma pesquisa sobre outros modos de se fazer ciência.

26
Editar livro tão rico demanda outros corpos do nosso próprio.
Outro tempo. Demanda outros. Entender-se nessa posição, observar-
-se como regente, é também campo de pesquisa em artes-manuais.
Fazedura de livro-composição: recortes, costuras, acabamento, cria-
ção. Perceber-se no lugar (potente) do entre: entre autoras, entre
organizadora, entre diagramadores. Estar editora é saber-se não
protagonista, é saber-se costura invisível para que a peça se apre-
sente impecável.

Compor um livro que se produza pesquisas e livros outros aos


olhos – e corpos – dos leitores.

27
O HÍFEN
E A PESQUISA EM ARTES-MANUAIS
SOFIA AMORIM

A cesta cheia de lã, agulhas, tecidos, trabalhos começados,


outros quase acabados. A cesta ao lado da mesa de jantar;
no canto da cozinha, perto dos livros de receitas; na beira
do sofá, naquele lugar onde se tropeça. A cesta carregada
daquilo que virá. As artes-manuais carregam, em si,
um tensionamento, uma relação. Relacionamos artes às
manualidades.
Do que está cheia a cesta? Do que se preenche
a casa? Trabalhos manuais, artesanato, paninhos.
Diversas palavras que tentam dizer e não dizem.
Não dizem do impulso de mãos que querem se colocar em
movimento. Não contam dos processos de alguém que deseja
produzir – não somente a produção de itens de consumo, o
artesanato, ou a produção de itens de galerias de arte, presos
a paredes geladas – mas a produção quase que de si mesmo,
fazendo-se ao fazer algo para si.
A palavra “artes-manuais” traz, no hífen, essa
tensão – o que se faz, quem faz, como faz, por que
faz; traz essa relação entre o impulso e a produção,
o subjetivo e o útil. Assim, as também chamadas “artes da
casa”, como crochê, tricô, bordado, costura etc., passam a ser
valorizadas a partir de outro lugar – aquele que, apesar de
considerado menor, pode ser visto com toda sua potencialidade
– a casa, o feminino, o ancestral.

28
Debruçar-se sobre esse tema, ser pesquisadora das
artes-manuais, é encontrar uma investigação que não
se descola de si mesma, materializando, na escrita,
o lugar do entre, impossibilitando polaridades,
traçando o caminho do hífen, abrindo-se para os
devires. O paninho encontrando lugar na parede, os gestos
da avó observados com atenção, a escrita da pesquisa enquanto
se amassa o pão – a produção de uma afirmação do que se
é, deslocando o que diminui a potência para o que aumenta
(em uma conversa gostosa com Espinosa), de modo que a
pesquisa que surge traga a capacidade de viver hífen, de viver
tensionamento, de um modo de ser que nos alegre.
Pesquisar hífen é entrar nas forças que nos compõem, um
modo de enfrentamento a um mundo que tende a apequenar as
rotas invisíveis traçadas pela firmeza de quem compõe vida com
os fios. Ser pesquisadora das artes-manuais com hífen
é sustentar um corpo que pesa, produtor de “entres”,
numa escrita que não escapa das contradições e
ambiguidades de uma existência afirmativa.

29
Elaine

ELAINE
CRISTINA
RUSSO
30
A lembrança
Lembrar....
O que diz a lembrança?
Algo que vivi...sonho, imagino?
A lembrança me remete a outros tempos, espaços, sons,
cheiros, olhos, bocas...
Me leva ao tempo do coração. Tempo que não é passado,
nem presente, nem futuro.
A lembrança me abraça na sensação de existir.
Esqueço do que sou.
A lembrança não é boa nem má. Não me acaricia...nem
machuca.
Não tem tempo, nem pressa.
Me permite só existir.
Me permite sentir que os encontros vão e voltam.
Como num girar...
É um eterno ir e vir transformado.
O que parecia velho, se torna novo outra vez....para
ser velho amanhã....quando novamente acontecer a
lembrança.

Levei meu olhar para o céu


Senti um instante de paz
O azul manchado de branco
Suave... sereno
Paz que não estava dentro... mas no que eu via
Foi rápido
Só senti este gostinho
Mais tarde busquei a calma...a paz dentro para Cardar...
cardar...
Olhei novamente no céu
A mancha acenava bem distante
Mancha que já se desmanchava
Ficou só o gesto procurando a paz
A lã se torna uma lembrança
O suave e sereno que eu posso tocar
Os olhos encontram-se com as mãos.

31
Construindo
memórias
Revalorizando as
artes-manuais como
aprendizado de afeto nas
relações intergeracionais

Estou agora sentada em uma


rede. A paisagem é serena e verde. Ga-
roa. Do alto de uma montanha, olho um
vale e o som é das águas das cachoei-
ras que correm, do vento que sopra, dos
grilos, pássaros e cães ao longe... bem
distante. O momento é de paz e o tem-
po parece dormir. Mas em meus pen-
samentos esse tempo correu rápido de-
mais para chegar neste instante. Busco
as memórias construídas nessa corrida.
Agora parou de gotejar e o sol se
abre. É tarde. Uma tarde que também
se constrói.
Recordo meu primeiro tempo.
Tempo de descobrir, tempo do sonho,
do encantamento, da pureza e do atre-
vimento.

32
A casa da minha avó
Minha avó foi uma mulher de fibra, do trabalho, da fa-
mília. Mãe de oito filhos, todos paridos naquela casa.
Fui a primeira neta e morava numa casa construída no fundo
daquele grande quintal, mas não saía da casa da minha avó.
À tarde, em momentos de descanso, após longa jornada de
trabalho cuidando de todos, minha avó, sentada em uma cadeira
na sala, me ensinava a crochetar. Movendo aquela agulha mágica,
suas mãos faziam surgir lindos círculos e quadrados que ora se
transformavam em toalhinhas, ora em almofadinhas de bonecas
ou pequenas bolsinhas. Tudo bem simples, mas, para mim, um
encantamento.
Curiosa, aprendia a mágica das mãos e vibrava a cada ponto
que conseguia fazer. Logo estava criando roupinhas e adereços
para minhas bonecas.

...minha avó, sentada em uma cadeira na sala, me


ensinava a crochetar. Movendo aquela agulha mágica,
suas mãos faziam surgir lindos círculos e quadrados...

Alcançado esse movimento, sempre buscava outros desafios


com agulhas de tricô ou costura. Não esqueço da calma e da paci-
ência da minha avó, que dedicava seu pouco tempo de descanso
no fazer desprovido de interesse. Um fazer com prazer em ensi-
nar, em partilhar o momento. Talvez fosse sua maneira de deixar
as preocupações e a correria do dia, mas para mim era o momento
da atenção e do trabalho, quando desejava transformar aqueles
pontos em algo especial.
Uma vez minha avó dobrou um pano e amarrou aqui e
ali, encheu, mexeu.... e eis que surgiu uma boneca feita de nós.
Boneca estrela, na Pedagogia Waldorf, mas minha avó era sá-
bia em sua própria natureza e fez uma boneca de nós. Deu
vida àquele pedaço de pano. Minha relação com as bonecas
de pano que encontrei durante toda a minha vida sempre teve
uma pitadinha da sabedoria dela.

33
Recordar esses fazeres me remete ao
passado, e me lembro de detalhes saudosos:
o cheiro de café que minha avó havia pre-
parado pouco antes, o vento que balançava
a cortina, o entardecer pela janela, seu ves-
tido até os joelhos, o gatinho que ficava na
porta, o programa que passava na televisão,
os tios chegando do trabalho, minha mãe
me chamando para o banho. Tudo aconte-
cia ao redor das mãos da minha avó.
Me sinto acarinhada! Uma saudade que fortalece.

Mulher!
Exemplo de mulher.
Trabalho e delicadeza...
Mãos fortes que se movimentam o tempo todo.
Lavam, passam, cozinham, seguram, entregam, acariciam.
Mãos... Extensão de todo o corpo em movimento.
Esposa!
Que ama, espera, constrói, olha, sorri e chora.
Mãe!
Que recebe, alimenta, veste, embala, cria, ensina, ama,
sorri e chora.
Avó!
Que cuida, ensina, brinca, ama, sorri e acaricia.
Mãos que acariciam.
Mulher guerreira que suporta a dor.
Perde o movimento, a visão.
Mas mantém a delicadeza, o toque das mãos.
“Eu sei quem é.”
Diz ao tocar.
“Estas são as suas mãos. É a minha neta.”
Vi uma nuvem se espalhando no céu.
Lá estava minha avó.
Grande e linda,
Com um sorriso sereno.
Minha avó! Mulher! Esposa! Mãe! Anjo!

34
A máquina de costura da minha mãe
Minha mãe trabalhava na máquina de costura. Fazia
as suas roupas, as dos filhos... Outro encantamento! Ficava eu a
olhar tecidos criando formas. Asas de anjo! Em batas de cetim,
minha mãe fazia trajes de anjo que eu usava a cada ano de toda a
primeira infância, percorrendo as ruas nas procissões. Lembro a
correria com as tarefas de casa e depois finalmente sentar-se jun-
to à máquina de costura. O tic tic tic tic... o cheiro de tecido novo
e o toque de cetim na prova da roupa. As penas das asas voando
enquanto eram presas na bata.
Queria descobrir como aquela máquina era conduzida
por suas mãos e pelo pé movimentando o pedal, mas ainda
não era tempo... Minha mãe não deixava. Então, só me resta-
va pegar os retalhos de tecido que caíam no chão. Eu cortava,
juntava, prendia, amarrava... Cortava com as mãos, com tesou-
ra e até com faca, o que me deixou uma bela cicatriz no dedo indi-
cador. Fui inventando... Amarrava aqui, costurava ali... Dava meu
jeito e aprendia vendo minha mãe.
No Natal gostávamos de trocar presentes. A família era gran-
de e eu queria dar presentes para todo mundo, então inventava
com os pedacinhos de pano e os restos de lã: uma bolsinha, uma
bonequinha, um colar, uma toalhinha... E embrulhava cada feito
com alegria.
Uma vez ganhei de presente de uma
tia um corte de tecido. Queria um patinete, Uma vez ganhei
mas foi um corte de tecido. Então, mergu-
de presente
lhei naquele pano vendo minha mãe trans-
formá-lo num lindo macacão. Era o maca-
de uma tia um
cão da moda. Fiquei orgulhosa e feliz. corte de tecido.
Minha mãe fazia parte do clube de
Queria um
mães na escola. Elas se reuniam e faziam patinete, mas
trabalhos manuais (bordados, panos de foi um corte de
prato, casaquinhos de crochê, tricô...) que tecido. Então,
vendiam para arrecadar fundos. Me sen- mergulhei
tia importante e acreditava que aquelas naquele pano...
mães eram as melhores da escola.

35
Cresci e me atrevi a invadir a máquina de costura. Foram vá-
rios avanços. Fui apertando... transformando... inventando... tanto
que minha mãe não se importava mais que eu a usasse e até me
ajudava quando era preciso.
Os fios costuravam os tecidos e os momentos da vida... Uma
calça larga demais, um vestido para uma festa, um presente para
uma amiga, uma roupa para um casamento, uma manta para o
filho!

Tic tic tic tic... o pé no pedal...


O trilho.
A linha sobe e desce...
O trem.
As mãos conduzindo...
O maquinista.
Minha mãe escolhia os caminhos,
Eu escolhia os caminhos.
E o tic tic tic tic no trilho passando pelo tempo
Correu, correu...
A linha percorreu tantos tecidos,
Tantas histórias...
Que vestiram e acariciaram os caminhos.
Tecidos moldados,
Memórias construídas.

36
Guardados que viram tesouros
Sempre guardo em cestas, caixas e
sacolas o que acho precioso: sobras de tecido, Também
lã, fios, pedacinhos de madeira, contas colori- preciosos
das, fitas, caixinhas, enfim, tudo sobre o qual eram os
penso “Um dia posso transformar em algo”. trabalhos
Talvez essa mania eu tenha aprendido manuais que
com duas tias (irmãs de minha mãe). Seus ar- elas faziam.
mários eram repletos de coisas: objetos, tra- Cada uma
balhos a concluir, roupas coloridas, lenços, com sua
livros, colares... Para mim, parecia mais um
habilidade
castelo com tesouros. Eu ajudava a arrumar
especial.
cada coisa em seu lugar e muitas vezes, no fim,
ganhava algo precioso que eu guardava.
Sempre
Também preciosos eram os trabalhos
havia uma
manuais que elas faziam. Cada uma com sua invenção com
habilidade especial. Sempre havia uma inven- fitas, rendas,
ção com fitas, rendas, retalhos, bordados... Eu retalhos,
adorava aprender e ajudar. bordados...
Eu também me divertia na marcenaria Eu adorava
de um tio que ficava no grande quintal da aprender e
casa da minha avó. Lá eu recolhia os pedaços ajudar.
de madeira e lixava, martelava, transforman-
do os tocos em brinquedos. Foi com esses restos de madeira que
construí o primeiro tear! E era lá, junto à marcenaria, que eu fazia
minhas pulseiras com linhas coloridas. E depois, já num tear maior,
diferentes tecidos (foi assim que fiz um xale para minha avó). Lem-
bro do cheiro da madeira e de meus irmãos e tios passando de um
lado para o outro enquanto eu tecia.
De tudo, guardava as sobras... talvez com a intenção de fa-
zer algo um dia ou com o pensamento inconsciente de guardar
aquelas memórias.
Mais tarde, na juventude, em um curso de teatro infantil, no
Teatro Vento Forte, descobri a arte de transformar o fazer em poesia
e encantamento. Lá vivenciava o meu corpo e movimentos, e cons-
truía vestes e adereços dando vida a personagens e bonecos. Tudo

37
era encantamento – e um simples pano florido podia ser qualquer
coisa que eu quisesse. Aprendi a dar forma e vida ao que era cons-
truído com as mãos. Tudo isso no mundo e na fantasia da criança.
O Teatro Vento Forte também era um grande castelo de tesou-
ros guardados e redescobertos a cada criação.
No meu caminho e em meus guardados, sempre tive um olhar
de admiração e o desejo de aprender e fazer tudo o que via em ar-
tes-manuais1. A memória dos primeiros fazeres e o afeto ali envol-
vido foram as sementes preciosas que recebi na primeira infância.
Foram o impulso que abriu minha sensibilidade para esse olhar.
A realização de cada feito, hoje, é o encontro com aquele primeiro
tempo: tempo de descobrir, tempo do sonho, do encantamento, da
pureza e do atrevimento.
Memórias guardadas...
Mas as memórias não guardamos apenas, elas vivem em nós
dando inspiração para construir as próximas memórias que virão.
São afetos que tecem nossa história.

Se pudesse construir um castelo,


Seria ele todo enfeitado de risos.
No piso firme, bordaria lindas contas coloridas.
As janelas cobertas de rendas e as paredes de cetim,
Cada aposento guardaria um tesouro
Costurado com fios dourados para eu não perder.
Na grande mesa do salão haveria uma toalha de retalhos,
Cada parte de uma história que não tem mais fim.
As portas se abririam no voar das cortinas,
Todas floridas como um grande jardim.
O castelo teria vida e dentro dele o tempo
Misturaria o ontem, o hoje e o porvir.
Se pudesse construir um castelo,
Ele guardaria todo momento vivido
De cada afeto construído.
Ele teria a magia de abrir cada aposento, quando preciso,
E fazer reviver o tesouro escondido.

1. Artes-manuais: com hífen, porque nossa atuação reside nesse espaço entre arte e trabalho com
o uso das mãos.

38
Mãos que educam e amam
Meu caminho como educadora infantil passou por
muitas procuras, vivências, encontros, descobertas, reencontros.
Buscava o que interiormente já tinha vivido quando criança. Que-
ria oferecer o que experimentara desde pequena: um ambiente
para o criar, fantasiar, se descobrir. Nesse caminho, estive em
alguns momentos com a Pedagogia Waldorf, mas não tinha uma
relação teórica com ela, só me identificava com algo familiar e
lembrava da boneca de nós, das brincadeiras na terra e na água,
dos tecidos, das madeiras, dos fios, das histórias... E sabia o valor
e a importância que tudo isso teve na minha vida. Talvez, como a
minha avó, eu tivesse uma sabedoria natural.

O fazer embutido de sentimento envolve a matéria


transmitindo-lhe um valor especial: o objeto criado se
torna uma fonte de memória, a memória da sensação, do
gesto amoroso e de todo o ambiente do entorno.

Enfim... após uma experiência maravilhosa no Teatro Vento


Forte, onde estudei e trabalhei como contadora de histórias e fa-
zedora de bonecos, busquei com mais força uma forma de atuar
com as crianças de modo que elas pudessem criar e imaginar li-
vremente. Foi assim, nessa procura, que reencontrei a Pedagogia
Waldorf. Agora, com um olhar mais maduro, reconheci o caminho
que desejava percorrer na educação com meus filhos e alunos.
Aprofundei nos estudos o entendimento da grandeza da
intenção em oferecer à criança pequena um ambiente sábio
para o brincar e o vivenciar, promovendo o livre desenvolvi-
mento da individualidade.
Estava encantada agora com a consciência de como poderia
e deveria “despertar” nas crianças o que eu mesma sentia como
valores primordiais. Um “despertar” no sentido de buscar e fazer
acordar as forças adormecidas na própria individualidade. Exer-
cendo essa função como educadora infantil na Pedagogia Waldorf,
eu me reencontrei com diferentes atividades artísticas e trabalhos
práticos, possibilitando que as crianças aprendessem por meio da

39
imitação, das experiências de diversas impressões sensoriais e do
movimento. Promovendo, assim, o desenvolvimento saudável da
imaginação e da criatividade.
A semente plantada em mim na infância foi germinada com
uma mensagem que não se distancia mais das artes-manuais. O
fazer embutido de sentimento envolve a matéria transmitindo-lhe
um valor especial: o objeto criado se torna uma fonte de memória,
a memória da sensação, do gesto amoroso e de todo o ambiente
do entorno.

Quem disse que as mãos não falam?


Sorriem ou se calam...
Quem disse que as mãos não podem ensinar?
Os movimentos da terra, da água, do fogo e do ar.
As mãos no fazer ganham vida,
Formam vida,
Constroem arte.
Mãos que tecem,
Mãos que unem,
Mãos que criam.
Vejo mãos a trabalhar... com fios, panos, tiras, sonhos.
O gesto do fazer traz segurança,
Mostra firmeza,
Abre possibilidades...
Mãos que falam, sorriem e calam.
Os olhos entendem os gestos,
Observam os movimentos e as formas que as mãos criam.
“Quero fazer também!”
Diz a criança que percebe o sonho.
As mãos ensinam...
Ensinam que podem criar.
As mãos amam...
Amam o ato de ensinar.

40
A criança de casa para a escola
Chego cedo na escola, preparo a sala e aguardo. Para ir
até a sala do jardim de infância, as crianças precisam subir uma es-
cada. Escuto suas vozinhas acompanhando os passos nos degraus.
“Bom dia!”
Às vezes não recebo resposta.
Procuro nos olhos de cada criança o nosso encontro e a des-
pedida de seus pais.
Elas entram e já iniciam o brincar.
Observando cada
A relação que a criança tem criança, imagino como
passaram seu tempo
com os brinquedos e objetos
antes de chegarem. Al-
construídos manualmente
gumas ainda parecem
apresenta-se de modo diferente adormecidas nos so-
de uma para outra. Pergunto: o nhos e vão despertan-
que aproxima a criança de algo do aos poucos. Outras
feito com as mãos? parecem que nem dor-
miram e estão agitadas,
procuram algo para brincar. Em algumas, a fala descansa, em ou-
tras a fala não cansa.
Os brinquedos, muitos deles construídos manualmente, são
os mesmos para todos e estão cada qual em seu lugar. Cada crian-
ça, porém, tem um gesto diferente ao tocá-los para brincar. Uma
criança, ao passar próxima à casinha de bonecas, vê um pano ren-
dado no chão; pega-o delicadamente, coloca sobre a mesa e estica
o pano como se estivesse arrumando uma linda toalha que recebe
um vaso de flores.
Ponho uma cesta com novelos de lã sobre a grande mesa e
logo surgem olhares curiosos: “O que vai fazer? Posso ajudar?”.
Assim, os pequenos me ajudam a enrolar novelos enquanto os
maiores já tecem em seus teares.
Nos bercinhos, as bonecas, feitas de pano, estão dormindo e
tem quem cuide delas com carinho, cobrindo-as com uma manta
de tricô.

41
A cada criança que chega, o cenário se modifica. Os brin-
quedos ganham diferentes lugares e diferentes olhares. Al-
gumas crianças não pegam o pano do chão, elas passam por
cima, esbarram nas bonecas e correm imitando algo que nem
elas sabem direito o que é.
A relação que a criança tem com os brinquedos e objetos
construídos manualmente apresenta-se de modo diferente de
uma para outra. Pergunto: o que aproxima a criança de algo feito
com as mãos?
As vivências e rotinas em casa se di-
Muitas destas ferenciam bastante entre as crianças. En-
crianças quanto uma tem a mãe que lhe faz um
chegam na brinquedo com agulha e tecido, outra vê
os pais somente à noite ou pela manhã, e
escola e
quando chega o fim de semana são tantos
se abrem os compromissos a cumprir que não existe
para novas o tempo de parar.
possibilidades. A rotina que vários dos meus alunos
Elas observam vivem nos dias de hoje muitas vezes lhes
e vivenciam rouba a possibilidade de vivenciar os ges-
novos gestos tos do fazer algo de forma mais calma e
e fazeres que concentrada. Na correria do dia, a dinâmi-
as professoras ca familiar procura os fazeres mais práti-
lhes oferecem, cos, para que a vida profissional dos adul-
tos possa ser conciliada com a rotina de
como as artes-
um ou mais filhos, e quase sempre, além
-manuais...
da escola, esses pais contam com ajudan-
tes, familiares ou amigos. As atividades, os
brinquedos e as brincadeiras depois da escola são diversas: aulas
de esportes, natação, casa dos amigos, televisão... Para muitas fa-
mílias, o momento de pausa também é a hora do descanso, quan-
do todos já querem e precisam repousar.
Muitas dessas crianças chegam na escola e se abrem para
novas possibilidades. Elas observam e vivenciam novos gestos e
fazeres que as professoras lhes oferecem, como as artes-manuais,
conforme me proponho a deixar evidente neste artigo. Percebo
que quando se faz na escola um trabalho manual com ou para as

42
crianças e em casa ele também é vivencia-
do com a mãe ou outro familiar, a relação
da criança com esse fazer ou brincar é
mais intensa e a envolve toda – como que
reconhecendo e refazendo um afeto.
Penso no que a criança diz com satis-
fação e orgulho: “Minha mãe está fazendo
uma boneca pra mim!”. Recordo os sen-
timentos que tive na infância e a riqueza
do afeto construído naquele momento de
pausa, quando só existe o gesto do fazer, a
concentração nos movimentos, a delicadeza e a superação para al-
cançar o desejado... Tudo isso realizado com carinho e dedicação.
Em cada momento que a criança vive nesta primeira in-
fância, abrem-se portas para o pleno desenvolvimento de sua
individualidade. Penso, então, como se faz importante que as
vivências tenham harmonia: que a escola seja uma extensão
de casa e a casa uma extensão da escola.
Resgatar o fazer vivo no cotidiano da casa, de forma que o
trabalho com as mãos ganhe um tempo e as artes-manuais se tor-
nem presentes, amplia os momentos de afetos que, certamente,
acompanharão cada criança em seu desenvolvimento.

Arte-manual,
sabedoria herdada e perdida
Eu cresci ainda num tempo em que a arte-manual
era realizada no dia a dia, de forma natural, principalmente pelas
mulheres. Mesmo as mulheres que “trabalhavam fora” encontra-
vam um momento em que a costura, o crochê, o tricô, o bordado,
a tecelagem, em que as diferentes artes pudessem ser realizadas.
Ainda aprendiam com as mães, avós, tias. A arte-manual era uma
sabedoria herdada, ensinada de geração para geração. Muitas rou-
pas, brinquedos, adereços e acessórios para casa eram feitos ma-
nualmente. As crianças, então, tinham a bênção de viver com um
olhar que podia admirar esses fazeres. Mas, com o crescimento da
industrialização e do comércio ampliando-se no mundo contem-

43
porâneo, muitas transformações foram acontecendo na relação
com o trabalho, assim como com o próprio tempo e os valores na
dinâmica familiar. As gerações mais recentes de mães e pais pro-
curam, cada vez mais, uma vida prática que lhes permita dividir
o tempo para tantas tarefas e trabalhos. A busca por uma posição
profissional que ofereça estrutura exige muito empenho, estudos
e relacionamentos sociais que ocupam a maior parte desse tempo.
Assim, o consumo e o descarte ocorrem de forma prática, rá-
pida. Por que pensar em fazer roupas, acessórios pessoais, objetos
de decoração para casa ou brinquedos para os filhos, se há tantas
ofertas no mercado? Comprar é muito mais eficiente no mundo
moderno.
Dessa forma, a sabedoria em artes-manuais, que era aprendi-
da no cotidiano, foi perdendo espaço nas famílias atuais. Mesmo
entre as poucas filhas e netas que ainda têm o privilégio de ter
avós ou bisas sábias em artes-manuais, raras são as que têm tem-
po ou interesse em dar uma pausa no agito do dia para aprender o
que aqueles muitos anos vividos podem ainda oferecer.
A criança pequena entende o mundo imitando o que está ao
seu redor. “Podemos afirmar: a criança é, até a segunda dentição,
essencialmente guiada pela imitação [...]” (STEINER, 2006, p. 24).
Cada gesto que ela pode observar e vivenciar a envolve e atua
em sua formação. Os gestos em artes-manuais são definidos, ple-
nos, condutores. Independentemente de qual técnica está sendo
adotada para chegar à meta de finalizar o trabalho, é necessário
haver dedicação – com envolvimento, paciência, direcionamento,
firmeza, além de várias qualidades que serão expressas de forma
diferente em cada pessoa, mas que conduzem para o caminho de
uma construção. E quando o trabalho está sendo oferecido para
alguém ou com um objetivo especial, o gesto ainda tem o segredo
mais precioso da receita: amor.
Não vivenciar esses gestos em casa, como acontecia em
tempos passados, é uma grande perda para as crianças, que
estão aprendendo com a imitação tanto do movimento como
do gesto interno, que atua na formação de valores.
É preciso recuperar essa sabedoria perdida, criar no tempo
de cada família um espaço que permita resgatar esses valorosos

44
gestos trazidos pelas artes-manuais.
Reaprender, que seja, com as avós,
...existe ainda quem
mas quem sabe com os pais, amigos, saiba fazer muita arte.
mestres... Tornar vivo novamente
esse fazer para que as crianças de hoje tenham chance de, como
nos tempos passados, herdar essa sabedoria.

Oficinas com os pais,


dificuldades e superações
Quando eu era pequena, o clube de mães da minha escola
foi a primeira experiência de percepção de como tais reuniões eram
importantes. Eu me sentia muito feliz em ver minha mãe fazendo
tantas coisas lindas junto com outras mães. Ficava orgulhosa: era
como se ela fizesse parte da escola e a escola estivesse também inse-
rida em casa, quando eu a via concluindo algo que ainda não havia
terminado naqueles encontros. Meu interesse e minha admiração
cresciam em cada arte realizada. E quando aconteciam os bazares
de vendas e alguém elogiava ou comprava seus trabalhos, a satisfa-
ção era plena.
Quando os meus filhos entraram no jardim de infância de uma
Escola Waldorf, era a minha vez de participar dos encontros com
outras mães: nós construíamos brinquedos para as crianças usa-
rem na sala e também para serem vendidos no bazar. Nos reunía-
mos na escola ou na casa de alguma criança para juntas aprender
e ensinar diferentes técnicas em artes-manuais. Fazíamos tiaras
e véus de fadas, coroas de príncipes e princesas, capas, bonecas...
Percebi, também nessa época, como era
importante para os meus filhos viven-
ciarem esses fazeres.
Trazendo nas memórias a impor-
tância desses encontros e dessas apren-
dizagens, tanto para os pais como para
as crianças, não tive dúvida de como
era necessário, como professora, pro-
porcionar essas vivências às famílias de
meus alunos.

45
Assim, há quinze anos trabalhando em Escolas Waldorf, venho
desenvolvendo com as famílias alguns encontros nos quais fazemos
diferentes trabalhos em artes-manuais. A cada ano o grupo de famí-
lias forma uma constelação com qualidades
Fazer uma e conhecimentos únicos. Sempre há pessoas
boneca que nunca pegaram em uma agulha de cos-
envolve tura ou que não sabem como se faz crochê e
diversos tricô. Mas também existe ainda quem saiba
sentimentos. fazer muita arte.

Muitos Nesses encontros, a intenção é que um


aprenda com o outro e que ao mesmo tem-
processos
po, nessa troca, descubra suas facilidades e
acontecem
possibilidades. O fazer sempre está voltado
no interior de para a criança, pensando no material e no
cada pessoa, é brinquedo adequado.
uma gestação. Todo ano, quando é lançada a proposta,
escuto frases das mais diversas:
“Ah... lá vem trabalho!”
“Crochê? Eu não sei.”
“Depende do horário...”
“Meu tempo é curto.”
“Será que eu consigo?”
“Oba! Eu quero aprender.”
“Podemos fazer os encontros lá em casa...”
Aos poucos, vamos construindo a ideia de que é possível
aprender e fazer algo juntos.
O primeiro encontro também é diferente em cada grupo e mui-
tas vezes a presença dos pais depende de uma propaganda inicial.
Uma vez fiz esse primeiro encontro da turma na casa de uma
das crianças da escola, no fim de semana, num almoço com as fa-
mílias. Assim, mães e pais estiveram presentes. Juntos lavamos a
lã tosquiada de carneiro e colocamos ao sol para secar. (Na casa
havia alguns cachorros e eles ficaram maluquinhos com o cheiro
da lã, foi até preciso prendê-los no canil.) Depois, com outra parte
de lã já lavada, fizemos o esguedelhamento e deixamos a lã pronta
para ser usada como enchimento de cabecinhas de bonecas. Fei-
tas as cabeças, agora faltava terminar as bonecas em outros en-

46
contros. Não era possível abandonar aquelas cabecinhas. Então
vieram os desafios das costuras para formar corpinhos, cabelos,
vestes. Essa parte fica quase sempre para as mães. Poucos pais se
permitem essas tarefas, embora eu já tenha visto pai que costura
muito bem. Um deles era médico cirurgião e seus pontos na boneca
eram perfeitos!
Fazer uma boneca envolve diversos sentimentos. Muitos pro-
cessos acontecem no interior de cada pessoa, é uma gestação. As
mães se apegam aos bebês nascidos e há muito afeto envolvido
nesse fazer: “Quando a boneca está montada, podemos ver qual
‘criança’ quer nascer ali” (SCHEVEN, 1991, p. 57).
Em 2018, fiz com as famílias de uma turma alguns bichinhos
de crochê para uma fazendinha. Foi um desafio para as mães que
precisaram aprender a fazer crochê e depois ainda formar e cos-
turar os bonecos.

Todo o processo foi um aprendizado de cooperação e de olhar


para o outro, de insistência e principalmente de resgate das famí-
lias – pois várias mães, assim como eu, pediram ajuda a suas mães,
tias, amigas, avós... as quais também se envolveram fazendo o que
sabiam. Muitos talentos foram assim redescobertos.

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Algumas mães relataram como foi importante esse processo
e a relação que tiveram com suas famílias nesse fazer. Contaram
que depois de um dia cansativo era muito bom sentar e fazer os
bichinhos, e que seus filhos se encantavam em vê-las envolvidas
nessa produção. Mesmo com dificuldade para encontrar um tem-
po em que pudessem parar todas as outras tarefas do dia e apesar
de dificuldades também com a técnica proposta, elas narraram
como valeu a pena permitir essa construção.
Em cada técnica adotada, existe um longo processo de per-
cepção, revalorização, descoberta, superação. Desde olhar para o
material que será utilizado e experimentar como a matéria pode
ser transformada. Depois perceber como acontece a relação com
esses objetos, com essa matéria (agulhas, tecidos, fios...). É um
desafio inserir na matéria um gesto próprio e particular. Cada
pessoa encontra sua maneira de manusear a agulha, de segurar
o tecido, de fazer o movimento e assim, vencendo as dificuldades,
fazer surgir algo nesse processo.
Nas oficinas, percebo que o estímulo mais forte que impul-
siona a participação dos pais é o amor pelos filhos. Saber que será
construído algo que as crianças vivem tanto durante o processo de
criação como depois no brincar. Esse motivo gera forças, encontra
tempo, forma espaço e acontece.
É tamanha a riqueza de gesto interno que não é possível
olhar para a matéria pronta e não ver nela afeto e dedicação.

48
A relação que acontece entre as mães
Todas essas
e os pais gera uma intimidade na qual se
emoções que
revelam, de forma transparente, as fragili-
vivemos a criança
dades e dificuldades, as frustrações, a an-
percebe. Ela ainda
siedade e a impaciência, porém com uma
não compreende
grande vontade de superação.
conceitos e a
São muitos afetos que surgem nessas complexidade
oficinas com os pais: de cada um consigo de sentimentos
mesmo, de cada um com o outro no grupo dos adultos, mas
e principalmente de cada um com seus fi- percebe os gestos
lhos – que, de certa forma, são os respon- verdadeiros e os
sáveis por esses adultos vivenciarem tais movimentos que
fazeres. constroem tanto
O fazer da arte-manual está totalmen- algo material
te abraçado por afetos. E são essas memó- como algo interno.
rias de afetos, tanto para os pais como para
os filhos, o melhor resultado da produção.
São as memórias desses afetos que ficam na alma de cada criança.
Elas levarão para a vida um tesouro que poderá ser herdado tam-
bém pelos seus futuros filhos.

Arte de nos fazermos


Agora volto à pergunta: o que aproxima a criança de algo
feito com as mãos?
Pensando nas artes-manuais, lembro dos gestos observados
ao admirar um fazer. O trabalho com fios é muito mais intenso
do que simplesmente um trabalho manual. O fio nos une ao que
somos, nos torna transparentes, pois o fio que conduzimos cons-
truindo algo está também construindo um caminho interno. Ele
nos mostra nossas fragilidades, nos mostra onde somos mais pre-
sos e rígidos conosco e onde conseguimos respirar, como resolve-
mos os problemas que surgem, se abandonamos o trabalho por
impaciência de não saber lidar com as dificuldades ou se insisti-
mos e vencemos os obstáculos – ora pedindo humildemente ajuda,
ora aprendendo com o outro, ora vibrando de alegria ao conseguir
e nos entusiasmando ao concluir.

49
O fio é um caminho que nos une às nossas próprias emo-
ções. A arte-manual é arte não somente do fazer, mas a arte de
nos fazermos.
Todas essas emoções que vivemos a criança percebe. Ela ain-
da não compreende conceitos e a complexidade de sentimentos dos
adultos, mas percebe os gestos verdadeiros e os movimentos que
constroem tanto algo material como algo interno. A criança perce-
be o gesto da vontade e os sentimentos que permeiam o fazer. Ela
percebe, no brinquedo construído, o valor além da matéria.
A vida evolui, ganha novas formas, transforma hábitos e mui-
tas coisas boas acontecem no caminho, mas nessa evolução não
podemos deixar que se percam gestos que constroem afetos. A ar-
te-manual, sem dúvida, é insubstituível no trabalho e no convívio
com a criança.
Assim, é importante reconstruir esse caminho – resgatando
e revalorizando as artes-manuais no ambiente familiar e abrindo
novamente os olhares para esses gestos.

50
Há na narrativa de Elaine Russo um sentido espacial e tem-
Trama de afetos poral que, a partir de uma linha única, de um traço preciso, de
um fio condutor, elabora um texto de iminentes texturas. O texto
e a textura se imbricam nele para formar a trama de uma vida
dedicada à educação.
A memória própria, a memória familiar e a memória social
estabelecem um percurso que vai do particular ao geral, isto é, da
infância da autora e sua experiência pessoal ao trabalho como
educadora Waldorf.
O texto traz nas primeiras partes a intercalação de duas
formas (quero fazer especial ênfase nessa palavra “forma”) de
expressão: a prosa e a poesia. Enquanto a prosa narra os suces-
sos da memória e os liga à experiência material, num movimento
que podemos imaginar descendente, a poesia cristaliza tal expe-
riência na eternidade, num movimento ascendente. Como o mo-
vimento das agulhas numa mão ou numa máquina de costura,
ambas as formas juntam, unem e costuram materiais diversos. A
prosa é o lugar da experiência do passado, a poesia, o reservató-
rio intemporal da sabedoria.
Ao longo do texto, lemos inúmeras maneiras de referir, con-
ceituar e intuir a memória, por meio de sensações, cheiros, sons,
vozes, movimentos e, principalmente, por meio do afeto. Vou re-
servar essa apreciação para o fim de minha apresentação, para
tratar agora da eficácia do sentido que estabelece o artigo da alu-
na. A palavra “sentido”, para quem como eu visita assiduamente
a etimologia, isto é, a origem e os rastros que um vocábulo tem
ao longo de sua vida, é central no artigo. O sentido, que provém
do latim sensu, aglutina em si três campos diferentes do conhe-
cimento e da ação humana que, aliás, são os que o texto traz à
tona:
• O sentido como direção, como o rumo que tomamos, tanto
no espaço como no tempo, isto é, o destino que damos às coisas e
a nossa própria vida.
• O sentido como semântica, isto é, aquilo que constrói sig-
nificado.
• O sentido como o passado do verbo sentir, isto é, as marcas
que nossos sentimentos deixaram na nossa experiência.
Ao ler o trabalho de Elaine, percebi como esses três sentidos
estavam latentes e imbricados no texto. A primeira infância da
autora, na casa da avó, a aquisição por meio da imitação das

51
práticas familiares em torno das artes-manuais, o ingresso na edu-
cação Waldorf e, por último, a incorporação dos pais na escola por
meio das práticas aprendidas na infância, integrando o espaço casa-
-escola como se fosse uma continuidade.
Ou seja, o percurso da autora entrelaça o sentido como destino
pessoal dedicado ao ensino, o sentido na construção de significado
para a prática das artes-manuais e o sentido do sentimento colocado
tanto nas bonecas Waldorf, como no próprio texto, que certamente
despertará no leitor a própria memória do afeto.
Eis a maior virtude do texto: trazer ou evocar o afeto na própria
trama discursiva. Sem dúvida, há uma sabedoria nessa escolha argu-
mentativa.
Gostaria agora de acentuar dois acertos poéticos de Elaine. O
primeiro é o uso das mãos como depositárias simbólicas de toda a
aprendizagem. As mãos, “esses seres da mesa”, como as chamava
liricamente o escritor uruguaio Felisberto Hernández, aglutinam to-
das as práticas humanas: são o símbolo da construção e da saudação,
são fazedoras de histórias e de objetos, são mediadoras do afeto, do
abraço, do carinho e são condensadoras da luta, da busca e da reza.
O segundo, ao usar o fio como objeto e metáfora que conduz a leitura
e costura os capítulos: “Os fios costuravam os tecidos e os momentos
da vida”, “O fio nos une ao que somos, nos torna transparentes, pois
o fio que conduzimos construindo algo está também construindo um
caminho interno”.
A autora nunca perde esse fio, nem o fio da meada. Ela forma
linhas, coloca pontos, tece tramas e fundamentalmente nos ensina o
caminho do aprendizado a partir da memória, fazendo do próprio fio
um caminho para o leitor.
Para terminar, queria destacar qual é esse caminho proposto
por Elaine. Vejamos: existe uma sabedoria inata no fazer manual,
que é necessário despertar no indivíduo, tanto na criança como no
adulto. As artes-manuais servem, nesse sentido, como prática inte-
gradora, pois ao realizar algo com nossas próprias mãos transferi-
mos ao resultado nosso sentimento, e é esse carinho que gera a me-
mória afetiva do objeto (e do momento). Dessa forma, ao fazermos,
por exemplo, uma boneca de nós ou uma boneca Waldorf do nada,
apenas com panos e fios, repassamos uma infinidade de possibilida-
des ao material, além de fazer com que aflore um sentimento de co-
operação com o outro, de integração e, portanto, de consciência das
nossas fraquezas e nossas habilidades; assim como, principalmente,

52
a conscientização de um processo criativo que o objeto industrial, já
pronto, esconde. Tudo isso é possível fazer com as mãos!
Nesse sentido, podemos afirmar que a boneca Waldorf, potência
infinita de sentimento lúdico, se opõe à boneca industrial, de rosto
inautêntico e sempre idêntico, da mesma forma que, para usar a pró-
pria experiência da autora, uma história contada no teatro por meio
de bonecos feitos à mão se opõe a um desenho animado em que tudo
já foi pensado, interpretado e digerido antes de ser exposto aos olhos
de uma criança. Não quero com isso entrar num território de dicoto-
mias, apenas remarcar que a aura única e irrepetível daquela boneca
feita à mão tem como característica, justamente, a impossibilidade
de reprodução.
As mãos costuram, tecem, tricotam e constroem um objeto ao
qual transmitem a experiência de uma sabedoria adormecida, ou
seja, fazem um objeto único e irreproduzível. A indústria, por sua vez,
multiplica um objeto inúmeras vezes, repete uma fórmula, inocula
gostos, automatiza e distancia a experiência e o processo de elabora-
ção das crianças. Não é pouca coisa que as mãos podem fazer, não
há limites…
Concluo citando belos versos da autora, que, creio, devem ecoar
sempre (e em todo lugar) como uma verdade diáfana:

“As mãos ensinam…


ensinam que podem criar.
As mãos amam…
Amam o ato de ensinar.”

Meus parabéns, Elaine.

Diego Alejandro Molina


Doutor em Literatura Latino-americana (USP)
e pós-doutor em Literatura Brasileira (USP)

53
Laura

LAURA
ERIG
SALIMEN
54
Palavra, lã e nuvens.
Quem tem olhos para ver?
Olhos de sentir em harmonia constante e espiritualizada?
Nuvens... Chuva é extensão da nuvem?
Ovelhas são nuvens
É preciso estar com os sentidos atentos para apreciar sua
beleza
Crianças são nuvens
É preciso manter os olhos abertos para contemplá-las além
da matéria.
Eu sou nuvem passageira
É preciso manter o meu eu criança vivo e nutrido
Nuvem tem alma

O caos do meu silêncio


Exercício do silêncio. Que silêncio? Onde? Não na minha
cabeça... as provocações sobre desejo e possibilidades
diversas a partir de um material despertaram uma angústia
que havia adormecida dentro de mim. Saí da Roda dO Canto
das Mãos me sentido apertada, pequena, miúda! Por que
me aprisiono? Por que não me permito
experimentar? Sinto que a vida vem me
empurrando para uma direção e não
sei mais se sigo meu desejo ou minha
possibilidade ou se essa limitação é
imposta por mim mesma quase como
um boicote. Queria chegar logo nA Casa
Tombada. Pus-me numa reta focando
num cantinho dA Casa onde há uma
rede para me esconder e chorar. Só que
não deu tempo de chegar, me lavei no
caminho em “silêncio”. Silêncio.
Chegando lá escrevi com a mão trêmula.

55
Vivências com a lã
A criança, a fibra
e as artes-manuais
dentro e fora da escola

“Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma


aventura, mas experiência, a que me induziram,
alternadamente, séries de raciocínios e
intuições. […] Quando nada acontece, há um
milagre que não estamos vendo."
João Guimarães Rosa

Entender a antropologia da criança de 7 e 9 anos de idade


tendo como base teórica a visão ampliada da antroposofia da
imanência1. A fim de desvendar o potencial da criança dessa
faixa etária, esta investigação indaga como melhor contribuir
e possibilitar o desenvolvimento saudável de seus sentidos
(LIEVEGOED, 2017).
Através de cartografias2 de experiências dentro e fora da esco-
la, a pesquisa apresenta a voz dos afetos3 que surgem no sentir da lã
como matéria-prima viva que estimula o desenvolvimento infantil
relacionando a riqueza das vivências táteis do material e as ações
desse brincar: lavar, esguedelhar, feltrar, fiar e tecer.
Uma reflexão sobre a importância pedagógica de conhecer
o caminho da lã: da ovelha ao fio do trabalho manual. Esta in-
vestigação deseja estimular o uso da lã como matéria-prima para
vivências com as crianças.

