Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A VISITA DO DIVINO
O SAGRADO E O PROFANO NA ESPETACULARIDADE DAS FOLIAS DO DIVINO
ESPÍRITO SANTO NO ENTORNO GOIANO DO DISTRITO FEDERAL
SALVADOR
2005
JORGE DAS GRAÇAS VELOSO
A VISITA DO DIVINO:
O SAGRADO E O PROFANO NA ESPETACULARIDADE DAS
FOLIAS DO DIVINO ESPÍRITO SANTO NO ENTORNO
GOIANO DO DISTRITO FEDERAL.
SALVADOR
2005
VELOSO, Jorge das Graças.
A visita do Divino: o sagrado e o profano na espetacularidade das folias do Divino
Espírito Santo no Entorno Goiano do Distrito Federal / Jorge das Graças Veloso – Salvador:
Universidade Federal da Bahia, 2005.
342 p. : il.
AGRADECIMENTOS
e,
Esta tese teve como principal objetivo a explicação das significações éticas, estéticas e
histórico-religiosas das Folias do Divino no Entorno Goiano do Distrito Federal, e seu sentido
matricial da cultura cênica contemporânea. A pesquisa foi desenvolvida a partir de três visões
distintas sobre o universo das folias: a visada de seus estrangeiros, alguns daqueles que já
refletiram sobre o assunto em outros estudos, compreendida por uma investigação
bibliográfica que privilegiou desde manuscritos e pequenas monografias até publicações
acadêmicas de várias áreas dos saberes humanos; a opinião de seus próprios atores, refletindo
aquilo que eles acreditam estar fazendo, e para quê, levantada através de conversas e
entrevistas não dirigidas; e a do pesquisador que, em pousos e visitas a fazendas e sítios nos
municípios de Novo Gama, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia, num período de onze
dias, por registros aproximados das metodologias etnográficas, descreve a manifestação nas
minúcias de seu trajeto, um círculo simbólico denominado giro. Em perspectiva
multirreferencial, tendo como base a etnocenologia e seus diálogos multi, inter e
transdiciplinares sobre as práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados,
consubstanciou-se em dados oferecidos pela Folia de Roça do Novo Gama (GO), nas saídas
de suas bandeiras nos anos de 2003 e 2004. Buscando a superação das dicotomias impostas
pela utopia da criação de Brasília, num espaço em que seus idealizadores se propunham como
fundadores da cultura, esta tese apresenta as folias como relacionadas a um catolicismo não
oficial advindo de uma circularidade social que as colocam, nos dias de hoje, no universo das
pessoas comuns. Extrapolando a referência de matriz cênica, são práticas que ultrapassam o
sentido estrito da religiosidade de adoração ao sagrado para se inscrever, como uma autêntica
manifestação da cena contemporânea, no lato sensu da religação ao outro, comunhão do estar
juntos societal característico da pós-modernidade.
Mots-clé: Culture populaire; Folias du Divin; Rites spectaculaires; Religion populaire; Arts
Scéniques; Théâtre - Spetacularité - Théâtralité; Ethnocenologie.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO 14
CONCLUSÃO 218
REFERÊNCIAS 230
GLOSSÁRIO 335
Plantar, cultivar, colher, curar, benzer, interceder, consolar, livrar, libertar, salvar, viver.
Para isso e muito mais, ou melhor, para tudo, seja na vida ou na morte, aprendeu o homem, ao
longo de sua longa história, a recorrer ao sagrado. No mundo do senso comum, em que muitas
das ações são guiadas pelas crenças as mais diversas e pela fé, e mesmo em práticas onde o
que prevalece é a frieza científica, não é raro se ouvir o murmúrio de orações, em súplica ou
agradecimento. Nas salas de cirurgias, por exemplo, o normal é, tanto de médicos quanto de
pacientes, demonstrações de fé, as mais explícitas, em ajudas sobrenaturais para o sucesso dos
procedimentos, tanto os mais simples quanto os mais delicados. Algo muito próximo do que é
visto, também por exemplo, na agricultura de sobrevivência, em que a espera pela chuva,
muitas vezes, é uma entrega manifesta à vontade de Deus.
O local é o entorno goiano do Distrito Federal, nos municípios de Novo Gama, Santo
Antônio do Descoberto e Luziânia, tendo como ponto de partida e de chegada o primeiro, em
terras do que foi um dia o julgado de Santa Luzia, por muito tempo conhecida como “das
marmeladas”. O fato é que, por volta do vigésimo dia do mês de maio, há aproximadamente
trinta anos, centenas dos moradores das mais diferentes moradias da região, das mais pobres
às mais ricas, têm a sua rotina totalmente alterada por um acontecimento longamente
esperado. Rompendo com o ordinário de seu cotidiano, várias fazendas e sítios recebem,
durante mais de dez dias, duas bandeiras vermelhas, cada uma com uma pomba branca
pintada no centro. Elas são conduzidas por homens e mulheres que rezam, cantam e pedem
esmolas em nome de uma santidade sempre presente nas invocações de um grupo muito
especial de fiéis, os devotos do Divino Espírito Santo. Assim, com o nome de Folia do
16
Divino, esta é uma procissão precatória, votiva e rogatória, que vai de casa em casa nas
cidades do interior, em bairros de algumas metrópoles, e, como no caso aqui visto, no meio
rural de várias regiões do Brasil.
Caracterizo estas folias como manifestações sagrado/profanas das religiosidades não
oficiais, praticadas por fiéis ligados ao catolicismo romano, e por este, às vezes, toleradas,
outras incentivadas. O que pode ser visto, na atualidade, quase sempre como uma busca de
diálogos com um rebanho a cada momento mais assediado por outras formas de culto,
principalmente os pentecostais e sua força de catequese para a conversão.
Elas, as folias, acontecem depois de preparativos que duram praticamente o ano
inteiro. A partir de uma reunião chamada de “junta”, realizada em um dia e numa casa
preestabelecidos, quando se dá a arvorada das bandeiras, o grupo sai em peregrinação,
fazendo dois tipos distintos de reuniões. A primeira, denominada pouso, no meio rural, se dá
durante a noite e se inicia mais ou menos às dezoito horas. Ainda à distância, a visita é
anunciada por uma trovoada de fogos de artifício, seguida de um intermitente ressoar de dois
pequenos tambores, chamados de caixas. Com os alferes conduzindo as bandeiras à frente,
seguidos pelos caixeiros e os demais foliões, todos montados a cavalo, se aproximam da casa
principal da fazenda ou sítio. Fazendo evoluções, com o grupo dividido em duas filas
indianas, desenham círculos, oitos e corações e, depois de um sinal do regente, espécie de
capataz da companhia, param em uma formação de frente para a moradia e entregam as
bandeiras ao dono da casa e sua esposa, ou quem a represente, chamados de barraqueiros.
Esta chegada, na sua totalidade, representa simbolicamente o pedido e a aceitação da
visita. A partir daí são cumpridas, com um rigor bastante considerável, várias etapas de um
ritual que vai de práticas sagradas, como as cantorias de saudação e de louvação a um cruzeiro
colocado na frente da casa, e a um altar armado na sala principal, até as mais profanas, como
os jogos – o truco, por exemplo –, e o pagode. Não sem antes passar pelas orações do terço
católico, muitas vezes encerrado com a ladainha, rezada em uma aproximação de canto
gregoriano, e pelo catira, dança de palmas e sapateados que cumpre uma espécie de transição
para os festejos considerados mais mundanos.
Durante o pouso, os barraqueiros oferecem três refeições aos foliões: o jantar, logo
após a chegada, o café da manhã e o almoço, pouco antes de se iniciar o trajeto do dia
seguinte.
Já a segunda reunião, chamada de visita ou giro, ocorre durante o dia, entre um pouso
e outro ou, eventualmente, pela manhã, enquanto todos esperam pelo almoço. Geralmente são
paradas rápidas, onde são feitas orações e cantorias de saudação a imagens de santos, em
17
altares improvisados, e aos donos da casa e seus familiares. São consumidas, também, grandes
quantidades de quitandas, doces, bebidas diversas, inclusive alcoólicas, quase sempre cachaça
de alambique, e, quando solicitado, dançado o catira. Com exceção de uma ou outra visita
efetuada pela manhã, o trajeto entre os pousos, no meio rural, se dá a cavalo. Os guias e os
foliões mais idosos são, excepcionalmente, conduzidos de carro. Já as folias de rua, como
ainda ocorrem nos dias de hoje em Luziânia e outras cidades de Goiás, são feitas totalmente a
pé. Os pousos e visitas, na cidade, são simbólicos. E o trajeto, tal e qual acontece na Folia de
Rua de Luziânia, descrita em parte do Capítulo I desta tese, se dá somente em um dia.
Em cada uma das visitas, seja o giro ou o pouso, são arrecadados fundos,
representados por dinheiro ou bens, leiloados posteriormente, que são entregues em uma
determinada paróquia da cidade. Originalmente, como poderemos ver também no Capítulo I,
esses recursos eram utilizados nos gastos com a realização da festa em homenagem ao Divino
Espírito Santo. Hoje, porém, nem sempre este é o destino dos valores arrecadados, ficando a
cargo da paróquia a escolha de sua aplicação. Em um sentido de troca simbólica, em paga da
esmola recebida, os foliões levam a quem os recebe as bênçãos representadas pela bandeira
com a pomba branca, materialização da divindade adorada, e toda a possibilidade de festa e
comunhão que tal fato oferece.
A Folia do Divino, principalmente pelo caráter da finalidade que era dada ao dinheiro
arrecadado, foi sempre associada à festa do Espírito Santo, localizada, no caso aqui
pesquisado, no ciclo dos festejos de maio, que se inicia no final do carnaval, com a Páscoa. A
partir daí, são contados cinqüenta dias até o Pentecostes, data em que os judeus, em eras pré-
cristãs, comemoravam o início da colheita do trigo e o acontecimento em que Deus teria
dizimado os primogênitos dos egípcios. Esta teria sido a última das sete pragas que
precederam à libertação do povo escolhido, dando início à grande jornada que levaria os
seguidores de Moisés até a terra prometida.
Na transição desta comemoração para uma festa cristã, esses motivos judaicos foram
substituídos pelo evento bíblico da manifestação das línguas. Prenunciando o início de um
novo tempo, em que o cristianismo se espalharia pela terra, o Espírito Santo de Deus teria se
posto sobre os seguidores de Jesus, no dia do primeiro Pentecostes após a crucificação do
Filho do Homem, dando-lhes a incumbência de propagar o evangelho pelos quatro cantos do
mundo.
Esta, porém, não é uma data fixa no calendário das manifestações católicas, visto que
em muitos outros locais, no Brasil, a Festa do Divino ocorre no mês de agosto. Além disso,
por questões funcionais internas dos próprios grupos de foliões, mesmo na região do entorno
18
palavras, ratifica o que disse Bião, na citação anterior, acredito, já justificaria a escolha das
Folias do Divino como objeto de estudo. Se a arte se enquadra entre as invenções que, ao lado
da ciência e da religião, devem, parodiando Bertolt Brecht, aliviar a canseira da existência
humana1, também por si só já seria pertinente uma pesquisa sobre os aspectos espetaculares
das folias. Ainda muito mais quando esta expressão está entre os grandes diálogos com os
rituais religiosos, principalmente por suas características espetaculares, como é o caso
específico do trabalho de Seu Ofir (atualmente Seu Amarildo) e seus foliões.
Por essas interfaces, propostas pela etnocenologia, busco compreender as razões do
florescimento, do auge e do posterior quase desaparecimento desta manifestação social, como
também, e principalmente, demando entender seu novo fortalecimento, inserindo-a ainda no
campo das matrizes culturais da cena contemporânea. Mais ainda, como busco explicar ao
longo de minhas argumentações, vendo as folias como parte desta cena contemporânea, não
somente como uma matriz cultural, o que, acredito, torna esta justificativa ainda mais
concreta.
Levo ainda em consideração, dentro do trabalho, significações do que veio a se tornar,
nos últimos anos, a definição de retradicionalização. Compreendo este termo como sendo
todo o conjunto de ações, públicas e privadas, artísticas e acadêmicas, individuais e coletivas,
que vem, ao longo dos últimos anos, trazendo para as visibilidades cotidianas de vários
centros urbanos os movimentos das manifestações tradicionais das culturas brasileiras. Em
movimentos musicais, publicações, tanto científicas quanto em periódicos jornalísticos,
espetáculos cênicos de várias ordens, por hibridizações diversas ou por defesas intransigentes
de sua “pureza”, pudemos constatar, a partir da passagem da década dos 80 para os anos 90 do
Século XX, uma nova postura em relação às práticas inseridas neste universo. Então, aquilo
que era feito em guetos de defesa da preservação das chamadas raízes culturais brasileiras,
isoladamente, ou mesmo as manifestações de centros turísticos tradicionais, como, por
exemplo, Pirenópolis, em Goiás, adquire um novo status de importância no dia-a-dia de
milhões de pessoas. Baião, xaxado, congadas, folias, festas de santos, católicos ou não,
manguebeat, rockatira, lundus, punk-rock, eletromanguebeat, axé, dentre dezenas de outros
nomes, passaram a fazer parte do vocabulário de muita gente, para quem, por
desconhecimento ou por desinteresse, eram estranhos. E, em muitos casos, tornaram-se
programas de televisão, mesmo no campo mais comercial, ou meio de vida para muitas
pessoas e até para comunidades inteiras.
1
Bertolt Brecht afirma em seu discurso final de A Vida de Galileu, que “a única finalidade da ciência está em
aliviar a canseira da existência humana” (BRECHT, 1977, p. 224).
20
É nesse universo que se insere todo o discurso sobre a defesa e a preservação dos bens
intangíveis, ou imateriais, assumido pelas instâncias de poder oficialmente instaladas no
Estado Brasileiro, em seus vários níveis, federal, estaduais e de alguns municípios. Verdade é
que esta não é uma invenção nacional, visto que já se configurava, há algum tempo, como
uma demanda dos povos de vários outros países e mesmo da Organização das Nações Unidas
(ONU). Disto também falo no Capítulo I desta tese.
Se, como diz Bião, a arte, campo no qual se insere este trabalho, pode ser
compreendida pelas trocas com todos os “paradigmas simbólicos e imaginários”, é
exatamente por essas possibilidades de interfaces que esta narrativa, sobre as Folias do Divino
no entorno goiano do Distrito Federal, tem fundamentação teórica nos diálogos com várias
outras áreas dos saberes humanos. E, para compreender o universo em que se localizam
aqueles que fazem a Folia de Roça do Novo Gama, estou lançando mão, inicialmente, das
metodologias associadas a algumas correntes da historiografia, da filosofia, da sociologia, dos
estudos sobre as religiões, e, claro, sobre as artes cênicas e as próprias formulações da
etnocenologia.
Na historiografia, parto fundamentalmente do que propõe a corrente da história vista
de baixo, viés metodológico voltado para as pessoas comuns, derivação daquilo que se
convencionou chamar de Nova História. Este movimento, iniciado em 1929 com a revista
Annales d’histoire économique et sociale, com maior repercussão para os franceses Lucien
Febvre e Marc Bloch, sinalizaria novas condutas para nomes importantes da historiografia
contemporânea, como, por exemplo, Jacques Le Goff, Michel Vovelle, Roger Chartier,
Fernand Braudel e, dentre tantos outros, Peter Burke.
É esta vertente que desloca a compreensão da história de um mundo voltado
essencialmente para a política, com uma narrativa concentrada nos grandes feitos de
estadistas, generais, religiosos, todos grandes nomes, reconhecidos pela objetividade dos
documentos oficiais. Pela nova compreensão, outros tópicos ascendem ao mesmo status de
importância legitimadora que têm esses documentos: passam a fazer parte, também, do
universo da historiografia, por exemplo, a infância, a morte, os gestos, o corpo e as práticas
religiosas das pessoas comuns. Assim também como o imaginário e vários saberes não
reconhecidos pelas antigas instituições oficiais, e uma infinidade de outros objetos de estudo
que trazem para o centro das discussões o relativismo cultural como base filosófica.
Por esta perspectiva foram traçadas, e estão registradas no Capítulo I desta tese, as
trajetórias históricas e religiosas da manifestação aqui investigada. Desde a origem da festa de
louvor ao Divino Espírito Santo, surgida, segundo consta, de um voto da Rainha Santa Isabel
21
de Aragão, esposa de D. Diniz, sexto Rei de Portugal, no Séc. XIV e sua junção com a folia
portuguesa, até a peregrinação sagrado-profana dos dias atuais. A folia, que era uma dança
rápida, ao som de pandeiros ou adufes, ao se agregar aos festejos religiosos do Divino Espírito
Santo, toma as características devocionais que conhecemos em várias regiões do Brasil
contemporâneo. Nesta parte, me interessam as construções materiais do ritual, suas
significações religiosas, as interações delas advindas e, principalmente, seus aspectos
estéticos, de espetacularidade, tanto no sentido substantivo, da própria manifestação, quanto
no adjetivo dos estados alterados, de corpos e comportamentos, e a teatralidade dos
participantes.
O diálogo estabelecido por esta compreensão historiográfica aproxima desta pesquisa
as práticas e comportamentos dos homens e mulheres comuns, definidos como l’homme
ordinaire no universo teórico fundante da sociologia compreensiva. Esta, que é uma proposta
de Michel Maffesoli (1988), neste trabalho é colocada também ao lado das formulações de
estetização da vida cotidiana, de Erving Goffman (1999). Para o primeiro, sociologia
compreensiva é aquela “que descreve o vivido naquilo que é, contentando-se, assim, em
discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos” (MAFFESOLI, 1988, p. 25) e para o
segundo, a vida é estabelecida nas interações dramáticas cotidianas construídas a partir de
frames ou molduras baseadas na formas das representações teatrais.
Assim, das junções da história vista de baixo com os estudos de l’homme ordinaire e
com a representação estetizada do eu, compreendo como pessoas comuns, e assim as trato no
âmbito desta pesquisa, os homens e mulheres que se juntam em agrupamentos que visam uma
rotina, ou um determinado evento, em que não prevalecem as qualidades cotidianas de cada
um. Vislumbro, assim, aquelas práticas e comportamentos em que as pessoas se destituem do
que as fazem conhecidas ou reconhecidas no dia a dia, para se juntarem em inter-relações
estabelecidas em subversões ou ausências das hierarquias convencionadas nas tradições
sociais em que estão inseridas.
No extraordinário das folias, esta hierarquia é subvertida por outras formas de
relacionamento. Usemos, como exemplo, o cego que vive de sua arte de cantador de rua,
muitas vezes considerando as moedas jogadas pelos transeuntes mais como caridade do que
propriamente como uma paga por um serviço prestado. Por seu trabalho, em muitas situações,
corriqueiras ou não, este homem é tratado como que em estado de mendicância, ou seja, nas
divisões com que as pessoas vêem as convivências sociais, ele está num dos mais baixos
degraus em que se poderia colocar. Pois bem, em determinados momentos, este cego é
colocado, pelo ritual da folia, em uma posição hierárquica superior a todos os outros,
22
independentemente da escala social “lá de fora”. Assim, Dé ou seu irmão Tôte, cegos de
nascença, cantadores de rua, se fazem a cantoria de saudação do cruzeiro ou do altar, na casa
do governador, este assume o seu papel de barraqueiro, visto e tratado como mais um simples
folião, misturado ao grupo. E, salvo certo aparato de segurança, postado discretamente à
distância, normal nos deslocamentos de qualquer político brasileiro, ele poderia ser
confundido com qualquer outro fazendeiro que acompanha o giro.
Não coloco aqui, é claro, nenhuma discussão sobre as motivações de cada um, político
ou não, para se misturar aos mais comuns dos mortais. Se todos realizam suas trocas
simbólicas, não cabe a este estudo, por seu caráter, fazer a distinção do que é cada um desses
bens trocados. E se são interesses eleitoreiros ou a salvação de alguma praga na lavoura ou no
gado, ou ainda a espera da redenção eterna, ou a cura de uma doença terrena, cada um está
dando algo em troca de algo. E isto inclui abrir mão, no giro, de suas excelências cotidianas
para se tornar mais um. Às vezes, em uma determinada situação, até sendo “guiado” pelas
cantorias de um adolescente, como veremos em uma outra parte desses escritos, quando o
jovem John, 16 anos, assume o papel de guia em uma visita matutina, ou quando uma criança
se torna alferes da bandeira.
É isto que os torna, a todos, pessoas comuns, como as trato aqui. Não aquelas pessoas
comuns que se juntam em torno de instituições permanentes, como, por exemplo, as
corporações, mas sim aquelas que elegem um certo modo de interação, visando a comunhão
de uma determinada experiência, seja ela ordinária ou extraordinária.
As Folias do Divino se inscrevem, inequivocamente, no universo dos feitos das
pessoas comuns, com um discurso próprio, inserida na contemporaneidade e com uma
formulação imaginária baseada nas crenças religiosas de um grupo específico. E esses grupos
criam, ao longo de sua existência, possibilidades, através de seu imaginário, de concretizar
novas formas de viver ou manter suas tradições em seus espaços de convivência.
No caso das Folias, tanto as do Divino, de Reis, de São Benedito, como as de Nossa Senhora
d’Abadia, existe um outro aspecto a ser levado em consideração. Elas se caracterizam,
essencialmente, como manifestações que são preservadas através do recurso da reprodução
oral e gestual. Seus códigos e significações não estão registrados em nenhum manual a ser
seguido por seus praticantes.
Assim, através dos mais velhos, o passado se redimensiona para as gerações presentes
e futuras, não como grandes narrativas épicas, mas como compartilhamento de uma
gestualidade espetacular viva, construída no cotidiano de cada membro do grupo.
23
comportamento espetacular do grupo de foliões pode trazer para seu cotidiano, tanto no
período do giro quanto fora dele.
Pois bem, considerando esses objetivos originais como ponto de partida para a
realização da pesquisa, e após os estudos bibliográficos iniciais, outras questões passaram a
fazer parte do conjunto de indagações advindas da hipótese de trabalho. Com o
acompanhamento do giro da folia em 2003, esta hipótese acabou se mostrando muito menor
que a complexidade do evento registrado. Então, descobrir se não seria a estética da
espetacularidade determinante da ética do grupo de foliões já não era mais suficiente para a
continuação dos trabalhos. Sobressaíram, ao longo da imersão no universo daqueles homens e
mulheres em peregrinação, outros pontos, de igual ou maior importância, como, por exemplo,
um estado religioso lato sensu, de estar em comunhão. É um perfeito estar juntos à toa, um
dos verdadeiros motivos para cada um se sujeitar às dificuldades impostas por doze dias de
pouco conforto e enormes dificuldades, num trajeto de aproximadamente quatrocentos e
cinqüenta quilômetros de estradas e trilhas, percorridos em lombo de cavalos e mulas, o que
exige, além de muita perseverança, uma grande dose de preparo físico.
O que nos conduz, e eu descrevo no Capítulo II, a algumas reflexões éticas sobre as
práticas e comportamentos detectáveis em um grupo de pessoas que pode ser visto como uma
parcela significativa daquilo que podemos traduzir como sendo o homem contemporâneo,
localizado no que estamos chamando de pós-modernidade.
Em diálogos com alguns estudos da Filosofia e da Sociologia, busco explicar a
construção de caminhos que o homem contemporâneo segue para se tornar possível e fazer
possível a sociedade. Aqui, meu foco está voltado para o pensamento como construção do eu,
as possibilidades do imaginário como direito intransferível do homem, e a identidade como
celebração móvel, construída por práticas de si que se orientam por uma ordem direcionada
para a performatização e para o jogo das interações. É a formulação de um pensamento que
não se desconecta da (i)materialidade do corpo, e das narrativas do eu plural da pós-
modernidade. Pluralidade esta determinada pela interação, pelo reconhecimento da alteridade
e da diferença, e pelas molduras teatrais nas quais nos posicionamos para a representação na
vida cotidiana. São estas as explicações perseguidas para a compreensão da construção ética
do sujeito de nossa manifestação/objeto de estudo, ou seja, o folião e seus visitados.
Aqui, novamente aparecem, como bases teóricas, aspectos da sociologia
compreensiva, pelas formulações de Maffesoli, em que a identidade estruturada na
modernidade se transmuda em identificações peregrinas. Surgem também reflexões sobre o
tema advindas de estudos de Stuart Hall sobre o sujeito na cultura pós-moderna, com suas
25
Onde entram, para a pesquisa, também as significações estéticas das Folias do Divino,
pelas propostas da etnocenologia. Como resultado das trajetórias histórico-religiosas e da
construção ética do homem interacionista vistos nos Capítulos I e II, esta manifestação, que
surge na realeza portuguesa, é apropriada pelas pessoas comuns em seu processo de
desterritorialização e reterritorialização colonizadora dos povos brasileiros. Quase
desaparecendo, pela ação da própria igreja, sua maior beneficiária material, que proíbe o seu
lado profano, ressurge com a força que demonstra nos dias de hoje, e nos remete a questões
26
relacionadas às motivações de sua permanência como um rito espetacular das tradições mais
primevas. Inserida quase que como uma cunha arcaica nos alicerces da sociedade
contemporânea, salta aos nossos olhos como uma trilha que nos obriga a ver o mundo pela
ótica de que a vida é uma manifestação estética em que a ordem prevalente é a da interação. E
como esta interação leva, obrigatoriamente, ao reconhecimento da alteridade, são as várias
formas de sinergias, arcaico/contemporâneo, erudito/não erudito, ciência/senso comum,
ética/estética, que determinam o mundo. O sentimento que nos toma, diante do objeto, é o de
pertença, principalmente a um tempo/lugar estabelecido no agora, verdadeiro palco da
existência.
Então, de uma narrativa que se estabelece na descrição etnográfica do giro da Folia de
Roça do Novo Gama, realizado entre os dias 20 e 31 de maio de 2003, aparece, e é registrada
na primeira parte do Capítulo III deste trabalho, a força estética da manifestação, analisada
pelo viés de uma classificação que a coloca como, além de matriz cênica, também como uma
cena contemporânea. Vendo as práticas e comportamentos humanos como ritos, divididos em
de rotina e espetaculares, e como espetáculos, numa redefinição do que propõe Bião (1996),
as Folias do Divino demonstram também o quão distante está seu praticante das
simplificações com que, geralmente, são tratados pelos espectros mais eruditos de nossas
sociedades urbanas. Falando da complexidade e da riqueza simbólica dos ritos, e
considerando-os como a chave para a busca de uma compreensão profunda das sociedades
humanas, Victor Turner diz que “a vida ‘imaginativa’ e ‘emocional’ do homem é sempre, e
em qualquer parte do mundo, rica e complexa” (TURNER, 1974, p. 15).
No Capítulo III desta tese, quando descrevo a utilização matricial da folia para o
processo de criação do espetáculo Inderna de Intão, um dos resultados da presente pesquisa,
volto a esta reflexão.
Para o âmbito das explicações que se apresentam naquela parte deste trabalho,
compreendo essas ações como sendo práticas e comportamentos inseridos no universo dos
ritos, os de rotina e os espetaculares, e espetáculos. E podem ser classificáveis conforme se
segue: a – ritos de rotina, aproximação do que Armindo Bião (1999b) define como “formas
cotidianas que são repetidas rotineiramente num mesmo espaço”, e que são os
comportamentos cotidianos, solitários e de interação, incluindo as profissionais, os jogos
societários e as regras de etiquetas; b – ritos espetaculares, também assim definidos por Bião,
englobando os rituais, desfiles, paradas militares, jogos e competições esportivas e as festas;
e, c – espetáculos, artes do espetáculo para Bião, “compreendendo o teatro, a dança, a ópera, o
circo e outras artes mistas e correlatas”.
27
As folias, como práticas das pessoas comuns, situam-se nos limiares dos rituais
espetaculares e dos espetáculos, com elementos das relações interpessoais dos jogos
societários, das regras de etiquetas, dos espetáculos cênicos e das festas. Nas aparências do
evento sobressaltam as interações pela perspectiva dos diálogos, como referenciado na
lingüística, pela presença do outro, e dos monólogos, na relação com os duplos, conforme
previsto na psicologia, principalmente em Jacques Lacan, como já visto anteriormente.
Destacam-se também os jogos societários, em que as hierarquias se subvertem ou
desaparecem, na relação sagrado/profano que conduz a manifestação, e as regras de etiqueta,
representações simbólicas dos decoros que não permitem determinados comportamentos e
impõem outros, em algumas situações específicas. Como, por exemplo, e citarei mais adiante,
a prevalência dos mais idosos nas horas das refeições ou nos deslocamentos de carro, mesmo
ficando explícitas as trocas intergeracionais, ou o despojar-se de apetrechos como os chapéus
e as esporas em determinados ambientes.
Já dos ritos espetaculares destaco a celebração festiva em torno da santidade, desde as
cantorias de chegada, no cruzeiro e no altar, até os cânticos das ladainhas e dos benditos.
Por último, vejo o caráter de espetáculo, principalmente no sentido substantivo, pela
noção demonstrada no conjunto do pouso, nos detalhes da chegada e da saída, na dança do
catira e nas adjetivações da espetacularidade, em que o indivíduo age intencional e
conscientemente para a presença do outro.
Para a concretização da presente tese, foram superadas algumas etapas do processo de
investigação que passaram, basicamente, por três pontos distintos:
a – Abordagem preliminar do objeto, em que, através de pesquisa bibliográfica, visitas
e conversas iniciais, busquei compreender e reconhecer o terreno em que eu deveria pisar.
Digo reconhecer pelo fato de que as bandeiras, tanto as de Reis quanto as do Divino, não me
eram totalmente estranhas, visto que as presenciei durante uma grande parte de minha
infância. Assim, a partir de 2002, acompanhei alguns pousos de folias, tanto na cidade quanto
no meio rural. Este primeiro pontapé me auxiliou na formulação de questões que passaram a
permear toda minha busca, tanto no âmbito do próprio objeto, quanto no de conhecimentos já
produzidos anteriormente sobre o tema. Foi neste momento que comecei a me perguntar quem
eram os foliões e porque eles continuavam fazendo as folias, nos dias de hoje. Comecei a
questionar quais eram as significações éticas e estéticas dos giros e como teria se dado a
migração, de Portugal para o Brasil, da adoração ao Divino Espírito Santo e suas práticas
correlatas, tais como as próprias folias, as cavalhadas e, conforme eu ouvira falar, as
representações cênicas. Foi por esse tempo que comecei a observar um dado que veio a se
28
constatar as aproximações deste ritual com questões levantadas por Émile Durkheim, Mircea
Eliade e Clifford Geertz. Ressaltam-se aquelas sobre algumas noções de sagrado e profano, as
teorias sobre as formas religiosas, as trocas simbólicas e as significações das culturas. E, por
suas ações e suas palavras, destaca-se aquilo que os foliões acreditam estar fazendo. São eles
os tradutores de suas próprias emoções, sentidos e aspirações, ao se disporem a participar de
uma jornada com essas características. Falam de si, para si mesmos e para os outros.
Demonstram o que esperam da vida e do outro. Isso em um espaço de convivência que se
singulariza pelos aspectos que tem de recolocar no presente, com toda sua força sinérgica com
a contemporaneidade, elementos míticos e místicos, fundantes de alguns daqueles que eles
elegeram como os princípios norteadores de suas vidas. Ao falarem das motivações, por
exemplo, para estar no giro, e escolherem a fé na divindade e estar ao lado da companherada
como seus principais guias, estão traduzindo o que Michel Maffesoli chama de estado
religioso, no sentido lato, de religação ao mesmo tempo ao ser original e ao próximo,
verdadeira mediação simbólica da existência.
Nesse ponto, ao registrar o que falam esses atores, de si e do que estão fazendo,
busquei transcrever o mais fielmente possível os seus discursos. Mesmo sabendo o quão
difícil é a relação com esses falares, e, principalmente, compreendendo que o mostrado
através desses escritos é a versão do que o pesquisador recortou de suas observações. Assim,
apesar de, ou exatamente por isso, fiz a opção de reproduzir, nas citações ao que foi ouvido de
cada um, suas formas próprias de dizer as coisas. A transcrição das entrevistas, tanto no
capítulo dedicado à descrição etnográfica, quanto em outros momentos da pesquisa, é feita tal
e qual foi ouvido daqueles que, generosamente, deram a este trabalho sua contribuição, em
valorosos depoimentos. Como, por exemplo, para o Sr. Geraldo da Silva Rosa, é uma
“serepente” que está sob os pés da “Virge” no “artá” (vide Anexo A). Assim como existe uma
indefinição quanto ao termo “arvorada”. Mesmo assim sendo dito, o que significa a subida da
bandeira muitas vezes é compreendido como tradução de amanhecer, de principiar.
E assim o faço na tentativa de compreender o sentido de conforto oferecido ao grupo
pelo senso comum e pelo sentimento de pertença a um mesmo universo, experimentado nas
convivências do dia a dia, tanto na folia quanto fora dela.
Este capítulo terceiro está dividido em duas partes distintas. A primeira é o registro
etnográfico do giro que se inicia na arvorada da bandeira, no dia 20 de maio, em uma fazenda
nos arredores do Lago Azul, bairro afastado da cidade do Novo Gama, percorre onze fazendas
e sítios dos municípios vizinhos de Santo Antonio do Descoberto e Luziânia, e termina no dia
31 do mesmo mês, com a desarvorada, em uma capela do mesmo bairro do qual partira. Já na
31
segunda parte, e pela visão da etnocenologia, por meio de minha tradução teórica e pelo
espetáculo Inderna de Intão, criado a partir do giro, estreado em outubro daquele ano, posso,
por fim, dizer o que compreendo, neste momento, sobre as manifestações sagrado/profanas
das Folias do Divino.
Armindo Bião (1999b), ao descrever os aspectos epistemológicos e metodológicos da
etnocenologia, defendendo os princípios da proposta de sua substituição pela cenologia geral,
nos indica caminhos para melhor esclarecer o significado das Folias do Divino, no âmbito dos
aspectos que estou levando em consideração para melhor descrevê-las. Pela identificação do
que ele chama de “cinco pilares epistemológicos” da etnocenologia, a segunda parte do
Capítulo III, acima citado, colabora decisivamente para a compreensão de que esta
manifestação compõe perfeitamente um quadro exemplar desta disciplina, em seu estado pre-
paradigmático. Desses cinco pilares, Bião diz:
que a acompanham. No primeiro, pelo que tem de síntese das coisas que os foliões acreditam
estar fazendo e como explicação do âmbito de suas crenças, está reproduzida a entrevista com
o Sr. Geraldo da Silva Rosa, 73 anos de idade, benzedor, guia de folias em Águas Lindas de
Goiás, e um dos grandes colaboradores com os aspectos mais sagrados do evento. O Anexo II
é a junção de um conjunto de imagens, reproduzidas em uma série de fotografias, com as
letras dos cânticos, os sagrados e alguns profanos. Assim como algumas modas de catira e da
raposa, através do que procuro traduzir a dramaticidade da etnografia do giro. Todas as
fotografias, tanto as deste anexo quanto as do corpo da tese, à exceção das de nºs. 75 e 76 – do
artista plástico André Santângelo –, são de minha autoria, produzidas entre agosto de 2002 e
maio de 2004. E, finalmente, o Anexo III, que apresenta a reprodução do texto do espetáculo
Inderna de Intão, sinalizando para o sentido matricial cênico da Folia do Divino e seu
resultado dramatúrgico, no campo da produção teatral.
CAPÍTULO I
Gostaria de iniciar o primeiro capítulo desta tese de doutorado com uma palavra de
final: uma das últimas frases do filme As Gangues de Nova Iorque (2002). Depois do
desfecho de uma vingança que se delineara por toda a trama, o protagonista da história,
representado pelo ator Leonardo DiCaprio, em off, deixa seu veredicto pessimista sobre as
transformações sofridas pela cidade em mais de um século. Com sua voz sobressaindo de
imagens de uma série de efeitos especiais, ele decreta: “é como se não tivéssemos passado por
aqui”.
Martin Scorcese, o diretor, inverte a lógica da história tradicional que,
costumeiramente, privilegia as excelências, e mostra o outro lado da vida cotidiana: o que é
visto no filme são as pessoas comuns, homens e mulheres das ruas da Nova Iorque de meados
do Século XIX, pequenos bandidos, prostitutas, marginais de uma sociedade em que os
detentores do poder institucionalizado só aparecem de forma caricatural e em papéis
secundários.
O que a personagem central da película está constatando é que, apesar de tudo o que
aqueles construtores de cidade passaram, de todas as marcas que ficaram em suas carnes, da
dor de seus corpos, o que permanecerá nas histórias oficiais será exatamente a ação daqueles
coadjuvantes de luxo que ocupam as cadeiras reservadas às excelências do poder estabelecido.
O registro nos livros oficiais será dedicado, pela perspectiva enunciada, aos vencedores de
uma luta em que só tomaram parte, de verdade, os homens e mulheres sem nome, os
ordinários do dia-a-dia de uma cidade construída sob a égide da violência. A esses, as pessoas
comuns da cidade de Nova Iorque de meados do Séc. XIX, só serão dedicadas as informações
de que, naqueles dias, morreram tantos homens e tantas mulheres em confronto com as forças
da ordem.
Não é meu propósito, com estas palavras iniciais, deixar a impressão de que acredito
numa mudança de paradigmas na compreensão histórica por parte da indústria
cinematográfica norte-americana. Mesmo porque o que me parece mais lógico pensar é que a
35
condução dos humores de qualquer indústria é feita pela resposta do mercado ao qual ela se
dirige. E não poderia ser diferente com a indústria do cinema hollywoodiano.
Minha intenção ao citar o filme dirigido por Martin Scorcese, então, mesmo levando
em conta a distância existente entre os fatos narrados na película em questão e meu objeto de
estudo, é somente a de informar que, ao fazer o inventário das pesquisas sobre as Folias do
Divino no interior de Goiás, estou falando pela perspectiva de uma investigação baseada na
busca da compreensão de fatos sociais vividos e vivenciados pelas pessoas comuns2.
E estou falando, especialmente, de pessoas comuns da região do que se convencionou
chamar de entorno goiano do Distrito Federal (Figura 1) e, mais especificamente, das pessoas
comuns com as quais tenho convivido nos giros da antiga Folia do Sr. Ofir Mulato pelos
municípios de Novo Gama, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia (Figura 2). Esta é uma
região em que este “é como se não tivéssemos passado por aqui” tem se mostrado a cada dia
com uma força muito significativa. Primeiro, pelo ofuscamento que a história recente da
criação da nova capital do Brasil proporcionou ao período pré-brasiliense. Poucas são as
referências àquele tempo, relativamente falando, nas publicações disponíveis em várias áreas
do conhecimento, principalmente nas situadas no universo das ciências sociais.
Claro está que não posso deixar de citar o esforço de pesquisadores mais
contemporâneos, principalmente alguns nomes ligados às universidades de Brasília e de
Goiás, na busca de suprir esta lacuna. Mas ainda são estudos, comparativamente aos escritos
específicos sobre Brasília e suas significações político-administrativas, insignificantes.
O segundo aspecto a ser considerado é que, quando estudada, a região é tratada quase que
simplesmente como uma grande arena para os embates políticos ou para o denominado
“desenvolvimento econômico”. As práticas e comportamentos mais relacionados às
convivências e interações societais ficam quase sempre relegados ao segundo plano.
Esta é uma constatação facilmente verificável na leitura de publicações de estudos
sobre o estado de Goiás ou sobre as várias cidades que aqui existiam antes da fundação de
Brasília. Pouco se fala das festas, da culinária, das gestualidades, das maneiras de vestir ou de
morar, e que poderiam ser caracterizados como formas de identificação perceptíveis entre os
2
Necessário se faz informar que a opção pela denominação “pessoas comuns” vem do fato de que a palavra
“ordinário”, mais corrente nos escritos de minhas referências teóricas, carrega, no interior de Goiás, uma
conotação desqualificante muito forte. Homem ordinário, para os habitantes daquelas regiões, é simplesmente
homem que “não presta”. O “ordinário”, ele ou ela, é do grupo dos que não têm “moral”, “honestidade” ou
princípios de “bom comportamento”, pela perspectiva do decoro vigente. Isto em qualquer escala social. Existe
no meio um certo desprezo pelo ordinário, o que sugere o prestígio do extraordinário e o preconceito para com o
que é comum.
36
Figura 1 – Localização dos municípios percorridos pelo giro da Folia de Roça do Novo Gama, em
relação ao Estado de Goiás e ao Distrito Federal.
37
Figura 2 – A Folia de Roça do Novo Gama, em 2003, após a arvorada, oferecida pelo Sr. Lucimar Camelo
Botelho, percorrendo aproximadamente 460 quilômetros, em 12 dias e 11 pousos, fechou seu círculo
simbólico em estradas e trilhas dos municípios de Novo Gama, Santo Antonio do Descoberto e Luziânia.
Este círculo, idealizado antes do início da peregrinação, além de passar pelas 11 fazendas e sítios que
hospedaram os foliões durante os pousos, passou também por aproximadamente 60 outras localidades em
suas atividades diurnas. Durante o dia a folia se dividia em dois ternos, chamados de direita e esquerda,
cada um levando uma bandeira e sendo acompanhado por guias, contra-guias, caixeiros e procuradores
próprios.
38
antigos habitantes goianos das localidades tomadas pelo quadrilátero do Distrito Federal ou
suas vizinhanças.
A pouca centralidade dedicada aos fenômenos culturais da região não é, para nós
outros, das áreas chamadas de humanidades, que incluem os estudos sociais, a filosofia, as
artes e os estudos sobre as religiões, dentre outros, algo que possamos considerar como novo.
Mesmo reconhecendo que os sistemas interpretativos sobre o homem e seus universos
relacionais incluíram, historicamente, estudos sobre a cultura, é inegável que esta não é uma
idéia que teve, ao longo do tempo, e em especial na região a que me refiro nesta tese, o peso
que a ela deveria ser dado.
O advento do modernismo da nova capital só reforça a forma menor com que as
práticas culturais não-brasilienses da região sempre foram tratadas. Se a cultura das pessoas
comuns da localidade já não era considerada, a partir de então, mesmo estas questões
relacionadas às convivências sociais cotidianas, como também as extracotidianas, passam a
ser distinguidas, quase sempre, no âmbito do universo da nova cidade, e a ela subordinadas.
Talvez até pelo etnocentrismo que pode ser detectado no julgamento dos que por aqui
passaram, mesmo em tempos mais remotos, como, por exemplo, a herança da visita de
Auguste de Saint-Hilaire a Santa Luzia (hoje Luziânia), em maio de 1819. Mesmo
reconhecendo que os paradigmas reinantes na época eram outros e que, apesar disso, Saint-
Hilaire tenta incluir em suas anotações as manifestações cotidianas e extracotidianas dos
habitantes da região, alertando que “não se deve julgar o interior da América segundo os
padrões europeus”, é constatado que não deixa o teórico francês de falar do povo da região
com sua visão colonizadora de mundo:
Muitos anos ainda irão passar antes que se veja, do alto dos Pireneus, algum
traço de cultura [...] uma multidão de aventureiros precipitando-se sobre as
riquezas exageradamente anunciadas, uma sociedade que se forma no meio
de todos os crimes, que adquire hábitos de ordem sob o rigor do despotismo
militar, cujos costumes são adoçados pela influência do clima e de uma mole
ociosidade, alguns instantes de esplendor e de prodigalidade, ruínas, e uma
triste decadência, tal é, em poucas palavras, a história da província de Goiás.
[...] A indolência contribuiu bastante para levar os fazendeiros da região a
este estado de penúria. Mas a miséria, que os embrutece e desanima, deve
necessariamente, por sua vez, aumentar a sua apatia. E esta chegou a tal
ponto em muitos deles, que, dispondo praticamente de toda a terra que lhes
convém, eles não chegam a cultivar o suficiente nem mesmo para o seu
próprio sustento. [...] a festa de pentecostes é celebrada em todo o Brasil com
muita devoção e em meio a bizarras cerimônias (SAINT-HILAIRE, 1975,
pp. 14, 27, 96-97).
39
tem como objetivo fica claro em sua Memória Descritiva para o que propõe para a nova
cidade:
principalmente a arte criada e consumida pelas categorias mais letradas. Por maiores que
sejam as argumentações na linha de que cultura é toda a produção, material e imaterial, da
espécie humana, ou que a cultura é feita das teias e análises das significações tecidas pelo
homem, (GEERTZ, 1973), muitos ainda continuam incorrendo neste mesmo equívoco de
confundi-la somente com produção artística.
E o paradoxo do tratamento dispensado às culturas que antecederam, na região, a
inauguração da nova capital, também é demonstrado por todas as letras, igualmente em
escritos de diversos outros autores e teóricos que discorreram sobre a cidade. Falando da
relação de Brasília com o sagrado e as múltiplas seitas místicas que a povoam, Deis Siqueira e
Lourdes Bandeira afirmam que “no Brasil, a persistência dos fenômenos místico-religiosos
caracteriza-se como um traço cultural fundante e essencial do ethos do povo brasileiro”
(SIQUEIRA e BANDEIRA, 1997, p. 235).
Este não é um exemplo único. Vários são os estudos que demonstram o quanto
Brasília é tratada como o centro místico do Brasil, e, em arroubos de exagero, até como a
nova terra prometida do universo4. Ora, se este caráter místico-religioso tem sua força cultural
reconhecida por tantos autores, como poderia o Distrito Federal estar ocupando um vazio, se o
espaço por ele “tomado” era antes habitado por povos que tinham na religiosidade um de seus
traços mais característicos? Práticas sagrado-profanas relacionadas a manifestações religiosas
da região foram iniciadas pelo menos duzentos anos antes, como pode ser comprovado na
criação da festa do Divino Espírito Santo em Luziânia, Formosa e Planaltina, na segunda
metade do Século XVIII. Existem registros de cavalhadas, folguedos, dramas e comédias, nas
mesmas cidades, muito antes do evento da transferência da capital (REIS, 1978). Sem falar de
Pirenópolis, que com suas igrejas centenárias, seu teatro do século XIX e suas famosas
cavalhadas, é hoje um dos grandes pólos turísticos do Estado de Goiás, com suas
manifestações da mais pura e genuína característica místico-religiosa ou sagrado-cultural.
Característica esta que, juntamente com um sem número de outras formas de se colocar no
mundo, compõe o conjunto de incontáveis elementos fundantes e essenciais “do ethos do
povo brasileiro”.
