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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PERFORMANCES CULTURAIS - PPGPC

VINÍCIUS MACHADO LUZ

ENTRE GIROS, ESMOLAS E DONZELAS: UMA PRÁTICA PERFORMÁTICA DE


MULHERES NA FOLIA DE SÃO JOÃO EM LAGOLÂNDIA

GOIÂNIA
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PERFORMANCES CULTURAIS - PPGPC

VINÍCIUS MACHADO LUZ

ENTRE GIROS, ESMOLAS E DONZELAS: UMA PRÁTICA PERFORMÁTICA DE


MULHERES NA FOLIA DE SÃO JOÃO EM LAGOLÂNDIA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Performances Culturais, da
Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Federal
de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Performances Culturais.

Área de Concentração: Espaços, Materialidades e


Teatralidades.
Orientação: Prof.ª Drª. Vânia Dolores Estevam de
Oliveira

GOIÂNIA
2021
DEDICATÓRIA

À minha mãe, à minha esposa e à minha filha. A todos os


moradores de Lagolândia, pela presteza e vontade de
sempre ajudar. À professora orientadora, Dra. Vânia
Dolores Estevam de Oliveira, pela paciência e disposição.
AGRADECIMENTOS

Nesta vida não se caminha sozinho, por isso, no decorrer da caminhada, conhecemos
aqueles que verdadeiramente nos acompanham e torcem por nossas vitórias. Portanto, agradeço
primeiramente a Deus, por ter me dado forças e disposição para encarar os inúmeros desafios
dessa jornada.
Agradeço especialmente à minha mãe, Celina Machado Luz, pelo apoio sempre
incondicional, pelas lutas diárias e constante superação das intempéries sempre presentes em
seu caminho. À minha filha, Maria Helena dos Anjos Luz, por existir, por dar luz, cor e sentido
às minhas batalhas diárias. À minha esposa, Hellen dos Anjos Farias Luz, profissional dos
números e das relações humanas, entre candies e cafés, sempre atenta ao que se foi e ao que
está por vir.
Ao meu irmão, Thiago Machado Luz, professor de Física e Matemática, por seu apoio
e incentivo constante, mesmo geograficamente distante. Ao meu pai, Wagner de Oliveira Luz,
agradeço também.
À valiosa orientação da professora Dra. Vânia Dolores Estevam de Oliveira, que
soube conduzir as orientações mesmo em tempos difíceis de pandemia e isolamento social.
Soube aliar o profissionalismo com as boas relações humanas e a preocupação com os seus
orientandos, além de conduzir o Grupo de Extensão em Performances Culturais, Museologia e
Memória Social - GEPEMM, do qual também faço parte.
Em Lagolândia, agradeço a Danilo Camargo, por sua hospitalidade, presteza,
indicações para entrevistas e confiança em abrigar esse pesquisador em sua casa, durante os
dias de realização da pesquisa. A Marco César Teles Camargo, ao qual fui levado por uma
sequência de acontecimentos e coincidências, agradeço por suas orientações, indicações e
apoio com informações relevantes.
Na Universidade Federal de Goiás, UFG, ao professor Wolney Fernandes, da Escola
de Música e Artes Cênicas da UFG, que apresentou e descreveu a Folia de São João. Nascido
em Lagolândia, Wolney experienciou o movimento de Santa Dica por meio de seus pais, avós e
pela vivência e convivência com as festas e tradições do distrito. Agradeço ao professor Dr.
João Guilherme Curado, por sua presteza e disponibilidade, desde a Banca de Qualificação