1. Uma antroposofia que se ocupa com aquilo que se dá no próprio viver.


2.Método de investigação que mantém o observador próximo à experiência, sendo afetado e afetando o
campo. “Cartografar é dar língua aos afetos que pedem passagem.” (ROLNIK, 2007, p. 27 apud BARROS;
KASTRUP, 2009, p. 57)
3. Aquilo que nos afeta, o que move a alma humana. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pe-
las quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo,
as idéias dessas afecçães.” (ESPINOSA, Ética III, Def 3)

56
Se o pensamento e o sentimento estão contidos no
processo do fazer (SENNETT, 2009), o que esse processo
revela a nosso respeito?
Como o trabalho manual com a lã natural pode
atuar como dispositivo para um desenvolvimento
saudável na infância?
O que vaza para além das experiências com os
fazeres manuais dentro e fora de sala de aula?
Como a arte-manual fora da casa pode atuar como
potência contaminante capaz de resgatar o fazer manual
doméstico?

pensar a criança
sentir a lã
querer as artes-manuais

Cardar a lã... cardo meus pensamentos! Materiali-


zo o meu pensar na escrita. Cardo vozes que reverberam
dentro de mim. Esta nuvem é de desejos... Desejo escre-
ver, mas escrever é tarefa difícil. No pensar, as palavras
fazem sentido, no entanto, quando as tento colocar no
papel, não sei, parece que não saem bem como o que eu
sentia ecoar. Cardar a lã é organizar os pensamentos,
sentir o pensar. Lá fora o céu está cheio de nuvens escu-
ras. Parece que vai chover. Desejo!

eu-criança
Quando busco na memória as lembranças das artes-manuais
na infância, lembro imediatamente das casas das minhas avós,
ambas muito habilidosas. A vó paterna era tricoteira de mão cheia!
Pelotense, dona de casa, sabia fazer diversos doces, bastante açuca-
rados, e um pão de ló di-vi-no. Diversas vezes ela tentou me ensinar
tanto os doces quanto o tricô. E lembro da insatisfação dela comigo,

57
pois não conseguia aprender nem uma coisa, nem outra. Faltava
paciência e sobrava ansiedade no encontro. Eu gostava mesmo era
de estar ali, naquela “bagunça” entre agulhas, novelos e doces mui-
to doces. No verão, passávamos na casa dos meus avós maternos
na praia de Nova Tramandaí. Uma casinha de pinus bem simples,
mas muito aconchegante. Lembro da vó trabalhando em tapeçaria
e foi quando eu descobri a paixão pelos fios. Muito mais fácil que
manusear duas agulhas compridas de tricô era bordar os pontos
na tela de tapeçaria! A partir desse despertar para o fazer manual,
minha mãe começou a me presentear com “brinquedos-acessórios”
em artes-manuais: maquininha de bordado, tearzinho, macramê,
todos em plástico rosa-chiclete, claro. A vó materna morava em Ca-
noas, na grande Porto Alegre. A casa era nosso refúgio de finais de
semanas e férias de inverno. Na época, minha tia e madrinha ainda
morava com meus avós. Pedagoga, sempre inventava atividades ar-
tesanais para passar o tempo, geralmente envolvendo papel e cola
branca: cestaria em jornal, papéis artesanais, cartões para mamãe
e papai. Lembro da farinha voando na cozinha onde fazíamos
muita cueca virada e bolos diversos enquanto meu avô passava
no pátio cuidando das plantas. Até hoje é para esta casa que me
desloco nos sonhos, mesmo meus avós tendo se mudado de lá
há anos. É a minha casa de Bachelard4, meus devaneios me levam
até ela: o meu canto no mundo, meu abrigo. Cozinha e sala se mis-
turam nas lembranças de artes-manuais na minha infância.
Desanuviar. De onde vem este meu encanto pela lã de car-
neiro? Por que será que essa fibra capturou o meu pensar, sentir,
querer? É um reencontro com a lã... de outras vidas talvez. Recone-
xão do meu Eu com o carneiro. Será que já vivi carneiro? Se não,
com certeza vivi pastora! Ou decerto uma vida de fiandeira...
só pode ser isso. A lã me acalma, independentemente da raça do
animal. Gosto do cheiro, do toque... até mesmo das mais crioulas5.

4. “Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos
dias antigos. Quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país
da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade.“ (BACHELARD,
2003, p. 201)
5. Raça local do Rio Grande do Sul de toque que varia de áspero a modernamente suave e cor que pode
variar do branco ao preto incluindo diversos tons intermediários, como, por exemplo, amarelo, cinza,
marrom, ocre e grisalho, e todas as combinações possíveis. A ovelha crioula representa uma enorme
importância social nas comunidades em que outros animais da espécie não sobrevivem e contribui
para a manutenção da vida humana no campo.

58
Preciso de dias de sol para produzir. Dias nublados me trazem me-
lancolia e vontade de “fazer nada”. Então, sento na poltrona da sala
e faço um tricô despretensioso. Não há como cardar em dias nu-
blados, não consigo... a umidade tampouco ajuda. A lã fica com as-
pecto pegajoso, não se deixa pentear. É preciso sol para cardar. Há
nuvens suficientes no céu, quem sou eu para “nuvelar” na terra?

Presente para as crianças


“A brincadeira é a prova evidente e constante da
capacidade criadora, que quer dizer vivência.”
D. W. Winnicott

Primeira vez como "oficineira" de crianças. Digo oficineira en-


tre aspas, porque nunca tive intenção de produzir nada com elas,
mas é como se costuma chamar. Trouxe a proposta de roda rítmica6
do pastorzinho e oferecer a lã suja para lavagem. Chamei de “Vi-
vência terapêutica com a lã de ovelha para crianças”. Tapete na laje
do pátio interno, com bandejas, garrafas térmicas com água morna
e bem ao centro coloquei a lã bruta. A pelagem marrom já anuncia-
va minhas segundas intenções. Queria provocar as crianças com
aquela lã bruta e marrom. Uma roda logo se formou, com crianças
de todas as idades, de 3 até 12 anos. Alguns adultos acompanhavam
os pequenos. Começamos a roda do pastorzinho, como numa roda
de jardim de infância Waldorf, com fala tranquila, cantar doce e
gestos das imagens da história:

“De manhã, o pastor se levantou, pegou o seu cajado e o


rebanho juntou. Vejo o pastorzinho na colina além
Levando sozinho seu rebanho vem
Desde a madrugada até o pôr do sol
Vai o pastorzinho, sempre bem feliz
Guiando as ovelhas pelos alcantis.

6. A roda rítmica é um recurso utilizado nas escolas Waldorf para harmonização do grupo. Em círculo,
formato que promove integração e onde cada um vê o todo, as crianças exercitam o corpo, espaciali-
dade, dicção, atenção, integração social e muitos outros aspectos através das imagens narradas pelos
cantos, histórias e gestos do educador.

59
Bem alegres pelos campos, vão saltando os carneirinhos do
mais forte ao miudinho, sempre, sempre, bem juntinhos.
Quanta lã e que calor!
Corta nosso pelo, ó bom pastor.
O pastor logo lhes atende e começa a tosquiar.
Roc, roc, roc, roc, bem fresquinhas vão ficar!
Que lã fofinha, disse o pastor, vou tecer dela um belo
cobertor!
Tirou então, picão por picão, lavou-a no Ribeirão e
pendurou-a no mourão.
A lã está seca, podemos cardá-la.
Carda, carda, carda, carda, bem macia vai ficar!
Agora vamos fiá-la?
Fia, fia, com a roca, gira, gira sem parar!
Que fio comprido!
Vamos enrolá-lo?
Enrola, enrola, puxa, puxa, um, dois, três.
O novelo está pronto, podemos tecer!
Navete pra cá, navete pra lá, tece, tece, no tear!
O cobertor está pronto e que quentinho!
Obrigada, queridos carneirinhos!
Carneirinho, carneirão.
Olhai pro céu, olhai pro chão
Manda o rei, nosso senhor, todos darem um abraço!”7

Ali está um pouquinho da lã que o pastorzinho enviou de pre-


sente para as crianças. Rapidamente as crianças se aproximam do
velo. E várias questões surgem. As crianças perguntam se pode to-
car na lã, outras se a ovelha está dormindo, comentam sobre cheiro
forte. Cada uma ao seu tempo, foi pegando um punhadinho de lã
para lavar. E novas inquietações se apresentavam. Algumas crian-
ças não tiveram pudor algum e logo se espalharam pelo chão, se
entregando para a proposta. Uma criança pergunta se era para
esfregar até ficar branca. Digo que não, que existem carneiros de

7. MANZANO, E; MOURÃO, P. CantarOmundo. São Paulo, 2005. Disponível em: <https://soundcloud.


com/isabelanmfc/sets/cantar-o-mundo>. Acesso em: 16 fev. 2020.

60
muitas cores, mas esse carneirinho tinha o pelo marrom mesmo.
Outras muito preocupadas em sujar ou molhar a roupa, afinal, era
um dia de “festa”, estavam arrumadas… Alguns adultos não resisti-
ram e pediram para participar da brincadeira. Ao final, me pergun-
tavam se poderiam levar a lã, alguns pais não gostaram da ideia e
se indagavam: Mas o que é que vamos fazer com isso em casa? Ora,
brincar8! Foi difícil dar fim à lavação. Mas como final de outubro
faz frio, aos poucos foi se diluindo. Saí de lá realizada. Alma lavada.

A lã chegou em minhas mãos ainda bruta, suja, com


cheiro e sebo de ovelha. É tão linda! Tosquia do sítio do
Seu Claudio. Sinto que tenho duas ovelhas dentro do apar-
tamento... A vontade é deixá-la assim, em seu estado na-
tural, nem lavar quero. Hoje faz sol e cardo a lã bruta na
varanda. A sujeira vai se soltando no fluir do encontro
das cardas. Estou falando dos pequenos pedaços de gra-
ma, gravetinhos e aqueles pega-pegas do pasto... É vida
do campo! Afinal de contas, o que é sujeira? A produção
de hoje é de nuvens brutas. Nuvens com cheiro. Se preciso
for, lavarei outro dia. Hoje faz sol e não vai chover.

Colônia de férias
“O brincar é determinado pelo interior,
pelo ser da criança que quer desabrochar.”
Rudolf Steiner

Em dezembro de 2017, criei uma colônia de férias de verão


diferente. A proposta era oferecer um ambiente acolhedor às crian-
ças, que lembrasse a casa, com amplo espaço para o livre brincar,
pães e lanches preparados no dia, permeado por artes-manuais e
música. Uma composição entre as lembranças de férias escolares
na casa da minha avó e as vivências em casa como mãe de alu-
no de jardim de infância Waldorf. O lugar não poderia ser outro:

8. O brincar como uma experiência criativa, conforme Winnicott (1975).

61
a novelaria da cidade e suas lãs, fios e linhas. Esvaziamos a peça
dos fundos da loja, levei os brinquedos do filho e montei minha
casinha com cozinha, cantinhos de brincar e de descanso e um
pequeno ateliê especial onde ficavam as lãs e a roca. A rotina
era simples e contemplava momentos de contração e expansão.
Aguardávamos todos chegarem para iniciarmos o preparo do
pão, um dos momentos mais especiais do dia e bastante reve-
lador. As crianças gostavam de ficar na cozinha da casa, prepa-
rando doces, pães, bolos, cafés e sucos. Também fazíamos a roda
dos carneiros e era contada a história do pastor que cuidava de suas
ovelhas e tecia um belo cobertor com sua lã. Ao longo da semana, a
história avançava e, aos poucos, dia após dia, o pastor seguia o seu
belo trabalho desde a tosquia gentil na época de calor, limpeza do
velo, cardação, fiação e tecelagem até chegar no cobertor. Após a
roda, era o momento de vivenciar a lã e, assim como parte da histó-
ria contada naquele dia, lavamos, carda-
mos, fiamos, tecemos e ainda feltramos
vivenciando as cores! Os dias de lavar,
cardar e feltrar foram mais aprovei-
tados pelos menores, enquanto o fiar
e tecer despertou mais interesse dos
maiores. Para os pequenos, a fiação
na roca era quase um teatro. Assistiam
atentamente aos movimentos e logo que-
riam brincar com a roda e o pedal. Al-
guns se interessavam em auxiliar a fia-
ção, abrindo a lã penteada enquanto eu
fiava. Tecemos um tapete colaborativo
em um tear de prego, bem grande, im-
provisado em um antigo cavalete da no-
velaria. Algumas crianças ficavam dentro do cavalete e ajudavam o
vai e vem das tecelãs. Passavam o fio de um lado para o outro com
alegria. Tecemos com o nosso fio e um pouco de lã penteada tam-
bém. E ainda feltramos tapetinhos e sabonetes. Após o trabalho ma-
nual, fazíamos nosso lanche. Para relaxar, finalizávamos o dia com
uma história-presente ao som do sitar indiano e seu tapete mágico.

62
Cardar pensamentos, sentir o material.
Produzir nuvens.
O que carregam? Para onde vão?
Será que resistirão ao vento, ao tempo?
Nas nuvens, a memória do carneiro permanece
viva.
Nuvens escuras carregam o devir-chuva.
Caderno é terra semeada.
Escrita é chuva.
Alimento para o devir-composição.
Escrita de nuvem é tormenta no céu:
escrita caótica, escrita potente.
Cardação é liberar o fluxo.
Ventilar, inspirar, expirar.
Deixar-se tornar-se o que se é.
Aceitar o destino.
Devir-fio.
Palavra, lã e nuvens.
Quem tem olhos para ver?
Olhos de sentir em harmonia constante e
espiritualizado?
Nuvens... Chuva é extensão da nuvem?
Ovelhas são nuvens.
É preciso estar com os sentidos atentos para
apreciar sua beleza.
Crianças são nuvens.
É preciso manter os olhos abertos para contemplá-
las além da matéria.
Eu sou nuvem passageira.
É preciso manter o meu eu criança vivo e nutrido.
Nuvem tem alma.

63
Esquilar
É preciso ser capaz de observar a vida
em todas as suas manifestações.
Rudolf Steiner

Primavera é época de tosquia no Sul do país. Aproveitamos as


férias de primavera da escola e fomos até Caçapava conhecer as ove-
lhas da fazenda Pitangá. Chegamos na fazenda e fomos recepciona-
dos pelo pequeno gaúcho de quatro anos e seu cachorros. O gauchi-
nho estava numa alegria imensa em conhecer o primo da cidade.
Nos levou para o galpão onde o pai estava trabalhando. Lá, o homem
estava agachado sobre a ovelha, esquilando. Com o joelho, segurava
o corpo do animal, que parecia tranquilo, mesmo com as patas amar-
radas. Parecia não haver esforço algum no corpo do homem, que,
com a mão esquerda, abria o caminho no pelo para a grande tesoura
de tosquia da mão direita passar. Trabalhava com rapidez e agilida-
de. A tesoura parecia a extensão de seu braço. A cena impressionou
a família urbana que acabara de chegar. Logo, o pequeno menino
quis também apresentar suas habilidades. Foi até o guachinho9 e o
tombou no chão. Agachou-se em cima do animal e, com o joelho, o
manteve no chão. Pegou uma tesourinha pequena e começou a brin-
car imitando perfeitamente os gestos do pai. Lembrou-me de Rudolf
Steiner (1923, apud HAUCK, 2008): o desejo mais ardente de uma
criança é imitar o trabalho dos adultos, quer esse trabalho seja feito
com uma pá ou com uma agulha. Começou uma chuva e a tosquia
teve de ser interrompida. Era preciso levar as ovelhas para o abrigo
ou poderiam ficar doentes. O
homem contou que a tosquia
é um feito necessário para ga-
rantir o bem-estar do animal.
Como raça domesticada, ao
contrário do que acontece com
as raras ovelhas selvagens em
que o pelo cai naturalmen-
te no tempo quente e cresce
9. Guacho diz-se do animal que é criado por outro que não a própria mãe.

64
muito menos, a lã não para de crescer. A ovelha sem tosquia ficaria
com sobrepeso e também sofreria um sobreaquecimento no verão,
causando desconforto e prejudicando sua mobilidade. Sem falar na
questão higiênica! O excesso de pelo poderia provocar doenças e
atrair insetos e vermes a se alojarem no seu corpo. A tosquia é um ato
de amor do ser humano ao animal. Mas não necessariamente toda
ovelha esquilada segue com vida. Nova saca de lã chega nas minhas
mãos! A ovelha foi para o céu, virou churrasco. Agora só restou sua
lã. Honrarei sua vida na terra cardando nuvens brancas e macias.

A fibra ecológica e a criança


vegana
“Podemos alcançar uma vida material mais humana, se
pelo menos entendermos como são feitas as coisas.”
Richard Sennett, O artífice

Após passar as férias planejando e desejando as aulas de tra-


balhos manuais com a nova turma de 1º ano da escola, eis que se
matricula um aluno vegano. Paraliso por um momento, mas logo me
ponho a pensar. Não quero abrir mão de proporcionar à turma as
vivências com a lã de carneiro, porém respeito e acolho o olhar da fa-
mília. Como compor uma aula inclusiva? Para a mãe, usar a lã de car-
neiro é uma violência, a lã não nos pertence. A lã pertence à ovelha e
com ela deveria permanecer! Como acolher esse olhar? Como fazer
com que essa criança não se sinta violentada em aula? O colegiado
sugere separar o menino da turma para ter a vivência do algodão
com o segundo ano. Insisto na inclusão, menino de 1º ano participa
da aula do 1º ano! A mãe se propõe, então, a pesquisar fornecedores
de lã. Disse que, se encontrasse um produtor ético, seu filho poderia
manipular a fibra. Mas retorna indignada, pois não vê ética no tra-
balho dos produtores do Rio Grande do Sul. A mãe não deseja que o
filho manipule a lã e pergunta se podemos trabalhar com fio acrílico.
Não quero entrar em conflito com a família, mas discordo que o acrí-
lico seja mais ecológico que a lã. Antes algodão que acrílico, penso. E
ajuda chega a quem sabe pedir. Uma amiga querida me envia botões
de algodão do pé da sua casa. Outra tinha muitas nuvens de algodão

65
MATERIAL
Pelo de carneiro Algodão Fibra siliconada

REINO
Animal Vegetal Mineral

IMPRESSÕES
Aconchego, toque suave, cheiro Toque macio, cheiro suave de al- Nem quente, nem fria, asco, rini-
agradável, calor, vontade de es- godão, frio, vontade de fazer um te, aflição da fibra que se espa-
fregar no corpo, comer… Esfrego travesseiro e deitar sobre ele.  lha no ar, não quero manipulá-la,
mas não a como.  aversão.

ORIGEM
produtor rural, tosquia gentil, flor, arbusto, plantação orgânica, indústria, refinaria, petróleo, ex-
ovelha, rebanho em pasto aber- biodinâmica ou agroflorestal, tração agressiva, perfuração do
to, bezerro livre, útero, embrião, colheita de semente; arbusto solo
sexo consensual; tosquia agres- de plantação de monocultura
siva, ovelha, confinamento, be- com uso de agrotóxico, semente
zerro desmamado precocemen- transgênica,compradesemente
te, útero, embrião, inseminação produzida em laboratório
artificial (estupro)

DEVIR
limpar, lavar, extração da lanoli- limpar, cardar, pentear, tingir na- microfibra, poluição, espalha-
na,produtosdehigiene,produtos turalmente ou quimicamente ou -se pelo ar, contaminação das
de beleza, cardar, pentear, tingir clarear ou não tingir, fiar, enredar, águas, contaminação dos ani-
naturalmente ou quimicamente, tecer, tricotar, crochetar, bordar, mais aquáticos, contaminação
clarear ou não tingir, feltrar, fiar, vestir, resfriar, enfeitar, absorver dos humanos que se alimentam
enredar, tecer, tricotar, crochetar, sangue, saliva, suor ou sujeira, dos peixes e outros animais; tin-
bordar, vestir, aquecer, enfeitar, remover esmalte, maquiar, higie- gir quimicamente, fiar, enredar,
isolar o calor, abafar chamas, en- nizar, polir, encher, enterrar e em tecer, tricotar, crochetar, bordar,
terrar e em 6 meses tornar-se pó alguns meses tornar-se pó vestir, aquecer, pinicar, enfeitar,
encher, preencher, tornar-se
resíduo, reutilizar, voltar a ser
resíduo, enterrar e contaminar o
solo e em mais de 100 anos se
decompor

66
prontas para fiar. A mãe parece estar com o coração tranquilo com
a notícia do uso do algodão para a sua criança. Deixo a lã suspensa
por um tempo e me delicio nas artes-manuais com essa fibra. Ainda
é verão, faz calor na cidade e a experiência de aproximação com essa
fibra vegetal me traz leveza no pensar. Dedico-me a crochetar qua-
dradinhos em fio de algodão na Quaresma. Crocheto e penso no me-
nino fiando o algodão, brincando com suas nuvens... Aprendi que, ao
lado da casa do pastor, tem um pé de algodão branquinho. A cama do
pastor tem colchão de algodão fofinho. Após a Páscoa, entro em sala
e ponho em prática o meu planejamento! Mas abril chegou com uma
notícia triste, a família saiu da escola.

Esse quadro traz as impressões a partir da experi-


ência de manipulação de fibras. Ao longo de dois meses,
carreguei uma trouxa com um punhado de fibra de lã de
ovelha, algodão e siliconada. O exercício era o pensar,
sentir e querer das fibras empiricamente, sem buscar co-
nhecimento rigoroso. Junto à fenomenologia goetheniana,
exercitar uma outra cognição. A partir da provocação: "O
que acontece quando nada parece acontecer?", investigar
a natureza dessas matérias-primas das artes-manuais.
As qualidades das fibras diferem entre si, mas é evi-
dente o contraste da fibra siliconada com relação às ou-
tras duas. Enquanto as fibras animal e vegetal apresentam
qualidades sensórias que aproximam a pesquisadora do
toque, a fibra mineral causa grande desconforto, tanto no
tato como no vital, provocando leve alergia.
Ao imaginar a origem das fibras, animal e vegetal re-
metem a devaneios românticos e realidades não tão agra-
dáveis, como a possibilidade de exploração animal e uso
excessivo de água, agrotóxicos e exploração do sol. Porém
a mineral, talvez até provocada pela antipatia, não gera
grandes pensares além do questionamento: onde há vir-
tude no caminho desta fibra sintética10? Será que precisa-
mos mesmo estimular o consumo dela?

10. A fibra siliconada também é conhecida como fibra sintética ou acrílica.

67
Beneficiamento de que(m)
Bom dia, 1º ano! No 1º ano, ainda há um clima de fantasia per-
meando o ambiente da sala. Chego na sala e sou muito bem recebida
pelas crianças, todas com brilho no olhar e atenção plena a todos os
meus gestos e movimentos dentro da sala – ainda que baste uma ara-
nha no canto da sala para que ela passe a ser o centro das atenções.
Planejei fazer uma época de beneficiamento da lã partindo da lã
bruta até a fiação artesanal manual, sem ferramentas. É uma delícia
dar aula para os pequenos. São tão fantasiosos… já na primeira aula,
trouxe a roda dos pastores e a lã bruta para esguedelhar. Esguede-
lhamos a lã que trouxe de Caçapava, ainda suja, rica em lanolina
e cheiro forte. Duas crianças se incomodaram muito com a gra-
xa que grudava em seus dedos. Pediam para lavar as mãos, mas
voltavam a trabalhar. Uma delas dizia que a lã tinha cheiro de
pomada. A vivência tátil é o resultado do encontro do nosso querer
com o mundo circundante (KÖNIG, 2000). Repetimos o ritmo e es-
guedelhamos a lã suja na aula seguinte. Nessa aula, mais relaxada,
pude observar melhor o trabalhar das pequenas mãos do 1º ano.
Todos trabalham bem, apenas uma criança com laudo que contrasta
com o grupo, e se distancia da roda, voltando somente quando lhe
convém e enchendo os bolsos com a lã. Na outra semana, lavamos a
lã apenas com água quente nas bandejas de aquarela da escola. Uma
aula de total entrega das crianças. Surpreendeu-me a entrega daque-
la criança especial na atividade. Ficou o tempo inteiro ali no lavar da
lã. Brincou de fazer formas com a lã submersa na água. Gostou da
textura. Na aula seguinte, esguedelhamos a nossa lã limpa e as crian-
ças logo perceberam a diferença de toque. Não tem mais pomada na
lã, repetia a criança. Na outra semana, fiz uma aula espetáculo: fiei
com o meu fuso artesanal feito à mão. É uma espada, professora?
Não… comecei a cantar a história da velha a fiar enquanto fiava a
nossa lã limpa. Enquanto eles brincavam de fiar à mão. Eles ado-
raram. E tivemos que repetir a música porque gostaram tanto! Não
queriam ir embora da minha sala… Na aula passada, contei a eles a
história do pastor, das ovelhas e dos javalis selvagens que gostam de
pegar as ovelhas distraídas. Uma introdução ao tricô de dedo, que
logo chegaria.

68
Tarefa de casa
Sexta-feira, fim de semana do Dia das Mães, o menino chegou
da escola com um envelope pardo todo desenhado com giz de cera
de abelha. Era um presente para a mãe. Dentro havia tufos de lã
para lavar e “cardar com as mãos”. Junto havia um bilhete: tarefa
para fazer em família. Aproveitando o calor antes do pôr do sol de
outono no terraço, esguedelharam com as mãos a lã lavada em con-
junto na casa. O menino reforçava que "a tarefa de casa era para
ser feita em família", insistindo para a avó acompanhar. É preciso
delicadeza ao manusear a lã para deixá-la fofa como uma
nuvem, dizia o menino com voz doce. Vê, vó, pergunta o
menino jogando sua nuvem fofa pro alto. Silêncio se faz.
A mãe observa avó e menino com os olhos voltados para suas mãos
a trabalhar. E o menino diz: Mãe, cardar é como afofar a terra. Está
ouvindo? Faz até o som da enxada: tcha, tcha, tcha…

A criança-satélite e o ponto
montainha
Na sala do 1º ano havia apenas quatro meninos. Um dos me-
ninos se negava a ficar na roda. Todas as aulas ele ficava no canto
da sala, próximo às janelas. O professor de classe me orientou a
deixá-lo de lado e não insistir na participação. Sentia-me frustrada,
queria que todos ficassem na roda, mas acolhi o menino do seu jei-
to. E todas as aulas contava a mesma história:

“De manhã, o pastor pega o seu cajado e leva seu re-


banho até o alto da montanha. Abre a porteira, e as
ovelhinhas passam uma por uma debaixo da ponte e
sobrem a montanha. Depois de passar suas 10 ovelhi-
nhas, o pastor fecha a porteira. É assim, todos os dias.
Passam debaixo da ponte e sobem a montanha.”

Certa manhã, um dos meninos da roda pergunta o nome do


ponto, pois sua mãe quer aprender. E a resposta vem lá do can-
to da sala. Debaixo da janela, o outro menino responde: é ponto

69
montainha! Vocês passam a aula inteira subindo e descendo mon-
tanhas… todos sorriem. Meu coração se enche de alegria! Agora
sei que, todos estes dias, ele esteve conosco na aula. Nada fazia o
menino ter vontade de participar da roda. Tentei de tudo, história,
brincadeira, ajuda do professor de classe… não tínhamos vínculo.
Eu havia entrado na escola no meio do ano, substituindo o antigo
professor de trabalhos manuais. Precisava de algo que chamasse
a sua atenção. Pensei logo em fazer uma bola! Bola é universal,
não há quem não goste de brincar de bola… fiz um quadradinho
no ponto montanha, alinhavei feito fuxico, base e topo, e coloquei
o restinho do novelo da mesma cor do tecido. Levei para a aula
seguinte com uma brincadeira na roda. O menino foi chegando,
curioso. Quis brincar. Sentou-se e participou da roda. É isso que
os meninos estão fazendo? Uma bola? Eu também quero! Pegou
os seus cajados e começou a tecer a sua bola, sem grandes dificul-
dades. Como se a imagem do pastor subindo e descendo as monta-
nhas tivesse permeado sua alma.

Só sei o que sinto


“Sinto, vejo, penso, tudo é simultâneo.
Pensar é com o corpo…”
Maria Gabriela Llansol

Esguedelhar. Palavra esquisita, né? Os adultos até questio-


naram a existência dela. Pensaram que eu tinha inventado. Adul-
tos... mania de achar que sabem tudo. O que não entende, desme-
recem, dizem ser invenção, fantasia… mas hoje as crianças e eu
esguedelhamos. Penso que nas aulas de trabalhos manuais não
se trata apenas de produzir objetos belos e úteis. É preciso criar
pequenos espaços para sentir os materiais. Pego o grande saco
de lã bruta da escola e levo à sala do 3º ano. O gesto de esguedelhar
é lindo, minucioso, delicado. Não precisa de explicação. Precisa
de calma, sentar ereto, respirar tranquilo. Esguedelhar é de-
salinhar, desordenar as fibras, produzir um pequeno
caos. Abrir as fibras sem pretensões. Fácil, não? Mas quando o ges-
to não é sentido e sobe à cabeça, o pensamento trava o movimento.

70
Não consigo! Repetia a criança insistentemente com todas as le-
tras pausadamente: e-u n-ã-o c-o-n-s-i-g-o! E eu respiro. Convido-a
a sentar-se ao meu lado e fazermos juntas. Parece funcionar por um
tempo, mas a tensão entre mãos e cabeça não deixa o ar penetrar a
lã, que se recusa a se desprender. Percebo sua respiração ficar acele-
rada. É preciso desacelerar. Diminuo o volume de material em suas
mãos, na tentativa de facilitar o fluir do gesto. Mas as mãos seguem
tensas. Ela não vai conseguir sozinha. A essa altura, já observo o
suor escorrer no canto do seu rosto. Respiro profundamente. Procu-
ro palavras que tragam leveza para aquela pequena criança-adulta
ao meu lado. Repito o movimento exageradamente lento em frente às
suas mãos: olha que linda a minha nuvem! A criança expira. Agora
está no céu. Alívio, meu e dela. Agora consegue acariciar a lã e uma
nuvem também surge nas suas mãos. Com ela, brota um sorriso nos
lábios, ainda que os olhos inseguros não acompanhem a boca e as
sobrancelhas questionem em silêncio: assim está bom, professora?
Está muito boa, gordinha e alegre. Vamos fazer outra?

Movimento e imagem
Era uma vez um pastor que morava no pampa.
Todas as manhãs, após tomar o seu café,
abria a porteira e levava o rebanho até o alto da coxilha.
Lá as ovelhinhas encontravam o pasto verdinho e gostoso.

No 3º ano das escolas Waldorf, na aula


de trabalhos manuais, as crianças tecem
peças de tricô. A aula de tricô requer alta
concentração e agilidade dos dedos e das
mãos. É através das histórias que as crian-
ças vivenciam o movimento do tecer. Parti-
mos do movimento amplo do tricô de braço
sentados em roda. Começamos o trabalho
com uma corda emprestada pelo professor
de jogos da escola, material improvisado, já
que o nosso ainda não havia chegado. Foi
ótimo, pois a matéria pesa, é preciso corpo

71
para lidar com o material (VEIGA, 2015). Foi um bom exercício de
vontade, para as crianças do 3º ano, lidar com a corda dura e pe-
sada. Na segunda aula, formamos a roda no centro da sala e juntos
tecemos uma peça em tricô de braço com o fio industrial. Na aula
seguinte, usamos a lã penteada. As crianças ficaram surpresas ao ve-
rem o novelão. Ele circulou pela roda e todos puderam sentir o peso,
o cheiro e abraçá-lo. Todos querem ser pastores, todos participam. O
tricô foi circulando na roda e, conforme crescia, também pesava. Foi
um trabalho delicioso de fazer. Um aluno novo se emocionou, havia
um brilho no seu olhar e um sorriso no rosto. Não sabia bem expli-
car, mas o movimento da aula o fez lembrar da avó costureira e suas
linhas e fios. As crianças tiveram a ideia de “vestir” o cobertor tecido.
Queriam sentir o peso nos ombros. Ficaram tão felizes que queriam
mostrá-lo ao professor de classe, então deixamos a peça exposta. Nin-
guém resiste à lã penteada!

O boneco de tricô
Existem muitas maneiras de fazer um boneco de tricô. Mas
o boneco confeccionado no 3º ano não é um boneco qualquer. Ele
simboliza a antropologia do momento evolutivo da criança dos 9
anos. Precisa ser uma representação dessa criança. Não cabem aqui
formas caricaturadas do humano. É preciso tecer um corpo propor-
cional e harmonioso, como o corpo do ser humano saudável. (Será?
Aqui resta ainda uma dúvida, mas seguimos…) Estava muito insegura
em iniciar o trabalho com a minha primeira turma de 3º ano. Como
dar uma tarefa tão complexa a uma turma que não havia sido in-
troduzida no tricô anteriormente? E ainda com três alunos novos?
A receita era cheia de aumentos e diminuições e não me agradava
estética e conceitualmente. Queria tecer um corpo, não uma roupa!
Pensava maneiras de transformar esse fazer possível para as crian-
ças do início ao fim. Será que seria capaz de fazer uma receita pró-
pria? Já estava prestes a desistir do projeto quando a professora do
1º ano da escola me mostra o seu boneco de tricô feito no curso de
Pedagogia Waldorf. Lindo! Ainda que com roupa tecida… pouca pele.
Pedi a receita e adaptei para um corpo nu.

72
Cor de pelo ou de pele
Chegamos ao fio do trabalho manual do 3º ano: o fio industrial
em pura lã. No centro da nossa roda, distribuí diversas meadas em
tons que se aproximam dos tons de pele e cabelo humanos. Enquan-
to as crianças transformavam as meadas em novelos, conversáva-
mos sobre a variedade de tons, qual se aproximava mais do nosso
e percebemos a multiplicidade de cores dos corpos e pelos da nossa
escola. Cabelo é pelo, não é professora? Então a lã é o cabelo da
ovelha! Cada criança escolheu um novelo para tecer aquele que se-
ria o seu boneco. Passamos a época anterior trabalhando a imagem
do pastor e suas ovelhas neste movimento amplo dos braços. Agora,
trouxe a imagem do cajado – nossa agulha de tricô. Impressionou-me
a facilidade da turma em geral em aprender o tricô com a agulha nº
5, pois, em sua maioria, as crianças deslancharam a trabalhar. Ale-
grou-me imensamente o dia em que o professor de classe também
quis aprender o tricô e fazer o seu boneco. Ele estranhou o clima
da conversa na sala. Parece que estão tricotando mesmo, comen-
tou na saída. Um pouco deixo conversar, muitas vezes o silêncio se
apresenta sozinho. Eles estranham o silêncio e muitas vezes cantam
para descontrair. A questão do gênero se apresentou naturalmente
na aula, o que o define? As crianças queriam saber se o boneco se-
ria menino ou menina. Uma delas disse que
poderia ser os dois, pois não há diferença.
Outra respondeu que a diferença é o corte
de cabelo. Ao lado dela, outra afirmava que
era a roupa. Todos se olham… não... não é
a roupa, a menina diz. Mas o rosto logo fica
corado e a boca cala e com ela a questão se
encerra com a mesma naturalidade que se
iniciou. No momento, tenho alunos que já
teceram 50 dias, outros estão ainda em 7
dias. Cada um ao seu tempo vai seguindo
o seu bom trabalho. Já vislumbro belos cor-
pos tecidos até o final do ano.

73
Sobre corpos e mundos
Será que é o mundo ou sou eu?
Será que sempre foi assim
e somente agora percebi?

Quero me colocar na vida,


exponho e imponho minhas vontades.
Eu grito, eu brigo! Exijo o quero.
Por outro lado, ando sensível demais,
com medo e quero me fechar.

Visto meu manto de invisibilidade,


acocoro-me num canto e choro.
Meu mundo caiu,
minha alma está nua.

Já não bastam mais as vestes


ou o cabelo tentando esconder o rosto.
É preciso tecer nova pele.

Tecer e pensar maneiras de me alinhar.


Tecer e sentir o processo.
Tecer e querer seguir em movimento.
Tecer um corpo novo para chamar de meu.

Pele tecida.
E agora?
Como habitar um corpo outro?

74
“Senti que o tempo é apenas um fio. Nesse fio vão sendo
enfiadas todas as experiências de beleza e de amor por
que passamos. Aquilo que a memória amou fica eterno.”
Rubem Alves

O gérmen desta pesquisa está na observação e na busca de


uma mulher por um brincar mais rico a seu filho recém-chegado.
O título é uma “resposta” às inúmeras provocações vindas das ofici-
nas de bonecas Waldorf e encontros de artes-manuais para educa-
ção. Nelas, a mãe-artífice é estimulada a pensar sobre a qualidade
dos materiais usados hoje em dia na confecção dos brinquedos in-
fantis. Se o brincar é urgente, precisamos rever urgentemente a
matéria-prima dos brinquedos. 

Quais materiais proporcionam vivências táteis vivas,


ricas de significados, plenas de sentido?
Como pode a criança ter vontade de brincar com a lã?
O que faz uma criança de sete anos olhar para um
punhado de lã e desejar tocá-la?
Como o movimento do tecer é capaz de resgatar uma
memória?
O que pode um boneco?
O que faz uma criança de nove anos desejar tricotar
no carro a caminho da escola ou no seu intervalo do
recreio?
O que sustenta essa necessidade de seguir trabalhando?

É preciso estar atento a duas pistas para essas perguntas: o


tempo e as relações afetivas. Nas vivências das artes-manuais,
quem rege não é o Cronos, e sim Kairós. Dar esse outro tempo às
crianças e possibilitar espaço para suas singularidades é salutar.
Como disse Rubem Alves (1999), "O tempo pode ser medido
com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas
do coração”.
É preciso proporcionar o tempo para respeitar os afetos,
para que as vivências interiores possam se mostrar: o que au-

75
menta e o que diminui a potência das crianças. Steiner (2000) diz
que o sentimento é o meio pelo qual o conceito obtém inicialmente
vida concreta.
Conhecendo o caminho da lã, da ovelha ao fio do trabalho ma-
nual, mostramos às crianças que a vida é um ciclo: com começo,
meio e fim. E cada processo precisa de determinado tempo para ser
realizado. As ações desse brincar: lavar, esguedelhar, feltrar, fiar
e tecer estimulam os sentidos e aqui abre-se uma janela para uma
investigação futura. A lã não é neutra; tem cheiro, cor, peso, textura
na sua forma bruta, o que pode gerar tanto antipatia como simpatia
nas crianças. Ao longo do beneficiamento, essas características se
alteram, abrindo espaço para novas possibilidades de interesse por
parte dos que antes resistiam à aproximação. A frustração também
se faz presente no percurso, aprender a lidar com ela é de grande
valor especialmente para os menores. Outra qualidade da lã é a sua
versatilidade.
Com essas experiências, valorizamos os processos do fazer
manual e apresentamos as múltiplas possibilidades de devires do
velo às crianças, além de propiciar uma relação afetiva com o ma-
terial. Mesmo as crianças que nunca tiveram oportunidade de
observar uma ovelha no campo, por meio desse contato com a
fibra viva, podem vislumbrar a ovelha onírica.
O trabalho apresentou três territórios de vivências nas artes-
-manuais com as crianças: a casa, a oficina e a sala de aula. O ponto
em comum das vivências dentro ou fora da escola é que as ações
deste brincar com a lã geralmente remetem a histórias afetivas. 
O que acontece nas vivências com a lã é produção de me-
mória afetiva.

76
Uma alegria imensa estar aqui fazendo parte deste

Querida Laura
e equipe do curso de pós-graduação em Artes-manuais para Educação,
diálogo com vocês! Muito obrigada pelo convite e pela pos-
sibilidade de ler um trabalho tão vigoroso e potente como
o da Laura.
No texto da Laura me deparo com duas questões muito
importantes em minhas pesquisas e trabalhos aqui em Porto
Alegre: a infância e as artes-manuais. E minha atual discus-
são: o fazer manual e o saber fazer como potências clínicas.
Minha provocação para Laura seria pensar os elemen-
tos textuais: da formatação textual que requer pequenas re-
visões aos verbos da lã como movimentos no próprio texto.
Como podemos produzir um texto em sua condição imagé-
tica, um texto em sua condição primitiva, que nos faça afir-
mar sua virtude têxtil. No teu caso aqui o fio de lã natural,
produzindo na tua escrita/experiência/vivência uma dimen-
são temporal de continuidade e de aproximação entre os
tempos vividos pela criança na Casa, na Escola e na Oficina.
O que nesses três movimentos te olharam? Provocaram tua
pesquisa? Que relações temporais e possíveis de conjugação
temos ao oferecer à infância os verbos da lã natural? Ao ler
teu texto, fiquei provocada a pensar tais conjugações e tais
ritmos, fazer durar os verbos, por exemplo, fazer durar um
ritmo para que o esguedelhar seja revelador dessas relações
com nossas crianças. Produzir ritmos outros para que a ex-
periência com esse material vivo se fortaleça primeiramente
em nós, “os adultos”, para que através do gesto chegue às
crianças. Estaríamos “nós” vivendo esses materiais vivos?
Estaríamos “nós” vivendo as artes-manuais?
A partir dessas questões, seriam possíveis diferentes
pontos de vista ou pontos de vida, pois aqui estamos pen-
sando a partir da Pedagogia Waldorf, que se ocupa desses
fazeres manuais e faz deles sua linguagem. Podemos dizer
ainda que o trabalho manual consiste em nosso contempo-
râneo num contratempo importante à industrialização exa-
cerbada, na qual o humano é invisibilizado, e a prioridade
é a repetição alienada do fazer, é pela técnica de precisão e
de replicação. O trabalho manual, com suas técnicas tradi-
cionais (como percebo o beneficiamento da lã natural, pois

77
envolve um saber fazer e uma transmissão) nos auxilia a nos perceber
como parte de um todo maior que é a cultura. Estamos sempre produ-
zindo um fazer singular com marcas das próprias mãos do artesão.
Produto, produtor e mundo são próximos, se relacionam. As mãos ao
fazer me reconectam com algo meu e com o mundo a minha volta –
vamos percebendo que se trata de uma relação íntima “eu e mundo”.
Teu gesto como educadora se produz vigoroso! Colocar as crian-
ças a observar as próprias mãos em um fazer “manual” é salvar o
mundo, é reconectar a vida com o que ela pode, é revelador da beleza e
da presença de sermos vivos.
Pensar as artes-manuais naquilo que “elas podem” é problemati-
zar o que “elas acolhem”, o que passa por elas, seja em qualquer dos
campos apresentados pela Laura: A Casa, A Escola, A Oficina. Laura
faz passar em seu gesto de educadora: a menina e a lã natural, as can-
tigas, os carneiros, as nuvens de lãs, as memórias afetivas, as avós, o
fazer, o brincar, a roda rítmica, o ritmo, o silêncio, o menino e o seu
ponto “montainha”, o seu nervoso, o tricô, o menino, a vida.
Lindas imagens vão se apresentando para nós, “seus leitores”:
ritmos e cenários diferentes. A autora nos propõe: pensar a criança,
sentir a lã natural e querer as artes-manuais. Seu texto se faz gesto:
narra seu processo de escrita, narração de si. Tensionamentos como:
“é preciso criar pequenos espaços para sentir os materiais” ou “o gesto
esguedelhar não precisa explicação” ou “tensão entre as mãos e cabe-
ça que não deixam o ar penetrar a lã”. Estaríamos aqui, Laura, depa-
rando com a dualidade querer x pensar? Nosso ritmo aqui seria caden-
ciado pelo espaço das manualidades e pelo que elas acolhem enquanto
contemplação, enquanto sentir?
Laura produziu um texto vigoroso, que nos deixa com vontade
de mais. Que seja um início de pesquisa para futuros estudos e experi-
ências. Parabéns pelo trabalho e pela coragem de fazer dentro da vida
tua, da vida do menino e de outras crianças vivências/experiências de
outros ritmos, outras sonoridades, outros fazeres.