4
Sobre este tema podem ser consultados desde o mítico Sonho de Dom Bosco até publicações mais recentes,
incluindo várias teses e dissertações sobre a cidade. Ver, dentre outros: BOSCO, Terésio. Dom Bosco: uma
biografia nova, São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1993; CALMON, Pedro. Brasília: Catedral do Brasil, Rio de
Janeiro: Fon-Fon, 1970; FREITAG-ROUANET, Bárbara. A cidade brasileira como espaço cultural. Brasília:
Série Sociológica N. 161, 1999; IBARRA, Andrés Rodrigues. Em busca da sintonia universal: O narcisismo e
a procura pelo esotérico em Brasília. Dissertação. (Mestrado em Sociologia). PGSOL – Universidade de Brasília.
Brasília: UNB, 1992; NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Brasília: A construção do cotidiano, Brasília: Paralelo
15, 1997; ZAGO, José Marques. Brasília: símbolo de fé: guia turístico de Brasília, Brasília: Departamento de
Turismo e Recreação do Distrito Federal, s.d.
43
5
Os CIAM, Consgrès Internationaux d’Architecture Moderne, se constituíram, de 1928 até meados da década
dos sessenta, no mais importante fórum internacional de debates sobre a arquitetura moderna. Tinham como
premissa a transformação social, ou seja, a de que a arquitetura e o urbanismo modernos seriam os meios para a
criação de novas formas de associação coletiva, de hábitos pessoais e de vida cotidiana. O trabalho de James
Holston, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia (1993) é bastante esclarecedor de como os
CIAM, que tiveram em Le Corbusier seu nome de maior excelência, se propuseram a mudar o mundo.
44
artistas de rua; áreas públicas são invadidas por bares, lanchonetes e restaurantes, em todos os
níveis sociais, criando e reafirmando um mundo boêmio não previsto nas pranchetas dos
arquitetos; e, principalmente, sem querer entrar em valorações de ordem ideológica, grandes
invasões de áreas públicas obrigam os governantes a criar, quase que diariamente, novas
cidades. E estas cidades, inicialmente chamadas de assentamentos, se estabelecem com todas
as formas tradicionais de convivência social, o que vem provar que as pessoas comuns, a
despeito de tudo, acabam criando seus próprios atalhos.
Velhas práticas societais, dentre as quais destaco as folias, mesmo passando por um
longo período de menor importância aparente, e mesmo tendo sido tratadas com esta carga de
desqualificação histórica, se mantiveram vivas o suficiente para, a partir de meados da década
dos noventa, readquirirem seu antigo vigor.
Com o chamado movimento de retradicionalização, constatado nos campos das várias
linguagens artísticas e nos programas de pós-graduação de algumas universidades brasileiras,
é cada vez maior o número de pesquisas cênicas, visuais, musicais e acadêmicas em várias
outras áreas, em que as tradições das pessoas comuns se impuseram como objetos de estudo.
Na busca de uma melhor definição, poderíamos dizer que retradicionalização seria o
movimento que traz as tradições para o proscênio das manifestações artísticas e de pesquisas
de vários programas das ciências sociais de algumas universidades brasileiras ou de
instituições oficiais do estado. Manifestações tradicionais estas vistas como o folclore, as
práticas diversas chamadas de populares, como a religiosidade, a culinária, as formas de vestir
e de falar, as festas, a música, as danças, os folguedos ou as inúmeras práticas cênicas. Em
síntese, a chamada cultura popular tradicional. Por este movimento, a “cultura popular”,
termo por demais problemático*, aparece em suas formas que poderiam ser chamadas de
puras, guardando as devidas ressalvas que esta definição exige, ou nas mais diversas
atualizações, além de mestiçagens de várias ordens.
Em um sem número de localidades do entorno do Distrito Federal ou próximas a ele,
principalmente naquelas em que podemos verificar uma preocupação maior com as atividades
turísticas, estas práticas estão também voltadas para a geração de renda e melhoria das
condições de vida de seus habitantes. Em outras, como em Trindade (GO), município
localizado na chamada Grande Goiânia, onde existe um cortejo anual de carros de boi, em
Pirenópolis com suas cavalhadas ou em Cristalina (GO), local de um grande encontro de
Folias do Divino, estas manifestações estão passando a receber um tratamento diferenciado
*
Sobre os problemas existentes no termo “popular”, ver SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda
da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. Unicamp, 1999 (Col. Viagens
da Voz).
45
pelas instituições oficiais. No povoado de São Jorge, a duzentos e setenta quilômetros do DF,
acontece, desde 2001, o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros.
Mesmo em Brasília acontece, todos os janeiros, o Encontro de Folias de Reis, evento que
reúne milhares de pessoas no Parque de Exposições da Granja do Torto, com o patrocínio
oficial do Governo do Distrito Federal. A Folia do Divino do Sr. Ofir Mulato, objeto de
estudo desta tese, foi institucionalizada como evento oficial do município do Novo Gama
(GO), por Lei Municipal, no ano de 2002, passando a se denominar Folia de Roça do Novo
Gama.
Tudo isso coincidindo com um outro movimento institucional, este em nível federal.
Em 04 de agosto de 2000, com o Decreto 3.551, o Estado Brasileiro instituiu o registro de
bens culturais de natureza imaterial ou intangível, visando a preservação de técnicas, saberes,
rituais e festas enraizadas nas suas comunidades, de antigas ou novas tradições.
Donde podemos constatar que, a despeito de ordens e imposições ideológicas, de
direitas ou de esquerdas, a vida social se dá por outros caminhos. E principalmente pela
ordem da interação, em que os homens e mulheres comuns da vida cotidiana, a partir de éticas
e estéticas próprias, estabelecem as suas práticas de si, individuais ou societais, (re)criando as
normas vivenciais de seu dia-a-dia muito mais a partir das coisas vistas como elas são do que
propriamente de um utópico “dever ser” imposto por outrem.
E donde também concluo que, mesmo sendo Brasília reconhecida mundialmente pelo
que tem de melhor em sua estética modernista, estando inclusive sua área mais “nobre”
inscrita entre os monumentos tombados pela UNESCO como patrimônio cultural da
humanidade, as pessoas que vieram a habitá-la se tornaram maiores que as ideologias que a
fundaram. Com todas as contradições perceptíveis também nos outros grandes aglomerados
urbanos contemporâneos, Brasília tornou-se, com o passar dos tempos, no bem e no mal, no
pior e no melhor, mais uma metrópole brasileira. Hoje são perceptíveis nos mapas que se
delineiam sobre Brasília, lado a lado, uma boa qualidade de vida, proporcionada por bairros
bem estruturados e todo seu instrumental urbano, e a miséria das favelas, chamadas de
invasões, regularizadas ou não, onde impera a violência e a dificuldade de relacionamento
com o estado e seus poderes institucionalizados. Exatamente como em qualquer outra grande
cidade do Brasil. E também, como em qualquer outro lugar, característica dos dias de hoje, as
pessoas comuns continuam fazendo seus meios de interação, sejam eles tradicionais ou não,
arcaicos ou novos. Mas principalmente não permitindo que suas convivências sejam
construídas pela imposição de modelos idealizados a partir de gabinetes e sim de suas
vontades, individuais ou coletivas, nas trocas simbólicas possíveis em suas rotinas cotidianas
46
ou nas celebrações extracotidianas. Muitas vezes para o bem, para o melhor. Outras tantas
para o mal, para o pior. Mas por suas próprias vontades. O transporte coletivo brasiliense já
não obedece aos padrões estabelecidos pelo estado, e o que se vê pelas ruas da cidade é um
verdadeiro congestionamento de vans e veículos particulares transportando as pessoas, no
lugar dos tradicionais ônibus. Novos bairros, verdadeiras cidades chamadas de condomínios,
pipocam a cada dia em espaços os mais inesperados, provocando intermináveis pendengas
jurídicas entre seus empreendedores e os poderes instituídos.
Em sendo assim, para a concretização desta tese de doutoramento, não quero falar de
“grandes fatos”, políticos, econômicos e geográficos, da trajetória humana em seu processo de
afirmação como espécie. Busco sim, e principalmente, por uma investigação micro-histórica
sobre um movimento tão singular como a Folia do Divino, compreender esta afirmação
também como conseqüência dos pequenos feitos de grupos distintos no universo das relações
humanas e seus espaços de convivência.
Para falar das Folias do Divino por este viés investigativo, me remeto a noções
trazidas ao campo historiográfico pelos formuladores da chamada Nova História, que vão
contribuir para uma compreensão mais próxima das maneiras pelas quais o mundo é visto
pelas pessoas comuns e de como elas se posicionam diante da vida. Aqui, localizamos
proposições que se aproximam daquilo que se chamou de “a história vista de baixo”
(BURKE, 1992, p. 13). Assim, para possibilitar uma maior aproximação das linhas de
pensamento que se voltam para o mundo do imaginário, orientação que permeia a grande
parte das formulações desta tese, quero buscar, a partir de suas origens, na Europa, e
principalmente na França, de meados do Século XX, as significações mais elementares desta
vertente da historiografia contemporânea.
Já em 1929, com o surgimento da revista Annales d’histoire économique et sociale,
que tem como os dois nomes de maior destaque os franceses Lucien Febvre e Marc Bloch,
começam a ser sinalizadas as novas condutas pelas quais viriam a se guiar nomes tão
significativos para a história de nossos dias, como os de Jacques Le Goff, Michel Vovelle,
Roger Chartier, Fernand Braudel e, dentre tantos outros, Peter Burke.
E em que consistiam esses novos pensamentos? Até então, pela perspectiva da
historiografia tradicional, toda a centralidade do que era tratado ou investigado, se direcionava
para os grandes acontecimentos econômicos e políticos, com marcantes conseqüências
geográficas. Para Peter Burke (1992, pp. 10-11) “de acordo com o paradigma tradicional, a
história diz respeito essencialmente à política. [...] era mais nacional e internacional, do que
regional”. Por este pensamento, vê a história como uma narrativa dos acontecimentos, por
47
uma visão de cima, concentrada nos feitos de grandes nomes, estadistas, generais, religiosos.
A legitimação dessas narrativas se dá pela via dos documentos, que dão, ainda segundo o
paradigma tradicional, objetividade à história, que apresenta os fatos, pretende-se, exatamente
como eles aconteceram.
Já a Nova História, que se inicia com os historiadores dos Annales, se interessa
praticamente por todas as atividades do homem. Como continua falando Peter Burke:
Esta é uma noção advinda dos conceitos propostos pela Nova História, citada acima,
com o que estou colocando em diálogo todo o estudo sobre o conhecimento comum também
a partir das formulações de Michel Maffesoli.
A discussão aqui desenvolvida, acredito, se enquadra neste perfil. Os foliões, como são
normalmente chamados os que acompanham a bandeira do Divino em sua peregrinação pelas
fazendas e sítios do interior do Brasil, formam grupos bastante característicos. Geralmente são
pequenos fazendeiros, sitiantes, trabalhadores rurais ou mesmo moradores da cidade que não
perderam totalmente o antigo vínculo com o campo.
Inserida no universo do imaginário social/religioso do povo do interior do Brasil, a
Folia do Divino se caracteriza, principalmente, por estar no quadro da cultura destas pessoas
comuns. Não das pessoas comuns que formam os movimentos sociais organizados dos
sindicatos ou corporações. Mas das pessoas comuns que se juntam e se organizam
49
As motivações das Folias do Divino, destas companhias derivadas, não são, porém, o
nascimento de Cristo, como as Folias de Reis, mas o sofrimento, o sacrifício e a sua
ressurreição “para nos salvar”, nos dizeres dos foliões. Bem como suas andanças pela terra
antes de “subir ao Pai”, e os milagres do Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima
Trindade. E é assim, pela perspectiva de uma construção histórica que se estabelece no
universo das pessoas comuns, que estarei falando a seguir.
Dividindo esta trajetória em três partes distintas, falarei primeiro de como se
estabeleceu, principalmente para os povos cristãos da antiga Judéia, uma ordem de adoração
ao Paracletos (Divino Espírito Santo) como o advocatum, que, como diz Gilbert Durand
(1997, p. 20), significa “consolador e intermediário, intercessor entre o juiz e o que é
julgado”.
Num segundo ponto, demonstrarei como esta adoração se transformou em festa
sagrado/profana nos reinos de Portugal, com implicações históricas para todas suas
possessões. Comentarei de como essas manifestações tiveram importância na mitificação de
Portugal como um reino santificado, que teria como missão maior unificar todos os povos em
torno de uma adoração única aos princípios propostos pela Igreja Católica. E ainda de como o
milenarismo de Joachim da Fiori, abade italiano que viveu de 1145 a 1202, interferiu no
50
ideário deste Império Universal Cristão. Joachim da Fiori propunha uma era da concórdia, sob
o reinado do Divino Espírito Santo, antes do Juízo Final.
No terceiro ponto, falarei de como o Império do Divino, em forma de festa, com a
colonização, migra da Península Ibérica para o Brasil, e de sua inevitável interiorização, até
chegar ao antigo Arraial de Santa Luzia, hoje Luziânia. Ali, com o passar do tempo, as folias,
parte integrante da festa, se estabeleceram e tomaram o formato que têm nos dias hoje. Neste
ponto, comparando escritos históricos com aquilo que é praticado nos dias de hoje, tratarei
das folias de rua, a antiga e a atual, na cidade de Luziânia, com suas principais diferenças e
semelhanças. Comentarei várias manifestações análogas de toda a região do entorno do
Distrito Federal, e, por fim, no quarto item deste capítulo, farei um histórico, o mais
minucioso possível, do surgimento da Folia de Roça do Sr. Ofir Mulato, hoje Folia de Roça
do Novo Gama, objeto desta pesquisa.
Pois foi com o sangue deste cordeiro sacrificado, a mando de Deus, na noite em que se
deu início o êxodo do Egito, que os homens de Israel marcaram os umbrais das portas e
janelas de suas casas para que seus primogênitos não fossem sacrificados. Isto foi o que
ocorreu com os filhos dos egípcios, como concretização de mais uma das pragas anunciadas
por Moisés ao Faraó, como comprovação da ordem de Deus para que este libertasse os fiéis
hebreus: “Todos os primogênitos na terra do Egito morrerão, desde o primogênito do Faraó,
que se assenta com ele sobre o seu trono, até o primogênito da serva que está detrás da mó, e
todos os primogênitos dos animais. [...] para que saibais que o Senhor faz distinção...
(ÊXODO. 11: 5; 12: 7).
Para afirmar e relembrar esta distinção é que o povo de Israel comemora a Páscoa. É a
junção dos dois fatos marcantes de suas vidas: o dia em que Deus sacrificou os primogênitos
dos egípcios para que os judeus se libertassem, e o dia da primeira colheita da cevada. Pela
tradição judaica, é Deus redimindo fisicamente seu povo e demonstrando suas possibilidades
de sobrevivência pelo alimento que é consagrado no altar.
A segunda das grandes festas, chamada de Pentecostes ou de Chavuot, ocorria no
qüinquagésimo dia a contar da primeira, a Páscoa. Também em ação de graças pela colheita,
agora do trigo, ceifado sete semanas depois da cevada. Dois pães, assados com fermento,
eram levados à casa de Deus.
Existe na relação com o fermento toda uma significação de humanidade e sua
completude. O fermento é considerado, nas escrituras, o pecado da espécie humana. Como o
homem é pecado em potência de pureza, em um momento ele é o pão sem fermento, da ação
de graças pela colheita da cevada e pela saída do Egito.
Mas é ainda o pão com fermento no agradecimento pelo trigo. Como diz Paulo em
suas cartas aos Coríntios: “Lançai fora o fermento velho, para que sejais uma nova massa,
assim como sois sem fermento. [...] Pelo que celebramos a festa, não com o fermento da
maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade” (I CORÍNTIOS. 5: 8).
Por esta visão, uma festa se contrapõe à outra. Na Páscoa é o homem de Deus, o povo
de Israel, em confronto com os ímpios do Egito. Mesmo em pecado, é aquele que o Senhor
distingue (ÊXODO. 12: 7) como o escolhido. Mas em Pentecostes, assim os cristãos o vêem,
o homem é remido em matéria, pois que livre da escravidão, retoma sua condição de pecador.
Necessita ainda de uma outra remissão: aquela trazida por Cristo, através de seu sacrifício,
que propicia então, como o cordeiro imolado na Páscoa, a vinda do Espírito Santo, a
verdadeira purificação.
52
A Festa do Divino foi instituída pela Rainha Santa Isabel de Aragão, esposa
de Dom Diniz, sexto rei de Portugal. Tinha a Santa uma extraordinária fé no
Divino Espírito Santo e ao Mesmo recorria com absoluta confiança. Por duas
vezes o infante Dom Afonso revoltou-se contra seu pai, o rei Dom Diniz,
levado pelo tratamento privilegiado que Dom Diniz dava a Afonso Sanchez,
seu filho bastardo ou ilegítimo. Em determinado momento, a guerra pareceu
inevitável, estando as tropas prontas para o confronto. Nesta situação aflitiva
e de conseqüências imprevisíveis, a Rainha Santa recorreu ao Divino
Espírito Santo: prometeu, caso conseguisse a paz entre seu filho e seu
esposo, prescrever solenes e especiais festejos ao Divino para todos os
territórios de Portugal. A paz foi alcançada e a Rainha Santa cumpriu sua
promessa. Assim, a primeira irmandade constituída em louvor ao Divino
Espírito Santo surgiu sob os auspícios da Rainha Santa Isabel, nos primeiros
anos do Século XIV. (CÔRTES, 1983, P. 7)
(DURAND, 2000, p. 19). Daí talvez se possa inferir, não de forma categórica, mas, como
orienta o bom senso, como levantamento de possibilidades, sobre as significações mais
profundas para esta devoção paraclética da nobreza portuguesa. O Espírito Santo é sempre
representado por emblemas ou por vigários interpostos. Parece então que esta é uma
representação também auxiliar na busca da afirmação de uma identidade nacional sustentada
na figura dos reis de Portugal. Seriam eles, os reis, simbolicamente, os vigários da
intermediação com a divindade, legitimados, inclusive, para a “conquista apostólica do
Mundo” (DURAND, 2000, p. 24).
Ressalvando todas as motivações, principalmente as de ordem econômica, que
levaram Portugal a realizar a expansão de seus domínios para além das fronteiras européias,
existiu também este ideário religioso legitimador das viagens de colonização, realizadas por
suas caravelas.
Gilbert Durand (1997) ainda nos fala de uma disputa ferrenha, verificada no interior da
Igreja Católica, entre os dominicanos e os franciscanos, para determinar qual ordem guiaria o
império que se inaugurava nos primeiros três séculos do segundo milênio da era cristã. Os
primeiros “investiam o país de origem de seu fundador, Castela, Aragão, Navarra”
(DURAND, 1997, p. 32), enquanto os franciscanos investiam Portugal. Segundo o imaginário
que explicava a fundação de Portugal, Afonso I recebera em Ourique, a 25 de Julho de 1139,
da boca do próprio Jesus Cristo, a investidura política que conduziria a nação lusitana, pela
“Ordem Terceira” franciscana, ao último vicariato, o do paracletismo.
Mas a que estamos nos referindo? Ora, já foi dito que toda a representação paraclética,
do Espírito Santo, se dá por intermediações simbólicas e por intercessão dos vigários de Deus.
E era este vicariato reclamado pelo rei de Portugal. Principalmente pelo significado que viria
a ter o chamado último império, tanto pela perspectiva bíblica que os portugueses tinham das
profecias de Daniel, quanto pelas formulações milenaristas de Joachim di Fiori.
As doutrinas milenaristas surgem no Antigo Testamento e, em momentos cíclicos de
afirmação e negação, permanecem nas eras pós nascimento de Jesus Cristo. Segundo Jean
Delumeau (1998) existem fortes indícios de uma ampla prática do milenarismo nos primeiros
séculos do cristianismo. Assim, segundo este autor, encontram-se entre os adeptos desta
doutrina nomes como o de Papias, de Hierópolis, na Ásia Menor, e que teria sido ouvinte de
São João; São Justino, palestino martirizado em Roma no ano de 165, São Irineu, bispo de
Lyon, morto em 208, Tertuliano, morto em 222, e Lactâncio, grande escritor pagão convertido
ao cristianismo e que viria a ser preceptor do filho de Constantino, são todos pregadores de
uma divisão dos tempos em ciclos de mil anos. Falam de um tempo da terra renovada, sob um
56
reino definitivo e justo, de abundância nas colheitas, no mel e no vinho, e no qual “os animais
não se alimentarão mais de sangue” (DELUMEAU, 1998, p. 444) e encontram ressonância
em profecias como, por exemplo, as de Daniel, no Antigo Testamento.
Daniel (2: 37-45) profetiza cinco impérios para a humanidade: o primeiro representado
pelo ouro, o segundo pela prata, o terceiro pelo bronze, o quarto por ferro e barro, e um
quinto, sobre o qual ele diz:
(...) em que daqueles tempos suscitará o Deus do céu um reino que não será
jamais destruído, e este seu reino não passará a outro povo; antes
esmigalhará e aniquilará todos estes reinos e ele subsistirá para sempre. [...]
uma pedra foi arrancada no monte sem intervir mão de (homem) e
esmigalhou o barro, o ferro, o cobre, a prata, o ouro, com isto mostrou o
grande Deus ao rei o que está para vir nos tempos futuros (DANIEL. 2: 44-
45).
Este quinto império, eterno para Daniel, coincide com a terceira era milenarista de
Joachim di Fiori, que antecederia o Juízo Final. Joachim di Fiori, ou Joaquim da Flora para
alguns portugueses, abade italiano que viveu entre 1145 e 1202, descreveu as alegorias
bíblicas como uma forma de explicar e prever a história da humanidade, que seria dividida em
três eras distintas. A primeira, que ocorrera antes da lei, nos tempos da ira do Pai, seria a
idade da urtiga e das ervas, dos espinhos, da luz das estrelas e do inverno, seria comparável à
água e compreenderia os dias que foram de Adão a Abraão. Sua principal característica teria
sido o terror e a servidão.
A segunda idade da humanidade seria guiada pela fé e pela submissão, princípios
filiais. Compreendendo a era das rosas e das espigas, estaria sob a lei do Filho e dos signos da
sabedoria, da fé e da ação de jovens livres, da aurora e da primavera e seria comparável ao
vinho. Iria, depois de um tempo de incubação, de Elias a Jesus Cristo.
Já a terceira seria aquela em que reinaria o Espírito na plenitude da inteligência, sob o
símbolo do lírio e do fermento, novamente o fermento dos judaicos, lembro eu, e na qual
prevaleceriam o amor, a alegria, a liberdade, a caridade, a concórdia e a contemplação. Seria o
verão do dia pleno, comparável ao óleo. Teria se iniciado com São Bento e estaria prestes a
ser implantada definitivamente, ainda segundo di Fiori, a partir de 1260. Neste reinado, pelas
pregações dos joaquimistas, Deus se revelaria diretamente ao coração dos fiéis.
Esta era uma visão totalmente antagônica às pregações de Santo Agostinho, segundo
as quais o reino celeste já havia surgido através da criação da Igreja. Joachim di Fiori queria
mais: além de voltar seus olhos para o futuro, pregando uma renovação nas formas de adorar a
57
festejos do dia votivo”. Ele afirma que “a mais velha referência portuguesa é de Gil Vicente.
Em seu Auto da sibila Cassandra, ele apresenta uma écloga de 1505, na qual os personagens
cantam uma folia”, e transcreve versos como se segue:
FLÁGOA D’AMOR
freguesia de Santa Luzia, também chamada, pela grande produção do fruto do marmelo, de
Santa Luzia das Marmeladas, hoje Luziânia, no estado de Goiás.
Incorporada ao ciclo das festas de Maio, em terras luzianas, a Festa do Divino tem seu
início por volta de seis semanas depois da Páscoa, quando também é comemorada a
Ressurreição de Cristo, e termina após as novenas, nove dias de penitência e preparação dos
festejos.
Necessário se faz registrar que, com o aumento do número de folias no município de
Luziânia, e para não haver coincidência de datas entre os vários giros, este ciclo tem se
alongado. Existem folias, ainda dedicadas ao Divino Espírito Santo, em um calendário bem
mais largo, como pude verificar na Fazenda Piancó, em julho, e na divisa do DF com Goiás,
no Lago Oeste, em agosto. Tanto o primeiro quanto o segundo grupo são formados por mais
de trezentos foliões. Além disso existe o fato de que, em alguns estados brasileiros, a festa do
Divino é realizada em Agosto.
As Folias do Divino que, simbolicamente, antecedem o dia votivo propriamente dito,
se caracterizam pela visita também às casas dos fiéis. Estes a recebem, dando pousada,
comida, bebida e espaço para seu lado profano.
Aqui, neste espaço profano, os foliões, dentre outras práticas, cantam e dançam o
catira e passam a noite em brincadeiras e jogos. Representações estas que também são
consideradas, por seus praticantes, como extensão devocional da festa. Como bem diz
Dionísio de Souza Cruz (Seu Lió, folião em Luziânia), no encarte do CD Sertão Ponteado –
Memórias Musicais do Entorno do DF (1998): “Nós faz tudo, nós dança catira... O que é de
Deus nós faz tudo... [...] É de Deus! É tradição de Deus. Essas outras diversão o povo fala que
não é de Deus, mas é. Porque se tem, Ele amou”.
Em algumas cidades do interior de Goiás, como, por exemplo, em Cristalina, no
penúltimo ou no último dia de folia se dá o Cruza, encontro das bandeiras que saíram de
pontos diferentes e que irão entrar na igreja para a entrega dos donativos e oferendas
recolhidos. Este é considerado o clímax da festa.
Até chegar em Luziânia e municípios vizinhos, porém, esta representação cênico-
religiosa teve que percorrer mares e terras. E novamente me sirvo dos escritos de Carlos
Francisco Moura, de quem cito um trecho de Teatro a bordo de naus portuguesas nos Séculos
XV, XVI, XVII e XVIII para contar esta história:
À falta de registros mais exatos sobre em que data e por quem a festa foi trazida ao
Brasil, restam-nos as suposições – que pelas características e objetivos deste capítulo
considero suficientes – de que os primeiros impérios do Divino por estas bandas se deram por
obra dos portugueses que por aqui primeiro permaneceram. Principalmente a partir da efetiva
colonização que se inicia por volta de 1530.
José Ramos Tinhorão indica a presença das folias, já conhecidas desde a época do
“achamento” da terra, como meio de “atração dos índios mais jovens através da singeleza dos
folguedos populares portugueses de origem rural”. Folias que, utilizadas pela Companhia de
Jesus como instrumento catequizador, “muito ao contrário do que o nome pode indicar, não
constituíam qualquer oportunidade para loucuras liberadoras, [...] ‘mas simples e honesta
diversão popular’, conforme definição do historiador dos jesuítas, padre Serafim Leite”
(TINHORÃO, 2000, p. 33). Em legenda de aquarela de uma Folia do Divino Espírito Santo,
Tinhorão (2000, p. 150) diz: “É a mesma folia profano-religiosa portuguesa, que desde o
século XVI os jesuítas admitiam no Brasil como diversão inocente”.
Estava então presente em nossas terras do Brasil, desde o “achamento”, a prática das
folias, seja em forma de festa, em adoração ao Divino, ou em folguedos e jogos, como
instrumento catequizador.
E não foi diferente sua migração para o interior.
Se, já em 1722, durante o ciclo do ouro, Goiás foi “conquistado” por Bartolomeu
Bueno da Silva, o Anhangüera filho, quatro anos depois seria fundada Vila Boa, que se
tornaria capital da província e viria a chamar-se, mais tarde, Cidade de Goiaz. Registre-se que
este é, ainda nos dias atuais, um dos principais centros das tradições religiosas e turísticas do
62
estado. Com os arraiais, todos voltados para a mineração, vieram as festas. Com as festas, as
folias.
Em 06 de dezembro de 1746, D. João V, rei de Portugal, conseguiu do papa Benedito
XIV, pela bula Condor Lucis Aeternae, a criação da prelazia de Goiás, subordinada
administrativamente à capitania de São Paulo e religiosamente ao bispado do Rio de Janeiro.
Segundo Luiz Palacim (1972), assim surgiram também as cidades de Formosa, Planaltina e
Luziânia, sendo que esta última, através de várias emancipações recentes, veio a dar origem
aos municípios de Santo Antônio do Descoberto, Cidade Ocidental, Valparaizo de Goiás e
Novo Gama, de onde sai atualmente o giro da Folia do Divino objeto desta pesquisa.
O arraial de Santa Luzia foi fundado em 13 de dezembro de 1746 pelo bandeirante
Antônio Bueno de Azevedo que, partindo de Santo Antônio de Piracatu, hoje Paracatu, em
Minas Gerais, ali descobriu grande quantidade de ouro. A facilidade do garimpo em areias de
um pequeno riacho trouxe para o local, em menos de um ano, mais de dez mil pessoas.
Assim descreve Joseph de Mello Álvares a reação de Antônio Bueno de Azevedo ao
chegar às margens do riacho que corta ao meio a cidade:
na profana” (ÁLVARES, 1979, p. 112), quando, pelo histórico anterior, podemos deduzir a
prática das folias.
Antes então de começar a falar objetivamente da Folia de Roça do Novo Gama, objeto
desta pesquisa, quero tecer alguns comentários ainda sobre como esta manifestação se
consolidou nos meios urbano e rural da região, especialmente na antiga Santa Luzia. O
historiador luzianense Gelmires Reis (1978), em estudo sobre o folclore daquela cidade
goiana, narra as características principais das festividades religiosas citadas, mais
especificamente da festa do Divino e dos pousos de folias. Sobre o assunto, conforme já citei
anteriormente em minha dissertação de mestrado (VELOSO, 2001), ele diz:
Sobre a Festa do Divino Espírito Santo, realizada na cidade, o Professor Gelmires Reis
continua falando:
Outra descrição das folias é feita por Saint-Hilaire em 1819, em sua já citada passagem
por Goiás:
Hoje, porém, gostaria de ressaltar que estas manifestações, tais como foram descritas
pelo Prof. Gelmires Reis, incorporaram vários elementos de nossa contemporaneidade, aliás,
como é próprio das tradições culturais de nosso povo, e por isso tem outras características.
Acompanhando a Folia de Rua de Luziânia, em 2003, pude verificar as diferenças em
relação ao descrito pelo professor/historiador goiano naquilo que ele chama de “tempos
antigos”. Atualmente esta manifestação acontece muito mais como um grande cortejo festivo
do que propriamente o que se caracterizava como a Folia do Divino daquelas épocas. Pelo
menos em relação ao que pude compreender das interpretações dadas pelo citado professor,
tanto em seus trabalhos publicados quanto em anotações manuscritas para aulas no antigo
segundo grau, manuscritos esses que datam ainda da década de quarenta e que permanecem
guardados por sua família.9 A diferença por mim verificada só vem confirmar o fato de que as
folias não seguem formato único no Brasil. Em cada lugar, mais que isto, cada grupo distinto
de foliões, mesmo aqueles de uma mesma cidade, cada um gira de uma forma diferente.
9
Fotocópias dos manuscritos do professor Gelmires Reis podem ser consultados na Casa de Cultura Rui
Carneiro, em Luziânia.
65
Figura 4 e 5 – Saída da Folia de Rua em Luziânia – GO. À frente o Alferes da Bandeira oficial
Figura 6 – Bandeiras do Divino enfeitam janelas para a passagem da Folia de Rua em Luziânia – GO.
(2003)
Os pousos, simbólicos, são anunciados por rojões soltados das residências que vão
receber as visitas. Nessas casas, os foliões são recebidos com grandes mesas de biscoitos
diversos e refrigerantes, geralmente servidos a todos que conseguem entrar nos salões
67
Figura 7 – Chegada da Folia de Rua ao ponto de encontro das bandeiras – Luziânia – GO (2003).
10
Vide SERTÃO PONTEADO: Memórias Musicais do Entorno do DF – CD Coletânea (Org. e Prod. Roberto
Corrêa) – Brasília: Viola Corrêa, Série Cultura Popular, 1998. CÔRTES, João Carlos Paixão. Folias do Divino.
Porto Alegre: Proletra, 1983. PIMENTEL, Antônio. Pela Vila de Santa Luzia ou Fragmentos de um
passado. Brasília: Ed. Independência, 1994. REIS, Gelmires. Folclore de Luziânia. Luziânia: Gráficas
Luzianas, 1978. TINHORÃO, José Ramos. As Festas no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000. MEYER,
Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil. 2. Ed. São Paulo: EdUSP, 2001. MOURA, Carlos Francisco.
Teatro a bordo de naus portuguesas nos Séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Nórdica, 2000.
ÁLVARES, Joseph de Mello. História de Santa Luzia: Luziânia. 2. Ed. Organização e atualização de José
Dilermando Meireles. Luziânia-Brasília: Ed. Independência, 1979. PALACIM, Luiz. Goiaz 1722/1822.
Goiânia: Ed. Oriente, 1972.
68
E, finalmente um dia, pelas terras luzianas, por bondade e por beleza, em romaria de
casa em casa, viajando de pouso em pouso, o Espírito Divino se fez peregrino. Para pagar as
promessas, recolher os donativos, abençoar os fiéis ou fazer outras festas. Festas de orações,
cantos e danças, que tudo é da fé neste santo divino, que um dia de longe chegou. E, imagino
eu que, como em milhares de outros cantos, foi e é como se segue.
Em um tempo remoto, de data desconhecida, um carreiro se acidentou.
Era prática costumeira nas regiões de Luziânia, até por volta de 1940, como conta Jove
Benedito Veloso, 84 anos, antigo carreiro: buscava-se sal nas antigas estações da estrada de
ferro que vinha até Minas Gerais, inicialmente, e depois até Goiás. Saindo das fazendas
próximas a Santa Luzia, com o carro de boi carregado de fardos de carne suína conservada em
salmoura, os carreiros iam até Catalão (GO) e posteriormente até Vianópolis (GO). De um
desses lugares, em viagens de vários dias e até semanas, eles voltavam com os carros
carregados de sacos de sal, que por sua vez eram revendidos para os fazendeiros e sitiantes.
69
Ou ainda transportavam a madeira que serviria de dormente para a construção e, depois, para
reposição de peças na conservação da própria estrada de ferro que diminuiria essas distâncias.
Em uma dessas viagens, na busca do sal ou do dormente, ou nas lidas da fazenda, não
se sabe ao certo, aconteceu um acidente, quando um carro virou sobre o tocador dos bois.
O carreiro acidentado, homem de religião, devoto consciencioso, correndo risco de
morrer, fez a sua promessa: se ele tivesse a bênção de ser curado, enquanto vida tivesse,
tiraria uma Folia do Divino Espírito Santo, santidade a que dedicava sua adoração, e levaria as
esmolas até a igreja do Divino Pai Eterno, na cidade de Trindade (GO). E desde então, em
municípios daquilo que viria a se tornar entorno goiano do Distrito Federal, antecedendo os
festejos de Pentecostes, gira uma Folia do Divino. E que já teve como líderes nomes dos mais
conhecidos na região, como, por exemplo, Seu Dominguinhos, Seu Anjo e Seu Domingos
Picuxo, ou outro qualquer que recebesse a graça de ser sorteado. E as doações dos visitados,
pequenas oferendas, animais ou dinheiro vivo, com o tempo, deixaram de ser destinadas a
Trindade e passaram a ser entregues à Igreja Matriz de Luziânia.
Assim contou o Sr. José Gonçalves dos Santos, conhecido como Zeca Diabo, folião do
Divino, em entrevista no dia 08 de Fevereiro de 2003, na cidade do Gama, Distrito Federal.
Também há muito tempo atrás, exatamente em 1971, ocorreu um fato parecido,
conforme narrado pelo senhor Afrânio Meireles, vereador no município de Novo Gama:
Esta folia começou há trinta e dois anos atrás. Era um caminhoneiro. Ele
tava fazendo uma viagem pro Norte de Goiás, o caminhão estourou três
pneus. Ele ficou num lugar ermo, sem ter com quem apegar, e ele diz que
naquele momento ele fez um voto, ele pediu ao Divino que se alguém o
tirasse daquela enrascada, a casa mais próxima ficava a mais de cem
quilômetros, à noite, chovendo, ele com fome e o caminhão carregado e os
três pneus estourados, que ele ia tirar uma folia e que enquanto ele fosse
vivo, essa folia existiria, sairia todo ano.E a informação que nós temos dele
mesmo é que meia hora depois passou um amigo caminhoneiro e o socorreu.
Então essa folia começou há trinta e um anos atrás, dessa forma. No
princípio ele começou com 25 cavaleiros, e só com quatro casas. Ele (o
caminhoneiro) chegou, no final, pouco antes dele morrer, ele chegou a fazer
essa folia em 13 casas, 13 dias. [...] Mudou muito. No início, noventa por
cento das pessoas que moravam no Lago Azul, aqui no DVO 11, eram pessoas
11
DVO é um antigo acampamento de trabalhadores do Departamento de Viação e Obras do Distrito Federal, que
fazia a manutenção das estradas do entorno, por onde eram transportados, principalmente, os materiais para a
construção da nova capital. Com o tempo, o antigo acampamento tornou-se um bairro de Luziânia e,
que vinham de fora. Hoje, DVO, noventa por cento são goianos. Pessoal
oriundo da zona rural. Outra coisa que eu acho que mudou na folia, pra
melhor, é que eu me lembro, acho que até o décimo ano de folia, décimo-
quinto ano de folia, a maioria dos foliões, acompanhava a folia armados. A
chegada parecia foguete, com revólver, hoje não acontece mais.
Ao que vem outro homem, Amarildo Meireles, também conhecedor das histórias e
estórias dessas bandas de Goiás, pra falar mais uma vez. E contar de como nasceu, também
como as primeiras, esta Folia do Divino.
Numa viagem para Luziânia, em um grande acidente, um caminhão desgovernado
atropelou um devoto do Divino Espírito Santo. Segundo essa narrativa, uma das pernas do
homem, ficando sob as rodas traseiras do veículo, devido à gravidade dos ferimentos, deveria
ser amputada. A mãe dele fez um voto: se ele não morresse, se ele não perdesse a perna, que
ele tiraria uma Folia do Divino enquanto ele agüentasse. E ele tirou essa folia por vinte e oito
anos seguidos. Conforme conta o folião:
Essa folia começou com 12 cavaleiros, certo... Ela foi aumentando... Ele
começou a tirar a folia e foi treinando e passou a ser contra-guia, passou a
ser guia e tornou-se um grande guia que era, na minha opinião era um dos
melhores do Brasil... Sabia tudo sobre folia. Era um excelente violeiro e um
excelente guia... E ele veio tirando essa folia, tirando, tirando, ela já devia ter
seus setenta, oitenta cavaleiros, ele chegou lá em casa. E aí, eu ouvia falar...
Eu era moleque na época, devia ter uns dezessete, dezesseis pra dezessete
anos. Vamos pra folia! Uai, vamo... E foi aonde eu fui a primeira vez, há 24
anos atrás. Fui a primeira vez, tirei sem divisa. Quer dizer: naquele tempo
tinha que ver se merecia a divisa mesmo, né... Hoje por vários motivos, todo
mundo é divisado. Aí tirei a primeira vez e no segundo ano eu já fui
divisado, já fui Alferes, desde então... No segundo ano eu já fui Alferes...
Era eu e um dos filhos dele, do terno da direita. E outros dois do terno da
esquerda. E desde então eu venho sendo Alferes nesses anos todos. Aí a folia
foi crescendo, certo? Passou a cento e poucos cavaleiros... Essa folia ela
entregou nas fazendas... Primeiro ela entregava (as esmolas) nas fazendas...
Aí ela passou a entregar no Lago Azul, na igreja do Lago Azul. Deve ter uns
dezoito anos, já... Antes a esmola ia pra Luziânia... Ia pra igreja da matriz,
porque tudo era município de Luziânia. A partir do momento que o Lago
Azul desmembrou, num foi nem a partir disso não, foi a partir de que teve
posteriormente, com a emancipação do município, do Novo Gama.
uma paróquia no Lago Azul. Era município de Luziânia ainda, ela pegou
ainda uns anos município de Luziânia, mas a gente já entregava a esmola na
paróquia do Lago Azul.
As três narrativas acima estão se referindo, todas elas, ao surgimento da Folia de Roça
do Novo Gama, antiga Folia do Sr. Ofir Mulato. E a terceira é de seu atual Folião e líder,
Amarildo Meireles, 39 anos, em entrevista realizada em Brasília, Distrito Federal, em Março
de 2003, no período em que era organizado o giro descrito nesta tese.
Existe, entretanto, uma quarta história – ou seria estória? – para o mesmo fato. Em
junho de 2003, na cidade do Gama, Distrito Federal, a senhora Ana Camelo Vasques,
chamada na intimidade por Dona Merica, 80 anos, mãe do senhor Ofir Antonio da Silva, mais
conhecido como Ofir Mulato, descreve:
Que ele foi folião mesmo, que todo ano ele tirava e ele cantava os cantorio,
foi 21 anos. Ele tinha muita vontade de sair em folia. Sempre, ele desde
menino assim ele acompanhava, dum pouso pra outro, a gente deixava.
Tinha dia que num deixava tinha que ir prestando atenção... Depois ele
inventou a querer cantar o cantorio. Aí ele pegou cantar, ele comprou a
bíblia e foi ler na bíblia e foi trovando os versos na bíblia, com as palavras
de Deus, do Espírito Santo. E ele foi trovando, ele foi trovando, e aprendeu a
cantar os cantorio de um jeito que tinha uns folião aqui em Luziânia, Zelão,
é capaz que ocês lembra dele, um dia ele falou pra mim, chorou, falou pra
mim, óia Dª Merica, isso faz muito tempo, muitos anos ele tava girando e
posô lá perto de Luziânia e o cantorio foi na igreja. Então eu fui mais a muié
de Ofir, pra nós assistir o cantorio lá na igreja. Aí Zelão foi e Ofir foi que
cantou o cantorio lá... Aí, quando passou o cantorio, Zelão me chamou lá
fora e falou assim: Merica, óia, eu tô abismado com o cantorio de Ofir. Eu
sou folião desde idade de 20 anos e eu num sei cantar o jeito que Ofir canta.
Chorou mesmo, água caindo mesmo. Falou assim, eu sou folião uns vinte
anos antes de Ofir, mas eu num sei cantar do jeito que ele canta. Eu tô
abismado como ele canta desse jeito. Aí eu contei ele e ele falou assim: óia,
eu canto, mãe, porque eu abro a bíblia e vou lendo na bíblia aqueles verso...
Aquelas palavras que eu posso ajuntar eu vou juntando e fazendo os versos.
[...] Eu perguntei ele e ele falou que ele ligava, ia lendo a bíblia e ia puxando
aqueles versos, aquelas palavras e ia fazendo os verso. Aquelas palavras que
tinha na bíblia... E toda coisa que ele queria, que ele queria de ter aquele
negócio, ele pegava com o Divino Espírito Santo, e fazia voto com o Divino
Espírito Santo. [...] Pois é... Ele era caminhoneiro daquele negócio... Aí ele
pegou beber... Parou numa berada de estrada que tem muitas pessoas que
fica só bebendo também, né... Bebeu... Veio bêbado... Trazendo o caminhão
e no descer ali de Luziânia pra cá, naquela descida perto da cidade nova, o
caminhão tombou. Nesse tempo ele tava bom, novo ainda... O caminhão
tombou e rolou, caiu em cima dele, sabe? Mas ele diz que foi pelejando,
pelejando, até que tirou uma perna, pelejou, mas tudo com o milagre do
Divino Espírito Santo, porque ele, sozinho, num fazia isso. Ai passou uma
pessoa de carro lá e trouxe ele, o caminhão ficou lá tombado [...] No
hospital, o médico pôs ele de bruços, passou a mão assim nas costas dele, diz
que deslocou um osso. Aí ele apertou assim, e pôs no lugar. Ele diz que
doeu! Ele logo ficou bom. Gastou muito pra arrumar o caminhão... Até que
voltou a trabalhar de novo... Quando foi um dia, ele tava com uma casinha
lá, indo do Gama aqui pro DVO. Ele tinha uma casa lá, criava porco... Aí ele
pegou, tinha uma roça de milho, ele mandou quebrar o milho, encheu o
caminhão de milho, pegou um peão dele, que trabalhava com ele, e foi levar
esse milho lá, na casa dele. Nisso ele começou a beber. [...] Quando eles foi
embora ele escorregou e caiu debaixo do caminhão. Debaixo do caminhão.
O caminhão passou as duas rodas, porque eu vi a calça dele, passou na perna
dele, pegou a perna dele assim, ó, e veio direitinho... Deus deixou o sinal pra
gente ver o milagre que ele fez. Passou, ficou o pneu, assim, o trilho do
caminhão, marcadinho de poeira, ele tava com uma calça preta, ficou
direitinho. [...] No hospital... no outro dia ele tava alegre, rindo, sentado na
cama e rindo, contando causo, como quem num era nada... Quando passou
assim uns dois dias ele diz que começou a doer, e doendo, doendo... E ele
gritava a tudo quanto era santo, que Deus ajudasse que melhorasse aquela
dor, até que foi um enfermeiro lá, era conhecido nosso, e falou eu vou oiar
essa perna sua. Aí que ele foi olhar, tava dessa grossura a perna dele... Eles
rachou a perna dele até cá em cima, tirou duas cumadre cheinha de sangue,
aquele sangue pisado, e aí eles juntou a perna dele, amarrou a carne outra
vez no osso, enrolou, e aí ficou. [...] Pois Deus ajudou que ele miorou, ficou
mancando uns tempos, miorou, saiu com folia, dançou catira, cantou muitos
cantorio, naquele ano mesmo ele tirou a folia, foi só ele começou a caminhar
logo ele miorou e tirou folia ainda e tirou até quando ele num agüentou
mesmo, de uns três anos pra cá, ela num tava mais güentando. [...] O voto
que ele fez foi que enquanto vida ele tivesse que ele ia tirar a folia, no
primeiro acidente. E ele tirou muitas vezes depois disso... Ele entregava em
Luziânia, agora por último ele tava entregando aqui, no Lago Azul.
Nas narrativas dos foliões e na história de Dona Merica, se sobressai um certo grau de
mitificação, tanto da figura do Sr. Ofir Mulato quanto da folia por ele liderada por vinte e
nove anos. Podemos encarar o fato pela perspectiva dos mitos de fundação, em que o homem
tenta explicar suas origens, ou mesmo por outras formas míticas, que justificariam, além do
surgimento, a permanência de um evento da magnitude das folias pelo interior do Brasil.
Claro está, para mim, que à medida que se vê o fato mais distanciado dos tempos de
sua origem, mais existe uma tendência a se acentuar o seu caráter mítico, principalmente de
manifestações com as características das folias. Como o mito “é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas
múltiplas e complementares” (ELIADE, 2002, p. 11), talvez possamos encontrar, nestas
incontáveis tentativas de definição, uma parte, ou mesmo a totalidade, da explicação para a
permanência das folias nas sociedades contemporâneas.