dessa dissertação, onde o conheci por videoconferência.
À professora Dra. Leda Maria de Barros Guimarães, por apresentar o universo da
cultura popular, desde o primeiro contato, no distante ano de 2003, como aluno de graduação
em Artes Visuais - Habilitação Design Gráfico, na disciplina Arte Popular Brasileira, na
Faculdade de Artes Visuais (FAV), da UFG. Posteriormente, na disciplina Arte e Visualidades
Populares, no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, também na FAV.
Agradeço à professora Dra. Nádia Maria Weber Santos, com a disciplina ―Tópicos
Avançados em Performances Culturais II: ‗Arquétipos, mito e arte nas Performances
Culturais‘‖, com a qual tive o meu primeiro contato com este Programa de Pós-Graduação. A
bibliografia indicada pela professora Nádia, médica e pesquisadora no campo da História e da
Psicologia Analítica, trouxe conceitos importantes de Carl Jung (dentre outras referências), que
possibilitou compreender as manifestações religiosas, no caso da minha pesquisa, também
enquanto representação do universo simbólico, mitológico e arquetípico. Também, pela
indicação da professora Dra. Vânia Dolores Estevam de Oliveira, como orientadora.
Ao professor Dr. Sebastião Rios, na disciplina Performance e Cultura Popular, pelas
leituras e debates de textos de autores que discutem cultura popular, o folclore e as danças
brasileiras, intercaladas por visitas e participação em festejos populares, como as Congadas de
Catalão, a Folia de Reis em Inhumas, o Bumba Meu Boi de Pirenópolis e o Tambor de Crioula
do Maranhão, apresentado na Praça Universitária, em Goiânia. Além das aulas, agradeço
também por sua efetiva participação e contribuição durante a banca de Qualificação.
Sem esquecer, agradeço a minha amiga e colega de mestrado, Suzete Aparecida
Gomes, por sua rápida, porém marcante passagem pelo PPGPC. Trabalhávamos na mesma
instituição, mas nos conhecemos no corredor da FCS, enquanto aguardávamos a entrevista/
prova oral do processo seletivo do Mestrado em Performances Culturais. Infelizmente não
houve tempo para Suzete realizar o sonho de finalizar essa pós-graduação, mas teve a alegria
de viver várias outras vitórias, pessoais e acadêmicas.
Por fim, mas não menos importante, a todos do PPGPC: colegas, professores e
funcionários, pelo tempo dedicado e pela disposição de sempre contribuir. Também, a todas as
pessoas, de todas as épocas, que de algum modo fizeram ou se empenharam em transformar o
mundo em um lugar melhor, por meio de seus ofícios, seus ideais, pela ciência, pela
religiosidade, pelo trabalho voluntário ou pela arte. A beleza reside em dar o seu melhor e
aprender a cada dia e, como bem disse Guimarães Rosa, ―mestre é quem de repente aprende‖.
Para finalizar, como mensagem que fica desse processo, invocando os cantores e
compositores Belchior e Milton Nascimento, com trechos de músicas de suas autorias e/ou
interpretações, cujas letras marcaram várias fases da minha trajetória de vida, três citações bem
evidentes para todo esse período de mestrado: ―amar e mudar as coisas me interessa mais‖, ―o
novo sempre vem‖ e ―os sonhos não envelhecem‖.
Viver significa lutar
(Sêneca)
RESUMO

Esta dissertação apresenta a Folia de São João em Lagolândia (distrito de Pirenópolis,