Paula Flores
Especialista em Psicologia Social e Institucional (UFRGS),
mestre em Educação (UFRGS),
doutoranda em Psicologia Social (UFRGS)

78
Quero agradecer o convite de participar da banca

Estimada Laura,
examinadora do seu Trabalho de Conclusão do Curso. Seu
trabalho é uma cartografia muito poética. Você escreve
com delicadeza e vivacidade tamanha que consigo ver as
cenas passarem diante dos meus olhos. O fato de estar
dentro da sala de aula como jardineira, conhecer o portal
do 1º ano e toda sua magia, por misturar as idades no
jardim numa sala mista, por ter tido uma experiência com
aluna vegana, pelas tarefas de casa do filho sem sentido
ou incompleta, criança especial e suas observações, entre
tantos outros fatos que descreveu, sua escrita estava bem
perto de mim. Vi uma realidade muito próxima, o que me
facilitou muito a compreensão.
Sua escrita é leve, suas poesias são livres (alma
liberta).
Gostei muito de ouvir a palavra “esquilar”, que no
estado de São Paulo é muito pouco usada, diria que pouco
conhecida. A que usamos aqui é a tosquia, ambas tendo o
mesmo significado.
Sua dedicação como mãe e professora fica explicita
no texto, dá gosto de ver! “O menino entrega o boneco à
mãe, abraça o pai e segue...” Vejo a mãe orgulhosa vendo
o rebento crescer. “Montainha!” Quanta conquista, mesmo
distante o aluno ouvia e estava ali. Vi uma professora feliz
pela conquista do aluno.
Em sua pesquisa, você diz que o trabalho manual
com a lã natural, aplicado em diferentes territórios,
geralmente remete a memórias afetivas. Espero que tenha
muitas mémorias afetivas guardadas em você e que elas
impulsionem a cada dia mais sua vida.

Vanessa Fonseca Jakowatz


Especialista em Artes-manuais
para Educação (Facon)

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UM DIA PARA CONTAR SOBRE
CRIANÇAS E CARNEIRINHOS
ELIS STELA MELLO DE OLIVEIRA

“Todos querem ser pastores


quando encontram, de manhã,
os carneirinhos enroladinhos,
como carretéis de lã.”
(Cecília Meireles)

O dia estava muito frio e era bem


cedo ainda. As crianças alegres, algumas so-
nolentas e outas um tanto reticentes se prepara-
vam para uma grande aventura escolar.

O encontro com a professora era um misto


de encantamento e euforia. Ela sorria e os re-
cebia com um gesto amoroso, pegava-os pelas
pequeninas mãos e os encorajava a subir nos
degraus daquela grande carruagem encantada.

Ao sentarem-se, pelas janelas de vidros,


embaçadas pelo ar quentinho que saía de suas
boquinhas entreabertas, olhavam, sorriam e
acenavam para seus pais.

A euforia durante a travessia da estrada


que levava até o sítio não foi menor do que a
da partida.

Na entrada do Sítio Duas Cachoeiras, na


Serra da Mantiqueira, nossos anfitriões nos
aguardavam. Uma porteira, um belo jardim
muito bem cuidado, casas antigas, árvores fron-

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dosas, pequenos animais silvestres, muitos pássaros e galinhas de
angola faziam a festa dos pequeninos.

Um vento frio ainda soprava, mas o dia estava iluminado. E já


se podia perceber que seria mesmo um dia dourado, em especial
com o colorido dos gorros e cachecóis das crianças que caminhavam
em direção ao ovil.

Ao chegar lá, muito feno espalhado pelo chão, um cheiro forte


de ração misturado com o de xixi e de cocô. Os pequenos esfregavam
suas mãozinhas ansiosas, com olhos e ouvidos atentos ao relato de
nosso anfitrião sobre os cuidados e carinhos necessários para que
as ovelhas não se assustassem com nossa presença.

Mãos estendidas, todos receberam um punhado de ração e


encostadinhos na parede esperavam que as ovelhinhas se aproxi-
massem.

Quando a porteira do confinamento foi aberta, impossível des-


crever o encantamento e a devoção que tomaram conta de todo o
ambiente. Elas eram grandes e pequenas, brancas e marrons, e os
filhotinhos branquinhos como nuvens, alguns com manchinhas
pretas, o narizinho bem rosado, deitados sobre o feno, aproveitando
os raios dourados de sol que entravam pelas aberturas das paredes
do ovil, para se aquecer.

As crianças ficaram ali por um tempo, depois aprenderam como


as ovelhas, quando bem tratadas, são tão dóceis e se deixam mani-
pular por seus tratadores para que ele possa tosquiar a lã. E quanta
lã cada uma delas nos fornece!

Também aquele cocozinho redondinho era de serventia no


sítio. Tudo retornava como adubo para a terra, e ela, bem nutrida,
devolvia às ovelhas o capim que tanto apreciavam e aos moradores
da fazenda os alimentos plantados na horta.

Chegou então a vez de manipular a lã e sentir a lanolina, que hi-


drata as mãos e tem um cheiro forte. As pequenas mãos esfregavam
um chumaço de lã toda suja e embolada, com pequenas sementes

81
e capim que os dedinhos atentos buscavam tirar. Na ponta dos pés,
para alcançar o tanque de água bem fria (e era tanto encantamento
que nem reclamavam), eles lavaram a lã, espremeram bem entre os
dedos, depois estenderam sobre grandes pedaços de pano e levaram
ao sol.

Uma nova fila se formava, agora fora do ovil, e já não se via


mais o colorido dos gorros e cachecóis. O sol brilhava intensamente
e todos estavam bem aquecidos pela amorosa experiência.

Seguimos então para a sala de teares, onde a moça tecelã nos


mostrou lindos trabalhos feitos em lã, de cor natural e coloridos
artesanalmente. Havia muitos teares, grandes e pequenos, e ela nos
contou como se fazia o fio com o fuso. As crianças, sentadas em roda
sobre um grande tapete, pareciam beber daquela fonte inspiradora
de criatividade manual.

Hora de almoço e depois... Felizmente, criança, sendo sempre


criança... Momento de relaxar um pouco e correr barranco abaixo.

Pique-esconde, o gato mia e roda, roda, roda, pé, pé, pé...

A professora olhava de longe e se deliciava com suas crianças


se nutrindo e crescendo em experiência física e anímica.

Hora de voltar para a sala de tear e cardar a lã. Tirar o sapato,


sentar em roda, arrumar o chumaço de lã na carda, e puxar, puxar,
uma mão para a esquerda outra para a direita, na altura do coração.

E a lã foi se transformando em pequenas nuvens acolhidas em


um cesto de palha trançada. Muitas nuvens se juntaram e então
começamos o fio, primeiro torcendo com as próprias mãos e depois
com o fuso: surgiu um pequeno novelo.

Quem poderia imaginar que a “roupa” que recebemos de pre-


sente daquele bichinho poderia se transformar em fio para fazer
nossas roupas?

Seguimos então para outro salão, onde nosso anfitrião tocou


uma linda canção. No chão, todos sentados em roda tinham à sua

82
frente pequenos teares, e a moça tecelã, jun-
to com as professoras, ensinaram as crianças
a tecer um pequeno tecido. Mãos pequeninas,
passando a navete com fios coloridos por cima
e por baixo, todos juntos tecendo, tecendo, te-
cendo... e o tecido nascendo.

Sala arrumada e mãos estendidas para o


verso:

“Minhas mãos pequeninas, eu dobro assim, a ninguém


causam danos, nem mesmo a mim.”

“De manhã ou de tarde em todo lugar, com mãozinhas


ativas eu sei trabalhar.”

Hora da despedida, todos bem cansados,


felizes e plenos de vida, nossos pequenos voltam
para sua carruagem e na estrada.

No encontro com seus pais, eles já não são


mais os mesmos... Agora carregam consigo mui-
to mais do que a experiência sobre carneiri-
nhos, lãs, fios e tecidos.

Teceram na alma o sentimento de que o


mundo pode ser bom e belo e de que, por meio
de suas mãos e do amor pelo trabalho, o mundo
verdadeiro pode ser transformado.

83
Emília

EMÍLIA
MOREIRA
LIMA
ALBANO
84
Ensaio sobre a cegueira
No escuro do quarto, noite alta, o silêncio da casa, só uns ca-
chorros latindo quando em vez. Meu ninho, meu canto, mi-
nha cama, onde me refaço e me encontro. Estou sozinha....
Deito-me, enrolo-me no quentinho das cobertas e fico um
tempo ali a sentir a brisa fresca que entra pela janela. Fe-
cho os olhos num breu total. Não sinto sono. As mãos bus-
cam os materiais, reconhecem a lã macia e gordurosa.
Corpo imóvel. Só as mãos de mexem puxando, puxando... repu-
xando. A fibra resiste. Começo eu mesma a entrar nesta fibra. As
forças externas me puxam, me esgarçam, me esticam, me dividem,
como um esfolar da própria pele. Não é dor o que sinto. Nem sei o
que é. É um emaranhado de sentimentos que afloram deste movi-
mento. E esse movimento é tanto, que a matéria vai perdendo sua
própria unidade. Já não é o que era, e ainda não é o que pode ser.
As mãos então começam a fazer um outro movimento. Elas querem
reunir a matéria. Dar forma e sentido para aquilo tudo, para aquela
bagunça. Os dedos enrolam a fibra e um fio grosso vai se formando,
um fio tosco, rudimentar. Um fio de um pensamento, de uma história
que quer ser o que é. Simples.

O que pode um quadrado?


Fazer um quadrado me pareceu muito qua-
drado. Vem-me o bordado, por onde as mãos
sentem mais confiança. Linha vermelha. San-
gue. Caminho... Surgem os primeiros pontos,
e aparece um retângulo. Robusto, grosso,
mesmo assim o sentimento é de relaxamen-
to. Um silêncio... Um silêncio íntimo lá dentro
de mim que teme ser também quadrado. O fio
dos pensamentos quer me tirar desta “enqua-
dratura” desse bordado. E assim, de repente
outros pontos começam a aparecer deixando
meu enquadramento, meu quadradíssimo,
meu enquadradado cada vez mais vivo! E
surge um quadrado que foi muito além do
desafio de ser só um simples quadrado para
mim, pulsando vida em sua forma!

85
O feltrar de si através
das artes-manuais
A feltragem como ponte
entre a autogestação e a
gestação do outro

Quando falamos em trabalhos manuais na educa-


ção, pensamos de imediato na educação formal e nas escolas que
usam os trabalhos manuais em sua rotina. Entretanto, essa ativi-
dade também pode ter fins terapêuticos, quando se percebe como
os processos internos vão se estruturando de diversas formas, na
educação da vontade, na educação de si mesmo, no encontro consi-
go e com o outro.
Fiz um trabalho voluntário num abrigo de uma instituição
de Campinas que atendia mulheres gestantes em situação de
vulnerabilidade social. No encontro com essas mulheres e suas
histórias de vida absurdamente violentas, percebi que tinham a
mesma necessidade que eu, a necessidade de se reestruturar. As-
sim, intuí uma potência a partir da vivência com o carneiro, sua lã e
seus processos manuais de forma terapêutica, por traçarem parale-
los com a nossa própria vida em momentos de crise e desestrutura.
Este texto traz um pensamento do processo individual des-
sas mulheres, incluindo a mim mesma, por meio dessa vivên-
cia com a lã.

86
Onde está a força interna, quando nada mais
em volta parece bom? Quando a violência, a
desesperança, a solidão, a falta total de
perspectivas e certezas, fazem parte do dia
a dia e o mundo parece ter fechado as portas?
Quando tens que viver a crise da abstinência,
do preconceito, do abandono, da fome, das
perdas e da raiva? E, para além de tudo, quando
convives com alguém que não conheces, que
por vezes não perdoa, não ama e que te abre
as fibras, te suga por dentro, te consome,
te limita, te maltrata, te rasga o corpo e a
alma... Lá no fundo das tuas entranhas cresce
divino, o milagre, o sublime ser humano. De onde
vem essa força autopoiética em nós, mulheres,
que dão a vida, gestam, parem e nutrem?

O campo cartografado é o que vive em mim, que rasga meu


corpo e minha alma, sangra, que mostra vísceras e o avesso do meu
ser e que, ao mesmo tempo, cresce divino e maravilhoso. Minhas
paisagens internas são muito próximas às das mulheres que conhe-
ci na Casa de Gestantes, projeto da Prefeitura de Campinas em par-
ceria com o Instituto Padre Haroldo.
Lá é atendido, em regime de abrigo, um grupo de mulheres
gestantes ou lactantes, em estado de vulnerabilidade social. São ex-
-moradoras de rua, dependentes químicas, vítimas de abandono,
violência doméstica, abuso sexual e pacientes psiquiátricas. Suas
vulnerabilidades são todas expostas. Mas o que é vulnerabilidade
afinal? Segundo a pesquisadora e cientista-social norte-americana
Brené Brown (2019), “a vulnerabilidade é a nossa medida mais precisa
de coragem”. E quanta coragem é preciso ter para ser o que se é!
A ideia do trabalho nasce dentro do ateliê da casa e quer ex-
pressar-se através do autocuidado, do vínculo, do afeto. O auto-
cuidado das mulheres, o vínculo entre equipe cuidadora e elas,
mas principalmente o afeto entre essas mães e seus filhos. As
experiências sensórias propostas são como uma reconstrução de si

87
mesma através do contato com a lã de carneiro e seu ciclo. Limpar,
lavar, esguedelhar, cardar, feltrar e criar peças de cuidado e
afeto para as mães e para as crianças. Em todo o processo, desde
a lã bruta até chegar à trama feita a partir da feltragem molhada,
formam-se as novas tessituras e cores desse ser. A possibilidade de
uma outra mulher que se prepara também para nascer.
Pelos sentidos, mergulhamos nos cheiros, textura, temperatu-
ra... Sentimos simpatia ou antipatia pelo material. Segundo a Pro-
fessora Ana Lygia Vieira Schil da Veiga, Nina Veiga, durante uma de
suas aulas na pós-Graduação em Artes-manuais para a Educação,
“as Artes-manuais são o avesso do útero, pois criam um ninho aními-
co”. Para essas mulheres da Casa de Gestantes e para mim, a lã
do carneiro traz um calor, um aconchego, um afeto, uma for-
ma, um lar interno, um cuidado consigo... um cuidado comigo.

Elas e suas biografias


Convivi com essas histórias de vida quando fui voluntária na
Casa de Gestantes oferecendo um trabalho de massagem. Queria
trazer um momento de relaxamento e a possibilidade de um afeto
para peles tão castigadas.
Trago aqui suas histórias contadas em forma de pequenas
crônicas. São histórias reais, reflexo de tantas outras histórias de
vida invisíveis, mas que habitam um pouco dentro de cada uma de
nós, mulheres.

Ela tem 27 anos, nasceu em Icó, no Ceará.


ROSENIR

Uma família grande... muitos irmãos e irmãs. De


um amor, engravidou do primeiro filho, aos 15
anos. Mãe solteira. Não conseguia cuidar, não
conseguia se cuidar. De um novo amor, engra-
vidou aos 17. A criança nasceu e mais um pai
sumiu. Ela não conseguia cuidar, não conseguia
se cuidar. Viu anúncio de jornal: empresa con-
trata massagistas sem experiência prévia para
trabalhar no estado de São Paulo. Ela vê uma
possibilidade. Liga, vai... deixa família e os dois

88
filhos pequenos para trás. Ela quer ver o mundo,
aprender coisas novas, mandar dinheiro para
casa.
Quando chega em Campinas, Dona Malu – a
cafetina –, a espera. Agora Roseni não tem mais
documentos, nem dinheiro. Tem que fazer mas-
sagem e mais o que lhe mandam fazer em troca
de comida e um teto pra morar. Engravida mais
uma vez aos 19. Quem será o pai?
Desta vez, é uma menina que nasce no
prostíbulo. Maria Clara. Tão pequena, tão linda!
Roseni só quer o melhor para a filha. O resguar-
do acaba e ela volta ao trabalho.
Ah, mas é bonito aquele homem! Roseni já
nem sabia mais o que era amor... Será que algum
dia soube? Foi paixão ardente de cliente. Ele quer
morar com ela e tirá-la daquela vida, mas não
quer levar Maria Clara. Dona Malu quer cuidar
dela como se fosse filha.
Roseni vai embora com Wanderley e acha
que a menina estará bem cuidada. A casa é pe-
quena. Mas ela se sente uma rainha! Está feliz,
faz planos de voltar pra ver os filhos e a família.
Roseni passa batom. Ah, Wanderley não gosta,
não... Ele bebe, bebe muito e o “pau canta” na
casa de Roseni e Wanderley. Roseni fica roxa, ar-
rebentada, perde um dente, mas quando passa,
tudo volta ao que era... aquele amor de paixão
ardente.
Roseni está mais uma vez enjoada e já sabe
o que é. Ah, Wanderley não gosta, não.... Ele
tem outra mulher e filhos pra criar. Ele bebe,
bebe muito e o “pau canta” na casa de Roseni e
Wanderley. E é sangue pra todo lado.
Roseni consegue fugir pra casa de Dona
Malu, que a protege. Mesmo com todo o sangue,
o bebê vinga. Roseni fica por lá, na limpeza da

89
casa e no resguardo até voltar para o programa.
Está feia, desdentada, parece doente, cheia de
chagas, mas tem quem queira. Ela não quer mais
essa vida não. Tá enjoada outra vez. Já sabe que
vai apanhar. Foge da casa de Dona Malu do jeito
que dá, deixando os filhos pra trás. Só pensa em
tirar essa coisa dela. Não aguenta mais. Não tem
pra onde ir. Dorme na rua, passa fome e sede, até
ser resgatada pela Assistência Social. Mora agora
na Casa de Gestantes. Com 27 anos, sonha em vol-
tar para o Ceará para rever os filhos.


Ela tem 32 anos, nasceu no interior de
PRISCILA

Minas. Mas mudou pra Campinas ainda menina


pra morar com a avó, pois a menina não tinha
jeito. Era “da pá virada”! Só mesmo a avó muito
brava pra dar jeito. Cresceu apanhando de cinta
e vara de goiabeira. Quando ficou moça, aí pio-
rou... Queria namorar. Vó não deixava. Com 14,
engravidou. Escondeu o quanto deu. Mas quan-
do vó descobriu, hum... deu tanto nela que o bebê
morreu dentro da barriga. Priscila enlouqueceu.
Depois de muitos anos reclusa, Priscila co-
meçou a se relacionar com um primo. Foi mo-
rar com ele, pois a avó já não aguentava cuidar
dela. O Raul gostava de fumar maconha e Priscila
acompanhava. Ficava melhor dos nervos. A casa
era uma bagunça, uma sujeira. Priscila gostava
de Raul, mas brigavam muito. Priscila dava ata-
ques e quebrava coisas. Raul também se descon-
trolava e batia nela.
Priscila engravidou. Raul sem emprego, só
fazia uns bicos. Achou que poderia vender umas
pedras de craque pra levantar um dinheiro. Os
amigos de Raul apareciam por lá para fumar.

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O tempo passou assim, Raul viciado,
Priscila com dois filhos e esquizofrênica. A
casa, uma bagunça. Os filhos foram desti-
tuídos e Priscila entrou em surto. Quando
Priscila engravidou pela terceira vez, foi en-
caminhada para a Casa de Gestantes, onde
Isabela nasce. Priscila não a largou nem por
um minuto. Ouviu vozes. Não deixou que nin-
guém chegasse perto de Isabela. Não queria
nunca mais ver Raul.


Ela tem 36 anos. Veio de Londrina e pouco
se sabe sobre a sua história. Não conta. Chegou

JOSY
grávida de 4 meses, quando a barriga começou
a aparecer. Tem marido e filhas. Não fala sobre
eles. Só sente saudades.
Diz ter sido violentada e, dessa violência,
engravidou. Não podia falar nada... tinha que
fugir pois seria difamada, talvez espancada,
morta.
Disse pra família que arranjou um traba-
lho temporário em Campinas e que voltaria de-
pois de 5 ou 6 meses. Já estava decidida. Teria
a criança, mas não ficaria com ela. Não queria
nem ver...
Josy estava sempre quieta no seu canto,
nunca falava nada. Só chorava. Quando a crian-
ça nasceu, logo foi encaminhada para adoção.
Depois de 1 mês, Josy conseguiu um trabalho de
costura. Com o primeiro dinheiro que recebeu,
decidiu que buscaria suas filhas pra morar com
ela em Campinas. E se mostrou arrependida de
ter doado seu bebê. Foi buscar as filhas, mas
nunca mais voltou.

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Oficinas

Primeiro dia
Hoje. Sábado de manhã. Estive muito gripada essa se-
mana. O catarro escorrendo... e o corpo sangrando, pois mens-
truei. Parece que levei uma surra, quase sem força pra levantar
da cama. Que corpo temos que ter para um trabalho como esse?
Minha proposta era fazer objetos de afeto, cuidado e autocui-
dado com as mulheres da Casa de Gestantes.
Será que elas se interessariam por aquilo? Será que em meio
aos seus afazeres do puerpério doméstico, caberia a oficina da
moça “riquinha” e branca?
Neste momento, havia sete mulheres na casa.
— Ah, que pena! Eu queria fazer a oficina, mas tenho que
levar meu filho no hospital.
— Num vou fazer, não. Vou comprar cigarro no mercado.
Quer alguma coisa, Fabriene?
— Sabe o que é, eu fiquei doente e o meu quarto tá uma ba-
gunça...
— Tenho uma pilha de roupa pra lavar. Demora muito essa
oficina aí?
— Eu quero fazer, moça.
E as outras nem apareceram...
Duas mulheres e cinco crianças parti-
cipariam da oficina.
As crianças mais velhas, muito curio-
sas, queriam saber o que tinha nas caixas:
— É presente, Tia?
Corriam de um lado para o outro, de-
pois começaram a abrir as caixas e correr
com os materiais na mão. Pegaram a lã suja
e sentiram nojo. Queriam jogar no lixo pois
Foto: Luíza Albano Yaari tinha cheiro de cocô, disse uma delas.

92
Depois de me apresentar, falei qual era a proposta para aque-
la manhã, pedi que elas também se apresentassem. O barulho era
grande, uma televisão estava ligada e as crianças estavam bastan-
te excitadas.
Por fim, começamos lavando um pedaço de lã suja com água
morna. Deu para sentirem a lanolina, óleo
que protege o pelo do carneiro. Em pou-
co tempo, a água ficou marrom. Depois
sentimos a textura da lã em cada um dos
estágios. A lã esguedelhada, cardada, pen-
teada...
Passamos então para a confecção de
um bonequinho bem simples. Enchemos
meias com lã previamente lavada, para
fazer as cabeças e depois cobrimos com o
pano de algodão para fazer também o cor-
pinho. Fizemos os quatro nozinhos nas pon-
tas do tecido para criar mãos e pés. As mães
e as crianças mais velhas fizeram bastante
animadas essa atividade. Por fim, quiseram
também fazer olhos e boca nos bonecos e
cada um ganhou uma identidade.
Esse momento da oficina tinha a
função de criar com as mães um objeto
de afeto para suas crianças. Mas a sur-
presa foi ter as crianças participando
junto às mães, fazendo também seus
próprios bonecos com a ajuda delas.
Depois passamos para um segundo
momento, o da feltragem molhada. Para
isso, pensei em um objeto de cuidado e
autocuidado: uma bolsa de água quente
forrada com lã penteada e tingida. A lã
ajuda a manter o calor da bolsa de água
quente e cria também uma proteção
para a pele, evitando queimaduras.
Fotos: Luíza Albano Yaari

93
Durante os preparativos desse segun-
do momento da oficina, um novo tumulto
entre as crianças, que pegam os borrifado-
res e saem pela casa a borrifar água. Brin-
cadeira, uma farra que não estão acostuma-
das. Mas as mães ralham com as crianças, o
chinelo voa, assim como xingamentos... e
logo uma choradeira enche a casa.
Em outro cômodo, uma mãe, berra
com sua bebê de 8 meses.
— Sua porca, nojenta, olha o que você
fez! Vai apanhar se continuar a chorar!
Uma cuidadora, pela primeira vez,
aparece para evitar um espancamento.
Crianças e mães estão à flor da pele,
no limite do que, para nós, eu e minhas fi-
lhas, é possível aguentar.
Decidimos, então, seguir com a ofici-
na para a área externa da casa e mudar de
ares. A água já estava quente e outra vez,
conseguimos integrar mães e filhos. Cada
uma cobriu sua bolsa de água quente com
as cores que queria. A água quentinha, o
sabão e o feltrar a lã em volta da bolsa de
água quente trouxeram calma e concentra-
ção. Deu para ver a estrutura que se criou
a partir deste fazer. Foi lindo acompanhar
mãe e filho, que momentos atrás vivenciam
uma cena de agressão, fazerem juntos um
trabalho que lhes trouxe novamente uma
harmonia e uma parceria no fazer.
Na saída, Camile, a garotinha de 2
Fotos: Luíza Albano Yaari anos, me pediu colo quando me despedi.
Ai, meu coração!
A violência e os maus-tratos com crianças me afetaram
bastante. Mas como essas mães poderiam dar o que nunca ti-
veram? O despreparo do corpo para essa atividade se confir-

94
mou, talvez pela gripe, talvez pela falta
de experiência, talvez por ambas as coi-
sas. A alma também solicitou repouso.

Segundo dia
Hoje, um dia imprensado, en-
tre um fim de semana e um feriado. Casa
cheia de crianças e mães. Havia tensão no
ar. Quando estão todas lá, o ambiente vira
uma panela de pressão.
Foto: Luíza Albano Yaari
A proposta para essa manhã de oficina, já
que tinham mais crianças na casa entre 2 e 4 anos, era uma ativi-
dade lúdica com a lã. Brincar com as cores, texturas, água e sabão.
Pensei em fazer “cobrinhas” de lã para depois poder cortar e, com
os pedacinhos, fazer um colar para as mães.
Duas mães que participaram da primeira oficina aproxima-
ram-se para saber o que aconteceria desta vez. Falei sobre a propos-
ta: fazerem uma atividade junto com os filhos, mas não pareceram
muito dispostas. Elas sugeriram que a atividade fosse feita só com
as crianças, para que tivessem tempo de fazer outras coisas.
Primeiro, decidimos que o melhor local seria a área externa
da casa, pois batia sol e não haveria problemas em molhar o chão.
Mas, olhando para o chão, percebi que o local estava forrado de bi-
tucas de cigarro e copos de plástico espalhados por toda parte, além
de fezes de gato. Pedi que buscassem saco de lixo para limpar o
local. Eu mesma iria fazer isso. Duas delas se dispuseram a cumprir
sua escala de limpeza para que pudéssemos trabalhar num lugar
limpo e sem riscos para as crianças. Conseguimos uma mesa mais
baixa e, na cozinha, formas e assadeiras que, forradas com plástico
bolha e um tecido antiderrapante, foram usadas para a feltragem
das “cobrinhas”.
As crianças estavam bastante entusiasmadas e batiam nas as-
sadeiras, gritavam, repuxavam a lã, disputavam e brigavam pelos
materiais. Combinei com elas que poderíamos brincar, depois da
oficina, com os borrifadores de água se conseguíssemos fazer nosso
trabalho!

95
Minha intenção nesta manhã foi tra-
zer, para as crianças, alegria e movimen-
to para realizar uma vivência com a lã
por meio da brincadeira. Esse objetivo se
cumpriu, mas também fez parte da ofici-
na mediar pequenos e grandes conflitos,
limpar o sabão que caiu no olho, tirar
bituca de cigarro da boca, estar atenta a
qualquer tipo de situação e não me dei-
xar levar pelas forças do caos.
As cobrinhas saíram um tanto disfor-
mes, mas conseguimos realizar esse primei-
Foto: Luíza Albano Yaari ro estágio. As crianças se divertiram muito
com a água e o sabão! E enquanto as “cobrinhas” secavam ao sol,
fizemos uma brincadeira que eles amaram. Correr com os borrifa-
dores cheios de água atrás de mim!
Depois, as crianças foram almoçar e tive um pequeno interva-
lo para cortar as “cobrinhas” de lã e, com os pedacinhos, fazer os
colares para as mães.
Na minha saída, ao contrário da chegada, recebi o protes-
to das crianças... um beliscão, um empurrão, várias línguas, o
colarzinho da mamãe jogado no chão, palavrões diversos e cho-
rorô pedindo por colo. Dá o que pensar.... nem sei bem o quê!
Senti-me impotente. O que fazer com esse sentimento?
Quando cheguei em casa, tive que dormir para digerir a expe-
riência. Acordei e concluí que não era de uma oficina de trabalhos
manuais que essas pessoas precisavam. Existe um abismo existen-
cial tão profundo que, me parece, mães e filhos necessitam de pele,
envoltório antes de qualquer coisa. E o que precisam as pessoas
que, como eu, se propõem a fazer um trabalho como esse? Que cor-
po é preciso ter?
Essa experiência dentro da Casa de Gestantes, chama-me à
responsabilidade para com essas pessoas e também para comigo, à
medida que me sugere um caminho de desenvolvimento interior e
a busca por um equilíbrio entre dar e receber, no qual a troca seria
nossa principal ferramenta de trabalho.

96
Em autogestação
A vida pode ser desestruturada, suja e embaraçada, quando
nos encontramos no lugar da vulnerabilidade. É onde estão essas
mulheres e é também por onde me sinto passar. Neste momento,
sinto-me em um processo de autogestação, envolta em profunda
crise, mas que traz consigo também uma oportunidade. Gestação
autopoiética de mim mesma, me preparando para uma nova jorna-
da sobre a Terra.
Esse ser que se gesta, precisando entrar em contato com a ma-
téria, com a realidade, busca apoio nas mulheres “mais fortes”, as
que vivem a vida real. Que força de vida e de morte têm essas
mulheres? Elas são o envoltório de alguém, outra biografia, ou-
tra missão que está por vir. Pele marcada como pele de gado. O
envoltório do ser, a casca, a armadura primordial. O que con-
tam? Cada pele, uma história de dor, de luta, de prazer, de ca-
rinho, de violência, de aventura, de sede, de fome, de dentro e
de fora.
Suas histórias são como lã em meada. Vão sendo sobrepos-
tas, uma a uma, cada qual com sua forma, sua cor, sua textura. A
vida joga água quente, que queima. E a gente joga sabão. E nesse
esfregar, mexer, apertar, virar e revirar, que uma fibra vai se mis-
turando com a outra, se tramando, se feltrando até virar, a partir
da nossa ação, uma nova materialidade forte e resistente, mas que
também é quente, macia e aconchegante.
Sinto o quanto o encontro com essas mulheres veio curar-me.
E o quanto poder estar com elas neste momento de limbo-crise-
-oportunidade tornou-me mais forte. O quanto poder falar sobre e
fazer algo com elas possibilitou alento para as minhas dores e feri-
das. Foi auto-olhar, autocuidar, autogestar para aí, então, olhar
para o outro e apoiá-lo em seu próprio caminho.

97
Stella

STELLA
FERREIRA
BOTTINO
98
As nuvens, a escrita e o que há de mais
profundo em nós
Nuvens transitam na leveza do ar; ora mais densas, ora mais suaves.
Assim segue a escrita, de acordo com o que vem de dentro, da si-
tuação vivenciada.
Busca do sentido; recursos da escrita.
Cardar em pensamento.
No entre existe o sentido, aquilo que é; não somente aos olhos, mas
o que vem diretamente da alma.
Ainda não me encontrei nesse estilo.
Sempre há mudanças. Resgatando o que existe dentro de mim e que
ali ficou por muito tempo adormecido.
A capacidade de interpretação e resumo daquilo que se lê e se vê.
Sentir.
Interpretação daquilo que também não se vê.

Senti enorme vontade de escrever agora.


Estou fiando a lã lavada faz uma hora... Na verdade, apanhando da
lã. Quando acho que foi... O fio se parte
As crianças pulando, falando, chamando.... e eu tentando me con-
centrar.
Dei uma atividade pra eles, mas a duração de
concentração é rápida; incomparável ao tempo
que preciso pra fiar.
Mas a hora é agora!
Acho que terminei... O resultado não me satis-
faz. Bastante irregular, quase como pompons
no meio
Como é a primeira vez, está valendo!
Hora de fazer o novelo.
Enroladinho, até que ficou bonitinho!
Só arrebentou um pedaço no final, mas consegui
emendar e seguir.
Mais tarde escrevo sobre as outras experiências.

99
Trabalhos manuais com
fios no jardim da infância
Práticas da Pedagogia
Waldorf na escola pública
Ecce Homo
No coração tece o sentir
Na cabeça luze o pensar
Nos membros vigora o querer
Luzir que tece
Tecer que vigora
Vigorar que luze
Eis o homem
(Rudolf Steiner)

Meu primeiro contato com a Pedagogia Waldorf foi na in-


fância, através de uma tia, na época professora Waldorf, que me
contagiou com o entusiasmo das suas falas sobre pedagogia e an-
troposofia.
Minha infância e juventude foram permeadas pelas manua-
lidades, o que despertou a curiosidade em saber o que acontecia
dentro de mim no meio dos fios enquanto tecia o crochê, o tricô ou
bordava.

O ensino dos trabalhos manuais na Pedagogia Waldorf


utiliza-se de materiais naturais, como a lã de carneiro. O contato
com o mundo real por meio do material utilizado tem valor pedagó-
gico e terapêutico, daí a importância dos materiais naturais.
Entre as diversas técnicas artesanais, o tricô, certamente, é
uma das mais antigas e disseminadas no mundo. O tricô tradicional
é executado com o auxílio de duas agulhas e de um fio de lã que

100
permite elaborar centenas de pontos com malhas de texturas dife-
rentes: alguns mais abertos, outros fechados, adaptados à execução
de peças diversas como xales, blusas, meias. O tricô de dedo, abor-
dado aqui, é uma variação do tricô tradicional sem agulhas.
Juntamente com o tricô de dedo, outra atividade escolhida para
explorar com as crianças foi o pompom de lã, que é uma bola
ou tufo ornamental confeccionado a partir de diversos mate-
riais, como lã, algodão, papel... de diversas cores e tamanhos e
aplicados de muitas formas.

A vivência das artes dos fios em


uma escola pública
O exercício do conhecimento das artes dos fios foi aplicado em
uma escola pública na cidade de São Paulo, durante o período de
quatro meses, com crianças entre 5 e 6 anos da Educação Infantil.
A proposta era apreciar como crianças que usualmente não têm
contato com trabalhos manuais com fios poderiam beneficiar-se
delas. Escolhi o tricô de dedo e o pompom de lã pela faixa etária
dos alunos e pelo fato de que todos cursariam o 1º ano do Ensino
Fundamental no ano seguinte.
A sala de aula tinha 30 alunos, assistidos por duas professoras
que se alternavam entre os períodos matutino e vespertino. Ambas
trabalhavam o aspecto lúdico, incentivando brincadeiras com ma-
teriais da natureza numa área da escola que, por ser entremeada de
árvores e parques de areia e terra, estimula e promove o livre brin-
car em contato com materiais da natureza, além de incitar a imagi-
nação. No período vespertino, as crianças têm contato com elemen-
tos mais pontuais da Pedagogia Waldorf, informalmente oferecidos
pela professora por conta de seu interesse pessoal: a biografia da
criança, a coroa no
dia do aniversário
e o verso de agra-
decimento antes
de começarem o
almoço.

101
No primeiro dia de aula, fizemos uma grande roda no chão para
que todos pudessem ver uns aos outros e começamos uma conversa
descontraída com brincadeiras. Cada criança falou seu nome, algu-
mas quiseram complementar com suas histórias pessoais, como o
nome dos pais, avós e animais de estimação ou algo que gostavam
de fazer. Todas as crianças estavam curiosas para entender quem
eu era, o que tinha ido fazer ali e o que viria a seguir, e fizeram per-
guntas que respondi quando me apresentei. Mostrei uma imagem da
ovelha e contei a história do animal, onde vive, do que se alimenta e
para que serve sua lã. Nesse momento, desencadeou-se uma agitação
geral com todos falando ao mesmo tempo, querendo mostrar o quan-
to sabiam sobre o assunto, além de comentários de associações com
cobertor, cachecol, gorro que a avó faz em casa e novelos.

Mostrar a imagem e contar a história leva a criança para seu


mundo imaginário e ela pode viver plenamente esse momento. En-
quanto elas falavam, em alguns momentos era palpável o que des-
creviam.

A agitação cresceu e foi maior quando mostrei um pedaço de


lã branca sem beneficiamento, passada de mãos em mãos, causan-
do sensações e caretas motivadas pelo contato com a textura, a apa-
rência e principalmente o cheiro. As expressões do rosto, sorrindo,
curiosas, conversando sobre as sensações que tiveram, cheirando
as mãos, foram momentos de surpresa marcante.
O cheiro forte de terra misturado com o cheiro do animal cau-
sou sensações de repulsa e estranhamento por causa da lanolina. A
textura pegajosa, oleosa também não agradou muito. Esfregavam
os dedos e cheiravam. Após passar a lã suja, passei um pedaço de lã
branca limpa e as comparações começaram a aparecer: o cheiro, a
cor, a textura, a aparência eram diferentes, não grudava nos dedos,
tinha um cheiro mais suave. Não causou tantas sensações. O conta-
to com a lã cardada levou a associações com coisas fofas como nu-
vens e travesseiros, as crianças passavam a lã no rosto, apertavam,
sentindo bem a textura macia. Quando chegamos às meadas de lã
natural colorida, o alvoroço foi enorme. As crianças ficaram muito
alegres e estimuladas com as cores (verde, azul, violeta, amarelo,
laranja, rosa e marrom).

102
A partir das sensações que as cores pro-
movem, podemos observar em um trabalho
o que está em “cima” e o que está “embai-
xo”, despertando sensação de leveza ou de
firmeza. Cores mais claras em cima passam
a sensação de leveza, luminosidade, flui-
dez, dando ideia de se voltarem mais para
“fora”; cores mais escuras embaixo passam
a sensação de peso, densidade, interioriza-
ção, proximidade ao chão. As cores, nos tra-
balhos das crianças, podem ser reveladoras
inclusive trazendo considerações sobre seus
temperamentos. É esperado que na aula de trabalhos manuais a
oferta seja bastante variada quanto a cores e texturas de fios.

As meadas causaram muita curiosidade entre as crianças, que


não conheciam aquela forma ovalada e amarrada de arrumar a lã;
imaginavam um novelo em formato de esfera. Todos ficaram curio-
sos em saber como iria se transformar em novelo. Começamos en-
tão a etapa de fazer os novelos com três crianças trabalhando jun-
tas. Durante a atividade, ficou clara a importância que as crianças
dão ao trabalho proposto: levaram a sério, brigaram entre si quan-
do alguém não fez conforme o ensinado, imitaram minha atitude
de atenção e concentração. Sentiram-se responsáveis e importantes
em executar a tarefa com muita alegria e dedicação. Foram percep-
tíveis também facilidades e dificuldades com relação à coordena-
ção motora, destacando a importância do exercício das habilidades
motoras finas nessa fase.

Os trabalhos manuais, de forma geral, atuam no desenvolvi-


mento da coordenação motora fina, ampliam capacidades, influen-
ciam na elaboração do raciocínio lógico, possibilitam um pensar
mais claro e um desenvolvimento cognitivo mais rico. Enquanto
alguns faziam o novelo com facilidade, outros tiveram que recome-
çar, pois o novelo se desmanchava.

103
O movimento de enrolar o novelo de
fora para dentro, trazendo o fio em direção
ao peito, é muito importante: nesse momen-
to a criança traz a consciência para os dedos,
aprimora a perspicácia por meio da obser-
vação de detalhes e internaliza seus movi-
mentos, que exigem presença e atenção.

Faziam rodízio nas funções da ativida-


de para que todos conseguissem segurar a
meada e fazer o novelo. Foi um dia bastante agitado, com muita
alegria e satisfação quando viram a transformação das meadas em
novelos pelas próprias mãos.
As crianças se reuniram depois em grupos de cinco para ini-
ciar a nova atividade do tricô de dedo.

O tricô de dedo é uma variação do tricô na qual o fio de lã é en-


trelaçado nos dedos criando um tecido estreito, que pode ser usado
para fazer cachecol, caracol, borboletas, tapetes...

Sentados em roda para que todos pudessem se olhar, no centro


a sacola com os novelos para que cada um pudesse escolher sua
cor. Observei as preferências pelo amarelo, azul, laranja e rosa.
As aulas sempre começavam com uma história de ovelhas que
subiam e desciam morros e precisavam pular cerquinhas para che-
gar onde queriam. As crianças foram aprendendo e se familiarizan-
do com o movimento de entrelaçar a lã nos dedos e depois tirá-las
formando o tricô.

A história é importante nas aulas de trabalhos manuais, pois


a criança aprende criando e internalizando suas próprias imagens
num mundo de fantasia. Estimular a imaginação e a criatividade
associa movimentos àquilo que ela está ouvindo e ajuda a dar ritmo
ao trabalho. Enquanto a história é contada, as crianças vão fazendo
o tricô sem se dar conta do que está acontecendo.

104
Ao virarem as mãos, tinham uma enor-
me surpresa: o quanto tinham tricotado.
Poucas crianças tiveram dificuldade no
tricô de dedo, só as muito ativas se descon-
centravam com facilidade. Como a oferta de
cores de lã era grande, as crianças estavam
encantadas e ansiosas por trocar a cor do
tricô, o que acabava sendo a atividade pre-
dileta da maioria. Quando trocávamos a lã,
havia certa dificuldade em entender como
fazer, mas aí entrava novamente a história da ovelha: mudando de
paisagem, ela precisa pular uma nova cerca. Tudo voltava a fluir.
Em alguns momentos de dificuldade, a solidariedade esteve
presente entre as crianças: ensinar e ajudar o amigo que deve pres-
tar atenção aos movimentos e imitar quem o estava ajudando. As
atividades com trabalhos manuais auxiliam a convivência em gru-
po, aprimora os vínculos e as relações sociais.
Durante as vivências dos vários grupos, as crianças mais con-
centradas, geralmente com 6 anos completos, tinham um ponto na
malha do tricô mais firme e uniforme; em contrapartida, aquelas
que estavam sempre envolvidas em muita atividade e dispersas
apresentavam pontos largos e esburacados. A maior dificuldade
veio com duas crianças com características bastante diferentes.
Uma delas, com 5 anos, ainda bastante imatura, não conseguia
acompanhar o fazer o novelo e o tricô, nem desenrolar a lã e seus
nós. Mesmo estando compenetrada, seus movimentos eram muito
lentos, ao fazer do tricô e em outras atividades, como brincar. Foi di-
fícil chegar ao final, mas quando terminou o tricô ficou muito feliz.

Segundo Ignácio (2014, p. 28), na criança dos 5 aos 7 anos


de idade “percebemos que seu corpo e principalmente os membros
ficam mais musculosos. As gordurinhas da criança pequena somem
por completo”. Nessa idade é possível perceber que a criança co-
meça a desenvolver cada vez mais habilidades físicas e motoras,
como amassar pão, costurar, fazer tricô de dedo, pular corda, an-
dar de perna de pau…

105
Outras crianças demonstraram atitudes de iniciativa e impul-
so para solucionar desatamento de nós e ‘bololôs’ (termo usado com
frequência para definir nós e emaranhamento de fios), refazendo o
tricô onde havia algum ponto pulado e auxiliando os amigos quan-
do tinham dificuldades, explicando tudo com calma e atenção.
Em alguns grupos, havia competição
entre as crianças para saber quem produzia
mais e mais rápido. Em outros, as crianças
conseguiam se concentrar por mais tempo,
com um olhar diferente para a perfeição do
trabalho, prestando atenção em todos os pon-
tos e não se importando em competir pelo
comprimento maior do tricô. Surgiram até
novas modalidades de tricô, como enrolar os
fios muitas vezes nos dedos e tirar uma laça-
da após a outra. As experimentações e liber-
dade criativa, o contato com a vida, ajudaram
a turma a encontrar caminhos e soluções
criativas para a resolução de problemas.
Quem fez mais? Algumas crianças gosta-
vam de comparar os tricôs.
Meninos e meninas teciam com alegria, comemorando cada
etapa, cada cor inserida muitas vezes e escolhida com a ajuda dos
amigos, olhando e mostrando com orgulho o crescimento do tricô.
No final, expressavam a felicidade mostrando para todos o traba-
lho concluído. A conclusão do trabalho para a criança é de extrema
importância para o fortalecimento das suas forças de vontade, au-
tonomia e autoconfiança.