Ainda Mircea Eliade (2002, p. 11) considera a definição “menos imperfeita [...] por ser
a mais ampla”, como sendo mito o que “conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio”.
E uma graça recebida por um voto feito à Divindade, seja ela em qualquer tempo, é
sempre fabulosa. E é também sempre um “princípio”. O princípio da adoração a um santo, da
fundação de uma igreja, da criação de uma irmandade, de um folguedo relacionado a uma
festa religiosa, ou, como no caso aqui estudado, o surgimento de um grupo precatório com as
características da Folia do Divino.
Relacionando mito e cultura, Adolpho Crippa diz:
Por esta perspectiva, claro se torna, para mim, que o tempo tem afirmado a origem da
Folia de Roça do Novo Gama como um mito de fundação. Apesar de não estar localizada nos
tempos imemoriais do surgimento da espécie, como estamos acostumados a compreender
superficialmente o mito, esta origem é um precedente para a ordem social interna do grupo,
justifica porque os foliões têm que agir como agem e apresentam os atributos que definem o
comportamento geral durante o giro. Mesmo que este comportamento não se concretize
conforme o estabelecido, ele deve ser seguido. Ou até quando fica claro um certo
descompasso entre o que é pregado e o que realmente acontece, em nenhum momento o
discurso exemplar é abandonado.
Sabe-se que existem “excessos” no consumo de bebidas alcoólicas, mas diz-se que o
permitido é somente a pequena quantidade de “pinga” reconhecida como parte integrante do
ritual “deixado por Cristo". Apesar de se dizer que a “dança com mulher” não deveria ser
permitida durante o giro, constata-se que para um grande número de participantes, a
motivação maior é a festa, a bebida, o pagode.
Não é o mito de fundação da Folia do Divino uma afirmação somente de um tempo
antes do tempo, uma primordial formação original do espírito, estabelecida num illud tempus
imemorial. Mas é, também, a busca de compreensão de um illud modus, onde o que guia os
dizeres dos componentes do grupo, mesmo que nem sempre os seus atos, é a certeza de estar
seguindo o modelo comportamental do fundador, sendo ele de tempos antigos ou seu
contemporâneo.
E nesse sentido, no meio rural, o grupo de foliões do Divino dos dias atuais difere
muito pouco de sociedades primevas em que o mito era aquilo a partir do qual uma realidade
passou a existir. Ou onde o mito é o que serve como modelo de todos os discursos, fantasiosos
ou não.
As folias, entretanto, carregam significações outras que transcendem a todos os
escritos míticos, sagrados e históricos, bem como a todas as narrativas orais de homens e
mulheres com elas envolvidos. E isto veremos, mais adiante, nos capítulos seguintes.
CAPÍTULO II
Gostaria então de me deter em dois desses enfoques sobre o tema, que me despertam
grande interesse, e que são discutidos por Marcelo Gleiser, astrofísico brasileiro, professor
catedrático de física e astronomia no Dartmouth College (New Hampshire). Ao discorrer
sobre o surgimento da ciência, no prefácio de O fim da Terra e do Céu: O apocalipse na
ciência e na religião (GLEISER, 2001), ele afirma que, para aliviar a dor da consciência de
nossa finitude, na "tentativa de produzir um legado que, esperamos, sobreviva à nossa curta
vida [...] nós criamos obras de arte e teorias" e "para aliviar o medo da morte e a dor de perder
uma pessoa amada, as religiões do Leste e do Oeste transformam o fim da vida em um evento
que vai muito além da mera incapacidade de um corpo continuar funcionando" (GLEISER,
2001, p. 9).
Poderia dizer aqui que, para o autor de A dança do universo: Dos mitos de criação ao
Big-Bang (GLEISER, 1997), o homem é possível porque cria artifícios de sobrevivência.
Segundo suas conclusões, o peso da consciência da morte e da finitude é muito grande para a
fraqueza humana. Então ele se transforma em criador. Ou apela para os poderes da fé, da
devoção às religiões, que, segundo Durkheim (2000, p. 459), têm como verdadeira função
"nos fazer agir, nos ajudar a viver".
Em Nietzsche e a verdade, Roberto Machado cita a argumentação com que aquele
autor tratou do assunto, ao dizer que os gregos criaram os deuses olímpicos e a arte apolínea
"para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida".
(MACHADO, 1999, p. 18)
Esta, no entanto, não é uma preocupação que surge para mim apenas com as leituras
deste momento, mas uma pergunta que, assim o percebo, acompanha toda a vida de homens e
mulheres que fazem opção pela arte, como é o meu caso. Em minha dissertação de mestrado,
defendida no Programa de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas das Escolas de Teatro
e de Dança, da Universidade Federal da Bahia - UFBA (VELOSO, 2001), num exercício
ficcional introdutório ao primeiro capítulo, "Teatro e Gesto - Ecos de um grito primordial",
me remeto também a este exercício de criação para justificar a vida, quando digo:
Lembrando Bertolt Brecht, que disse em A Vida de Galileu (1973), que "pensar é um
dos maiores prazeres da raça humana", eu diria que pensar é ato de se espetacularizar. Para o
outro, para a natureza, para a divindade ou para o outro eu em função dialógica. Portanto, este
prazer é resultado, também, da espetacularização do eu.
Pela leitura psicológica de Jacques Lacan, podemos compreender esta função
espetacular pelo jogo estabelecido naquilo em que cada um formula o seu duplo, em função
análoga ao espelho, por um eu simbólico que se constitui em um “outro como sede prévia do
puro sujeito significante” (LACAN, 1978, p. 289). Este eu significante, tornando-se uma
função de linguagem, formulação onírica do pensante, ou persona criada para as interações,
81
por meu entender, torna-se objeto da espetacularização para a alteridade, seja esta o outro
propriamente dito ou o próprio sujeito/matriz do espelho.
Esta subjetividade, entretanto, tem outras leituras, dentre as quais gostaria de citar a
proposta por Èmile Benveniste (1988), ao tratar da linguagem, e a de Stuart Hall (2001), que
investiga a identidade cultural na pós-modernidade.
Para o primeiro, é "um homem falando que encontramos no mundo, um homem
falando com outro homem [...] É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito" (BENVENISTE, 1998, pp. 285-286). Neste caso, de forma um pouco diversa
do que propus anteriormente, o eu só pode ser utilizado para que o sujeito da alocução
encontre eco em um tu, que passará à condição de eu no ato da resposta. Resposta esta que
não se concretiza na enunciação do devoto com as mesmas características do diálogo entre
dois seres humanos. Não existe a possibilidade do eu da enunciação da oração se transmutar
em um tu, através da resposta. A não ser na própria imaginação do enunciador que se sente
autorizado a continuar seu ritual de chegada.
Além desta visão proposta pela lingüística, advinda da interação constatável nos
estudos do significante/significado, em que o eu da enunciação assume o papel cambiável
entre fonte e destino da significância, podemos também encontrar noções aproximadas nas
várias definições da psicanálise.
Esta mesma relação sugerida entre um enunciador representado pelo que Jacques
Lacan (1978, p. 283) chama de sujeito do inconsciente e o eu da aparência. Isto posto que a
enunciação, pela compreensão deste psicanalista, se dá no “inter-dito, que é o intra-dito de um
entre-dois sujeitos” ou ainda a existência de um “eu como sujeito que se conjuga pela dupla
(grifo meu) aforia de uma substância verdadeira...” (LACAN, 1978, p. 285).
Assim existiria, então, uma relação direta entre um “eu fonte”, por onde passa o
desejo, origem do que vai ser enunciado, e o “eu persona”, que seleciona os códigos para a
enunciação. Isto a partir da interação com aquele a quem se dirige esta enunciação, e que pode
transmutar-se em outro eu enunciador, e seu vocabulário de significações. Por esta visão,
existe o desejo localizado em um eu interior, único, que negocia as significações com as
várias personas, a partir dos agenciamentos destas com o mundo exterior.
Stuart Hall enfoca a questão por outro ângulo. Para ele o sujeito pós-moderno está
localizado em um conceito de fragmentação, que o desloca de uma unicidade predominante
desde o Iluminismo para um eu que surge de nosso "pertencimento a culturas étnicas, raciais,
lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais" (HALL, 2001, p. 8).
82
Para chegar a esta conclusão, o autor parte de três definições distintas, que ele chama
de sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. O primeiro seria
"baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia
num núcleo interior" (HALL, 2001, p. 10), que o acompanharia, continuamente, desde o seu
nascimento até a morte. O sujeito sociológico seria o do interacionismo simbólico, cuja
identidade é formada no confronto do eu com a sociedade. Partindo da existência, ainda, de
um "eu real", esta identidade seria formada e modificada nos diálogos culturais com outras
identidades exteriores. Da tensão existente entre o mundo pessoal interior e o mundo público
exterior, surgiriam, por esta definição, sujeitos e mundos culturais "reciprocamente mais
unificados" (HALL, 2001, pp. 10-11).
Já o sujeito pós-moderno é descrito por Stuart Hall como sendo produto de um
processo que o conceptualiza e que não lhe permite uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Este sujeito é descrito da seguinte maneira:
Erving Goffman, por estas formulações, distancia o indivíduo “eu” representado como
personagem do indivíduo ator, pois a capacidade de aprender deste último é exercida
treinando seus papéis. Em suas fantasias e sonhos, em que umas representações são
triunfantes e outras cheias de ansiedade e terror, vive nervosamente numa pública “região de
fachada”. São atributos desse indivíduo, enquanto ator, representações particulares de
natureza psicológica, mas que parecem surgir de interações com “contingências da
representação no palco” (GOFFMAN, 1999, p. 232).
Gostaria aqui de voltar às noções de espetacularidade e de teatralidade propostas pela
etnocenologia. Luis Costa Lima (1981, p. 221), afirmando que "até a mais anódina conversa
realiza uma pequena cena teatral", nos remete ao que diz Erving Goffman em Frame Analyzis
(1975, p. 508): "o que com freqüência os falantes levam a cabo não é oferecer informações a
um receptor, mas apresentar dramas a um auditório. Parece, na verdade, que a maior parte de
nosso tempo é gasto não em dar informações, mas em realizar espetáculos".
Já em princípios do Séc. XVI, Michel de Montaigne, no Livro II, Capítulo I de seus
ensaios, falando da incoerência de nossas ações, afirma que:
perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. [...] Daí ser tão grande a
diferença entre nós e nós mesmos, quanto entre nós e outrem
(MONTAIGNE, 1980, pp.285-288).
Donde podemos constatar que esta questão relacionada às noções da multiplicidade do
eu não é coisa nova, e nem restrita aos tempos pós-modernos da contemporaneidade. Assim
compreendendo, volto a Luis Costa Lima: "Somos tanto mais unos e tanto mais íntegros
quanto menos conhecemos os papéis que representamos [...] Não representamos porque
queremos e quando queremos, mas o fazemos como maneira de nos tornarmos visíveis e ter o
outro como visível" (LIMA, 1981, pp. 221-222).
Parece, penso eu, que as formulações dos criadores da etnocenologia e da
microssociologia têm um estreito parentesco. Principalmente no que diz respeito ao
comportamento espetacular e aos mecanismos de representação do eu, tanto na vida cotidiana
quanto nas manifestações extracotidianas. Em uma e em outra situação, somos levados a crer
na vida como movimentos de espetacularização.
Todavia, para melhor compreender este permanente pertencimento ao drama,
necessário se faz também uma distinção objetiva das metáforas de representação cênica a que
se refere Goffman (1999) para elaborar suas teorias.
Claro está que é impossível, neste reduzido espaço, retratar todas as possibilidades
teóricas do teatro, construídas, em verdade, desde o primeiro gesto de existência do homem na
face da terra, e, nas formas tais quais o compreendemos a partir da tragédia e da comédia
gregas, em mais de dois mil e quinhentos anos de história.
Grosso modo, porém, gostaria de sugerir uma pequena reflexão sobre três molduras
distintas em que, dentre outras, podemos localizar a dramaturgia contemporânea, para situar
cada uma das formas de comportamento representacional das interações, as pessoais e as dos
grupos sociais.
Quando, no mito de criação do teatro ocidental, a partir dos rituais a Dioniso, Téspis
subiu em uma espécie de mesa, num plano superior a seus pares, e disse, em altos brados, que
era o deus, ele dava início a uma longa história, que dominou a cena como forma
predominante de representação no palco por longos e longos séculos. No exato instante em
que um outro participante do ritual, entrando no jogo, respondeu do meio do grupo, estava,
naquele momento, criado o drama. Através do conflito que se estabeleceu a seguir, pela
tensão gerada e que tomou conta do ambiente, surgia o mais duradouro modelo de
representação cênica de que se tem notícia no ocidente.
Esta forma teatral carrega elementos muito mais complexos, que deixarão de ser
tratados aqui, mas a simplificação que estou dando ao tema serve para demonstrar
85
objetivamente a metáfora da relação entre o drama e a vida real, tratada por Erving Goffman
(1999).
No quadro proposto pode-se localizar o tripé básico da representação cênica que
herdamos da tragédia grega e que se caracteriza pela existência de uma ação dramática, vivida
por uma personagem, e vista por uma platéia. Não esquecendo da redundância de "ação
dramática", visto que drama, em grego, é ação, e da ligação etimológica de personagem,
persona, máscara. Isto quer dizer o quê?
Kenneth Brannagh representa Henrique V, de Shakespeare. Fato rotineiro na vida de
um ator shakespeariano por excelência. Mas por um olhar mais apurado, enxergaremos
sutilezas nesta interpretação que extrapolam a mera afirmação de que Brannagh é o Rei
Henrique. Neste modelo, estou falando que uma pessoa física, detentora de uma identificação
própria, de um eu que faz suas opções e traça seus caminhos, estou dizendo, repito, que um
ator representa uma personagem, veste uma máscara. Esta personagem, por seu lado, executa
seus papéis. Ele é chefe de estado, comandante de um exército e conquistador de uma rainha
francesa. Repare-se que somente aqui pode ser encontrado um sem número de ações que não
são de Kenneth Brannagh, mas sim da personagem que ele faz. Um ser humano ambicioso,
um guerreiro extremamente violento e um galanteador de primeira hora, que protagoniza,
inclusive, uma das cenas de conquista amorosa mais importantes da dramaturgia universal.
Em sã consciência, por não conhecer o homem Brannagh, não podemos dizer, em
nenhuma circunstância, que o ator britânico tem, como características pessoais, as qualidades
do Rei Henrique. No entanto ele as representa. E bem. É um homem em uma personagem,
que por seu lado tem seus papéis.
Existe outra abordagem. Lygia Verdi é performer de butoh, uma forma diferente de
dança dramática. Lygia executa uma performance em que, em meio a um colar de flores,
"fala" das emoções humanas em suas relações com a vida até nos remeter a um princípio
lúdico e nostálgico relacionado à morte de uma infância remota.
Quero, antes de continuar, abrir um pequeno parêntese para informar que esta leitura é
minha. Pode ser uma outra a noção da artista, mas como esta forma de representação está
sempre aberta, diversas são as interpretações possíveis. A performance existe, isto é, ela é
mostrada e é lida de acordo com o que o espectador espera dela.
Na representação acima citada, a performer não usa do artifício da personagem que
tem seus papéis. É ela mesma em ação. Os papéis são "vividos" pela atriz, sem a necessidade
de uma caracterização física diferente dela própria. Em outras palavras, é a mulher Lygia, em
estado de espetacularização, que "mostra" diretamente os papéis.
86
Finalmente, posso citar o jogo e alguns modos de folguedos como a terceira forma de
dramatização. Esta, entretanto, é negociada. Não existe uma personagem e um papel, como no
primeiro caso, e nem um papel pré-concebido, como no segundo. Ela é construída nas
interações circunstanciais do momento.
Num canto qualquer de uma feira popular, ou num lugarejo do interior da Bahia, de
repente, em meio ao alarido dos vendedores ou no silêncio de uma rua empoeirada, quando
menos se espera, surge um homem, um senhor já de idade um pouco avançada, montando
uma burrinha feita de madeira, papel, pano e corda. É um brincante que avança para cima dos
espectadores que, fortuitamente, estão em seu caminho. Cada um reage de maneira diferente.
Existem aqueles que olham desconfiados e continuam em seus afazeres, outros que
acompanham a brincadeira, ou ainda outros que provocam a pequena imitação de animal e
entram num verdadeiro faz-de-conta de perseguição que só acaba quando uma das partes
desiste do corre-corre.
Neste lugar, em que se destaca um homem que, provavelmente, está pagando um voto
feito a algum santo, ou mesmo que herdou uma brincadeira de um pai ou avô zeloso de
costumes antigos, neste campo de atuação se estabelece também um jogo dramático. São
tensões de outra ordem que não aquelas que surgem de conflitos entre personagens diferentes
ou de vontades e contra-vontades interiores de um eu em monólogo, ou, como queiram, deste
mesmo eu em função dialógica consigo mesmo. É um alegre poder das circunstâncias se
impondo sobre as pessoas que se abrem para o lúdico de uma espetacularização mútua, tanto
do brincante quanto do próprio espectador, que aqui, sim, caracterizam, com toda clareza,
aquela negociação lingüística do eu e do tu estudada por Benveniste e já citada anteriormente.
Em determinadas formas de drama interativo como, por exemplo, as comédias
chamadas de besteirol (vale o registro de que não concordo com este termo, que compreendo
como mais uma forma de exclusão elitista), em que a platéia entra no jogo das circunstâncias
propostas pelos atores, poderiam também ser neste modelo incluídas.
Pois bem, quando Erving Goffman (1999) fala das metáforas teatrais, onde, em que
espaço representacional esta noção está inserida?
As situações que este autor caracteriza, acredito, podem ser discutidas através de dois
dos três quadros expostos. O primeiro é o que situa as pessoas em seu estado espetacular nas
interações face a face e intergrupais. E o segundo é aquele que trata dos rituais e outras
manifestações extracotidianas.
Se eu levar em consideração a representação do eu na vida cotidiana pela perspectiva
das práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, da etnocenologia,
87
principalmente em sua corrente que inclui as ações do dia-a-dia, constato uma clara ligação
desta análise com a forma dramática do jogo.
Isaac Joseph (2000) fala da passagem do modelo dramatúrgico para os frames, ou
quadros dramáticos do cotidiano. Quero situar algumas noções que daí decorrem, e que o
autor descreve:
A junção destas duas noções com a de quadro participativo, que designa uma
"estrutura de espera", um espaço em que estão inseridas as noções de participante ratificado e
de formato de produção, esta junção é que determina, por esta visão, a conceituação de
convivência.
O espetáculo dramático, em sua configuração tradicional, advinda do modelo grego de
representação, implica, ainda segundo Joseph, uma "convocação pública" para ver
personagens mais ou menos representativas, sintetizadas. O que é diferente do que ocorre na
vida cotidiana. Este quadro, que é participativo, tem por princípio a pluralidade, em que o
indivíduo, ator na interação, tem, para cada grupo social, uma personalidade diferente.
Onde, novamente, pode ser relacionada a ordem da interação, de Goffman, com as
proposições de estetização da vida, de Michel Maffesoli, e com referências feitas
anteriormente à etnocenologia. O que está resumido em uma frase recorrente nos escritos dos
formuladores do situacionismo metodológico, ou, para outros, da microssociologia: "A
natureza mais profunda do indivíduo está à flor da pele: a pele dos outros" (JOSEPH, 2000, p.
49). A ordem da interação é, portanto, a ordem do jogo dramático, construído nas
circunstâncias. A outra moldura de que estou falando é aquela relacionada às atividades do
homem nas manifestações extracotidianas, dentre as quais estou utilizando os rituais da Folia
do Divino como objeto.
Quando falo de extracotidiano, estou me remetendo àquilo que Eugenio Barba diz ser
um estado de "esbanjamento de energia". É o corpo colocado em situação artística/artificial,
88
porém crível, em que parece sugerir o "uso máximo de energia para um resultado mínimo"
(BARBA, 1994 pp. 30-31).
No extracotidiano das festas, folguedos, desfiles e todas as outras representações
cênicas, este "esbanjamento de energia" está voltado para um apelo ao imaterial. Porém o que
sustenta o ritual é a materialidade societal, o imanente elementar de todas as religiões. Émile
Durkheim (2000) propõe esta materialidade social como forma comum de todos os rituais.
Como o verificado na representação da Folia do Divino. Isto é constatável, por exemplo, nas
figuras 11 e 12 que aqui se seguem.
da benzedura que curam os males do corpo e da alma, o fogo, que é luz da vida, e uma
pequena escada, que conduzirá cada um ao reino dos céus. São imagens postas para a
socialização do ritual. Disto, porém, falarei no item dois deste mesmo capítulo.
Tudo isso além de uma outra espécie de materialidade societal, citada pelo Professor
Gelmires Reis ao falar das comidas e bebidas, das danças e jogos, que acompanham o
desenrolar da festa, e que a estabelecem naquele universo das relações interpessoais e de
grupos.
O devoto folião, como o praticante de outros rituais extracotidianos, então é, também,
um performer. Sua atuação se localiza na representação dos papéis executados pela própria
pessoa, mesmo com o desprendimento da máxima energia para um resultado mínimo.
Também este, como a Lygia Verdi, do Butoh, não lança mão do recurso da personagem que
tem seus papéis. Estes são seus, e, como homem comum que ele é, os exerce diretamente, sem
artifícios. Ele é o “eu” que negocia nas circunstâncias dos papéis trocados nas interações
ritualísticas cotidianas, mas também se performatiza nos rituais extracotidianos. É jogador ou
performer, dependendo do momento.
Donde retomo a pergunta inicial: "Como é possível o homem?".
O homem é possível na existência do outro. É este outro, "a tribo de afinidade, a
alteridade da natureza ou o Grande Outro que é a divindade" (MAFFESOLI, 1998, p. 12), ou
o outro eu em função dialógica, que se concretiza no ponto para o qual dirigimos todas as
nossas ações. E que determina o grau de nossa “alter-estima” 12 a partir de nossa capacidade de
negociar as circunstâncias das interações, tanto nas relações face a face quanto no espaço dos
grupos. Assim, não somos resultado do meio, mas sim das negociações circunstanciais da co-
presença relacional em que nos multiplicamos para abordar o mundo.
O homem é possível pela materialidade de sua criação, artística, teórica e religiosa,
mas acima de tudo na possibilidade que ele vê da concretização de seu imaginário. Como a
vida real é mais efêmera que o imaginário, ela se transporta para este. Que é o espaço onde
nos sentimos capazes de ir além do próprio contrato social e formatar novos discursos para
nós mesmos. Discursos estes construídos na materialização dos rituais, aqueles voltados para
toda espécie de interação, seja ela humana, para a natureza ou para o divino. O homem existe,
na compreensão deste trabalho, pela própria estetização religiosa para o outro, em
12
Alter-estima é a melhor forma que encontro para definir o que é comumente chamado de auto-estima.
Enquanto este termo nos sugere uma estima própria construída a partir de si mesmo, acredito ser alter-estima
mais apropriado para designar esta medida de si que é constituída a partir das relações interpessoais e do jogo
das interações.
90
Nos dias de hoje, no meio rural do estado de Goiás, ainda é “uma tradição secular
quase todo fazendeiro doar um animal ao Divino Espírito Santo, enquanto fazenda ele tiver,
para que mal nenhum possa acontecer à sua propriedade, estando sob a proteção do Divino”. 13
E, como diz o Sr. Amarildo Meireles, afilhado do Sr. Ofir Mulato 14 e continuador de sua folia,
objeto desta pesquisa:
[...] acontece, isso é que emociona a gente: pessoas assim pobrezinhas, que
têm um ranchinho pra morar, só, e que com tudo aquilo, mal têm o que
comer... acontece muito... quer dar uma doação, quer dar sua esmola pra
santa igreja... já cansamos de ganhar [...] pega um litro de amendoim... cê
quer que eu seja mais simples, mais objetivo... uma caixa de fósforos... eu
não tenho nada. Agora, vocês, por favor, pega essa caixa de fósforos, leiloa,
e leva o dinheiro pro Divino Espírito Santo.15
13
Documento da Academia de Letras e Artes do Planalto, s.d., assinado por Jesus Benedicto de Mello, ocupante
da Cadeira nº 14, e elaborado a partir de consultas ao Livro do Tombo da Igreja Matriz de Luziânia (alguns
exemplares desaparecidos).
14
O Sr. Ofir Mulato, falecido em 2002, foi o criador da Folia de Roça do Novo Gama, que levava seu nome.
15
Sr. Amarildo Meireles, atual organizador e líder da Folia de Roça do Novo Gama, ex-folia do Seu Ofir Mulato,
em entrevista realizada em 06 de Março de 2003, em Brasília-DF.
91
como diz Michel Maffesoli (1995), constrói o “estar juntos” daquele grupo social em seu
quotidiano ou no extracotidiano dos seus dias de festa. Mas nem sempre foi assim.
Por muitos anos, na contemporaneidade, o direito ao discurso formulado por esta fé foi
negado a estes homens e mulheres, principalmente aos detentores dos saberes mais comuns.
Provavelmente por herança de um pensamento que atravessou toda a modernidade, em que os
grupos mais comprometidos com posturas ideológicas dominantes no espectro das
intelectualidades acadêmicas e dos formadores de opinião tratavam as religiões simplesmente
como o ópio do povo. Era um tempo em que as pessoas comuns eram vistas somente como
seres passivos em uma utópica construção da história. Um tempo de “diversas representações
moralistas produzidas pela modernidade”, ainda segundo Maffesoli (2001, p. 11). A
prevalência de uma lógica clássica “que provocou, e continua provocando, tanto uma
desconfiança quase religiosa em relação ao imaginário como hostilidades violentas contra os
pesquisadores do imaginário nas múltiplas disciplinas” (DURAND, 2001, p. 82), lógica esta
com a qual nosso tempo não mais se identifica totalmente.
Esta lógica clássica seria a mesma reconhecida por Michel Foucault (2001) como os
mecanismos de poder engendrados como os grandes sistemas de exclusão do discurso.
Traçando um paralelo com os escritos deste autor, talvez se pudesse dizer que, como o
discurso permitido seria somente aquele construído para a afirmação racionalista da
modernidade, todo e qualquer indício de uma palavra não validada pela razão teria, como não
sendo merecedora de crédito, que ser excluída.
Pela existência de uma ordem em que não se poderia dizer tudo que se quisesse, em
qualquer lugar, o discurso do imaginário não seria cabível. Como livre que é, estaria
colocando em risco a segurança do permitido.
Como também teria que ser segregado o discurso da loucura. A palavra do louco não
vale, visto que não seria possível uma separação entre o real e aquilo que é fruto da
imaginação.
Se bem que neste discurso da loucura podemos detectar um paradoxo: em situações
especiais, como a premonição ou o dizer o que quer sem punição, de algumas obras de arte, o
louco pode ser ouvido como detentor da verdade. Como, por exemplo, a permissão dada aos
“possessos” em Rei Lear, de Shakespeare, muitas vezes citados, em discursos paradoxalmente
racionalistas, como o exemplo mais acabado da verdade dita pelos alucinados.
Pode ser ainda destacada a existência de um grupo de ordens restritivas ao discurso
imaginário localizado no que Foucault chama de “vontade da verdade” e que se construiu ao
longo da história do pensamento. Esta “vontade de verdade”, da lógica binária de um falso e
92
Como se pode verificar, para conviver com o mundo fenomenal, de certa maneira o
homem estaria seguindo caminhos que não os do Deus cristão. E é Michel Maffesoli quem
também fala desta separação:
Para o teórico francês, está aí o princípio dos moralismos perdurantes nas religiões,
nas intelectualidades e nos formadores de opinião. Referenciando-se em Nietzsche, fala ainda
da não aceitação da aparência, o temor à imagem, aos sentidos e à beleza, e de um ódio à
matéria, o que levaria a uma não aceitação da vida, de origem neste “estado de aversão”. 16
Se por um lado falo das interdições impostas pelo discurso racionalista, como se os
discursos do imaginário não sofressem as contaminações do poder, por outro sou obrigado a
admitir que isto não é absolutamente verdadeiro. O imaginário, por mais livre que possa
16
Para maiores esclarecimentos, ver DURAND, Gilbert. O imaginário – ensaio acerca das ciências e da filosofia
do imaginário. Rio de Janeiro: Ed. Difel, 2001, onde este autor faz um esclarecedor apanhado das questões da
imagem desde o Velho Testamento até a “tópica sociocultural do imaginário” na contemporaneidade.
93
parecer, não está desprovido das interferências do poder e seu alastramento, como diriam
Gilles Deleuze e Félix Guattari, rizomático.
Contrapondo esta noção ao conceito de raiz, Deleuze e Guattari descrevem o rizoma
como heterogeneidade múltipla, com princípios de ruptura a-significante, por efeitos de
agenciamento de linhas abstratas, linhas de fuga, segundo as quais estas pluralidades podem
mudar de natureza ao se conectarem a outras. Tendo entradas e saídas múltiplas, pode-se dizer
que o rizoma “onde há o pior e o melhor: a batata e a grama, a erva daninha [...] conecta um
ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito
diferentes, inclusive estados de não-signos” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, pp. 15-32). E,
como animal e planta, como a grama, o capim-pé-de-galinha, é este o sentido com que as
várias maneiras de poder se alastram pelas ações humanas, inclusive sobre o imaginário.
A imaginação, como exercício infindável da imaterialidade do pensamento, tem como
característica primeira a liberdade de vôo. Entretanto ela não está desconectada da
materialidade do corpo, e, mesmo na (i) materialidade do sonho e do devaneio, não se
desvincula deste corpo, fonte permanente do poder, ativa e passivamente falando. Para
Roland Barthes (2001, p. 10) “o poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e
qualquer discurso, mesmo quando este discurso parte de um lugar fora do poder”. E, repito, o
lugar primeiro desta máquina de poder é o corpo, principalmente nas questões relacionadas ao
sexo e à política, os dois discursos, segundo Foucault, mais proibidos pelas estruturas de
dominação.
Porém, mesmo em meio às proibições ao discurso não validado, seja ele por suas
ligações com o imaginário ou não, mesmo nos momentos em que a “libido dominandi”
encontrou maiores espaços de vicejamento, o homem comum jamais perdeu sua religião. Nem
no sentido stricto de se ligar ao sagrado, ao divino, e muito menos no sentido lato de
negociação de seus espaços de convivência, através de uma imaginária que privilegia os
ídolos ou as imagens mentais, individuais ou coletivas.
Em A Invenção do cotidiano: Artes de fazer, Michel de Certeau afirma que “é bom
recordar que não se devem tomar os outros por idiotas” (CERTEAU, 1994, p. 19). Falando da
capacidade que o homem comum tem de encontrar formas de sobrevivência em meio aos
mecanismos de proibição, cita igualmente Michel Foucault para levantar outras “maneiras de
fazer”, diferenciadas das impostas pela “microfísica do poder”, para não aceitar a repressão.
Igualmente, essas “maneiras de fazer” situam-se naquilo que, parafraseando Deleuze e
Guattari, proponho como máquinas de paz17, dos procedimentos também “micros” para alterar
as relações de poder e (re)criar seus modos de “estar juntos”.
Retomando as práticas espetaculares das folias, nas suas várias formas, seja do Divino,
de Reis, de Nossa Senhora da Conceição ou de São Benedito, esta “ardente paciência” do
homem comum se fez prevalecer: por muito tempo, na segunda metade do Séc. XX, como em
outros momentos da história, a igreja católica romana proibiu manifestações da religiosidade
não oficial por suas vinculações com aspectos considerados profanos das convivências
societais festivas.
Entretanto, apesar de todos os discursos de não validação de tais práticas, discursos
esses proferidos por bispos e padres nos milhares de altares de igrejas e capelas de todos os
cantos, em mais um momento de ressurgência do que Gilbert Durand chamaria de “resistência
à imaginária”, mesmo assim, nos interiores do Brasil, a festa divina das pessoas comuns não
desapareceu. No caso do presente objeto de pesquisa, guias, regentes, alferes, caixeiros,
procuradores e foliões18 insistiram em seus giros. E de casa em casa, de pouso em pouso,
continuaram recolhendo donativos e esmolas que, paradoxalmente, quando levadas para as
capelas e igrejas a que se destinavam, terminavam nas mesmas mãos que gesticulavam os
discursos de proibição.
Sem entrar em valorações sobre se eles dominam ou não outros saberes, vejo que,
burlando ou não as vigilâncias eclesiásticas, o homem comum das bandeiras e dos giros, das
folias, acabava sempre por (re)afirmar a capacidade de validar para ele mesmo este outro
discurso: o discurso da imaginação, do imaginário, do simbólico e da imagem, cuja função
maior é a agregação coletiva, criando o que Michel Maffesoli chamou de “mundo imaginal”.
E nas folias, através deste “mundo imaginal”, reafirmando o sentido religioso de “estar
juntos” tanto para o folião quanto para quem o recebe. Ou o “viver” a emoção societal de
reconhecer no outro as ações que cada um valoriza.
O Sr. Amarildo Meireles, falando da passagem pelas casas mais humildes do trajeto de
sua bandeira, demonstra uma grande emoção por ver que às vezes a única visita que um
determinado morador recebe ao longo de todo o ano é a do Divino, como ele diz. E do quanto
este sentido de possibilitar aquele momento de interação ao morador do “ranchinho” é
importante.
Para este morador, e a emoção com que o fato é tratado o demonstra, doar uma “caixa
de fósforos” é a sua forma sacrificial simbólica de ação de graças. Não só pela “colheita”,
17
Gilles Deleuze e Felix Guattari falam de “máquinas de guerra”.
18
Nomes pelos quais os foliões do Divino se auto denominam, por suas funções, no interior de Goiás.
num retorno aos primórdios do mito, mas principalmente pela visita. Pode-se identificar neste
ato sua forma de reconhecimento pelo bem maior que é este “estar juntos” propiciado pela
passagem da divindade por sua morada.
Poderia, eventualmente, me remeter a alguns parágrafos anteriores deste estudo e falar
das relações de poder perceptíveis nas práticas religiosas em tela. O que colocaria o homem
do “ranchinho de pau-a-pique” num pseudopapel de alienado. O que me obrigaria a fazer uma
incursão, mesmo que rasa, pelos conceitos modernistas que vêem aquele eterno poder de
alienação nas práticas religiosas. A meu ver, porém, além de valorizar aspectos políticos para
os quais não mais encontro ressonância no espectro acadêmico com o qual me identifico, para
isto teria que reconhecer um “não-poder” em outros espaços das interações sociais, o que
também, voltando a Foucault, não é verdadeiro.
Claro está para mim que não podemos fugir a um debate em torno de questões
relacionadas aos fundamentalismos religiosos que tanto mal têm trazido às relações humanas.
Como também não podemos desconhecer os nacionalismos xenófobos causadores das
mesmas mazelas. Várias guerras e ações imperialistas do mundo contemporâneo são produtos
de idéias alimentadas por discursos de defesa nacional, culturais e religiosos, assim como de
interesses econômicos, todos de igual forma e muitas vezes de igual teor.
Mas não é disto, dos enraizamentos culturais voltados para estas ortodoxias que estou
falando. O que coloco na mesa, para uma possível reflexão sobre as interdições e exclusões
exercidas pela “legião” dos poderes é de outra ordem.
Mesmo porque estas interdições e exclusões são da ordem do poder que, continuo
acreditando, tenta manter-se uno. Como diz Roland Barthes:
[...] de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos
que o poder fosse objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é
também um objeto ideológico, que ele se insinua nos lugares onde não o
ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas, em suma, que ele é
sempre uno. E, no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios? ‘Meu
nome é Legião’, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes,
aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por
toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer o discurso de todo
poder: o discurso da arrogância (BARTHES, 2001, pp.10-11).
Gilbert Durand (2001) ainda demonstra que, como as interdições impostas pela busca
da verdade, também a valorização da imagem obedece àqueles movimentos pendulares já
citados anteriormente. Muitas vezes dentro do próprio cristianismo, como ocorreu, por
exemplo, no casamento das práticas dos seguidores de São Francisco de Assis com a
dramaturgia.
No Séc. XIII, os monges enclausurados da ordem franciscana foram os propagadores
de uma nova sensibilidade religiosa, o que foi chamado de a “devotio moderna”, através de
representações cênicas dos “Mistérios” e do “Caminho da Cruz”. São eles os responsáveis
pela criação da devoção ao presépio, das encenações de episódios da vida de São Francisco de
Assis, cantando nosso irmão Sol e nossa irmã Lua, e pela divulgação das “bíblias
moralizadas”, com ricas ilustrações (DURAND, 2001, pp. 18-19).
Ou ainda como nesses dias dos primeiros anos do Século XXI, em que ao lado das
ortodoxias iconoclastas das inúmeras igrejas protestantes, podemos encontrar idolatrias
explícitas como, por exemplo, na Benção das Medalhas, oração católica transcrita a seguir:
Para mim, entretanto, quando falo das ortodoxias iconoclastas das igrejas protestantes,
não significa que concordo que estes cultos conseguem se desvincular das mais genuínas
manifestações imagéticas a que todas as religiões, stricto sensu falando, estão subordinadas.
Principalmente quando me reporto àquilo que Émile Durkheim (2000, p. 32) estabelece como
um dos elementos essenciais às práticas religiosas, ou seja, a “comunidade moral”, portanto
simbólica, a que os fiéis se agregam.
19
Manual do Coração de Jesus – Apostolado da Oração. 61. ed. São Paulo: Ed. Loyola, 1998; p. 37.
Isto sem citar “o culto às Escrituras e também à música” (DURAND, 2001, p. 22) que
atestam a existência de um imaginário protestante, apesar da destruição dos quadros e das
esculturas dos santos.
A participação nas Festas e nas Folias do Divino, para o nosso caso, é uma passagem
do tempo presente ao tempo do mito, ou, em outras palavras, conforme Mircea Eliade (2001),
a (re)atualização do evento sagrado da descida da Divindade sobre os seguidores de Cristo. A
reversão daquele tempo sagrado “tornado presente”. Por conseguinte, além do “estar juntos”
que também o motiva, o folião toma parte, simbolicamente, daquele momento em que o
Divino se fez carne ao descer sobre todos que lá estavam, os “escolhidos do pai” (ELIADE,
2001, p. 63). Criando para todos a percepção religiosa daquele outro estado de graça, do corpo
em alteridade.
Existiria então, para mim, a compreensão de que o estado religioso de corpo alterado,
de que estou falando, principalmente quando me refiro às folias, é aquele em que a pessoa
encontra alívio para sua dor. Não uma dor física, mas aquela à qual me reportei quando citei a
consciência da própria finitude.
O homem criou a religião, a arte e a ciência para alívio desta dor, ou para tentar fugir a
esta concretude, à própria morte ou ao desaparecimento de alguém querido. Disto, porém, já
falei anteriormente.
Pois bem, na arte, como na ciência, este alívio é claramente transitório. Ele só é
sentido no momento em que se produz o objeto artístico, seja ele cênico, pictórico ou musical,
ou no período de sua apreciação, pelo seu fruidor.
Na ciência, o que podemos verificar são resultados de efeitos de drogas inventadas
para tal fim, ou, da mesma forma que o artista, o cientista é contaminado pelo momento de
sua criação e, em estado alterado de comportamento, se “desliga” de sua dor e goza o seu
momento de prazer.
Quando Maffesoli fala do gozo hedonista do aqui/agora que podemos perceber nos
comportamentos societais contemporâneos, ele pode estar nos convidando a compreender que
este estado de êxtase tem algo em comum com a beatitude religiosa. O mesmo estado de
beatitude que Nietszche relaciona tão bem com aquilo que comumente chamamos de
felicidade.
Isto pode, inclusive, nos conduzir a um esclarecimento maior sobre o porquê de
encontrarmos muito mais religiosos, no sentido stricto, que se dizem felizes, do que podemos
encontrar entre homens e mulheres dos universos das artes, das ciências ou de qualquer outra
atividade. Nenhum beato, eu acredito, está faltando com a verdade quando fala deste estado
de felicidade proporcionado pela sua comunhão com o sagrado. Pelo contrário, ele realmente,
pelo que ocorre em sua relação com o mundo, tem razões para se acreditar mais feliz que os
outros. Senão vejamos: o médico, em sua vocação religiosa pela medicina, por esta reflexão,
se sente aliviado de sua dor pelo estado alterado de comportamento enquanto em seu
exercício profissional. Ele entra em comunhão “orgiástica” durante o atendimento de seu
paciente, ou efetuando uma cirurgia, ou ainda analisando, juntamente com uma equipe, os
efeitos de uma nova doença sobre o organismo humano.
O mesmo ocorre, segundo o que penso, com o carpinteiro quando fabrica uma nova
mesa, ou um mecânico ao consertar um motor de automóvel.
Assim também posso falar do artista em seus momentos de criação ou do fruidor da
obra diante da estetização, seja ela por que linguagem for, ou através de qualquer veículo,
mesmo aqueles virtuais das manifestações mais contemporâneas.
Entretanto, como este estado orgiástico não está presente em todos os outros
momentos de sua vida, existe a permanência daquele mesmo vazio provocador de sua
incômoda dor. Enquanto realizador de outras atividades, como, por exemplo, ao dirigir seu
automóvel no rumo de sua casa, mesmo em sua completude humana, em que não desaparece
de seu corpo a formação técnica para a medicina, ou para a arte, ou para a carpintaria, a
relação com sua “devoção” é outra. Salvo algumas vezes em que ele está pensando nas
atividades do dia, não necessariamente ele permanece conectado à sua prática profissional.
Com o estado de beatitude religiosa, este fenômeno ocorre de forma um pouco
diferente. Seu êxtase dionisíaco também está presente nos encontros de oração ou nos cultos
das igrejas. Mas este momento, pelo visto, não é exclusivo. Enquanto o médico exerce sua
medicina somente em seu espaço de trabalho, o consultório ou o hospital, assim como o
artista, ou o carpinteiro, ou outro profissional qualquer, o exercício religioso do beato pode ser
perfeitamente condizente com todas as outras atividades do restante de seu cotidiano.
Inclusive enquanto dirige o carro no tumultuado trânsito das metrópoles atuais.
Para o religioso stricto sensu, aquela divisão entre espaço sagrado e espaço profano,
das definições de Mircea Eliade (2001), é parcialmente sublimada.
Para Eliade, o espaço do homem religioso não é homogêneo, existindo uma separação
objetiva entre o sagrado, “o único que é real, que existe realmente” (ELIADE, 2001, p. 25) e
todo o resto, que o cerca, que é profano. A igreja, em qualquer lugar onde ela se encontre, é
diferente da rua. Ela é o “Centro” fundador do mundo, onde se torna possível uma
comunicação com Deus.
Todavia, se pensarmos este homem religioso que considera seu corpo como um espaço
consagrado a uma alma “santificada”, em comunhão permanente com Deus, esta separação
quase que desaparece. Este corpo, remido de seus pecados, pois “entregue a Jesus”, na
acepção cristã protestante, assume o lugar da igreja sagrada e diminui a necessidade de uma
porta de separação entre os dois espaços. Não existe mais a necessidade de uma mediação
simbólica do espaço para se chegar a Deus. Ou, pelo menos, a cada instante pode ser
“fundado” um novo “centro” para este agenciamento com a divindade.
Então, se a arte, a ciência e a religião foram “inventadas” pelo homem para aliviar a
dor de sua consciência da própria finitude, por esta perspectiva finalista, tendo a assim
compreender, a que melhor cumpriu seu intento foi a última. O homo religiosus, no sentido
stricto, é aquele que vive em comunhão com o divino durante todos os momentos de sua vida,
visto que independe do símbolo da passagem representado pelo espaço sagrado. E para ele,
esta pregnância tem o poder de aliviá-lo permanentemente.
Como bem o diz Durkheim:
O que, seguindo este raciocínio, não ocorre com o não-religioso stricto sensu: em cada
momento de comunhão, ele necessita estar em seu espaço, ou fazer uma pausa em seu
cotidiano “natural” – profano – para instalá-lo.
E o que conjeturo é que vem se restabelecendo no meio de nossa sociedade um
reconhecimento desta função religiosa, para o chamado “reencantamento do mundo”.
Principalmente na relação com o papel exercido para isto pelas imagens e suas simbolizações.
E é então, por isso, que este mesmo homem passou a dar o tratamento religioso que
ele dá às suas outras práticas, não somente as artísticas e científicas, mas também aquelas
voltadas para as ambiências societais, de qualquer ordem, em que busca se inserir cada vez
mais. Ou até mesmo para seus momentos de solidão, em que a comunhão que ele busca é com
a natureza ou com seu próprio eu em estado alterado de comportamento, numa função
dialógica que o senso comum chama de falar consigo mesmo. Ou, usando das abordagens
dramáticas, tão bem referenciadas por Erving Goffman em sua ordem da interação, naquilo
que chamamos de monólogo, seja ele interior, silencioso, ou em qualquer forma de alocução
solitária.
Busca pela qual chegamos àquele outro homo religiosus, o do sentido lato, proposto
por Michel Maffesoli, em que as práticas de si voltadas para o “estar juntos”, aqui/agora,
tomam a mesma função orgiástica do estado de beatitude do homem das igrejas.
A compreensão que tínhamos, anteriormente, era a de que este sentido de religare era
a “religação ao ser original”, em umas palavras, ou a Deus, em outras. Hoje, porém, passa a
ser outra, mais complexa, a leitura que podemos fazer deste termo: é a religação ao outro por
várias representações simbólicas, desde as religiões propriamente ditas, as imagens e rituais
católicos, os cultos protestantes, os candomblés ou diversas formas de totemização, até outras
mediações mais contemporâneas. O que pode se dar por uma imaginária relacionada a
visualidades concretas ou não.
A televisão, as indústrias cinematográficas e toda interconexão midiática, inclusive as
virtuais, como, por exemplo, a internet, que existe para o bem e para o mal, no pior e no
melhor, são imagens de função religiosa, no sentido lato da palavra, religante, de criar um
novo “estar juntos” ou novas formas de interação.
Muitas vezes, além desse “estar juntos” se virtualizar, com as pessoas comungando de
um mesmo ritual, sagrado ou não, no pior ou no melhor dos objetivos, à distância, não nos
esquecendo, é claro, do que existe de mais deplorável nessas práticas, como, por exemplo, os
intercâmbios pedófilos de várias ordens ou as propagandas neonazistas. Eles também tornam-
se em motivações de interações concretas: quando duas mulheres, no ponto de ônibus,
conversam sobre a “novela das oito” ou sobre o reality show da semana, elas estão
completando o ato ritual religioso de seu cotidiano. O mesmo ocorre com os dois outros que
falam de futebol, do boxe ou do programa policial da TV.