Goiás), por meio de suas performances culturais. A Folia de São João, com características, até
então, pouco conhecidas, tem por particularidade ser realizada por um grupo de
aproximadamente 24 mulheres, chamadas de ―donzelas‖, aparentemente, também única no
país. Essa manifestação, bem como outras festas religiosas/culturais da região, surge a partir da
iniciativa de uma líder religiosa e política da primeira metade do século XX, Benedita Cipriano
Gomes, conhecida popularmente como Santa Dica. Essa pesquisa partiu da problemática de
que há um rito religioso encenado há décadas na região, com regras e características próprias,
ditadas pelo feminino, com a hipótese de que as manifestações acontecem por motivações
ligadas à memória e à identidade do lugar, que ultrapassam o viés religioso e devocional. A
investigação segue a linha de pesquisa Espaços, Materialidades e Teatralidades, o aspecto
temporal e espacial, com ênfase para as personagens e a forma como elas interagem,
modificando as relações e os espaços (edifícios, ruas, casas...) por meio de suas performances,
de seus corpos femininos e suas relações com a história do lugar e a linguagem como ato,
ultrapassando o viés religioso e devocional. Os principais autores que dão sustentação à
pesquisa são algumas das principais referências mundiais, enquanto discussão e abordagem das
performances, da cultura popular, da antropologia e dos ritos, como Richard Schechner (2002,
2006 e 2012), Milton Singer (1985) e Victor Turner (1974, 1978 e 2005), entre outros. A
pesquisa teve algumas restrições impostas pela pandemia de COVID-19, em 2020; porém, não
houve prejuízo em relação aos objetivos, que pretendiam mostrar as características da festa e o
caráter único da festividade na região. Diante disso, conseguiu-se apresentar um resultado
dentro do que foi proposto, com material registrado no período do projeto. Como parte da
conclusão, foi possível a compreensão da Folia de São João como festividade ligada à memória
e ao legado de sua fundadora, a Santa Dica.

Palavras-chave: Performances Culturais. Folia de São João. Lagolândia. Santa Dica.


ABSTRACT

This dissertation presents the Revelry of Saint John in the city of Lagolândia (district of
Pirenópolis, state of Goias, Brazil), by using its cultural performances. The Revelry of Saint
John with characteristics that remained little know, until now, has the particularity of being
performed by proximately 24 women, known as "maidens", apparently, also unique in the
country. This manifestation, likewise, other religious/cultural celebrations from the region,
arises from the initiative of a religious and political leader in the first half of the XX century,
Benedita Cipriano Gomes, popularly known as Saint Dica. This research arose from the
problem that there is a religious rite staged for decades in the region, with its unique rules and
characteristics, dictated by the feminine, with the hypothesis that those manifestations occur by
motivations linked to memory and identity of the place, which surpass the religious and
devotional slant. This study follows the line of research Spaces, Materiality and Theatricalities,
the temporal and spatial aspect, with emphasis on the characters and how they interact,
modifying the relationship and spaces (buildings, streets, houses...) through their performances,
of their female bodies and their relations with the history of the place and the language as an
act, surpassing the religious and devotional slant. The main authors that give sustenance to this
study are some of the main world references, while discussion and approach of the
performances, from the popular culture, Anthropology and of the rites, such as Richard
Schechner (2002, 2006 and 2012), Milton Singer (1985) and Victor Turner (1974, 1978 and
2005), among others. The survey had some restrictions imposed by the COVID-19 pandemic,
in 2020; however, there was no loss regarding its objectives, which intended to show the
characteristics of the party and its unique nature of the festivity in the region. Therefore, it was
possible to present a result within what was proposed, with material registered during the
project period. As a part of the conclusion, it was possible the comprehension of Revelry of
Saint John as a festivity linked to the memory and the legacy of its founder, the Saint Dica.

Keywords: Cultural performances. The revelry of Saint John. Lagolândia. Saint Dica.
LISTA DE FIGURAS

Figuras da abertura: GIROS E DONZELAS EM PERFORMANCES .....................................17

Figura 1 - À meia noite as mulheres circulam a fogueira no ritual que dá início à Folia ..............18

Figura 2 - Rito no interior de uma das residências ...................................................................... 19

Figura 3 - Pela manhã, o grupo de donzelas faz o Giro pelas casas do distrito entoando músicas
e coletando esmolas (donativos) ...............................................................................................22

Figura 4 - Vista da cidade de Pirenópolis em 1886 .................................................................... 30

Figura 5 - Capitania de Goiás e localização de Pirenópolis no séc. XIX.................................... 31

Figura 6 - A jovem Benedita Cipriano Gomes – Santa Dica ...................................................... 34