Na infância, as forças de personalidade estão se desenvolven-


do. Um trabalho não concluído pode minar a força da vontade, o
que pode acarretar, no futuro, um grande dano de inconclusivida-
de em outros aspectos da vida. A criança deve ter consciência do
processo inteiro – com começo, meio e fim dentro de suas possibili-
dades de execução.

106
Uma aluna com temperamento predominantemente sanguí-
neo, bastante agitada e dispersa, na semana em que estava fazendo
o tricô ficou doente e faltou por duas semanas. Ao retornar, a pri-
meira coisa que perguntou foi se poderia retomar o tricô. Termi-
nou-o com muita vontade e orgulhosa da imensa peça que fizera.

Atualmente, vivemos num mundo onde tudo acontece de for-


ma rápida, superficial e passageira. Durante o período em que a
criança esteve ausente, ela poderia ter esquecido ou deixado de
lado o trabalho com os fios, porém a relação criada entre ela e a
atividade do tricô de dedo foi mais forte.
Além da importância da conclusão, durante a manufatura de
um trabalho manual promove-se também um estado de calma, que
favorece a concentração e a reverência pelo que é produzido pelas
mãos humanas. Além de desenvolver a lateralidade e a fixação do
domínio de uma das mãos.

Durante todas as aulas, um comentário frequente era que con-


tariam aos pais o que estavam aprendendo e que queriam comprar
lãs para fazerem sozinhos. Tiveram muitas ideias do que fazer com
o tricô pronto: cachecol, corda, colar, pulseira...
Aos poucos, a notícia de nossas aulas começou a percorrer a
escola. Era frequente o interesse de outras professoras. Crianças de
outras salas passaram a nos visitar. Tivemos inclusive uma convi-
dada de outra classe, que passava para ver de longe as aulas, sem-
pre que podia.
Quando todas as peças de tricô estavam prontas, foram reco-
lhidas para que eu preparasse uma surpresa. Começamos a fazer
pompons de lã, uma atividade leve e descontraída, pois havia fami-
liaridade com os fios. Usamos uma técnica bem simples para que
as crianças pudessem en-
sinar aos pais.
Em grupos com oito
crianças, elas faziam os
pompons enquanto ou-
viam uma música sobre
carneiros e ovelhas.

107
Cada criança fez três ou mais pompons de cores variadas para
presentear as pessoas. Viraram adornos de cabelo, bolas de Natal,
chaveiros, colares...
As crianças de 5 anos e o menino que tinha pouca motivação fo-
ram as que pediram ajuda para enrolar os fios nas mãos. A escolha
das cores novamente chamou a atenção: o branco, vermelho, verde,
azul e laranja. Talvez a escolha das três primeiras cores tenha a ver
com a época do ano, próxima do Natal. Quando concluíram, recolhe-
mos todos os pompons para entregá-los junto com as peças de tricô.

Durante o período das aulas de traba-


lhos manuais, as crianças estavam apren-
dendo, com a professora de classe, sobre o
folclore brasileiro. Por isso, propus transfor-
mar os tricôs de dedo em Boitatá, um mito
indígena simbolizado por uma cobra com
dois grandes olhos, protetora das florestas,
também conhecida como cobra de fogo ou
de luz. Os pompons ficaram exatamente
como as crianças entregaram, alguns bem
aparados, outros não.
O resultado dos tricôs de dedo foi gra-
tificante. Em cada peça havia as características de cada criança:
pontos largos, esburacados, pontos firmes e justos, longos e curtos,
mais ou menos coloridos. Os pompons, com seus cortes irregulares,
também tinham sua beleza particular e característica de cada um.
Ficaram livres para escolher o que conside-
ravam mais belo.
As crianças estiveram fortemente en-
volvidas nas aulas e nos dias em que não
havia trabalhos manuais houve pedidos
para fazer o tricô. A escola chegou até a
providenciar novelos de lãs para que os
alunos pudessem trabalhar sozinhos. Con-
forme iam praticando, a coordenação mo-
tora melhorava e os pontos ficavam mais
uniformes.

108
As aulas de trabalhos manuais se encerraram no dia da Mos-
tra Cultural promovida pela escola. Para essa exposição, montamos
uma mesa com os trabalhos. Sentimos necessidade de presentear
cada criança para que pudesse se lembrar de tudo o que vivemos
juntos durante as aulas de trabalhos manuais. As crianças recebe-
ram um saquinho de tecido de algodão cru, onde havia um cartão
pintado com uma mensagem de elogio ao trabalho que fizeram.
dentro do saquinho estavam o boitatá e os pompons.
A Mostra Cultural foi emocionante. Pude sentir o retorno e o
reconhecimento das crianças e dos pais. Cada criança que entrava
se surpreendia e se alegrava em me ver ali, levava os pais para mos-
trar os trabalhos e contar a experiência que tinha vivido. Os pais se
surpreenderam ainda mais, porque não tinham ideia do que era
aquele tricô que as crianças pediam para fazer em casa. Alguns che-
garam a comprar novelos de lã e as crianças os ensinaram a traba-
lhar. Ouvi relatos de crianças que deixaram a televisão de lado para
tricotar; mães que não tinham habilidades manuais começaram a
se interessar vendo os filhos tricotarem. Houve a reaproximação de
mães e avós que resgataram suas histórias familiares e passaram a
contar para as crianças sobre os trabalhos manuais feitos na casa
e na terra natal, narrando histórias sobre o local onde viviam e da
própria arte manual que está se perdendo. Renovaram-se e fortale-
ceram-se laços familiares.

Essa experiência foi de grande aprendizado pessoal. A partir


da minha formação e da vivência desse trabalho na escola, comecei
a desenvolver um olhar para as diferenças entre as crianças e para
o convívio com elas, com novas maneiras de lidar e ensinar a cada
uma as manualidades. Pude verificar a importância da relação do
educador com as crianças, e como os fios podem ampliar a possibi-
lidade de interação entre ambos, criando vínculos afetivos.
Uma memória afetiva fez despertar a vontade de as crianças
seguirem fazendo sozinhas seus trabalhos em classe e de até pedi-
rem às professoras que comprassem lãs, o que tornou a atividade
um apoio efetivo no trabalho com a coordenação motora fina.
As manualidades feitas com os fios foram proveitosas às crian-
ças, propiciando momentos de maior interação, agrupamento e

109
solidariedade, bem como estímulo à coor-
denação motora fina, à imaginação e à con-
centração, a uma conexão entre o pensar e
o fazer. Despertar o interesse por esse tipo
de arte, para muitos, foi uma surpresa: co-
nhecem as peças prontas para comprar sem
conhecimento do processo e suas etapas.
As artes com os fios também foram le-
vadas para casa e, através delas, criou-se
um caminho de conexão entre crianças,
mães e avós. Houve resgate de memórias
de trabalhos feitos no passado, na cidade
natal, resgate de técnicas regionais e uma
vontade de retomar essas atividades e en-
siná-las às crianças.
Além das crianças e
familiares, as manualida-
des chamaram a atenção
das educadoras da escola,
que apareciam com fre-
quência em nossa sala.
A movimentação
causada pelos trabalhos
manuais na escola, tan-
to para as crianças como
para familiares e educadores, sugerem que
a aplicação dessas artes seria de grande va-
lia na escola pública. Na Educação Infantil,
experimentações lúdicas com fios poderiam
apoiar o desenvolvimento da coordenação
motora fina, além de estimular a comuni-
dade escolar a refletir sobre a potência das
artes-manuais.

110
Janice

JANICE
KIRNER
PROVIDELO
111
texto-têxtil

112
Cartografia dos elementos
Segurar a lã
é segurar o sopro da vida que já sentiu o sol no lombo a
grama úmida sob suas patas e o vento fresco balançando os
pelos
Por que é tão difícil segurar esse sopro como um fio de
cabelo que não é meu, mas se aloja na minha roupa?
E se meu próprio fio me incomoda?
Corto me afasto me protejo me basto
Mas não me basto
Preciso do contato com o material com o outro comigo
mesma.

Do que me afeta eu sinto o gosto o cheiro o toque a cor o som


o medo
a raiva a vontade a ternura
Seguro a ponta de mil fios
que trazem, na outra ponta, outras mãos
Os fios que me seguram às vezes me puxam e às vezes dão nó
Tudo se move como uma dança
Descubro quem sou a partir do que me afeta

Exercício da cardação
cardar
colocar ar
até que voe

Ideias pesadas são como a lã, precisam


ser cardadas, puxadas, remexidas, ten-
sionadas.

113
Fiando com
um fio sem fim
Reflexões sobre oficinas de
trabalhos manuais e histórias

Cresci no interior de São Paulo, em meio à cultura cai-


pira, na qual o fazer manual e as histórias se apresentam como
modos de compartilhar sabedoria de forma sensível e significativa.
Era comum ver, quando criança, uma roda de mulheres de várias
gerações para produzir, aprender, experimentar e ensinar diversos
tipos de trabalhos manuais, como tricô, crochê, costura e bordados
de pontos variados. As crianças ficavam em volta e absorviam, tal-
vez, algumas das técnicas, além, claro, do sentido da coletividade,
da capacidade e da força que aquele grupo gerava.
Quando, já adulta, decidi me dedicar às artes, à educação e à
infância, foram a escrita e a ilustração de livros infantis que me
chamaram de volta para esse mundo sensível. A partir de então,
as manualidades transformaram meu modo de expressão artística,
que passou a incluir também linhas e agulhas na tessitura das ilus-
trações e dos textos.
As histórias me fizeram olhar por uma janela, enquanto as
artes-manuais me convidaram a entrar. Para mim, é este o signi-
ficado de cada uma dessas artes: a experiência de ouvir, ler, contar,
inventar ou escrever histórias é como um par de braços abertos,
que nos convida para um abraço apertado; e o aconchego desse
abraço que damos em nós mesmos e nos permite respirar, perce-
ber, sentir e produzir o que somos é oferecido pelo fazer manual.

114
Utilizando histórias como fios que costuram e envolvem
as aulas de introdução aos trabalhos manuais, ofereci para alunos
de várias idades, num ambiente de educação não formal, oficinas
com um conteúdo que teve como base o currículo de trabalhos ma-
nuais das escolas Waldorf. Atualmente, essa proposta pedagógica,
introduzida por Rudolf Steiner em 1919, é a única no Brasil a ter
essa disciplina como parte de sua grade curricular obrigatória.
O trabalho manual na Pedagogia Waldorf inicia-se no 1º ano
do Ensino Fundamental, com os fios para fazer tricô. Nos anos
seguintes, os alunos aprendem crochê, bordados e costuras, e, no
Ensino Médio, pode-se passar para trabalhos como macramê, tear,
encadernação, costura à máquina e cestaria (HAUK, 2008). Esses
trabalhos com fios são chamados de trabalhos manuais moles e,
segundo Rudolf Steiner, evocam o sentimento e a sensibilidade, di-
ferentemente dos chamados trabalhos manuais duros, como mar-
cenaria e modelagem com argila, nos quais se evoca a vontade dos
membros (STEINER, 2009 apud ORTEGA, 2017).
Este trabalho não visa apresentar um modelo a ser seguido
e replicado. Pelo contrário, ao compartilhar essa experiência,
espero que outras profissionais da área ou pessoas que se inte-
ressam ou se relacionam com o trabalho manual, as histórias e
o universo infantil se sintam inspiradas a percorrer seus pró-
prios caminhos na educação.

Contando histórias e mexendo


com fios
A partir do estudo dos trabalhos manuais conforme constam
no currículo das escolas Waldorf, identifiquei, nessa forma de ensi-
nar, os primeiros passos para introduzir as crianças à experimen-
tação e à produção do fazer manual com fios.
O início é feito com um primeiro contato com a lã natural, pas-
sando para um aquecimento das mãos para o tricô de duas agu-
lhas. Apesar de essas atividades integrarem o currículo do 1º ano
do Ensino Fundamental, elas fizeram sentido para mim também no
contexto em que meus alunos se inseriam. Eram duas turmas de

115
alunos, uma com crianças de 6 a 8 anos e outra com crianças de 9 a
12 anos, com a eventual participação de algumas com 13 e 14 anos
de idade. As oficinas foram dadas como parte das atividades de con-
traturno escolar em uma ONG da periferia de São Carlos (SP) que
recebe crianças da comunidade local, muitas vezes encaminhadas
pelo Conselho Tutelar. Dessa forma, apesar de haver alunos mais
velhos, muitos deles nunca tiveram contato com os trabalhos ma-
nuais com fios.
Ao fazer o planejamento das oficinas, pensei nas histórias que
poderiam promover a conversa com atividades em introdução aos
trabalhos manuais, buscando aquelas que carregavam imagens que,
de alguma forma, guardassem potências para o fazer manual. Aca-
bei escolhendo três narrativas em diferentes abordagens: 1) a
leitura de um livro ilustrado; 2) o uso de uma narrativa vinda de
uma brincadeira musical; 3) a oralidade de um conto de fadas.
As três formas de narrativas escolhidas têm também al-
gum componente que se relaciona com o fio. É muito rica a re-
lação entre esse fio usado no fazer manual e a escrita, ou seja,
a relação entre textos e têxteis, como evidenciado por Macha-
do (2003). A fiação e a tecelagem figuram temas literários desde
as histórias da mitologia grega, passando pela literatura clássica e
pelos contos de fadas, até chegar aos livros ilustrados infantis da
atualidade.

Experimentando com a lã natural


“Estávamos todos sentados no chão, em volta de um tapete
de retalhos que eu tinha levado para formar o centro da
nossa roda. Enquanto eu contava a história, mostrando
o livro, algumas crianças olhavam para mim, outras,
para o livro, e algumas meninas já bem perto de mim se
aproximavam cada vez mais, até que uma se deitou no meu
colo. Foi, então, por meio da história que eu lancei
o primeiro fio das potências que habitaram o peque-
no momento semanal que eu tinha com essas crianças.”
(Relato de experiência em sala)

116
Na Pedagogia Waldorf, nas atividades iniciais com a lã natural,
o trabalho pode resultar na produção de um fio. Isso inclui a mani-
pulação e a lavagem da lã suja para que as crianças toquem, chei-
rem e vejam a transformação do material depois da secagem. Com
a lã limpa, o próximo passo é a fiação, que pode incluir os passos
de esguedelhar, cardar e fiar manualmente. A produção de novelos
vem em seguida, e, ao pedir que cada criança faça um novelo do ta-
manho de sua mão, evidenciam-se a pluralidade e a autenticidade
de cada um.
Para acolher esse
processo, escolhi como
uma possibilidade a
história do livro ilustrado
Extra Yarn (BARNETT,
2012), em inglês, cujo
título foi traduzido para o
espanhol como Hilo sin fin,
que significa fio sem fim.
Além de aproximar as crianças de como é o trabalho com fios
de lã, escolhi essa história porque acho que ela evoca o prazer e
a alegria de trabalhar com as mãos, a potência da generosidade e
ainda como o fazer manual pode trazer cor e beleza ao mundo. As
ilustrações de Jon Klassen constituem uma segunda camada narra-
tiva. Por isso, optei pela leitura acompanhada da exibição das ilus-
trações, em detrimento da narração oral da história sem o livro.

Na primeira oficina, cheguei com uma cesta


cheia de lã e cardas, uma caixa de madeira e o livro.
Depois das apresentações e da roda, feita com os ou-
tros dois educadores, me sentei com as crianças em
volta da cesta e da caixa e disse que ia contar uma
história. Fui lendo (traduzindo) a história, enquanto
mostrava as ilustrações. Como se tratava de uma his-
tória de repetição, elas logo começaram a antecipar a
frase repetida com muito entusiasmo. A contação da
história com o livro ilustrado estabeleceu o primeiro
vínculo sensível entre mim e os alunos, sinalizando a
potência das histórias para o germinar das relações.

117
Ao final da história, mostrei a caixa de madeira
que eu tinha levado, ainda fechada, e perguntei o que
eles achavam que havia lá dentro. Muitos adivinha-
ram, maravilhados, que seriam novelos, como os que
Annabelle encontrou na história. Abri a caixa e mos-
trei os novelos de vários tipos: de lã natural sem tin-
gimento (em duas cores, para mostrar a variação de
cores do pelo das ovelhas), com tingimento natural
e fiados manualmente, e fios 100% lã, mas industria-
lizados, em cores mais vivas. Logo vi que os alunos
perceberam a pluralidade dos novelos e gostaram de
comparar sua aparência, seu peso, cheiro e toque.
Me perguntaram se aqueles fios também eram mági-
cos – era a narrativa criando significados para a ati-
vidade que estávamos iniciando.
Perguntei se eles sabiam de
que eram feitos aqueles fios e um
aluno respondeu que era de algo-
dão. Naquele momento, tentamos
identificar o uso de fios de algo-
dão nas roupas de verão que está-
vamos usando. Todos os novelos
que estavam na caixa eram de lã.
Quando falei que aqueles fios ti-
nham vindo das ovelhas, algumas
crianças se assustaram e expres-
saram pena pelos animais, então
expliquei como era o processo de
tosquia e beneficiamento da lã. Tirei da cesta a lã
bruta, que havia recebido só uma primeira lavagem,
mas ainda trazia bastante terra e outros resquícios
da vida dos animais que a tinham carregado.
Preparei para cada dupla de alunos uma trou-
xinha feita com cortes de um lençol antigo de algo-
dão contendo um punhado grande da lã, além de um
par de cardas. Com um pouco de orientação minha
e bastante vontade de todos, eles manipularam a lã,
esguedelhando e cardando. Durante esse processo,

118
contaram suas impressões sobre o material, falando
do cheiro (alguns gostaram, outros não), das sujeiras
que encontravam na lã e de como com suas próprias
mãos (e ferramentas) conseguiam transformar um
punhado de lã compacta e cheia de nós em nuvens li-
sas e fofas. Também conversaram sobre a história do
livro que eu tinha acabado de ler, a beleza das artes-
-manuais e as relações afetivas que tinham com elas,
como a lembrança de parentes que usavam novelos
para fazer tricô ou crochê.
Mostrei então como fazer um fio manualmente,
o que gerou tentativas aqui e ali. Na minha fantasia
docente, eu esperava conseguir que cada criança pro-
duzisse uma pulseira com esses fios, mas logo vi que,
além da dificuldade do fazer, os fios torcidos à mão
iriam se distorcer e não se configurariam como um
objeto perene e significativo para os alunos. Pensei
que, numa próxima oficina, poderíamos fazer outro
tipo de pulseira ou objeto que trouxesse a dimensão
do sagrado que é um fio. Enquanto manipulávamos
a lã, falei da prática de fiação manual e contei das
ferramentas (das primitivas às tecnológicas) que ser-
vem para auxiliar nesse processo.

Mais importante que aprender as técnicas de fiação, o que


demandaria tempo e experiência, percebi nessa oficina outras po-
tências, como o vínculo que estávamos começando a estabelecer,
a vontade de experimentar novos gestos, a relação do ser humano
com o material natural e a descoberta do potencial produtivo que
todas as mãos carregam.
Quando trabalhei com as crianças mais velhas, depois de ma-
nipularem a lã, ainda deu tempo de fazer novelos com um fio 100%
lã industrializado.
Enquanto enrolavam os novelos, as falas diminuíram e per-
cebi um aumento na concentração das crianças. Um menino de 10
anos, muito habilidoso, me falou que gostava de enrolar. Perguntei
se ele já tinha feito novelos antes e me respondeu que não, mas que
tinha treinado bastante enrolando fios de pipa.

119
No final da oficina,
colocamos todos os nove-
los na cesta em que antes
estava a lã e formamos
uma roda em volta dela.
Cada novelo era dife-
rente não só na cor, mas
também no tamanho e no
formato: alguns ficaram
mais soltos, outros foram
enrolados de forma bas-
tante apertada.
As crianças disseram
que adoraram fazer os
novelos e que a atividade
era “relaxante”.

Brincadeira, música e construção


coletiva com fios
Essa é a história da serpente
Que desceu do morro
para procurar um pedacinho do seu rabo
Você também, você também
Faz parte desse rabão.
(Mapa do Brincar, 2011)

Nas aulas de Trabalhos Manuais, depois de lavarem a lã e vi-


venciarem o processo da fiação, chega a hora de as crianças prepa-
rarem as mãos para o aprendizado do tricô de duas agulhas, que
é o encaminhamento usual indicado pelo currículo da Pedagogia
Waldorf (CAIRELLO; MORAES, 2015). Esse aquecimento pode ser
feito por meio de brincadeiras e canções com gestos que envolvam
movimentos ordenados das mãos e dos dedos, brincadeiras com
fios, produção de tranças e nós, além do tricô de dedo.

120
No meu segundo encontro com os alunos, reto-
mei a história de Annabelle, contando-a oralmente
com a ajuda das crianças. Eu me surpreendi como
elas se lembravam não só do enredo, mas também de
falas específicas e dos nomes das personagens. A con-
tação da história no início da oficina foi novamente
um momento de conexão e preparo para as ativida-
des seguintes, como uma respiração mais profunda
antes de um mergulho.
Na turma das crianças menores, demos continui-
dade às atividades da semana anterior, escolhendo
os fios coloridos e fazendo novelos. Apesar de mais
agitados do que os mais velhos, os alunos dessa tur-
ma também se concentraram bastante enquanto en-
rolavam os fios. Alguns tiveram mais dificuldades e
ofereci ajuda dando algumas voltas em seus novelos
e depois retomando o meu trabalho. Apesar de sem-
pre atenta ao trabalho das crianças, achei importan-
te ir conduzindo o meu próprio trabalho, para mos-
trar não só a técnica, mas também e especialmente a
concentração, a persistência e as possibilidades que
o fazer trazia.
Com as duas turmas foi um dia para explorar
trabalhos manuais e histórias por meio da corpora-
lidade. Recorri à brincadeira musical “A história da
serpente”,1 presente em vários lugares do Brasil e
com muitas variações.
A brincadeira começa quando um participante,
que faz o papel da serpente, procura pedaços do seu
rabo. Ele começa a cantar a música, movimentando-
-se pelo espaço, e chama os outros participantes um a
um para formar uma fila atrás de si, configurando o
rabo da serpente. Cada novo convidado tem que pas-
sar por baixo das pernas de quem já está na fila, até
chegar ao seu lugar, no final do “rabão”.

1. A versão adotada foi recolhida na cidade de São Paulo (SP) durante as expedições do Mapa do
Brincar (2011), projeto do jornal Folha de S.Paulo realizado entre 2009 e 2011.

121
O gestual do crochê de dedo
Como as crianças que passam
por baixo das pernas dos colegas
para chegar até o final da fila na
brincadeira da serpente, no crochê
de dedo as pontas dos dedos pole-
gar e indicador passam por dentro
da argola de lã e trazem de lá do ou-
tro lado um pedaço de fio que será
uma nova argola. Forma-se assim
um pedacinho do rabo da serpente.
Depois de várias repetições, forma-
-se uma corrente de crochê, ou, na
imagem que vem da história, um
rabo de serpente.
Depois da brincadeira, cada
criança pegou o novelo que havia
enrolado, e usei as imagens que vie-
ram da história da serpente para ex-
plicar como fazer o crochê de dedo.

Na turma das crianças mais novas, algu-


mas tiveram bastante dificuldade para fazer
o crochê de dedo. Então levei o tricô de dedo
como uma possibilidade. Enquanto fazia a
cabeça da serpente em tricô de dedo, pensei
que também existem imagens da brincadei-
ra da serpente que podem ser exploradas. A
técnica, que tem início com o enrolar do fio
de um lado ao outro entre os dedos de uma
das mãos, pode representar o momento em
que a serpente circula para procurar o peda-
cinho do rabo. Uma parte pode ser adiciona-
Os primeiros cordões
da à narrativa para contextualizar o gestual
foram amarrados a uma
cabeça de serpente em de fazer o pedaço de linha “pular” sobre o
tricô de dedo. outro, de baixo para cima. Imagino então a
serpente subindo em uma árvore...

122
Tranças, contos de fadas e
africanidades
Era uma vez uma garota com longos cabelos trançados
Ela foi presa numa torre pequena e só lhe restava andar
entre os dois lados
Pelo meio de suas coisas, seus cabelos se enroscavam
Mas ela não se preocupou
Os emaranhados, de baixo para cima ela levou
Até que somente quatro restaram
Então ela andou mais uma e outra vez
E uma escada para o príncipe subir ela fez.
(Verso para fazer o tricô de dedo,
elaboração própria)

No planejamento das oficinas, com base nas atividades de in-


trodução aos trabalhos manuais do currículo das escolas Waldorf,
inseri o tricô de dedo como a próxima atividade a ser realizada. Eu
já havia lido anteriormente sobre a possibilidade de ensiná-lo com
um verso relacionado ao conto de fadas “Rapunzel”, também cha-
mado de “A donzela da torre”.
Estudei a versão da história recolhida e publicada por Jacob
e Wilhelm Grimm pela primeira vez em 1812 (TATAR, 2013). Ela
fala sobre uma heroína que, depois de ser entregue pelos pais para
ser criada por uma feiticeira, é presa por ela numa torre para que
viva isolada do mundo, onde mesmo assim acaba conhecendo um
príncipe, por quem se apaixona. Quando descobre essa relação, a
feiticeira manda Rapunzel grávida para um deserto, onde, cheia de
coragem, ela cria os filhos gêmeos e ainda salva da cegueira seu
amado príncipe.

123
Quando trancada numa torre sem escadas nem porta, Rapun-
zel amarrava seus cabelos finos, longos e dourados, presos em tran-
ças, ao trinco da janela e deixava que eles caíssem até o chão. Era
por essas tranças que a feiticeira e, mais tarde, o príncipe conse-
guiam subir até a janela e entrar na torre.
A imagem dos fios de cabelos repre-
sentada por fios de lã pode ser vista, inclu-
sive, em roupas e fantasias infantis, e ainda
em ilustrações, como a de Heinrich Lefler,
feita em 1905 (TATAR, 2013).
Outra referência ao processo de tran-
çar aparece quando Rapunzel decide se
casar com o príncipe e fugir com ele. Nessa
ocasião, a moça lhe pede que traga, em cada
Rapunzel, de Heinrich Lefler (1905). uma de suas visitas, uma meada de seda
com a qual pretende trançar uma escada
para sair da torre. No entanto, isso não acontece, pois a feiticeira
descobre o relacionamento dos dois e enrola os cabelos de Rapun-
zel com a mão esquerda e passa-lhes uma tesoura com a mão direi-
ta, cortando as tranças, mais tarde usadas para enganar o príncipe.
As imagens contidas nesse momento da história podem ser
exploradas para ensinar o método do tricô de dedo, que consiste
em enrolar o fio de um lado ao outro dos dedos de uma mão. Esse
processo transfor-
ma os fios de lã em
um cordão, que,
apesar de se con-
figurar como uma
malha tricotada,
faz referência aos
cabelos de Rapun-
zel ou à escada
que ela pretendia
fazer com as mea-
das de seda.
Esquema do passo a
passo do tricô de dedo
com versos.

124
Enquanto lia e me preparava para contar oralmente a história
da Rapunzel, eu também estudava para oficinas que seriam dadas
em outra ONG para alunos com o mesmo perfil, mas que deveriam
seguir uma temática anual escolhida pelos coordenadores: africa-
nidades. A partir de reflexões sobre o ambiente escolar como
espaço de reprodução da discriminação étnico-racial em nosso
país, comecei a sentir um incômodo em trazer
para a oficina uma história sobre uma garo-
ta com longos cabelos dourados para crianças
em sua maioria negras ou afrodescendentes.
Acabei encontrando várias obras de lite-
ratura infantil com temática africana e afro-
descendente, com histórias e/ou personagens
que refletem a valorização das suas caracte-
rísticas e heranças. Pensando na etapa da intro-
dução aos trabalhos manuais em que estávamos
nas oficinas, escolhi o livro As tranças de Bintou, Ilustração do livro de Shane W.
escrito por Sylviane Anna Diouf (2004) e ilustra- Evans para As tranças de Bintou,
de Sylviane A. Diouf.
do por Shane W. Evans. Na história, a menina
Bintou está insatisfeita com o seu cabelo penteado em birotes e tem
o sonho de ter o cabelo trançado, como as jovens de sua aldeia.

Na oficina seguinte, li o livro mostrando as ilus-


trações, e partimos para o fazer manual. Apesar de
ter planejado inicialmente que nessa etapa das ofi-
cinas eu já ensinaria a técnica do tricô de dedo para
todos os alunos, escolhi que com as crianças meno-
res eu ficaria um pouco mais de tempo nas ativida-
des relacionadas ao ato de enrolar e trançar o fio. A
dificuldade que muitas apresentaram ao fazer o cro-
chê de dedo me fez olhar mais para as crianças e dar
um passo para trás em termos de expectativas que
tinham sido impostas por mim a partir do estudo do
currículo.
Assim, a proposta para essa turma foi fazer cor-
dões com fios torcidos e tranças de três fios, que po-
diam ser usados como pulseiras.

125
No caso dos cordões com
fios torcidos, o trabalho tinha
que ser feito em duplas. Cada
dupla pegava um ou mais peda-
ços de lã, de uma ou mais cores,
e cada criança segurava em uma
das pontas do(s) fio(s). Uma das
crianças segurava o fio, enquan-
to a outra torcia (alternativamente, as duas torciam
para lados opostos), e, quando o fio estava bem tor-
cido, elas juntavam as pontas e o fio se enrolava,
formando um fio torcido que parecia trançado. O nó
que era dado na ponta poderia ser inserido à argola
do trançado na outra extremidade, tornando-se, as-
sim, uma pulseira com fecho.
Depois de fazer uma pulseira, a dupla ainda te-
ria que fazer outra, para a outra criança. Esse traba-
lho coletivo funcionou muito bem, com as crianças
se organizando entre si para ninguém ficar sem sua
pulseira. Algumas fizeram muitas pulseiras e torno-
zeleiras para si e para presentear familiares ou ami-
gos. O que mais me impressionou é que, sempre que
alguém estava sozinho com a lã, aparecia um compa-
nheiro para ajudar a fazer o cordão.
Ensinei algumas a fazer tranças de três fios,
como as tranças de cabelo. Muitas não sabiam e algu-
mas tiveram dificuldade e voltaram a fazer o cordão
torcido. Quando o tempo da oficina acabou, nova-
mente elas pediram para levar um pouco de lã para
casa para continuar produzindo, tamanha era a von-
tade que havia sido criada ali.

Com as crianças maiores, me senti segura para ensinar o tricô


de dedo. Como alternativa para a história da Rapunzel dos irmãos
Grimm, encontrei o livro Rapunzel e o Quibungo, com adaptação
de Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho (2012) e ilustração
de Walter Lara, no qual a história da Rapunzel é recontada em um
contexto brasileiro, na Bahia. Rapunzel é uma menina negra que

126
nasce com cabelos que não param de crescer. Na história, a feiticei-
ra é substituída pelo Quibungo, uma espécie de bicho-papão conhe-
cido pela cultura local. Enquanto a menina brincava na Lagoa do
Abaeté, foi raptada pelo Quibungo e presa em uma torre de bambu
no alto de uma castanheira. O príncipe da história é o guerreiro
negro Dakarai, que chega na companhia de seu cachorro.

Perguntei se todos conheciam


a história da Rapunzel e a respos-
ta foi afirmativa. As crianças ou-
viram atentas a leitura do livro,
enquanto observavam as imagens.
O Quibungo causou várias expres-
sões de surpresa e medo. Depois,
cada uma pegou o seu novelo de lã
que havia sido enrolado na primei-
ra oficina, cada um de uma cor, e
Ilustração de Walter Lara para o livro
segui ensinando a fazer o tricô de Rapunzel e o Quibungo, de Cristina
dedo com os versos que criei. Agostinho e Ronaldo Simões Coelho.

Logo na primeira parte, no momento em que


havia “Era uma vez uma garota com longos cabelos
dourados [...]”, uma criança disse “ou pretos” e ou-
tra “ou azuis”, ou seja, a cor do seu novelo. Hoje, a
palavra “dourados” foi substituída por “trançados”,
acolhendo assim todas as cores possíveis.
Quando os cordões começaram a surgir no dor-
so das mãos, foi uma alegria geral. Uma das crianças
sugeriu fazer uma corda de pular com aqueles cor-
dões, e que consiste num dos usos muito comuns do
tricô de dedo nos jardins de infância Waldorf. Eu fui
à oficina usando um colar feito com a técnica, que
muitas viram e também quiseram fazer. Outras pro-
puseram usar como faixas de cabelo.

Retomando a história da Rapunzel, sugeri que com três ou


mais cordões bem compridos seria possível produzir uma longa
trança, enquanto um só cordão poderia ser usado como rédeas do
cavalo do príncipe.

127
Tivemos duas oficinas para trabalhar o tricô de
dedo, com uma semana de pausa entre uma e outra, o
que foi bom para podermos aproveitar melhor o que
esse fazer tem a oferecer. No final, todas as crianças da
turma dos mais velhos conseguiram fazer os cordões e
produzir vários objetos.

A concentração dos alunos durante a


última oficina foi muito marcante. Em alguns momen-
tos, repetíamos os versos para nos apropriarmos mais
ainda do fazer. Uma das alunas, que tinha demorado
um pouco para pegar o jeito da técnica e que estava
sempre muito distraída e conversando, conseguiu fi-
nalizar um colar bem comprido e disse que suas mãos
tinham sido “educadas”. Penso hoje quanta coisa cabe
nessa “educação” das mãos e quanto nossas mãos, na
verdade, nos educam.
Na última oficina, levei as agulhas de tricô com
um trabalho em andamento e os bonecos de mesa das
personagens da versão dos irmãos Grimm da história
da Rapunzel. O tricô de duas agulhas seria o encami-
nhamento sugerido pelo currículo de trabalhos ma-
nuais da Pedagogia Waldorf, se inserido no contexto
educacional formal. Para que isso fosse possível no
contexto do contraturno escolar, seria necessário ga-
rantir a continuidade e a frequência das oficinas, o
que acabou não sendo possível. De qualquer forma, o
contato com o tricô de duas agulhas foi interessante,
principalmente com a manipulação dos bonecos, que
trouxeram a visualização de possibilidades da mate-
rialidade das histórias por meio do fazer manual.

No caso de haver um encaminhamento futuro,


as imagens trazidas pelas histórias podem levar à
produção de quadrados de tricô feitos com duas agu-
lhas, que, com a ajuda da professora ou do professor,
podem se transformar em corpos de bonecos das
personagens do conto: pai, mãe, feiticeira, Rapunzel,
príncipe e gêmeos.

128
O que acontece nas frestas
Ao acompanhar essas oficinas em um contraturno escolar,
apareceram pistas acerca da contribuição das histórias para a ex-
perimentação e o processo do fazer manual, como a criação de sig-
nificado, o fortalecimento das forças da vontade e o germinar das
relações.
A escolha das histórias usadas como fios que costuraram e en-
volveram as aulas de introdução aos trabalhos manuais se apoiou
na minha vivência pessoal, nas diversas abordagens de narrativas
disponíveis para o trabalho com crianças, no conteúdo abordado
nas oficinas e nas crianças.
Mais importante que as habilidades físico-motoras e utilitárias
produzidas nessas oficinas, as experiências pessoais que possibili-
taram a produção de si junto da criação de significado e o entusias-
mo proveniente do fortalecimento das forças da vontade foram os
verdadeiros ganhos, juntamente com as relações e os aprendizados
que elas carregam.
A produção de mim mesma como educadora é outro ponto
que apareceu durante o processo. O contraste entre o planejado, o
possível e o executado me trouxe uma confiança de que o trabalho
com educação é produzido nos entremeios e nas frestas, que
guardam o componente mais sagrado de cada aula ou oficina.
O desprendimento da rigidez do planejamento, as potências da ob-
servação do outro e de si mesmo, as possibilidades de adequação
durante o trajeto e o foco no fazer, mais do que no produzir, me
ensinaram muito sobre a educação e a vida. E esse fio continuará
sendo fiado, pois, como na história de Annabelle, no percurso
de quem vive, ensina e aprende, ele não acaba nunca.

129
As manualidades nos contam histórias muito antigas sobre
As histórias e o fazer manual no processo vivo com as crianças
a força de vontade de um ser humano inventivo, ativo e criativo,
que brinca com a vida interior e exterior por meio da imaginação,
descobrindo a si próprio.
O trabalho da Janice trata da experimentação destas duas
ferramentas: as histórias e o fazer manual no processo vivo com
as crianças. Ela nos convida a participar da vivência prática de
sua oficina desde a construção até o fechamento, nos tornando
cúmplices de seu olhar.
Janice nos faz percorrer as atividades, com descrições, fotos,
histórias e canções; divide conosco essa alegria de ser e de se estar
com crianças.
Com isso, ela prepara o ambiente para introduzir a tarefa a que
se propõe:
proporcionar a integração das crianças com as histórias,
brincadeiras e contos, alinhavados com as próprias mãos na criação
do tricô e do crochê de dedos. É sem dúvida um recurso pedagógico
precioso, nestes tempos em que muitas crianças nunca viram um
novelo de lã e tampouco podem apreciar histórias contadas por
um adulto... Mesmo que a autora esteja num contexto de educação
não formal, as crianças conseguem vivenciar todas as etapas do
processo, desde conhecer a lã, esguedelhar, cardar, fiar e significar
esse fio ao construir um brinquedo e dar-lhe utilidade, valor e afeto.
Janice descreve um ambiente acolhedor e divertido para o
desafio da aprendizagem, abrindo novas possibilidades no contexto
da educação não formal, que potencializa nas crianças a imaginação
e permeia de afetos seus sonhos e memórias, dando maior sentido a si
próprias. Todo trabalho é fundamentado no currículo dos trabalhos
manuais da Pedagogia Waldorf, baseando-se no desenvolvimento
infantil e suas etapas.
Nesse tecido-texto as relações, Janice prioriza o vínculo, e não
um mero transmitir de técnicas, revitalizando a vontade e o prazer
da descoberta de novos gestos plenos de sentido. Fala-nos da sua
alegria em criar, entrelaçando histórias, imagens e brincadeiras a
um fazer manual de corpo inteiro.

Deidmar Batista Porto


Especialista em Artes-manuais
para Educação (Facon)

130
Agradeço seu convite para apreciar seu trabalho, con-

Rio de Janeiro, 2 de agosto de 2019.


Cara Janice,
tribuindo para ampliar as discussões entorno do texto e do
têxtil, arte do fio e arte da palavra, tão caras para mim. Me
faço presente por meio desta carta, que envio com afeto e
cumplicidade na busca pelo caminho do “vice-versa”.
Assim como Annabelle, gostei de descobrir as relações
entre o fio e a palavra. A principal relação no seu trabalho,
relatando o enredo de um conjunto de oficinas de trabalhos
manuais associados à narrativa, foi a intenção do movi-
mento, o vai e vem, o fazer e o desfazer. O movimento das
mãos em criação e autocriação criam o movimento de um
modo de pensar em vice-versa. Na qualidade de “vice-ver-
sa”, quando o início e o fim se encontram em uma trama
arrematada e é possível ler avesso e direito, o fio é sem fim.
Para mim, o fio pode ser sem fim, pois o presente do
trabalho de fazer e repetir convoca a presença de um pre-
sente-eterno – a eternidade presentificada. Como propõe
Santo Agostinho em Confissões IX, podemos pensar que
são eternas em seu coração as experiências de sua infância
ao ouvir o tio contar versando? E quando lembradas são
presentificadas? Eu acredito que sim.
A menina que escutou histórias, que acompanhou ro-
das de confecções de beleza em fios maravilhosos ao se tor-
nar adulta, leva com leveza o que já está internalizado – o
fazer associado à dimensão temporal e narrativa. Você diz
que ao propor uma atividade com lã natural propõe tam-
bém, nas “entrelinhas”, nas frestas da educação, “a espera
[...] a atenção, a disponibilidade para ajudar [...], a vontade
de dividir a escolha das cores e as potências que o trabalho
está trazendo [...]” e ainda: “o vínculo que estávamos co-
meçando a estabelecer, a vontade de experimentar novos
gestos, a relação do ser humano com o material natural
e a descoberta do potencial produtivo que todas as mãos
carregam”.
Toda mão sabe produzir, algumas vezes precisa ser
acordada. Uma aluna te deu uma boa pista dizendo que
suas mãos tinham sido “educadas”. E você acrescenta
“Penso hoje quanta coisa cabe nessa ‘educação’ das mãos e

131
quanto nossas mãos, na verdade, nos educam”. Olha aí o vice-versa!
Você entrou nesse modo de pensar. Por ser flexível, ele é também um
modo libertador, não acha?
E se trocássemos a palavra de sua aluna: “educadas” por “acor-
dadas”, teríamos um conto de fadas para elucidar essa troca. A Bela
Adormecida já nasce com o presságio de que espetará o dedo em uma
roca de fiar. No entanto, ao furar o dedo, sabemos que ela adormece e
quando adormece acorda para tantas outras coisas. No texto: “Uma
nota sobre o acordar das mãos”, escrevi um pouco mais sobre isso,
talvez você tenha prazer com essa leitura.
Fiquei pensando em cada um dos itens que você indica na lista
de coisas que as crianças e também o educador aprendem na prática
manual têxtil e no contato com as narrativas. Relatos significativos
que te fizeram dar nome a aprendizagem. Por exemplo, como você
chegou a saber que os alunos aprendem a esperar? Sei que você sou-
be sobre o vínculo quando uma menina se deitou em seu colo para ou-
vir a leitura do livro ilustrado. E tanto mais poderia ter sido contado.
Gosto quando você usa: “germinar das relações”, fiquei curiosa
em saber mais sobre esse termo, é seu? É uma construção poética que
traz uma ação de construção de imagem... quase como os versos que
ensinam a tricotar. Não acha?
Concluo agradecendo mais uma vez o convite e lamento por en-
contrá-la pessoalmente, o que possibilitaria estabelecer um diálogo e
reforçar a troca e o encontro, que são para mim o principal recurso
da aprendizagem. E como você diz: “a confiança de que o trabalho
com educação é produzido nos entremeios...”. Espero que nos entre-
meios do meu texto/carta você se reconheça em seus processos como
professora-artista e buscadora de fios sem fim.

Com afeto,

Marcela Carvalho
Mestre em Literatura (PUC-Rio)

132
Rosana

ROSANA
LANCE
SALOIO
133
Escrita do silêncio:
No início, apenas um pedaço de papel, mas, ao explorar
outras possibilidades, o mesmo se tornou outro.
Muitas possibilidades de um mesmo.
Um mesmo e muitos sons…
Um silenciar a si, uma escuta do outro, um todo, muitas
partes...
Coração pulsando na palma das mãos, conexão.
Pessoas, espaços, "com_passos "
Um caminhar no parque;
Domingo de manhã ensolarado
Mês de Março.
Pulsação
Vozes a ecoar...

É mais fácil habitar o que é quadrado.


Ao tentar colocar sentido no quadrado, mudei o ponto e fui
experimentar aleatoriamente o ponto baixo e o ponto alto
no tricô, sem uma sequência. Errei um ponto e coloquei um
a mais... deu vontade de sair do quadra-
do da forma de pensar que aprisiona.
O quadrado não é a forma de uma peça
feita e, sim, a forma mecânica de fazer e
de pensar. O que é repetido pelas mãos
de forma automática é um quadrado
e nele o corpo enrijece e endurece.
Fui tentar sair do meu quadrado e arris-
quei fazer um bordado no pano quadra-
do... fui bordando algo circular e depois
saíram formas mais retas. Quando per-
cebi o que estava fazendo sem ter em
mente uma forma definida, me vi ali...
era um coelho e me sinto como um que-
rendo sair da toca...