Todos têm o mesmo sentido religante do culto na igreja ou dos bate-papos dos chats
virtuais da rede de computadores. É a busca do estado original de estar juntos em comunhão
por um mesmo símbolo, seja a fogueira, a parada militar, o espetáculo cênico, a imagem de
Nossa Senhora Aparecida ou o giro da Folia do Divino Espírito Santo.
O que me interessa, porém, ao fazer esta análise, é compreender o modus operandi do
mundo das imagens na realidade das Folias do Divino.
Se pensarmos em seguir os ensinamentos de colocar o problema mais que lhe dar
soluções, pela perspectiva do homem comum, tratemos de colocá-lo também pela ótica da
estética, o “sentido mais amplo da empatia”, do desejo comunitário, da emoção ou da vida
comum. Se o que queremos observar são os problemas essenciais da vida, incluamos o
imaginário coletivo, amplamente vivido, pois, como reconhece Maffesoli, a parte imaginária
sempre agiu mais poderosamente sobre os homens do que a realidade. (MAFFESOLI, 1995,
pp. 11-12).
Não posso também, de maneira alguma, deixar de citar toda a contribuição de Gaston
Bachelard aos estudos sobre o direito inalienável ao sonho, que o homem contemporâneo faz
prevalecer em sua vida. No que se convencionou chamar de Bachelard noturno, em que
sobressaem reflexões sobre o sonho e o devaneio, encontramos uma afirmação definitiva
deste direito ontológico ao imaginário. Indo, inclusive, além das formulações de seus
predecessores, que afirmavam a imagem como uma função copiadora, dependente, subalterna
e sem autonomia.
Para nós outros, homens e mulheres das artes, que vivemos da concretização de nossas
imagens não visivas, de nossas memórias, reais ou inventadas, ou de nossos sonhos e
devaneios, Bachelard reafirma um outro tempo. Como propõe José Américo Motta Pessanha,
na introdução a O direito de sonhar (BACHELARD, 1986, p. xvi): “A imaginação não é,
como o sugere a etimologia, a capacidade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade
de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de
sobre-humanidade”. É, portanto, uma faculdade criadora, que valoriza o irreal tanto quanto o
real, se assim posso formular. Pois, como pudemos constatar anteriormente, com o que
concordo, se a imaginação ocupa a maior parte da vida, e não sendo menor a sua importância,
real e irreal se confundem como uma coisa só. Bachelard (1986) ainda fala de um caráter
solitário da imaginação, que para mim é compartilhada pela produção artística e científica,
materializações do pensamento. E fala também da infância maior que a realidade. Como a
infância permanece na imaginação, esta é sempre maior que a vida. E de “alguns além-porões
que nos provam muito simplesmente que o sonho do porão aumenta invencivelmente a
realidade” (BACHELARD, 1986, P. 38).
Partindo desta imagem que não se permite reduzir a outra coisa que não a ela mesma,
liberta, feliz, introduzida nos estudos das artes das poéticas da vida por Bachelard,
chegaremos àquela outra, maior ainda, religante, de que tanto falei anteriormente.
Donde me remeto novamente a Michel Maffesoli:
Neste campo de forças, onde o estilo estético baseado nas imagens religantes une-se ao
mundo e ao outro, agem os foliões, operando sem pedir licença aos discursos proibidos, da
exclusão e da interdição. Através de suas identificações, experimentam inclusive os paradoxos
da contemporaneidade. São seres de hoje, vivenciando o aqui/agora das circunstâncias
interacionais, nos dizeres de seus “cantorios”, falando do porvir de salvação eterna. Na
interação contraditória de suas vivências, o folião assume características da abordagem cênica
do jogo: improvisa desafios narrativos sobre a vida de Jesus ou sobre o que está ocorrendo,
por exemplo, na chegada ao cruzeiro enfeitado da porta de entrada do pouso.
Ou se contradiz nas comparações do ontem com o hoje de sua imaginação. Mais que
uma “nostalgia do reino dos céus”, os foliões experimentam uma nostalgia do imaginário ido,
em que um passado, não raras vezes não vivido, se afirma como instaurador da convivência
societal. Geralmente, nas conversas flagradas nas rancharias ou mussungas 20 ou mesmo em
volta das mesas de jogos ou nos grupos dos que simplesmente ficam juntos, as festas antigas
são descritas como melhores e mais calmas. Mas, ao mesmo tempo, é possível se ouvir nas
mesmas conversas que aquelas folias de antigamente eram anunciadas nos pousos por rajadas
de tiros, visto que todos andavam armados. Como os fatos passados estão na memória, ou na
20
Rancharias ou Mussungas, dependendo da localidade é como alguns foliões chamam as barracas, geralmente
de lona, onde passam as noites durante o giro da folia. Mussunga é mais citado na região de Planaltina – DF,
enquanto no Novo Gama é mais comum o termo Rancharia.
imaginação, seus aspectos mais negativos são minimizados, enquanto existe uma
superestimação das coisas consideradas positivas. Mesmo quando são corriqueiras as histórias
de mortes e vinganças, durante os giros ou outras festas religiosas. Tais quais as passagens
contadas por Moisés, 64 anos, caseiro em um sítio no município de Luziânia: “isso aconteceu
quando nóis tava rezando pras almas e Tiliano Cambeta sangrou o Miguel de Antonhe Pedro”.
Ou nos causos de Seu Jove, em torno de uma fogueira, contando como “[...] numa noite de
São João, Orozino, que queria bater em Bigodeiro, assim que baixou a primeira chibatada,
deu foi com a peixeira debaixo do sangradô21”. E ainda em como o folião Divino fala de
quando “há alguns anos atrás, mataram um folião, companheiro nosso aí, e nóis nunca soube a
causa, que quando eles acharam ele, já tava morto, no cerrado”.
O que se constata aqui é que a violência sempre acompanhou os grupos dos giros,
como, aliás, está presente onde as pessoas se encontram em maiores aglomerações, sejam elas
sagradas ou profanas. Como a compreende Maffesoli (1985), que considera a violência como
elemento fundante da socialidade, pois ela seria uma herança comum a todas as formas de
civilização. A violência é parte do fenômeno humano.
Porque “aprendi a ver que, se em um momento o ritual popular combina e alterna o
sagrado e o profano, em um outro ele pode incorporar, dentro de um mesmo espaço
simbólico, a violência ritual e o controle ritual da violência”, Carlos Rodrigues Brandão,
discorrendo sobre o assunto no ciclo do Divino Espírito Santo, diz que tudo acontece “entre
devotos de santos católicos e no interior de momentos de festejos aos seus padroeiros. Em
todos os casos aparecem sinais de desafio e formas contidas ou deflagradas de conflito e
violência, acompanhados de providências simbólicas do seu controle” (BRANDÃO, 1981, p.
17 e 181). Ele afirma ainda que:
21
A história de Orozino, morto por Bigodeiro, e as conseqüentes brigas de vingança, contada por Jove Benedito
Veloso, está registrada no espetáculo Inderna de intão, monólogo interpretado por mim e dirigido por B. de
Paiva, e que será comentado no Capítulo III deste trabalho, sobre as significações estéticas da Folia do Divino.
Note-se que as observações acima estão localizadas em um tempo bastante anterior
aos atuais, visto que a publicação citada é de 1981, e que poderia ser considerado o
“antigamente” de muitos dos foliões que contribuíram para esta pesquisa com seus
depoimentos. As quatro formas de desafios e relações de conflitos relacionadas continuam
presentes ainda nos dias de hoje, como poderá ser visto no Capítulo III, nos comentários sobre
o giro por mim pesquisado. Porém, os dançarinos de catira que compareciam armados de
revólveres às festas de santos no interior de Goiás (BRANDÃO, 1981, p. 183), não foram
vistos na folia por mim registrada, neste maio de 2003. O que expõe objetivamente as
diferenças entre o idealizado passado da imaginação e o “real” do presente, subestimado por
alguns dos festeiros de nossos tempos.
Mas assim é a expressão do folião do Divino neste tempo pós-moderno, em sua
completude, que, fazendo as folias, vive e vivencia plenamente sua realidade contraditória. É
um ser que valoriza os bens e as relações que se lhe apresentam, aqui, agora, mas não abre
mão de imagens da tradição, místicas, míticas, ou que o conectam a uma utopia, de salvação
futura e eterna.
Contraria os teóricos que falam em “desencantamento”, reencantando o mundo.
Reencantamento este que se dá pelo viés da imagem carregada em glória de porta em porta;
pelo poder do mito que recria a realidade cotidiana, tanto para o grupo de visitantes quanto
para o visitado, o dono do “ranchinho de sapé” ou da grande fazenda produtora de leite e soja;
ou ainda pela “epifania de um mistério” (DURAND, 1988, p. 15) da alegoria, do estandarte
que torna visível o invisível.
E, principalmente, rememorando seu passado, muitas vezes não experimentado, vive
com o outro o seu presente. Aqui. Agora.
Este rememorar o passado, em estado religioso, se reafirma a cada instante em que as
ações do homem contemporâneo aparecem em forma de sinergia entre o arcaico e os avanços
tecnológicos. Aqui, novamente, lanço mão de um exemplo apresentado pela produção
cinematográfica industrial americana, através do filme Matrix Reloaded (MATRIX, 2003),
dos diretores Larry e Andy Wachowski.
Além de ser considerado por críticos cinematográficos como uma nova revolução nas
formas de se fazer filmes e na percepção do público, algo comparável a 2001 – Uma Odisséia
no Espaço, Matrix Reloaded seria também, por esta perspectiva, a materialização em película
das teorias pós-modernas.
Discutindo exaustivamente questões relacionadas à convivência com o mundo virtual,
através de uma guerra mortal entre homem e máquina, o filme dos irmãos Wachowski coloca
em pauta o poder sinérgico estabelecido entre o mais arcaico concebível pela espécie, ou seja,
suas emoções, com os maiores avanços tecnológicos. Discussão esta já levantada no filme
original, Matrix, em que a morte da personagem central de toda a trama, Neo, representado
por Keanu Reeves, é revertida pelo amor de Trinity (Carrie-Anne Moss). Isto, o amor de uma
mocinha salvar a vida do herói, não é nenhuma novidade na moldura do cinema americano.
Porém, na forma em que se apresenta no filme, este é um tema digno de ainda ser posto para
reflexão. Ainda mais se com o poder simbólico de dizer que absolutamente nada, nem os
maiores avanços científicos e tecnológicos, se resolve sem que sejam levadas em
consideração as emoções humanas.
E a possível solução do conflito estabelecido entre máquinas e homem pode se dar
através da utilização de um pequeno símbolo, dos mais arcaicos que podemos pensar: uma
pequena chave. Digo possível pelo fato de que o desfecho desta história só se daria no filme
seguinte, Matrix Revolutions. Ora, não estou aqui falando de um artifício virtual nem de uma
senha de informática, mas de uma simples chave de metal, produzida artesanalmente por um
velho chaveiro de características orientais que a carrega dependurada no pescoço. Novamente
as significações sobre o arcaico, as culturas mais antigas.
Aquele pequeno objeto, usado para abrir as portas da salvação humana diante do poder
destruidor de vírus guerreiros é, no filme, a materialização mais concreta da “sinergia do
arcaísmo e do desenvolvimento tecnológico” comentada por Michel Maffesoli (2003, p. 10).
No mesmo sentido, esta sinergia, também simbolicamente, está presente na
manifestação do discurso de Morpheus (Laurence Fishburne), em que é sugerida uma grande
orgia, com a multidão dançando como numa festa rave, paralelamente a uma cena de amor
entre Neo e Trinity. É um voltar atrás, em uma dança absolutamente dionisíaca, como forma
de “vitalidade humana” em busca da própria preservação da espécie, o mote da fala de
Morpheus.
Matrix Reloaded é também uma afirmação do contraditorial desta mesma sinergia.
Contraditorial porque não é todo desenvolvimento tecnológico que é assumido como positivo.
O mundo das máquinas é uma ameaça, ao mesmo tempo em que se vive na virtualidade (das
máquinas).
Também no “mundo real” alguns avanços tecnológicos são questionados por visões
éticas contraditórias. A discussão sobre a clonagem é uma repetição do que foi o longo debate
sobre as técnicas de inseminação artificial, assim como a produção de alimentos alterados
geneticamente está no mesmo nível de questionamentos pelos quais passaram (ou ainda
passam) os inseticidas ou adubos químicos, que, mesmo causando desequilíbrios ecológicos
incontornáveis, são responsáveis também pela produção de alimentos para uma população
que, de outra forma, não teria o que comer. Sem a produção de inseticidas e adubos químicos
a fome na terra seria maior, dizem especialistas em agricultura de todo o mundo.
Para o melhor e para o pior, este é um tempo de contradições e paradoxos. Porém, não
é um tempo que conduz, obrigatoriamente, a separações. Pelo contrário, “a tendência é a
reversibilidade, a mistura, a heteronomia”, descrita por Maffesoli (2003, pp. 11-14) como o
reencantamento do mundo, que “provêm da conjunção do cavaleiro de nossos contos e lendas
e do raio laser”.
CAPÍTULO III
A CARNE DO ESPÍRITO, ESPETÁCULO DE FÉ
3.1 Etnografia de um giro: a Folia de Roça do Novo Gama
O giro aqui descrito ocorreu e foi registrado no período compreendido entre os dias 20
e 31 de maio de 2003, tendo percorrido fazendas e sítios nos municípios goianos de Novo
Gama, Santo Antonio do Descoberto e Luziânia. Da arvorada, no dia 20, até a desarvorada, no
dia 31, foram realizados onze pousos e mais de 60 visitas, cada um com sua característica
própria, dependendo das posses e do interesse do barraqueiro ou do visitado.
Fiz as presentes anotações a partir da orientação determinada por quatro itens sobre os
quais me propus a discutir e que fundamentaram as discussões que levanto a seguir: 1 –
efetuar o registro, o mais minucioso possível, de todo o giro, desde a arvorada, até a
desarvorada; 2 – levantar e compreender as motivações de cada um dos participantes para
acompanhar a folia; 3 – registrar, através de entrevistas e conversas não dirigidas, o que os
foliões e os outros envolvidos acreditam estar fazendo; e, 4 – por estar este trabalho inserido
em um programa de pós-graduação em artes cênicas, descobrir quais são as significações
estéticas perceptíveis na espetacularização das práticas rituais das folias, primeiramente as do
Divino, e, por analogia, dos outros santos que são homenageados neste tipo de manifestação.
Espetacularização esta vista em seu sentido matricial na cena contemporânea 22.
O primeiro encontro registrado é o realizado na fazenda do Sr. Lucimar Camelo
Botelho, onde se dá a arvorada da folia. Esta fazenda fica a aproximadamente dois
quilômetros do Lago Azul, um dos bairros afastados da cidade do Novo Gama.
Eu havia sido informado anteriormente pelo Sr. Amarildo Meireles, atual líder,
chamado de folião da folia, de que a arvorada ocorreria por volta das 9:00 horas da manhã do
dia 20 de maio. Quando chego ao local determinado, percebo que o número de presentes
ainda é reduzido, considerando-se que as previsões davam conta de uma presença possível,
neste primeiro dia, de milhares de pessoas.
22
São encontradas na região, somente as que tive informações, folias dedicadas ao Divino Espírito Santo, Santos
Reis, Nossa Senhora d’Abadia, São Sebastião, São João e Santo Antônio.
A fazenda, pequena, tem uma casa simples, entre seis e sete cômodos também de
dimensões reduzidas e com arquitetura sem nenhuma marca característica de época. O que se
percebe é que o privilégio dado, na propriedade, é aos currais, aos depósitos de utensílios de
montaria e trabalho com o gado e ao grande quintal, com muitas árvores frutíferas e
ornamentais. Neste espaço, principalmente sob a sombra das grandes mangueiras, é que estão
distribuídas as pessoas, à espera do momento inicial do evento.
Posso verificar a diversidade de características e estilos pessoais dos presentes a este
primeiro encontro, e registrar que as conversas são as mais variadas possíveis. Desde um
grupo de jovens, típicos cata-pousos, que, com seus cabelos coloridos, ao lado de uma casa de
farinhas, falam do movimento hip-hop, passando pelas senhoras, ajudando na cozinha,
comentando sobre a quantidade de comida, até os senhores mais idosos, na sombra de uma
moita de bambus.
Questionado sobre as razões para estar na festa, Maxwel, 18 anos, cabelos
descolorados, óculos escuros, contrastando com a maioria presente (Figura 13), responde que
“eu venho pela amizade, que os colegas nossos aí é folião, né... aí convida nós e a gente vem”.
Márcio, 23 anos, do mesmo grupo, completa: “O que me traz é curiosidade mesmo. Da
cultura deles, que eles têm. Esse pessoal é o bicho, né... trata a gente bem”.
Eu fui muito devoto, tirei muita folia, teve uns tempo que eu tirava folia
mais Alberico, tiramos umas quatro... Tiramos quase todo ano, nós era peão
mesmo... Eu gosto de assistir as chegadas, acho bonito, né... Mas eu gosto
demais... Agora, naquele tempo que eu tirava, era doze folião... Se o sujeito
matasse dois frango dava pra dar comida pro povo. Hoje é preciso de duas
vacas, porco grande, senão não dá... Feijão e arroz num tem quantidade.
Sobre essa folia aqui, isso aqui é um folclore que tinha em Luziânia há
muitos e muitos anos atrás, que evem renovando cada tempo. Um folião, as
vez vem a falecer, igual ao cumpade Ofir, vem o Amarildo vem e tira... É
uma coisa de Deus, que nunca vai acabar. Isso aqui, muitos vem pra comer,
pra beber, como o cumpadre José falou aqui, mas nós vem mais é pela fé no
Divino Espírito Santo, que Ele é o nosso protetor, Ele é, o Divino Espírito
Santo que vê esse monte de jovem trabalhando e lutando pela sua vida e
sempre perdendo uns tempinho, não perdendo, às vezes até aproveitando
mais em participar dessa folia. Essa folia é realmente um folclore religioso.
Aqui nós conversa, aqui nós brinca, nós colocamos as nossas fofocas em dia,
aqui nós fazemos até negócio, relembramos o nosso passado, igual estamos
fazendo aqui agora. Então isso é uma coisa que trás muito sentimento na
gente. A gente chega até a emocionar.
Por volta de doze horas e trinta minutos, com a presença, estimada pelos
organizadores, de aproximadamente mil e duzentas pessoas, em meio ao
burburinho que vai aumentando à medida que chega mais gente, alguém grita:
“Silêncio aí moçada, que vai arvorar a folia. Fazendo o favor”. Quando as
pessoas se aproximam do altar, armado em uma pequena varanda, do lado de
fora da casa, toma a palavra o Sr. Eurico Francisco Ribeiro, 78 anos, o guia
oficial do giro:
Todos prestem muita atenção a Deus, vamos girar com muita fé pra Deus
ajudar e o Divino Espírito Santo ajudar que nós todo mundo vai com saúde e
volta com saúde. Todo mundo é regente de cada si. Num deixá corrigi o
outro, um corrigi o outro não... Cada um corrige a si próprio. Então pra Deus
nos ajudar que nós seja muito feliz e o Divino Espírito Santo, nós vamos
rezar o Pai Nosso ( Todos rezam o Padre Nosso acompanhado de uma Ave
Maria, como é tradição católica) – Com fé no Divino Espírito Santo...
Estas palavras são proferidas diante do altar, ornamentado com uma toalha de renda
branca colocada sobre um pano vermelho (Figuras 14 e 15). Vêem-se reproduções da pomba
branca, presas na toalha na parede, uma de cada lado, acima de arranjos de rosas artificiais em
papel crepom e no meio de um grande rosário dourado ao centro. Sobre a mesa, dois jarros
com flores, também artificiais, um pequeno pano vermelho, duas velas acesas, uma imagem
de Nossa Senhora Aparecida e os estandartes oficiais da folia. São duas bandeiras vermelhas,
presas em pedaços de bambu verde, medindo cada uma aproximadamente um metro e vinte
centímetros por noventa centímetros, com uma pomba branca desenhada no centro e rodeada
por reproduções de raios, também brancos. Presas nos estandartes, três fitas, uma branca, uma
vermelha e uma verde-amarela. Descendo da mesa até o chão, outra bandeira vermelha com a
imagem da pomba, símbolo do Divino. Rodeando todo o altar, arranjos de balões coloridos e
bandeirolas de papel nas cores branca e vermelha. Tudo isso, minuciosamente, é saudado
durante a cantoria da arvorada.
O que me remete a uma construção reflexiva de Michel Maffesoli, dentre tantos outros
escritos em que ele discute o tema, sobre o fenômeno da imagem na pós-modernidade:
Figura 16 – Eurico Francisco Ribeiro, 78 anos, guia oficial da Folia de Roça do Novo Gama em 2003.
As palavras iniciais das cantorias da arvorada são proferidas com um sentido muito
marcante de pedido de permissão. Em vários outros momentos do giro, como poderemos
verificar mais adiante, os guias dirigem seus cânticos a uma escala hierárquica da qual
acreditam necessitar a permissão para realizar seu rito. Assim, começando com uma
recorrente forma de invocação à Santíssima Trindade, passando pelos nomes de Jesus Cristo,
“filho de Nossa Senhora” e do Espírito Santo, “que é um dos três mistérios”, conforme seus
versos, solicitam:
23
Em quase todas as cantorias o primeiro verso da estrofe é repetido, e nesse caso eu transcrevo apenas a
primeira tal qual ela é cantada. Nos casos dos benditos e de algumas cantorias em que não aparece esta repetição
transcrita, é porque a estrutura do cântico é diferente, seguindo uma ordem em que o contra-guia complementa o
que é proposto pelo guia ou simplesmente reproduz o que foi cantado, sem, no entanto, repetir o primeiro verso.
Essa forma de saudar a luz, a claridade, o dia, se dá pela crença de que tudo é “obra do
Espírito Santo e criação de Deus Padre”. Ora, se tudo vem do Pai, que “apagou a luz suplente
e a eterna acendeu”, foi ele quem deu licença ao Divino Espírito Santo que “agora à terra
desceu”. E desceu para quê?
A imagem que visualizo, pelas palavras da arvorada, é a de que, a partir da permissão
concedida, quando São Pedro, “que da Glória é o chaveiro”, quando ele abre as portas do céu,
a Santidade desce sobre o local do junta e, como que numa espécie de bolha invisível, cobre
todo o ambiente onde estão os foliões.
Ouvindo os participantes do giro, a sensação que tenho é a de que todos acreditam
estar cobertos, quase que fisicamente, por um grande manto que se move à medida que a
bandeira é transportada de um lugar a outro. Esta bandeira é, simbolicamente, o lugar onde o
Espírito Santo pousa, quando invocado na arvorada, e na qual é transportado pelos alferes. A
imagem pintada na bandeira, representada “concretamente numa inesgotável epifania”
(DURAND, 1988, p. 19) passa a ser o santo único, mesmo que todos tenham consciência da
presença de incontáveis bandeiras com o mesmo significado em outros tantos lugares. Ou
mais ainda, mesmo com a duplicação das bandeiras em dois ternos, o da direita e o da
esquerda, cada uma delas é uma cópia redundante da divindade, única em cada uma das
pinturas. Isto é o que poderíamos chamar de “uma santidade, uma bem-aventurança do
imaginário”, conforme Gilbert Durand (1988, p.74). E desse estandarte a Santidade só irá se
retirar no dia da entrega, na igreja.
Duas coisas tomam forma, quase que concreta, para os foliões, a partir da descida do
Consolador: a primeira é a quebra do sentido de cotidiano para todos os participantes. Falando
da Festa do Divino propriamente dita, Carlos Rodrigues Brandão diz que “há uma ruptura
simbólica da rotina de vida e de trabalho de uma sociedade que, antes e depois de realizá-la,
todo o ano produz os seus bens de sobrevivência e mercado, e se organiza para fazê-lo”
(BRANDÃO, 1978, p. 38). Os foliões, que não compõem uma sociedade estabelecida nos
moldes da estudada por Carlos Rodrigues Brandão em Pirenópolis, mas se organizam como
tal durante o giro, também criam esta ruptura com seu cotidiano ordinário. Eles passam a
viver, durante os dias da manifestação, um período totalmente extraordinário em que, através
de uma nova organização social, cumprem papéis muitas vezes distintos daqueles que têm no
seu dia a dia, dedicado, também, à produção de sua sobrevivência e de seus bens. Assim,
exercidas pelos homens e pelas mulheres que compõem o grupo de foliões, as funções do giro
tornam-se um todo complexo que faz se movimentar o manto simbólico no qual se encontra a
divindade e seus seguidores.
Então, com guias e contra-guias fazendo os “cantorios” de saudação e benditos,
regentes administrando a ordem dos serviços, cargueireiros cuidando dos bens materiais dos
foliões e tropeiros pastoreando os animais, assim segue o giro.
Ao contrário da sociedade a que Brandão se refere, onde as pessoas exercem papéis
que podem ser relacionados uns com os outros, nos moldes de qualquer aglomerado urbano,
na folia onde se deu minha pesquisa, os participantes não tem, obrigatoriamente, esta relação.
Enquanto na cidade onde se organiza a festa, o padre se relaciona com os fiéis de sua igreja, o
patrão contrata seus empregados, vizinhos se solidarizam ou se tornam desafetos, professores
convivem com seus alunos, na folia pode ocorrer que os vínculos sejam somente os do giro.
Então esta complexa sociedade temporária é formada por pessoas que, não raras
vezes, vêm de pontos totalmente distintos, tanto geográfica quanto socialmente falando.
Temos um guia que é aposentado e reside em Luziânia, foliões que são, um motorista do
Supremo Tribunal Federal, morador do Gama (DF), um pequeno comerciante do Guará (DF),
empregados de fazendas distintas no município de Alexânia (GO). Ou ainda um grupo de
catireiros profissionais de Silvânia e outro de catireiras amadoras de Pedregal, um bairro
afastado do Novo Gama.
Como os componentes do grupo não têm, em seu todo, relação direta entre si, os
papéis exercidos durante o giro se diferem também daqueles estabelecidos nas festas das
sociedades urbanas, de maior ou menor porte. Nestas, as relações de trocas simbólicas, ainda
para Carlos Rodrigues Brandão, articulam-se por características próprias e por atuações dos
sujeitos envolvidos das seguintes formas: “a) dentro da própria festa, em uma dimensão de
reprodução simbólica da sociedade; b) segundo as posições que os mesmos sujeitos ocupam
dentro da própria sociedade” (BRANDÃO, 1978, p. 39).
Também nas folias está presente esse sistema de trocas simbólicas, do qual tratarei
especificamente ao falar dos benditos de mesa, mais adiante. Existe, entretanto, uma sutil
diferença entre as duas situações: enquanto nas festas urbanas, as atuações se dão, segundo
Brandão, pelas duas formas acima, no giro não se nota, obrigatoriamente, a reprodução
simbólica da sociedade de origem dos participantes. Até pelo compromisso exigido quanto ao
tempo e à disponibilidade para os trabalhos necessários para a permanência da manifestação,
o que prevalece é a ordem interna que os sujeitos exercem na complexidade interna do grupo.
Uma segunda coisa a se concretizar com a “descida do Divino” é uma organização de
ordem totalmente espetacular, em todos os sentidos que esta palavra pode ter, e que parece
tomar conta de cada um dos passos da companhia. Sobre este segundo ponto tratarei com
maior profundidade em outra parte desta tese, para falar da montagem teatral Inderna de
Intão, criada a partir desta pesquisa.
Solicitada a licença, com aquelas palavras iniciais da arvorada, em que são invocados
os dons de Deus para que sejam os guias investidos dos poderes de arvorar o Divino e todos
os componentes da companhia, é hora de serem louvados a criação e os mistérios de Jesus.
Dentro dos cânticos, a criação é o “sol claro”, as leis divinas, o próprio Jesus Cristo, o Espírito
Santo, incluindo a imagem simbólica da pomba, Nossa Senhora e os Evangelhos. Novamente
com um alto sentido de espetacularização, o Sr. Geraldo da Silva Rosa (vide Anexo I)
descreve a origem da louvação àquilo que é santo e que está representado no altar, e a
diferença com o que deve ser objeto de saudação, que se dá no momento seguinte da cantoria.
Segundo ele, louvado deve ser todo o mistério da criação, o sofrimento e sacrifício de Jesus
Cristo e o rosário de Maria, uma das ornamentações obrigatórias.
Os outros elementos que compõem o altar, incluindo as imagens de santos, devem ser
saudados, (salvados, para alguns). Ainda para o Sr. Geraldo, esta saudação deve ser feita a
cada uma das simbolizações presentes. Em suas palavras, não se deve “sodar todos os
ornamento do artar porque, pur exemplo, a image da serepente, que a Virge tá pisando, é a
image de Lúcifer. E ela tá no artar também. Intonce a gente não pode sodar os ornamento, que
a serepente também é um ornamento, né?”
Nas palavras do Sr. Geraldo, além das referências ao que deve ser louvado e saudado,
podemos constatar, também, a importância que é dada ao simbólico, às imagens. Se a
bandeira, lembrando novamente Gilbert Durand, é a “epifania de um mistério”, é a
visibilidade dada ao invisível Espírito Santo, além de todo o conjunto representado pelo
cruzeiro, o ruamento, as bandeirolas de papel crepom, é o altar o maior conjunto de imagens
visivas encontráveis no pouso. E, como tal, pelo poder simbólico que carregam estas imagens,
é que são cantadas, como, por exemplo, nos versos seguintes:
Figura 17 – Mesa posta para o almoço – Arvorada da folia na casa do Sr. Lucimar Camelo Botelho (2003).
Antes de ser iniciado o almoço, toma a palavra a senhora Maria Neuza Meireles, irmã
do senhor Amarildo, e profere um longo sermão sobre a importância da união dos foliões e da
fé no Divino Espírito Santo. Citando sempre o nome de Ofir Mulato, faz um histórico dos
preparativos do atual giro e de quanto o mesmo significaria para seu irmão. Logo em seguida,
novamente o Sr. Eurico puxa uma oração de agradecimento pela mesa posta. O acesso ao
recinto do almoço é franqueado primeiramente aos foliões, com recomendação insistente dos
regentes para que se sirvam primeiro os mais velhos. Nesse meio tempo, em outro espaço, ao
lado da barraca principal, é servida a refeição aos outros presentes. Registre-se a permanência
de um estado de brincadeira constante entre todos. Muita gentileza e cortesia, com
demonstração de grande intimidade, como se todos se conhecessem anteriormente.
Quando terminam de almoçar, ficando sobre a mesa os restos de comida e as vasilhas
sujas, em meio a brincadeiras e piadas dos presentes, ouve-se novamente uma voz de
comando de um dos regentes chamando para o bendito de mesa. Ao que é prontamente
atendido por aproximadamente cinqüenta foliões.
O bendito se dá da seguinte maneira. Um dos regentes vai até o altar, retira uma das
velas acesas e puxa a procissão, sendo seguido pelos alferes com as bandeiras, pelos caixeiros,
pelo violeiro e pelos guias e contra-guias e seus respectivos ajudantes, chamados de orelas,
até o recinto onde foi servida a comida. Segurando na ponta das bandeiras seguem o dono e a
dona da casa. Durante o trajeto do altar até a mesa, um dos guias canta acompanhado por seu
orela, ao que é respondido pelo contra-guia:
Guia:
Contra-guia:
Sempre cantando, todos dão uma volta em torno da mesa. Param a um sinal do regente
e é cantado o bendito. Repare-se que a estrutura deste é diferente da arvorada. Enquanto na
cantoria o contra-guia repete o que é cantado pelo guia, no bendito o primeiro canta e o
segundo responde como se continuasse a oração. Tanto um quanto o outro sempre repete o
primeiro verso cantado, como se segue:
Logo em seguida a este ritual, o regente informa que está sendo solicitado um catira 24.
É atendido por dois violeiros que usam violas diferentes das utilizadas na cantoria da arvorada
e no bendito de mesa. Estas, quando não estão em uso, permanecem guardadas ao lado do
altar (Figura 18), assim como todos os instrumentos considerados santificados para o giro. As
letras das músicas cantadas no catira, geralmente, são referências à natureza ou a relações
amorosas, frustradas ou não. Muitas delas ainda carregam todas as conotações racistas e
sexistas facilmente constatáveis na música caipira, chamada de raiz. 25 Esta é uma dança de
coreografia definida por regras gerais mais ou menos estabelecidas em todos os grupos de
praticantes, encontráveis ainda, nos dias de hoje, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal.
Para Mário de Andrade, em seu Dicionário musical brasileiro (1989), o catira, também
conhecido como cateretê, mesmo não existindo registros que o comprovem, pode ser de
origem ameríndia, derivada de uma dança religiosa chamada caateretê, tendo sido aproveitada
pelo Padre Anchieta, introduzindo-a em sua tentativa de catequese dos índios brasileiros. Nas
24
O catira, como pude observar, é realizado por solicitação do dono da casa, alguém a ele ligado ou um
componente da companhia.
25
A música caipira, chamada “de raiz”, é aquela que, desde seu surgimento no interior “caipira” do estado de
São Paulo, na primeira metade do Século XX, mantém suas características de acompanhamento com viola,
violão e, eventualmente, acordeom ou pandeiro. Geralmente cantada em duplas, fala das coisas da natureza, de
amores apaixonados ou dos próprios cantadores. Difere da atual música “sertaneja” que, mesmo falando também
das mesmas coisas, incluiu temáticas urbanas em seu repertório e introduziu acompanhamentos mais elaborados
de orquestrações, percussão e instrumentos elétricos ou eletrônicos.
festas católicas de Santa Cruz, Espírito Santo, São Gonçalo e Nossa Senhora da Conceição,
eles dançavam e cantavam com textos cristãos escritos em tupi.
Figura 18 – Instrumentos oficiais da folia – violas e caixas – guardados ao lado do altar. Estes
instrumentos somente são retirados daí para as cantorias consideradas sagradas, como as saudação do
altar e do cruzeiro e os benditos de mesa, além de alguma visita nas proximidades do pouso, geralmente
realizada de manhã (2003).
Quando eu vou falar seu nome minha fala não quer sair
Depois do catira, os foliões, montados em seus cavalos, ficam na frente dos currais, já
prontos para sair. Os donos da casa levam as bandeiras, retiradas obedecendo à disposição em
que estavam no altar, prevendo-se de qual lado a estampa estaria para frente. Segundo a
tradição, elas não podem ser cruzadas pois, caso isso ocorra, morre um dos foliões antes da
folia do próximo ano. Em evoluções, com as duas filas de cavaleiros formando um S, um 8 e
um coração, símbolos sagrados do giro, ao som das caixas, as bandeiras são passadas por
sobre as cabeças de todos que estão enfileirado com o dono da casa, de frente para o espaço
da saída (Figura 19).
Figura 19 – As bênçãos do Divino sobre as cabeças dos que ficam nas casas por onde passa a bandeira
(2003).
São formas de representar as bênçãos do Divino sobre as pessoas que ficam. E com as
bandeiras na frente, segue o cortejo. Neste caso, atravessando o perímetro urbano do Lago
Azul, o primeiro pouso ocorreria no sítio do Sr. Edmar, cedido para o evento ao barraqueiro
Carlito Magno. Este sítio dista da fazenda onde se deu a arvorada, mais ou menos, 20
quilômetros.
E para compreender melhor o significado das simbolizações usadas em todas as
chegadas e todas as saídas dos pousos, lanço mão, a seguir, de algumas explicações
encontráveis nos estudos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant no Dicionário de Símbolos
(1999) relacionando-os com aquilo que acreditam os atuantes daquelas performances em suas
maneiras de explicar suas crenças e com tudo o que pude observar durante esses dias de maio
de 2003.
As evoluções de chagada e saída, especialmente nas figurações das imagens do S, do 8
e do Coração, são cenificações de um centro fundador da sacralidade de toda a folia. O
próprio giro se sustenta a partir de um centro simbólico, sobre o qual se dá a totalidade do
círculo completado ao longo dos 12 dias de peregrinação. O S, que, segundo os foliões, vem
da corruptela Sprito e que nos remete à própria origem latina do nome Spiritu Sanctu, o
Espírito estabelecido segundo a Lei, uma das três pessoas da Santíssima Trindade de Deus, é
um desenho formado a partir de um ponto central, imaginado sobre a interseção dos braços
com a base da cruz de Cristo. Desse S, desenhado invertido, sobre o que falarei
posteriormente, chega-se ao 8, que, novamente para os foliões, é o fechamento dos braços
com a base da mesma cruz, representando também as “quatro partes do mundo” (N, S, E, W),
e tendo, portanto, também como referência o ponto já citado. Daí a evolução para o Coração
de Maria, representação do sofrimento da mãe de Jesus.
Estas evoluções, então, se fundam a partir da junção de dois símbolos essencialmente
caracterizadores do sentido ritualístico do giro: o centro e a cruz. A cruz, para Jean Chevalier
e Alain Gheerbrant, é um dos quatro símbolos fundamentais, estabelecendo uma relação entre
os outros três, o centro, o círculo e o quadrado. Pela interseção de duas linhas retas,
coincidentes com o centro, que assim é aberto para o exterior, a cruz inscreve-se no círculo,
dividindo-o em quatro partes, e formando um quadrado, com suas extremidades ligadas por
quatro linhas retas. Isto quando os braços e a base têm tamanhos equivalentes. É ainda a
estrutura dos símbolos de orientação em diversos níveis da existência humana, como, por
exemplo, os pontos cardeais. Quando vista como quadrado, simboliza a terra em seus aspectos
dinâmicos, com função de síntese e medida. É a ligação céu/terra, tempo/espaço,
imanência/transcendência, cordão umbilical do centro original. É ascensão, escada e ponte
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 1999, p. 309).
Apesar de ser a cruz um símbolo presente nas antigüidades egípcia, chinesa e cretense,
dentre outras, relacionado a rituais de adoração por seu sentido totalizante, é no cristianismo
que ela vem representar o totum do princípio religioso. É o próprio crucificado, o Cristo, o
Salvador, a salvação, o Verbo, é mesmo o Deus na segunda pessoa da Santíssima Trindade. E
é, em seus vários formatos, a correspondente hierarquia da Igreja de Roma. A de um braço é a
Cruz do Evangelho, a de dois é o Cristo crucificado, sendo a superior a simbolização do INRI
(Jesus Nazareno Rei dos Judeus) e a de 3 braços é a hierarquia eclesiástica, representando a
tiara papal, o chapéu cardinalício e a mitra episcopal. Mas ainda temos a cruz da ressurreição,
com uma bandeirola ou um galhardete, a vitória de Cristo sobre a morte.
Tendo ainda como referência a intercessão dos braços com a base da cruz, podemos
refletir o centro como o princípio, o real absoluto, Deus como uma esfera cujo centro está em
toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma. É a imagem dos opostos, a
concentração de energias, foco de onde parte a unidade para a multiplicidade. Dependendo da
perspectiva, é eixo e um conjunto de três idéias complementares entre si: centro do mundo,
onde se encontram céu e terra; templo, palácio ou cidade sagrada; e ponto de junção céu,
terra, inferno. Pode ser visto ainda como o local onde se juntam desejo e poder. E é aqui que
se aproxima da tradução de Spiritu Sanctu (estabelecido segundo a Lei), como símbolo da Lei
Organizada, ainda segundo Chevalier e Gheerbrant.
Pois bem, do centro e da cruz podemos compreender as evoluções. O S se aproxima da
espiral, que parece simbolizar a unificação do céu com a terra, as rajadas de vento. “Vários
intérpretes também vêem nela [na letra S] o símbolo do duplo processo de evolução – a
abertura para o alto -, e de involução – curvatura para baixo. Também é possível ver a subida
sinuosa da fumaça sacrificial” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1999, p. 793).
Esta subida sinuosa da fumaça nos remete, novamente, à reflexões sobre as trocas
simbólicas representadas pelas ações de graças verificadas na promessas cumpridas pelos
foliões, nos mesmos termos da entrega dos pães, asmos ou com fermento, ou ainda os
sacrifícios dos animais, no altar judaico da Páscoa e do Pentecostes.
O S, nessas evoluções, é desenhado tendo como referência o ponto central já descrito,
porém com a peculiaridade de ser invertido, fato relacionado a outra característica do giro que
também desperta curiosidade quando se compara o que os foliões dizem a respeito com o que
aparentemente acontece. Ao serem questionados sobre o itinerário do grupo, eles dizem,
repetidamente, que as bandeiras devem sair sempre, e obrigatoriamente, para a direita. Ao
observar a saída dos locais onde se deram os pousos, entretanto, notei que o percurso obedece
ao sentido anti-horário, o que poderia ser uma contradição com o que eles falam. Somente ao
relacionar o andamento do giro com as evoluções do S é que, mesmo não ouvindo dos foliões
esta explicação, pude compreender o “sair pela direita” por eles referenciado: primeiramente,
sai-se para a direita pela perspectiva de fora do círculo. Aparentemente, e digo assim por não
haver encontrado nenhuma justificativa para tal fato em meu corpus de referência, seja na
bibliografia ou nas entrevistas, as inversões se dão por uma projeção dos desenhos para o alto,
onde são vistos como em reflexo de espelho. Como a referência da santidade, para o folião, é
o céu, e este é visto como o alto, o espaço, é para lá que se projeta cada evolução realizada
pelo grupo. E quando vistos de baixo, os desenhos, tanto o do trajeto do giro quanto o do S,
são corrigidos pela perspectiva com que são olhados/imaginados.
Figuras 21 e 22 – Na Figura 21, a entrega do lenço e da divisa. Este ritual é o que investe cada um dos
participantes do giro em sua condição de folião do Divino. As trocas intergeracionais estabelecidas nas
folias passam inclusive pelo divisamento de várias crianças, como pode ser constatado na Figura 22
(2003).
Um casal, Sr. Antonio Geraldo e D. Tereza, que passa todo o giro vestido de branco,
distribui durante este ritual um santinho com oração ao Divino Espírito Santo (Figura 23).
Também eu recebo a divisa, o que não deixa de me emocionar. Ao dizer que estou como
observador, o Sr. Amarildo retruca: “Você está conosco. Portanto é um folião como todos”.
Esta divisa simbólica é um pequeno pedaço de pano vermelho em formato de
estandarte e no qual é afixada uma diminuta pomba dourada (Figura 24). Geralmente vem
acompanhada de um lenço de pescoço, também vermelho e com a identificação do grupo.
Estar divisado, no entanto, não obriga o folião a portar este lenço, no qual, quase sempre, está
inscrito o nome de um patrocinador, empresa comercial ou político da região. O que
caracteriza, também, mais um elemento das trocas simbólicas verificáveis no giro.
Figura 23 – Oração do Divino Espírito Santo distribuída durante o ritual de divisamento (2003).
Figura 24 – A divisa.
Se a arvorada invoca o Espírito Santo que, com seu manto sagrado cobre a companhia
e com ela segue até o dia da entrega, é o ato do divisamento dos foliões que distingue os
participantes do grupo e determina quem seguirá, pelos doze dias, sob esta proteção
santificada. Fazer parte deste elenco de escolhidos é sempre ser merecedor de importante
reconhecimento de seus pares. O portador desta divisa, seja ele quem for, a partir do instante
em que a detém, adquire um status de excelência que o torna visível em quaisquer
circunstâncias relacionadas à folia, de bem ou de mal. E o torna, mesmo se desconhecido,
num participante da “irmandade”. Não que o grupo seja organizado com a estrutura das
tradicionais irmandades de santos, mas porque assim eles se consideram, irmãos, uma grande
família.
As irmandades de santos tradicionais, inclusive as do Divino Espírito Santo, ainda
encontráveis em várias regiões do Brasil, se caracterizam, principalmente, pela existência de
um grupo permanente de adoração. Geralmente, após aceitos no grupo, esses componentes
nele permanecem por longos períodos, muitas vezes por toda a vida.
Já com a folia aqui descrita isto não é observado. Com exceção de um pequeno núcleo,
que pode ser identificado como permanente, e que está sempre muito próximo das atuais
lideranças, nos anos de 2003 e 2004, em que acompanhei o giro, a impressão que tive foi a de
que o grupo é relativamente móvel. Tanto que vários foliões de 2004 não estavam presentes
no ano anterior, e, neste último, o maior número de participantes divisados foi de cento e
sessenta, enquanto em 2003 houve dia em chegou a duzentos e oitenta cavaleiros. Esta
redução é outro ponto que tratarei ainda neste capítulo e que, segundo Amarildo Meireles,
está relacionada à própria sobrevivência da manifestação.
Ser divisado é ser considerado folião, o que, no evento, não é pouco. Diz muito, para
ele próprio e para todos os envolvidos no giro, os visitantes e os visitados.
Clifford Geertz, se referindo à briga de galos balineza, afirma que esta é colocada “à
parte no curso ordinário da vida, que a ergue do reino dos assuntos práticos cotidianos”
(GEERTZ, 1989, p. 209). Assim também é possível considerar as ações dos foliões divisados,
que se movimentam de casa em casa, sob o manto sagrado do Espírito Santo. Geertz
considera a briga de galos “ou qualquer outra estrutura simbólica coletivamente organizada,
como meio de ‘dizer alguma coisa sobre algo’ [...] e sua utilização da emoção para fins
cognitivos” (GEERTZ, 1989, pp. 209-210). Assim também vejo as folias e suas estruturas
peregrinas.
Ao criarem uma ordem de ações e uma organização na qual cada um exerce seus
papéis conforme o estabelecido nas necessidades dos participantes e do próprio ritual, e,
principalmente, ao tomarem parte dos ofícios do giro, o que estão fazendo é se comunicar, por
um sistema de códigos próprios. Em outras palavras, estão dizendo “alguma coisa sobre
algo”, para criar emoções que demonstram, para eles próprios e para os outros, quem são e o
que sentem.
E, para mim, é justamente este dizer “alguma coisa sobre algo” a chave para um dos
aspectos que considero dos mais significativos das Folias do Divino: se, voltando a Michel
Maffesoli, existimos no, pelo e para o outro, ou a Erving Goffman, para quem a vida se
conduz pelas interações teatralizadas no dia a dia, este dizer algo é característica da
manifestação. Eis então a resposta para a forma estetizada com que seu participante se
conduz.
O drama ritualizado anualmente no giro é aquele momento em que os foliões
exteriorizam suas maneiras de ser e de sentir a vida, de forma estética. Isto não só
teatralizando suas personas cotidianas, visto que o ritual lhe permite a própria
espetacularidade. E, da mesma forma que é a briga de galos para o balinês, “encenada e
reencenada, até agora sem um final, [...] e ele se familiariza com ela e com o que ela tem para
transmitir-lhe” (GEERTZ, 1989, p. 211), assim também é a folia para os foliões: cumpre o
papel de tornar íntimo e reconhecível o estético por eles produzido. O que a torna, a folia,
algo próximo do que o próprio Geertz diz da cultura ao afirmar que ela “é pública porque o
significado o é” (GEERTZ, 1989, p. 9). E ser divisado é fazer parte deste grupo que produz e
troca, simbolicamente, bens e serviços reconhecíveis por sua estetização própria.