Figura 7 - Primeiras casas de Lagolândia ..................................................................................36

Figura 8 - Desenho de Tarsila do Amaral, do livro ―Misticismo e Loucura: contribuição para o


estudo das loucuras religiosas no Brasil‖, de Osório César, 1939, década em que Dica se tornou
nacionalmente conhecida ........................................................................................................ 38

Figura 9 - Registro no Livro de Casamentos ............................................................................. 39

Figura 10 - Dica e Mário Mendes com a primeira filha do casal ...............................................42

Figura 11 - Batalhão do exército da Santa Dica em Uberlândia – MG, seguindo para a Revolução
de 1932, em 24 de agosto do mesmo ano ..................................................................................45

Figura 12 - O prédio da escola pública do distrito leva o nome de Santa Dica, Benedita Cipriano
Gomes ......................................................................................................................................46

Figura 13 - Vista aérea do distrito de Lagolândia ......................................................................47

Figura 14 -Túmulo de Santa Dica, situado na praça, em frente à casa onde residiu até a sua morte.
…………………………………………………………………....…..……….......................... 48

Figura 15 – Detalhe da lápide com os dados de dona Dica ........................................................48

Figura 16 - Casa de Santa Dica, fachada e parte interna, com detalhe de galhos da gameleira que
cobre o túmulo .......................................................................................................................... 50

Figura 17 - Salão de festas Mário Mendes e a igreja Imaculada Conceição - locais onde se realiza
a maior parte das festas religiosas do distrito ............................................................................ 54

Figura 18 - Margem do Rio do Peixe, aos fundos da casa de Dica - Local utilizado para os
batismos noturnos..................................................................................................................... 60

Figura 19 - Batismo de crianças às margens do Rio do Peixe, no fundo da casa de Dica ..........62
Figura 20 - Giro diurno entre as casas dos moradores ................................................................63

Figura 21 - Detalhe do caderno de músicas com trecho da música mais entoada durante o Giro,
o ―agradecimento das esmolas‖ ................................................................................................64

Figura 22 - Parte externa de uma das casas durante o Giro diurno da Folia de São João ........... 67

Figura 23 - Folia de São João, em 2002, uniforme lembra a farda militar .................................73

Figura 24 - Bandeirinhas - Festa de São João, em Touros (RN), em junho de 1980 ..................76

Figura 25 - ―Chegada‖ - Primeiro hino do caderno de músicas da Folia de São João ................83

Figura 26 - Hino do Caderno de Músicas da Folia de São João .................................................84

Figura 27 - ―Agradecimento‖ - Caderno de Músicas da Folia de São João ................................85

Figura 28 - Reunião de músicos instrumentistas na casa de Dica, após as três voltas na


fogueira ................................................................................................................................... 87

Figura 29 - Trajeto e dinâmica espacial da Festa, feito a partir de observações, desenhos e


anotações de campo do dia 23 de junho e 2019 ....................................................................... 100

Figura 30 - Interior da casa de Santa Dica após término do ritual noturno detalhe para vela acesa
.............................................................................................................................................. 101

Figura 31 - Café da manhã servido antes do início do Giro, no Salão Mário Mendes .............. 102

Figura 32 - Intervalo do Giro: parada de descanso ...................................................................102

Figura 33 - Primeira parada do Giro ........................................................................................ 103

Figura 34 - Música e Recolhimento de Esmolas ...................................................................... 104

Figura 35 - Parada em uma das casas: música entoada antes de entrar ..................................... 105

Figura 36 - Moradora recepciona as folioas ............................................................................ 105

Figura 37 - Preparação da refeição ......................................................................................... 106

Figura 38 - Interior da Capela de N. Senhora do Livramento, uma das paradas do Giro ...........106

Figura 39 - Brasas da fogueira de São João, no dia 23 de junho, no início do trajeto das
Folioas..................................................................................................................... 108