134
Ensinar com
vida e arte
Experiências em trabalhos
manuais em uma
escola Waldorf

Para elaborar as aulas de trabalhos manuais como


professora de Artes em uma escola Waldorf da região da Grande
São Paulo, foi importante aprofundar os estudos antropológicos e
antroposóficos para conhecer melhor o ser humano, o desenvol-
vimento dos sentidos e alinhavar esses estudos com a faixa etária
e o ano escolar dos alunos. Dessa forma, buscava entender cada
fase do desenvolvimento da criança e saber os alimentos e estímu-
los mais indicados de acordo com a faixa etária, sendo importante
aliar a eles a própria vivacidade como professora e assim alimentar
a vivacidade da criança (STEINER, 2012, p. 123).
Neste texto, o registro e a escrita sobre trabalhos manu-
ais referem-se às próprias vivências da autora no atuar como
professora, contemplando o pesquisar, o elaborar, o construir
histórias e o lecionar, bem como o anotar as observações de
como foram essas aulas.
Esta escrita não tem a intenção de sistematizar, mas visa
dar sentido à descrição inicial como uma ciência viva da arte
da vida. É dela que se parte e é para ela que se retorna.
Na vivência do fazer, vários sentidos estão alinhavados com
as vivências que podem ser adquiridas por meio dos sentidos e de
seus fios de ligação com o âmbito corporal, despertando qualidades
anímicas que, embora não sejam perceptíveis, são de grande im-
portância no desenvolvimento dos sentidos.

135
Imagem, história e movimento
As narrativas podem ajudar muito a
trazer imagens ricas em fantasia, sendo ne-
cessário partir do todo: a floresta, as árvores,
montanhas, pastos, ovelhas... e trazer a luz
da fantasia para o ambiente onde crescem.
Se essa elaboração for feita pelo próprio pro-
fessor de forma viva, a criança ficará mais
estimulada pela história. Conforme Susan
Perrow, nos programas escolares, a contação
de histórias pode ajudar a aumentar e forta-
lecer a concentração das crianças e também
estimular sua imaginação. Além disso, “[...]
como uma elaboradora de história, penso em mim como uma das tece-
lãs da ‘rede mundial de histórias’” (2016, p. 67, 103).
Para elaborar as histórias, o professor pode recorrer à natu-
reza sem separar o ser humano do meio ambiente, considerando a
sua ligação e sentindo-se uno com ela (STEINER, 2016, p. 107). Tudo
o que for contado ou narrado deve estar relacionado com a vida,
ser verdadeiro para o professor, estar relacionado com a realidade
(STEINER, 2017, p.125).

Antes de escrever ou contar uma história para as crianças,


o contador precisa saber o que ele acredita. Conforme você
conta uma história, uma criança irá sutilmente sentir se
você próprio está realmente “dentro” e “por trás” dela, ou
está apenas “inventando algo” com o qual você não está
totalmente conectado. (PERROW, 2016, p. 116)

A narrativa é um meio de transformar: a criança se vê em


um espelho e, quando retorna, torna-se outra. A história pode
ser fragmentada, não precisa ser contada em um único dia; no
dia seguinte, após fazer com a turma uma retrospectiva do que
foi narrado no dia anterior, o professor solicita às crianças que
desenhem. Somente depois desse processo, ele apresenta os mate-
riais que serão utilizados nas aulas de trabalhos manuais.

136
Materiais
Os materiais escolhidos devem ter relação com a natureza e
podem ser introduzidos nas narrativas para estimular a fantasia,
de modo que a criança vivencie, na natureza, o ambiente onde eles
crescem – como as árvores e animais.

Há uma grande diferença entre uma imagem literária que


descreve uma beleza já realizada, uma beleza que encon-
trou sua plena forma, e uma imagem literária que trabalha
no mistério da matéria e quer mais sugerir do que descre-
ver [...] a beleza íntima das matérias. (BACHELARD, 2016,
p.6-7)

É fundamental que o material a ser trabalhado esteja rela-


cionado com a vida e que a criança possa ter acesso as forças que
o constituem, dessa forma o aluno pode viver o que lhe pertence,
consegue enraizar-se e religar-se com a vida que o circunda.

Trabalhos manuais no Ensino


Fundamental de uma escola
Waldorf
Em todas as aulas de trabalhos manuais que lecionei, do 2° ao
6° ano do Ensino Fundamental de uma escola Waldorf, abria as au-
las recitando este poema com as turmas.

Mãos que atuam e fazem o bem,


Mãos que trabalham e não se detêm,
Mãos que amorosas aos fracos amparam,
Mãos que rezam e sempre rezaram,
Mãos que se elevam num gesto profundo,
É destas mãos que precisa o mundo.

137
2° ano
Após adquirir mais segurança com o trabalho de tricô (feito no
1º ano), as crianças aprendem o trabalho manual em crochê. O cro-
chê requer mais atenção para fazer e procurar cada ponto, além de
ajudar a criança a começar definir sua lateralidade (FEDERAÇÃO,
1999, p. 73).
No alinhamento com a professora de classe1, ao apresentar a
proposta do trabalho manual, foi informado que, nas aulas princi-
pais do 2º ano, havia histórias com anões. Com essa informação,
foi necessário buscar interiormente algo que tivesse vida e pudesse
compor com o dia a dia das crianças; e foi da natureza que veio a
inspiração para a narrativa.
Para ajudar a desenvolver os sentidos
nas crianças por meio da fantasia, das ima-
gens e dos materiais, foi pensado na utili-
zação dos dez dedos da mão para iniciar o
crochê de dedo: cada dedo recebeu um nome
e responsabilidade. O fio escolhido para in-
troduzir esse trabalho foi o sisal, um fio mais
grosso e rústico para ajudar as crianças a
treinarem os movimentos e se apropriarem
deles, de forma que depois pudessem adotar
o barbante e a agulha de crochê com os mes-
mos personagens. Com essa intenção, a histó-
ria foi elaborada.

Os dez anões – História e narrativa para introdu-


zir o trabalho em crochê
Em uma floresta encantada, cheia de plantas, flores
e animais, viviam dez anões. Todos os dias eles acorda-
vam bem cedo antes de o sol nascer. Pegavam seus sacos,
colocavam nas costas e seguiam o caminho que levava
às margens do rio. Sempre bem alegres e saltitando, can-

1. Na Pedagogia Waldorf, a professora ou professor de classe é a figura central que acompanha toda
manhã, durante oito anos, a mesma turma.

138
tavam uma canção: “Manhã já vem, a luz também, seja
bem-vindo, Sol Astro Rei”.
Assim, chegavam às margens do rio para pescar o
alimento do dia. Como eram muito unidos e trabalhado-
res, todos ajudavam a preparar a vara para pescar. O me-
nor deles, que era muito esperto, logo levantava o fio para
os anões ajudantes ajudarem o anão laçador a fazer o nó
na vara. Todos ficavam em silêncio aguardando o anão
laçador indicar onde havia peixe. Quando ele mostrava
o lugar, ia na frente e logo o anão mais forte ajudava a
pescar e colocar no saquinho, assim pegavam os peixes e
colocavam no saquinho. Pescavam o suficiente para o ali-
mento do dia, agradeciam o rio pelos belos peixes e volta-
vam alegremente para casa cantando a canção: “Manhã
já vem, a luz também, seja bem-vindo, Sol Astro Rei”.
A canção se repetia três vezes.

Para as crianças do 2º ano explorarem os dez dedos, treinarem


e se apropriarem do movimento do crochê, fizemos um móbile de
peixes com crochê de dedo: fios de sisal, bastidor de madeira ou
argola e barbante colorido.

3° ano
A criança agora passa a olhar mais para o mundo e começa
a despertar a sensação do eu. Começa a fazer distinções entre o
mundo interior e o exterior e aprende muito sobre as conquistas do
homem. As profissões são um dos temas mais trabalhados na es-
cola nesse período (FEDERAÇÃO, 1999, p. 35, 36). Pensando nessas
conquistas culturais do homem, foi apresentada e alinhada com a
professora de classe a intenção de fazer sapatos de tricô (idem, p.
73) com a proposta de produzir o próprio vestuário. A professora de
classe mencionou que a sala se identificava muito com os anões e
que seria interessante introduzi-los na história a ser criada, pois ela
utilizava, nas aulas principais para ensinar as matérias, histórias
relacionadas aos anões. Com base nessa informação, elaborou-se

139
uma narrativa pensando em sapatos de anões
bem coloridos.
A primeira aula foi iniciada com o poema das
mãos, seguida da narrativa da história elaborada
especialmente para essa sala, “O anão dos sapatos
de tricô”.

O anão dos sapatos de tricô – História e narrativa


relacionada à profissão e ao vestuário
Numa floresta encantada, o sol começava a surgir.
Seus raios dourados iluminavam a copa das árvores, to-
das as plantas e flores. Os pássaros cantavam anunciando
o belo dia.
Naquela floresta, além dos animais, pássaros e in-
setos, moravam vários anões. Eles eram responsáveis
por fazer todas as raízes crescerem com as mais diversas
formas. Os anões adoravam falar como era o formato da
raiz, como também o tamanho delas.
Certo dia, um anão muito distraído admirava uma
flor e não percebeu que estava bem longe da sua casa de
pedras, que ficava lá no meio da floresta. Acabou cami-
nhando até mais perto de uma vila onde viviam muitas
pessoas.
Por estar distraído, ele não notou que havia algumas
crianças por perto. Logo elas o avistaram e foram corren-
do ao seu encontro. O anão levou um grande susto e se es-
condeu rapidamente debaixo da terra, porém na pressa
enroscou os seus sapatos em um arbusto. Quando achou
que as crianças tinham ido embora, ele voltou para pe-
gá-los e percebeu que as crianças estavam ali admirando
seus sapatos feitos de tricô e falando que nunca tinham
visto sapatos tão coloridos e bonitos como aqueles e que
elas também queriam ter sapatos assim tão belos.
Ao perceber o encantamento das crianças pelos seus
sapatos, ele resolveu se aproximar e dizer que aqueles sa-
patos tinham sido feitos por ele e que, se elas realmente

140
tivessem muita vontade de aprender, ele viria algumas
vezes de manhã para ensiná-las a fazer seus próprios sa-
patos de tricô coloridos.
E assim o anão foi observando e recolhendo pelo
caminho muitas sementes, folhas e flores para tingir as
lãs e presentear as crianças.
Alguns dias depois, o anão apareceu com uma gran-
de cesta de vime cheia de lãs das mais variadas cores.
Cada criança escolheu as cores de que mais gostavam e
atentamente observaram o anão tricotar um quadrado
colorido. Desde aquele dia, as crianças aguardavam ale-
gremente o dia que encontrariam de novo o anão para
continuar seu quadrado de tricô e os sapatos de lã.

Na primeira aula, depois de ouvir essa história, as crianças fi-


zeram um desenho. No dia seguinte, a professora comentou que
alguém havia deixado uma surpresa para as crianças...
Então foi apresentada uma cesta de vime coberta por um pano,
o que criou entusiasmo e expectativa. Ao descobrir, dentro da cesta,
várias meadas coloridas, logo adivinharam quem deixara a cesta:
o anão do sapato de tricô! E então, em duplas, fizeram novelinhos
durante duas aulas.
Apenas na quarta aula começaram a fazer os quadradinhos
de tricô.

4° ano
Após as crianças conhecerem com a professora de classe o traba-
lho de alguns artesãos e suas relações práticas com a vida, os alunos
aprendem a costurar de forma mais consciente – cada ponto e ma-
terial recebe o nome adequado e sua função. Nesse ano, o trabalho a
ser introduzido é o ponto cruz, que, além de reforçar a capacidade
de concentração, constitui para a criança um sinal de proteção para
a vida que se segue. Nessa fase, a criança abandona sua primeira
infância, passando a observar o mundo com a consciência do seu Eu,
que fica cada vez mais desperto (FEDERAÇÃO, 1999, p. 81, 82, 128).

141
Pensando na mitologia nórdica que faz parte do currículo do
4º ano, a história “Homens guerreiros” foi elaborada para trazer
essa força e significado ao trabalho do ponto cruz.

Homens guerreiros – História e narrativa relacio-


nada ao ponto cruz
Em uma terra muito gelada e distante, cercada por
águas frias e profundas, existiam homens guerreiros que
tinham uma grande influência dos deuses e se sentiam
com isso muito fortes e protegidos para lutar contra qual-
quer ameaça ou invasão. Vestiam uma armadura e em-
punhavam seu escudo e sua espada sempre que se sen-
tiam ameaçados ou quando precisavam defender suas
terras. A armadura que ficava no peito era de tiras largas
e fortes, que se cruzavam ao centro do peito, formando
um grande X.
Como eram grandes guerreiros, sentiam que havia
chegado o momento de adentrar as águas profundas, de
desbravar novas terras. E assim, revestidos de muita for-
ça e coragem, vestindo sua armadura, com o escudo e a
espada nas mãos, pegaram seus veleiros e adentraram as
águas profundas, agradecendo aos deuses por tudo o que
haviam recebido. E nesse gesto de cruzar os braços para
segurar o escudo e a espada, sentiam-se protegidos para
enfrentar qualquer desafio.
Ainda hoje podemos ver que, ao longo da história,
esses bravos guerreiros levam em sua bandeira o sinal
da cruz.

Como foi feito nas turmas dos outros anos, após ouvir a narra-
tiva os alunos fizeram um desenho.
Na segunda aula de trabalhos manuais, após o verso e a re-
trospectiva, foi mostrado um ritmo para aprenderem como falar
e fazer com o corpo o movimento da cruz; depois foi solicitado
aos alunos que repetissem junto com a professora. À medida que

142
era dito “esquerda em baixo”, as crianças afastavam o pé esquer-
do, e no “direita em cima”, levantavam e abriam o braço direito
na mesma direção do pé, e com o “esquerda
em cima” levantavam e abriam o outro bra-
ço, e por último, na parte “direita embaixo”,
afastavam o pé direito no chão, formando um
grande X. Logo uma criança comenta que era
igual à roupa dos guerreiros, evidenciando a
atuação e internalização da história.
As crianças foram organizadas em fila
para irem para a frente da sala de aula e conti-
nuarem ali em fila. O primeiro era quem passava o cordão no corpo
dos amigos, que ficavam em posição e postura de X, com braços e
pernas abertos. Assim, quando chegava no último da fila, o caminho
era feito de volta. Essa sequência foi repetida por mais duas aulas, e
assim todos puderam vivenciar a experiência e internalizar mais um
pouco os movimentos e a sequência por meio da fala e dos movimen-
tos com o corpo.

Esquerda em baixo
Direita em cima
Esquerda em cima
Direita em baixo

As crianças receberam um quadrado de papel com furos e


fios de algodão coloridos para fazerem os primeiros movimen-
tos, repetindo o ritmo proposto pelos versos sempre que se con-
fundiam. Cada linha foi feita com uma cor, para que pudessem
entender como trocar no meio do trabalho
e fazer os ajustes no verso, para esconder os
fios soltos.
Após conseguirem assimilar o gesto e
o movimento, receberam um quadrado pe-
queno de talagarça e a lã escolhida para o
primeiro trabalho em ponto cruz, que podia
virar um bolso ou um porta-agulhas, para
depois disso fazer um trabalho maior.

143
5° ano
Um dos temas abordados neste ano é a Grécia Antiga. Pensan-
do no trabalho indicado para essa fase, quando a criança anda e
aprende com seus passos, um grande desafio para as crianças é
fazer uma meia com cinco agulhas de tricô ou luvas. O objeti-
vo é preparar duas peças idênticas utilizando cinco agulhas de
tricô e ajudar o aluno a desenvolver a persistência para conse-
guir fazer o próprio vestuário (FEDERAÇÃO, 1999, p. 128). Foi com
a intenção de trabalhar esse desafio que a história foi elaborada e
narrada. A escolha foi uma história que fala o quantos os pés dão
o sentido dos passos individuais a serem percorridos por cada um,
aquecendo-os e evidenciando que é necessário ter passos firmes e
fortes, onde o caminho se faz ao caminhar.

Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais,


caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar.
(Cantares, Antonio Machado)

Como a meia de cinco agulhas muitas


vezes parece um labirinto, foi apresentada
a proposta de fazer uma narrativa com
base na história de Teseu e o Minotauro,
sem dar nomes aos lugares e personagens
a fim de estimular a fantasia dos alunos.
Somente no fim da aula, após entregarem
os desenhos, a história foi novamente nar-
rada, agora com o nome dos personagens e lugares do mito.

O labirinto – História e narrativa relacionada à


meia feita com cinco agulhas
Em uma terra antiga e distante, dividida pelo me-
nos em cinco partes e banhada por um mar de águas
quentes, vivia um grande herói que conquistou várias
batalhas. E foi uma dessas grandes batalhas a sua maior
conquista.

144
Ele se sentiu chamado a percorrer um caminho di-
ferente e batalhar com qualquer coisa que aparecesse.
Chegando nesse lugar, uma moça, ao ver aquele rapaz
bonito e forte, logo se apaixonou por ele e resolveu aju-
dá-lo, pois sabia que sem sua ajuda ele não conseguiria
encontrar o caminho de volta.
Assim, o grande herói recebeu das mãos da deli-
cada moça um novelo de lã. Ela ficou na entrada des-
se lugar escuro, segurando a ponta do fio e aos poucos
foi desenrolando o novelo para seu amado percorrer os
vários caminhos escuros. Nesse caminho, ele encontrou
um grande obstáculo, mas com muita força e coragem
conseguiu vencer seu inimigo.
Após essa vitória, o herói precisou percorrer o ca-
minho de volta, marcado pelo fio, que estava seguro nas
mãos da amorosa donzela.

Teseu e o Minotauro – História e narrativa rela-


cionada à meia feita com cinco agulhas
Na Grécia antiga, dividida pelo menos em cin-
co partes e banhada pelo mar mediterrâneo com suas
águas quentes. Lá vivia um grande herói chamado Te-
seu que conquistou várias batalhas. E foi uma dessas
grandes batalhas a sua maior conquista.
Teseu se sentiu chamado a percorrer um caminho
diferente e batalhar com qualquer coisa que aparecesse.
Chegando a esse lugar, na cidade de Creta, uma moça
chamada Ariadne, ao ver aquele rapaz bonito e forte,
logo se apaixonou por ele e resolveu ajudá-lo, pois sabia
que sem sua ajuda ele não conseguiria encontrar o ca-
minho de volta.
Assim, o grande herói Teseu recebeu das mãos da
delicada moça Ariadne um novelo de lã. Ela ficou na
entrada desse lugar escuro, segurando a ponta do fio e
aos poucos foi desenrolando o novelo para seu amado
percorrer os vários caminhos escuros. Nesse caminho,
Teseu encontrou um grande obstáculo, um monstro com

145
corpo de homem e cabeça de touro, mas com muita for-
ça e coragem conseguiu vencer seu inimigo.
Após essa vitória, o herói Teseu precisou percorrer
o caminho de volta, marcado pelo fio, que estava seguro
nas mãos da amorosa donzela chamada Ariadne.

A primeira aula foi iniciada com o verso e depois com a histó-


ria “O labirinto”.
No dia seguinte, após o verso e a retrospectiva, os alunos fo-
ram levados ao pátio para fazer uma vivência com bastões. Foram
separados em quatro grupos, e em cada grupo um aluno fazia o
papel de Teseu, outro da Ariadne e os demais, as paredes do labirin-
to. Teseu deveria passar desenrolando o fio vermelho (que estava
sendo segurado pelas mãos de Ariadne, do lado de fora): ora ele
passava atrás de um aluno, ora pela frente e, quando chegava no
último, Teseu fazia o caminho de volta.
Como no ano anterior os alunos trabalharam com o ponto
cruz, alguns esqueceram como fazer a laçada do tricô e para ajudá-
-los a lembrar foram cortados vários pedaços de fio vermelho e na
frente da sala de aula foi mostrado como fazer. Depois foi mostra-
do diante de cada fileira, até que todos pudessem fazer sozinhos
o primeiro passo do tricô. Após avaliar quem sabia, foi indicado
que esses alunos ajudassem os amigos da fileira que precisassem de
apoio. O professor de classe também ajudou os alunos a lembrar.
Na terceira aula, após verso e retrospectiva, foram entregues
os materiais para cada aluno e, com a ajuda da professora de classe,
os novelos foram colocados em uma cesta. Os alunos, então, esco-
lheram a lã para iniciar o trabalho.
Nesse mesmo dia, foi ensinado aos alunos
como iniciar os primeiros pontos na primeira agu-
lha e, de acordo com o tamanho do ponto do aluno,
foi sendo solicitado que aumentasse ou diminuísse
pontos na mesma agulha, pois a meia deveria caber
no seu próprio pé.

146
6° ano
No 6º ano do Ensino Fundamental Waldorf, a criança está
aprendendo a usar seu corpo, adaptando-se ao mundo exterior.
Nessa fase, a criança passa por dentro de si mesma, construindo
uma nova relação com o mundo.
Nesse ano, é ensinada a zoologia, onde todo o reino animal
pode ser considerado como sendo um elemento humano estendido
e diversificado sobre toda a Terra, percebendo como é a constitui-
ção de cada um.
Para iniciar a primeira aula, foi considerado que os alunos já
sabiam que, no 6° ano, fariam um bicho e que cada um escolheria o
seu. Pensando nessa ansiedade e inquietação da idade, a narrativa
deu lugar ao desafio de desenhar um animal, iniciando pelo entor-
no do animal sem ter ainda um animal definido.
No 6º ano, a costura manual é intensificada. Sugere-se que,
antes de escolher o tecido, cortar e alinhavar o animal, que as crian-
ças treinem a costura do ponto atrás em um tecido de algodão cru
e façam o desenho do contorno de seu ani-
mal no tecido plano, de acordo com a cor
correta do ser escolhido. Para esse início,
foi usado o bastidor.
A primeira aula foi iniciada com o
verso; depois, para motivá-los, foi lança-
do um desafio para que cada aluno dese-
nhasse um animal que tenha quatro patas
e mamífero. Além do desenho, também
foi solicitada uma pesquisa, com informa-
ções de como cada animal escolhido vive e
das proporções do corpo de cada um. Com
base nessa pesquisa, um novo desenho foi
feito, e a partir de vários ajustes criaram o
molde.

147
A arte-viva-da-vida
Segundo a antroposofia, percebe-se o
quanto é importante conhecer o ser humano
de forma integral para que seja possível educá-
-lo não só trabalhando com a consciência, mas
com o inconsciente. Ensinar não apenas com
o conteúdo, mas repetir com o próprio corpo,
pois é por meio da repetição com sentido que
esse aprender e apreender será absorvido.
Os trabalhos manuais, na visão antropo-
sófica, devem proporcionar habilidades aos
alunos para que eles possam adquirir, nos mais
diferentes e variados sentidos, formas de criar
por si mesmos brinquedos e itens que tenham
significado e utilidade, unindo o lúdico ao artís-
tico (STEINER, 2014, p. 236-237).
Na escrita do texto, ao trazer para o papel
a vivência da sala de aula, pude perceber que
o essencial não é o tempo nem a memória em
si, mas o que se aprende. Assim, a arte-viva-
-da-vida vai colocando o pensamento em mo-
vimento, unindo os fios do pensar e do fazer
à essência do coração, pois tudo o que for en-
sinado à criança deve estar provido de vida e
relacionar-se com vida-viva.
Cada aluno e cada professor pode ser
artífice da sua própria vida, pois a vida não
imita a arte: a arte é a própria vida-viva.

148
Uma alegria conhecer o trabalho da Rosana Lance Sa-

Docente-artífice em devir
loio, que valoriza a vida na educação, a vida nas aulas de
trabalhos manuais. “Ensinar com vida e arte”: a vida antes,
a vida dentro das aulas, pois “todo ensino e toda educação
têm de ser buscadas na vida”, nos diz Rudolf Steiner. Os
trabalhos manuais concretizando o anímico – das crianças
e da professora – por meio do corpo, das mãos a trabalhar.
O anímico alimentado pela fantasia, por imagens que se
tornam reais a quem as vivencia, a quem se entrega a elas.
Ao narrar suas vivências de professora, Rosana nos
revela, enquanto faz esse exercício, um corpo docente intui-
tivo que busca apoio no vir a ser de uma educadora-artífice.
Há um currículo a percorrer, um cronograma de au-
las, mas Rosana se propõe a não esquecer que os traba-
lhos manuais são “criações de vida interior e das mãos”
de quem faz. E que em suas aulas as meias, os bichos, os
móbiles, os porta-agulhas e os sapatos não constituem a
meta, pois vão além de objetivos curriculares.
Nas aulas, para introduzir o processo do trabalho
manual em cada turma, Rosana contou histórias que ela
mesma criou, histórias anímicas que atuam também no fa-
zer com as mãos. As imagens apresentadas por meio de
histórias tornaram-se tão vivas às crianças que em uma
das aulas os anões fizeram-se vivos a ponto de deixar, na
sala de aula, meadas de lã em uma cesta.
Esses anões existem na fantasia das crianças porque
existiram também para Rosana. E a fantasia, como ela lem-
bra, na voz de Steiner, “adentra mais profundamente que o
entendimento”.
Docente-artífice em devir. Um corpo intuitivo, pre-
sente em seu atuar como professora de trabalhos manuais
para crianças. Um corpo que busca na vida, no real, a in-
vestigação e a pesquisa.

Cristina Yamazaki
Mestre em Comunicação Social (USP), especialista
em Educação Inovadora (Instituto Singularidades)

149
Simone

SIMONE
MARIA
DE LIMA
150
Fios, brincadeiras
e poesia
As artes-manuais
na sala de aula da Educação
Básica da Rede Pública

Brincadeiras com fios, músicas tradicionais do universo


infantil e popular, construção de brinquedos, desenhos, histórias
contadas em versos na literatura de cordel... Foi assim que teve iní-
cio esta pesquisa, que teve como objetivo incluir os trabalhos ma-
https://wordart.co
Nuvem de Palavras nuais no currículo de uma turma de trinta crianças de 8 a 9 anos
numa escola da rede pública de Santo André (SP).

Durante um ano e meio, os alunos estavam envolvidos em


pesquisas e atividades sobre temas como origem do povo brasi-
leiro, folclore, influências de outros povos na cultura do Brasil...

151
Enquanto isso, nas aulas de Arte, sempre em roda de
conversa, os alunos faziam comentários sobre as histórias e os
personagens do folclore brasileiro, desenhavam as histórias,
criavam composições em versos sobre algum personagem.

Brincando com nuvens


Numa manhã ensolarada, na sala de aula, momentos antes
de irmos ao parque externo, mostrei às crianças um pouco de lã
de carneiro lavada. A maioria delas nunca tinha visto de perto
nem um carneiro nem a lã natural: foi um alvoroço só!
“Posso ver, professora?”
“Posso tocar?”
“Eu também quero!”
Todas as crianças queriam tocar na lã, então passei um chu-
maço para que elas pudessem tocar, sentir a textura, a maciez, o
cheiro característico, as sujeirinhas impregnadas.
Ao meu lado, um aluno tocava o chumaço de lã e sorria, ape-
sar da baixa visão, de estar sentado em sua cadeira de rodas e de
não conseguir falar devido à sua limitação física.
Muitas crianças ficaram curiosas e preocupadas com o car-
neiro, pensando se ele sentia dor quando tiravam a lã. Então mos-
trei imagens de carneiros e ovelhas, contei sobre a criação desses
animais, o período de tosquia, falei sobre o uso da lã e também
sobre a lã como fonte de renda para muitas famílias e a questão da
sustentabilidade. Elas ficaram mais tranquilas, já que o carneiro
não sentia dor e que a tosa era feita com cuidado para não assus-
tar nem machucar o animal.
Depois mostrei as cardas – na verdade, rasqueadeiras, que
logo muitas crianças identificaram – e como fazer nuvens com
aqueles chumaços de lã. Mostrei também o fuso de madeira e
como fazer um fio de lã com aquelas nuvenzinhas e depois enrolei
um novelo com a lã fiada na frente deles.
Chegou o momento de ir ao parque externo para as crianças
brincarem livremente.
O dia estava com o sol radiante e poucas nuvens, mas na Terra

152
as nuvenzinhas de lã tornaram-se o brin-
quedo e a brincadeira preferida, aguçan-
do os sentidos, a criatividade, as intera-
ções com o outro e com a natureza.

Brincando com cordões


“Se a criança é capaz de se entregar por inteiro ao
mundo ao seu redor em sua brincadeira, então em sua
vida adulta será capaz de se dedicar com confiança
e força a serviço do mundo” (Rudolf Steiner)

O fio, o cordão, é o elo que nos liga ao mundo, ao outro e ao


sagrado. O cordão umbilical visível é cortado após o parto para que
o corpo possa desenvolver-se fisicamente em sua singularidade,
mas o cordão invisível que liga aquele ser à vida e ao sagrado
permanecerá.
Brincar com fios é brincar com a vida, às vezes de maneira
leve, às vezes fazendo ou desatando nós.
Pular corda (individual e coletiva), fazer cama de gato com
as mãos (em dupla) e com o corpo todo (individual), transpondo
barreiras, tais brincadeiras propiciam o desenvolvimento do equi-
líbrio, da lateralidade, da coordenação motora fina e grossa, além
da criatividade e imaginação na criação de inúmeras outras brin-
cadeiras.

Desenho de formas e o uso de


cordões
“Toda linha é um eixo do mundo. Linha reta: lei.
Linha curva: vitória da natureza livre sobre a regra”.
(NOVALIS, apud LAMEIRÃO, 2016, p. 20)

Na natureza, encontramos linhas retas e curvas, e no desen-


volvimento do traçado da criança os exercícios repetitivos de linhas

153
retas e curvas nas mais variadas posições e movimentos conduzem
ao desenvolvimento da escrita, da letra de forma, “bastão”, à letra
cursiva, “de mão”, dando ao traçado da criança sua personalidade –
desenvolvendo a lateralidade, o equilíbrio, a percepção do espaço,
a expressão artística, o raciocínio lógico e a motricidade fina.
A importância das mãos para o trabalho necessário no
mundo.
Linhas desenhadas no ar ou no papel, abstrações do movimen-
to, traçadas de cima para baixo, o fio de ligação da alma com o corpo,
do céu com a Terra, o homem como parte integrante de um todo.
Antes do exercício de desenho de formas, é necessário haver
concentração, respirar leve, relaxar os músculos, manter a coluna
ereta e os pés paralelos no chão.
Na mesa, com o papel na horizontal, uma das mãos segura o
papel para que se mantenha na mesma posição durante o exercício
e a outra mão segura o giz de cera. Observam-se as linhas traçadas
na lousa pela professora e então a criança imita o traçado: primei-
ro usa uma cor clara, depois observa o que fez e aí, então, faz pela
segunda vez esse mesmo traçado com um giz de cera mais escuro
por cima da cor clara. Não há correção, não há certo nem errado, e
sim o que cada ser humano traz dentro de si na sua expressão para
o exterior, por meio de seu traço, sua história, sua singularidade.
A repetição do mesmo desenho de forma se dá pelo menos três
vezes por semana, e a cada exercício de repetição e imitação ocorre
o desenvolvimento do traçado da criança até chegar à escrita, nas
formas geométricas e artísticas.
Nesse percurso, durante todo
o ano escolar, a criança usa o fio, o
cordão, para também exercitar seu
traço de maneira lúdica e artística,
expressando sua criatividade e sua
necessidade para comunicar-se
com o mundo por meio da escrita.

154
Brincando de fazer poesia
No pensar, clareza
No sentir, cordialidade,
No querer, prudência:
Almejando-as
Posso então esperar,
Que eu corretamente
Possa encontrar-me
Nas trilhas da vida
Diante de corações humanos
No âmbito do dever.
Pois clareza provém da luz da alma,
E cordialidade contém o calor do espiritual;
Prudência,
Intensifica a força da vida.
E tudo isso, em confiança em Deus,
Anseia,
Em caminhos humanos
Conduz
A passos bons e seguros na vida.
(STEINER, GA 40, 1919, p. 135)

A poesia está intrinsecamente ligada ao desenvolvimen-


to do ser humano e é na infância – por meio da imitação – que a
criança vai desenvolvendo suas habilidades físicas e anímicas. As-
sim é, também, segundo Aristóteles, que surge a poesia, por meio do
instinto da imitação.
O amor e a admiração da criança por um adulto influenciarão
suas ações no mundo, pois ela imitará os gestos desse adulto e assim
compreenderá o mundo ao seu redor.
A seguir, alguns poemas feitos pelas crianças, em versos livres
e limeriques (poemas com tom de humor, composto por cinco ver-
sos, onde o primeiro, o segundo e o quinto versos rimam entre si, o
terceiro e o quarto versos, mais curtos, rimam entre si). Cada uma
escolheu um personagem do folclore brasileiro para compor suas
primeiras experiências no fazer poemas: um dos fios de sua singu-
lar arte entretecendo com os fios da vida.

155
As artes-manuais na educação
pública
“Um caminho de fuga e resistência aos métodos convencionais
para a sala de aula e nos leva a crer: semente germina a partir
da intenção, do gesto e da vontade para fazer acontecer.”
(Elis Stela Mello de Oliveira, sobre este trabalho)

As artes-manuais nas brincadeiras remetem à expressão mais


pura do ser humano: amar. Por isso, é provável que fazer algo, con-
feccionar um objeto com amor, organize as emoções, os pensamen-
tos e expanda a afetividade nas interações do ser vivente com outros
seres.
Em sua origem, as artes-manuais trazem à tona significados
além do material, por meio de vivências, de experiências singulares
que permeiam os sentidos do ser humano na percepção do mundo
e nos processos de criação que são inerente à sua sobrevivência.

156
O tricô de dedo Aprendendo a
formando um fazer tricô com
cachecol. duas agulhas.

Quadrado de tricô Aprendendo a


feito com hashi usar o tear de
de bambu. papelão.

Larvas de
borboletas
Elementos da na-
confecciona-
tureza numa mesa
das com lãs
de época: galhos
de carneiro e
e frutos secos,
sintética.
folhas verdes e
secas e pedras.

Feltragem a seco
feita pela professora
a partir da larva
confeccionada pelas
crianças.

157
A inserção dos trabalhos manuais no currículo da Pedagogia
Waldorf, no contexto da Educação Básica da rede pública, demons-
trou mudanças significativas nas práticas em sala de aula: propiciou
momentos de criação, apreciação e valorização da cultura brasileira
e de outras culturas, validando a importância do brincar e do brin-
quedo, dos aspectos afetivos, da empatia e da interação com o outro
no desenvolvimento dos trabalhos manuais, no respeito consigo e
com o outro, no despertar de uma consciência crítica do ser singular
e atuante no mundo e na poesia de cada gesto, de cada momento.

Durante um ano e meio, fizemos:


– Leitura e escuta de contos sobre tecer e fiar, contos rítmicos
– Confecção de um canto da Páscoa com elementos da natureza
– Ampliação do repertório dos gêneros textuais fábula, conto e poema
– Brincadeiras e brinquedos com fios/cordões
– Escrita cursiva e desenho com fios
– Desenho de formas
– Diferenças entre lãs de carneiro, lãs de algodão e sintética
– Contato com as lãs de carneiro suja, lavada, cardada
– Conhecimento das cardas para as nuvens de lã
– Brincadeiras com as nuvens de lã de carneiro
– Escolha do novelo de lã individual
– Feitura do novelo em dupla
– Cordão de São Francisco
– Cachecol de dedo
– Quadrados de tricô, usando agulhas feitas de hashi de bambu
– Tear de papelão
– Confecção de brinquedos
– Confecção de bonecos do folclore brasileiro
– Exposição das atividades realizadas
– Vídeo com registro de imagens do processo e da finalização

158
Jandira

JANDIRA
PAES DE
CARVALHO
DE MELO
159
Indo fazer o fio
Fui enrolando no dedo, tentando controlar o movimento da fibra.
Queria um fio contínuo e perfeito, mas não deu. Muitas tentativas
de prender o fio... e nada dava certo.
O fio sintético provocou irritações, testou limites e afetos. Como
cultivar amor? Amor ao diferente, ao desarrumado, enrolado, esqui-
sito? Talvez pela ambiência, lugar de convívio e respeito com outro,
de forma livre. Aqui, cada um pode ser o que é, ser livre.

Ver o quê?
A intenção sustenta o fluxo e inquietações do exercício.
Escolhi o hall e o jardim do meu prédio pra caminhar de olhos
fechados; foi angustiante, pois de olhos fechados não sentia o chão
e dava medo. Fui tateando numa parede até o medo passar. Repeti
o exercício, o coração se aquietou e um estado de atenção se mani-
festou e trouxe aprendizados. O que vi? Vi um espaço se ampliando
diante de mim, vi os coqueiros e vi a luz, a claridade.
O que eu deixei de ver?
Acho que, inicialmente, deixei de ver a liberdade, o meu corpo no
espaço, a vida acontecendo por onde passo todos os dias.
O que eu não vejo quando vejo? Percebi o quanto vou passando
pelas coisas e pessoas sem ver, pois estou mais entretida na ideia
do que vou fazer do que inteira ali vendo o que faço. É estranho e
inquieta meu ser que busca trazer a atenção
para o agora. Abro os olhos. Pareço cega.
Agora vou caminhar no jardim, na grama,
não tenho medo, é confortável.
O que eu vejo quando não vejo? Na experi-
ência de caminhar de olhos fechados na grama,
vejo a tranquilidade, a leveza, o espaço, o chão
que me acolhe com amor.
Com olhos fechados corremos mais riscos,
é preciso ter coragem e ser seu próprio guia e
oferecer oportunidades de cura do medo do
escuro...
É um pulsar no sistema rítmico da Terra.

160
Caderno cartonero
Um espaço potente de
experimentações criativas
com crianças

“não há literatura sem memória.


A pátria de todo escritor é a infância.”
Milton Hatoum

Cadernos: neles eu poderia escrever, além das anotações


das aulas, poemas, pensamentos, palavras soltas, fazer desenhos e
muitos outros experimentos com a escrita.
Como professora, gostava de preparar minhas aulas em ca-
dernos artesanais improvisados. Depois de algum tempo, resolvi
fazer um curso de encadernação para aprender a fazer meus pró-
prios cadernos.

Arte cartonera
O termo cartonero vem de cárton em espanhol, que signifi-
ca papelão. As editoras cartoneras nasceram na Argentina com a
criação da Eloísa Cartonera, por iniciativa do escritor Washington
Cucurto e do artista plástico Javier Barilaro.
Os livros cartoneros são feitos artesanalmente; as capas
são feitas com o papelão de caixas descartáveis, que podem
ser coletadas ou compradas de catadores de papelão. Após se-
rem cortados, são pintados e costurados manualmente.

161
As oficinas – caminhos e
processos de criação
“A experiência é o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.
A cada dia se passam muitas coisas, porém,
ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.”
(LARROSA, 2002)

Alguns anos se passaram, a sala de aula ficou para trás, mas mi-
nha jornada educadora continua em busca de novos conhecimentos
e formas, que transformam e tecem uma rede de experiências com
os fios da generosidade e da ousadia de todos os lugares onde habitei.
Ao voltar a uma escola, foi imediato o encantamento pela
possibilidade de realizar oficinas.
Com esse impulso, tocada pela experiência com as crianças
e com o olhar transformado pelas possibilidades de uso de mate-
riais reaproveitáveis nas oficinas de
A escola onde foram artes-manuais, busco para esse traba-
realizadas as oficinas lho com as crianças uma inspiração no
atende alunos de Ensino pensamento de Hedwig Hauck (apud
Fundamental I e II. De- RITCHER, 1995, p. 343):
senvolve um projeto polí-
tico pedagógico inovador, Crianças que na juventude apren-
aprovado no Conselho deram a fazer coisas artísticas e
Municipal de Educação e úteis com suas mãos, tanto para
desde então passa a fazer os outros como para si próprios e
parte da rede de Escolas de maneira que faça sentido para
transformadoras. O pro- elas, quando adultas não estarão
jeto pedagógico dessa ins- alheias à vida e a outros seres
tituição é um exemplo de humanos. Elas serão capazes de
inovação e criatividade estruturar e enriquecer produtiva-
na Educação Básica, além mente sua existência e sua convi-
de estabelecer um bom vência com os outros de maneira
relacionamento com o en- artística e social.
torno da escola.

162
Preparar as oficinas é como um
rito, que passa por separar as ferra-
mentas, escolher os papéis, às vezes
ao acaso. O dobrar das folhas, uma
a uma, convoca as mãos a estarem
presentes, apenas isso e todos os
gestos potentes das manualidades.
A repetição dos gestos como um
mantra pode levar a uma espécie de
meditação, trazendo a atenção para
todo o corpo, num gesto amoroso
do cuidado de si.
Relato aqui um pouco do que foi a experiência desse processo
que movimenta o pensamento, o corpo e os sentidos, por meio do
fazer com as mãos, que ordena, processa e elabora, na criação dos
cadernos cartoneiros, reaproveitando diferentes materiais e crian-
do possibilidades de expressão.
A vida, como a experiência, é relação com o mundo, com a lin-
guagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com
o que se diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos,
com o que somos e o que fazemos, com o que já estamos deixando
de ser. A vida é a experiência singular de cada um.

O caminho percorrido foi, inicialmente, o de brincar com


os materiais, experimentar formatos do papel até a criação dos ca-
dernos, passando por exercícios usando cores em pedaços de pape-
lão. Todas as atividades exigiam paciência e atenção das crianças.
Como as artes-manuais, neste caso a criação de cadernos, pode
estimular a criatividade e contribuir para o processo de alfabetiza-
ção de alunos do 1º ano do Ensino Fundamental? As oficinas acon-
teceram uma vez por semana em uma das aulas da professora e
contadora de histórias, que leciona no projeto de apoio à alfabeti-
zação. Na escola, as oficinas foram realizadas com crianças do 1º,
divididas em dois subgrupos (chamados de grupo 1 e grupo 2), de
15 e 16 crianças respectivamente.

163
Afinando o olhar de descoberta

O primeiro encontro das crianças com os


cadernos artesanais
O olhar atento de cada criança foi
bem investigativo e de muitas descober-
tas e de curiosidades. Contei um pouco
do curso que faço e de como seriam nos-
sos encontros. Recebi muitos abraços e
olhares curiosos. Eles manusearam e co-
nheceram alguns cadernos. Em seguida,
conversamos sobre a importância do reaproveitamento de mate-
riais, pois as capas dos cadernos são de papelão, inspiradas na arte
cartonera.
Estabelecer uma ponte entre conhecimento e a prática das ar-
tes-manuais na escola: a pesquisa não apenas permeada pela ob-
servação, mas também por minha atuação prática com as crianças.
Saí desse primeiro encontro tocada e com uma vontade imen-
sa de oferecer às crianças vários momentos de criação, com dife-
rentes materiais e técnicas.

Qual a importância de oferecer oficinas de


cadernos artesanais cartoneros para as crianças?
Como um espaço de artes-manuais na escola
pode beneficiar o desenvolvimento dos alunos?

Pintando a capa do caderno


Nesse dia, cada criança recebeu um pedaço de papelão para
compor a capa de seu próprio caderno. Foram oferecidas três cores
de tintas para as criações.
Na oficina de pintura, as crianças se sentiram livres para criar
e experimentar com as cores, revelando as singularidades e expres-
sando e compartilhando as descobertas.

164
“Posso misturar as tintas?”
“Você já viu essa cor que eu inventei?”
“Nossa, isso é demais!”
E assim iam expressando seus espantos
e descobertas.
Aos poucos, as crianças, que haviam
chegado agitadas, falando alto, iam se acal-
mando e se entregando à experiência criati-
va. “A experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002).
A criança não se importa com a infor-
mação, mas quer experimentar, viver o pro-
cesso no corpo.
Ao trabalhar com as cores nas capas, as
crianças se entregaram à experiência, tanto
que nem percebiam a passagem do tempo.
Em um dos encontros, uma criança saiu
tão apressada para não perder o transporte
escolar, que acabou esquecendo seu cader-
no em cima da mesa. Depois de algum tem-
po, ela voltou correndo pra buscá-lo e co-
mentou que teve que pedir ao motorista
para voltar, pois não podia ir embora sem
aquele caderno feito por ela.

165
Experimentações com a escrita

Receita de dizer o nome


Dizer o nome
como se diz uma semente uma pedra
um pedaço de sol
dizer o nome
como se diz um arco-íris um temporal
uma ilha de água luz e coral.
(Roseana Murray)

Para essa oficina de escrita do nome, or-


ganizamos um espaço com revistas, tesouras e
colas, que ficaram disponíveis para as crianças
criarem as capas de seus cadernos. A orienta-
ção foi para que cada uma procurasse as letras
de seu nome.
No decorrer da oficina, as crianças se uni-
ram umas com as outras espontaneamente
para que todos pudessem escrever seus nomes,
uma vez que havia no grupo crianças que ain-
da não reconheciam as letras.
“Alguém tem o “P” pra me dar?”