Terminado o rito de entrega das divisas, todos já novamente montados, é autorizado ao
fogueteiro que dê o sinal de chegada. Disparado o primeiro rojão, o que é prontamente
respondido da casa, também com um foguete, os caixeiros começam a tocar seus instrumentos
e é feita a aproximação.
Na frente da chácara, onde estão armadas grandes barracas de lona para o jantar e as
danças, os donos da casa aguardam as bandeiras que lhes são entregues, sempre obedecendo
àquela mesma disposição de direita e esquerda da saída do local da arvorada.
Nas chegadas dos pousos, observei uma peculiar diferença em relação a outros giros
dos quais já participei. Em outras folias, a do Lago Oeste, por exemplo, já citada nesta
pesquisa, conforme figuras 10, 11 e 12, as encenações de chagada da bandeira carregam um
sentido de maior dramaticidade. Logo após as evoluções que são efetuadas à cavalo, descritas
em outra parte desta tese, comuns a todas elas, na do Lago Oeste é feita toda uma
representação simbólica de pedido de licença ao dono da casa e ao ambiente, antes do alferes
entregar o estandarte. Aqui, ao contrário, concluídas as evoluções em uma formação em linha,
com todos de frente para a casa, as bandeiras são simplesmente entregues ao barraqueiro e sua
companheira, esposa ou quem a represente, que as conduzem para diante do cruzeiro, onde
será cantada a primeira saudação.
Num e noutro caso, entretanto, o que mais se constata, pela forma com que o dono da
casa se porta para receber a comitiva, é todo o sentido de hospitalidade com que o grupo é
aceito e a alegria que sua chegada provoca. Presente a vizinhança, de todos que foram
indagados sobre o significado deste momento, obtive quase sempre a mesma resposta: “muita
emoção, alegria e muito orgulho em receber a divindade”.
Vinte minutos depois da chegada, os cavalos desarreados e soltos nos pastos, os guias
e contra-guias se aproximam da entrada do ruamento (Figura 25), onde é feita a saudação do
cruzeiro. Esta cantoria, na mesma estrutura da arvorada, fala da chegada, do cruzeiro
enfeitado, da vida de Jesus Cristo e seu sofrimento na cruz e dos detalhes perceptíveis no
ambiente e que são descritos em minúcias.
Como tem uma toalha branca amarrada ao cruzeiro, a certa altura o guia canta um
pedido ao alferes para que a pegue e a amarre a um dos mastros, o que é feito. Esta toalha,
símbolo do gesto de Verônica, que limpou o rosto de Jesus Cristo durante a subida do
Calvário, é a representação das boas vindas do altar aos foliões. Como os donos da casa os
recebem lá fora, também o altar lá está, simbolizado pela toalha de Verônica.
Durante todo o tempo desta saudação ao cruzeiro, está presente uma devota, de
joelhos, em oração, pagando uma promessa (Figura 26). O guia canta alguns versos, citando
seu gesto e a autorizando a entregar sua esmola. A mulher levanta-se e, com um pequeno
alfinete, prende uma nota de um real em uma das bandeiras, momento em que o guia dá seu
voto por cumprido.
Figura 26 – Devota pagando promessa diante do cruzeiro durante a cantoria, no primeiro pouso de 2003.
Os votos de fiéis, pagos em algum momento do giro, são muito recorrentes. E eles
estão relacionados a graças alcançadas de várias ordens: são curas de enfermidades, graves ou
não, salvação de animais doentes, conquistas materiais como um emprego ou a compra de um
carro, ou até coisas relacionadas a namoro e casamento. E todos são cumpridos com o mesmo
senso de contrição que, acreditam, o ato merece. E o sacrifício é feito também de várias
formas, desde uma simples vela acesa no altar, até o acompanhar todo o giro, algo próximo de
quinhentos quilômetros, à pé. Determinadas funções exercidas durante todo o período da
manifestação, também, muitas vezes, são pagamentos de promessas. Então não é incomum
ouvir de um cargueireiro ou de um tropeiro que ainda faltam tantos anos para completar seu
voto.
Esta cantoria de saudação ao cruzeiro26 é guiada pelo Sr. Geraldo da Silva Rosa e dela
destacamos alguns versos de louvação e outros de saudação, segundo o formato que ele
mesmo afirma que deve ser seguido:
26
Esta cantoria foi recolhida no giro de 2004 – Sempre mantendo a estrutura de repetição do primeiro verso de
cada estrofe. Nas estrofes com três versos esta repetição não acontece. Mesma prática de o guia e seu ajudante
cantar a estrofe e o contra-guia e seu ajudante repetirem com as mesmas palavras.
Tão recebendo a benção
Do nosso Pai que nos guia
[...]
[...]
[...]
E regente e procurador
E panha as vela do cruzeiro
Pra lumiar a procissão
Logo em seguida, pelo ruamento, levam as bandeiras até o altar. De novo o guia vai
cantando e o contra-guia vai respondendo, até entrar na casa.
Guia:
Contra-Guia:
Passando pelo ruamento, segue o grupo até um grande salão ao lado da casa principal,
onde é feita a cantoria de saudação ao altar. Também como na arvorada, todas as coisas
presentes são citadas. Depois, segue-se o jantar, o bendito de mesa, o catira e os festejos que
se repetirão em vários dos pousos por mim presenciados. E assim se encerra o primeiro dia da
Folia de Roça do Novo Gama.
No dia seguinte, os foliões despertados por uma alvorada de foguetes e servido o café
da manhã, todos ficam à espera da hora do almoço e das atividades de despedida. Nesse meio
tempo, novamente as brincadeiras, jogos, catiras e conversas para passar o tempo, enquanto os
cargueireiros e os tropeiros cuidam de seus afazeres. Cada uma de todas as atividades dos
pousos será descrita posteriormente, ainda neste capítulo.
Logo após o almoço, também servido na barraca, motivo pelo qual quem recebe a
bandeira para o pouso é chamado de barraqueiro, reinicia-se o giro em seu segundo dia. Antes
da saída, porém, são traçados os trajetos e o grupo é dividido em dois ternos, o da direita e o
da esquerda. Os foliões que têm a divisa presa no lado direito do peito formam o grupo da
direita e os outros, com a divisa do lado esquerdo, conseqüentemente, formam o grupo da
esquerda. Cada um com sua bandeira, seus guia e contra-guia, seu caixeiro e procurador.
Estabelecido o ponto de encontro do final da tarde, saem cada um dos ternos pelo seu
caminho. Apesar de estar usando a divisa do lado esquerdo, segui o terno da direita, onde o
Sr. Amarildo exerce o cargo de alferes da bandeira.
A primeira visita realizada por este grupo, neste dia, á na fazenda da Senhora Geralda,
uma viúva que mora com um filho, Manuel José Machado, 36 anos, também folião. Diante de
um altar improvisado com uma vela acesa dentro de um prato e uma imagem da Virgem Santa
Imaculada (Figura 27)
Figura 27 (2003)
sobre a mesa, é feita a cantoria. Nas visitas, quando não são encontrados altares montados
com as imagens do Espírito Santo, não são feitas as louvações. Então, logo após os pedidos
costumeiros de licenças à Santíssima Trindade, os guias fazem as saudações, determinadas
pelas características próprias da pessoa e do local visitado, como no caso aqui presente, a
viúva Dª Geralda, aniversariante do dia, que nem por isso é dispensada da esmola:
E dá um bendito descanso
Na sombra da divindade
Figura 28 (2003)
A visita seguinte é na casa de um dos filhos do Sr. Ofir Mulato, conhecido por
Netinho. Como o dono da casa ainda não está presente no momento em que o terno da direita
chega, a bandeira é recebida por um de seus filhos (Figura 29), que a conduz até a residência
de um empregado. Quebrando o protocolo que estabelece a morada principal como a primeira
a receber a cantoria, esta é feita para o caseiro e sua família, também agradecendo a esmola.
Figura 29 (2003).
Enquanto se espera o dono da casa, os foliões ficam nas sombras das árvores do
terreiro, nas varandas das casas. Alguns brincando, outros tocando viola... Conversando com
Dona Geralda, sogra do Netinho, ela informa que tinha dado 25 pousos. Chegando Netinho, é
dado início à cantoria, cercada de grande emoção. Praticamente toda a família presente chora
enquanto os guias cantam:
[...]
[...]
Com as bandeiras conduzidas até o altar, onde é feita também a cantoria de saudação,
ocorre novamente o mesmo ritual de jantar e bendito de mesa, ao final do qual alguns foliões
e outros devotos rezam o terço, concluído com a ladainha cantada. Depois, por solicitação dos
presentes, é dançado o catira, à medida que o espaço em frente da casa vai se tornando, pouco
a pouco, numa grande feira de vendedores de bebidas e comidas. Como se caracteriza o pouso
como uma grande festa, com a presença de aproximadamente duas mil pessoas, este comércio
paralelo aumenta à medida que o giro avança. O catira prolonga-se por várias horas, com os
grupos sucedendo-se uns aos outros. Dentre os versos cantados pelos violeiros destaquei os
que se seguem:
Figura 32 (2003)
Nas figuras 30, 31 e 32 aparecem características dos grupos de catira atuais. Layout próprio e participação
de mulheres os diferem das rodas de catireiros mais tradicionais, formadas, basicamente pelos próprios
foliões.
Mesmo sendo verificada com bastante naturalidade a presença de mulheres dançando
catira, tanto que um dos grupos presentes no giro é formado totalmente por moças, todas
muito jovens, é nesta prática, dentre as relacionadas à folia, a maior demonstração do
machismo ainda constatável no meio rural goiano. Apesar de todos os avanços que devem ser
considerados, os tradicionais “caipiras” ainda cantam versos como “comprei o chicote pra
bater nela”.
No que diz respeito à participação do sexo feminino na dança, que, pelo que levantei
junto ao grupo, passou a ocorrer muito recentemente, não tive, dos foliões, uma explicação
mais esclarecedora do que um repetitivo “não era coisa de mulher” e “isso é coisa de
homem”. Apesar de afirmações diferentes, inclusive as de Mário de Andrade, já citadas
anteriormente, é possível, analisando a história das folias, deduzir o porquê da mulher não
participar das rodas de catireiros até poucos anos atrás.
A explicação que consegui compreender é a seguinte: o catira era, até então, uma
atividade relacionada exclusivamente às folias. Dos foliões, quem tinha direito a cama no
interior das moradas, durante os pousos, eram somente o alferes da bandeira e o procurador.
Todos os outros ficavam fora da casa do barraqueiro e, para passar a noite, ocupavam o
tempo, além de outros jogos e brincadeiras, principalmente dançando o catira. Pelos costumes
de então, a mulher não podia ficar fora da casa durante a noite. Então a dança era praticada
somente por homens. Com o passar do tempo, além de ser trazida, por solicitação dos donos
das casas, para o terreiro principal, com a conquista de espaço pelas mulheres, o tratamento
passou a ser outro. Então, apesar de versos como os verificados acima, desqualificantes para
as relações de gêneros, atualmente não é rara a presença do sexo feminino em rodas de catira
por toda a noite, em alguns casos, inclusive, em grupos mistos, como Os Envenenados do
Catira, já mostrados na Figura 32.
Depois do catira o que se percebe é uma festa muito parecida com os bailes urbanos,
sendo que o grande diferencial é que aqui, sob a barraca de lona, a música que prevalece
durante toda a noite é a chamada sertaneja, principalmente as das duplas mais em voga no
momento, como Chitãozinho e Chororó, Teodoro e Sampaio, Gean e Geovani, Zezé Di
Camargo e Luciano e Sandy e Júnior ou os cantores Daniel e Leonardo.
No dia seguinte, também depois das visitas, que são realizadas pelos dois grupos, logo
na chegada à Fazenda Bonfim, aparecem as primeiras diferenças em relação aos pousos
anteriores. Desde o ruamento até o altar, nota-se que este barraqueiro não economizou
recursos para receber a visita. Ao contrário das outras casas, em que se usam materiais
naturais, como bananeiras e bambus para a ornamentação, o ruamento é enfeitado com
bexigas de borracha (Figura 33), o cruzeiro é de metal e o altar é um dos mais ricos de todo o
giro (Figura 34). São várias imagens em esculturas, de Jesus Cristo, Nossa Senhora, Sagrado
Coração de Jesus, São Pedro com a chave e o livro dos pecados, Nossa Senhora Aparecida, a
pomba do Divino Espírito Santo e uma grande Bíblia Sagrada aberta nos salmos 102 e 103.
Figura 33 – Ruamento na Fazenda Bonfim (2003). O que difere este da maioria dos outros ruamentos do
giro é o material utilizado em sua confecção. Ao contrário do que geralmente é visto, com bananeiras e
bambus formando o corredor, aqui os arcos foram feitos com canos de PVC e bexigas de borracha.
Figura 34 – Altar na Fazenda Bonfim (2003).
Depois dos rituais do jantar, do bendito de mesa e do terço, já descritos anteriormente,
também é dançado o catira, mas o número de visitantes ou cata-pousos é tão alto que os
grupos encontram dificuldades para realizar suas evoluções (Figura 35). A festa é animada
por uma banda que canta música sertaneja e praticamente todos os presentes dançam. É
calculado aproximadamente em duas mil e quinhentas pessoas o número de presentes à festa.
Enquanto ocorre o pagode, em um dos currais da fazenda, o altar fica praticamente
abandonado. De vez em quando, um ou outro dos presentes se aproxima e, ajoelhado, faz uma
oração silenciosa.
De manhã os foliões são despertados por foguetes e, levantando-se aos poucos de suas
rancharias ou mussungas (Figura 36), vão se reunindo em volta do local onde será servido o
café da manhã. Quando este está pronto, um dos regentes avisa a todos com um apito.
Chamados à mesa, obrigatoriamente vão retirando seus chapéus e suas esporas, que são
deixados do lado de fora da barraca (Figura 37)27.
Logo a seguir, dirigindo-se ao altar, o Sr. Geraldo da Silva Rosa, guia de folia em
Águas Lindas, convidado para o giro, com uma toalha nas mãos, executa benzeduras para
devotos que o procuram para tal (Figura 38), inclusive os donos da casa. Questionado sobre
isto ele informa que, tendo recebido as bênçãos do Divino Espírito Santo, ele cura vários
males com suas orações, “principalmente espinhela caída”. Pegando uma ponta da toalha com
uma das mãos ele a fixa na altura do peito do benzido e, enquanto reza, vai fazendo medições
até os cotovelos e as pontas dos dedos. Segundo o Sr. Geraldo, as medidas que no doente
eram diferentes, quando termina a benzedura voltam a ser totalmente iguais, demonstrando a
cura dos males que o acometiam.
27
O não cumprimento à obrigação de se tirar o chapéu e as esporas para se aproximar da mesa em que é servido
o alimento gera uma multa, cobrada por um dos procuradores, que tem autonomia para arbitrar o valor. Em caso
de reincidência a importância é sempre maior que a anterior. Durante o jantar do último pouso o próprio
Amarildo Meireles foi flagrado com as esporas e multado em R$ 5,00 (cinco reais), depositados no embornal do
procurador.
Figura 36 – Rancharia ou mussunga. Barraca onde os foliões passam as noites durante o giro (2003).
Figura 37 – Os chapéus dos foliões deixados do lado de fora da barraca na hora das refeições (2003).
Figura 38 – A hora da benzedura. O benzedor e seu ofício diante do altar do Divino (2003).
Servido o almoço, logo após o bendito de mesa todos são chamados ao altar para rezar
a despedida. A estrutura da despedida difere um pouco das outras cantorias e dos benditos.
Mesmo reproduzindo simplesmente o que foi cantado pelo guia, aqui não existe a repetição do
primeiro verso de cada estrofe.
E a Santíssima Trindade
É dona de todas belezas
[...]
E os mistérios do Divino
Retratado nas bandeiras
[...]
Os mistérios de Jesus Cristo
É o primeiro sem segundo
(...) na falta de admiração, há uma impressão que o homem não pode deixar
de sentir em presença da natureza. Ele não pode deixar de perceber que ela o
supera, o esmaga com sua imensidão. Essa sensação de um espaço infinito
que o cerca, de um tempo infinito que antecedeu e virá após o instante
presente, de forças infinitamente superiores às que ele possui, parece não
poder deixar de despertar no homem a idéia de que existe, fora dele, um
poder infinito do qual depende. Ora, essa idéia entra, como elemento
essencial, em nossa concepção de divino. (DURKHEIM, 2000, p. 77).
Então, continuar cantando as coisas da natureza acaba sendo uma das maneiras de
reafirmar esse pacto, através daquilo que, para ele, o homem, é uma das representações mais
concretas da existência da divindade. Como também há outras formas pelas quais é, segundo
os nossos praticantes e/ou devotos da folia, comprovada a interferência das mãos divinas nas
coisas do dia a dia. Como numa manifesta multiplicação dos pães que, ao ver dos
participantes do giro, se dá com a distribuição da comida pelos barraqueiros.
Para quem não está familiarizado com as práticas da folia, a primeira impressão que se
tem, ao se deparar com o movimento e com a quantidade de foliões, é de que, para o
barraqueiro, o pouso é um grande sacrifício. E isto não é esquecido pelos guias. Na cantoria
de despedida são dedicados alguns versos de agradecimento ao dono da casa pelo “belo
pouso” e pela despesa. Eles cantam:
E o Divino te devolve
Muitas vez multiplicada
E o Divino agradece
A sua delicadeza
Existe, em princípio, uma crença de que, por maior que seja o número de participantes
do pouso, o sacrifício nunca é demasiado, pois além de ser um trabalho dedicado à Santidade,
tudo o que é feito é multiplicado. No próprio evento e na vida do devoto hospedeiro. É muito
comum se ouvir, principalmente das mulheres que ajudam na cozinha, que “parece que o
Divino multiplica as coisas. Quando o povo chegou e eu vi o tanto de gente, eu falei, ai meu
Deus do céu, a comida não vai dar. E olha só o tanto que sobrou. É coisa do Divino mesmo!”
Isto eu ouvi de Dª Nilza Maria do Espírito Santo durante o pouso em que foi barraqueira a
Sra. Maria Freire da Silva, sua sogra.
Esta crença nos milagres do Divino, por sua intervenção sobre as coisas coletivas de
seus adoradores, também é atestada por Carlos Rodrigues Brandão, falando da festa de
Pirenópolis, pelas palavras da esposa de um fazendeiro da região: “Essa quantidade de gente,
esse tanto de mascarado correndo pelas ruas, esse mundo de gente e nenhum acidente, e nem
nada, isso só pode ser coisa do Divino” (BRANDÃO, 1978, p. 69). Isto é o que eles
acreditam. E está nos versos cantados:
Esses pousos de “todo ano”, geralmente, são oferecidos pelos barraqueiros que estão
pagando promessa, outros que seguem uma tradição de “dar a festa” ou ainda são solicitados
pela organização. Os agasalhos são escolhidos obedecendo a um trajeto que passa
primeiramente pelas casas dos promesseiros, portanto aqueles que têm um sentido de
obrigação. Estabelecido este trajeto inicial, o folião, no nosso caso o Sr. Amarildo Meireles,
entra em contato com os fazendeiros e sitiantes que estão no círculo simbólico original, para
completar os dias estabelecidos para o giro e que fica em torno de 11 noites.
Existe, porém, um outro aspecto a ser considerado. O número de foliões passou a se
elevar de forma tão acentuada, chegando a algo próximo de quatrocentas pessoas em
determinados dias, notadamente nos finais de semana. A partir deste momento, mais uma
preocupação surgiu para os organizadores da folia. Segundo alguns fazendeiros e sitiantes que
fazem as recepções, não pelo sentido dos custos, mas por causa de um descontrole predatório
do grupo, está começando a se tornar difícil estabelecer um trajeto com todos os pousos do
giro. E algumas reclamações passam a ser notadas entre os barraqueiros: os animais são
muitos para as pastagens, algumas cercas de currais, de pastos e outras dependências são
danificadas e, alguns casos, mais raros mas que não deixam de ocorrer, alguns aspectos de
uma festa paralela à que é feita na casa principal passam a causar um certo incômodo. Dentre
esses distúrbios estão, principalmente, a sujeira provocada pelo uso de material descartável, o
barulho vindo das barracas dos vendedores ambulantes que acompanham a companhia e a
utilização indiscriminada, sem que para isto haja autorização, de algumas partes das
propriedades.
Como conseqüência, muitos fazendeiros estão deixando de oferecer o pouso, e outros,
como no caso do governador do DF, estão passando a dar somente o chamado agasalho, que,
no caso, consiste em oferecer o espaço para o que consideram o lado sagrado da folia. No
agasalho, geralmente, as atividades noturnas se encerram na ladainha cantada ou no catira,
dependendo da visão de cada barraqueiro. Nesses lugares não ocorre o pagode, o maior
chamariz de cata-pousos e que, muitas vezes, invadem a madrugada e só terminam ao
amanhecer.
Diante deste fato, nota-se uma preocupação, já bastante considerável, por parte dos
responsáveis pela organização do evento. Amarildo Meireles, que em 2003 mandara
confeccionar aproximadamente trezentas divisas para distribuir entre os foliões, no giro de
2004 reduziu este número para algo próximo de cento e cinqüenta. Segundo suas palavras,
esta é uma quantidade ideal. Com este número de foliões, percebe-se um certo equilíbrio nas
faixas etárias nos dois ternos da companhia. A preocupação maior é não ter um número muito
elevado de participantes a ponto de inviabilizar o giro pela ausência de locais para os pousos e
ao mesmo tempo que não deve ocorrer o inverso, pois isto dificultaria a renovação do grupo.
Deve sempre existir espaço para o ingresso de pessoas mais jovens interessadas em aprender
as funções que mantêm viva a folia, por meio de uma troca intergeracional. Os mais velhos
ensinam o que sabem da tradição e os mais novos a renovam, fazendo com que, por esta
permuta, ela sobreviva.
Mesmo com a redução do grupo, no giro de 2004 foi possível verificar situações de
renovação bastante alentadoras. John da Silva Ferreira, que no ano anterior era apresentado
pelo Sr. Eurico como futuro guia, seu aprendiz, em algumas visitas já era o responsável pelas
cantorias. João Paulo, 10 anos, filho do folião Lucimar Camelo Botelho, além de ensaiar, em
vários momentos, a função de orela dos contra-guias em algumas cantorias, também aprendia
a função de alferes da bandeira, inclusive carregando um dos estandartes na chegada à
fazenda de seu pai.
E é carregando todos esses significados que os foliões saem de uma fazenda para
outra. E, na cantoria, continua a despedida da santidade que, mesmo indo embora, permanece
com os que ficam:
E o Divino se despede
Bate asa e vai embora
E ele vai e ele fica
Vai nos esperar na glória
E despedida despedida
Do Pai eterno real
Os foliões fazem uma longa fila e, ajoelhando-se, beijam as imagens das pombas nas
bandeiras que passaram toda a cantoria da despedida nas mãos dos alferes. Beijam também o
crucifixo do altar e, após o gesto de persignação, levantam-se e se despedem dos donos da
casa e de todos os que irão ficar. A senhora e o senhor da casa permanecem todo o tempo
segurando cada um uma ponta dos estandartes. Saindo, montam os foliões em seus cavalos e
preparam-se para a partida. Novamente realizando todas as evoluções, os alferes puxam a
grande fila de cavaleiros que seguem para as visitas.
Neste dia minha opção foi a de não acompanhar o giro e me deslocar para o ponto do
próximo pouso e presenciar os preparativos do barraqueiro. Distante aproximadamente vinte
quilômetros, a fazenda de Dª Maria Freire da Silva (Figura 39) tem uma casa simples, com
um grande quintal de fruteiras e pastagens para o gado. Encontrei grande movimentação das
pessoas que preparam o espaço para receber a festa. Vizinhos, parentes e convidados, todos
formam um grande batalhão de solidariedade aos barraqueiros. Este é um detalhe percebido
em todos os pousos em que os donos da casa são de menores posses. Ao contrário das casas
daqueles mais abastados, onde fica caracterizada a contratação remunerada dos ajudantes.
Dão os últimos retoques nas barracas onde deverão ser servidas as mesas de comidas e onde
ocorrerão as danças da noite. Preparam o ruamento e o cruzeiro da chegada (Figura 40).
Emocionada pela presença das pessoas, Dª Maria dá o seguinte depoimento:
Mas eu sou tão pobre, eu não posso [dar o pouso]. Aí disse a senhora é a
mais rica. [...] Tá vendo? Teve comida pra todo mundo, água pra todo
mundo, casa pra todo mundo, o que fartou aqui? [...] Num sei como é que eu
fico de tarde, depois deu ver sair todo mundo, num sei como é que eu vou
ficar. A saudade é demais.
A princípio os foliões, quem é os foliões num tem nada, num teve nada, que
os foliões somos a gente aqui, né... Só que tem as pessoas de fora que vêm
pra farrear, dançar, comer e beber. Só que eles num têm devoção. Eles vêm
mais pra bagunçar, vem pra bagunçar e inté estraga a festa que é uma festa
sadia, uma festa de devotos, religiosa. Os dois num era da folia não. Todos
dois só veio a noite só pra festa só. Ninguém num tava acompanhando...
Quando sai a comitiva, em meio ao desmonte de todo o ambiente, Dª Maria Freire fica
repetindo que “é a maior saudade, um buraco, um vazio que nada preenche. Saudade muito
grande”. Recolhi também o depoimento da senhora Nilza Maria do Espírito Santo, 41 anos,
nora da dona da casa, e uma das mais atuantes e solidárias folionas de todo o giro:
Eu considero que o mundo, de maneira geral, tá acabando a fé, sabe, as
pessoas tão vivendo assim muito prático, parece que eles esqueceram que
tem Deus, tem religião, as pessoas que normalmente vêm num pouso de folia
e faz por exemplo o que aconteceu aqui, de briga, de morte, eu, com certeza
assim é convicto, são pessoas que não sabem o que significa nem folia, nem
fé, porque a pessoa quando vem num pouso, como folião ou como pessoas
que vêm num pouso pra assistir a chegada do Divino, são pessoas que têm
fé, respeito.
Figuras 41 e 42 – Casa de barraqueiro com ruamento na entrada e barraca do cargueireiro com cargas
(2003).
Ao se ouvir à distância o primeiro disparo de rojão, os donos da casa respondem com
o mesmo artifício, autorizando a chegada das bandeiras. Alguns minutos depois aparecem os
primeiros cavaleiros, liderados pelos caixeiros e os alferes. Em seguida às evoluções de
chegada, postam-se todos, ainda sob o som das caixas, em uma grande fila de frente para a
casa (Figura 43). A um sinal de um dos alferes, os caixeiros param de tocar seus instrumentos
e os donos da casa, que estiveram esperando em frente ao ruamento, se aproximam e,
ajoelhando-se, persignando-se e beijando as pombas das estampas, recebem as bandeiras
(Figura 44) e as conduzem ao cruzeiro.
Figuras 45 e 46 – Bandeiras sendo conduzidas para dentro de casa e o pagode à luz de lampiões a gás
(2003).
E é também sob a luz dos lampiões que, depois do catira, é feita a dança da raposa.
Esta consiste em dois violeiros cantarem piadas sobre as evoluções livres de quem vai para o
centro da roda, característica principal da brincadeira. Para sair, quem está no meio escolhe,
dentre os que o olham, aquele que irá substituí-lo no jogo (Figuras 47 e 48). Além de ser um
momento de grande descontração entre todos que participam do jogo, as raposas, ou seja,
aqueles que vão para o centro da roda, se tornam o foco das gozações dos colegas durante o
restante do giro.
Figuras 47 e 48 – Roda da dança da raposa. Os violeiros tocam e cantam enquanto os outros participantes
improvisam coreografias que são satirizadas pelo grupo (2004).
Figura 50 (2003).
No dia seguinte a comitiva se desloca para a fazenda do Sr. Hilton Meireles, próximo
barraqueiro. Em depoimento emocionado, logo após o café da manhã, o senhor Hilton
descreve a emoção de ceder a casa para que, bancando todas as despesas com a manutenção
dos visitantes, o Sr. Laudimiro Roriz oferecesse o pouso.
Eu queria pedir pra vocês passar pro resto da foliãozada... Há uns dias atrás o
Luciano, ele e a mãe dele me procurou com um recado do barraqueiro de
hoje, que é o Luiz Cláudio... Que não ia dar mais o pouso... ‘Não vou dar,
não tenho condição.’ Deixou pra avisar quando a folia já tinha começado...
Graças a Deus, é aquilo que eu falei ontem, tem muito mais pra somar que
pra diminuir, a nossa folia ainda tá de pé e vai continuar... O Luciano e a
Família dele tá dando o agasalho lá pra gente, de última hora... Só o
agasalho, mas o que importa é o que eles fizeram...
E o giro segue para a fazenda do Sr. Balthazar Machado, conhecido como Nino, pai do
citado Luciano. Antes, porém, é realizada a visita que, a meu julgar, se caracteriza, dentre
todas as presenciadas por mim, como a que mantém as maiores semelhanças com aquelas
descritas nos escritos ou nas narrativas orais dos mais velhos. Além da força emotiva da
presença do Divino em uma casa em que seu dono está em uma cadeira de rodas,
conseqüência de um recente acidente vascular cerebral, é também a visita em que a mesa é a
mais parecida com as descrições tradicionais, principalmente as dos escritos do Prof.
Gelmires Reis (1978). Estão presentes os famosos biscoitos caseiros, em especial aqueles em
que são usados “queijo de Minas e polvilho doce”. São servidos também chás de ervas
diversas e a indefectível aguardente de cana-de-açúcar, a chamada cachaça de alambique. A
casa está preparada para receber a visita como se este fosse um agasalho noturno.
Bandeirolas, enfeites e um altar ornamentado (Figuras 54).
[...]
Louvado seja as três pessoas
Da Santíssima Trindade
Registre-se que nas visitas em que não são encontrados altares montados, as cantorias
são breves, não passando pelo sentido de saudação que esta ornamentação exige. Nesses
casos, os cânticos se resumem em bênçãos aos moradores, muitas vezes com a família inteira
de joelhos, nos pedidos e agradecimentos pela esmola dada ao santo.
Já na casa do Sr. Nino, esperando pela chegada dos cavaleiros, recolhi o depoimento
do Sr. Valter, um devoto que faz todo o giro andando a pé. Também muito emocionado ele
diz:
A partir deste dia o grupo passa a não mais se dividir, fazendo as visitas também em
conjunto. É perceptível também o desgaste das pessoas com maior responsabilidade no
evento. Os regentes, os tropeiros, cargueireiros, alferes, em suma, todos aqueles que se
responsabilizam por uma atividade específica, demonstram já o seu cansaço. Todas as vezes,
entretanto, que são questionados sobre isso eles desconversam e dizem que a satisfação de
estar servindo ao Divino, o contato com os foliões, é maior. Como diz Luiz Antonio Pereira,
41 anos, regente:
Figura 57 e 58 – Altar improvisado para receber a divindade na casa do Sr. Vasco Melo (2003).
Chegando por volta de dezesseis horas na porteira de entrada de uma das dezenas de
sedes das Fazendas do Governador do Distrito Federal, Joaquim Domingos Roriz, ponto do
pouso seguinte, dá-se uma longa negociação com a segurança. Como o combinado com o
governador era de que a chegada se daria às dezessete horas, somente neste horário, em ponto,
é autorizada a entrada do grupo. Policiais à paisana vistoriam os carros, verificando
principalmente a existência de bebidas alcoólicas. Até então, desde a chegada, os foliões são
observados à distância. Também são obrigados a ficar do lado de fora da propriedade todos os
que transportam bebidas e comidas para as pequenas barracas do comércio paralelo ao giro.
Por volta de 16:50 começa uma chuva torrencial que permanece até o fim do ritual de
chegada. As evoluções são realizadas com os cavaleiros cobertos por tradicionais capas de
chuva, o que não deixa de proporcionar um inusitado e belo espetáculo em que prevalece a
cor cinza, das nuvens e das vestimentas (Figuras 59 e 60).
Como não cessou totalmente a chuva, o governador Roriz e sua esposa, Dª Weslian
Roriz, recebem as bandeiras sob guarda-chuvas (Figuras 61 e 62) e as levam diretamente para
o altar, também em uma pequena capela construída ao lado da casa principal, visto que fica
impraticável a realização da cantoria do cruzeiro. Ao fim da cantoria no interior da capela,
todos são convidados para a missa que será celebrada de um altar feito de madeira, no
gramado em frente. Roriz fala:
Figura 59 – Evoluções de chegada para o pouso (2003).
Todo ano a gente dá uma festa. Mas de um tempo pra cá, a Weslian pediu pra
não dar mais festa, e eu concordei com ela, que não haveria festa, e somente
festa religiosa. Então eu peço a compreensão de vocês, por essa decisão dela,
que eu concordei. Portanto é as nossas explicações iniciais. Mas eu vou
apresentar pra vocês todos aqui os padres, vou citar o nome de cada um...
[...] Eu sempre repeti pro Ofir e quero repetir procês: Não precisa nunca me
pedir se eu estou disposto a dar um pouso ao Divino Espírito Santo... Não
precisa pedir, o meu pouso na minha casa é uma tradição que eu vou honrar
até os últimos dias da minha vida, dando pouso ao Divino Espírito Santo.
Então, no ano que vem, com a graça do Divino Espírito Santo eu espero
vocês novamente, todos, aqui para que nós possamos continuar esta tradição
homenageando o Divino Espírito Santo e lembrando de Ofir Mulato,
homenageando... Então eu convido a todos...
Termina o discurso orientando como os foliões devem se servir e com uma concha nas
mãos fica em volta da mesa (Figura 63), distribuindo comida nos pratos, até que todos
terminem de jantar, quando o governador se retira com sua comitiva.
Figura 63 – Barraqueiro Joaquim Roriz ajuda a servir os pratos dos foliões (2003).
Folia, ela tem sentido duplo. Primeiro, sentido religioso profundo. Mas
tornou-se festa folclórica, cultural do nosso povo. Eu sou a favor, procuro
preservar e incentivar, porque é cultura. Mas depende dos foliões, depende
também do padre. Se dá apoio, se não dá apoio. Quando tem desordem,
matança, como acontece várias vezes, então a igreja fica contra. Mas eu,
sempre, quando posso, por exemplo, este ano eu não podia participar das
pousadas, mas normalmente eu venho junto com eles, confesso, rezo missa,
em todos os momentos dou apoio espiritual... mais por parte espiritual. A
eles, mais por parte folclórica. Nós, popularmente, chamamos devoção
popular, por isso, o problema, se ela não funciona como festa religiosa
também é culpa do padre, que não dá bastante assistência. Por isso, quando
se olha para ela somente como só festa folclórica, ela nem folclórica é,
porque bagunça, e isso depende dos organizadores. Por exemplo, eu não
gosto dessas barracas... mas claro, porque preço é grande, mas como vou
falar para Amarildo sobre isso? Porque geralmente são pessoas mais simples
e para eles é peso, como dar comida para 500 pessoas, não é fácil.
Nas palavras do Padre Janusz sobressai toda a ambigüidade com que este tipo de
prática religiosa é tratado pela igreja católica de Roma. Ao dizer que “eu sou a favor”, o
pároco está, implicitamente, reconhecendo a existência, em seu universo, de pessoas que são
contrárias. E este fato é comprovado no que pude observar no giro de 2004, por ocasião da
entrega, já em outra paróquia, também do Lago Azul, quando não esteve presente nenhum
representante do clero. As portas da igreja estavam abertas, foi realizado todo o ritual da
desarvorada, com as mesmas características do ano anterior, mas sem a presença do vigário
responsável. Como o Padre Janusz havia sido transferido ainda em 2003, e não havendo
acordo para a entrega ser feita na mesma paróquia, foi escolhida uma segunda igreja do
bairro. O ritual, porém, foi realizado somente com a presença dos foliões e da comunidade,
sem as bênçãos do líder espiritual oficial daquela casa de orações.
O pouso na casa de Dª Fiinha, em 2003, também muito próximo do bairro do Lago
Azul, apesar de um número elevadíssimo de presentes, também não registrou nenhum
incidente mais sério de violência. Após todos os rituais sagrados, desde a chegada até o
bendito de mesa, com exceção da presença, já registrada do padre Janusz, não verifiquei
nenhuma alteração significativa em relação aos dias anteriores. A principal diferença se dá, a
meu ver, pela presença, na festa noturna, de um pequeno trio elétrico (Figura 64), responsável
pela animação de mais de cinco mil pessoas dançando a noite toda. O que se verifica também
no dia seguinte.
Figura 64 – Trio elétrico estacionado para animação da festa na casa de Dª Fiinha, penúltimo pouso de
2003.
Figura 66
Nas figuras 65 e 66, o ritual de entrega das bandeiras no pouso oficial da Prefeitura Municipal do Novo
Gama, fazendo as honras de barraqueiros Marinaldo Nascimento e sua esposa, a prefeita Sônia Chaves
(2003).
Antes do almoço, quando já se verifica um clima nostálgico de despedida, registrei o
depoimento do Sr. João Batista, dono da fazenda, falando do significado de ser escolhido para
receber a bandeira do Divino:
Uma festa, uma tradição, e a gente sendo escolhido pra dar um pouso desse é muito
gratificante, né? Cê num é escolhido assim à toa, né? Isso é mandado... Num é
‘vamos dar na casa de fulano’, não. Isso é um toque de alguém que, e esse alguém é
o Espírito Santo. Graças a Deus correu tudo bem e pedir a Deus que no ano que
vem, se precisar, a gente tamos aí.
Ainda são feitas cantorias de pagamento de promessa diante do altar (Figuras 67 e 68),
ao final de que todos são convidados para a barraca do almoço, quando pede a palavra o Sr.
Amarildo e profere seu discurso final de agradecimento:
Acho que todo mundo tava pedindo, né... Agradecendo ao Divino Espírito
Santo por nós estarmos todos reunidos e pedindo a benção dele pra com a
nossa folia. Então, eu queria agradecer todas as pessoas que ajudaram nessa
folia. Em primeiro lugar eu queria agradecer ao Divino Espírito Santo por ter
abençoado a gente nesses dias, os momentos difíceis que nós passamos
juntos, agradecer a minha família pelo apoio que ela me deu, agradecer a
todos os foliões, todos que ajudaram diretamente ou indiretamente, essas
pessoas maravilhosas que sem eles ela não sairia. E eu peço ao Divino
Espírito Santo que um dia eu seja como vocês, ao menos parecido. Queria
dizer que, embora muitas vezes não pareça, são tantas coisas que a gente tem
que dar atenção, eu queria dizer que eu sou muito grato, do fundo do
coração, pelo que vocês fizeram pela folia esses dias... queria agradecer
todos os barraqueiros que confiaram na gente, dando um pouso pro Divino
Espírito Santo. Confiaram no nosso trabalho... Queria agradecer todas as
pessoas , do fundo do coração, que ajudaram nessa folia. Queria dizer que,
com a ajuda do Divino Espírito Santo, ano que vem, com algumas
modificações, não é porque ela foi ruim não, ela foi maravilhosa, é porque
tudo tem que melhorar, né? Ela não vai melhorar tanto quanto era com
padrim Ofir, porque falta ele, falta uma peça muito grande nessa folia. Mas o
que a gente puder fazer pra gente melhorar ela, vai ser feito. Ano que vem
essa folia tem que girar com mais fé, mais Divino Espírito Santo no coração
de todo mundo... É o que o padre falou ali: a gente tem que girar uma folia
com mais devoção, deixar a festa mais de lado. O barraqueiro que quiser dar
a festa é um direito dele, não tem problema. Todo mundo precisa da
diversão, mas na hora da obrigação nós temos que estar ali, nós temos que
mostrar, gente, nós temos que honrar isso aqui ó (mostra a divisa no peito).
Isso é divisa, nós somos folião. É muito feio uma pessoa de fora ver um
folião fazendo uma coisa errada. Mas graças a Deus a maioria fez as coisas
certas, porque se não tivesse feito já tinha acabado há muito tempo. E a
minoria não vai conseguir acabar com nossa folia não, com fé no Divino
Espírito Santo. Porque Deus é mais. E ano que vem ela vai sair com mais
modificações, e com fé em Deus ela vai ser melhor. Então, do fundo do meu
coração, gente, Deus lhe pague vocês, por tudo que vocês fizeram por nós.
Antes de chegar à igreja em que é pároco o Padre Janusz, são feitas ainda algumas
visitas, sendo que o terno da direita vai até a fazenda da família do Sr. José Gonçalves, Zeca
Diabo, um dos foliões mais antigos do grupo, e ao sítio dos Meireles, a família do Sr.
Amarildo. As duas visitas mantêm as mesmas características de todas as outras, com orações,
cantorias e pagamento de promessas.
Finalmente, já no meio da tarde, o grupo chega à Paróquia do Lago Azul, onde várias
pessoas da comunidade estão esperando pelo ritual da desarvorada. Dentre os que esperam na
frente da igreja (Figura 69), recolhi trechos de conversas entre três senhores, todos com idade
aparente em torno dos sessenta anos:
(2) É por isso que o sujeito morre rápido. Foi pra cidade grande o sujeito morre.
Morre todo dia porque a tradição é quebrada. Cê vê mineiro, os mineiros é que
conserva a tradição. Cês vê ó, carro de boi, é minha paixão também, é outra, carro
de boi. Num posso mais ir pra roça e arrumar um carro de boi. Mesmo que for pra
sair, ir ali e voltar. Mas é a paixão. É dez boi enfiado num carro, botava mil e
quinhentos quilos num carro de boi quando ele aluía era cantando.
(3) Meu nome é Julião, tenho 126 anos, que quando é de noite eu tô
durmindo, mas tô vivendo também, então é o dobro. Eu tenho 63 anos, mas é
126. Eu falei pra ele que depois que o luto entrou, o luto, ora, que a estrada
ficou tudo preta. Traz desenvolvimento também, mas trouxe várias
conseqüências também. No tempo que era carro de boi era diferente. Tinha
acidente também, que eu mesmo quebrei um braço. Claro que existe acidente
também. Cê andando a pé ocê cai...
Logo em seguida, por uma rua lateral da praça da igreja, chegam os foliões (Figura
70). O padre Janusz dá as boas vindas e o grupo entra na paróquia (Figuras 71 e 72), onde é
realizada a cantoria da desarvorada. Nos mesmos moldes da arvorada, com as suas repetições,
cantam o guia e o contra-guia. A desarvorada é praticamente a reprodução da cantoria da
arvorada. O que difere, fundamentalmente, uma da outra é que existe toda uma reverência à
igreja, e que o guia substitui a palavra arvoro por desarvoro antes de cada uma das referências
cantadas, como nos versos que registro a seguir:
193
[...]
E agradece e desarvora
O Divino Espirito Santo
E os anjos tá te esperando
E ele tá se despedindo
E se eu vos agravei
197
Nesse ponto, termina a cantoria com todos os foliões, quase todos em choro
convulsivo, se despedindo em abraços e promessas de reencontro no próximo ano. Este é o
momento em que, pela construção imagética dos foliões, o Divino Espírito Santo conduz para
os céus o manto sagrado que cobre a companhia, e esta se desfaz até se reunir novamente no
ano seguinte. A partir de agora todos estão liberados para retomar a ordem cotidiana de suas
vidas. Finda então o período do ano no qual todos os que participam do giro transformam suas
ações em uma seqüência extraordinária a serviço da Santidade, como eles crêem. E,
principalmente, um tempo em que todas as suas energias estão voltadas para as práticas de
adoração ao que, para todos eles, existe de mais sagrado no mundo, sua maior manifestação
religiosa: a Divindade do Espírito Santo e o estar juntos com seus companheiros.
Alguns permanecem dentro da igreja, em pequenos grupos, como que se negando a ir
embora, ou tentando retardar ao máximo possível a retomada da “normalidade” de suas vidas.
Aos poucos vão saindo, deixando as duas bandeiras sobre o altar (Figura 73), de onde serão
recolhidas posteriormente e guardadas pelo líder até a próxima arvorada. Quando a igreja fica
vazia são, aproximadamente, dezessete horas do dia 31 de Maio de 2003.
198
arquetípico), que desencadeia como que um motocontínuo, em que uma coisa leva a outra, até
a obra se completar (ou não). É um desencadeamento psíquico, material e visivelmente
efêmero, mas eterno na permanência rizomática, lembrando Deleuze e Guattari, daquilo que
fica e/ou vem depois. O rizoma persiste.
Mesmo tendo a construção final do texto surgido da pesquisa de campo, da
participação na Folia do Divino descrita anteriormente, já neste capítulo, a criação de Inderna
de Intão partiu da imagem de uma boneca de plástico enforcada que, no final das contas, não
entrou na encenação, e que já aparecera em Os Homens, primeira montagem de meu grupo, a
Cia dos Homens, em 1994, e em O Nó, instalação cênica idealizada e ainda não realizada. A
partir desta imagem, sem nenhuma ligação aparente com as folias, surgiram outras, que se
reproduziram até se completar toda a visualidade perceptível no espetáculo. Quando eu digo
que não existia, inicialmente, ligação desta figura imaginada com a folia, é porque ainda não
tinha sido feita uma leitura de que o enforcamento da boneca se dava por um laço/armadilha
para passarinhos, uma espécie de arapuca em que a ave é pega pelo pescoço, morrendo por
asfixia, muito recorrente em minha infância no interior rural do Estado de Goiás. A conexão,
portanto, entre as duas coisas foi sempre a passagem do giro da folia por lugares familiares a
uma memória que, nesses momentos, age como desencadeadora de um sentimento de
nostalgia que, no caso, assim compreendo, se traduz em criação artística.
Esta busca de explicações de um processo criativo associado mais aos mecanismos do
imaginário, pelas visões de Gaston Bachelard (1990), que propõe um viver oscilante entre um
enraizamento e um estado de desenraizado, povoado de imagens, nos propõe também uma
reflexão sobre as noções de que este imaginário pode agir como uma busca de
(re)territorialização, conforme pensaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995).
Podemos, por outro lado, pensar territorialização/desterritorialização por dois sentidos
distintos e até com finalidades diferentes: o primeiro, ligado às idéias de raízes culturais,
sobre o que poderíamos pensar ao falar da armadilha para passarinhos, pode nos fazer refletir
sobre o que existe de positivo e negativo neste universo. O melhor está voltado para a
amplitude de possibilidades de negociações interpessoais que o domínio de códigos culturais
comuns podem proporcionar aos indivíduos pertencentes a um mesmo grupo, detentores de
um determinado patrimônio identificatório. Desde as identificações lingüísticas até as
manifestações coletivas de jogos, folguedos e festas, são, inegavelmente espaços de
territorialidade individual de aspectos positivos nos afetos intercambiados dentro desses
grupos.