Figura 40 - Quadra de Esportes onde se realiza a Festa Junina, que antecede as voltas das Folioas
em torno da fogueira ............................................................................................................... 108

Figura 41 - Grupo de Folioas (―Donzelas‖), no dia 23 de junho, em torno da fogueira de São


João ........................................................................................................................................ 109
14

Figura 42 - Pela manhã, o Grupo de Mulheres já se encontra no Salão Mário Mendes, para o café
da manhã ...............................................................................................................................110

Figura 43 - Parte externa de uma das residências, durante o Giro ........................................... 110

Figura 44 - Cantoria antes de entrar em uma das casas ............................................................ 111

Figura 45 - Momento da entrada do Grupo de Folioas: os homens entram por último ............ 111

Figura 46 - Interior de uma das residências ............................................................................. 112

Figura 47 - Trajeto realizado entre as casas, durante o Giro .................................................... 112

Figura 48 - Grupo de homens instrumentistas, durante o Giro ................................................ 113

Figura 49 - Almoço servido para a comunidade, no Salão Mário Mendes.... .......................113


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................………………......…...…....18
1 UM LUGAR CHAMADO LAGOLÂNDIA.............................………………......…...…....26
1.1 ENTRE A HISTÓRIA CULTURAL, A MEMÓRIA E A IDENTIDADE ............................ 26
1.1.1 A memória, a identidade e o gênero no grupo em análise…..……..............…....................... 28
1.2 BREVE HISTÓRIA DA CIDADE DE PIRENÓPOLIS E O SURGIMENTO
DE SANTA DICA .............................................................................................................................. 29
1.2.1 Santa Dica …..………........…........…........…...............................….........…...…................... 33
1.2.2 O movimento messiânico de Santa Dica …..………………………....................................... 35
1.2.2.1 Um outro movimento …..………...……………...…................................................................ 40
1.2.3 A participação de Dica nas revoluções …..……….........…..........…....................................... 42
1.2.3.1 Participação na Revolução de 1930 …..………...........….........................................................43
1.2.3.2 Participação na Revolução Constitucionalista de 1932…..…….............................................. 44
1.2.4 Lagolândia nos dias atuais …..……….......…........…........…...........…................................... 46
1.2.5 A casa da Santa Dica nos dias atuais …..…..................…........…........................................... 49
1.3 UMA COMUNIDADE DE FESTAS: FESTAS EM QUASE TODOS OS MESES
DO ANO .............................................................................................................................…..50
1.3.1 A Folia de Reis em Lagolândia................................................................................................. 51
1.3.2 A Festa do Doce ....................................................................................................................... 52
1.3.3 Festa da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e outras festividades ................................. 54
2 A FOLIA DE SÃO JOÃO EM LAGOLÂNDIA ……..……..…….…............................... 56
2.1 BREVE HISTÓRICO DE SÃO JOÃO ….….......…........…........….............….…................. 58
2.2 BREVE ENREDO: DAS VOLTAS NA FOGUEIRA E OS BATISMOS AO GIRO
DIURNO ….….......................................................................................................................................61
2.3 DIFERENTES INTERPRETAÇÕES…..……….…....…...........................….….................... 65
2.3.1 As casas do Giro…..………............……......…...........…....................…................................ 66
2.4 AS FESTAS JUNINAS E OS SANTOS CATÓLICOS …..................................................... 68
2.5 A MEMÓRIA E O CATOLICISMO POPULAR DE DICA ........………..........…..….......... 71
2.6 A ORIGEM DA FESTA EM LAGOLÂNDIA E DO GRUPO DE MULHERES ................. 74
2.6.1 As mulheres do grupo.....……….........…........…........…........…........…................................ 77
2.6.2 A relação de Dica com a virgindade.…..…………........…......…...............…..........….......... 79
2.6.3 A comunidade e a festa …..……........…........….................….......................…......................81
2.7 OS PREPARATIVOS E A MÚSICA ….…........…......…........…....…….............................. 82
3 AS PERFORMANCES DAS MULHERES NA FOLIA DE SÃO JOÃO EM
LAGOLÂNDIA ……...........................................................................................................................88
3.1 UMA PERFORMANCE RECONFIGURADA …..........…......…............…...........…...........89
3.2. A LIMINARIDADE E O RITUAL - CONCEITOS E INTERPRETAÇÕES .........................93
3.3 A LIMINARIDADE NA CULTURA COMO PERFORMANCE ............................…..........96
4 A FESTA EM IMAGENS …………………….…….…...…..….....…….............................98
4.1 O RELATO ETNOGRÁFICO …..………..…......................…...............................................98
4.2 BREVE NARRATIVA VISUAL ....…………........…........…..........…................…............ 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...…....…..………................................................................. 114
REFERÊNCIAS.…...…....…...…....…...…....….…....…......................................................117