166
Feira Literária... um convite

Me disse mais: Que a importância de uma coisa não se mede


Com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
Que a coisa produza em nós.
(Manoel de Barros, Sobre importâncias)

O percurso das oficinas proporcionou


a integração de nosso trabalho com um
outro projeto da escola, a Feira Literária.
Assim que recebemos o convite, as crian-
ças se empenharam e organizaram seus
cadernos artesanais para compor a expo-
sição. Com essa participação, criamos um
espaço de diálogo e de trocas com outros
alunos da escola, os professores e os pais.
Observando essa troca de conhecimentos e a integração en-
tre as pessoas, é possível pensar na potência das artes-manuais de
agregar valores, de promover encontros harmoniosos entre os se-
res humanos. “A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à
educação. Educamos para transformar o sabido” (LARROSA, 2002).
O fazer manual como contribuição para a concentração, sa-
tisfazendo tanto o aspecto afetivo como o do conhecimento, apri-
morando a criatividade, a convivência em grupo e a coordenação
motora fina. Além de promover em cada aluno uma atitude e
certeza de que cada um pode fazer com as mãos seus próprios
cadernos de forma criativa e inventiva.
Em todas as escolas, privadas e públicas, aulas de artes-manu-
ais para meninos e meninas são importantes para a formação e o
desenvolvimento saudável das crianças, pois uma educação hu-
mana não pode ignorar a prática do trabalho manual.

167
Olívia

OLÍVIA
MARINHO
SILVA
LIMA
168
SJDR, 13.08.2018
Falta-me ar. Preciso dar uma limpeza por aqui. Limpeza. Vol-
tei necessitando de limpeza. Dar corpo às escolhas que ando
fazendo. Viver em harmonia com as que não consegui fazer.
Teve seu tempo, e não consegui. Sorrir para o não. E sorrir.
E seguir.
Curar. Ficar delicioso, assim como o queijo que agora a pouco
salpiquei sobre o macarrão. Curar. Estar pronta, inteira, leve.
Estar nuvem. Nuvem, ar que sustenta a matéria. Encher os
pulmões e me sustentar.

SJDR, 28.08.2018
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.
A repetição e a diferença. A repetição e a diferença.

A mão cansada da repetição da escrita. Repetição. Castigo.


Tarefa dada pela professora quando errava a ortografia de
alguma palavra. Quais sentidos damos à repetição? Repetir
o movimento, o gesto da bailarina, a precisão do acrobata,
o chute do craque. Quantas vezes repetir, à cabeça do meu
menino que não pode?
A repetição que transforma é a que conversa com a diferença.
Cardar 20 vezes a lã é ato, agora, que busco na diferença a
razão para o próximo movimento.
Repetir a escrita 20 vezes da mesma frase somente me cansa a
mão. No entanto, não tenho na minha função uma preocupa-
ção estética com a letra. Com a diferença que existe entre elas.
Sinto que ainda há mais nas entrelinhas. Mas ainda não con-
sigo ir além.
Obs.: digitar o esse texto traz ainda a influência do computador
no processo. Não há movimento direto de escrita. O cansaço
da mão vem do “copiar-colar”. Não há diferença.

169
texto-têxtil

170
Ponto provocação
Estar vivo
meu ser professora

O meio, lugar de começo


Começo. Há de se começar. Aprendi a começar pelo meio.
Lembro-me de quando uma prima me ensinou a tirar a linha pelo
meio do novelo. Fiquei maravilhada! Lembro-me, agora de uma
aluna de 8 anos que, ao fazer o novelo de lã, me pediu para deixar
a ponta inicial para fora, e assim começou o seu trabalho, pela pon-
ta que vinha de dentro do novelo. Nunca dei importância para o
fato. Só deixei. Mas agora me vêm lembranças de como ela e outros
alunos da sala se divertiam com a lã saindo pelo meio. Novelo que
roubou a atenção quando foi se esvaziando, mas mantinha a forma.
Nesse estágio, ela tinha muito cuidado para com ele, cuidava como
se fosse um ovo. E com todo cuidado às vezes o apertava. Gosto
também de apertar os novelos já vazios por dentro, ficam macios,
mas é um macio diferente. Talvez com menos resistência à ação de
apertar.
E aqui me ponho a pensar nesse esvaziamento. Começar pelo
meio me esvaziou insegurança, medo, ansiedade, necessidade
de perfeição. No início, faz-se necessário força para puxar o
fio do meio do novelo, ele agarra. Normalmente sai um ema-
ranhado quando se busca essa ponta interior. E é assim mesmo,
trazer o que carregamos de dentro para fora não é fácil, requer
___________1. Dessa forma, tecendo pelo meio, fui me enchendo de
coragem, de vontade, de fazer. FAZER.
1. Maria Gabriela Llansol usava este tipo de signo quando não achava a palavra que gostaria para
completar a frase. Aqui usei de mesmo artifício.

171
E pelo meio, ainda sem saber em que focar durante minha pes-
quisa, fui fazer uma oficina de iniciação à tecelagem, mesmo achan-
do que deveria ficar em casa e me dedicar ao projeto. Na oficina
encontrei o vazio, o nada. Passar o urdume pelo papelão, fazer um
desenho aleatório, colocá-lo por debaixo do urdume e no zigue-za-
gue do ponto tela preencher com lãs e cores que não conversavam.

Por isso, pelo menos para mim, a experiência foi mais o


tema de um canto, de um canto de protesto, de resistência,
em primeiro lugar, em direção aos modos como se nos dá a
pensar, dizer e seguramente pesquisar em educação, e em
segundo lugar um canto de amor ao que se abre ou pode
abrir-se como uma relação intensiva com a realidade e com
a linguagem. O que fiz, ou assim me gostaria vê-lo neste mo-
mento, é cantar a experiência de diversos modos e em diver-
sos registros e não tentar formular a base positiva ou meto-
dológica de um paradigma diferente de pesquisa educativa.
Mais uma abertura de um lugar vazio para o pensamento,
para a leitura, para a escrita e para a conversação que não
a formulação de uma alternativa teórica, metodológica ou,
inclusive, política. (LARROSA, 2012, p. 291)

E talvez seja esse o vazio que se fez para a minha pesquisa.


E o que acontece, quando nada acontece? Registrando o não ser
da oficina. O incômodo lugar da aluna não afetada. Deparei-me
com a expressão “ponto de provocação” que Sennet (2009, p. 22)
colocou em seu texto. Ali, em outro contexto, com outra conota-
ção. Porém, preencheu o vazio. Questões então emergiram dessa
experiência. Perguntas e reflexões sobre o ser professor.
Sobre o papel do professor, penso de um lugar de provocação,
de instigar o aluno na busca do próprio fazer. Do encontro das re-
ferências que ambos trazem consigo. O que resulta desse processo
não é a imagem trazida previamente pelo professor, tampouco o
que o aluno trouxe, mas uma terceira coisa, resultado do processo
de fricção, de atrito entre ambos, que se dá no enquanto se faz.
Uma questão tem me provocado muito na relação professor-
-aluno e na leitura de Larrosa (2012), quando o autor discorre sobre
a pesquisa feita atualmente nas universidades: “o saber hierarquiza,

172
somos diferentes quanto ao que sabemos. e o

H
que nos faz iguais são as capacidades de falar
e de pensar, estas são compartilhadas por to-
dos” (Idem, ibidem, p. 291).

I
A verticalidade
desta relação está
dada pelo saber. E o

E
que implica minhas
escolhas enquanto
p r o f e s s o r a

R
assumindo que
quero que seja um
processo baseado
em uma educação

A
ética/estética/
política? Ou seja,
em que haja espaço

R
para a produção
de diversos modos
de existir, que seja

Q
lugar de afirmação
da vida? E como
é isso com as
crianças?

U
Fico com a incômoda questão da hie-
rarquia do saber rondando minha cabeça.
Pensando, procurando outras fontes, lendo

I
registros... Até que depois de tanto dar voltas,
volto à frase lida em Larossa (2012, p.291) e
o FALAR e PENSAR saltam à minha frente.

A
Se o que nos iguala são essas capacidades,
elas serão as responsáveis durante minha
aula para que o processo seja de uma relação
mais próxima, mais viva. O que é fala de alu-
no para mim? Eles falam? Eu escuto? O que
proponho leva-os a refletir? Pensar? Parece
óbvio agora, mas será?

???? 173
São João del-Rei, 9 de abril de 2018.
Minha aluna estrela,

Tenho uma nova aluna, tem quase sete anos e nome de


estrela. Estrela mesmo, do céu. E parece que por lá
vive. Seus pés flutuam. Nuvem branca, alva. Cabelos
longos, lisos, pretos. Olhos grandes, jabuticabas, e
traços finos no rosto. Magra, de pernas e braços tam-
bém finos. Esguia, pescoço compr i i i i i i i i i do.

Cantei canções de trabalho, fiz ritmo com estalo de


dedos, palmas e batidas na perna. Preciso trazer minha
estrela um pouco mais para perto. Seu trabalho, alinha-
var dois pequenos retângulos de feltro. E a cada ponto
sua linha perde a agulha. Seu olhar se perde. Retoma a
linha, a agulha, promove o encontro e segue o próximo
ponto. E tudo se perde novamente. Um círculo.

Aula para mim. Segurar minhas mãos, dar a ela seu tempo.
Ajustar nossos tempos. Minha ansiedade de ver e ter o
fazer. Ela reclama da linha que escapa. Peço firmeza na
pega, nos dedos. E em alguns momentos ajudo na tarefa
de passar a linha pela agulha. Ajustar nossos tempos,
para que não desistamos cada uma de sua tarefa: eu a
de ensinar, ela a de aprender. E assim ela me ensina.

A linha tornou-se menor, não sei dizer se pelos pontos


deixados no feltro ou se pelas aparadas da tesoura,
necessárias para o encontro
linha-agulha.

Foi quase uma hora, não


mais que 15 pontos. Muitas
músicas. Lanche que vem.

E eu? Para onde vou?

174
São João del-Rei, 16 de agosto de 2018.
O processo de fazer nu-
vens. Faz frio, e após um
banho bem quente assento
em minha poltrona. Esgue-
delho um pouco de lã. Um
pequeno chumaço. Ainda
com a leveza dos movimen-
tos dos dedos a espalho
sobre a carda. E então
movimentos mais bruscos penteiam numa tentativa rit-
mada de desfazer nós. De trazer ar à matéria e fazê-la
nuvem. Venho pensando nesse ar que nos sustenta. Ins-
piro... Expiro... E novamente... Ter os pulmões cheios
de ar e depois esvaziá-los. O que esse processo me
traz de potência? O que esse ar traz de potência para
meu pequeno chumaço de lã? O ar cria espaços, vazios.
Espaço para as potências. O ar, o vazio, a potência.
E, então, penso na respiração do meu dia. E, então,
penso no processo de respiração das minhas aulas. Como
estou respirando? Fazer esse processo que seja para
mim respiração, sem que seja algo pronto, determina-
do pelo método já posto? No entanto, experimentado a
partir dele, e descobrir o que há nele para meu ser
professora. Será verso? Brincadeira? Conversa? Música?
Olhar e observar? Circo?

Volto então ao movimento brusco das cardas. É preciso


braço! É preciso corpo! Inspiro e me encho de vida para
o meu novo dia que começa.

Neste momento de escrita lia a primeira parte do livro Estar


Vivo, de Tim Ingold (2015). Então, o que proponho neste trabalho
é trazer as reflexões que o autor faz sobre seus estudos em antropo-
logia para a minha prática docente.

175
Ingold propõe uma antropologia que dispensa adjetivos, que
busca na experiência a base para uma ciência que não seja pola-
rizada e tenta romper com dualismos. Segundo Carvalho & Steil
(2013, p. 65) “a força da argumentação de Ingold reside na elaboração
cuidadosa de um pensamento que reivindica o engajamento no mundo
como condição para a legitimidade e validade da ciência”. Afirmam,
ainda, que “a antropologia, [...], define-se, não como um conhecimento
sobre o mundo e os povos que o habitam, mas como um engajamento
no mundo e uma educação da percepção2 para as múltiplas possibili-
dades dos organismos humanos e não humanos de existir e estar no
mundo” (Idem, ibidem, p. 69).

Os pontos . . .
.
.
[...] os pontos são para ele [o nômade] alter-
nâncias num trajeto” “Um trajeto está sempre
entre dois pontos, mas o entre-dois tomou

. toda a consistência, e goza de uma auto-


nomia bem como de uma direção próprias
(DELEUZE; GUATTARI, 2012, vol. 4, p. 53)

O material
quando ele se faz?
Do processo do material. Das percepções de que as coisas se-
jam feitas. Dos sentidos provocados ao escolher os materiais. O que
levo em conta ao escolher X em detrimento a Y? E o muda quando
a escolha deixa de ser feita a partir da visão de um material morto,
para um que compõe fluxos, que continua a subsistir no objeto?
Ingold me fez vivo o material! Os materiais e suas proprieda-
des, em vez dos materiais e suas qualidades. Ingold (2015, p. 65) nos
chama a atenção para as propriedades do material. À medida que
nos envolvemos os materiais, aprendemos mais sobre as proprie-
dades, pois elas são relacionais e processuais.

2. Ingold parte do conceito de percepção de James Gibson, fundador da psicologia ecológica para
seus estudos de percepção e ambiente.

176
Fiquei pensando, ao reler minhas anotações: o que foi feito
enquanto material provocado na minha prática? Então, paro e
olho o que fiz. Paro e olho duas cestas no meu ateliê, lãs claras
e escuras dali transbordam. E todo o ideal de um pesquisador,
que se faz antes da pesquisa, cai por terra. Planejava trabalhar
com fibras de bananeira, experimentar ziguezaguear na urdidura
do tear diversos materiais que fossem encontrados no meu ateliê.
No entanto, nada disso aconteceu.
Volto às duas cestas, vejo cardas, lãs... Quanto trabalhei com lã!
Eu lavei, eu esguedelhei, eu cardei, eu fiei, eu feltrei! Movimentos
que até então não estavam presentes no meu trabalho. Ações incor-
poradas ao meu fazer passaram a ser parte dele.

São Paulo, 8 de abril de 2018.


Já no ônibus de volta para casa resolvi pegar a lã e
trazê-la para mais perto. Cheirei, não gostei. Meu cons-
ciente me dizia que o cheiro é bom. Você já conhece, é
cheiro de lã. Tento novamente. Vem-me o cheiro de peixe.
Meu estômago embrulhou. Ainda tenho oito horas de viagem
pela frente. O cheiro fica pra outra hora. No entanto,
o incomodo, a luta do consciente com o inconsciente,
persistem. O bom e o ruim. O que realmente está a me
embrulhar o estômago?

Mais no meio da viagem resolvo sentir a textura das


fibras, do material. Busco agora somente o tato, o
sinestésico. Há pouco lia o texto de Bachelard sobre
a resistência do material. As imagens suscitadas pelo
duro e pelo mole. Na lã bruta encontro nós, gordura
que prega os dedos. Dure-
za que dá forma, e então
consigo sentir ondulações.
A dureza provoca. A fi-
bra pede. Então o corpo:
mãos. Então, a ferramenta:
as cardas.

177
E a lã e seus processos entraram nas brechas, nas frestas. Per-
cebo agora, foi conteúdo nas aulas de substituições que dei. Carta
na manga, vontade de experimentar lã com as crianças.

São João del-Rei,17 de outubro de 2018.


Lã suja, balde, sabão. Em conjunto lavamos, sentimos
grudar os dedos, imaginamos histórias para ramos, car-
rapichos, gravetos encontrados no material. Por onde
andaram e o que aprontaram esses carneirinhos? Continu-
amos o trabalho. Deixamo-la secando ao sol,
fomos cada um continuar seu trabalho. A lã
seria usada para encher o trabalho de cada
um: boneca, bicho tricotado ou costurado.

Na aula seguinte a lã estava lá, em cesta,


com um par de cardas, e durante a aula cada
um foi experimentando o cardar. Cardar é um
momento de entrar no material. Vejo corpo
entrando na lã. As crianças não param, até
que mãos e braços já estejam cansados.

Agora visito uma sala de aula em época das profissões.


Então, levar lã, fuso, cardas e história de fiandeira
foi segurança para entrar em aula em uma turma de crian-
ças de cerca de 6 anos. Esguedelhamos a lã. Brincadeiras
de nuvens e tentativas de fiar. Dedos pequenos, ati-
vidade miúda e desafiadora. Ainda somente tentativas.
Brincadeiras vieram. E, no fim da manhã, preparando
para a história, cardo a lã até que o silêncio chegue.
E, então, o fuso começa a girar, fiando a história do
final da manhã.

Não foi, porém, ao total acaso que a lã passou a fazer parte da


minha experiência. A lã natural é material para grande parte do
currículo de trabalhos manuais da Pedagogia Waldorf, com a qual
estou no meu segundo ano de trabalho, dando aulas para alunos do
1º ao 5º ano. A lã é usada no primeiro, no 3º e no 5º anos.

178
Caminhando
sentidos do pé
Peguei-me deslumbrada, encantada,
surpresa com as proposições de Tim Ingold
acerca dos pés. O quanto negligenciamos as
possibilidades e as potencialidades que os pés
nos permitem. Durante a leitura fiquei pen-
sando nas possibilidades das pegas plantares
dos pés. Eu pego diversos objetos no chão
com os pés. Malabaristas, como eu, uma das
primeiras coisas que aprende, é levantar do
chão objetos com os pés. Já que durante os
treinamentos isso é muito mais eficaz do que
abaixar e buscar com as mãos toda vez que
eles caem. As ginastas rítmicas conseguem
agarrar, segurar a bola com a planta dos pés
enquanto executam movimentos acrobáti-
cos. Isso me é muito familiar dada a minha
formação em educação física e em circo.
Ingold (2015, p. 71) nos mostra como a
teoria da evolução de Darwin descreve o bi-
pedismo e consequentemente o domínio das
mãos sobre os pés. Os pés assumiram a função
de manter o corpo ereto e liberar as mãos para
o trabalho de utilização e fabrico de ferramen-
tas. Fabricar as ferramentas possibilitou o do-
mínio do homem sobre a natureza. E uma li-
nha imaginária divide o corpo na altura da
cintura, os pés embasam e impulsionam o
corpo no mundo natural e às mãos oferece
a liberdade para realizar projetos ou con-
cepções da mente sobre ele. Aos pés a fun-
ção mecânica do andar, às mãos a inteligên-
cia de concretizar pensamentos.

179
Ingold (ibidem, p. 73) traz também re-
latos de T. H. Huxley, que observou em po-
vos primitivos a capacidade de fazer várias
tarefas com os pés, como remar barcos, te-
cer panos e até recolher anzóis. E, então,
chegamos às botas e sapatos. Não teriam
então aprisionados os pés descalços e os
impedido de desenvolver suas possibili-
dades de movimentos? Restringindo seu
sentido tátil?
Sim, vivemos em uma sociedade em
que se valorizam a visão, as mãos e o pen-
sar. Os pés estão sempre calçados, as super-
fícies impermeabilizadas, “parece que as
pessoas, em suas vidas diárias, apenas roçam
a superfície de um mundo que foi previamen-
te mapeado e construído para elas ocuparem”
(idem, ibidem, p. 86). Objetos como o calçado
e a cadeira nos apresentam uma visão se-
dentária do mundo, centrando ainda mais
nossas ações nos sentidos da visão e do tato
manual e separando o pensamento da ação
e a mente do corpo. Acrescento que nos dias
atuais as telas vieram aumentar a sedenta-
rização dos sentidos, incluindo aí também
a visão, que passa a ser bidimensional, e os
sons, desnaturalizados.

180
São João del-Rei, 15 de junho de 2018.
Alegria. Encontro. Tempo.

Sim, no caos, me pus a fiar. Andar descalço.


A coragem de estar presente no tempo. E o
fazer manual é colocar-se a tempo, em tempo,
ter o preciso tempo nas mãos. Não há o fazer
sem a presença! Há sim, muitos fazeres sem
presença. Talvez a maioria do fazer nosso
atualmente seja sem presença. No entanto,
para haver vida... Presença! Tempo-presença.

De olhos fechados me vi. Por processos da


vida pessoal, há duas semanas, sobrevivo na superfície
do todo. E mesmo de olhos abertos não me via, não ha-
via, não houve tempo. Ou presença?

Poder parar para respirar, me ver de olhos fechados. A


fiar. As mãos à procura do ritmo, da força, da sincronia
dos dedos. Sincronia, ritmo, tempo... Os pés pendulam
na grama fria e úmida. Vida aos pés! Pequenos passos.
Pés e mãos trabalham no mesmo ritmo? Provavelmente,
mas não “vi”. Agora não me lembro. Um dos pés encontra
o conforto no concreto quente. Você já viu conforto
no concreto? Meus pés viram! E eles viram a maciez da
grama, o quente no concreto e a irregularidade da grama,
as porosidades ásperas do concreto. Não é só bom ou
ruim. Ambos são! E o que vejo está para além dos olhos.

E o coração se alegra ao poder fiar o sintético. Se-


ria possível? Pergunta que me acompanhava há algumas
semanas. E as pontas dos dedos descobrem outras pos-
sibilidades, descobrem o não visto. A matéria áspera
escorre pelos dedos.

Ampulheta, tempo visto.

Fiar, tempo tecido.

181
São João del-Rei, 26 de maio de 2018.
A sala escura convida os olhos a se fecharem. A casa
dorme. No silêncio alguns poucos grilos lá fora. Es-
queço-me de descalçar os pés. Faz frio. Começo a abrir
um chumaço de algodão, opção que, aos olhos, me pareceu
mais fácil. Meu primeiro ato de fiar. A cabeça a todo
vapor: ver, não ver, ver o não ver, não ver o ver... E
então me deparo com o conforto aquecido dos pés calça-
dos. Por ali mesmo, com um pé ajudando ao outro, tiro
os sapatos e os pés encontram o frio chão.

Ainda com muita ansiedade em ver e não ver, uma chuva


de imagens procura identificar tudo, para não perder
nada. E então se perde tudo. Respiração, ainda que
curta, para poder entrar no exercício. Aos poucos, os
dedos começam a torcer o algodão na tentativa de mode-
lar a fibra. O fio começa a acontecer, já não consigo
me localizar na sala. Os joelhos encontram o sofá.
Depois a cadeira e depois a mesinha. E sem enxergar, a
sala vai se apresentando para mim. A fibra se rompe e
eu recomeço. E dentro de mim perguntas inquietas por
respostas... Não ver, ver, não ver, ver...

Quando não vejo, o que vejo é aquilo que já conheço?


Será que de olhos fechados consigo ver algo que não
conheço? Quem vê algo que não sabe seria
então um VISIONÁRIO?

E ele pode ver além dos olhos. E ele os-


cila entre o louco e o gênio.

E nessas voltas fico pensando se o visio-


nário não seria simplesmente aquele que
permite ver com o arrepio do corpo, com
o cheiro do alecrim, com rosnar de um cão
ou com o amargo do jiló. Ver com o tempo
de ver com todo o corpo.

182
E meu chumaço de algodão parece que nunca mais vai aca-
bar. Sinto o fio grosso demais. E as pontas dos dedos
já cansadas. Venho escrever. E na escrita espero mais
do próximo fio a fiar. Dos olhos que não vendo, muito
descobre.

São João del-Rei, 27 de janeiro de 2019.


Buscando outras possibilidades e ati-
vidades a serem feitas nas aulas de
trabalhos manuais, levei para a ofi-
cina meu tecido acrobático, uma malha
com cerca 25 metros de comprimento. O
tecido é guardado com correntinhas de
crochê, que mais parecem uma trança.
Pensando na organização da aula como
um movimento de contração e expansão,
comecei-a com uma história e uma ima-
gem para fazermos um pompom. Depois dele pronto, fomos
para uma sala mais ampla, tiramos juntas, as crianças
e eu, o tecido acrobático da sacola. Colocamos no chão
e começaram a pular sobre ele, sugeri que caminhassem
por cima, se equilibrassem. Em seguida, mostrei-lhes a
ponta, puxaram e foram desmanchando a correntinha. O
enorme, mole e escorregadio tecido foi tomando conta do
espaço. Então, elas se esconderam embaixo dele, puxaram,
esticaram, deslizaram, giraram. Eu peguei uma parte,
abanei, e a brincadeira de quando minha mãe estendia o
lençol sobre a cama garantiu a diversão ainda por um
bocado. Convidei-as, então, a refazer a trança, mostrei
como puxar uma alça por dentro da outra. E com a trança
já feita brincamos de pique-pega: eu manipulava a tran-
ça como uma cobra e buscava tocar os pés das crianças.

E assim aproximei o circo dos trabalhos manuais, e as


mãos dos pés.

183
Plano, planos
FAZERES
O plano pode ser um princípio oculto, que dá a ver aqui-
lo que se vê, a ouvir aquilo que se ouve..., etc., que faz
a cada instante que o dado seja dado, sob tal estado,
a tal momento. Mas ele próprio, o plano, não é dado.
Ele é oculto por natureza. Só se pode inferi-lo, induzi-
-lo, concluí-lo a partir daquilo que ele dá (simultanea-
mente ou sucessivamente, em sincronia ou diacronia)
(DELEUZE; GUATTARI, 2012, vol. 4, p. 54)

O planejamento sempre me foi chão – e também frustra-


ções. O planejamento tem um quê de ideal a ser alcançado, que
o afasta da realidade. O planejamento, a teoria. A aula, a práti-
ca. E seguimos reforçando essa dicotomia. A avaliação pós-ativi-
dade: uma tentativa de aproximação dessas duas pontas.
Lembro-me, assentada em frente a uma mesa, papel, caneta,
e a organização clássica e segmentada do plano de aula: conteúdo/
tema, objetivos, materiais, atividades. Uma estrutura fria e morta,
que por ali ficava aguardando o retorno, pós-aula, da avaliação.
E se fizéssemos do nosso plano de aula, um plano guarda-chu-
va (termo usado por KELLER, 2001, p. 35 apud INGOLD, 2015, p. 98),
que nos orienta o trabalho a partir de uma variedade de fatores
vagamente conectados, em vez de estritamente determinar seu cur-
so? Dessa forma, a premeditação e a preparação seria também uma
atividade prática mundana, que se insere no contexto do local de
trabalho, dos materiais e das ferramentas, vivida – e não somente
uma atividade intelectual, imaginada, criada.
E então, a proposição do plano guarda-chuva na minha tarefa
de professora me descola dessa estrutura papel-caneta, e se faz viva
enquanto sala de aula, espaço de oficina, ou ateliê. A escolha do
material, a separação das ferramentas, todas essas tarefas deixam
de ser algo mecânico e se enchem de sentido. Um ensaio. Sempre
um ensaio. Um vir a ser. Um texto, uma carta que discorre sobre os
quereres, as escolhas e os porvires. Uma atividade que não se en-
cerra quando bate o sinal, mas que segue como uma espiral, ciclos
que não são fechados em si.

184
E, assim, começamos a aula e agora o planejamento se faz na
interação com o outro. Outro que não existe na situação de serrar
uma tábua, descrita por Ingold (2015, p. 95). O outro aumenta as
variáveis dessa tarefa. E o desafio está dado.

São João del-Rei, 10 de outubro de 2018.


Que alegria, essa do fazer! Que bom descobrir que o
ideal não existe! Não há vida na idealização! Há mais
de um mês pensando em oficinas para a semana da criança.
Planejando, pensando, escrevendo, reescrevendo, e nunca
pronta. E então, na semana de divulgação um tsunami...
E não consigo realizá-la.

Em outros tempos teria desistido. Não havia feito di-


vulgação e já era véspera das aulas. Chego de viagem e,
na correria, marido faz para mim uma arte, que cai na
rede um dia antes. E agora estou aqui. Feliz por ter
feito uma das quatro propostas. Na aula de hoje poucas
crianças pela manhã, e na parte da tarde ninguém. Um
fracasso, diria meu ideal. Um passo, diz-me a realidade.
Um passo e agora sigo. Caminho.

Abri. Li o que havia planejado. Separei linhas, lãs,


agulhas. Algumas atividades na cabeça. Mas parece que
todo planejamento se vai, se desmorona no encontro.
Onde habita o planejamento? Na dificuldade de uma aluna
entrar para a sala, se despedir do pai, uma brincadeira
de adivinha cria o vínculo. Não estava no script...

Começa a aula. Uma história de aranha, que não chegou ao


fim. Música surgiu das alunas e, assim, fui levada pelas
crianças...Uma história mais
bem preparada, provavelmente
não teria dado brecha para
a música.

Perdi ou ganhei?

185
O corpo que escreve a ferramenta
Aqui me encontro com a narratividade dos objetos, objetos
usados a partir de uma estória a qual não tem um significado pron-
to, fechado, dado. E que está em processo de escrita à medida que
é explorada. Portanto, voltar nossas atenções a essas estórias, ten-
do ciência de que enquanto as manuseamos estamos contando e
ao mesmo tempo reescrevendo essas narrativas, pois a ferramenta
por isso só não nos conta. É necessário a mão, o corpo.

É pelo corpo que a transmissão se perpetua


(ANGREMY, 2009, p. 8)

São João del-Rei, 23 de janeiro de 2019


Ando na quase eterna arrumação do ateliê. Descobrindo
ainda lugares a serem ocupados, materiais a serem orga-
nizados, trabalhos a serem terminados. Nessa arrumação
toda, as agulhas têm me chamado a atenção. Comecei a
juntá-las em uma caixinha encapada com papel dourado e
deparei com uma infinidade miúda delas. Fiapos de metal.

Agulhas para costura. Normalmente a que encontro pela


frente, a que me permite com maior facilidade a passagem
da linha, que não seja muito grande, nem muito grossa
para meu tecido. Assim, simplesmente. Na experiência
de um fazer, que me permite as escolhas.

Das agulhas para bordar. Descobri uma ferramenta para


costurar com as crianças em feltro e usando linha para
bordar. Eu as tenho usado por facilitar a passagem da
linha pelo buraco da agulha e não ter a ponta muito
fina. Uma alternativa que encontrei para usar em ofi-
cinas pontuais, em que não conheço as crianças que vão
participar, ou para iniciá-las na costura. Sou de pouco
bordar e acho que nunca as usei para essa finalidade.

186
Com elas venho construindo essa história da costura
com os pequenos.

Agora, chego às agulhas de tapeçaria usadas para arre-


matar meus crochês e tricôs. No entanto, ao trabalhar
com as crianças, elas passaram a ser usadas também para
brincar com os teares de papelão e de pregos. Para essa
última função, também descobri a agulha de sacaria.

E minha agulha de cego (foi assim que a conheci, embora


não goste do nome). Um caso de amor e ódio! Aprendi
a utilizá-la em um curso de patchwork para arrematar
minhas costuras. Essa agulha tem uma abertura na parte
superior, na qual se insere a linha pressionando contra
este orifício. Não é necessário passar a linha. Então
puxo a linha do direito do trabalho para o avesso, dou
um nó, passo as duas linhas para a agulha e então as
introduzo para dentro do trabalho, escondendo e garan-
tindo uma segurança maior de não desfazer a costura.
O arremate fica ótimo! Perfeito! Por isso “amo”! Mas
também dá um trabalho!!! Por isso “odeio”! Uma dessas
muitas situações das artes-manuais em que tensionamos
cuidado-tempo-rendimento!

A pequena caixa já não me basta! Quero um caderno, um


livro-mostruário, com todas elas, lado a lado, para
poder vê-las, todas e encontrar novas narrativas para
elas e para mim.

187
São João del-Rei, 20 de agosto de 2018.
Hoje me pus a observar o movimento das cardas, “os gê-
meos necessários do universo”3. Caminhando em direções
opostas vão enchendo de ar as fibras, vão desatando
nós, vão limpando. Trabalhar em sentido oposto é pe-
sado, é necessário braço, punho, pega. Quando mudamos
o sentido de fricção das cardas as cerdas deixam de
trabalhar em sentido oposto. Ambas ganham a mesma di-
reção e, então, com movimentos leves, as fibras vão se
agrupando, formando nuvens limpas e macias. Trabalho
em sentido oposto, trabalho em mesmo sentido. O que
há em mim trabalhando em sentidos opostos para poder
tornar clara a essência, para tornar macio o encontro?

Penso, então, nas marcas que Suely Rolnik (1993) traz


em seu texto. A fricção das marcas, sejam elas em di-
reções opostas ou não, e o que fica, o que sedimenta
depois disso... Nova marca.

As cerdas das cardas, uma dentro, outra fora, um corpo,


outra alma, um pensamento, outra intuição. Opostas ou
em sentido comum não podem existir sem fricção, senão
não limpa, não desata nós, não produz leveza, não enche
de ar, não produz nuvem.

3. Expressão citada na introdução do livro de Gordon L. Miller (2009) que foi usado em um exercício
de escrita da pós-graduação em Artes-manuais para a Educação.

188
São João del-Rei, 21 de novembro de 2018.
Ainda sobre as cardas, uso com os alunos cardas de pet,
em vez das cardas de ovelhas, isto porque elas são mais
baratas e fáceis de encontrar. No entanto, mais frá-
geis, leves e menores. Isso não são, necessariamente,
características positivas, mas a ferramenta possível
no momento. Vínhamos utilizando-as desde o início do
semestre, mas nenhuma das crianças havia percebido
isso. Até que na aula de hoje uma aluna veio, meio que
sem jeito, me perguntar se eram cardas mesmo. Disse
que sim, mas que eram as usadas para cães e gatos. E
então, ela me olhou meio que decepcionada. Mas não nos
esqueçamos, gestos contam a história de uma ferramenta.

O ponto provocação
O ponto provocação é para mim:

o nó francês do bordado, que às vezes sai, às vezes não. Que


me pede presença para realizá-lo.
o ponto que caiu do meu tricô, que me exige pausa na repe-
tição, que me pede o refazer.
o ponto da renda de bilro, que não conheço, nunca fiz, e que
me mostra que há sempre novos caminhos a percorrer.
o ponto pipoca do crochê, que eu adoro fazer, só descobri
isso depois de perceber o quanto se repete nos meus
trabalhos.

Pontos que foram preenchendo meu trabalho, que durante


minha caminhada cerziram esse meu processo professora/educa-
dora. Pontos que agora me movem e mantêm vivos meu fazer, meu
aprender e meu ensinar.

189
Maria Aparecida

MARIA
APARECIDA
DE MORAIS
190
O céu é meu teto.
A terra é meu lar. Os seres vivos, com vida viva. São minha fa-
mília. Pela estrela me oriento. Com a terra me alimento. Com a
água controlo o meu fogo, que insiste em me destruir. O mesmo
fogo em que mim higieniza é o que me contamina. Encontro o
grande desafio dessa minha vida: conviver harmoniosamente
com o fogo meu e o dos habitantes desse planeta.

Estou confusa novamente...


O estilete quebrou... sobrou a lâmina... Trabalho com o que te-
nho. Penso: de forma trimembrada. Existem pessoas madeira.
Duras! Com nozes, com cores e com textura. Devem existir pes-
soas líquidas: a forma depende do ambiente. A cor depende do
invólucro ou dos pigmentos existentes na sua composição. E
existem pessoas flexíveis que não se envergonham de mudar de
opinião. Quando as premissas lhes convencem. Que acreditam
nos sonhos, que pagam pra ver, que reconhecem quando erram
ou não estão se doando para com aquilo que se comprometeram.
E normalmente essas pessoas costumam saber o que significa
se comprometer (cumprir com o que prometeu). Com o meu
fuso, confusa, olho pros meus cumprimentos com a vida que
quero ter.

Estou apegada no fuso.


E, confusa, sigo com meu fuso. Descasco
a madeira. Tento dar forma. Mas a forma
não acontece como meu ideal me infor-
ma. Mãos doendo. Medo do estilete. Medo
das farpas que voam. Meus olhos! Óculos
é a solução. Dar forma é o foco. Cuidar da
minha forma.... passa pela minha cabeça.
Saúde preciso ter. Para ser quem pode dar
forma. Cuidado preciso ter, para não colo-
car a fôrma na forma. Carinho preciso ter
para respeitar a individualidade da forma,
deixá-la surgir sem fugir do fuso. Confusa
estou. Com o fuso continuarei.

191
O que cabe em um quadrado?
Cabe o mundo, em sua infinitude.
Preciso foco. Voltar ao ponto.
Agora tenho fome e sede de quadrados. Como colocar um
quadrado em mim?
Assim como na vida não tem direito nem avesso. Se assim
for, quero começar “pelo avesso do avesso” (Caetano Veloso).
Quero viver dentro de um quadrado, já que fora dele me pa-
rece impossível. Quero com texturas, cores e densidade. Onde
posso firmar meus pés no chão e encontrar equilíbrio. Me
sentindo e encontrando a graça. E também a graça da graça,
e principalmente a graça divina.
Onde a mente posso silenciar e encontrar as verdades. As
quais serão alicerces de um novo mundo.
Onde colocar fisicamente meu quadrado?
Em um tapete. Quero para ele um espaço especial. Onde deve
estar incrustado em suas paredes e móveis a sabedoria hu-
mana. Onde possa sentir no ar o conhecimento deixado por
nossos ancestrais, em pequenas partículas, no cheiro, nas
marcas e nas formas desenhadas ali pelo tempo.

192
Artífice comunitária
A criação de um espaço
para o exercício do agir

Este trabalho conta a história do nascimento de uma


sala multiuso na Escola Waldorf Santos, com atuação desta autora
como Artífice Comunitária.

Artífice Comunitária: uma operária


das artes-manuais atuante como
facilitadora de processos artísticos e
criativos que envolvem uma comunidade
escolar de Pedagogia Waldorf.

O objetivo principal do trabalho como Artífice foi o ensino e


o desenvolvimento de trabalhos manuais e a união de uma comu-
nidade em torno de ideais comuns, gerando um ciclo de aconteci-
mentos e realizações no ambiente escolar.
A primeira demanda para a execução das manualidades
acabou se tornando meu trabalho inicial como Artífice Comu-
nitária: a criação de uma sala onde podem ser ministradas ofi-
cinas dos mais variados temas, além de rodas de conversa e
exposições. Uma maneira de integrar diversas vivências em
grupo, exercitando o pensar, o sentir e, principalmente, o agir
na vida dessa comunidade.

193
A síntese de meu trabalho como Artí-
fice Comunitária tem sido essa sala, um es-
paço de construção de relações humanas e
conhecimento, e, como resultado secundá-
rio, a geração de uma renda complementar
para o grupo.
O projeto foi gestado em um tempo não
cronológico, em que os saberes dos meus
ancestrais vieram sendo costurados, borda-
dos, crochetados, tricotados e, às vezes, cer-
zidos com o fio da sabedoria e da arte – fio
esse que me move e me sustenta até hoje.
Tenho a sabedoria que o corpo guardou a
partir das experiências que as mulheres
da minha vida me proporcionaram.
Entre elas, a minha avó materna, Ma-
ria Francisca. Tive a sorte de ter duas mães.
Muito pequena, quando chamava por uma,
apareciam as duas. Sem dominar ainda a
linguagem, eu dizia Iôta. Assim ficou. Tra-
go a lembrança dos nossos trabalhos
com fio. Do descaroçador de algodão:
eu sentava de um lado e a Iôtinha do ou-
tro. Juntas, tocávamos as manivelas. Ela
colocava a fibra ainda com sementes na
máquina e eu a pegava na outra extremi-
dade. Ainda trago na memória o som das
sementes caindo no piso de assoalho. Pre-
tas e brilhantes, no final do dia elas iriam
para uma cesta, e eram meus brinquedos
favoritos. Todo esse processo era feito com
canções suaves – Iôtinha cantava e eu me
encantava. Esse algodão era cardado, trans-
formando-se em compridas nuvens brancas
e macias. Todas bem aconchegadas em um
cesto de palha. Iôtinha cantava e eu me en-
cantava. As nuvens agora passavam para

194
um outro processo, mais denso. Na roca
ou no fuso, viravam fios que, na minha
inocência, daria para enrolar o mundo.
Tais fios transformavam-se em meadas, nas
quais eu tinha participação. Meus braços
esticados à frente serviam de apoio para
formar essas meadas, que iriam para um
chá colorido e depois secavam ao sol. Após
a secagem, eram enroladas em novelos –
que mais pareciam uma obra de arte – para
logo em seguida serem desfeitos no tear, vi-
rando colchas e mantas coloridas. Parecia
uma grande magia.
Da minha avó paterna, Fátima, que
era cigana, herdei o olhar exagerado para
formas e cores. Amo uma estética descom-
prometida com a tradicional. Adoro dei-
xar as formas surgirem, viver o inesperado,
explorar o desconhecido. No meu mundo
gajo1, focamos no presente.
Da minha mãe, Lazara Maria, trago o
caos, que segue me orientando em tudo o
que me proponho a fazer. É no caos que
encontro o equilíbrio de uma estética
vinculada à beleza e à harmonia.
Sou, enfim, a mistura dessas mulheres
que ajudaram a escrever a minha história.
Hoje me descubro uma Artífice Comunitá-
ria. Quando comecei a redigir e colocar em
prática todos os processos necessários para
adequar as famílias ao contexto escolar,
percebi a necessidade de criar um espa-
ço comunitário, físico, onde pudesse dar
voz à criatividade e ao artista que habita
em cada um.

1. Palavra do dialeto cigano que tem muitos significados, entre eles,


pessoa adulta.

195
Nasce uma artífice comunitária,
nasce uma sala
Discutir o despertar da conscientização
sobre as relações comunitárias e seu impacto
no mundo e as potencialidades dos trabalhos
manuais como fonte de criação de renda em
um grupo.
Partimos então de questionamentos
como “O que acontece quando nada parece
acontecer?”. E criamos uma inquietação, um
ponto que se agita e quer ficar em equilíbrio.
É necessário encontrar, então, um pon-
to firme e seguro, que pode transitar pelo es-
paço infinito e desenhar todas as formas que
a criatividade, junto com a vontade, pode
sonhar. E é preciso ter foco, para ver, por
exemplo, que um quadrado é uma junção de
pontos fazendo uma dança perfeita!
Dentro de uma sala assim, encontra-
mos quatro lados – e esse quadrilátero nos
mostra as arestas nas relações. O relacionar
pode criar tais arestas e poli-las. Para polir, é
preciso substância e potencialidade.

No quadrado de uma sala, cabe o mundo,


em sua infinitude. Meu trabalho como Artífice
é imprimir texturas, cores e densidade nesses
quadriláteros comunitários.
Os espaços onde são ensinados, produ-
zidos e vividos os meios para atingir essa
vasta gama de possibilidades visuais e táteis
são também locais onde podemos firmar os
pés no chão e encontrar equilíbrio. Sentin-
do e encontrando a graça. E foi alicerçada

196
nesses conceitos que se deu a criação da sala
multiuso.

Como Artífice Comunitária, trabalho


para a construção de um espaço capaz de
abrigar oficinas de brinquedos em crochê,
tricô, bonecas de pano e o que mais a
comunidade sonhar, sentir. Minha ação
compreende a integração de todos os elos
que formam a escola de Educação Infantil.
As famílias dos alunos doam os materiais,
as professoras da instituição e outros
artistas convidados ministram as oficinas, a
comunidade aprende a técnica e confecciona
as peças, disponibilizando-as para venda em
um expositor que existe na sala.
Há, ainda, multiprojetos para o espaço:
saraus, rodas de conversa e contação de
histórias. Toda a renda produzida ali será
destinada a investimentos em novas oficinas.
Tudo começou com um tapete de cro-
chê, realizado por pais de alunos da Educa-
ção Infantil. O espaço reservado para ele é
especial: ali é possível sentir no ar o conhe-
cimento deixado por nossos ancestrais, em
pequenas partículas, no cheiro, nas marcas
e nas formas desenhadas pelo tempo. Um lo-
cal, que já foi uma biblioteca, ao receber esse
tapete feito por várias mãos, tornou-se a sala
multiuso.

197
A sala vive: oficinas

Oficina de tapete
A proposta inicial de trabalho
em grupo foi a execução de qua-
drados de crochê em três tons de
azul. A comunidade se empenhou
na confecção dessas formas geo-
métricas, que são a metáfora da
sala e dos tantos quadrados em
que estamos inseridos. O conjunto
desses quadros, produzidos por di-
versas pessoas, tornou-se um gran-
de tapete.