201
Existe, entretanto, uma outra face nesta mesma moeda. É nos espaços dos
enraizamentos culturais, como nos religiosos, que vicejam os já citados ideais de
nacionalismo e fundamentalismo, produtos de idéias xenófobas, alimentadas por discursos de
defesa de identidades culturais ou religiosas, justificadoras de tantas guerras e ações
imperialistas do mundo contemporâneo.
O segundo aspecto, claramente divergente do primeiro, e muito mais positivo, é a
busca de um sentido mais dinâmico das metáforas de raízes, inclusive as culturais. Este
dinamismo nos leva a noções próprias de negociações interpessoais e intergrupais mais
solidárias e plurais. E que podemos aprofundar através de uma discussão sobre as idéias
levantadas na Introdução ao Volume I de Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
No universo das culturas, tão facilmente condutoras, como foi dito acima, a limiares
de guerra e paz, de solidariedade e apartação, de aceitação e negação, a contraposição das
metáforas de raiz e rizoma, debatidas por Deleuze e Guattari, e já faladas no tópico anterior,
acredito que nos servem como alertas para que nossas práticas cotidianas propiciem, isto sim,
mais e melhores convivências.
“A lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz” (DELEUZE e GUATTARI,
1995, p.13). Estas imagens, alimentadoras das dicotomias corpo e alma, razão e emoção,
enfim, transcendência e imanência, tem seu contraponto em outro paradigma: o das redes e
interconexões, tão bem representado pela força do rizoma e suas construções imagéticas:
[É] outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio,
entrar e sair, não começar nem terminar. [...] É que o meio não é uma média;
ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas
não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal
que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas
margens e adquire velocidade no meio. [DELEUZE e GUATARI, 1995, p.
37].
Duas imagens (de novo as imagens) de força reaparecem por estas palavras: o já
também citado, em outra parte deste texto, artaudiano “corpo sem órgãos”, que, para mim,
adquire matizes indefinidos, em quadros abstratos sem bordas ou molduras, que invadem as
cores das paredes. Não sabemos onde (ou se) acabam, onde está a pintura ou a parede. Ou
ainda de esculturas que não terminam, se entrelaçando com móveis das salas, com bancos,
árvores e calçadas das ruas e jardins. Ou ainda no Büchner de Woyzeck, ou espetáculos de
dança contemporânea, com suas cordas e paredes ao infinito.
202
vem, a meu ver, esgotar, também, uma outra discussão sobre as noções de espetáculo vivo,
tão difundidas nas argumentações sobre a etnocenologia. A definição é para espetáculo, sem a
necessidade de qualquer categorização. Com ou sem intermediação tecnológica, é espetáculo,
somente. Carrega a pressuposição desta outra presença. Real ou virtual, ela é imprescindível.
Ao trazer estas discussões para o universo das folias, sobre as quais estou refletindo,
espetáculos são, mesmo em toda sua dimensão ritualística, as evoluções de chegada e de saída
dos foliões em cada pouso. Estes são momentos em que os cavaleiros tomam consciência
clara de que estão, em espaço separado, como em um palco distinto da platéia, realizando um
conjunto de movimentos e evoluções simbólicas que carregam todas as características de estar
organizados para serem apreciados pelo outro. Como são fenômenos espetaculares, também
em sentido substantivo, vários e diferentes outros elementos da manifestação.
Se analisados pela perspectiva de quem chega, como folião, cata-pouso ou
simplesmente como observador das ações de trocas que se dão entre os dois lados, os
visitantes e os visitados, a própria casa do barraqueiro é organizada como espetáculo. Não no
sentido de uma organização estabelecida por atores e espectadores, em espaços distintos
porém simultâneos, presentes um para o outro, como no teatro, por exemplo, mas numa
compreensão de organização estética para a alteridade, ainda pensando nas propostas de
Armindo Bião (1999).
Assim vejo todo o esforço despendido pelo barraqueiro, com o auxílio de vizinhos ou
empregados, por solidariedade ou por remuneração pecuniária, no preparo daquilo que ele
tem como maior referência de beleza para bem receber a santidade. E deste labor surgem
ruamentos, cruzeiros e altares, verdadeiras significações da mais apurada manifestação
estética que ele tem a oferecer a seus visitantes.
E é reconhecível, em cada um desses elementos, a carga dramática idealmente
simbolizada pelo dono da casa em sua intenção de agradar ao outro, principalmente aquele
que traz até ele o estandarte santificado. Em outras palavras, na troca simbólica estabelecida
entre o barraqueiro e o folião, existe, da parte de quem recebe, uma deliberação de
espetacularizar sua hospitalidade. Isto no sentido mais substantivo que a palavra carrega. E
por esta compreensão, o que ele faz é retirar o máximo possível do sentido de ordinário e de
cotidiano, tanto do espaço preparado para receber a folia, quanto das ações de todos os
envolvidos neste ato. Para que a troca simbólica por ele protagonizada se concretize, o
fenômeno deve se consolidar como absolutamente extraordinário e extra-cotidiano. E o que
melhor pode representar esta intenção é a organização espetacular dada a cada gesto e a cada
canto de sua casa.
205
No lugar das estrebarias, currais e galpões, quem chega deve ver ruamentos enfeitados
com as cores da santidade e salões que são verdadeiros cenários para as cantorias, para o
catira ou para o pagode. As salas de sua casa não são mais simples cômodos de sua residência,
mas sim um espaço glorificado pela presença do altar, diante do qual se representará, no
sentido dramático de tornar novamente presente, todo o mistério do sacrifício de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
E diferente não é para quem chega. Quando o fogueteiro, ao longe, solta o primeiro
rojão, símbolo do pedido de licença para se aproximar da moradia, todos os que ali estão
presentes têm a consciência de que, sob o rufar das caixas, o espetáculo vai chegar. E
estruturado como tal, ele é visto ainda ao longe, como uma grande comitiva com duas
bandeiras vermelhas à frente (Figura 76). Cada passo do grupo foi pensado e deliberadamente
estudado a partir das imposições do local e, principalmente, pelas condições geográficas
oferecidas pelo terreno, para a realização das evoluções de chegada.
E os cavaleiros, em filas que seguem os caixeiros, vão evoluindo em torno das duas
bandeiras, estrategicamente seguradas em um determinado ponto do terreno. Daí surgem
círculos que se sucedem a desenhos invertidos de S, de 8 e de corações. Associando
obrigatoriamente aos significados simbólicos dessas evoluções, já discutidos em outra parte
desta tese, surgem essas formações estéticas com o sentido mais complexo de espetáculo a
que já me referi.
É imprescindível, entretanto, reconhecer a existência de visões discordantes sobre os
objetos de estudo da etnocenologia, base fundamental das discussões que estou indicando
neste capítulo. Cito, por exemplo, as proposições de Chérif Khaznadar, ao sugerir que “estão
excluídos do campo da etnocenologia os fatos e os gestos da vida cotidiana, as improvisações
e as criações individuais” (KHAZNADAR, 1999, p. 58).
Mas é igualmente impossível estudar a manifestação denominada Folia do Divino,
sem a liberdade de imiscuir-se pelas entranhas das práticas cotidianas trazidas
tradicionalmente para este rito espetacular. Se existe um estado de espetacularidade nas
performances descritas acima, em que os foliões e os barraqueiros participantes do evento
criam a organização reconhecível como espetáculo, é inegável também a presença de um
outro estado, o da teatralidade. E este é um estado identificável não somente nos rituais
espetaculares, mas também nas ações ordinárias incorporadas ao extracotidiano do giro. Estas
definições, teatralidade e espetacularidade, permeiam muito do que se tem teorizado sobre a
etnocenologia, e por isso mesmo, contribuem sobremaneira para a consolidação desta
206
disciplina. E como tal eu lanço mão dessas noções, como auxiliares na explicação de vários
aspectos das folias.
O que difere então, essencialmente, uma da outra, a teatralidade da espetacularidade?
Partindo daquilo que diz Armindo Bião, em sua vasta produção sobre o tema, a
espetacularidade poderia ser definida como o estado alterado de corpo e comportamento com
que o atuante se coloca, de forma organizada e intencional, para o olhar do outro. Este estado
alterado se dá através de uma consciência clara, objetiva e deliberada da presença da
alteridade.
Quando me refiro ao espetáculo produzido pelos foliões, nos rituais de chegada ou de
saída dos pousos, ou pelos barraqueiros na organização de sua hospitalidade dedicada aos que
chegam, estou levando em consideração que cada um deles está, objetivamente, agindo por
este princípio. Existe, presente em cada gesto organizado em espetáculo, tanto de um lado
quanto do outro, esta consciência clara de que estão se dirigindo a alguém que, em espaço
distinto ou não, também exerce a função espetacular de ser espectador.
Já o fundamento da teatralidade está na consciência mais ou menos clara, mais ou
menos difusa da presença do outro, sendo este, novamente lembrando Maffesoli (1998), o
outro propriamente dito, a natureza ou a divindade. Segundo Bião (1996, p. 13) este
“conhecimento do limite acontece na convivência permanente da pessoa com a alteridade. A
pessoa forma-se simultaneamente com o conhecimento dos limites que aparecem no jogo
diário da vida”.
Ora, este estado alterado de corpo e comportamento, organizado de forma mais ou
menos clara mais ou menos difusa para a alteridade, é o que conduz as ações dos presentes em
todos os outros momentos da festa. Com exceção daquilo que podemos considerar como
espetáculo, comentado anteriormente, tudo o que ocorre no restante do pouso obedece aos
princípios do jogo da teatralidade.
Pelo que classifico as práticas e comportamentos humanos no início deste tópico, o
que, na folia, não é espetáculo, caracteriza-se como rito espetacular ou como rito de rotina
incorporado ao extracotidiano da manifestação, como demonstrarei a seguir.
A entrega da bandeira, as cantorias do cruzeiro e do altar, a procissão pelo ruamento, o
terço e a ladainha cantada, o pagode e o catira, assim como a roda da raposa, ou as mesas de
truco, são todos ritos espetaculares. Se vistos de fora, apresentam os componentes dramáticos
do espetáculo propriamente dito. Só que, ao contrário deste, que exige a presença do
espectador, a possibilidade de sua ausência não os descaracteriza. Continuam sendo ritos
207
e de costumes. Com exceção de um mito indígena que fala do surgimento das estrelas e das
feras da floresta, recolhido pelos Padres Colbacchini e Albisetti, entre os Bororos, com o
nome de Origem das estrelas (COSTA E SILVA, sd, pp. 28-29), algumas das outras
narrativas são reproduções, ou de conversas ouvidas dos grupos de foliões ou de “causos” do
Sr. Jove Benedito Veloso, 85 anos, ex-tropeiro/boiadeiro/carreiro de boi na região da antiga
Luziânia, que abrange os atuais municípios do entorno goiano do DF. Ou ainda fragmentos de
estórias ouvidas ao longo dos anos em que me dedico a pesquisar as tradições do interior de
Goiás. Este texto tinha, até a pesquisa de campo, durante o giro da folia de 2003, um pequeno
esboço, que foi trabalhado, inclusive, como demonstração de criação artística, em leitura
dramática para a disciplina Processos de Encenação, ministrada pela Professora Doutora
Sônia Rangel, no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, da
Universidade Federal da Bahia, que acolhe esta pesquisa de doutoramento.
Durante a realização do giro, entretanto, o texto foi incorporando elementos novos,
tanto no sentido literário quanto nas propostas da encenação, que já durante esses registros de
campo ia adquirindo o formato com o qual foi para a cena, em outubro de 2003, e vem se
apresentando em vários lugares do Brasil28
Essas propostas englobaram um conjunto de dados que foram transformados no
projeto do espetáculo, tanto elementos retirados dos pousos, através das práticas,
principalmente de foliões, quanto da organização dos espaços cênicos destinados aos rituais
de adoração à divindade peregrina.
A montagem de Inderna de Intão, pensada para palco italiano, foi estruturada a partir
da idéia de que todas as ações deveriam ter como pano de fundo a imagem de um altar com as
bandeiras do Divino colocadas em descanso. E que a trama da peça se daria durante a
realização de um pouso. Neste altar são encontradas, além dos estandartes com a imagem
simbólica da pomba, reproduções realistas de vários outros elementos, como uma imagem da
Virgem Imaculada, jarros de flores, a toalha de Verônica, as velas acesas e o rosário de Maria
(Figura 74).
A história começa com a entrada da platéia como que chegando a um pouso de folia,
ao som de uma ladainha cantada. Neste aspecto, a encenação lança mão de uma licença
poética e desloca, temporalmente, a ladainha para antes da cantoria do altar, que se inicia
quando os espectadores já estão acomodados em seus lugares.
28
O espetáculo Inderna de Intão já fez temporadas em várias cidades do Distrito Federal, Goiás e em Ilhéus –
BA., e participou do I Festival latino-americano de monólogos, em Dourados – MS e da II Mostra SESC de
Teatro Candango, em Brasília – DF., ambos em Outubro de 2004.
209
Durante a saudação do altar, ouve-se ao longe os gritos da personagem, uma velha que
convive com os fantasmas de animais e pessoas, todos já mortos, e que voltaram a fazer parte
de suas interações cotidianas, desde o momento em que ela ficou viúva. Como ela diz:
“Inderna que ele morreu... Sabia não??!!! Morreu... Meu véio morreu... Inderna que ele
morreu, inderna de intão meus bicho tudim garraro a vortá... Chibante, Brioso, Futrica,
Vermeio, Chamoso, fica zucrinano meu juízo, fazendo eu lembrá das coisa que o véi
contava...” É uma personagem que surge de duas coisas muito recorrentes no pouso de folia.
A primeira é a convivência com algumas personagens totalmente diferenciadas dos
padrões gerais perceptíveis nos comportamentos dos foliões.
Existem, tanto nos giros quanto em outras festas do interior, aquelas pessoas que,
mesmo não fazendo parte do grupo de atuantes que se caracterizam como responsáveis pelo
evento, nunca deixam de ser notadas. São homens e mulheres com aparentes distúrbios
mentais ou de comportamento social que, pelas práticas culturais da região, acabam
recebendo um tratamento ambíguo de aceitação no grupo ao mesmo tempo que servem de
objeto de várias brincadeiras discriminatórias de seus participantes. Assim encontramos
situações de dependentes alcoólicos que, pela fartura de bebida com que se deparam, passam
todo o evento totalmente embriagados, ou dos famosos “bobos”. Até muito recentemente,
210
ainda convivo com esta memória, rara era uma fazenda tradicional do interior desta região do
estado de Goiás, em que não se encontrava um desses “bobos” agregados à casa principal para
os serviços mais pesados, como cuidar da lenha consumida nos fogões ou da limpeza dos
arredores da moradia. São pessoas com características de necessidades especiais como, por
exemplo, pequenos retardamentos mentais. Ou ainda um outro tipo de personagem, os beatos
ou beatas, de convivência um pouco mais aceitável no cotidiano dos integrantes do evento
festivo. Existe em Luziânia, na folia de rua, uma senhora que exemplifica perfeitamente o que
estou falando. Durante o giro, e mesmo nas missas de domingos, ela está sempre caracterizada
como uma pequena alferes/caixeira, conduzindo uma bandeira do Divino, já surrada pelo
tempo, e batendo numa pequena caixa, imitação de brinquedo do tradicional instrumento, com
a qual acompanha as cantorias de louvação e saudação de cruzeiros e altares. Chamada de
Doidinha por habitantes da cidade, ela convive harmoniosamente com todos que participam
do evento, mas não deixa de se destacar do grupo pelo que ela tem de diferente de todos.
Estas características, tanto as das pessoas com necessidades especiais, em pequeno
grau, como as citadas, ou dos embriagados dos pousos, foram pesquisadas e utilizadas na
composição da personagem de Inderna de Intão. Não como uma pessoa com distúrbios
mentais nem como vítima de alcoolismo, mas incorporando elementos dos comportamentos
desses dois tipos na elaboração da interação espetacular proposta no jogo da peça.
Já o segundo aspecto matricial da personagem do espetáculo, é o que, ao lado da
adoração à divindade, é considerado como o sentido mais valoroso para os foliões. Quando
eles falam, justificando a participação anual no giro, que sua motivação é “a fé no Espírito
Santo e o encontro com os companheiros”, eles estão sinalizando para uma infinidade de
práticas e comportamentos que caracterizam um temporário modus vivendi baseado,
principalmente, na camaradagem e em trocas simbólicas de “conversa fiada”, como dizem, de
“causos’ e estórias exemplares de vida, ou mesmo do “estar juntos à toa” já aqui comentado.
Este “estar juntos à toa” inclui um despretensioso e inofensivo “falar mal da vida alheia”,
discutir sobre futebol, política ou música sertaneja, ou somente ficar juntos, bebericando
cerveja ou aguardente de cana. Não é raro, também, se ouvir nessas verdadeiras rodas
hedonistas, voltadas para a adoração ao ócio, as costumeiras e vergonhosas piadas machistas
tão presentes nos agrupamentos masculinos. E, para os dias atuais, estranho paradoxo, muitas
vezes com a participação de várias mulheres.
Da junção de características gerais desses dois comportamentos, aquele dos “bobos”,
“doidos”, bêbados e beatos, com este, do próprio grupo, em seu “fazer nada”, geralmente nas
211
madrugadas dos pagodes ou nas manhãs das esperas para reiniciar o giro, é daí que surge
Dona Luzia, a velha viúva de Inderna de Intão (Figura 75).
Logo após sua entrada, quando descobre que chegou atrasada para as principais
cantorias de saudação, a personagem encadeia uma longa narrativa, entende-se, dirigida ao
grupo de foliões, em que conta suas perdas e suas lembranças, todas elas relacionadas às
“coisas que o Véio contava” ou às próprias vivências dela com o marido morto. Assim vão
sendo desfiados, pelas palavras de Dª. Luzia, práticas, comportamentos, costumes e crenças
que ajudam a compor o patrimônio identificatório de uma goianidade relacionada a valores
que, mesmo localizados em tradições arcaicas, ainda são vividos e vivenciados no mundo real
ou na imaginária de seu povo.
O espetáculo conta das lutas violentas do tempo em que “era tudo na carabina”,
quando Bigodeiro matou Orozino, foi morto em vingança por João Cuiabano, deixando uma
filha, Zimbica, que “inda casô e mandou matar muita gente pra vingá a morte do pai dela”,
como diz um pequeno trecho da peça. No meio de devaneios em que convive com seus bichos
imaginários, todos também desaparecidos, a personagem fala de culinária, a mineira “broa de
miho” e da indígena “cumida que só os home pudia cumê”, uma história que seu velho marido
aprendera com os índios, visto que “a bisaravó dele era neta duma índia pega no laço, intão
ele era assim, mei parentado co’s índio também”.
212
Estão presentes nesses “causos”, não somente as maneiras de ficar juntos, encontrados
pelos participantes dos pousos da folia, como também, relembrando Clifford Geertz (1989),
modos que aquelas pessoas inventam para falar de si, para eles mesmos e para os outros. Pois
através dessas conversas, repetidas por muitas noites, se bem observamos, podemos relacionar
antecedentes étnicos de muitos dos que ali estão. Ela, Dª. Luzia, não fala somente que ganhou
de “Dª. Nirza, muié de seu Quinca”, um pedaço de broa de milho, mas também sinaliza,
através dessa famosa quitanda, que muitos dos mais antigos da região têm uma forte ligação
com Minas Gerais, de onde vieram incontáveis pioneiros goianos. Lembro, inclusive, que o
fundador de Luziânia, Antônio Bueno de Azevedo, aqui chegou em 1746 partindo de
Paracatu, cidade mineira fundada anteriormente.
Como não são raras as vezes em que ouvimos alguém dizer que sua “bisaravó” ou sua
“tataravó” foi pega no laço. Inclusive o Sr. Jove Benedito Veloso, meu pai, contador de
estórias goianas, além de descendente de mineiros, por quem tem verdadeira admiração, se
diz herdeiro de sangue indígena, de uma “tapuia” presa por um laço de couro cru. E daí a
inclusão, no espetáculo, do mito dos Bororo que, falando da comida que só os homens podiam
comer, descreve o tempo da criação pela perspectiva do surgimento das estrelas e das feras
das matas.
Dona Luzia fala também, como ainda acontece nos dias de hoje, raramente, é
verdade, mas ainda ocorre, de gente e de animais que morreram “ofendido de cascavé”, a
cobra mais temida pelo sertanejo goiano. Mas ainda é presente, no imaginário e nas
convivências sociais, a figura do rezador, que tanto cura a mordedura das peçonhentas quanto
as expulsa dos limites estabelecidos por quem solicita seus serviços 29. Como descreve os
acertos de casais que estabelece a obrigação de quem morrer primeiro vir buscar o outro. E
conta da avó que, quando o marido morreu, nem foi ver o defunto, ficando deitada em seu
canto, esperando que ele viesse buscá-la. E isto ocorre, tendo os homens que “enterraram
Padrim, três dias depois teve que vortá no cimitéro pra levá Madrinha tamém”.
Ela, a personagem da peça, ainda conta do homem que queria deixar de ser pobre e fez
um “trato que, se ficasse rico, dava a alma pro Capeta”. Como, no pacto ele não podia mais
raspar a barba e cortar o cabelo, ele não cumpriu o combinado, e no dia marcado ficou
“carequinha, carequinha”, o demônio, para não perder a viagem, levou “aquele careca ali
mesmo”. Aqui, porém, existe um sintoma marcante dos princípios que conduzem o dia-a-dia
do interiorano da região: ao mesmo tempo em que mostra uma imagem como esta, de punição
29
No município de Luziânia ainda é possível encontrar esses personagens. Alfredinho, falecido em 2002, citado
no espetáculo, e um senhor conhecido como Pernambuco, caseiro em um sítio na região da Fazenda Cachoeira,
são nomes conhecidos como benzedores de cobras.
213
pela quebra dos preceitos religiosos ao se aliar ao demônio, conta-se também outras lendas
exemplares, e nem sempre com a mesma visão ética. Como, por exemplo, o causo do
diamante, narrado pelo folião Otávio, transcrito a seguir. Assim é a estória:
Isso assucedeu não tem muito tempo não, que eu tenho um primo que ainda
conheceu o homem. Foi ele que me contou. Diz que era um menino muito
pobrezinho, era ele mais o pai, vivia só os dois num ranchim de pau-a-pique.
Um dia, esse menino que regulava aí uns dezesseis anos, sonhou que tinha
uma fazenda, aqui pras banda de Goiás, onde tinha uma pedra de diamante
muito grande. No sonho, apareceu tudinho pra ele, os jeito da fazenda, os
curral, os pasto, os animal. Quando ele acordou, era como se ele já tivesse
ido no lugar. Ele juntou os trapinho que ele tinha e falou pro pai dele ó meu
pai, eu ganhei uma pedra de diamante muito grande e eu tenho que ir buscá
ela lá pras bandas do Goiás. E o pai dele falou que vai cum Deus, meu filho.
E esse menino saiu, à pé mesmo, que ele num tinha nem cavalo pra montar.
Ele rodou por esse mundão de Deus por oito anos, chegava nas fazenda,
olhava, e num acreditava que era lá por que não conhecia o lugar. Nunca
rapou a barba, as roupa acabou tudo, era trapo só. Mas como ele era um
menino muito educado, andava sempre limpo, que ele parava nos corgo,
tomava banho e lavava os trapinho que inda tava no corpo. Té que um dia ele
chegou na tal fazenda, lembrando que no sonho o homem tinha falado pra ele
que ele ia encontrar e que tinha uma cabra que dormia em cima duma pedra e
que era debaixo dessa pedra que tava o diamante. Ele foi chegando e
reconhecendo tudo do sonho. Pediu um pouso e falou assim ó, que eu tô
andando por esse mundo de meu Deus, passando necessidade e se o senhor
puder me dar um pouso na sua casa Deus vai te pagar. O home da fazenda,
que era muito pobre também, não pôs nenhuma dificuldade. Arrumou logo
uma caminha pra ele, que já tava quase escurecendo. Foi quando ele viu uma
cabra pastando no terreiro e falou assim que cabrita mais bunita! O senhor
num quer vender ela não? Não, seu moço, que é ela que dá o leite preu dar
pro meu menino. E essa cabra é a coisa mais interessante, moço, ela só
dorme em cima daquela pedra ali, que eu num sei como ela consegue ficar
em cima. Uma pedra tão pequena e ela se encolhe tudinho pra dormir em
cima dela. Foi quando o moço pensou com ele mesmo essa é a cabra. Tratou
de ir logo deitar, falando que tava muito cansado, mas antes ele deu um chute
assim na pedra e viu que ela tava assim meio mole. Quando a noite já tava
assim meio adiantada, ele viu que tava todo mundo dormindo, ele levantou
214
devagarinho, foi até na pedra, tocou a cabrita e puxou a pedra pro lado. Num
precisou nem de luz, que ele levou a mão no escuro mesmo e apalpou. Tava
lá um potinho com a mesma pedra que ele tinha sonhado tinha oito anos. Ele
enfiou a pedra no bolso e perna pra que te quero, caiu no mundo e voltou lá
pra onde tava o pai dele, que o que é do home bicho num come. E quem me
contou essa história foi esse meu primo, que inda chegou a conhecer esse
home, que até bem pouco tempo morava lá pras bandas de Guarda-mor, em
Minas Gerais.
Ao se ouvir as duas narrativas, a do homem que fez o trato com o Capeta para ficar
rico e a do moço que ganhou o diamante, o que é possível perceber é o quanto as duas estórias
são contraditórias em seus aspectos éticos, ao mesmo tempo que carregam uma relação muito
interessante de responsabilizar o destino ou os preceitos divinos para os acontecimentos da
vida. Mesmo não sendo esta uma característica nova no universo das convivências cotidianas
daquelas pessoas, é um ponto que merece uma reflexão mais cuidadosa. Compreendendo o
que referencia quem conta e quem escuta este tipo de “causos”, pode-se até chegar à
conclusão de que os valores implícitos no primeiro e no segundo são os mesmos. Se
perguntarmos ao Sr. Otávio por que o careca foi punido e o jovem foi recompensado com uma
vida melhor, mesmo tendo cometido o pecado de se apropriar de um bem encontrado na
propriedade de um outro tão pobre quanto ele, a resposta será simples: nos dois casos o que
ocorreu foi a imposição da vontade de Deus. Enquanto o negociante de gado não podia ficar
impune, por ter se aliado ao mal, o outro só levou consigo a pedra preciosa porque seria ele o
merecedor de tal benefício. Pelo imaginário do contador das estórias e seus ouvintes, se o
pobre dono da fazenda devesse receber a riqueza representada pelo diamante, teria sido ele a
sonhar com o pequeno pote debaixo da cama da cabra, e não um estranho a seu universo.
Existe, porém, um outro ponto. E este, talvez, até de maior importância nas
investigações sobre o porquê da convivência harmoniosa entre uma moralidade voltada para o
exemplo sobre os caminhos do bem e uma outra que, mesmo em nome de Deus, poderia
justificar o mal. Como as pessoas comuns que vivem e vivenciam os usos e costumes das
práticas e comportamentos relacionados às folias e manifestações congêneres têm a
indescritível capacidade de passar do sagrado, para muitos deles relacionado com o bem, para
o profano, identificado com o mal, e muitas vezes experimentá-los simultaneamente, esta
fronteira delimitadora sugerida acima é muito tênue. Ou mesmo, em diversos casos,
inexistente. É claro que esta é uma visão do observador, visto que se a possibilidade de
215
conviver com o mal for colocada para qualquer um dos participantes do giro, nos termos
acima citados, ela será prontamente negada, e, em alguns casos, esconjurada. A consciência é
outra, é de que a santidade não lhes permite o mal, tanto passiva quanto (e muito menos)
ativamente falando.
Como já falei anteriormente, tudo o que acontece sob o manto sagrado simbólico da
companhia, ou com os foliões arvorados no primeiro dia juntamente com as bandeiras, tudo é
do campo do sagrado. As bebedeiras, os namoros às escondidas, as “danças com mulher” e,
dedução minha, mesmo o sexo praticado no escuro das rancharias durante as frias noites do
giro, verdadeiros escândalos para foliões mais antigos, todas essas “desvalias”, como canta o
guia nas despedidas, são perfeitamente absorvidas pelo grupo. É esta convivência que torna
inseparável a noção de bem da noção de mal, representadas pelas duas fábulas acima, isto
quando dentro do espaço sagrado simbolicamente.
É claro, para mim, e não poderia ser diferente, que existem limitações bem definidas
internamente no grupo. As questões relacionadas ao mal simbolizado pela violência física e,
principalmente, pelo roubo de bens materiais, são simplesmente intoleráveis. Presenciei, nos
giros de 2003 e 2004, duas situações exemplares da verdadeira aversão à violência física no
ambiente interno e santificado da folia, e ao roubo: um pequeno incidente entre dois jovens
que extrapolaram na bebida e trocaram tapas no último pouso de 2003, motivou uma parada
em todas as atividades, para realização de uma reunião de séria advertência aos brigões. Com
ameaça, inclusive, de, supremo castigo, perderem os “arruaceiros” as suas divisas. Note-se
que, quando falo de ambiente interno do grupo, estou propondo aquela imagem do manto
sagrado, que distingue os que foram arvorados e divisados. E, em 2004, numa manhã, na
Fazenda Bonfim, foi descoberto, com um cata-pouso, o material das arreatas roubadas de um
folião durante o giro de dois anos antes. Mesmo sendo comprovado que quem estava com os
bens não tinha sido o responsável pelo roubo, tendo ele comprado a tralha de um terceiro,
quase que o incidente chegou a proporções mais graves. O cata-pouso, um adolescente
franzino e amedrontado, correu sério risco de espancamento, o que não se deu pela
interferência de um grupo apaziguador que conseguiu a devolução da arreata a seu antigo
dono.
O que estou querendo dizer, tanto no caso das duas estórias contadas anteriormente,
quanto nas cenas de violência punitiva interna do grupo, é que existe, ontologicamente no
universo humano, esta convivência permanente entre um mal, que deve ser combatido, até
como princípio de sobrevivência da espécie, mas que não vai desaparecer, com um bem
216
idealizado para todas as interações e como sendo a potência da humanidade, o que é citado
por diversos pensadores, inclusive de nosso tempo.
Michel Maffesoli discute exaustivamente, em A parte do diabo: resumo da subversão
pós-moderna (2004), esta relação entre o bem e o mal. Refletindo sobre a epistemologia desta
ambigüidade humana, o compreensivista francês nos convida a pensar sobre a inquietação
provocada pela inteireza da existência, que é breve, convenhamos, e por isso mesmo
assustadora, no que concerne a ser este mal a complementaridade do bem. Sem o primeiro,
este último não teria razão para se pôr no mundo. Deus só existe porque o Diabo azucrina
nosso juízo, eu concluo.
E a onipresença deste lado negativo completando o lado positivo da vida, significado
simplório das narrativas míticas do universo das pessoas mais comuns, não deixa de ser
matriz de um outro, o estético que, também a complementando, ao lado da vida religiosa, vai
ajudar a formar o mundo do senso comum, uma maneira característica de falar de si, para o
outro e para eles mesmos. Maneira da qual lanço mão para criar os princípios do que compõe
a teatralidade de Inderna de Intão.
Ora, se esta teatralidade presente nos ritos, tanto os de rotina incorporados ao
extracotidiano, quanto os espetaculares da própria folia, se ela carrega em sua essência toda a
complexidade de conviver com o bem e o mal, simultaneamente, passa ela também a compor
uma estética que contém todos esses elementos. E a fábula do espetáculo surge aos olhos do
espectador sem nenhuma valoração moralista de imposição do uno idealizado a partir de
conceitos do que é bem e do que é mal. Isto ficará a cargo, se for o caso, de cada um dos
espectadores.
Então, Bigodeiro mata Orozino, que é vingado por seu pai, João Cuiabano. Este
enfrenta o ódio de Zimbica, filha do primeiro, que, por vingança da morte do pai, “mandô
matá muita gente”. E o “meninim mais incapetado de todos”, para não correr o risco de
apanhar da mãe, por ter rompido com o decoro vigente ao comer a comida que só os homens
podiam comer, para fugir do castigo corta a língua e os braços da avó e decapita um papagaio
linguarudo. Para culminar, quando estão “pra cima das alturas das nuvens”, vendo que “todas
as mães, que eram todas as mulheres”, também estavam subindo pelo mesmo caminho que
eles, não tem o menino o menor escrúpulo em cortar o cipó que as sustentava. Ao cair na
floresta, todas elas se transformam em feras. E ele, o “meninim mais incapetado”, sem
nenhuma culpa de ordem moral, pratica este ato ao perceber que, finalmente, seriam todos, ele
e seus amigos, castigados pelo pecado cometido ao não aceitar a imposição de uma
moralidade adulta com a qual não compactuava.
217
Assim, o que era da ordem da teatralidade cotidiana que não julga o jovem mineiro,
novo rico de um imaginário carregado da amoralidade ética a que se reporta Maffesoli (2004),
o que era desta maneira de se pôr no mundo, é trazido para o espetáculo. Juntamente com
aquilo que já é próprio da espetacularidade presente em toda a organização consciente para o
olhar do outro do evento, vem aquela teatralidade, eticamente amoral, formar um todo estético
da performance discutida neste ponto da tese.
E a narrativa avança até Dª Luzia concluir sua história contando de como seu “véio
morreu”, o momento de maior emoção da personagem. Ela encerra o espetáculo esclarecendo
sua condoída espera: “o Véio tá demorando vim me buscá”. O que vem mostrar também o
quanto essas relações de estabelecem nas trocas dos afetos e das emoções individuais. José
Jorge de Carvalho, analisando a festa do Rosário, em homenagem a Nossa Senhora do
Rosário, na vila de São Gonçalo do Rio das Pedras, entre o Serro e Diamantina, em Minas
Gerais, no vídeo Interiores: Serro (2002) fala de uma riqueza proporcionada por uma “teoria
dos afetos, uma educação sentimental, uma forma de se conectar com a emoção” através de
uma “efervescência da comunidade [...] há muito nessas festas, elas dão muito às pessoas, em
emoção e no bem viver. A emoção é um termômetro, uma medida da vida bem vivida”.
Mesmo que a emoção seja de sofrimento, é ela uma maneira de aliviar a dor através
desse compartilhamento com o grupo. Se a confiança é mútua, a emoção não precisa ser
mascarada, não existe razão para a teatralidade da convivência também ser escondida. E a dor,
nos moldes do que fala Maffesoli (2004) sobre a violência, é homeopatizada na sua divisão
com os pares, mesmo que esta seja eticamente estetizada.
É, pois, Inderna de Intão, resultado da junção de princípios, tanto éticos quanto
estéticos, da teatralidade com a espetacularidade presentes nas Folias do Divino, tendo como
referência a Folia de Roça do Novo Gama, realizada nos dias contemporâneos. Mesmo
trazendo ainda em seu bojo toda uma formulação que se inicia, supõe-se, e como já falei no
primeiro capítulo desta tese, por volta do Século XIV, em Portugal, não deixa esta
manifestação de representar muito do que é nosso tempo: uma grande sinergia de valores,
tanto históricos e éticos quanto estéticos. Baseados, principalmente, em uma imaginária que
busca, por vários e diferenciados caminhos, maneiras de viver e vivenciar, pelo viés das trocas
simbólicas internas dos grupos sociais, diversos modos de comunhão religiosa, em todos os
sentidos que a palavra religião pode nos oferecer. E, naquilo que José Jorge de Carvalho
levantou, como trilhas a serem seguidas para melhor viver a vida.
CONCLUSÃO
Desse conjunto de dados, analisando a trajetória que tomou o corpo desta pesquisa,
desde a abordagem preliminar até os momentos em que é finalizada a escritura da tese, saltam
para o campo de minhas explicações finais, significâncias as mais diversas. Sobre a procissão
propriamente dita, e sobre sua inserção, como uma manifestação sagrado/profana, no universo
do que compõe o espectro cultural das pessoas comuns da região do entorno goiano do
Distrito Federal.
Ainda está presente no ambiente em que se instalou, em 21 de abril de 1960, a nova
capital nacional, uma espetacularidade imagética que poderíamos definir como sendo parte do
patrimônio identificatório da goianidade. Isto apesar do que pensa a respeito uma considerável
parte dos mundos acadêmico e artístico ligados à construção de Brasília. Mesmo repetindo
esses formadores de opinião que, por um milagre modernista, esta nova cidade caiu como um
caixote num deserto cultural, é inegável que práticas e comportamentos classificados no
universo dos habitantes do lugar, como é o caso aqui investigado, se consolidam como
testemunho vivo de que, por cá, a despeito de tudo, já existia vida inteligente. E isso muito
antes da tomada colonialista, como eles mesmos o disseram, perpetrada por Lúcio Costa e
Oscar Niemeyer, comandados por Juscelino Kubitschek de Oliveira. Não com o tipo de
inteligência que transforma pessoas em classes distintas pelo viés de sua produção estética.
Mas homens e mulheres capazes de inventar, no mundo do encantamento, ou no
reencantamento do mundo, suas maneiras de tornar a vida possível, pelo caminho da
convivência e das interações, individuais ou coletivas, e pelos princípios do reconhecimento
da diferença, da alteridade.
O que é um gesto de humildade. Que vem de ánthropos, simples mortal, homo. Junito
de Souza Brandão define: “homo é húmus, terra, barro, argila. Ser humilis, humilde, com a
cabeça voltada para a terra, é próprio da condição humana” (BRANDÃO, 1985, p. 18). Mas
esta é uma definição aplicada, no caso citado, ao homem da Grécia Antiga. O que teria a Folia
do Divino a ver com os gregos que inventaram a tragédia? Para os teóricos desses dias,
podemos ver a contemporaneidade como um tempo que retoma o sentido trágico da vida,
como o dos gregos. Em êxtase e entusiasmo, queremos o conhecimento, especialmente o
(re)conhecimento do outro.
Se, por este agenciamento, o que se dá é a ampliação do universo de cada um,
partamos então de algumas noções auxiliares nesta compreensão: unus versus alia, um X
outro, ou unus versus plura, um X outros, seria então o fundamento primeiro, novamente
humilis, da vida humana. Armindo Bião, refletindo sobre a estética performática como
princípio do jogo teatral, diz que esta é a “experiência sensorial da expressão da alteridade [...]
221
ou ainda da forma pela qual essas duas ações interdependentes e caracterizadoras da vida
humana se revelam ao conhecimento” (BIÃO, 1996, p. 12). Conhecer, do latim cognoscere,
que Maffesoli (1998) relaciona a cum nascere, nascer com, em outras palavras, relacionar-se
com a alteridade, o outro, a diferença. Relacionamento este que se dá pelo caminho do
descobrimento de outro estado, o estado alterado do próprio “eu”. E se descobrir é retirar a
cobertura, isto ocorre por dois caminhos: o descobrimento de fora, que alarga os espaços, e
mostra a alteridade do outro, e o descobrimento de dentro, o que mostra a alteridade do “eu”,
ou os múltiplos outros deste “eu”. No primeiro caso, a fonte é o outro na relação com o
espaço; no segundo, a fonte é o outro “eu” na relação com o próprio corpo.
Destarte, onde está a fonte desta humildade, ou melhor, desta hombridade, em outras
palavras, desta condição de humano?
Pelo que compreendo, o que estamos presenciando, nos dias de hoje, é um duro
embate, em que um modelo de vida, idealizado na Idade Moderna, tenta ainda sobreviver
àquilo que poderíamos pensar como sendo o aspecto mais positivo do que se convencionou
chamar, mesmo com todas as vozes discordantes, de pós-modernidade. Nos nossos tempos
contemporâneos, a vida tem se voltado para formas de inter-relacionamentos éticos e estéticos
bastante divergentes da unicidade preconizada pelos paradigmas anteriores, localizados nos
ideais dos pregadores de um mundo em que uma verdade deveria dominar. Mundo este com o
qual muitos de nós, e eu o disse anteriormente, neste mesmo trabalho, não mais nos
identificamos, mas que tenta, por vários caminhos, ainda prevalecer.
Os tempos modernos tiveram, como grande ideal, um modelo de desenvolvimento
progressista que pretendia colocar todos os seres humanos voltados para um utópico “dever
ser” em que os pecados, distinguidos em da carne e do espírito, seriam extintos das
convivências humanas. Era esse um tempo em que as pregações revolucionárias tomaram
conta de todos os discursos, dos melhores aos piores, dos mais bem intencionados àqueles
considerados como nem tanto. E este modelo desenvolvimento/progressista tinha um
sustentáculo inquestionável: o racionalismo positivista, capaz de responder a todas as
perguntas do mundo da natureza. E como o homem é parte dessa natureza, é claro que as
questões advindas de suas inter-relações também seriam solucionadas.
Uma das maiores conseqüências deste paradigma foi, no mundo real, uma hipertrofia
da musculatura do extraordinário, desvalorizando o cotidiano, o ordinário, cuja sustentação é,
via de regra, estabelecida no senso comum. E este, pelo império do racional/positivismo, não
merece crédito. Por ser considerado uma “consciência equivocada”, o senso comum é sempre
tratado como um simples material bruto a ser superado, que convêm ser interpretado,
222
corrigido. Isto na melhor das hipóteses desta relação desigual. Na pior, ele deverá ser
desqualificado, triturado, desnaturado, pura e simplesmente, por não passar de mera ideologia.
E a relação é mais desigual ainda quando se pensa que o conhecimento humano, geralmente
associado ao mundo científico, nunca é simplesmente descartado pelo saberes das pessoas
comuns, que o reconhecem como enriquecimento da vida, enquanto o inverso é
“empobrecedor”. Maffesoli relaciona o senso comum com o símbolo da árvore, com
enraizamento terreno e uma dinâmica para o alto. Eu acrescento a isto, porém, a simbologia
do rizoma deleuziano, vendo-o como, além das estruturas terrenas e do dinamismo aéreo, uma
outra imagem: o alastramento no outro que, além de auxiliar na sustentação da árvore,
conecta-se a outros saberes e outros sabores. Ora, é justamente nesses saberes que se
estabelece toda a fundamentação de grande parte das manifestações estéticas das pessoas
comuns, muitas vezes baseadas, única e exclusivamente, na crença e na fé religiosa.
Se temos uma expressão estética alicerçada em um racionalismo crítico, historicista,
comumente chamado de contextualizado, é claro que as práticas e comportamentos humanos
espetaculares organizados, não localizados no âmbito dos “esclarecidos”, tanto do fazer
artístico quanto da academia, não serão merecedores de maiores créditos, muitas das vezes
nem da definição de arte. Sob o manto do discurso de que “as artes” são um patrimônio
humano que deve ser disponibilizado a todos, o que é verdade, grassa, implícita, uma tessitura
de conseqüências totalmente nefastas para os menos escolados, eruditamente falando: por trás
desta idéia crítico/racional/historicista, vem a desqualificação do senso comum e de todas as
suas expressões, inclusive a artística. Se o conjunto desta obra é um patrimônio da
humanidade, e deve ser acessível a todos, este não pode ser um tratamento que desqualifique a
base daquela outra estética, a do mundo dos simples mortais, dos desprovidos das excelências,
distantes das elites intelectuais.
E o ancoradouro da inteligentzia esclarecida, imperativo da ordem modernista, é
exatamente a direção segura do historicismo, pelo que ele tem de superação sucessiva de
estágios em seqüência, em movimentos de mútuo reconhecimento com as formulações da
crítica racionalista, suas principais armas.
Compreendo a afirmação acima como sendo uma crítica ao modelo racional/positivista
empregado nos paradigmas progressistas de antanho. Se a busca permanente é pelo
reconhecimento de que as manifestações artísticas, nos incontáveis níveis de elaboração
conceptual, estão inseridas no cotidiano de todas as pessoas, tanto em suas práticas ordinárias
quanto nas extraordinárias, tanto no mundo erudito quanto nos ambientes menos letrados, isto
pode se dar pela revalorização do comum, tão desqualificado pelas ideologias modernistas.
223
Como diz o poeta da publicidade, “porque a vida é agora”, ou porque, como indica Fernando
Pessoa, por Bernardo Soares, “sábio é aquele que monotoniza a vida, pois o menor incidente
adquire então a faculdade de maravilhar”. E a arte será sempre um incidente. Seja ela de Van
Gogh, de Brecht, de Seu Teodoro, mestre de boi-bumbá em Sobradinho (DF), ou de Seu
Eurico, guia da Folia de Roça do Novo Gama, no entorno do Distrito Federal.
Partindo desses dizeres, e sustentado nas significações adquiridas pelas folias em
terras brasileiras, algumas noções se nos apresentam como possíveis reflexões conclusivas
sobre pontos levantados ao longo de minha pesquisa, e que foram tratados nesses
procedimentos investigativos. O primeiro aspecto a ser revisitado, por esta perspectiva, é o
das significações contextuais das Folias do Divino, histórica e geograficamente falando.
Analisando o fato de que as folias representam parte de um fenômeno de
transculturação, em que o colonizador português, ao invadir as terras brasileiras, traz aos
povos que constróem esta nova nação, um conjunto de manifestações que, com o passar do
tempo, vai adquirindo cores e contornos tipicamente nacionais e, posteriormente, mais
especificamente locais. Levando-se em consideração todas as formas de hibridizações e
multifacetações que podemos verificar nas práticas e comportamentos encontráveis nas
culturas dos povos que se formaram no Brasil, é possível pensar nas folias como uma das que
por mais tempo permaneceram, e ainda permanecem, parecidas com as que aqui chegaram.
Dos registros levantados por estudiosos, em várias áreas dos saberes humanos, desde as
tradições orais até os registros documentais citados por historiadores, antropólogos e
folcloristas, compreendo que têm as Folias do Divino dos dias de hoje caracteres ainda muito
semelhantes aos das originais. O ritual antigo, na sua totalidade, é sempre citado como
seguindo os mesmos passos verificados na etnografia do giro da Folia de Roça do Novo
Gama, em maio de 2003.
Existe, porém, um aspecto de outra ordem que eu gostaria de colocar para reflexão.