APÊNDICES.......................................................................... .........................................125

- Questões norteadoras das entrevistas semiestruturadas.


- Autorizações TCLE - Comitê de Ética da UFG.

ANEXOS..........................................................................................................................133

- Relato etnográfico de 23 e 24 de junho de 2019


- Cartilha de músicas da Folia de São João
GIROS E DONZELAS EM PERFORMANCES

Fonte: Acervo de Vinícius Luz – 2018/2019 – Montagem do autor


INTRODUÇÃO

Pesquisas sobre o tema ―folia‖ são recorrentes em diversos programas de mestrado e


doutorado; porém, as abordagens e os recortes mudam, muitas vezes motivados pela história e
pelos elementos particulares de cada um desses festejos.
O objeto dessa pesquisa é a performance de Mulheres da Folia de São João, em
Lagolândia, distrito de Pirenópolis (Goiás), realizada anualmente no dia 24 de junho, data do
calendário litúrgico católico, dedicada à celebração do referido santo.
A Folia tem início na noite anterior ao dia de São João, logo após a apresentação da
quadrilha na festa junina realizada pela escola pública do distrito. No dia 23, próximo à meia
noite, na quadra de esportes (parte central do distrito), um grupo de mulheres - as ―donzelas‖-
sai do Salão principal da cidade, circulando por três vezes as brasas da fogueira de São João
(Figura1), usada na apresentação da quadrilha da festa junina, ainda em chamas, cantando:
Capelinha de melão
é de São João,
é de cravo, é de rosa,
é de manjericão.

São João está dormindo,


não me ouve não,
acordai, acordai, acordai, João!

FIGURA 1 - À MEIA NOITE AS MULHERES CIRCULAM A FOGUEIRA NO RITUAL QUE DÁ


INÍCIO À FOLIA

Fonte: Vinícius Luz (2018)


19

No dia seguinte, 24 de junho, a Folia é realizada durante todo o dia: o percurso


(Giro) é feito por um grupo de mulheres, as ―donzelas‖, também denominadas localmente de
folioas, entre todas as casas de moradores católicos do distrito, lugar onde são entoados
cânticos e recolhidas esmolas (doações em dinheiro) para a manutenção do festejo e da igreja.
O encerramento (Recolhida) é feito com a reza de um terço e o sorteio do próximo ―festeiro‖
(pessoa responsável por organizar e conduzir a folia do ano seguinte). A figura masculina é
responsável pelos instrumentos e por guiar o trajeto do grupo, como se mostra na Figura 2.