Tapete feito em oficinas de crochê por


pais de alunos da Educação Infantil.
Café com saberes
As avós da nossa comunidade se reúnem
semanalmente no encontro Café com Sabe-
res, já instalado na sala multiuso, onde, além
de aconchego e da bebida que dá nome ao
grupo, há pães e biscoitos feitos pelas crian-
ças nas atividades de culinária da escola.
As mãos dessas avós trabalham com
gestos profundos e confeccionam cortinas,
lençóis, almofadas e tapetes para nossas sa-
las. Futuramente produzirão também brin-
quedos, como bonecas de pano, bolas em
crochê e feltro, além de trabalhos em feltra-
gem com lã cardada, seca e molhada. Bor-
dados surgirão, resgatando histórias, com
um fio que seguirá costurando experiências
e dando grandes laçadas nos vínculos esta-
belecidos. As peças criadas serão expostas
e vendidas na loja da escola e em bazares.

198
A renda obtida irá para a compra de novos
materiais.
Ao me tornar Artífice Comunitária, vejo
como os trabalhos manuais fazem parte do
que sou desde a infância e se transformaram
em um instrumento de mudança e união
dentro de uma comunidade.
Iôtinha, Fátima, Lazara.
Trazer de forma viva a presença de
cada agente que me propiciou essa for-
mação e que, como pequenas células,
permanece em mim e me possibilita esse
trabalho amoroso e transformador, mate-
rializado numa sala construída por vonta-
des e ideias e que serve ao surgimento de
novas perspectivas.
Existe uma soma e uma completude
que só o amor consegue costurar. Com pon-
tos firmes e fortes. Com cores e formas que
delineiam caminhos percorridos e apontam
para o futuro.

Confecção de aventais por avós do projeto Café com Saberes.


Foto de Carolina Ozores (2019).

199
Fabiana

FABIANA
ZANELATO
KUWAJIMA
200
E eu estava lá!
Entre os galhos, pés e gostas apoiados, sentada, sentia a energia
da árvore! Conseguem me ver?
Comecei a fiar a lã cardada!
Sensação gostosa... meus dedos sentem a energia da lã
nos movimentos, as pontas dos dedos se movimentam...
Os pássaros cantam... quando estou focada os sons ficam mais cla-
ros, o mundo e ali, o encontro entre eu e a lã, às vezes a conexão en-
tre os fios é difícil, fica muito tênue e se rompe, então envolvo com
mais lã e fios abertos e reinício o movimento... as perguntas veem, as
perguntas vão, o que elas querem: respostas? Ou somente o sentir?
No meio do processo recebo a companhia do meu filho, que foi mais
alto, mais baixo, pulou-me, sentou ao meu lado, saiu para brincar...
e eu continuei...

9 de out de 2018 às 12:05


Sentimentos, devaneios, por conta de uma ação eles aparecem,
alteram tudo que está no ser, tiram o foco e de repente tudo se
resolve...
O que esses sentimentos representam? Eles querem me tirar do
eixo. Por quê? Tirar do eixo é colocar em dúvida o que eu realmen-
te acredito. E o que acredito? Aquilo que faz meu ser feliz, viver.
Com os obstáculos surgem dúvidas, perda da autoconfiança...
o que preciso? De um firme ponto de apoio,
para que mesmo que alguém balance não con-
siga me tirar do chão ou da parte firme onde
estou alicerçada ou plantada.
O bambu é oco e cheio de nós...
Oco = vazio, mas ao mesmo tempo com espaço
para ser preenchido por pequenas porções de
algo (ar) e logo depois vem um nó (ou seja, um
ponto firme de apoio).
Então, em vez de buscar um ponto firme de
apoio, buscarei vários pequenos pontos de
apoio.
Lá vou eu...

201
texto-têxtil

202
O encontro
dos gestos
A cerimônia do chá, a
percepção de si e do outro

Ao ouvir a palavra gesto, me vêm à mente outras, como


carinho, aconchego, proteção, harmonia, sensação de bem-estar.

gesto
“movimento do corpo, principalmente das mãos, dos braços
e da cabeça [...]; Mímica, aceno, sinal”

“o verbo latino gerere significa portar sobre si, [...]


executar, fazer”, verbo que deu origem a outros, como
gestar e a seu particípio, gesto.

Os primeiros gestos são recebidos durante a gestação,


quando a mãe passa as mãos sobre a barriga, acalmando e conver-
sando com o bebê. Enquanto isso, o bebê chuta, vira, movimenta-se
de maneiras variadas até que, enfim, em um dia, escolhe nascer.
Com o passar dos anos, fui observando mais atentamente os
movimentos em casa. Mamãe cozinhando massas, com um cuidado
especial para que os alimentos fossem o mais naturais possível. A
rotina sempre foi dinâmica e, enquanto a comida ficava pronta, mi-
nha mãe lavava a roupa, limpava a casa, falava ao telefone. Todas as
atividades da casa representavam o cuidado que tinha com a família.

203
Nos momentos de limpar a casa, surgiam brincadeiras: os mó-
veis se transformavam em escritórios, agência de banco; as cadei-
ras enfileiradas no corredor se transformavam em trem; a passa-
deira do corredor se transformava em tapete mágico ou carrinho.

Ao lavar a cozinha ou o quintal,


minha vassourinha eu pegava,
o chão esfregava e,
de repente, voava, cavalgava,
a vassoura se transformava.

As atividades da minha mãe refletiam na invenção das brinca-


deiras e na transformação dos utensílios.
“A casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemen-
te, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (BACHELARD,
2000, p. 200).
Além dessas atividades relacionadas à casa, meus pais prati-
cavam ikebana, que é a confecção de arranjos de flores. Meus pais
confeccionavam os arranjos simples, um para cada cômodo da casa,
demonstrando, mais uma vez, os cuidados conosco e com a casa.
Eu também participava de um grupo que servia pessoas em
eventos sociais. Dessa maneira, desenvolvi a percepção para estar
atenta e ser prestativa quando a pessoa precisasse. Em encontros
para nos desenvolvermos, sempre falavam dos princípios da ceri-
mônia do chá. Conhecia uma parte teórica da cerimônia do chá,
havia assistido algumas partes. Em um “Hatsu-Gama” (primeiro
chá do ano), consegui vivenciá-la. Ao chegar lá, encontrei um amigo
que me explicou cada passo da cerimônia, o que deveríamos fazer e
finalmente tomei meu primeiro chá, numa cerimônia completa. Os
movimentos me fascinaram. Ele me explicava o que iria acontecer
no momento seguinte.

Os movimentos e a cerimônia do chá


Cerimônia do chá: sequência de movimentos que se pratica
para desenvolver gestos harmoniosos, leves e fluidos.
Praticar a cerimônia do chá é um tipo de meditação em movi-

204
mento em que não é preciso concentração, é só deixar os movimentos
fluírem. A cerimônia segue um ritual de preparação e os gestos, ou
os movimentos, já mostram o que acontecerá no momento seguinte.
Enquanto praticamos a cerimônia do chá, percebemos ou
sentimos os movimentos conscientes dos membros em conjunto e,
também, a vivência de harmonia e a sensação de bem-estar. Para a
cerimônia do chá, é necessário um ritual de comunicação que
transcende as palavras; apenas com gestos ou o posicionamen-
to de utensílios entende-se o que o outro quer. O guia que inicia
e encerra essa atividade é o ritual que desenvolve o sentido vital.
Para os orientais, especialmente para os japoneses, alguns es-
portes e artes são considerados um “caminho” de desenvolvimento
e de autoconhecimento do ser humano. Uma conexão entre o eu
e algo maior que o guia, que contém os sentimentos mais puros,
simples e tranquilos. A prática é fundamental enquanto se percorre
esse caminho da busca constante pelo aperfeiçoamento, por movi-
mentos harmoniosos. O objetivo final é o desenvolvimento do ca-
ráter do homem e a consideração pelos outros por meio do servir.
Cada encontro ou cada aula de uma cerimônia do chá é um
momento único (“Ichigo ichie”, expressão japonesa), que nunca
poderá ser repetido, pois ali já houve toda a preparação do anfitrião
ou do professor para o encontro das pessoas.
Segundo Rikyu (Centro de Chadô Urasenke do Brasil, 2003, p.
8-12), fundador da cerimônia do chá no século XV:

“no verão sugira frescor e no inverno, calor”

ou seja, as estações do ano determinam a preparação da sala


de chá, dos utensílios e dos doces que serão utilizados.
Na cerimônia do chá, arte que pode ser praticada no dia a dia,
o anfitrião oferece a casa de chá, ou seja, oferece parte de seu lar,
da força e da proteção da casa que estão presentes na sala de chá, e
as compartilha com seu convidado.

A melhor maneira de preparar um chá é deixá-lo fluir.

205
A Cerimônia
O convidado entra no chashitsu (sala
de chá), deixando seus pertences, joias, do
lado de fora, pois todos são iguais na sala de
chá (era o único momento em que os samu-
rais se separavam das suas espadas). Passam
então por uma porta pequena, para o convi-
dado se curvar humildemente.
O convidado caminha até o tokonoma
(local principal da sala) e observa a cali-
grafia ou pintura, em seguida observa uma
chabana (vaso com uma flor, como se ela
estivesse na natureza). Direciona-se ao furô
(braseiro) e ao kama (caldeira), prestando
atenção nos detalhes desses utensílios: dese-
nhos, formato, material e o carvão.
O anfitrião se posiciona na frente da
porta com o mizusashi (pote de água) ao seu
lado, abre a porta, faz um cumprimento e
caminha na sala com ele até posicioná-lo ao
lado do furô. Na sequência, o anfitrião en-
tra na sala com o chawan (a tigela de chá),
com o chasen (batedor), chakin (pano de
algodão) e chashaku (colher de chá) posi-
cionados no chawan, segurando com a mão
esquerda e o natsume (o pote contendo chá),
na mão direita, posicionando-os na frente do
mizusashi, formando um triângulo.
Em seguida, o anfitrião entra com ke-
nsui (pote para descarte de água), hishaku
(concha) e o futaoki (suporte de apoio), ca-
minha até a frente do furô, senta, posiciona
hishaku e o futaoki ao lado do furô, alinha
o kensui na direção dos joelhos, arruma o
kimono, faz uma pausa/respiração para en-
tão iniciar a cerimônia propriamente dita.

206
O anfitrião inicia a purificação dos ob-
jetos, esse momento representa deixar as
preocupações de lado e estar presente nesse
momento. As purificações do natsume e do
chashaku são feitas com o fukussa (lenço de
seda), com movimentos definidos, de forma
suave e harmoniosa, como o movimento da
água no rio.

Um chawan (tigela),
No chawan é colocada água quente chasen (batedor),
com o hishaku, para purificar o chasen. O um chashako (colher de
chá) e o hishako (concha).
hishaku é posicionado na borda do kama.
As cerdas do chasen são observadas, em
seguida, são movimentadas para frente e
para trás, finalizando com a letra japonesa
“no”(の). Em seguida, o chawan é purificado,
limpando-se as bordas com o chakin, através
de movimentos giratórios do chawan e o
centro fica seco. Desenham-se outras duas
letras japonesas.

207
Posiciona-se o natsume ao lado do chawan, adiciona-se o chá
com o chashako no chawan. Nesse momento o anfitrião oferece o
doce ao convidado. O anfitrião abre a tampa do mizusashi em três
movimentos com as mãos direita, esquerda e direita. Em seguida,
com o hishaku, retira uma concha de água quente do kama e adi-
ciona meia concha de água no chawan. A outra metade de água na
concha retorna para o kama, o hishaku é posicionado na borda do
kama novamente.

Durante toda a cerimônia, procura-se ouvir no silêncio sons


especiais, como o da água ao cair na tigela, retornar para o kama, o
som do carvão em brasa, da água borbulhando no kama.
Com o chasen, “bate-se” o chá, com movimentos firmes para a
frente e para trás, até formar uma espuma na parte superior, em se-
guida reduz-se a velocidade e passa-se o chasen na superfície para
retirar as bolhas grandes de ar.
O chá é servido para o convidado no tatame, próximo ao anfi-
trião, com a frente do chawan virado para o convidado.
O convidado se aproxima do anfitrião, pega o chawan e retorna
ao seu lugar. Agradece o chá, vira o chawan 2 vezes no sentido ho-
rário, toma-o, limpa a borda do chawan, gira duas vezes no sentido
anti-horário (para retornar a frente do chawan para o convidado).

208
Inicia-se a apreciação do chawan, primeiramente o convidado
faz um leve cumprimento, em seguida com os braços apoiados na
perda observa a lateral e o fundo do utensílio, com o máximo de
cuidado, finaliza com outro cumprimento e leva-o para o mesmo
local que retirou, porém, antes de devolvê-lo ao anfitrião, gira o
chawan duas vezes no sentido horário, para a frente ficar voltada
ao anfitrião.
O anfitrião observa o chawan e começa o processo de limpeza.
Adiciona-se água quente, depois a descarta no kensui. Adicio-
na água fria para a limpeza do chasen. Em seguida, guarda-se o
chakin e chasen. O chashako é purificado. Os utensílios são posi-
cionados em frente ao mizusashi e são retirados. Primeiramente,
kensui, hishako e futaoki, em seguida chawan com os utensílios
que estão dentro e natsume; por último se retira o mizusashi.
No final da cerimônia o anfitrião senta na frente da porta e faz
um cumprimento; o convidado acompanha-o.

Compartilhar o aprendizado do chá


Eu e Lucio Adachi
Kuwajima criamos uma ofi-
cina sobre a cerimônia do
chá, com o objetivo de com-
partilhar uma prática que
nos tranquiliza, que nos faz
retornarmos a nós mesmos,
observando cada movimen-
to e nos conectando com o
outro (a pessoa para a qual estamos servindo o chá). Dessa maneira,
poderíamos compartilhar com outras pessoas o estar presente nos
gestos. Somos estudantes da cerimônia do chá e conhecemos apenas
uma parte da técnica e nosso objetivo era que outras pessoas experi-
mentassem essa arte.
A preparação é uma das etapas mais importantes da ceri-
mônia, é nesse momento que se inicia a conexão com o convi-
dado. Escolhem-se os utensílios, em formatos, cores e desenhos, se
possível, alinhada com as estações do ano.

209
Ao longo dos anos que estudamos a ceri-
mônia do chá, adquirimos alguns utensílios.
Separamos tigelas japonesas e outras que fo-
mos adaptando dependendo da região que
visitamos. Dessa forma, misturamos utensí-
lios de várias culturas: japonesa, brasileira,
suíça, coreana, italiana, entre outras. Para a
cerimônia do chá tradicional, os utensílios,
em geral, são japoneses ou chineses.
Para a primeira oficina que fize-
mos, preparamos mesas com vista para o
parquinho e formamos duplas: um integran-
te deveria preparar o doce e o chá (anfitrião)
e o outro comeria o doce e tomaria o chá
(convidado). Depois, invertemos: quem era
o anfitrião virou o convidado e vice-versa.
Pensamos que dessa forma seria possível en-
sinar as crianças a se relacionar com o outro,
o convidado.
As crianças estavam ansiosas, os adul-
tos também ficaram. As pessoas escolhiam
os utensílios por afinidade, não conheciam
a origem deles. Para a preparação do doce
havia um suporte, um papel colorido e dois
tipos de doces: manju (assado com recheio
de doce de feijão) ou moti (doce de arroz)
com recheio de feijão azuki.
Após servir os doces, o chá foi prepa-
rado. Com o chashako, colocaram a me-
dida no chawan. Posteriormente, com o
hishako, colocaram a água na tigela; final-
mente, com o chasen , “batiam” o chá.
Explicamos o movimento: para frente
e para trás de forma rápida e, no final, pas-
sar na superfície lentamente para retirar as
bolhas maiores.

210
Alguns tentaram formar a espuma, porém não conseguiram,
devido à maneira como movimentaram o batedor.
Foi um grande experimento! Muitas crianças vieram parti-
cipar e saíram felizes, embora a maioria não tenha aprovado o
sabor do chá e do doce.
Uma pessoa escolheu a cor do papel do doce e o convidado
comentou que era sua cor preferida.
Outra pessoa saiu feliz por ser a primeira vez que preparava
um chá ao longo de 70 anos: foi como se estivesse revivendo a cul-
tura de seus ancestrais.
Algumas crianças quiseram vestir os quimonos.
Outra criança saiu realizada em oferecer algo a sua amiga.

Artes-manuais e movimentos
Gestos que transmitem amor ao
executar as tarefas, principalmente
quando observo com os olhos inter-
nos e externos.
Nas atividades cotidianas, em
casa, os gestos impregnam nosso
coração, fluem espontaneamente,
pois estamos em estado de presen-
ça e, nesse momento, apenas nele,
é possível nos compreendermos e, também, aos outros, enten-
dendo quais são as necessidades e os desejos de cada um. Essa é
uma prática diária para nos conectarmos conosco.

211
Juliana

JULIANA
CARVALHO
DEASSUNÇÃO
RIBEIRO
212
A construção do fuso
Não, não é força, é jeito.
É inclinação e pressão adequada. É um deitar da lâmina sobre a su-
perfície do material. É um atuar rente, de forma atenta. E o que eu
vejo enquanto faço?
Vejo matéria a transformar-se. Vejo corpo atuando e se sobrepondo
às precipitadas conclusões da mente. Vejo um adequar-se de mãos
olhos tronco braços e pernas. Vejo corpo no esforço, músculo sangue
respiração suor. Um ajeitar-se em busca do atuar mais coordenado,
mais eficiente seria...?
Mãos e olhos que tateiam atentos. Corpo capaz.

Enquanto tento fiar o algodão, iniciando um


pequeno novelo, o fio se parte algumas vezes, e meus pensamentos
também parecem fragmentados. Mas penso sobre mim. Há tempos
penso sobre o que sou, sobre o que me tornei. Às vezes acho que falta
um encaixe, e noutras penso que melhor não se encaixar. Mas ainda
aquela necessidade de responder às perguntas que vez ou outra sur-
gem: “O que você faz mesmo? Com o que você trabalha?”
[...]
Costuro, bordo algo, crocheto mais, arrisco-me no básico do tricô. Não
sei o que sou. Sou essa aí, ou um pouco disso e talvez mais.
Certo dia meu filho mais velho, Caio, que hoje tem 12 anos mas na
época devia ter por volta de 8 ou 9, perguntou-me o que era revolução.
Respirei para tentar explicar de forma que ele entendesse, e falei que
era quando se busca fazer diferente daquilo que parece estar estabele-
cido ou determinado. Dias depois, na mesa de almoço, uma amiguinha
de minha filha Luiza, que tinha vindo brincar, perguntou para mim
com ar surpreso: “Mas você fica aqui e não trabalha em outro lugar?
Não tem nenhum outro adulto aqui na casa com a gente??” E antes
que eu respondesse, Caio, que acabara de observar a cena, comenta:
“mamãe, você fez a revolução.” Sem entender, pergunto porque, e ele
diz “você escolheu ficar com a gente, e isso é diferente do que a maior
parte faz, não é...?”
Não sei ainda “o que sou”, e nem sei se faz sentido a busca por defini-
ções, mas se uma criança acha que sou revolucionária, não me pareceu
nada mau... Comecei esse texto aflita, terminei sorrindo. E não é que
é mesmo poderosa essa coisa de escrever?!

213
Escutas que
o fio traz
As artes-manuais
como caminho de
cuidado de si e do outro

As artes-manuais enquanto
caminho possível de observação, per-
cepção e cuidado. Um olhar atento para
as mãos e para algumas possibilidades
que seu uso irradia. E não é qualquer uso,
mas uma atuação dessas mãos a nos ga-
rantir qualidade de presença, com o apoio
de fios e agulhas.
Várias perguntas permeiam
este trabalho, e uma delas traz mais
diretamente a hipótese: Podem as ar-
tes-manuais atuar de forma terapêutica?
E, se podem, de que maneira e em quais
circunstâncias? Poderiam atuar como
dispositivos capazes de proporcionar
maior bem-estar e vitalidade a quem as
experimenta?
Como um apoio a me guiar e
me sustentar nessas e outras perguntas
que surgiram durante a pesquisa, bus-
quei apurar a escuta e ouvir as vozes

214
femininas que me acompanharam nesse percurso e que
estão presentes no meu texto, em forma de observação,
desabafo ou ainda percepções sobre si. Vozes que estavam
muitas vezes a preencher os ambientes que eu habitava,
permeados pelos fazeres manuais. E essas vozes pareciam
me apontar caminhos, me suscitavam dúvidas, me condu-
ziam a reflexões e pensamentos acerca do tema, e aca-
bavam por reforçar minha curiosidade sobre: as mãos, o
corpo, os gestos, nossas memórias (memórias também do
corpo?), os afetos ali presentes, sobre um caminho possível
de beleza e delicadeza no fazer a garantir resistência, a atuar
em nossas potências, vitalidade, fortalecimento da nossa
vontade, possibilidade de abertura de um espaço-tempo
com afeto, dedicado ao próprio cuidado.
Escrever, para mim, nunca me pareceu um processo
fluido, sempre percebi como um esforço. Vejo que as pala-
vras saem, as ideias se completam, mas sinto essa inten-
sidade sofrida, como se eu tivesse que buscar muito, cavar
fundo pelas ideias. Comecei a fazer um pôster têxtil e senti
vontade de registrar: ia fazendo e parando e respirando e
escrevendo e pensando... Percebi como o habitar um lugar.
E na feitura segui a lembrar das frases, leituras, dos assun-
tos vistos nessa pós-graduação e estudados para a escrita
do texto, e especialmente da relação íntima entre mão-cé-
rebro-ferramentas.
Quando fui analisar as imagens, desperta-
ram-me a atenção as fotos de mãos que eu tinha. Quan-
do fiz uma primeira impressão das fotos, pensei se não
haveria o risco de estarem parecidas, mas então tinha o
bordado, que foi uma possibilidade de intervenção. Bordo
a agulha ao desejar destacar a ferramenta, em outra foto
bordo as próprias mãos ou o material utilizado, ou ainda o
resultado do trabalho executado.
Seguem os dias e eu a correr contra o tempo. E pre-

215
cisando encerrar etapas, resolvi pelo ponto caseado para de-
terminada intervenção no trabalho. Começo a fazer e logo
percebo que a tensão que eu estava pelo tempo passando
foi delicadamente sendo substituída por uma leve sensa-
ção. Percebo sutil sorriso em meu rosto, e então relembro:
como eu gosto de fazer um caseado. Me alegro com o resul-
tado e lembro há quanto tempo eu não fazia aquele ponto,
e tento perceber, mais uma vez, o que pode esse atuar das
mãos: é mesmo um caminho contínuo de olhar para si, de
percepções e novas descobertas?
Me alegrei ao perceber que tanto a execução
dos pontos, a escolha das cores e o ato de contemplá-lo
pronto, ao final, parecem ter me alterado o ânimo: alegrei-
-me com o resultado, com aquele certo brilho da linha...

“O que pode um caseado?”

E é naquele momento que você já se percebe


nos devaneios, mas precisa chegar ao fim. Segui no movi-
mento de mãos e corpo, e então tive dúvidas se parava para
ler alguma notícia, tomava outro café ou voltava para a agu-
lha. Voltei para a agulha, claro, pela urgência, e pensando:
é isso, por hoje foi o caseado a causar algo em mim, a me
mover um pouco do lugar em que me encontrava. E amanhã
sigo nessa observação, de corpo-gesto-pensamento...
A todo momento me deparava com a questão
do tempo no processo de feitura artesanal desse pôster,
o espaço-tempo necessário à execução de algo manual.
Porque as ideias seguiam a surgir, mas havia a aflição da
necessidade de encerrar.
E quando percebi, o próprio conjunto do pôster
têxtil parecia indicar meus dias: minhas emoções, as ho-
ras a correr, os dias de maior solidão, os de mais ou me-

216
nos concentração e precisão. Teve sim o caseado que me
alegrou, mas teve também o tecido que desfiava demais,
aquele outro que enrugava, talvez pela pressa em puxar o
fio, ou para chegar ao fim e dar conta desse fazer, e de
todos os outros da casa e da vida.
Em dado momento, quando olhei as pequenas
intervenções bordadas que fiz nas fotos, pensei: ficaram
muito sutis, quase não aparecem, especialmente com cer-
ta distância... mas logo me veio a questão da delicadeza,
que narro no meu texto ser algo que sempre me deu a pen-
sar, e em como determinadas intervenções eu não conse-
gui fazer de outra forma, como se ali não coubesse uma
linha mais grossa ou um material um pouco mais bruto.
Se não houvesse um tempo limite para o encer-
ramento da elaboração do painel, talvez ele fosse um cam-
po sem fim de possibilidades, a cada dia com alguma nova
ideia-vontade de intervenção.
Experimentei, pela primeira vez, um avesso
desse tamanho, tendo que tateá-lo, em muitos momentos,
apenas com a ponta dos dedos. Me peguei vendo beleza no
movimento repetitivo e já rápido e preciso com o qual eu
fazia os nós para arrematar cada ponto a prender as partes
da composição do trabalho.
Será que foi mesmo meu pensamento que
me levou ao planejamento e à realização do pôster, ou será
que teria sido meu próprio corpo a me conduzir pela experi-
ência, e ali experimentado tantas possibilidades? Teria sido
vontade do corpo de trabalhar a organizar as ideias?

217
As mãos
Seria o uso das mãos, e suas possibi-
lidades de produção, um importante caminho
para o estímulo da imaginação e fortalecimen-
to da capacidade criadora? O currículo dos
trabalhos manuais na Pedagogia Waldorf me
inspira na busca dessa compreensão do atuar
com as mãos e também das primeiras fases do
desenvolvimento humano. E nesse percurso de
observação, não apenas da infância, mas além,
questiono-me onde o contato com o material, o
ambiente e os fazeres manuais poderiam levar
a encontros e escutas, capazes de acionar po-
sitivamente tudo aquilo que envolva o âmbito
do sentir.
Penso na possível sensação de vitalidade e
pertencimento aos que experienciam os fazeres
manuais e sobre a importância dessa percep-
ção “eu-como-parte”, “eu-no-mundo”. Poderia
a vivência com fios e agulhas, e a qualidade e
as especificidades desses materiais, atuar como
elemento sanador? Tais vivências facilitariam
conexões e poderiam fortalecer vínculos?
A possibilidade de as artes-manuais atu-
arem de forma terapêutica é a motivação
para minha pesquisa. O fazer com as próprias
mãos talvez possa indicar um caminho no qual
ele atue como catalisador de processos que leva-
riam a uma harmonia nos sentires, por seu pos-
sível potencial de acessar memórias e vivências
do ser humano, trazendo equilíbrio ao nosso
sistema rítmico-respiratório, entre outros be-
nefícios. E nesse percurso oferecem-nos apoio
alguns elementos já sistematizados no currículo
dos trabalhos manuais da Pedagogia Waldorf.

218
A teia: artes-manuais,
mulheres e sentires
Meu caminho nas artes-manuais se fez
essencialmente após a maternidade, em meio
a mulheres, em companhia, entre conversas,
trocas, olhares. E em muitos momentos se deu
no contato tão próximo de corpos e mãos. Em
cada encontro, me despertava a atenção o que,
muitas vezes, se revelava no ambiente. Existi-
ria algo a favorecer todos aqueles sentires
que ali se colocavam? Que magia era aquela
a possibilitar que juntas, a pretexto de con-
feccionarmos pequenas peças e desenvol-
vermos habilidades com nossas mãos, dei-
xássemos fluir o que ia tão dentro de nós?
Seria o ambiente propício? O fazer das mãos e
as técnicas experimentadas? Ou ainda o conta-
to com determinado material?
Com frequência, nesses encontros em tor-
no dos trabalhos manuais, havia uma sensação
a nos entrelaçar em uma teia afetuosa, segura:
com alguma resistência na estrutura, apesar
da aparente delicadeza no entrelaçamento dos
fios individuais. Cada uma com suas próprias
histórias, a carregar vivências, mas a encon-
trar-se em algum ponto. Fios que, apesar de de-
licados, se cruzavam, garantindo sustentação.
A resistência pela delicadeza sempre me
deu a pensar. E as memórias que vieram à tona
me trouxeram certas lembranças: de minha ad-
miração, desde a infância, pela resistência e en-
frentamento mais sutis, pela força e vigor que
poderiam vir também com um tanto de beleza.

219
Seria o fazer manual um elemento a possibilitar o fortale-
cimento de nossas potencialidades? Poderia considerá-lo como
dispositivo capaz de favorecer um caminho de maior observação e
de cuidado com nossas próprias necessidades?
Nas vivências em que tive oportunidade de estar, segui a ouvir
as vozes daquelas mulheres e a buscar apurar a escuta.

“Quando desejo suavizar meu dia ou um afago em mim


mesma, penso logo em fazer algo com as mãos. E tem
dias que não quero nada que já esteja começado! Quero
a novidade, quero um projeto iniciado do zero. Ontem
mesmo fui pegar meu crochê, mas olhei aquela agulha
mais grossa, e não animei, logo larguei. Parece que
eu precisava de algo mais delicado; foram os fios mais
finos que me chamaram”.

Quando o assunto surge, muitas vezes se sucedem relatos a


conversarem entre si:

“Às vezes me vem o medo, não sei se trazido pela mente


e alimentado por minhas inseguranças. Aí, o corpo pa-
rece ser tomado por um mal-estar. A barriga que dói, a
respiração que encurta ou o pensamento que se turva.
Acabo por buscar uma agulha. Tenho algumas pequenas
sacolas, com trabalhos iniciados. E, quando percebo,
minha mão já escolheu o que precisa naquele momento”.

Algumas narrativas parecem levar a pontos que se encontram,


como uma percepção do trabalho manual como um apoio no olhar
para si mesma. E seria o próprio fazer das mãos o responsável
por abrir um espaço-tempo de forma a possibilitar essa obser-
vação de sentimentos e sensações? Seriam as agulhas e fios o
que nos levaria nesse caminho de percepção e cuidado de si, de
produção de algum silêncio interno ou em torno?

220
“Penso que preciso terminar trabalhos iniciados, fina-
lizar etapas que ali ficaram incompletas. Mas o que me
diz essa incompletude? O que falta para que [os traba-
lhos] se encerrem? Tempo? Inspiração? Vontade? Espaço
e momento adequados? Pego o material para concluir o
bordado, escolho as cores, separo-as. Mas sinto que
o tempo pesa sobre mim, como um grande relógio a se
impor. Com alguma aflição, pego um fio comprido e cor-
to. Comprido demais para que flua com ritmo adequado,
percebo ao primeiro embolar dos nós... os nós ali, no
avesso do pano, no meu avesso. Mas o que embola o fio?
Talvez a frouxidão? Não é necessária certa tensão para
que se teça e produza de forma adequada? Com o passar
dos dias, olho aqueles mesmos trabalhos e penso ‘Por
que não me satisfazem? Será mesmo que há ali uma falta,
um desacerto?’”

Parece-me um corpo na investigação de si, a produzir gestos


que permitam trazer mais à superfície elementos muitas vezes si-
lenciados ou adormecidos. E o que é capaz de despertar o corpo e
os nossos sentidos? Ou será esse corpo que desperta os sentimentos
que nos habitam? Podemos, através dele, acessar nossas memórias?

Mãos que sentem e criam


Ela adentra a sala esbaforida, com criança em um braço e sa-
cola no outro. Está falando sobre seu cansaço, sua realidade atual
de dormir pouco e correr mais do que gostaria. Lamenta a falta de
paciência com os filhos bem pequenos e também a falta de tempo
para si. Os olhares e palavras a apoiam, mas são logo interrompidos
por si mesma, que parece ter pressa em mostrar o que trouxe. Espa-
lha sobre a mesa o material, leve, colorido. Ele se avoluma à frente
dos olhos e todas se animam.i9k

“Que cores!”, “Veja este!”, “Tenho mais agulhas aqui,


posso emprestar!”

221
Os sorrisos e falas, todos ao mesmo tempo, preenchem a sala.
Ela amamenta, a criança adormece, tudo se acalma. E o sorriso se
abre, já com as mãos a se movimentar.
E os dias nos encontros em meio às artes-manuais seguem as-
sim: alguns de mais silêncio, a parecer um silêncio concentrado.
Outros atravessados por desabafos. Há os momentos de sorrisos
calmos, de gargalhadas a preencher o ambiente ou ainda de lágri-
mas incontidas. Confissões a se compartilhar sobre a casa, os filhos,
sobre tanto do que abarca o feminino. As questões sobre a infância
se fazem bastante presentes.
Refiz meu contato com os trabalhos manuais em uma escola
de Pedagogia Waldorf, quando da adaptação do meu filho mais ve-
lho no jardim de infância. Digo “refiz” porque minha primeira ex-
periência com as mãos, agulhas e fios tinha se dado lá na infância,
ainda bem pequena, diante da paciência de uma querida tia que se
alegrava ao me ensinar. Cachecol para a boneca, foi isso. Tenho a
lembrança de me sentir incrível ao fazer aquela pequena peça ape-
nas com um fio e duas agulhas. E, quando refiz o contato com tais
artes dos fios, peguei-me a buscar na memória aquela experiência
de tantos anos atrás. Ali tive a percepção de algo como uma memó-
ria do corpo, que guardava em si os gestos daquela primeira expe-
riência. E como isso seria possível... tantos anos depois? A alegria
do resultado do trabalho feito à mão me parece que foi a mesma, o
sorriso e o brilho no olhar daqueles tempos infantis. Mas, e a inse-
gurança ao pegar aquela ferramenta que não mais me era familiar?
E a dúvida que se instalou: eu seria capaz de realizar aquele traba-
lho? Seria mesmo então a memória do corpo a atuar, trazida pela
repetição do gesto?
Na fase da infância, experimentamos com naturalidade
nossas então pequenas mãos, que, junto ao restante do corpo,
encontram-se plenas de vitalidade e com todo um caminho de
potencialidades a ser descoberto. E as mãos humanas se apre-
sentam, nessa fase, com diversas possibilidades de movimento
sendo desenvolvidas. Inicialmente, abrem e fecham, tateiam,
experimentam força e pressão, e descobrem-se com o auxílio
de texturas e temperaturas com as quais se deparam. Passam a
coordenar o olhar com suas próprias mãos, e mais tarde irão se
exercitar no conhecido movimento de pinça.

222
O brincar da criança atua não apenas no
desenvolvimento do corpo físico, mas no bem-
-estar emocional dos pequenos, que, assim, ex-
perimentariam maior confiança, curiosidade
por si e pelo mundo que os cerca, maior domí-
nio de seu próprio corpo e conhecimento de
suas habilidades e dificuldades, dentro de um
livre criar alegre e espontâneo.
E levando-se em conta o desenvolvimento
do corpo, as mãos ocupam grande importância
em nossa existência. Muitas vezes ignorada em
detrimento de outros órgãos, elas nos apoiam
de maneira especial, sobretudo por sua multi-
plicidade de funções. A mão seria a expressão
de liberdade do ser humano, bem como de sua
individualidade (CRAEMER, 2011, p. 9-10).
As mãos humanas, assim como os
olhos, têm alta capacidade de percepção e
distinção. Como outros órgãos que necessitam
de estímulo para que melhor se desenvolvam,
também as mãos poderiam estar, desde cedo,
expostas a experiências várias, a um livre tocar
e sentir, tateando o ambiente à sua volta.
O olhar da Pedagogia Waldorf para a in-
fância e o desenvolvimento integral do ser
humano valoriza um brincar que busca pre-
servar, especialmente para crianças menores,
a importância do contato com materiais natu-
rais, que tragam experiências da percepção da
verdade nesses elementos.
Refletindo sobre a qualidade do que esta-
ria sendo oferecido às crianças, e conforme as
percepções sensórias a que elas são expostas,
restam inquietações: para que “tipo de mundo”
elas despertam? Como elas percebem o corpo
e dele se apoderam? Qual a qualidade das tro-
cas que vêm ocorrendo entre as crianças e o

223
meio que as cerca? Qual o impacto dessas tro-
cas quando atingimos as fases da juventude e
da vida adulta?
Na hipótese de um não cuidado com a in-
serção da criança no ambiente que a cerca,
poderia haver um afastamento de sua origem,
um enfraquecimento dos laços sociais, da per-
cepção da grandeza das forças e dos elementos
da natureza, dos seus ritmos e ciclos. Há o risco
de que tal afastamento conduza a um possível
enrijecimento emocional, um estreitamento das
capacidades criativa, imaginativa e relacional,
acentuando, assim, certa sensação de não per-
tencimento.
As mãos têm ligação direta com nosso cé-
rebro, e em toda a sua extensão – na palma, nas
laterais, ao longo dos dedos ou em suas pontas
– existem diferentes terminações nervosas.
Enquanto órgãos não especializados – diferen-
temente dos animais, por exemplo –, nossas
mãos necessitam de movimento, de atuação no
mundo, de atividades várias, como um treino
para que não atrofiem e não nos tornemos “ce-
gos dos dedos” (CRAEMER, 2011, p.10).
A habilidade de “ver” com nossas mãos
estaria ligada ao fato de que, através delas,
identificamos de maneira concreta e palpá-
vel a unidade das coisas. São as mãos que
nos trazem as vivências na materialidade,
possibilitando a percepção da capacidade
de atuação do ser humano no ambiente em
que vive.1
Não apenas na infância, e sim por toda a
vida, tateamos o mundo pelos sentidos e, por

1. No livro O artífice, de Richard Sennett, o autor aborda a íntima liga-


ção mão-cérebro-olhos e analisa a relação entre o trabalho do fazer
manual, seus gestos e significados, e o desenvolvimento/fortalecimen-
to de valores éticos.

224
eles, poderíamos melhor nos guiar, percebendo que somos parte,
apreendendo seus ciclos. Isso parece nos orientar, nos situar e nos
vitalizar, aumentando nossa capacidade de compreensão e de atu-
ação, e nos mostrando a possibilidade de habitar nossa realidade
com mais significado.
As escutas que os fios trazem me conduzem pelas possibilida-
des que as mãos podem ocupar ao nos relacionarmos, ao atuarmos
no mundo e nele materializar nossas criações, intervindo de manei-
ra única. Somos mão, toque, gesto, escuta e expressão, como um re-
trato da alma, ao atuarmos na concretude da matéria, fortalecendo
nossa individualidade e produzindo futuro. Nosso agir no mundo
por meio das mãos indica potência no caminho de um atuar criati-
vo e parece revelar também intenções, sentimentos, sensibilidades
e expressões mais íntimas.
O fazer manual talvez seja dispositivo possível a nos dar a
dimensão do pertencimento, da concretização de ideias através
da arte, fortalecendo nossa vontade. Para além disso, parece ain-
da nos revelar o permanente decurso do tempo, pois somos parte
do processo de realização do que virá. Ele nos insere no contínuo
correr das horas e no caminhar dos dias, coloca-nos na contagem
do ponto-a-ponto, do fio-por-fio.

O fazer com as mãos e o


cuidado de si
Ela ganhara de presente um novelo diferente daqueles
que costumava ver. Um novelo bem grande, muitos metros de uma
mistura de lã com algodão, macio ao toque. Mais de uma cor se
mesclava naquele fio. Adorava aquele tom de verde e, também, a
mistura com o azul, que a agradou demais. Começou a pensar em
fazer algo especial para si mesma, essa era sua vontade. Um xale.
Tecer um xale para si parecia ser o que precisava naquele momen-
to. Será que queria o desafio de uma peça grande, que lhe exigiria
atenção, paciência e persistência? Talvez quisesse mesmo uma cer-
ta orientação dada por aquela receita pronta, em tempos nos quais
sentia-se atordoada com notícias e afazeres. Mas o que lhe agra-
dava mesmo era pensar naquela grande tessitura a lhe cobrir as

225
costas ou o peito, a lhe envolver como um abra-
ço. Parecia um abraço naquela mulher que se
tornara. Um abraço para si mesma, construído
com tempo e atenção. Um tempo de afeto dedi-
cado ao próprio cuidado.
Um olhar sobre si mesma, atento ao
que se é e ao que sente, a possibilitar ainda
uma percepção sobre o que se tornou. Rela-
tos como esse preenchem alguns dos espaços
de fazeres manuais que frequento, comparti-
lhados com outras mulheres e permeados pelo
movimentar das mãos.
Nesse percurso, a refletir sobre o que con-
sistiria ou levaria a uma vida com maior quali-
dade, considero determinada noção de saúde:
não o simples oposto de doença, ou um ser li-
vre de males que acometam o corpo físico, mas
o ser humano diante do mundo e, especialmen-
te, inserido nele e capaz de atuar nesse lugar.
Apoiei-me aqui na noção de salutogênese,
que tem seu enfoque em indagações como: o
que gera a saúde, o que a mantém e o que a
protege? Quais são nossas fontes de vitalidade?
Quais podem ser nossos caminhos a garantir
uma vida de mais qualidade para além do as-
pecto puramente físico, mas considerando o
bem-estar do ser humano de forma integral?
As artes-manuais com os fios poderiam
atuar como dispositivos que viabilizam a pro-
moção de um viver com maior qualidade...
Talvez não sejam a garantia de um viver mais
saudável, mas sim de um campo fértil que pos-
sibilite meios de auto-observação e autoconhe-
cimento, sobre o que nos traz equilíbrio, sobre
o que nos levaria a alguma resiliência, flexibili-
dade e resistência diante de situações que cau-
sam adoecimento ou perda de vitalidade.

226
“Meu caminho com as mãos me coloca em um certo lugar
de observação: do meu corpo, da respiração, dos meus
pensamentos. Começo a tricotar e sinto às vezes como
se assistisse aos pensamentos dentro da minha cabeça.
Parece que muitas vezes eu os deixo passar, de forma
proposital. Porque estou empenhada em seguir trico-
tando ou porque desejo terminar o trabalho. Ou porque
quero mesmo fugir de alguns pensamentos. Algo me leva
a seguir num ritmo, ainda que eu não saiba quando
aquele tecer chegará ao fim. Cada parte de fio que se
transforma em ponto parece prender ali, muitas vezes,
minhas preocupações”.
Bem ao seu lado, com as mãos trabalhando, outra companhei-
ra de grupo dizia que, quando por vezes sentia-se aflita ou imersa
em preocupações mais urgentes, percebia que acelerava o movi-
mento, intensificava o entra e sai da agulha. E, segundo ela, seu te-
cer mais intenso costumava ir diminuindo o ritmo quando do peito
vinha um suspirar mais profundo. Inspirava forte e expirava por
vezes pela boca, a retirar de dentro de si algo que não cabia mais.
Talvez sejam os fazeres que aguçam os sentidos, ou o movi-
mento rítmico repetitivo a dar cadência à respiração ou ao pensa-
mento, mas o que nos trazem os relatos é a possibilidade de, nesse
espaço-tempo criado pelo atuar das mãos, uma observação mais
cuidadosa acerca das condições individuais. Parece ser um apren-
dizado, um caminho de auto-observação, com percepção de nossos
ritmos internos diante também do que vem de fora.
Poderia o fazer das mãos junto a fios e agulhas atuar tam-
bém como um ato de resistência, mantendo-nos no esforço de
trabalhar a matéria? Seja por gestos mais firmes e cadenciados
ou por um toque suave e delicado, é por vezes no silêncio desse tra-
balhar que cabeça-visão-mãos-tato-coração-pulmão-respiração se
movimentam todos juntos, na tentativa de um harmonizar-se sin-
cronizado. O trabalhar com as mãos pode ser a resistência à força
bruta ou à frieza dos nossos tempos, enquanto ação que proporcio-
na maior equilíbrio, o que poderia nos deixar menos vulneráveis
frente às adversidades e fragilidades.

227
Quando atuo, me reconheço força, imprimo certa pressão
e me percebo vontade e matéria. Mas não é força desmedida. É
aquela de manter-se no ato desejado, no movimento nem sem-
pre planejado, na observação que revela. É preciso disposição
interna para seguir no movimento, para manter-se no ritmo, no flu-
xo, no atritar-se. E talvez não seja tanto a força de mãos e braços,
mas um ímpeto que venha do meu “avesso”.
Tecer como um exercício, como a busca de um ritmo, como
um esvaziar-se ou alimentar-se, como um estar no mundo, como a
marcar um tempo... como um bailar da agulha e nada mais. Posso
tecer como a observar, por meio das minhas mãos, a materialidade
de fazer-se no mundo e, com esse ato, preencher o lugar que habito
ou além.