Não entrei aqui em discussões sobre valorações de caráter ideológico, pois, afinal, este não
era o recorte de meu trabalho. Concluo, entretanto, que neste trajeto migratório que se
desenha de Portugal, na península ibérica, até os arredores do Distrito Federal, existe algo
mais que uma simples circularidade específica das homenagens ao Espírito Santo, onde se
localizam as Folias do Divino. Esta festa se tornou, em um determinado momento, uma troca
simbólica estabelecida entre os detentores do poder institucional e os outros, os que não detém
nenhum poder, a não ser o sub-reptício, das relações ordinárias, citado no Capítulo II desta
tese, e chamado por Roland Barthes de “legião”. Mas por um outro movimento, este
pendular, que a coloca no âmbito de uma permanente transculturação, adquire também
224
contornos de manifestação, mais que imposta, apropriada pelas pessoas comuns em sua
relação com a dor da consciência da brevidade da vida.
De sua origem, no mundo judaico dos tempos da crucificação de Cristo, até a criação
da festa, no Portugal do Século XIV, a adoração ao Espírito Santo saiu do mundo dos
ordinários, ambiente em que surgiu, até os nobres, repetindo o mesmo trajeto percorrido pelo
alastramento das filosofias pregadas pelo chamado Homem de Nazaré. Já na migração, de
Europa a Novo Gama, alongado movimento de quase quinhentos anos, o caminho é o inverso.
Por concessão ou por apropriação, a festa sai da casa nobre, dos palácios imperiais e das
igrejas oficiais, para, aos poucos, ir se achegando aos terreiros e quintais dos homens e
mulheres chamados “do povo”, mesmo que daqui não se ausentem os grandes nomes.
Desprovidos, todavia, de suas excelências, o que os coloca a todos num mesmo grupo, o dos
que vêem o mundo “de baixo”, das pessoas comuns, nas características pelas quais as
descrevo anteriormente.
E um terceiro movimento pode ser verificado nos dias de hoje. As Folias do Divino
estão estabelecidas no âmbito daquilo que é costumeiramente chamado de cultura popular, e
que aqui trato como práticas e comportamentos das pessoas comuns, pela perspectiva já
comentada. Como uma infinidade de outras manifestações congêneres, o movimento atual é,
outra vez, uma nova inversão, de características diferenciadas. As folias estão saindo de seu
mundo plebeu para readquirir ares de nobreza. Só que, felizmente, esta nobreza não está
estabelecida mais na qualificação hierárquica de poderes políticos e sociais dos praticantes,
mas sim na própria atividade. Nobre, hoje, está se tornando a própria folia, por um lento e
demorado movimento de reconhecimento da ausência de fronteiras que separam os diferentes.
Diversidade esta que faz do homem, homem. Assim também as manifestações estéticas
seguem, a passos lentos, eliminando suas barreiras segregacionistas. Nos mesmos moldes da
árdua luta travada para solucionar os problemas relacionados às questões de gênero, aos
conflitos religiosos implícitos nas práticas cotidianas, e ao racismo camuflado nos
comportamentos inter-relacionais de nossas sociedades.
Brasília é, hoje, uma prova disso. Pelos atalhos traçados pelos comuns, pela boêmia
não planejada, pela existência do “incômodo” Conic 30, e pelo movimento de
30
Conic é a denominação pela qual é reconhecido o Setor de Diversões Sul. Está localizado no coração da
Capital, ao lado da estação rodoviária, de frente para a Catedral, a Esplanada dos Ministérios e para a Praça dos
Três Poderes. Tendo adotado o nome do primeiro edifício ali construído, é onde melhor o Plano Piloto de
Brasília subverteu as utopias de seus fundadores. Mesmo estando nas vizinhanças do centro do poder
republicano, é no Conic onde se encontram, simultaneamente, a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, igrejas
evangélicas, pontos de prostituição, cinemas pornográficos, boates gays, escritórios de executivos, polícia e
marginais, bandidos ou não, traficantes e usuários de drogas ilegais, bares chamados de “pés sujos” e Sex Shops.
Rompendo com as ideologias modernistas da arquitetura e urbanismo de Brasília, “no Conic se encontra de
225
O que pode ser compreendido também das gestualidades teatrais com que os
franciscanos fizeram suas maneiras de adorar a Deus, através de verdadeiras encenações
organizadas pelo próprio São Francisco. Foram estas encenações promovidas pelos seguidores
do Santo de Assis, por seus feitos e gestos, segundo Jacques Le Goff (2001), que contribuíram
decisivamente para um certo desenvolvimento do teatro da Idade Média, em seu movimento
de independência em relação à liturgia católica.
E já não existem também as muitas formas de utilitarismo a que a arte esteve
submetida em várias de suas manifestações, excepcionalmente a partir das vanguardas
artísticas que tomaram corpo na passagem do século XIX para o século XX 31. A suas
propostas de mudar o mundo, parentes próximas, em grau de descendência direta das
filosofias modernistas, incorporam-se outras finalidades. Em muitas de suas vertentes dos dias
atuais, as artes já não exigem de seus consumidores - outra noção adquirida, a de consumo -,
nada além de seu total e irrestrito afeto. No sentido etimológico de ser tocado, sensibilizado,
afetado, e não de afetuosidade. Onde entram todos os novos conceitos de belo, e que cabem o
grotesco, a violência, a bizarria, o estranhamento e o inesperado.
Por onde navegam também as significações estéticas vislumbradas nesta pesquisa. Da
junção de Folias, que nos remetem a folguedos, brincadeiras, vindos de folga, folgança, ócio,
jogos, lúdico, com Divino, de sagrado, santo, respeitante, participante ou proveniente de
Deus, deificado, essas estéticas saltam para nosso mundo da apreciação/participação afetada.
Inicialmente pensada como uma matriz cultural da cena contemporânea, nos mesmos moldes
das imagens religiosas e de várias outras formas de produção artística, esta manifestação
transmuda-se em mediação simbólica para a comunhão. Não mais com o sagrado, somente,
mas também, e me arrisco a dizer, principalmente com o outro. Vendo e analisando a
reflexividade com que o grupo de foliões se posiciona diante da vida. E com seu olhar
peculiar sobre si mesmo e sobre a alteridade, na construção do patrimônio identificatório que
o conduz para aquilo que cada um mais aprecia: estar juntos, à toa, no melhor sentido da
palavra religião.
Ponto do qual sobressai o outro significado da Folia de Roça do Novo Gama: por este
caminho, práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, como esta, e suas
31
Para efeito do que aqui estou refletindo, considero como vanguardas artísticas os movimentos que se iniciam
com o naturalismo, propondo, por suas expressões miméticas, mostrar a vida exatamente como ela era, com o
objetivo de provocar reflexões para a mudança. Passando pelos “ismos” das chamadas vanguardas históricas do
começo do século XX, seu ápice, a meu ver, se dá com a larga propagação pelo mundo dos princípios do Teatro
Épico, proposto, principalmente por Bertolt Brecht. Para melhor compreender esta transição, em especial pelo
olhar das artes cênicas, ver GARCIA, Silvana. As Trombetas de Jericó: Teatro das Vanguardas Históricas. São
Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997.
228
congêneres, não podem e não devem mais ser vistas somente como matrizes culturais. Elas
são também parte do próprio e mais bem elaborado complexo do que pode ser definido como
a cena contemporânea.
Acreditava-se, em alguns cantos da inteligência acadêmica, nos últimos anos do
Século XX, em um chamado fim das Luzes, onde se acentuava o desaparecimento de uma
“crença na irreversibilidade e no caráter benéfico absoluto do progresso científico e técnico”
(ARIÈS, 1990, p. 162). O que se pensava não era propriamente em seu desaparecimento, mas
que estaria chegando ao fim uma fé cega no progresso como totalmente benéfico. Com o
avanço da chamada pós-modernidade, o que se parece ressaltar, entretanto e cada vez mais, é
um outro tipo de irreversibilidade, esta sim, predominando: ao lado deste reconhecimento da
inexorabilidade do progresso, principalmente em sua maior expressão, que são os avanços
tecnológicos, ressurgiu a importância de várias manifestações dos mais diversos tipos de
arcaísmos. Principalmente aqueles relacionados à ressurgência das tradições, sejam elas em
suas formas mais próximas do que a natural dinâmica permite que possam ser consideradas
como “puras” ou “originais”. Ou ainda em todas as hibridizações encontráveis a partir das
retradicionalizações contemporâneas. Assim, assistimos ao reconhecimento de que não se
pode parar a pro-gressão do pensamento humano na busca do novo. Mas ao lado desse pro-
gresso, existe também um in-gresso, que poderíamos relacionar a uma pro-gressão a valores
que, durante toda a idade das Luzes, foram subdimensionados na compreensão do que é o
homem em seu universo inter-relacional.
Isto, então, não pode ser confundido com uma negação pura e simples das
experiências do mundo científico. É na experimentação positivista, inclusive, que o homem
tem encontrado solução para muitos dos males que o afligem. Ausentes as técnicas atuais de
plantio e colheita, inclusive com o pior e o melhor da cultura de utilização de defensivos
agrícolas, disseminada pelo mundo, como poderíamos diminuir a fome no planeta? Sem os
laboratórios voltados para a descoberta de novos remédios, como enfrentar as mazelas de
tantas doenças, novas e antigas, AIDS, câncer e outras? O alargamento das fronteiras da
comunicação que, também no bem e no mal, aproximam as pessoas, ou os programas
espaciais, ajudando a responder perguntas sobre a própria espécie, só são possíveis na frieza e
na dureza racional das ciências positivas. Relativizemos então um pouco as coisas.
Pois é compreendendo este relativismo, num tempo em que se pensa em clonagens
humanas, expressão máxima dos avanços científicos conquistados até o presente, que
assistimos a práticas e comportamentos localizados em tradições milenares. Como, por
exemplo, as encenações de festas de adoração aos santos, católicos ou não, e a vários
229
REFERÊNCIAS
ABREU, Martha. O império do Divino: Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999.
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coord. Oneyda Alvarenga e Flávia
Camargo Toni. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: MinC; São Paulo: EdUSP, 1989 (Col.
Reconquista do Brasil).
ARIÈS, Philippe. A história das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques (Org.). História nova.
Trad. Eduardo Brandão. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1990. p. 154-179.
AS GANGUES de Nova Iorque (Gangs of New York). Direção: Martin Scorcese. Produção:
Alberto Grimaldi. Intérpretes: Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis, Cameron Diaz e
outros. Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillian e Kenneth Lonergan. Música: Howard Shore. Los
Angeles: Initial Entertainment Group e Miramax Films. c2002. 1 DVD (166 min.),
widescreem anamórfico, color. Produzido Initial Entertainment Group e Miramax Films.
BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. 2. ed. Trad. José Américo Motta Pessanha,
Jacqueline Raas, Maria Isabel Raposo, Maria Lúcia de Carvalho Monteiro. São Paulo:
DIFEL, 1986.
______. A raiz. In: ______. A terra e os devaneios do repouso: Ensaio sobre as imagens da
intimidade. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 223-247.
______. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,
1989.
BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. Trad. Patrícia Alves.
São Paulo: Ed. Hucitec, 1994.
BARTHES, Roland. Aula. 9. ed. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2001.
______. Os deuses do povo: Um estudo sobre religião popular. 2. ed. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1986.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e Comédia, 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1985.
BRECHT, Bertolt. A Vida de Galileu. Rio de Janeiro: Abril Cultural, (Col. Teatro Vivo),
1977.
BOSCO, Terésio. Dom Bosco, uma biografia nova. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1993.
BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter
(Org.). A escrita da História. Trad. São Paulo: EdUSP, 1992. p. 7-37.
CARVALHO, José Jorge de. Depoimentos. In: INTERIORES: Serro. Produção de José
Sousa. Roteiro, Texto e Reportagem de Janete Porto. Comentários de José Jorge de Carvalho.
Brasília: 2002. 1Vídeocassete (50 min.). Documentário. VHS. Port. Son. Color.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 4. ed. rev. e aum. São Paulo:
Melhoramentos; [Brasília]: INL, 1979.
CASTRO, Zaíde Maciel de; COUTO, Aracy do Prado. Folias de Reis. In: Cadernos de
Folclore, nº 16. Rio de Janeiro: Funarte/MEC, 1977.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 6. ed. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.
CÔRTES, João Carlos Paixão. Folias do Divino. Porto Alegre: Proletra, 1983.
232
COSTA E SILVA, Alberto da (Org.). Lendas do Índio Brasileiro. Rio de Janeiro: Edições
de Ouro, sd. (Col. Prestígio)
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Vol. I. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995.
p. 11-37.
______. O que é a filosofia. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2. ed. São Paulo:
Ed. 34, 2001 (Col. Trans).
DELUMEAU, Jean. Uma travessia do milenarismo ocidental. In: NOVAES, Adauto (Org.).
A descoberta do homem e do mundo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
DUARTE, Maria de Souza. A educação pela arte: o caso Brasília. Brasília: Ed. Thesaurus,
1983.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. Liliane Fitipaldi. São Paulo: Ed.
Cultrix/EdUSP, 1988.
______. O imaginário – Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2. ed. Trad.
René Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001. (Col. Enfoques. Filosofia).
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo:
Mercuryo, 1992.
______. O sagrado e o profano: A essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. (Col. Tópicos).
______. Mito e realidade. 6. ed. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002 (Col.
Debates).
GARCIA, Silvana. As Trombetas de Jericó: Teatro das Vanguardas Históricas. São Paulo:
Hucitec/Fapesp, 1997.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Trad. LTC. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: Dos mitos de criação ao Big-Bang. 2. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______. Façons de parler. Trad. Alain Kihm. Paris: Lês éditions de minuit, 1987.
HOLSTON, James. A cidade modernista: Uma crítica de Brasília e sua utopia. Trad.
Marcelo Coelho, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
JOSEPH, Isaac. Erving Goffman e a microssociologia. Trad. Cibele Saliba Rizek. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2000.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 3. ed. (Reunidas e editadas por Aniela Jaffé).
Trad., Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1963.
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Inês Oseki-Depré, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
LIMA, Luís Costa. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
MADEIRA, Angélica. A itinerância dos artistas – a construção do campo das artes visuais em
Brasília (1958-1967). In: Tempo Social, Revista Sociologia da USP, S. Paulo, 14(2): p.187-
207, outubro de 2002.
MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Atlântica, 2004.
______. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Trad. Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: Ed. Record, 2004.
______. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Trad. Rogério
de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Ed. Zouk, 2003.
______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3. ed.
Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
______. Elogio da razão sensível. 2. ed. Trad. Albert Christophe Migueis Stuckenbruck.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1998.
______. Mediações simbólicas: a imagem como veículo social. Trad. Juremir Machado da
Silva. In Revista FAMECOS nº 8, Porto Alegre: 1998.
______. No fundo das aparências. 2. ed. Trad. Bertha H. Gurovitz. Petrópolis: Ed. Vozes,
1999.
______. A contemplação do mundo. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1995.
______. A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia. Trad. Aluizio Ramos
Trinta. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
MANUAL do Coração de Jesus: Apostolado da Oração. 61. ed. São Paulo: Ed. Loyola, 1998
MATRIX Reloaded (The Matrix Reloaded). Roteiro, direção e produção: Andy e Larry
Wachowski. Intérpretes: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo
Weaving, Jada Pinkett Smith, Gloria Foster, Monica Belucci. Música: Don Davis. Los
Angeles: Village Roadshow Productions. Distribuição: Warner Bros. C2003. 1 DVD (138
min.), widescreem anamórfico, color. Produzido: Village Roadshow Productions.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
______. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves Cosac & Naify. São Paulo: EdUSP,
2003. p. 37-184.
MEYER, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil. 2. ed. São Paulo: EdUSP, 2001.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet, Rio de Janeiro: Ediouro, sd.
MOURA, Carlos Francisco. Teatro a bordo de naus portuguesas nos Séculos XV, XVI,
XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Nórdica, 2000.
MÚSICA do Brasil. Coletânea musical brasileira. [São Paulo]: Org. e Prod. Abril
Entretenimentos. CD Coletânea. São Paulo: Abril Cultural, s.d. 1 CD. (90 min).
NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Brasília: A construção do cotidiano, Brasília: Paralelo 15,
1997.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Trad. Regina Régis Junqueira.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1975.
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. Unicamp, 1999 (Col. Viagens da Voz)
SILVA, Luiz Geraldo Santos da. Canoeiros do Recife: história, cultura e imaginário (1777-
1850). In: MALERBA, Jurandir (org.). A velha história: teoria, método e historiografia.
Campinas: Papirus, 1996. p. 93-126.
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000.
VELOSO, Jorge das Graças. Benedito e o Teatro Gestual: Estudo de uma encenação não
verbal baseada em elementos espetaculares do interior do estado de Goiás. 2001. 123 f.
Dissertação. (Mestrado em Artes Cênicas). Programa de Pesquisa e pós-graduação em Artes
Cênicas - PPGAC. Escolas de Teatro e de Dança. Universidade Federal da Bahia. Salvador:
UFBA, 2001.
ZAGO, José Marques. Brasília – símbolo de fé: guia turístico de Brasília, Brasília:
Departamento de Turismo e Recreação do Distrito Federal, s.d.
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. Tomos I, II e III. 2. ed. Coord.
Oneida Alvarenga. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL, 1982.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1997.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: Lições americanas. 2. ed. Trad.
Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
CAMARGO, Giselle Guilhon Antunes. Sama: etnografia de uma dança sufi. Florianópolis:
Ed. Mosaico, 2002.
237
CANESIN, Maria Tereza e SILVA, Telma Camargo da (Orgs.). A folia de reis de Jaraguá.
Goiânia: CECUP, 1983 (Col. Religiosidade Popular).
COX, Harvey. A festa dos foliões: Um ensaio teológico sobre festividade e fantasia.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. 3. ed. Trad.
Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997 (Col. Pensamento Crítico).
MELLO, Thereza Negrão de. Se esta quadra fosse minha. In: MEDINA, Cremilda (Org.).
Narrativas a céu aberto: Modos de ver e viver Brasília. Brasília: Ed. UNB, 1997.
NOVAES, Adauto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
VAN DER POEL, Frei Francisco, ofm. Deus vos salve, casa santa: pesquisa de folc-música-
religiosa. São Paulo: Ed. Paulinas, 1977.
ANEXO A
Este depoimento foi prestado pelo Sr. Geraldo da Silva Rosa, na manhã do dia 25 de
maio de 2003, após o café da manhã do pouso no sítio do Sr. José da Conceição Vasques. O
Sr. Geraldo é guia de folia em Águas Lindas, município goiano visinho ao Distrito Federal, e
acompanhou o giro como contra-guia. Por suas explicações, a Folia do Divino tem suas
origens já na criação do mundo, nas relações que Deus criou com suas criaturas. Ele fala:
Olha, é porque essa ciência, nós já trazemos ela no sentido que, quando Deus criou o
céu, e criou os anjos, e criou divinas luz, criou os anjo eterno, então ele deixou um anjo pra
ser o administrador dos outros anjo. E esse anjo chamava Luzbelo, deu o primeiro nome de
Luzbelo... E esse anjo ficava tomando de conta dos anjo, e Deus Espírito Santo, transformado
em pombo, e voava sobre o mundo, né... Visitava o mundo dele. Visitava de canto a canto,
mas o mundo num tem fim, e ele visitava, mas porque o poder dele é sobre todas as coisas
né...E ele voltava avoando, chegava pra sentar no trono dele e aí o anjo levantava e ele
sentava nele. Mas é que o anjo, já orgulou, ele era o anjo mais bonito que tinha de todos os
anjos que Deus criou. Aí ele orgulou de ser mais bonito... Aí quando ele orgulou de ser mais
bonito já contrariou Deus Pai, que para Deus era igual, num tinha mais bonito nem mais feio,
era igual, né... Até que ele orgulou e aí já contrariou a Deus. Que o orgulho é pecado. E aí
Deus viu que já num dava certo... E aí esse orgulo dele ser mais bonito, bom, cair na terra né...
Deus criou céu e a terra, o mar, as águas, as nuvens, criou tudo, das nuvens veio a chuva, a
água, da água reuniu fez o mar, céu e terra e mar... E esse orgulo do anjo veio cair aqui na
terra porque, cê vê ó, eu contando e dando a explicação, que hoje em dia pode ser a mulher
ser uma santa, né, uma santa já quase santificada, mas se todas pessoa falar com ela hê muié
bunita, he muié bunita, he muié bunita, ela vai orgulando logo ela pega pegá o batom, pega
pintá a unha, as mão, e ela já começa a orgulá também dela ser mais bunita e vai indo vai indo
vai chamando ela de bunita, então pode ser a esposa mais honesta aqui na terra. E ela cai num
erro, que ela vai se orgulando de ser bonita, bonita e vai achando bão que todo mundo acha
que ela é bonita, né, vai se orgulando. Quando se dá fé ela já caiu nas perdição, né, porque se
um disser ho muié feia! Ela toma raiva dele. Se disser ho muié bonita, pode ser um home feio,
se disser ho muié bonita, ela gosta dele. Ó, isso vei de lá, um anjo que teve esse orgulo de sê
mais bunito, né. E desagradou a Deus... Bom, depois ele já orgulou de mandar nos anjos,
mandar nos outros anjos. Deus avuava pra decorrê o mundo, ele orgulou de sê mais que os
outros anjos, mandar neles... Ó, isso aí veio cair aqui na terra, que hoje tá o orgulo aí no
mundo, começa lá do presidente da república, né, que é o chefe da nação, ele tá orguloso que
ele é o presidente, o ministro da guerra e vem vindo, caindo, caindo de um pro outro, e vem
vino vem vino até que chega naquele mais pequenim, e um mais do que outro tem orgulo de
sê mais... Um pobrim igual eu num posso ir lá falar com o presidente, falar com o maior... E,
perigoso até eu ser preso, tudo discriminado lá que eu fui fazer aquela visita e num tem
autorização... Isso vei de lá. Desagradou a Deus, que Deus queria uma egualidade. Num tinha
um mais que outro. Se ele administrou que era pra ficar lá administrando os anjos era só
administração... Mas é uma coisa só... Bom, aí ele orgulou dessa parte, né, isso caiu aqui na
terra que tá aí no mundo, né... Aí depois ele orgulou dele ter aquele poder de mandar e os
outro obedecer, né... No mesmo orgulo de ele mandá e os outro obedecer, aí o sr. vê, caiu aqui
na terra naquela intenção mais cruel pelos outros, né... Que os sr. vê, hoje em dia os amilitar
aí, ó, né, pega um coitado aí, se ele tá errado mereceu apanhar, mas se ele num tá errado ele
apanha sem merecer... Que desagradou tudo que caiu de lá aqui na terra, né... Ele continuou
ainda lá, né... E aí, Deus chegou e aí falou pra ele, viu que num dava mais certo ele lá, né... Aí
Deus já tomou a providência Divina, a Providência Eterna, já de criar semelhante aqui na
terra, em criar semelhante dele aqui na terra, porque já inxistia o Pai o Filho e o Espírito
Santo, na providência dele. Entonce ele falou pro Luciufer, ele falou óia... Falou pro Luzbelo,
né, antes dele ser Luciufer: Luzbelo, cê fica aí no trono, eu vou levar todos meus anjos... E
vou descer lá na terra e criar nosso semilhante... Aí ele falou ó, eu num fico não... Ele, porque
num fica? Porque, num fico... ó, desobidiência que caiu aqui na terra, né... Hoje o pai manda
um filho, filho cê vai fazer, ah pai, eu num faço, vei daí, né? De lá... Aí entonce Deus falou,
porque cê num fica? Ele diz é porque tenho medo... Num inxistia medo, porque ele era um
anjo lá no trono de Deus, né... Mandasse o leão deitar o Leão deitava, tudo, né, ele mandava...
Mas ele disse que tinha medo, ele mentiu, então a mentira caiu aqui na terra... Mentiu lá que
tinha medo... Num inxistia, né... Mentiu pra Deus... Inventou a mentira... E aí entonce Deus
viu que num dava certo, e aí Deus foi... A bondade de Deus num tem fim, né... Deus disse
não, cada um que eu criar na terra eu darei um anjo de guarda, né... De cada um que eu criei
eu darei um anjo de guarda, então eu vou te dar um anjo de guarda... Pega essa água benta,
que a água já existia no poder de Deus, já, feito anjo, no poder de Deus... Aí Deus diz ó, cê
divide, tira um pingo d´água e joga e transforma em anjo e ele fica com você. Um pingo né...
E aí, ele panhou todos os anjo e desceu. Criar Adão lá na terra. E ele vai, pega um pingo d
´água e joga e esse pingo d´água transformou num anjo e ficou perto dele... Aí ele já teve uma
má intenção com Deus, que tava aqui na terra. A má intenção, hoje em dia tá aqui, né... Aí
então ele diz, já pensou errado, né, de fazer muito anjo pra guerrear com Deus, né... E foi
jogando pingo d´água, foi dividindo a água, que qualquer um de nós divide o pingo d´água...
Ele foi dividindo, jogando e aí aparecia o anjo, né, conforme foi as orde de Deus, e aí foi
ficando anjo com ele e foi milhar e milhar de anjo, e aí já pensou que quando Deus chegasse
ia já guerrear e tomar o trono. E quando Deus criou Adão lá na terra de água e barro e soprou
no rosto de Adão e deu ele vida e alma, né, e a pessoa de Adão, que Deus volta, chega lá e ele
num quis entregar o trono mais... Deus disse: Levanta do trono, ele disse num levanto. Aí ele
disse já tenho anjo pra guerrear contra vus. Aí Deus falou levanta levanta de meu trono...
Num levanto... E aí Deus foi e jogou ele do trono, né... Quando ele jogou ele do trono, aí, o
Anjo São Miguel já desceu com ele... Aí Deus disse assim: Levanta do meu trono, Luciufer
(Anjo Mau). Aí já não foi mais Luzbelo, foi Anjo Mau, né, Luciufer... E os anjos de Deus, os
anjo e arcanjo já desceu com ele... Aí desceu anjo três dia e três noite... Aí Deus foi, até
passou a divisão que Deus criou o mundo e dividiu em três... A balança eterna... Quando
passou aquela balança pra baixo, a cruz, que ele dividiu o mundo em nome dela... Aí quando
passou pra baixo, Deus falou: Pára. Aí parou. O que tava na terra ficou, o que tava no espaço
ficou e aí ficou esses anjo, né, tudo aí no espaço. Pra cima da cruz só os anjos de Deus, que
foi do lado de Deus... Então isso foi a guerra lá... Então os que era dele desceu... E esses anjo
que desceu, até hoje, nesses centro espírita, coisas erradas, né, contra Deus, eles chama esses
anjo, eles tão descendo ainda. Inventando coisa, né... contra as ordem de Deus. Bom, aí, Deus
viu que... Já num ficou mais anjo mau, né... Só os anjo bendito... Aí Deus viu que Adão num
podia viver na terra só o home, né... Aí falou: Num é bom o home viver só... Ai chamou todos
animais em volta dele, pra criar uma companheira, mas Deus viu que ali criasse só animais ele
ia perseguir, né... Deus. Deus foi, mandou Adão drumí, aí tirou a custela, minguinha de Adão,
né... Aí fez a Eva... E deu ela vida e alma, do mesmo corpo de Adão, da mesma carne, do
mesmo osso, e deu espírito santo, né... Aí Deus disse: Óia Adão, pode cumê de todas as fruita,
aqui no Paraíso, mas só das duas árvore do bem e do mal cê num toca nelas. É uma do bem
outra do mal... e essas árvores, uma se comesse num morria... E a outra, se comesse, morria. E
aí Adão tinha que respeitar essas árvore, porque essas árvore é aqui ó, o respeito, o
sacramento de Jesus Cristo, né... O Divino Sacramento, ocê vê, o casal casa, tem que respeitar
tudo de acordo com Deus, que é aquela passagem que eu falei que nós tem que obedecer, né...
Tá bom, nas história que eu evinha contando, então o Demônio não tinha, Luciufer não tinha
poder de pisar na terra santa, lá do paraíso. Aí ele escolheu um animal de muita raiva pra ele
incorporá nele pra ele chegar até naquela árvore... Atrair a Eva, que Adão ele viu que num ia
atrair, que o Espírito Santo num deixava, né... Aí ele incorporou na cobra e ela foi até lá... Ele
num tinha direito de tocar na terra mas a cobra tinha, né, Deus tinha dado orde, né... Aí
chegou na árvore, a cobra subiu e aí a cobra falou por intermédio dele, né, do Luciufer. Aí
Eva foi passando e ela chamou. Aí ela chegou: Por que num come dessa fruta? Aí ela disse
não, num pode que Deus num deu ordem... Que o dia que nós comerá morrerá, Que o Deus
diz que num pode comer... Aí ela, não, come que é porque ele num quer que ocês seja igual
ele. Se ocês tocá nessa fruita, comê ela, cês fica sendo igual a Deus, cês enxerga tudo, cês têm
poder... Então come, procê ver... Aí foi iludindo ela... Aí então ela foi enganano Eva, foi
enganação muito difícil de Eva sair dela, né... Foi enganano até que Eva resorveu a comê...
Mas porque Eva enganou, porque já foi levano no sentido, né, naquilo que ela tava falano,
né... Daí foi convenceno ela, convenceno inté ela convenceu Eva e ela enguliu a fruita.
Quando Eva tocou na fruita que cumeu, enguliu, aí Eva já tava viveno o inferno em vida... Já
num tinha mais perdão, porque a fruita passou o coração de Eva pra baixo... Aí a serepente
falou: Entrega essa outra a seu esposo. Aí, quando Adão chegou Eva pediu: Ó Adão, come
essa fruita, ele disse não, num podemo, Eva. Mas eu comi, e ele num pode... comer essa
fruita... Deus num deu orde, se comê nóis morre, comerás morrerás dessa fruita. Nós num
pode ser contra Deus... Ela disse não, a serepente disse que se nós comer a fruita nós tem
poder, fica enxergano tudo, eu já tô enxergano Adão... Aí foi iludino Adão e Adão já veno
que ia ficar sem ela, sem a companheira, porque já tava nos lado dos mal, né... E Adão ficou
sem querer desobedecer ela que senão aí ficava separado os dois, né... Aí Adão resolveu pegar
a fruita e comer. Aí quando ele mordeu a fruita que tirou um pedacim, que inguliu, ele
rependeu, mas no ele fazer força pra ingulir ele rependeu de fazer aquilo, né, e ela parou, e
esse osso que nós tem, né, a fruita parou e ele foi, nessa hora ele tremeu desse rependimento,
tremeu e concentrou com o Divino Espírito Santo, aí o Espírito Santo tirou ele do mal, né...
Mas inda ficou Eva, né... Mas no ele repender ele salvou ela, né... Pensou? Que era feito da
mesma carne, do mesmo osso, do mesmo espírito, né... Aí ele salvou ele e ela... No ele salvar
ela no rependimento, aí Deus fez as providências, lá do céu, né... A história é cumprida pra
chegar nessa partezinha que eu tô falando agora. Aí então nas Divinas providências, Deus já
criou a Virgem Maria nas providências dele que hoje cê vê o retrato lá no altar, a Santíssima
Trindade... Aí já vem as providências de Deus, os poder da Virgem, pisado na cabeça dele, do
demônio, derrotando todo o poder dele... Então, nesse poder aí da Nossa Senhora d´Abadia,
né, que veio na Divina providência, ele num tem direito acima dos pés de Nossa Senhora nem
a grossura duma folha de papel... A Virgem Santa Imaculada, que veio as providências de
Deus, né, a Santíssima Trindade... Aí veio as providências de Deus, ainda não existia ela, né,
essa que vem pisando a cabeça da cobra é a mesma que vem nas providências de Deus, as
Divinas Providências... Aí, que que Deus queria criar, pensava já tava criado, né... Aí já criou
ela na Divina Providência, e Ela já veio nos poder dela pisando na cabeça da serepente e
fundou os poder, né... E aí, Deus vai, chamou Eva... Nas Divina providência de pisar na
cabeça da serepente Deus chamou Eva, e Eva num queria vim... Chamou, chamou até ela
arresorveu chegar... Quando ela chegou Deus perguntou: Uai, porque eu te chamo cê num vei
Eva? – Eu tenho vergonha, eu tô nua... Uai, mas por que que ocê tá nua, comeu da fruita do
bem e do mal, pra que que fez isso, né? A história tá na bíblia, o sr. sabe, mas pra mim contar
mais segredos do significado eu tenho que contar... Aí então Eva teve que confessar... Aí foi a
primeira confissão que existiu... Aí Eva confessou, falou é porque... Deus perguntou por que
cê fez isso? E ela, por causa da serepente me enganou... Aí, olha, a primeira confissão, né...
Deus perdoou... Aí Deus foi chamou Adão. Aí Adão veio, Deus percurou ele, por que ele fez
aquilo... Aí ele confessou... Ele disse é que a companheira que o Sr. me deu... me atraiu, né.
Pensa bem, né... Atraiu ele, vem a traição, né... Então Deus foi perdoar Adão. Falou: Óia
Adão, eu te perdôo, mas se você deixar sua companheira ser mais do que você, eu fecho as
portas do meu reino para vus. Óia, cê vê, Ele fechava, né... Não podia a feminina comandar o
masculino, né... Era na orde de Deus, né... Aí Adão se sentiu feliz naquela hora, que a
companheira já tava, voltou pra ele, né, aí Deus falou: Pode comer de todas frutas mas essa do
bem e do mal não toca mais nela, e virou para Eva e falou pra ela Você vai sofrer, seus filhos
vai sofrer e você, Adão, vai viver com o suol do seu rosto, remover a terra, viver com o suol
do teu rosto. E seus filho sofrer com os pés no espinho, e pode multiplicar e encher a terra de
cristão... Bão, aí, o primeiro filho de Adão foi Caim e já nasceu com a natureza do lado da
serepente, foi o primeiro, né, então já foi puxando a mãe... E aí o segundo foi puxando Adão...
Obediente, foi Abel, o segundo foi Abel... Aí os dois criou, mas Caim mau demais, cheio de
raiva, judiando com Abel, e Abel muito cordeiro, num judiava com Caim, tinha aquele
coração limpo, né... E Caim tomava de conta das plantação de trigo e Abel tomava de conta
das oveia. Mas é que Abel tinha mais ciência com Deus, que é aquela passagem que eu disse,
Abel obedecia mais, fazia só o que Deus queria. Caim já fazia o que Deus queria e judiava
com Abel, então contrariava Deus, né... respondia a mãe. Aí então Adão raiava, eles obedecia,
mas até chegou um dia que Deus chegou pra visitar Caim, né, visitava Abel e visitava Caim,
visitava mais Abel, aí Caim foi e contrariou, já teve inveja, né, já continuou a inveja, que
Deus foi visitar mais Caim. Aí essa inveja foi indo, Caim chamou Abel num cerradão lá e lá
matou Abel, e aí enterrou Abel. A terra era virgem anté esse dia... Esse dia a terra já num foi
mais virgem, aí já foi sepultado o corpo de Abel. Aí então, aí Deus chamou Caim na
confissão... Aí entonce era a terceira confissão. Aí Deus falou pra Caim, cadê seu irmão? Aí
Caim falou eu num sei... Mas é que o sangue de Abel clamava Deus, clamava Caim me matou
e eu quero vingança, né. O sangue de Abel queria vingança, aí Deus chamava Caim, que que
cê fez com seu irmão? O sangue dele tá chorando vingança. Ele diz, não, num sei dele, ele
sumiu. E num confessava, né. Mas é que naquilo que ele foi afastando da confissão, aí ele foi
aproximando mais do lado mau e ficando mais distante de Deus. E foi indo foi indo, Deus
chamava ele. Anté que um dia, ele tava inté colhendo trigo, quando ele pegou o fecho de trigo
pra por na cacunda, foi na hora que Deus vei descendo pra pedir ele a confissão, ele olhou pra
Deus aí ele já teve medo de Deus... Teve medo e correu. Correu, e aí... correu da confissão. E
foi prumas terras estranhas, que lá onde Deus não habitava, o Espírito Santo não habitava
naquelas terras. Aí lá é que ele adquiriu uma fia, e essa fia ninguém sabe como é que foi essa
fia, que só Deus sabe... Nem o papa num sabe como é que ele adquiriu essa fia lá. Num tem
poder pra nós cristão saber como é que foi essa fia dele lá. Só que aí Adão teve mais vinte e
quatro filhos, doze home e doze mulher, casaram cons ons otro, sabe. Que num tinha com
quem se casar, né... A orde de Deus, né, então se casaram. Então quando Caim vei visitar a
mãe dele já trouxe a fia nos braços. Essa fia de Caim casa com a família do irmão, né, dos
irmão, mais vinte quatro filho. Aí se casou uns cons ons otro, misturou. Então onde é que as
escritura sagrada fala Deus tem filho e o Demônio tem filho. Nós num sabemos aí, só as
providências de Deus sabe quem é, né... Mas aí Deus escolheu a Virge Maria pra ser mãe do
bento filho dele, e aí enviou o filho dele pra terra, né, pra salvar o mundo, e chegou ninguém
conformou e não tem obediência, né. E aí foi aquela política, né, a política do povo com, do
povo de Herodes com o povo de Nossa Senhora... Aí foi essa política, dessa política, até que,
tá tudo escrito na bíblia tudo, mas eu tô só contando essa procês ter orientação lá. Aí então
que a hora que Jesus chegou perante a Pilatos, né, aí o povo muito mais gente, numa voz só
disse crucifica Jesus solta Barrabás, que Pilatos perguntou crucifica Jesus ou solta Barrabás.
Aí nessa hora foi que Jesus Cristo já entrou pra ser crucificado, porque se o povo grita não,
não crucifica Jesus, Pilatos deixou à vontade do povo, né... E a vontade do povo, nós tá
sofrendo com ela até hoje. Que nós vota num candidato aí, ele mete a justiça que escora ni
nós, aí vem outro nós torna votar, nós nunca acerta, cê vê, né... Então Nossa Senhora d
´Abadia vem de Adão, que aí mais de dois mil ano foi que Jesus escolheu ela pra ser a mãe,
né, de Jesus né... E aí, existe muita santidade, muitos santos antes dela, tudo santificado, até
que nasceu ela. Aí ela nasceu, vinda da família de Adão, né, porque ó, eu pulei uma história,
que naquela hora que Deus perdoou Adão e Eva, então, que ela recebeu o perdão, aí foi e
derrotou a traição, a serepente, que Deus deu aquela orde. Mas é que aí, continuou esse
nascimento dos vinte e quatro filhos, que foi a mistura, aí veio sendo os outros santos, e vei
essa geração até que chegou a barca de Noé, e aí também na barca de Noel o povo num
obedecia Deus e aí Deus já chamou Noel pra fazer a barca, ninguém obedeceu, veio o dilúvio
né e cabou com o povo tudo e começou a geração de novo. Aí Deus escolheu ela, pra ser a
mãe do bento filho dele, aí já passou pro Novo Atestamento pela barca de Noel. E aí ela
nasceu e criou e viveu aluminada de estrela sem a mancha do pecado. E aí então até o dia da
anunciação, que aí é uma história que eu tenho que contar já sobre a folia. Então, aí o guia,
pra ter um significado grande na ciência dele, ele tem de primeiro fazer a sodação do
nascimento de Jesus. Encontra um presépio ornado, um presépio como foi lá na lapa de
Belém, tava lá todo completinho lá, o presépio onde Nossa Senhora deu à luz.Então, porque
no nascimento de Jesus na Lapa de Belém, os três Reis Magos foi visitar. O Pai o Filho e o
Espírito Santo, as três pessoas da Santíssima Trindade. Mas o Pai e o Espírito Santo, mais o
filho aqui na Lapinha de Belém, nasceu da Virgem, a segunda pessoa... Aí Deus escolheu três
pessoas pra fazer a visita, de acordo as três pessoas dele, né. Isso é meus fundamento que ele
me ensinou, né... Então foi Santos Reis, muntado nos animais, né, fazer essa visita, foi a
primeira folia que existiu, primeira folia, aí fizeram a visita lá, né, e aí eles foram voltar, né, e
aí vai, quando Jesus tava já grande, já escolheu os apóstolo, foi a segunda folia, de Jesus e os
apóstolos, segunda folia, que é essa que nós estamos comandando hoje, né, aí é a segunda
folia, Jesus e os apóstolos. Quando chegava lá na frente da casa, batia um zabumbo, né, aí
avisando que ele ia chegando, pro povo num assustar, e aí chegava com os apóstolos e aí já
tinha surgido a de Santos Reis, começou, procê ver, lá em Minas, essa tradição lá é, pra eles é
ela, né a do Divino Espírito Santo é a nossa aqui, aí nós já vai, e a do Divino Espírito Santo já
dá cobertura todinha da outra, né... Bom, aí, agora o guia pra ser ciençoso, cientista mesmo,
aprofundado nas providências de Deus, recebido do Divino Espírito Santo aquele dom, né,
então ele vai sodar um presépio, que é a primeira sodação é do presépio, né, essa é antes da
sodação do cruzeiro, que foi o nascimento, aquilo que eu falei, os mistério gososo, que é o
nascimento de Jesus. Então o guia, pra fazer a sodação ele tem que lovar o Pai Eterno, o
Divino Espírito Santo e anunciar a criação do mundo. Ele fala assim, Deus quando fez o
mundo, o Pai Eterno que primeiro fez a luz do dia, bem assim:
Maria se tremeu
Com essa anunciação
Que ter um filho
Perseguido do dragão
Lá no alto do calvário
Ele remiu nossos pecado
Nos braços do cruzeiro fundo
Com os santos pés e mãos cravados
- Não vamos louvar, vamos sodar. Lová é lá em cima e aqui é sodar. Que nós num pode lovar
quem morreu, né. Nós tem paixão, né?. Deus vos salve. Aí agora cê pode falar Deus vos
salve, né... É bom falar assim:
- Aí incensou o rosário, né, aquela parte... Veio da terra, do nascimento, até incensar o rosário.
E também cê pode dividir o cantorio, é simples né...
- Cê deixou aquela parte do Velho Atestamento tudo pra trás mas pega daí, né... É a ciência,
né... E aí, por exemplo, procê incensar o rosário fala:
Do nascente ao poente
Do sul anté o norte
Vamo lovar os mandamento
Jesus e os Apóstolo
- Tá incensado, né... É a obediência, num pulou o rosário, cê tá incensando ele... Nem que seja
um verso... Dessa coluna toda de verso, tem que pegar um né... A partir daí pode subir pro
resto do altar... Puxou o que veio da terra, que é aquela passagem que Deus criou Adão lá,
né... Evem uma coisa complicada com outra assim, ói, e tudo de ciência, né... Cê falando uma
coisa que vem já sodando as outras tudo passado, né... Na vontade do pai eterno, né...Jesus
quer que faz a vontade do pai... Então isso aí que nós tem essa ciência toda, dessa sodação...
Mas ó, cê num pode pulá o rosário porque, cê sabe, Jesus desceu num pingo de sangue do
coração do Pai Eterno, né... Entrou na entranha da Virgem Maria, escondeu no ventro dela e
nasceu dela, né... Igual foi um cristão aqui, né... Aí ela ficou sendo Virgem do Rosário, ela era
Virgem Santa Imaculada, ficou sendo Virgem do Rosário, Aí, depois do nascimento, Senhora
d´Abadia, e depois o pescador pegou a imagem lá dentro do mar, pegou uma parte da
imagem, a outra, a outra e foi colocado tudo na imagem de Nossa Senhora Aparecida, o
pescador pescando lá dentro do mar né, que aquela imagem que tá ali, Senhora Aparecida,
né... Pois a gente tem essa ciência tudo pra fazer a sodação... Tem que buscar um verso sobre
essas passage tudo... Os três rosários é porque, óia, o terço completo é quinze mistério, e
quinze glória Pai e cento cinqüenta Ave Maria, aí pra dividir em três parte, fica sendo cinco
mistério, cinco Pai Nosso e Cinqüenta Ave Maria, aí dividiu né... Mas pra reunir tudo (...) Pra
dividir, nós soda os cinco mistério gososo, que é do nascimento de Jesus Cristo, (...) até a
entrada de Jesus em Jerusalém, que a chegada da folia no cruzeiro é essa passagem lá... O
Divino, o terceiro mistério glorioso, é a vinda do Divino Espírito Santo sobre a Virgem Maria
e os Apóstolo... que nós chama ele, invoca ele, chegamo lá no cruzeiro pra sodar os
padecimentos, e aí vai chegar no altar e já encontra o rosário, né... Evem os mistério, e a
complicação, complicando tudo, mas é incensando o rosário, os mistério... Chegando lá,
quando viu aquilo lá num pode pular, pra ver tudo certinho, né... E a imagem da Virgem com
a Santíssima Trindade... Essa ciência já veio de quando Deus, na divina providência lá já
criou ela na divina providência, que ainda ia acontecer tudo que tá aí dois mili ano, que
passou pela barca de Noel, depois que foi... sabia que ia acontecer tudo já tava... Aí quando
ela concebeu o Menino Deus, ela já ficou sendo uma pessoa da Santíssima Trindade, cê
entendeu? É porque tem as três pessoas... Pai Filho e Espírito Santo, e ela concebeu, passou
por ela, por ele passar pelo ventro dela ela já subiu e ficou sendo da Santíssima Trindade lá...
E a toalha, que tá no altar e vai pro cruzeiro... A toalha... Jesus tava carregando a cruz, e ele
caiu com a cruz, e os judeu, era mau demais, então deixava Jesus abandonado pra lá e eles ia
beber as bebidas pra lá, fazer a farra deles e voltava e fazia Jesus levantar, carregar a cruz... E
a santa veio, uma mulher pecadora, né, Verônica, e ela veio e ficou com dó de Jesus, e eles
deixou Jesus lá e ela veio com a toalha e passou no rosto dele, enxugou o rosto dele... Quando
ela cabou de enxugar o rosto dele, enxugando o sangue, o suol de Jesus, ela abriu a toalha tava
as face dele na toalha... Aquela toalha, as face de Jesus, ficou na toalha dela... E aí aquela
toalha, então ela vai do altar fazer uma apresentação do altar no cruzeiro, a cumprimentação
de Nossa Senhora e a Santa, no cruzeiro, né... Porque ali evem o retrato do Espírito Santo, e
evem nós cristão vivo, então o dono da casa vem apresentar pra nós, receber nós, e a toalha
vem representar o altar pra nós... Ele vem representar a casa e a toalha vem representar o altar.
Cê vê, era um pano, uma toalha um pano, né... A Santa Verônica enxugou o rosto de Jesus e
apresentou as face dele na toalha, né... E ali tá o retrato do Divino Espírito Santo, né, na
bandeira, alvorado, aí ela vem, primeiro tá abraçado com o cruzeiro esperando o Espírito
Santo, né...Ela vai abraçar o retrato, né... ali então do cruzeiro abraça o retrato do altar.
Nós, guia, nós não podia fazer, mas nós seria obrigado... Que nós arvora a folia pra
cantar e lovar a Deus e fazer todas as sodação... Mas tudo que nós encontrar, nós tem que
saber como é que nós canta, lovando, né, e confirmando a vontade do povo, e fazendo a
vontade de Deus no céu. Só que o guia tem que ter ciência porque ele tem muita dificuldade
pra cumprir os mandamentos de Deus defendendo das partes malignas. Então, eu acho que as
igrejas deveria tomar uma providência e num aceitar muitas folia, né. Folia ser soltada só de
dentro de cada uma igreja. Podia ser um promesseiro lá de longe, mas ele tinha que vim ao
padre, pedir a folia e fazer ela aquele ano da igreja, né, e o padre acompanhar. Deveria ser
assim, que o Divino Espírito Santo, cê vê que nós temos que ter um grande respeito, uma
grande obediência, uma grande ciência, que é a luz do mundo, que é o espírito do Pai e do
Filho. Nossa salvação é Deus mesmo, né... Aí então cê, o padre tá aqui pra fazer todo esse
trabalho. Então ele devia que o Bispo emporibir a folia assim, sem ter uma promessa, então
ele tem que vim e tirar de dentro da igreja e girar, né.
Eu fico muito alegre do meu trabalho, mas fico muito triste porque hoje em dia tá
difícil de ocê fazer uma coisa na vontade de Deus e Nossa Senhora, que tá tão misturado, né,
num tem jeito, né... Aí então, minha vontade era assim: a folia, arvorou ela, num pode ter
dança rastapé, suaré, ela tem que ser só dança... Pode as mulher dançar, mas o catira... Uma
dança assim que num tá muié abraçada com home. Essa pertence à parte bendita, né. E a
dança suaré pertence à bendita e maldita, essa mistura, porque tem muitas pessoas que vem
num é por causa do Divino Espírito Santo, vem por causa da farra, pra beber a cachaça e
farrear, e fazer a festa, e já vem com o sentido pra dançar, muitos casal que recebeu o
sacramento nas igrejas, gosta da festa, sua esposa, às vez um lindo esposo, a esposa, e vão ali
pra festa e daqui um pouco ela, de mocinha já dançava, e depois ela casou, o marido num
importa que ela dança, ali ela já vai ser abraçada por outra pessoa, que tá até com uma má
tenção dela, e aí ela vei centivando uma coisa, como eu falei, lá da traição, lá no paraíso, e ali
quando dá fé o espírito mau já tá jogando nela as perdição, e ali ela já num vai mais ser uma
linda esposa, que o marido já ciúma dela por qualquer coisinha, e já vai a tentação já vai
tomando de conta. A bebida é errado também... Mas as dificuldade pra hoje em dia, eu fico
triste por isso. Porque cê num vê a ver uma festa... Num tem nenhuma festa nas igreja que não
tem os butiquim em volta, e aí vem essa autorização... Paga o imposto e então vão lá e coloca
um butiquim e vão vender as cachaça, né. E aí o padre num pode imporibir, que aí já vem
uma parte lá do Herodes, né, que é a lei dos home, e o padre o que que ele vai fazer? Peleja
com o povo, óia é assim, a bebida num dá certo e tudo, mas ele tem que conformar, que se ele
num conformar a festa num inxiste, mas eu fico triste porque a festa, quanto mais maior, mais
a traição tá aí misturada no meio. Então a pessoa, da hora que ele bebeu a cachaça, ele já quer
fazer coisa errada, mas a cachaça num é a maldade. Maldade é o coração da pessoa, que se eu
sou uma pessoa bão, de acordo com Deus, eu bebo meu golinho de pinga e eu quero é pegar
minha viola e rezar a Deus. E o outro, maldoso, bebe um golim de pinga ele já quer é ir brigar
com o outro, mostrar a valentia dele, experimentar o revórve dele, já qué ser lá em cima na
valentia. Eu fico triste, nós chega, invoca o Espírito Santo, faz um cantorio tão profundo, aí
depois vem, dança um catira, tá tudo bão... Daí a pouco vem essa dança no meio, chama o
demônio pra trás, né. Nós expulsa ele, daí a pouco a dança chama ele pra trás... Lá evem ele,
tentar a vida, destruir... Nós corre com a tentação daqui a pouco ela já voltou, que vai
acontecer.
ANEXO B
7 – O Transporte.
8 – Folião na estrada
9 – Para receber a Companhia.
10 – Evoluções de chegada e saída
11 – Cruzeiros e ruamentos
12 – A chegada da bandeira
13 – Cantorias do cruzeiro
19 – O terço
20 – Contritos devotos
21 – Catiras e catireiros
22 – A roda da raposa
23 – Pagode
24 – O truco
25 – Rancharias
26 – Estar juntos
27 – Desarvorada
Cantoria da Alvorada
E é as primeiras palavra
E a primeira ciência
E o Espirito Santo
Que é um dos três mistérios
E eu alvoro os instrumento
E sua missão importante
E eu alvoro os Contra-Guia
E os belos ajudante
E alvoro os procurador
Os regente, e os tropeiro
E o mestre do violão
E o mestre pandereiro
E o Padre Real,
Ó me escute, pedido que faço
Podemos alevantar
Recebendo essa proteção
E a imagem de Jesus
Que devemos respeitar
E em presença do Divino
E os raio da luz suplente
E os devoto morador
Que deu essa alvorada
E o Divino dê recompensa
Da sua delicadeza
Viva os folião!
Viva!
Cantorias de visitas
E dá um bendito descanso
Na sombra da divindade
E arrecebe a recompensa
Na mesa da comunhão
32
Esta cantoria foi recolhida no giro de 2004 – Sempre mantendo a estrutura de repetição do primeiro verso de
cada estrofe. Nas estrofes com três versos esta repetição não acontece. Mesma prática de o guia e seu ajudante
cantar a estrofe e contra-guia e seu ajudante repetirem com as mesmas palavras.
Pra nós fazer a sodação
Me dá os poder meu bom Jesus
E lá na lapinha de Belém
E a estrela alumiou
O Bento filho de Maria
E devota aniversariante
Panha esse raio de flor
E regente e procurador
E panha as vela do cruzeiro
Pra lumiar a procissão
Viva a aniversariante...
Viva...
Cantoria do altar
É padroeira do Brasil
É a mãe de nós Cristão
E lovamos os ornamento
Com real contentamento
E o senhor e a senhora
Com sua família inteira
Bendito de mesa
Cantoria de despedida
Pai e Filho e Espírito Santo
Na glória bateu o sino
E a Santíssima Trindade
É dona de todas belezas
E os mistérios do Divino
Retratado nas bandeiras
E vei dá agradecimento
Na casa onde pousou
E os devoto donos da casa
Seus louvor e suas bondade
E o Divino te devolve
Muitas vez multiplicada
E o Divino agradece
A sua delicadeza
E despedida despedida
Do bom Deus do infinito
E despedida despedida
Do senhor que veio da glória
E despedida despedida
Do Santíssimo Sacramento
E o Divino se despede
Bate asa e vai embora
E despedida despedida
Do Pai eterno real
E despedida despedida
Nas horas de Deus amém
E família religiosa
Sei que seus coração chora
Rezamos a despedida
Tudo em nome de Jesus
A semelhança da toalha
Foi colocada na cruz
E rezamos a despedida
Com nossa fé verdadeira
Cantoria de Despedida
Cantoria da desarvorada
E na igreja abençoou
Os mistérios do altar
Depois da ressurreição
Na terra inda ficou
Desalvoro e agradeço
Os trabalhos dos tropeiros
Eu desalvoro e agradeço
Os trabalhos dos regente
Eu desalvoro e agradeço
Quem recebia as ofertas
E desalvoro os instrumentos
Que tocou na procissão
E desalvoro e agradeço
Os mestres do violão
Desalvoro e agradeço
Pelo santíssimo sacramento
E o Divino agradece
Todos que acompanhou
E os anjos tá te esperando
E ele tá se despedindo
E se eu vos agravei
Chorando eu peço perdão
Mulher (Fora de cena) – Entra Chibante, vai Brioso. Vai boi... Vira, vira, vira... Chibante,
Chibante... Tá tretano, boi véio? Vem Vermeio, vem, vem... Vem Chamoso, rem... rem...
rem... Sai, Futrica... Sai, sai, sai... Qué apanhá? Vai Chibante, vem Brioso...
Mulher –(Chamando animais invisíveis à sua volta) Vem Vermeio, vem... Vem Chamoso,
rem... rem... rem... Vai Chibante, entra Brioso, vira, vira, vira... Ôôôôôaaaa. Sai, Futrica, sai,
sai... Saaaaiiiii... (Corre atrás de uma cachorra invisível. Vira-se para a platéia). Noite... Já
cabô a sodação do artá? Ara!!! (Vai até o altar, se ajoelha, beija o crucifixo e persigna-se.
Volta para a frente e se dirige à platéia) Inderna que ele morreu... Sabia não? Morreu. Meu véi
morreu... (Retoma o jogo dos animais invisíveis. De novo pra platéia) Inderna que ele
morreu... Inderna de intão meus bicho tudim garraro a vortá. Chibante, Brioso, Futrica,
Vermeio, Chamoso. Fica tudim zucrinano meu juízo, fazeno eu lembrá das coisa que o véi
contava. Dois dias antes dele morrê mesmo, ele tava contano as coisa lá da Cachoeira, um
arraiá véio... com as casa tudo caino as parede. Tinha uma fogueira queimando, esse povo
arranjou uma brigaiada, que mataro Orozino. Orozino, fio de João Cuiabano... Tinha um tal
de Bigodeiro...que era umas briga já antiga dos dois... Era noite de São João... Essa
fogueirinha tava quase cabano de queimá, quando lá vem chegano Bigodeiro... muntado numa
mulona baia, muito bem arreada, que ele num era de andá em cavalo pangaré. Quando correu
até ele um veinho e: (imita) Óia, Orozino diz que vai bater no sinhô... (Imita Orozino) Que
que há de fazer? Desapiou da mula, amarrou ela num toco de calipêro que tinha assim perto e
veio chegano pros lado da fogueira, que tava assim já nas brasa. Quando lá veio o Orozino:
(imita) Ô nêgo, cê qué apanhá travez? E baixou o rabo de tatu... Mas óia, nem desceu a
primeira chibatada e já deu cum a peixeira debaixo do sangradô... Quando ele tava caindo
assim pro lado ele gritou: (imita) pai, vem cá vê eu cabá de morrê. João Cuiabano tava assim
numa cozinha perto, inté cumendo um pedaço de pão véio, veio correndo, segurando a cabeça
do filho, que foi caindo e: (imita) Pai, vinga minha morte...
Foi desse jeito que o Véio contou... Do jeitim que eu tô contano procê... Nem uma palavra a
mais nem uma palavra a menos... João Cuiabano foi assim numa vendinha assim perto, um
comércim que vendia quais de um tudo, e comprou uma lata de querosena. Saiu perguntano
pros povo onde é que tava o tar de Bigodeiro... Mas ninguém queria contá, né, que todo
mundo sabia que ser uma desgraceira doida, um petêco só, um aranzé daqueles. Mas depois
de muito perguntá, ele encontrou cum Tiliano Cambêta, um véim meio bobado que tinha e:
(imita, meio fanhoso) Hum, hum, hum... Bigodeiro? Ué, Bigodeiro tá tocano uma rocinha lá
prá riba do córgo, nas terra do Véio Amador... Que era as terra que o cumpade Amador tinha
dado pra ele tocá na meia. João Cuiabano saiu negaciando, negaciando, inté que achou um
trierim no meio do mato e foi batê na tar da rocinha. Chegando lá, ficou na tocaia inté que viu
que era a roça do nêgo mesmo... Era inté tempo de batê a paiada... Ai ele despejou a
querozena tudim nos trem do nêgo... Nas coisa de cumê, nos trem de durmí, nos esteio da
casa, um ranchim de pau a pique, no meio das terra de arroz... Quando foi de tardinha com o
sol assim (aponta o sol) quase entrando, lá vem Bigodeiro do serviço... Inté cuma cabaça
d’água na mão... João Cuiabano deu um tiro no nêgo... Mas num era pra matar não, que ele
num queria que ele morresse de tiro... Bigodeiro caboclo correu pra dentro de casa, decerto
pra pegar uma arma também, né, que naquele tempo era tudo na carabina, o tar de Cuiabano
tocou fogo no rancho... E ficou só de longe, oiando o home morrê queimado... Morreu
esturricado... Diz que esse tar de Bigodeiro inda deixou uma filha... Como é que era mesmo o
nome dela, meu Deus? Ai que meu juízo num ajuda mais... Zimbica... é... Zimbica... Diz que
essa tar de Zimbica inda casou e mandou matar muita gente pra vingar a morte do pai dela...
O João Cuiabano... Foi quando diz que apareceu o Zupéro... É. Zupéro... (Som. Bendito de
mesa cantado dentro da casa) Óia só, esse povo já tá cantano o Bendito de mesa e eu nem
jantei ainda... Cês dá licença um mucadim que eu vou arranjá um de cumê ali, viu... (Vai até o
carrinho, pega a vassoura) Ô, Futrica, cê dá licença que eu vou arrumá a mesa... Dá licença,
Futrica... Sai Futrica, sai, sai, Saaaaiiiii..... Qué apanhá, cachorra mal inducada... saaaiii...
(varre um canto, no centro do palco. Vai até o carrinho, pega toalhas e estende no chão. Volta,
pega um pão, uma faca, copo e garrafa. Corta o pão, cantando o bendito de mesa... Leva a
mão na cabeça, retira um piolho e mata. Pega um pedaço do pão...) É servido? É broa de
mio... Foi Dª Nirza que deu, lá no pouso passado... Êta muié boa... Dona Nirza, muié de seu
Quinca... Nunca vi. Óia, ela ajuda nos pouso tudim. Pode ir lá dentro... Aposto que ela tá na
cuzinha, ajudano as muié... (Joga um pedaço de pão no chão) Toma Futrica, come, pode
cumer... Onde é que eu tava mesmo? Há, sim... Zupéro... Um ciganão forte que viveu muito
misturado no meio dos povo lá... A mãe tamém conheceu muito ele. Ele ia muito lá pras
bandas do Quilombo, do Ritiro... Esse cigano andava muito por lá porque o cumpade Amador
mais o cumpade Cristóvo, que cumandava assim os dois, dava muita confiança pros cigano...
Òia, eu que nunca aprendi a dar confiança presse povo... Inté já batizei filho de cigano... Mas
eles é assim... um povo tão sem cunfiança, tão desatipado, que eles dá o filho procê batizar
aqui hoje, e logo alí na frente já dá pra outro batizar também... Os menino fica assim, ó, de
padrim... Diz que é pra quando eles chega nos lugá, ter gente pros meninim sair tudo pedino,
porque ... Êta povim pidão é o tar de cigano, né mesmo? Por isso que num dou cunfiança
presse povo, que eles é muito desatipado... (Olha prá baixo) Ué, Futrica, num vai cumer não?
Pode cumê, boba... Tá gostoso... Come... (Dá o pedaço de pão que está na mão para a
cachorra invisível) Falá em de cumê, o véi tamém contava umas história bunita de cumê... Ele
contava uma que ele aprendeu c’os índio... É, porque a bisaravó dele, era neta duma índia
pega no laço, então ele era assim, mei parentado c’os índio tamém... Aí ele conta essa história
que era assim: Diz que as muié, queria fazê a comida que só os home podia comê. Aí elas
pegou as cabaça, as cuia, os cuité, e saiu pru mei do mato pra procurá o miho, pra fazer a
comida que só os home pudia cumê. Pegou assim um trierim, andou, andou, té que chegou
num descampado... E nada de miho... Pegou outro trierim no mei do mato, andou, andou de
novo e nada... Andou o dia interim e num encontrou o miho pra fazê a comida que só os home
podia cumê... Quando já era de tardinha, assim com o sol quais entrano (mostra com a mão),
elas tava vortano pra casa triste, porque num tinha encontrado o miho pra fazê a cumida que
só os home pudia cumê, quando uma delas parou, pensou e: (imita) Ho cumade, será que
aquele fiim seu, aquele, mais encapetadim de todos num sabe onde tem miho pra nós fazê a
cumida que só os home pode cumê não? A outra parou, pensou (imita): Ué, cumade, sabe que
é capaz... Ele vive aí pelos mei do mato, matano passarim, tomano banho pelado nos córgo, é
bem capaz que ele sabe. Ho meu fio, vem cá... Cê sabe onde tem o miho prá nóis fazê a
cumida que só os home pode cumê? (Imita o menino) Eu sei.. he he... E ele pegou um trierim
assim no mei do mato, andou um mucadiquim de nada, té que deu assim num descampadão,
cheim de miho, tudo granadim, as espigona assim granadinha granadinha, na hora de fazê a
cumida que só os home pudia cumê... Há que as muié fez uma festona, que cês precisa ver...
Umas descascava o miho, outras tirava os cabelo, outras ralava, outras massava, num aranzé
só, fazendo a cumida que só os home pudia cumê... Um petêco que cês precisa ver... E o
mininim encapetado quetim alí no canto, só oiano as muié fazê a cumida que só os home
pudia cumê... Foi dano uma vontade nele de cumê a cumida que só os home pudia cumê... Ele
chegou numa muié assim, (imita) Ho, dona dá uma pedacim... Sai pra lá minino... Foi até
outra e: Dona, dá um ... Some daqui muleque... Há, mais ele ficou numa tristeza... Foi assim
por trás duma moita e, quando ia pegando um pedaço da comida que só os home pudia cumê:
(imita) Tira a mão daí, trem à toa... Aí ele deu uma fastadinha e... Tinha uma muiézinha assim
perto da comida que só os home pudia cumê, tava oiano prá onte... O meninim encapetado
veio chegando por trás dela, levou a mão onde tava guardada a comida que só os home pudia
cumê e... (imita) Tira a mão daí, muleque, que menino só serve pra encher o saco... Há mais aí
que muntou a tristeza mesmo nele... Ficou quetim no cantim dele, até que, de repente: (imita)
E eu que posso fazê a cumida que só os home pode cumê!!!! Chamou a meninada: Hei, hei,
vem cá meninada. Vamos fazê a comida que só os home pode cumê! Encheu as cabacinha, a
cuinha, os cuitézinho, os gomim de bambu e correu pra casa dele. Chegando lá, fizeram a
maior festança, fazendo a comida que só os home pudia cumê... Uns tira as paia, outros rela,
outros tirava os cabelo do miho... Tava lá naquele aranzé, fazendo aquele petêco, quando eles
oiou pro lado, a vó do meninim encapetado tava lá, quetinha num canto só oiando... Tinha um
meninim pequinininho assim, que borrava de medo... medroso!!!!!!!!! Oiou assim e começou:
(imita) Ela vai contar, e as nossas mãe vai bater ni nós... (Imita o menino com medo) O
encapetadim só oiou de lado assim (imita): Hê, mas ocês é medroso demais sô... Vai contá
nada... Foi num canto da casa, pegou uma faquinha moladinha, moladinha, foi até na vó dele e
cortou fora a língua dela. A véia garrou mexer co’as mão assim (imita os gestos da velha) e os
outro: Ela vai contar... Vai nada... Foi até ela, pegou o braço direito da vó dele e cortou fora....
Mas ela inda continuou a mexê com o braço isquerdo âssim, e eles tudo apavorado: ela vai
contá... Deixa de ser medroso, bando de molenga... Foi lá e cortou fora o braço isquerdo da
véia. Nessa mesma hora, eles escutou longe: Eu vi! Eu vi! Eu vi! Eles oiou e lá, nas grimpa do
pau mais arto, um papagaim daqueles, da cabeça vermeia e do peito amarelo, tava lá: Eu vi...
eu vi.... Eles tudo: Ele vai contar!!! O menino encapetado só oiou, pegou a faquinha dele, pôs
assim entre os dente e subiu, subiu, até lá em riba, pegou o papagaio e cortou fora a cabeça
dele... Desceu e eles continuou na festança deles, até que eles escutou longe, no meio do
mato, chep... chep...chep... chep... É as nossas mãe, elas vai chegá e batê ni nós... Vai nada,
seus cagão... E óia, perna pra que te quero. Caiu no mangue pro meio do mato... E as muié
chegando... chep... chep... chep... chep... Quando elas chegou, que viu aquele petêco... (imita)
Ha menino encapetado, eles tava era fazendo a comida que só os home pudia cumê... Que elas
oiou pra lá, as foia tava inté balançando ainda, onde eles tinha corrido. Vorta aqui, muleque,
que ocês vai apanhá... Vorta aqui, meu fio... Vem cá que cê vai vê o que é bom pra tosse
(imita as mulheres todas, cada uma gritando com os filhos, chamando-os para apanhar).
Quando elas viu que eles num ia vortá mesmo, elas resorveu tudo corrê atrás deles, gritando.
Eles correndo na frente e elas correndo atrás. (Imita a corrida dos dois grupos, enquanto vai
repetindo os chamados das mães) Só que tem uma coisa: as perna das muié é muito mais
cumprida que as dos menino, né? Ela garrou chegar perto, mas tão perto, que aquele meninim
medroso deu uma caganera nas perna e (imita): elas vai arcançá nós e vai batê ni nós... E o
menino encetado: vai nada, sô. Abriu os braço e (imita): Socorrooooo beija-flor!!!!!! E...
(imita com as duas mãos o vôo do beija-flor) Chi chi chi chi... Lá veio o beija-frorzinha e
pegou o cipózim mais cumprido que tinha no meio do mato, e entregou a ponta pro meninim
encapetado. Pegou a outra pontinha e (apontando para o alto, vai, lentamente se ajoelhando)
subiu, subiu, subiu, até pra riba das nuve mais arta e amarrou a lá. Os menino pegou a ponta
do cipó e foi subindo (imita os meninos subindo) subindo, subindo... E as mãe tudo chegando
perto, chegando perto, até que elas chegou onde eles tava e só viu a pontinha do cipó
balançando assim ó... E elas começou a gritá de novo... Desce daí muleque, que ocês vai
apanhá... (Começa a girar, imitando as mulheres, que gritam com seus filhos, sempre dizendo
que vão bater, que eles vão apanhar...) Quando elas viu que eles num ia descer mesmo, a mãe
daquele meninim encapetado caiu de joelhos e: (Se ajoelha, olha para cima, com os braços em
súplica e grita) Desce dai, meus fiho, que nós amamo ocês... Mas já era tarde. Eles nem
escutava mais. E continuou subindo. Quando as mãe viu que eles num descia mesmo, elas
resorveu subi atrás... (Imita as mulheres subindo pelo cipó, de maneira bem mais difícil que os
meninos). E subiu... subiu... subiu.... Quando os menino chegou lá em riba, onde o cipó tava
marrado, eles oiou pra baixou e... Deu uma medorréia neles, sô. Começou tudo a chorá, que
elas vai arcançá nós, vai batê ni nós, nós num tem mais pra onde fugi... E o encapetadim: Para
de medorréia... Pegou a faquinha dele e ó: cortou o cipózim. E as muié, que era todas as mãe,
caiu tudo no mei do mato, e virou onça, jaguar, jaguatirica, gato do mato, e tudo que é bicho.
E quando os meninim viu as mãe deles, que era todas as muié, tudo virá fera, eles piscou,
piscou, piscou e tá piscando inté hoje.
(Ouve-se ao longe o som de um catira) Êta, que esse pouso tá é bão mesmo sô. Começou a
catira... De certo vai tê inté pagode, né mesmo... (acompanha o cântico da catira enquanto,
grotescamente, tenta dançar. Quando vê que não consegue fazer os passos corretamente, para)
Mais num consigo mesmo dançá esse trem, sô. Eu acho bunito demais, mas num tenho jeito
de aprendê a dançá... Também, pai nunca deixou. Toda vez que as folia chegava lá em casa,
na hora que ia começá a catira ele gritava logo: (Imita) Vai pra dentro, meninas, que isso é
coisa de home. Nós num pudia nem pô a cabeça pra fora da janela que ele gritava: Já pra
dentro. Isso num é coisa de muié... Mas óia, eu acho esse trem tão bunito, que eu juro pela luz
que me alumeia todo dia: Um dia inda aprendo a dançar... (Tenta mais uns passos e para) Ué,
Futrica, cê num vai cumê não? Come, boba... Que não? Então tá, vou guardá pra nós cumê
mais tarde, tá? (Se abaixa, pega do chão os pedaços de pão, enrola tudo nas tolhas e guarda)
Vermeio, vem, vem... Chamoso... Vem Chamoso.... Sai, Futrica... Num qué cumê, sai....
Primeiro que morreu, foi Futrica. Quando em ganhei Futrica, ela era pequenininha, assim ó...
Fui cuidando dela, cuidano inté que ela ficou uma cachorrona, bunita! Só que um dia descobri
que Futrica era mordedeira... Deu uma tristeza no meu peito... Óia, eu nunca gostei de
cachorro mordedô... não... Num seu pra que que serve cachorro mordedô... Exprica pra mim:
qual é a serventia de cachorro mordedô. Só serve pra uma coisa: Num deixá vizinho ir nas
nossas casa, num deixá parente visitá nós... Serventia mais besta... Mas eu ganhei a Futrica
inda pequeninha... Quando eu vi que ela era mordedeira, num tive mais corage de consumi...
Foi ficando lá... Murdia um hoje, outro amanhã... Foi ficando... inté ficar veinha, veinha... Um
dia chegou em casa destribuchando, que diz que Zupéro deu veneno prela... Sai, Futrica....
Num tá vendo que tô contando sua história? Sai pra lá... Qué apanhá? Muito tempo depois, eu
vim a sabê que Futrica mordeu o fiinho de Zupéro... Um ciganim assim... pequeno... inté
tipadim, sô... Ciganim mas bunitim mesmo... Diz que Zupéro ficou cum tanta jiriza de
Futrica, que foi numa vendinha assim perto, comprou um pedaço de carne e um sonrisal...
Enrolou o sonrisal na carne e deu pra Futrica cumê. Ela enguliu o sonrisal e começou a
distribuchar... destribuchou inté morrer... Peguei Futrica no colo, que nem que fosse uma fia,
que Deus nunca me deu a aligria de tê uma fia, levei e interrei lá pra riba da porteira... perto
do cupim que o véio matou a cascavé... (Chama a cachorra) Futrica... Futrica... tiu tiu tiu...
Vem cá ... Vem cá, minha neguinha... vem cá... Bati meus jueio no chão e rezei um terço pra
Futrica, segurando esse rosário aqui, que ... Esse rosário Madrinha que me deu... Dá uma
sodade de Madrinha... Uma sodade duida no meu peito... Sodade de Madrinha... (Vai até o
carrinho, pega o tamborete e se senta). Eu tava perto quando o Padrim mais a Madrinha fez o
trato, que quem morresse primeiro, vinha buscá o outro... Eu num gosto nem de falá que ...
Ela gostava demais dele... Coitada, que quando ele morreu, que a cascavel pegou ele, já era
de tardinha, quais de noite, eu oiava perto do caixão e num via Madrinha... Fui lá no quarto
pra ver, Madrinha tá lá, quetinha, no cantim dela... Achei o trem mais esquisito, num tinha
uma gota d’água nos óio dela... Madrinha, vamos lá fora vê o Padrim morto... Vou nada,
minha fia... Eu mais o seu padrim fez um trato, que quem morresse premero vinha buscá o
outro. Intão vou lá nada... Vou ficar quetinha, aqui no meu canto esperando... E óia, esse
rusário aqui, fica co’ele procê. Num vai mais ter serventia prá mim mesmo... Óia, eu num
gosto nem de contá... Dá uns arrupio ruim no corpo... Três dia depois que os home enterrou
Padrim, eles teve que vortá no cimitério, pra levá madrinha tamém... Coisa mais isquisita...
Uma sodade de madrinha!!! Sodade duida... Vida besta... (Anda para um lado, onde encontra
um berrante. Examina o cuidadosamente). Esse barraqueiro gosta mesmo de guardar as coisa
véia, né? Será que inda toca? (Experimenta tocar o berrante, que funciona) Ói... (Toca o
berrante por um tempo. Depois, como se lembrasse... Fica com o berrante nas mãos) Depois
da Futrica, que os cigano matou... Foi os boi carreiro, Chibante e Brioso. Era os boi de
cabeçaio do Véio... Ele amansou os dois inderna que eles era dois garrotinho assim. Mas eles
ficou tão manso, mas tão manso, que podia cangá eles de qualquer lado. Era garampado nos
dois chifre. Um dia, os dois manheceu morto. O Véio oiou e... (imita) Isso é coisa de cobra.
Arriou o Mateiro e foi batê na casa de Arfredim. Arfredim era um mineirim pequenininho,
desse tamaninho assim. Pretim que lumiava, que diz que rezava as cobra. O Véio nem chegou
direito na casa dele e lá vem o mineirim encontrá co’ele na porteira do curral. (Imita) Óia, os
bicho que tá mordeno seus animar, num vai tentá mais não. E o que matou seus boi carrêro foi
uma cascavé muito grande que tá morano bem pertim do seu currá, num cupinzão que tem lá.
Mas num pricisa percurá ela não, ela vai parecê procê. Caçá cobra é muito pirigoso... Vai cum
Deus, Deus te cumpanha... O Véio virou pra traz, passou no pasto, juntou as vaca e apartou.
Pôs os bezerro num pastim assim no fundo da casa. No dia seguinte, de manhãzinha, ele tava
inté arriano a Casabranca pra tirar o leite, quando ele escutou longe: (imita o barulho dos
guizos da cascavel) Chi chi chi chi... Chi chi chi ... Chi chi chi... De repente ele viu lá longe
perto do cupinzão, uma bruta cascavé com o bote armado pra pegar o Mateiro. Era uma cobra
tão grande que tinha nove gomo no chucaio... Ele abaixou assim, pegou um canzil véio que
tava encostado na cerca do currá, foi lá e desceu na cabeça da cobra. Pegou a bichona e
istendeu em riba do cupim e ficou só de longe, oiano a hora que os pinhêm ia descê pra pegá
ela... Essa disgrama num mata mais boi de ninguém (Rindo, vai guardar o berrante no mesmo
lugar. Esbarra num polaco, uma sineta daquelas que são colocadas em pescoço de animais,
para indicar a sua localização. Novamente é como se lembrasse de algo). Pouco tempo depois
foi Chamoso, o marruá... Chamoso eu ganhei inda bezerro... Foi Padrim que me deu... Um
boizão moiro... branco e vermeio... cumas pinta branca no cupim... Que foi Padrim que me
deu... Quando eu ganhei ele inda era bezerrim... Padrim tinha ido comprá umas vaca parida lá
pras bandas da Caraíba. Quando ele tava levando pra fazenda dele, a mió vaca que ele
comprou, enjeitou o bezerro...Padrim ficou uma fera... Pegou o bezerrim, pôs na cabeça do
arreio e seguiu estrada, tocando o gado... Passando lá perto de casa, eu tava inté na janela,
oiano o tempo, quando ele gritou: (imita) Ho minha fia, vem cá... Bença, Padrim. Per sempre.
Óia, desgramenta dessa vaca aí injeitou o bezerro. Fica co’ele procê... Caba de criá ele, que
quando ele tiver grande, cê mata ele na festa de seu casamento. Ocê já tá uma mocinha,
bunita, quais na hora de casá... Cê vai ver que daqui a pouquim tempo sua casa vai tá cheinha
de gente pedino prá casá mais ocê. Eu olhei o bizerrim e falei: Padrim, ele é chamoso... Ficou
o nome. Aí Tio Mané Tatá cabou de criá ele pra mim. E ficou esse baita garrote... Padrim
parecia que tava divinhando... Poquim tempo depois, o Véio foi lá em casa pedir o pai pra
casar mais eu. Casemo, né... Pai ficou cuma jiriza, que no dia da festa num deixei ele matá
Chamoso. Aí ele teve que matá a mió nuvia que ele tinha, pra dá de cumê pro povo... Levemo
Chamoso pra nossa casa. Aí deu uma seca praquelas bandas, que num tinha uma ponta de
capim verde... Os bicho tava tudo morrendo, as vaca, os bezerro, um dia Chamoso num veio
pro curral. O Véio oiou e (imita) é, Chamoso num veio co’as vaca, ele num é de fazer isso...
vamo ter de campear. Pegou o berrante, saiu na frente, e eu fui atrás, chamando... Vem, vem...
vem Chamoso, vem... campeamos o dia intirim e nada de Chamoso... quando já era de
tardinha, com o soli quais entrano, assim (aponta), nós tava vortano pra casa quando (imita
boi) huummm... O véio: escuta, é Chamoso. De novo: huummm... Saímo correno no rumo da
rocinha, lá pra riba, uma grotona que tinha, Chamoso tava lá no fundo... quinté hoje num sei
como ele caiu e inda tava vivo... Óia, que dava uns dez metro... E ele tava lá, tentando sair,
mas num tinha por onde... pra riba era uma pedrerona, num dava pra subir... pra baixo era só
um buraco onde passava a água da inxorrada, assim... Peguemo as enxada, fomo cavucando
até o Chamoso sair pra dentro do córgo. Ele nadou um bucadim, saiu na aguada e foi batê no
curral... Ficou lá, lambeno um restim de sal que tava no cocho, que num tinha nem
machucado... Pronto, vamo durmí que num guentano de cansado, o Véio falou. Vem
Chamoso, vem... Óia, nós tava tão cansado co’essa labuta cum Chamoso, que nóis foi durmí
inté sem lavá os pé... Quando foi de madrugada, com os galo cantano... Heheheehêêêêê...
(imita vários cantos diferentes de galo) O Véio pulou da cama e foi vê o boi... Eu currí atrás,
mas cadê... Tinha sumido de novo... Deu uma natureza ruim nos meus peito, saímo correndo
já nos rumo da grota e... Chamoso, cê veio cair de novo, no mesmo lugar! Caiu em riba do
pescoço... Quebrou... Deu uma dor no meu peito, que Chamoso era minha maior riqueza...
Vem Chamoso, vem, vem... Cês dá licença um mucadim... (Vai até um canto e, levantando a
saia, urina em pé. Volta para o centro, senta-se no tamborete). Falá em riqueza, diz que o
home queria ficar rico e num havia jeito dele ficar rico... Trabaiava, trabaiava, e nada de ficar
rico... O tempo passando, ele ficando véio, e nada. Té que um dia ele virou e falou: Eu fico
rico de quarqué jeito. E resorveu fazê um trato com o diabo. Falô: Se eu ficá rico, eu dô minha
arma pro capeta. Passou um dia, nada... dois dia, nada... três dia, nada. No terceiro dia, já no
finar da tarde, ele oiou pro tempo e: (imita) danado desse cramunhão é muito é do tratante.
Foi cabano de falá, que ele oiou pra riba do espigão, lá vinha descendo um homão branquelo,
daqueles azedo mesmo, muntado numa mulona russa. Óia, eu nunca vi mula ruça ni minha
vida... Se argum docês viu mula ruça argum dia, pode ter certeza que é coisa do capeta. Pois o
branquelão azedo chegou e ofereceu seis conto de réis emprestado pra ele. Ele aceitou, né...
queria ficar rico. Mas o homão virou e falou: Óia, ocê nunca mais rapá a barba nem cortá o
cabelo, que é desse jeito que eu vou cunhecê ocê. E tar dia e tali hora eu venho buscá o que é
meu. E foi embora, deixano o home com o dinheiro na mão. Ai meu Deus do céu, que que eu
vou fazê cum esse dinheirão todo? Seis conto de réis era muito dinheiro, naquele tempo
dinheiro valia, né? Já sei. Eu vou é niguciá cum gado. E assim fez. Saiu comprano uns
bizerrim aqui, vendeno uns torim aculá, umas vaca parida aqui, um marruá ali. Pouquim
tempo depois tinha uma boiada. Pouquim tempo mais dispois tinha uma fazendona, cheinha
de gado, ficou milionário o home, sô. Uns fala um trem outro fala outro, o home cada vez
mais rico, o tempo foi passano, passano, que o tempo passa pra todo mundo, né? Até que
chegou o dia marcado. Sai, Futrica... Aí o homem chamou a muié e falou assim que tinha
vendido a arma pro capeta e que era tempo dele vim buscar, mas que ele ia pregar uma peça
no cramunhão... Foi no barbeiro e mandou passar a navaia no cabelo e na barba... Ficou
carequinha... Voltou pra casa e falou óia muié se aquele homem chegá percurano por mim, cê
pode contá. Eu vou lá pra casa de cumpade Joaquim, que tem um muxirãozim lá hoje, depois
tem um pagodim, cê pode falá prele que eu tô lá. E seguiu lá pra casa do cumpade Joaquim.
Quando foi de madrugada, a muié tava durmino, batero na porta. Ela saiu, levou o maior
susto. Tava um escuridéu que num dava pra vê um palmo na frente do nariz. Mas lá tava,
direitinho, um branquelão azedo muntado numa mulona ruça, parecia que lumiava, os dois.
Cadê seu marido? Tá lá na casa de cumpade Juaquim... Tem uma festinha lá hoje, um
muxirãozim, ele tá lá. Tão tá bão... Virou a mulona e foi batê na festa... Chegano lá, tava a
maior festona, que o tar do dijutório, que era pra ajudá a limpá o rego d’água, que tava sujo,
tinha era virado numa baita treição. Juntou tanta gente que deu pra limpá o rego d’água e inda
roçá os pasto tudim, que tava tudo na capueira. E tinha virado um pagodão daqueles, como
nunca se viu. O diabo chegou e saiu procurano no meio do povo e nada de encontrá o tal do
homem, cabeludo e barbudo. Té que uma hora ele perdeu a paciência deu um grito: (imita)
pára co’essa latumia aí... Que o sanfoneiro, do jeitim que tava ficou, assim ó (imita o
sanfoneiro, parado, com o fole aberto, cara de susto, com a língua pra fora). Ai ele falou assim
que eu tô procurando um home que tem uma dívida comigo, um cabeludo e barbudo que
marcô cumigo hoje, mais eu num tô achano... Então, pra num perdê a viagem eu vou levá
aquele careca alí mesmo mais eu... Pegou na mão do careca, muntô na mulona e foi embora.
Chegano lá longe, que eles oiou pra traz, a festa tinha cumeçado de novo, como se num
tivesse acuntecido nada. Eles só escutou o baruio do povo dançano a caninha verde. (Dança
enquanto canta)
Pra dançá caninha verde
Premero canta o violeiro
Depois que o violeiro canta
Canta outros cumpanheiro
Chora morena, premero canta o violeiro
Depois que o violeiro canta
Canta outros cumpanheiro.
(Outra voz)
Calango tango da cabeça de lacraia
A muié do Chico Bento
Foi peidá
Cagou na saia.
Chora morena, da cabeça de lacraia
A muié do Chico Bento
Foi peidá
Cagou na saia.
(Volta a primeira voz)
Eu tava lá em casa, o soli inda tava artim, assim (mostra) eu tava inté lavano o arroz, pra fazê
a janta. Foi quando eu oiei pra riba, e vi, lá no arto do espigão, o Mateiro, sozinho. Eu gritei ai
meu Deus do céu! Que é que o burro do Véio tá fazeno arriado, sozinho, naquele oco de
mundo? E saí correndo espigão arriba... fartano os fôrgo, cuma dor nos peito, uma natureza
ruim na arma... Quando eu cheguei lá em riba, de longe eu vi... O Véio tava lá, estendido no
meio de uma moita de gravatá... Que quando ele caiu, os espinho saiu arranhando a cara dele
tudim assim... Uma sanguera dentro dos zóio... no nariz, nos ouvido... Uma formigada na
boca dele... (Se abaixa, simulando pegar a cabeça dele entre as mãos e, lentamente começa a
chamar, como se segurasse sua mão) Véio... Véio... Vamos, Véio... vamo pra casa, Véio...
Vamo... Tá na hora de fazê a janta... Véio, Véio... Vamo Véio... (Levanta lentamente, e
canta).
No céu, no céu,
Com minha mãe estarei
No céu, no céu,
Com minha mãe estarei
(Tempo. Olha para o céu... Tempo. Olha para a platéia) O Véio tá demorano vim me buscá...
(Lentamente começa a arrumar as coisas no carrinho de mão, enquanto chama os bichos
imaginários) Vem Vermeio, vem... Chamoso, vem, rem, rem, rem... Vai Chibante. Levanta,
Brioso. Tá tretano? Chamoso, vem, vem... (Pára, chama Futrica olhando para a platéia)
Futrica, Futrica, vem... Vamo imbora, vamo... Vem, Futrica, vem... (Enquanto ela sai,
empurrando o carrinho, sobe som de uma cantoria da folia, que pode ser do altar ou do
cruzeiro, enquanto a luz vai caindo, ficando somente as velas do altar acesas).
FIM
GLOSSÁRIO
Agasalho – Diz-se do pouso de folia em que não ocorre a festa profana, representada pelo
pagode. No agasalho, os ofícios da noite se encerram, geralmente após o catira ou a dança da
raposa.
Barraqueiro – O visitado. Aquele que dá o pouso para a companhia. O nome vem das
barracas improvisadas para oferecer a alimentação e a festa para os foliões.
Bendito de mesa – Oração cantada, feita em torno da mesa, após cada refeição, em
agradecimento pelo jantar e pelo almoço oferecidos pelo barraqueiro.
Cata-pouso – Diz-se da pessoa, não divisada, que só comparece à parte mais profana da folia,
geralmente chegando para o jantar, oferecido em separado dos foliões, e para o pagode.
Catira – Dança de palmas e sapateados, realizada por grupos que oscilam de quatro a doze
pessoas, ao som de violas e trovas cantadas por uma dupla de músicos.
Companhia – O conjunto formado pelos foliões e todos os seus apetrechos para o giro.
Cruza – Encontro de dois ou mais grupos de foliões, com evoluções de cruzamento dos
estandartes. Geralmente se dá nas entregas ou desarvoradas.
Divisa – Pequena insígnia, geralmente de pano, que caracteriza o participante como folião.
Entorno goiano do Distrito Federal – Conjunto dos dezenove municípios goianos que, ao
lado de outros três mineiros, formam a região integrada do entorno do Distrito Federal.
Fogueteiro – Diz-se do responsável pela guarda e pela utilização dos fogos de artifício
durante o giro.
Folia – Grupo votivo que, conduzindo uma bandeira e acompanhado de músicos, pede
donativos em nome de uma determinada divindade. V. Bandeira.
Folia do Divino Espírito Santo – Folia do Divino – grupo votivo que, conduzindo uma
bandeira com o símbolo do Divino Espírito Santo (uma pomba branca), pede donativos para a
festa em seu louvor ou para uma determinada paróquia da região.
Giro – Todo o trajeto percorrido pela companhia durante o período da folia, fechando um
círculo simbólico, ou a visita diurna às casas vizinhas aos pousos.
Guia – Aquele que exerce as funções sacerdotais no giro, puxando as cantorias e orações. É o
responsável principal pela invocação da divindade. Arvora e desarvora as bandeiras. Espécie
de referência moral dos foliões.
Hip-hop – Movimento sócio-musical criado nos guetos negros de Nova Iorque. Caracteriza-se
pela música, geralmente o funk, pela breakdance, pelo dj, pelo mc e por uma estética do corpo
próprias das ruas. Em sua migração para o Brasil foi absorvido por tribos urbanas de
praticamente todas as metrópoles do país, principalmente a partir de suas periferias,
englobando ainda o graffiti, o Rap e a dança de rua.
Inderna – Desde. Junção de indez com derna, tanto um quanto o outro significando a mesma
coisa, desde.
Orela – O que faz a segunda voz, tanto do guia quanto do contra-guia, nas cantorias do giro.
Vem de orelha, pelo fato dele cantar junto da cabeça do puxador do cântico.
Pagode – A dança noturna, realizada após todos os rituais sagrados do pouso. Muitas vezes
duram a noite toda.
Peão – Peão de boiadeiro. Empregado que cuida de gado ou ajuda no transporte das boiadas.
Pouso – Nas folias que giram durante o dia, o pouso é a parada noturna da companhia.
Começando geralmente por volta das dezoito horas, obedece a todo um ritual de chegada,
jantar, orações, festas, café da manhã, novas orações, almoço e despedida, em torno do meio-
dia.
Procurador – O folião responsável pelo recebimento dos donativos durante o giro. Esses
donativos podem ser representados por dinheiro ou por bens, apontados pelo procurador para
serem recebidos posteriormente.
Ruamento – Espécie de corredor enfeitado que vai de um cruzeiro colocado na frente das
casas dos barraqueiros até a porta que dá acesso ao salão onde se encontra o altar.
Santa Luzia das Marmeladas – Vila que estendia seus domínios por toda a região onde viria
a ser fundada Brasília. Abrangia toda a área onde se fundariam posteriormente os municípios
de Novo Gama e Santo Antônio do Descoberto, dentre outros. Posteriormente se emanciparia
como Cidade de Santa Luzia, a atual Luziânia.
Tiple – A voz mais aguda dentre os cantores. Diz-se daquela voz esganiçada que sobressai ao
final dos versos das cantorias, principalmente nas folias de Reis.
Treição – Traição, espécie de mutirão realizado por uma determinada comunidade sem que o
ajudado seja avisado com antecedência. No dia marcado, o grupo se reúne e chega de surpresa
à casa de um vizinho que esteja precisando de auxílio para a realização de um determinado
serviço em atraso, geralmente a limpeza de uma plantação, das pastagens ou das canalizações
de água.
Truco – Carteado jogado por duas duplas adversárias. A partir de convenções para os valores
de determinadas cartas, a dupla vencedora, muitas vezes, é a que tem maior capacidade para
blefar.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Bachelard, Gaston Bachelard 24, 27, 28, 104, 105, 202, 203.
Bião, Armindo Bião 16, 17, 18, 25, 30, 31, 205, 206, 207, 209,
211, 225.
Brandão, Carlos Rodrigues Brandão 28, 107, 119, 120, 125, 167.
Chevalier e Gheerbrant,
Jean Chevalier e Alain Gheerbant 133, 134, 135.
Deleuze e Guattari,
Gilles Deleuze e Félix Guattari 28, 77, 80, 94, 95, 203, 204.
Durand, Gilbert Durand 24, 27, 28, 50, 53, 54, 55, 60, 92, 93, 94,
95, 98, 99, 108, 115, 116, 119, 121.
Durkheim, Émile Durkheim 29, 79, 89, 99, 102, 103, 165.
Goffman, Erving Goffman 19, 27, 28, 78, 84, 85, 86, 88, 89, 103,
141, 202, 211.
Maffesoli, Michel Maffesoli 19, 23, 27, 29, 31, 47, 48, 80, 89, 90, 92,
94, 96, 97, 98, 100, 101, 103, 104, 105,
106, 109, 114, 115, 127, 128, 141, 202,
205, 206, 209, 211, 219, 220, 221, 222,
225, 226, 229.
Reis, Gelmires Reis 28, 29, 41, 63, 64, 65, 67, 90, 182.