Vivências com fios e agulhas


Um crochê pode ser uma corrente com pontos simples repeti-
tivos, um caminho para um círculo ou um quadrado, ou um fazer
mais livre na criação de variadas formas, mas parece indicar uma
firme ação de nosso atuar no mundo. Com a mão que apoia e acolhe
a trama que surge e a outra que age no movimento do mergulhar da
agulha, o crochê nos exercita em um processo ativo de nossa mão
dominante, na atenta observação da busca dos pontos, que recebem
novos fios e ali se multiplicam em um sem-fim de possibilidades.
Na execução do tricô, com seu constante encostar das agulhas a
se encontrarem de forma cadenciada rente ao peito, tão próximo ao
coração, reproduz-se movimento sutil que envolve todos os dedos,
que aquece a palma das mãos. E aqui as agulhas não apenas tecem,
como no crochê ou na costura, mas sustentam os pontos em sua es-
trutura, apoiando o trançar do fio que segue a aumentar a trama.
Diversamente do crochê e do tricô, o bordado e a costura con-
centram maior movimento na ponta de nossos dedos. Há que se
fazer pressão exata para manuseio da agulha – pega delicada, mas
não tão leve que das mãos possa escapar. Para além da escolha de
cores que essas e outras artes-manuais possibilitam, aqui não mais
se cria a trama como entrelaçamento dos fios, mas experimenta-
-se o espaço do tecido já dado enquanto superfície. Nesse fazer, é o

228
movimento da diminuta ferramenta que pode
nos revelar infinitas possibilidades de riscos e
cores. É o direito e o avesso, é o aparente e o es-
condido, o que por vezes se revela e em outras
não. E parece não haver como fazer bordado e
costura sem tatear o avesso, sem apurar a per-
cepção dos sentidos, descobrindo com toda a
extensão de nossas mãos o espaço a explorar.2
Seja seguindo uma receita, um risco
pronto ou em uma produção de execução
mais intuitiva, seriam tais técnicas capa-
zes de puxar nossos fios mais internos? De
permitir um momento de atenção silenciosa
em meio a dias confusos e acelerados? Se-
ria possível um equilibrar-se por meio dos
fios, a se entrelaçarem de forma cadenciada
e próximos ao centro tão especial do nosso
corpo, a conectarem cabeça-olhos-mãos?
Talvez a resgatarem o ritmo que por vezes
se acelera na vida de todo dia.
São fazeres que nos trazem a vivência do
toque, o segurar suave ou mais firme de agu-
lhas e fios, a escolha das cores. O acalmar-se e
conter-se ao atravessarmos linhas na estreite-
za dos buracos das agulhas. Exercitar e produ-
zir através dessas técnicas com fios pode ser a
manifestação mais forte daquilo que, muitas
vezes, queremos expressar com palavras e não
conseguimos. Porque existem as vozes e as es-
cutas, mas há também, pela arte-manual, um
comunicar-se de forma não verbal.

2. Sobre algumas características e benefícios dessas diferentes téc-


nicas citadas (crochê, tricô, costura e bordado), apoiei-me essencial-
mente nos livros de Neli Ortega e Ana Cairello; Maria Lucia Moraes,
que analisam parte do currículo de trabalhos manuais das escolas de
Pedagogia Waldorf. (ORTEGA, 2017, CAIRELLO; MORAES, 2015.)

229
Experimentações do viver
As artes-manuais são assim uma espécie de mãe de tudo
que existe e até do que ainda não foi retirado do escuro.
Ela é mãe de tudo isso, dona de qualquer coisa deste e
do outro mundo. Ela tem o poder de criar, nutrir e curar,
porque só faz tecer a vida das coisas, dia após dia. Cria o
brilho das almas e, na noite, borda estrelas no tecido es-
curo do vazio-firmamento. Acaso não vê o quanto ela nos
ensina a Ser? (TOMÉ, 2018, p.48-49)

Nas artes-manuais experimentamos materiais e ferramen-


tas, e testamos possibilidades, como nas experimentações do
viver. Afrouxamos o ponto para tornar mais flexível, acrescenta-
mos cor para trazer alegria ou limitamos os tons para, talvez, in-
tensificarmos a concentração e equilibrarmos o que vai dentro do
peito. Apertamos o ponto para uma trama mais densa e firme. Mu-
damos o final do projeto, alteramos o rumo, a receita, adaptamos,
tentamos um acerto de cor, tamanho, emendamos linhas. Lidamos
com os nós, o novelo embolado; tentamos encontrar caminhos ou-
tros para o resultado que não nos satisfez. O fazer, o desfazer, refa-
zer, recomeçar.
Se nos são generosas as folhas em branco que recebem nossas
escritas, generosos também nos são os fios, moldáveis, que pare-
cem estar à espera das mãos e daquilo que elas carregam de nós:
histórias, memórias, nosso querer, nossos desejos, afetos, inspira-
ções, aflições, projetos, ideias, reflexões, nossas alegria e, muitas
vezes, a esperança de um devir outro, de um bem viver.
Pode o movimentar das agulhas ser o exercício do fazer
enquanto prática, para tecer algo, para atingir um fim e ter o
resultado depois nas mãos. Uma peça de crochê, um tecido bor-
dado, ou uma malha em tricô: seriam todos como a materiali-
zação do que nossas mãos são capazes. Mãos diretamente ligadas
ao cérebro, ligadas à atenção de nossos olhos e também ao nosso
sentir. Podem ser caminhos para estímulo e fortalecimento da cria-
tividade, para expansão de nossa imaginação. E, ainda, a possibili-

230
dade concreta de atuar no mundo de maneira
única, de imprimir nossa individualidade na
materialidade e, ao mesmo tempo, cuidar, com
afeto, de nosso campo mais íntimo.
Talvez as artes-manuais possibilitem não
só o esvaziar-se daquilo que já transbordava,
mas também sejam capazes de nos preencher,
tecer com mais cadência e ritmo nosso espaço
interno, tomado por afetos. Elas podem ser um
meio de produção do belo, de encantamento
dos sentidos, um alegrar-se da alma, um agra-
do aos olhos e ao tato.
Exercitar-se nas artes-manuais indica
um caminho de cuidado de si quando nos
permite “abrir espaço” dentro de nós, quan-
do tecemos não apenas atentas aos pontos
e à execução do trabalho, mas criamos com
o que vem em nossas mãos a transbordar-
-se, a libertar-se, a sensibilizar o corpo que
produz o gesto e que carrega a vida. Parece
que tecemos com aquilo que escapa de nós, ou
com o que vem à superfície, em um movimento
de aflorar, nessa trama material que está a ser
construída pelas mãos.
O momento único daquela feitura, naque-
le ponto, com um trançar de fios e movimen-
tar das agulhas: seria um mergulho em nós,
em nossas memórias e perspectivas futuras,
em nossas fragilidades e potências? Seria tal-
vez um adentrar pela nossa pele, um constante
aprendizado de si, moldando possíveis modos
de habitar a existência.

231
E disse o poeta Antonin Artaud: “Ninguém alguma
10 de agosto de 2019.
Querida Juliana, vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou
inventou senão para sair do inferno” (1947).
Escrever, procurar, escrever, desmanchar, fazer,
procurar...
Entre um ponto e outro, caminhar... Entre um ponto e
outro, tecer o próprio caminhar...
Foi um prazer receber o convite para integrar a sua
banca, maior ainda o prazer em conhecê-la, um fio ou vários
fios nos unem e nos aproximam da vontade de desvendar, de
viver tudo o que as artes-manuais podem nos proporcionar e
de, quando menos nos damos conta, nos levar por caminhos
nunca imaginados, produzir sensações e sentidos.
Logo no início temos o seu questionamento: onde o
contato com o material, o ambiente e os fazeres manuais
poderiam levar a encontros e escutas, capazes de acionar
positivamente tudo o que envolve o âmbito do sentir. Um
presente para mim, aluna do curso de pós-graduação em
Artes-manuais para Terapias. Acredito que temos aqui uma
vastidão investigativa...
Ao longo deste curso, mergulhamos na casa – não só
a Tombada, mas a nossa casa interior e exterior, sob novas
óticas e perspectivas. Nas arte-manuais domésticas, com
um olhar de pesquisadoras, passamos a vivê-las e senti-las
com outra dimensão e significado.
Nos vejo como pessoas venturosas. Ao final da jornada,
levamos para casa não só um título, levamos vivências,
muitas histórias para contar e uma nova pessoa. Não é
demais? Descobrir forças, potências e ser resistente com
leveza.
Quando participamos de atividades dedicadas às
manualidades, temos chance de ouvir o outro, as escutas
captadas em seu caminhar são recorrentes: a vontade do
trabalho novo iniciado do zero, o corpo e a mão que vão ao
encontro de certo fio ou material e cores em meio a várias
opções, o trabalho iniciado e não terminado, confissões
compartilhadas sobre a casa, sobre os filhos, sobre o
feminino.
Mais adiante, você diz que “somos mão, toque, gesto,
escuta e expressão, como um retrato da alma, ao atuarmos

232
na concretude da matéria, fortalecendo nossa individualidade e
produzindo nosso futuro”. O fazer manual nos insere no contínuo
correr das horas e no caminhar dos dias, coloca-nos na contagem do
ponto-a-ponto, do fio-por-fio. Talvez não seja a garantia de um viver
mais saudável, mas sim de um campo fértil que nos possibilita meios
de auto-observação e autoconhecimento sobre nossas questões, sobre
o que nos traz equilíbrio, sobre o que nos levaria a alguma resiliência,
flexibilidade e resistência diante de situações várias que possam se
apresentar e, muitas das vezes, causar adoecimento ou perda de
vitalidade.
Você procura na capacidade criadora um mecanismo de
acionamento de ânimos, desejo, maior disposição, inspiração ou
vontade, que pode beneficiar diferentes áreas da vida. A expansão da
experiência pode se reverter em vitalidade e potência para lidar com a
vida em tempos que parecem caminhar para o embrutecimento.
Com a leitura de seus registros, lembro-me do professor e
psicólogo húngaro Mihály Csikentmihályi e a sua teoria de flow
(fluxo). Ele se interessou em descobrir quais eram os elementos
que contribuem para trazer uma vida que vale a pena ser vivida,
explorando arte, filosofia e outros campos do conhecimento que
poderiam ajudar nessa investigação. Suas questões eram: por que é
tão difícil ser feliz e qual é o significado da vida. Para ele, o estado de
flow é o segredo da felicidade. A fluidez é o fenômeno que acontece
quando nosso sistema nervoso se concentra profundamente em uma
atividade, um sentimento de êxtase, de estar fora da realidade do dia a
dia, um sentimento de serenidade, de estar crescendo além dos limites
do ego, uma ideia de estar além da dimensão corporal. Cada pessoa
encontra o flow quando está fazendo aquilo de que realmente gosta.
Sim, acredito que exercitar-se nas artes-manuais indica um
caminho de cuidado de si, que possibilita o esvaziamento daquilo
que transborda, que liberta e sensibiliza o corpo, que produz o gesto
que carrega a vida, que permite um adentrar e aprender de si, nos
tornando singulares no habitar a existência.
Concluo citando a novamente o poeta Antonin Artaud: “A vida é
a imitação de algo essencial, com a qual a arte nos põe em contato”.

Renata Fonseca
Especialista em Artes-manuais
para Educação (Facon)

233
Juliana, começo por louvar o tema de sua pesquisa e o
Artes-manuais em processo modo como foi desenvolvido: depoimentos pessoais, memó-
rias, impressões colhidas junto ao coletivo. Há um equilíbrio
entre teoria e reflexão. Você argumenta de maneira apropria-
da, contando com uma bibliografia enxuta, mas certeira, e sem
abrir mão de uma escrita sensível, especialmente na descrição
dos movimentos envolvidos na execução das manualidades.
Soaram-me quase um poema.
A certa altura, você escreve “Posso tecer como a obser-
var, através de minhas mãos, a materialidade fazer-se no
mundo e, com esse ato, preencher o lugar que habito ou além”.
Meu pensamento voou até o historiador da arte Arnold Hau-
ser, quando fala da técnica do sumi-ê. Segundo ele, quando o
artista pinta uma flor, por exemplo, não é só uma pintura, é
uma flor a mais que ele doa à natureza! A criação artística nos
iguala à experiência divina. Mantidas as proporções, nosso
espanto diante de uma arte-manual concluída é semelhante à
reação de Deus ao perceber o que acabara de criar.
Assim como você – e muitas pessoas, felizmente – penso
que as artes-manuais desempenham, sim, uma função tera-
pêutica desde sempre. Nos tempos atuais, talvez, mais ainda.
No entanto, vejo não só uma função terapêutica, mas prática
mesmo, quase uma “utilidade-manual”. Explico: quando estou
assoberbada com a escrita acadêmica, o patchwork é um ex-
celente complemento, uma continuidade da minha escrita, só
que em outra materialidade. Ali eu calculo, organizo, compo-
nho, faço trocas, ensaio os melhores resultados, tal e qual na
escrita científica, na qual precisamos obedecer a uma estrutu-
ra. É como se o patch me ajudasse a organizar os pensamentos
e depois eu pudesse voltar para o computador e trabalhar com
a composição de palavras. Ou seja, a arte vai para outros ca-
minhos além da terapia.
Penso que seu trabalho fala bastante de perto dos estudos
de processo, de percurso criativo. Sugiro, pois, uma consulta
às obras de Cecília Almeida Salles. Você poderia começar pelo
Gesto inacabado, em seguida Arquivos de criação e, se consi-
derar que precisa de mais, Redes da criação. Num contexto em
que se consome tudo pronto, onde o imediatismo e os meca-
nismos de ação-reação, de impulso, é que determinam o nosso
comportamento, envolver-se em bons processos parece real-
mente promover a saúde. Em artes-manuais, estamos falando

234
de um ciclo que tem início no desejo que, depois de identificado e nome-
ado, passa pela vontade, pelo plano, depois pela reunião de materiais,
pelo tecer e, por fim, não sem alguns percalços, não sem fazer e desfazer
e refazer, alcança uma conclusão. O fato é que a maioria de nós encon-
tra-se alijada dos processos e não percebe a gravidade disso, ao contrá-
rio. Quase não se cozinha mais, não se costuram as roupas, tudo vem
pronto, embalado para consumo e descarte, o que nos torna igualmente
uma espécie de produto, um equipamento feito para consumir. Isso é
intencional. Ajuda a vender produtos e medicamentos, a fazer com que
desacreditemos da própria vida como processo, a ponto de desistirmos
dela por não enxergarmos a próxima etapa.
A vivência de processos parece-me fundamental e você aponta os
benefícios em seu texto na medida em que o próprio corpo-em-processo
de execução artística responde ao que o espírito necessita, por exemplo.
Do caos interno, emaranhado potente, mas assustador, dionisíaco por
excelência, aproxima-se o princípio apolíneo da composição de formas,
da harmonia, do equilíbrio e, então, a obra de arte se faz. Sugiro aqui ao
menos um passar de olhos em O nascimento da tragédia, de Nietzsche,
no capítulo em que ele aborda o embate entre esses deuses. Conforme
você aponta, é preciso olhar para dentro. É preciso identificar o que se
passa internamente, Dionísio, e sair em busca de Apolo, do melhor cami-
nho – no caso, um tricô, um crochê, um bordado...
Tenho para mim que esse é apenas o início do caminho, Juliana.
Prevejo um mestrado com todo esse material e com outros mais que
você certamente poderá reunir. Sugiro que converse com o livro de Re-
nata Fonseca, Entrelinhas, sinais e sentidos. Os trechos em que ela des-
creve a lida com o crochê conversam de perto com a sua pesquisa.
E quando você questiona “Seriam tais técnicas capazes de puxar
nossos fios mais internos? Creio que sim. Permitir um momento de aten-
ção silenciosa em meio a dias confusos e acelerados?”. Também acredi-
to, Juliana. Ao menos seu texto, bem tecido, bem tramado, fez isso comi-
go. Muito obrigada. Parabéns.

Adélia Nicolete
Doutora em Artes (USP)

235
Aparecida

APARECIDA
XAVIER
236
Criando possibilidades
Que tempo é esse que acho que não tenho?
Tempo para criar, para mim é para o mundo.
Penso agora que é tempo de construir tempo e quando não for
possível vou tirar o não e ficar só com o possível, aproveitando o
máximo.
O vento que leva o tempo traz também.
Agora é só começar a existir diferente, já que tudo continua
no mesmo lugar, o que muda é o meu olhar...
O que vou fazer com este tempo que tenho?

Tempo de Cardar
Cardar é criar condições para o fio existir.
Hoje criei tempo, cheguei, lavei a louça, limpei a mesa e coloquei
todas as minhas anotações e alguns livros sobre ela e me pus a car-
dar, eu já havia observado as nuvens e lido o texto repetidamente
enquanto esperava.
A noite era fria.
Sentei e cardei, a lã ficou fininha como nuvem esparramada no céu
azul, antes um aglomerado que mais parecia nuvem com vontade
de chover.
Percebo a água que pinga da torneira devagar e de repente o pote
está cheio. Assim também cardo lentamente,
Clara chegou. Brincamos de fazer fio com as
pontas dos dedos.

Dentro de caixas e gavetas


Quando penso em artes-manuais, lembro-me
que ao longo da minha vida… deixei muitas
coisas para fazer depois, algumas guardadas
e outras desmanchadas.
Neste instante de ponto em ponto transformo
o fio em meia, procuro um lápis para escre-
ver mas só encontro agulhas.
Sem demora escrevo o que era pensamento.
Faço e desfaço minha meia.
Hoje o tempo para mim é relativo.

237
Encontrando o fio
da meada
O despertar dos processos
criativos através dos
trabalhos manuais

Ao fazer os trabalhos manuais e


escrever, vasculho o meu avesso, o que me
leva a uma escuta interna: aonde tudo isso
me leva ou me eleva? Como estou e como
quero atuar no mundo? Nesse caminho
de fazer e pensar, encontro, nos trabalhos
manuais junto a uma escrita, o início de um
novo percurso.

Mãos que tecem e


despertam
A manipulação de materiais natu-
rais, a experiência de tecer o próprio fio, a
artesania do pensamento junto ao desen-
volvimento de uma escrita intensificaram
a vontade de produzir. Agora, com olhar
renovado para os trabalhos manuais além
da técnica, fui ao encontro de outras pessoas
que vivenciam esses trabalhos de modo sin-
gular, pessoas que dividem saberes e formas

238
de viver, ampliando o co-
nhecimento de si, do outro
e do mundo. Desperto aos
poucos e com alegria faço
parte dessa rede.
De ponto em ponto,
vou conquistando um equi-
líbrio, inicio um processo
de autoeducação, unindo
esse novo modo de pensar
e fazer com as mãos com
minha experiência como
arte-educadora.

Tempo de criar tempo


Minhas memórias foram acionadas
para relembrar os primeiros pontos de
crochê: aperto e afrouxo meus pensamen-
tos em reflexões sobre o tempo.
Que tempo é esse que acho que não
tenho? É tempo de produzir tempo.
Esse processo de fazer e pensar com
as mãos é a abertura da alma para todas as
possibilidades a serem descobertas.
Mãos postas em movimento, concluo:
O que vou fazer com este tempo que te-
nho? Preciso apreciar o tempo, devagar para
aproveitá-lo em sua totalidade. Com um
olhar mais demorado, observando cada pon-
to, cada linha na paisagem, buscando uma
construção e uma transformação interna a
se realizar. Para isso, é necessário entrega.

239
Matéria – modos
de existir
Madeira, material neces-
sário para corporificar um fuso.
Escolho as que faziam parte do
telhado da minha casa (em re-
forma).

Através do duro e do mole,


aprendemos a pluralidade dos
devires, recebendo provas bem
diferentes da eficácia do tempo.
A dureza e a moleza das coisas
nos conduzem - à força - a ti-
pos de vidas bem diferentes.
O mundo resistente nos impul-
siona para fora do ser estático,
para fora do ser. (BACHELARD,
2016, p.16)

Fazer o próprio artefato para a realiza-


ção dos trabalhos manuais dá um significa-
do singular: é como se ele fizesse parte de
mim e eu parte dele.

Fios que se
entrelaçam se
fortalecem
Dei início a vivências com lã de car-
neiro e fios em uma casa assistencial onde
sou voluntária.
A primeira vivência se deu com um me-
nino de 6 anos. Ele sentiu a lã em suas mãos:
aquela que estava mais suja foi lavada e com

240
a seca fez fio com a ponta dos dedos. Ficou
maravilhado ao saber que aquela lã tinha
sido de um carneiro de verdade, lembrou-
-o das imagens do pastor e seus carneiros.
Para o tricô de dedos, o menino escolheu o
fio verde. Concentrado enquanto trabalha-
va, olhava para os dedos e para o fio de lã.
E ele mesmo escolheu algo significativo para
si: um cachecol.

Quando encontrou a mãe, logo quis


ensiná-la. Me alegrou ver mãe e filho uni-
dos por um fio em uma cumplicidade tão
singular à qual deram continuidade em
casa, pois ele levou o tricô para terminar.
A mãe me contou depois que ele quis ter-
minar assim que chegou em casa.
No sábado seguinte,
quando nos encontramos, o
menino veio logo me mostrar
como o estava o seu tricô, todo
feliz. Nesse dia, eu tinha leva-
do outro fio e mostrei como
fazer um novelo, enquanto
contava uma história. Com
entusiasmo, ele enrolou toda
a lã; quando seu novelo esta-
va pronto, olhou para ele e o
abraçou com enorme carinho.
A próxima vivência foi
com um grupo maior. Como
fazer? O que pode ser atra-
ente para meninos, meninas e
adultos?
Respiro e chego à conclu-
são de que só posso fazer com
tranquilidade algo que todos já

241
vivenciaram: “O uso das mãos desde a mais
tenra infância”. Com a sala em penumbra,
convidei todos a respirar profundamente,
tocar suas próprias mãos e em seguida fric-
cioná-las, levando-as para perto do rosto
para sentirem sua temperatura.
Alguns contaram sobre fazer e em-
pinar a própria pipa, outros contaram
de brincar com barro no quintal de casa,
também lembraram do tricô que a avó
ensinou, e assim chegamos à importância
do fazer com as mãos. Surgiu uma rique-
za imensa de palavras, sensações e senti-
mentos.
Com a sala iluminada, apresentei a lã
de carneiro, oferecendo-lhes a oportunidade
de sentir sua textura, seu cheiro, de fazer um
fio com a ponta dos dedos. E, com fios colori-
dos, eles fizeram seu primeiro novelo.
Dei início a uma série de outros en-
contros que ocorrem semanalmente e que,
pouco a pouco, vão despertando neles o
interesse pelos trabalhos manuais e que
a mim trouxeram novas reflexões sobre o
tempo e o ritmo do dia a dia das crianças.
Algumas levaram o novelo para casa, mas
não tiveram ou não separaram um tempo
para manipulá-lo. Estamos respeitando nos-
so ritmo?
Começo refletindo sobre meu próprio
ritmo e para isso escolho uma tarefa por noi-
te e procuro terminá-la em tempo hábil, res-
peitando o horário de dormir. Cuidando de
mim mesma, preparo-me para os próximos
encontros.

242
Das mãos para o
mundo
O que era só vontade foi transformado
em potência: o encontro de forças internas
com os trabalhos manuais foi tecendo uma
trama resistente que fortaleceu e impulsio-
nou minha criatividade. Nesse percurso em
que, mais que produzir, quero também com-
partilhar – para assim se tornar vida.
Tudo continua no mesmo lugar, os
dias seguem o fluxo da vida: a roupa para
lavar, a comida para fazer, o cuidado com
a família e o trabalho para o sustento da
casa. O que mudou foi meu olhar, ago-
ra mais atento ao meu tempo, às minhas
mãos e ao que elas unidas ao sentir e ao
pensar são capazes de fazer e transformar.

Nada pode me afastar


do que eu sou agora.
(Nietzsche)

243
Tempo de ter tempo “Deve amar aquilo que se faz… Cada
coisa entra nas mãos e enquanto amassa
pensa com as mãos e cria com as mãos.”
(Alessandro D'Avenia,
escritor, professor e roteirista italiano)

“Roube todos os relógios de mesa ou de


pulso do mundo. Destrua-os.”
(Yoko Ono)

Na história da psicanálise, alguns profissionais de-


fendem que a sensorialidade tátil é um poderoso modelo
organizador do Eu e do pensamento, como no conceito do
“Eu-pele”, definido pelo psicanalista francês Didier Anzieu.
Traçando um paralelo com o texto de Aparecida Xavier,
é notável como o título vem ao encontro do despertar do
mundo psíquico através do mundo tátil. Se a pele é o limite
do eu, com sua experiência viva ela deixa claro que as ar-
tes-manuais, por conta da experiência sensorial, estabele-
ce pontes e abre portas secretas que levam gentilmente à
conexão com outras almas.
O mergulho interno de Aparecida foi inspirador, e ao
transformar sua experiência em escrita, sua “artesania do
pensamento” bordou palavras afetuosas. E ao criar, fazer,
refletir, entendeu a importância de compartilhar com o
mundo seu trabalho. De mão em mão. Da vontade ao vo-
luntariado. Provando que através do tátil é só encontra-
mos sentido sentindo.
Em tempos modernos, descosturar fronteiras é um ato
de gentileza e afeto, no qual a experiência do toque é funda-
mental para resgatar a essência imutável do ser humano.
Esse movimento de interiorização e exteriorização da ar-
tista para o mundo é um motor que intensifica sua vontade
de criar e dividir. A vontade é um dos maiores tesouros da
alma, a vontade é o motor da vida. E seu processo de busca
e construção por meio dos trabalhos manuais é uma trilha
feliz, um encontro precioso com sua voz interna.

244
Ao promover um diálogo sobre as sensações, reflexões e senti-
mentos que as artes-manuais provocam, a autora evoca o verdadeiro
sentido da palavra educar: extrair de dentro de cada um suas ques-
tões e o melhor de si.
O processo de seu trabalho evoca também uma valorização das
origens, seja pela retomada das memórias maternas com o resgate
afetivo da prática dos trabalhos manuais, seja com o respeito às ori-
gens da matéria-prima da lã, ao mostrar às crianças um novo olhar:
mesa é um pedacinho de árvore, lã um pouquinho do carneiro.
Como ela mesma diz, é preciso tempo de ter tempo. De ver o sa-
grado na rotina automatizada dos dias. De demorar-se no olhar. De
ao tricotar refletir que também na vida nos desmanchamos e nos re-
fazemos o tempo todo. Tempo de estabelecer uma ponte com o outro,
beber também de sua vida, se revitalizar, intensificar sua vontade de
­­produzir e promover o verbo criar no infinito.

Andréia Vieira
Artista, ilustradora, autora de livros e oficinas lúdicas e
educativas para a infância

245
O QUE PROPÕE O CURRÍCULO
DAS ARTES-MANUAIS
NA PEDAGOGIA WALDORF?
ELIS STELA MELLO DE OLIVEIRA

Contato com a matéria e sua transfor-


mação: é isso o que proporciona o “trabalho
manual”, como é denominado o ensino de
artes-manuais na Educação Steineriana.
Esse processo – aliado ao fazer, que integra
a forma e a funcionalidade de um objeto
à necessidade real do ser humano – busca
promover o desenvolvimento da inteligên-
cia aliada ao corpo físico, no que se refere
ao refinamento da motricidade. Compre-
ende ação, movimento e desenvolvimento.

As mãos são também responsáveis pe-


las emoções que emergem desse processo e
promovem a integração entre pensamento
e ação. Por meio de movimentos repetidos
ritmicamente, e do trabalho adequado a
cada faixa etária, fortalecem a vontade e o
pensamento lógico.

Os trabalhos manuais são explorados


como fio condutor do currículo das demais
disciplinas, com o objetivo de harmonizar-
-se com as necessidades anímicas e antro-
pológicas do aluno. Tanto no Ensino Funda-
mental como no Ensino Médio.

246
As crianças aprendem a fazer o tricô,

que requer alta concentração e agilidade
das mãos e especificamente de todos os de- A
dos. Esse processo vivifica a capacidade de N
pensar, que neste momento evolutivo co-
O
meça a ser requisitada para o aprendizado
formal.

O processo é intenso: inicia-se com his-


tórias e cirandas, além de vivências para
lavar, limpar e cardar a lã de carneiro, para
lixar as agulhas de madeira e para fazer
novelinhos do tamanho da mão. Tudo isso
antes de tricotar. Aprende-se primeiro a
tricotar com os dedos.

Após exercitarem a motricidade dos


dedos, as crianças estão prontas para o tri- 2º
cô de agulhas. E, depois de conquistar ha-
bilidade e segurança nos dedos, iniciam o A
trabalho com o crochê. N
O
Com a introdução desse novo tipo de
agulha, cada ponto de crochê precisa ser
procurado com atenção e contado. E assim
as crianças desenvolvem sua lateralidade.

Os materiais: suas qualidades, a tex-


tura visual e tátil. É pelas pontas dos dedos 3º
que o cérebro descobre o que é explorado.
Abre-se um espaço para as forças criativas
A
da criança. Usando as técnicas já aprendi- N
das, retoma-se o trabalho com duas agulhas O
e introduz-se ao tricô um novo ponto.

247
Inicia-se uma descoberta mais cons-

ciente do mundo, olhando para as relações
A entre nós e o mundo que nos cerca. Com-
N preendemos um pouco mais deste mundo,
mas ainda com calma. Por se perceber ago-
O
ra separada do mundo, a criança sente-se
um tanto ameaçada por tudo o que não se
parece com si própria. O movimento de cru-
zamento do bordado em ponto cruz vem ao
encontro dessa necessidade de proteger-se,
de fechar-se em si mesma, para poder reco-
nhecer as diferenças em segurança.

Fase de busca de harmonia, tranqui-


5º lidade... O redondo, o rítmico ajuda a har-
monizar.
A
N Aprende-se então a técnica de tricô
O com cinco agulhas. Primeiro é preciso co-
nhecer, observar e medir a cabeça, os pés e
as mãos. Para dar a forma nos trabalhos é
necessário trabalhar com consciência: pa-
radas, diminuições, cálculos e frações.

Mais conscientes da constituição de


6º seu corpo físico e de que o corpo está mu-
dando, as crianças começam a despertar
A para sua astralidade. Frequentemente sen-
N tem-se confusas, começam a desenvolver
O mais antipatias e parecem perder algo da
harmonia anterior, o que se pode observar
fisicamente. Quando se sentem mal com-
preendidas pelos adultos, é comum que seu
amor e sua confiança fluam para seus ani-
mais: elas moldam um animal, enchendo,

248
dando forma e caráter, como se moldassem
a partir de dentro.

Os jovens agora estão prontos para


executar trabalhos costurados à mão. Par- 7º
tindo de um esboço, executam o molde de
A
peças de roupa em todos os detalhes, com
N
base em suas próprias medidas. Um traba-
lho que traz consciência para a estrutura
O
óssea e suas medidas.

Revolução Industrial: os jovens apren-


dem a usar uma máquina de costura. Usam 8º
as mãos para guiar o tecido, os olhos para
mantê-lo na direção certa e os pés para
A
manter o ritmo de funcionamento da má- N
quina: sentir, pensar e querer. Descobrem O
o que fazer quando o fio sai da agulha e
desaparece; como remontar a máquina,
como encher a bobina. Também aprendem
a montar um molde simples, usando suas
próprias medidas.

Conflito entre interior e exterior, vida


dos sentimentos e maturidade física, o que 9º
causa oscilações de comportamento. Os jo-
A
vens precisam de vivências que criem neles
espaço para a futura capacidade de julgar.
N
O
A partir de agora as matérias artesa-
nais são ministradas em épocas. O traba-
lho manual exige dos alunos equilíbrio, boa
postura, paciência, persistência, autonomia
para executarem suas tarefas.

249
Uma combinação de trabalhos manu-
10º
ais e tecnologia: a tecelagem. O trabalho
A com o tear proporciona a oportunidade de
N experimentar as possibilidades, de conhe-
cer potencialidades e limitações. Além dis-
O
so, os jovens podem observar o processo
evolutivo na fabricação de tecido a partir
do estudo da história.

Por meio da minuciosa técnica de en-


11º cadernação e suas operações interdepen-
dentes, a disciplina no pensar e no agir. Este
A
trabalho manual oferece aos jovens a opor-
N tunidade de participar de todos os passos
O de uma sequência evolutiva (processual).

As aulas de trabalhos manuais no En-


12º sino Médio fundamentam-se nas capacida-
des que os alunos foram adquirindo desde
A o 1º ano do Fundamental, principalmente
N no contato com materiais têxteis. Agora os
O jovens percorrem duas áreas que exigem,
em escala crescente, criatividade individual
e trabalho preciso: produzir o figurino e o
cenário para uma peça de teatro e também
trabalhar com técnicas de cestaria e trança-
dos de fios e fibras.

250
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Rosana Lance Saloio


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Simone Maria de Lima


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Jandira Paes de Carvalho de Melo


Caderno cartonero:
um espaço potente de experimentações criativas com crianças

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Fabiana Zanelato Kuwajima


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Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro


Escutas que o fio traz:
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MARASCA, Elaine. Saúde se aprende, educação é que cura: da Pedagogia Waldorf à
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PALLASMAA, Juhani. As mãos inteligentes: a sabedoria existencial e corporalizada na
arquitetura. Tradução de Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Ed. Bookman, 2013.
SENNETT, Richard. O Artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Editora
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STEINER, Rudolf. Andar, falar, pensar: a atividade lúdica. Tradução Jacira Cardoso. 4.
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TOMÉ, Cristina. Psicólogo-artífice: a arte-manual como recurso terapêutico. Uma
escrita de si. São Paulo: Ed. Círculo das Artes, 2018.

Aparecida Xavier
Encontrando o fio da meada:
o despertar dos processos criativos através dos trabalhos manuais

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.


_____. A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças.
Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins
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CAIRELLO, Ana; MORAES, Maria Lúcia. Tecendo a vida: trabalhos manuais para crianças
de sete a dez anos. Florianópolis: Ed. Pândion, 2015.
ORTEGA, Neli. O fio do trabalho manual na tessitura do pensar, sentir e agir humanos:
e seus princípios no ensino Waldorf do 1. ao 5. ano. São Paulo, 2017.
SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2009.
AS AUTORAS

Aparecida Xavier
cilexavier@gmail.com

Arte-educadora, atuou vários anos


em escolas de São Paulo no Ensino
Fundamental e Médio. Pesquisado-
ra da arte de contar histórias, encon-
trou nos trabalhos manuais uma forma singular de existir e
partilhar essa arte com o mundo.

Elaine Cristina Russo


elaine-russo@hotmail.com

Iniciou seu currículo como educado-


ra ainda quando criança, brincando
com os irmãos e primos menores, ora
como professora, ora como mãe. Seu
mundo imaginativo foi criando diferentes formas e se rea-
lizando na vida adulta. Formou-se como psicóloga e parale-
lamente foi aluna no Teatro Vento Forte, onde se descobriu
arte-educadora.

260
Tornou-se mãe e nesse maravilhoso exercício encontrou a
Antroposofia. Fez a formação em Pedagogia e se especializou
como Professora Waldorf. Desde 1986 trabalha com crianças
e famílias. Atuou em creches e escolas públicas, abrigos, pro-
jetos sociais, cursos, associações e escolas particulares.

As artes-manuais sempre estiveram presentes em sua vida e


profissão.

Emília Moreira Lima Albano


emiliaalbano@yahoo.com.br

Sou Emília por conta da boneca. Me


identifico com ela! Nasci cearense.
Escolhi pais amorosos e habilido-
sos com as mãos. Daí meu encanto
com o que podemos fazer com as elas. Fiz o Ensino Médio
em uma Escola Waldorf, o que me sensibilizou as mãos e o
olhar. Na graduação, busquei as artes visuais. Mas ser mãe
talvez tenha sido a minha maior escola. Daí veio a formação
em Pedagogia Curativa e a Pós-graduação em Artes-manuais
para Educação. Essas vivências juntas me fazem ter muitas
linguagens: artesã, designer gráfica, empreendedora, mãe. É
bom ser tudo isso neste mundo!

Fabiana Zanelato Kuwajima


Fabi_zk@hotmail.com

Sou Fabiana Zanelato Kuwajima,


esposa, mãe, engenheira química,
mestre em Engenharia de Materiais e
agora especialista em Artes-manuais
para Educação.

261
Adoro apreciar e vivenciar a arte. Pratico artes-manuais des-
de a infância, com minha mãe, avós, tias, vizinhas, amigas.
Também pratico a cerimônia do chá.

Estudo como os gestos das atividades mais rotineiras e as ar-


tes estão juntos em cada atividade que realizamos.

Jandira Paes de Carvalho de Melo


jandiracarvalho47@gmail.com

Formada em Letras. Atuou, por mais


de vinte anos, como professora na
rede particular de ensino. Psicope-
dagoga, arteterapeuta, educadora te-
rapêutica, há dez anos oferece oficinas de caderno cartonero
e escrita criativa em escolas e em instituições sociais e tera-
pêuticas, além de dar oficinas de bordado no Instituto Casa
do Todos. Atualmente atua como professora de trabalhos ma-
nuais na Escola Waldorf Livre Manacá.

Janice Kirner Providelo


jkirner@gmail.com

Artista, arquiteta e arte-educadora.


Em sua atuação, explora a relação
entre literatura e artes-manuais, em
oficinas, produções em arte têxtil e
ilustrações com aquarela, lápis, giz e fios. Compartilha suas
produções nas redes sociais como @umfiosemfim.

262
Juliana Carvalho de Assunção Ribeiro
juassuncao3@gmail.com
@julisassuncao

Artesã-fazedora-experimentadora
curiosa das manualidades, interessa-
da, sobretudo, em temas que abarcam
o feminino e a infância. Desde menina dirige um olhar atento
para interesses múltiplos, e aprecia observar as pessoas que
por ela passam. Entre os cuidados com seus três filhos e dois
gatos, busca também o cuidado de si. Há 25 anos em terras ca-
riocas, é graduada em Direito e mestre em Sociologia e Direito.
Gosta das linhas e dos livros, dos têxteis e de textos diversos.
Ocupa-se dos fazeres com as mãos e agulhas e, mais recente-
mente, do encanto da impressão botânica em tecidos. Alegra-
-se na costura, se revigora no crochê, percebe que se concentra
no tricô e, por vezes, silencia no bordado. Se potencializa com
os fios delicados e resistentes que conectam as artes-manuais
e os encontros com os outros e consigo mesma.

Laura Erig Salimen


laurasalimen@gmail.com

Sou tecelã da vida tateando o mun-


do. Só sei o que sinto. Alegram-me
poesia, estar entre crianças, dias
de sol, pés descalços na grama. Dei-
xo-me afetar pelo outro. O artigo deste livro é uma colcha
de retalhos de fragmentos dos encontros da mulher, mãe e
educadora Waldorf. De tanta afetação nesse processo, a pro-
fessora de trabalhos manuais aceitou ingressar numa nova
jornada como professora de classe. Formada em Cinema
pela PUC-RS, sou artífice de coração. Atualmente, sou aluna
do curso Fundamentos da Antroposofia e Pedagogia Wal-
dorf (Faculdade Rudolf Steiner).

263
Maria Aparecida de Morais
cidademorais.yoga@gmail.com

Professora de yoga formada pela


FMU, licenciada em Filosofia (Cla-
retiano) e em Pedagogia (Uninove).
Com formação em Pedagogia Wal-
dorf (Sítio das Fontes), trabalho há 13 anos com Educação
Infantil na Pedagogia Waldorf.

Olívia Marinho Silva Lima


oliviamsl@gmail.com

Crocheteira ainda criança. Circense


pelas voltas que o mundo dá. Hoje,
corpo, texto, têxtil.

Rosana Lance Saloio


rsnlance2@gmail.com

Administradora, pedagoga (Funda-


mentação Antropológica e Antroposó-
fica em Pedagogia Waldorf), terapeu-
ta holística e pesquisadora-artífice.
Participou de projetos sociais (Escola Rural, Primeiro Emprego),
desenvolvimento de produtos, implantação de uma fábrica,
treinamentos e atuou também em grupos de teatro, estudos na
linha antroposófica, signos nas artes tecelãs e cursos como psi-
codrama e terapia floral. Foi professora Waldorf de marcenaria
e trabalhos manuais. Como administradora-terapeuta-pedago-
ga-artífice e pesquisadora, gosta de se envolver nos processos
terapêuticos criativos das artes-manuais, produzindo e relacio-
nando as escritas e histórias com a arte viva da vida.

264
Simone Maria de Lima
silima172@gmail.com

Professora de Educação Infantil e En-


sino Fundamental na rede pública da
Prefeitura de Santo André (SP), é gra-
duada em Letras – Português (USP) e
em Pedagogia (Uninove). Tem especialização em Linguagens
da Arte, Psicopedagogia Clínica e Educacional, Distúrbios de
Aprendizagem e em Ciência e Tecnologia.

Stella Ferreira Bottino


stella@santoviciochocolates.com.br

Formada em Nutrição, criou a marca


de chocolates artesanais Santo Vício
Chocolates, atuando no desenvolvi-
mento de novas receitas e embala-
gens artesanais. Também é criadora da Fios de Estrela, onde
dá oficinas de manualidades e criatividade inspiradas na pe-
dagogia Waldorf.

265
ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO:
APRENDIZAGENS E PROCESSOS DE SINGULARIZAÇÃO
Conheça os livros da primeira turma da pós-graduação em Artes-manuais para Educação.
A coleção foi organizada pela Profª Drª Ana Lygia Vieira Schil da Veiga.
Títulos disponíveis diretamente com as autoras.

I. Artes-manuais e seus encontros XII. Rejeição e a arte-manual:


Karla Santori uma experiência na escola pública
Debora Garcia Fogli da Silva
II. Modos de habitar: uma cartografia
pessoal sobre o viver-casa XIII. Memórias que costuram uma vida educadora
Suzana Massini Eliana Chiavone Delchiaro
III. De ponto em ponto, um conto: XIV. Entrelinhas, sinais e sentidos
o saber que nasce das experiências em Elizabeth Renata Gladcheff Fonseca
artes-manuais e das histórias
Elis Stela Mello de Oliveira XV. O olhar das artes-manuais:
uma leitura do mundo através das mãos
IV. Objetos transicionais: Rosana Bernardo
memórias afetivas e as artes-manuais
Eliana Mello XVI. A sintonia dos gestos: um olhar humano
sobre educação e artes-manuais
V. Costuras da alma: a arte-manual como Deidmar Porto
disparadora de processos curativos
da psique humana XVII. Escrita viva
Daniela de Oliveira Maia Fabiana Paula Assumpção Reis

VI. “Ô de casa!” um chamado XVIII. Artes-manuais e eu


Dayse Cristina Santiago Vera Souza

VII. O jardim de infância XIX. Artes-manuais, experimentação artística


como a casa dentro da escola para uma escrita poética
Gabriela Nakamura Lara Arce

VIII. Feltragem molhada como arte-manual XX. Encarnação: pistas para livr_
da educação infantil: a narrativa Carlos Vinicius Bressan (vinicius airumã)
da experiência em sala de aula
XXI. Psicólogo-artífice: a arte-manual como
Vanessa Fonseca Jakowatz
recurso terapêutico. Uma escrita de si
IX. Tecendo a pele Cristina Tomé
Haline Gomes de Campos
XXII. O bicho de brinquedo brasileiro: o processo
X. Meu avesso: arte-manual, de construção do tamanduá-bandeira
organização do pensar e do sentir Patrícia de Araújo Caldeira Brito
Luciana Aguilar
XXIII. “Bonequeiras sem fronteiras”: inaugurando
XI. Corpo-narradora: contos, o fazer manual como um modo de resistência
mulheres, artes-manuais ou Sentir é mais que saber
Sofia Amorim Paula Martins Costa

XXIV. O canto das mãos


Helena Gomes
Volume musical. Contém 11 faixas que incluem composições e interpretações das autoras
da coleção. O processo foi proposto e coordenado, entre 2016 e 2017, por Helena Gomes.
Para ouvir, leia o QR CODE com seu celular.

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