FIGURA 2 - RITO NO INTERIOR DE UMA DAS RESIDÊNCIAS

Fonte: Vinícius Luz (2018)

O grupo de mulheres não tem um número fixo de participantes, mas o quantitativo é


sempre aproximado: 24 pessoas, sem determinação de faixa etária específica ou a necessidade
de qualquer relação de parentesco. É necessário que sejam solteiras e sem filhos. Segundo o
rito, há um espaço definido para o sexo masculino; aos homens, cabem as funções restritas à
música.
A origem desse festejo remonta um caso bem peculiar na história de Goiás e do
Brasil. Segundo entrevistas informais, bem como relatos de moradores mais antigos, as
tradições da cidade foram iniciadas pela fundadora do povoado, Benedita Cipriano Gomes, a
Santa Dica (líder de um movimento messiânico que atraiu fiéis e moradores para o lugar onde
hoje se localiza Lagolândia), ainda na década de 1920.
20

Além de conhecer a história de Santa Dica e seu ideário, para compreender a Folia de
São João fez-se imprescindível abordar e contextualizar a história de São João Batista -
personagem central da festividade. Para tanto, foi necessário recorrer a relatos, passagens
bíblicas e a alguns trabalhos de pesquisa já realizados sobre o tema.
A manifestação da Folia consiste na homenagem a São João Batista que, segundo o
relato bíblico, era filho de Isabel (prima de Maria, mãe de Jesus). Seu nascimento veio de uma
gestação inesperada, pois sua mãe já tinha idade avançada e era considerada estéril. Na
ocasião de seu nascimento, foi acesa uma grande fogueira, com o objetivo de avisar a José e
Maria (então grávida de Jesus Cristo) sobre o seu parto.
São João Batista tem grande importância na história do cristianismo. Segundo a
Bíblia, ele teria sido o responsável pelo batismo de Jesus no ritual das águas. No texto bíblico,
as principais referências a João Batista foram feitas no livro de Lucas, cujo texto diz: ―eu, na
verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do
qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; este vos batizará com o Espírito Santo e
com fogo‖ (Lucas, 3,16).
Embora situado como primo de Jesus Cristo e responsável por seu batismo, as
manifestações populares de devoção a esse santo católico, como a Folia de São João, não
fazem parte do catolicismo litúrgico. Estão inseridas no que se chama de Catolicismo
Popular.
[...] um conjunto de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas
classes subalternas, usando o código do catolicismo oficial. Isso significa que
o Catolicismo Popular incorpora elementos do catolicismo oficial – os
significantes – mas lhes dá uma significação própria, que pode inclusive opor-
se à significação que lhes é oficialmente atribuída pelos especialistas. O
resultado é que o mesmo código religioso é diferentemente interpretado pelas
classes sociais de maneira que, sob uma unidade formal, escondem-se, de
fato, diversas representações e práticas religiosas (OLIVEIRA, 1985, p.135).

Essas representações e práticas independentes, pertencentes ao Catolicismo Popular,


embora possuam o caráter de liminaridade e significação própria e direta com o sagrado, são
variáveis importantes de estudo e pesquisa sobre as festas populares. Contudo, o presente
trabalho ultrapassa o conceito do catolicismo popular e delimita-se no campo das
Performances Culturais, com o intuito de reconhecer e compreender as performances
presentes nas ações envolvidas nos festejos da Folia de São João, particularmente nos ritos do
grupo de mulheres que realiza a procissão das ―donzelas‖ e, por consequência, as suas
interações com a sociedade local – da qual fazem parte.
21

Segundo a perspectiva de Richard Schechner, relatada por Costa (2013), ―qualquer


ação, não necessariamente humana, pode ser considerada uma performance, dependendo
somente dos padrões da cultura e contexto no qual está inserida ou, ainda, dos padrões de
quem analisa essa ação‖ (COSTA, 2013, p. 55).
Como ação humana, o ritual pode ser considerado uma performance. Richard
Schechner (2012) define que ritual pode ser entendido como secular ou sagrado, mas
apresenta-se sempre de maneira transgressora da realidade cotidiana e como manifestação da
memória individual e/ou coletiva.
Em decorrência dessas definições de Schechner (2012) e do conceito de Catolicismo
Popular percebeu-se que há um campo de estudo sobre a temática proposta, inclusive, com
bibliografia acerca desses dois campos, nos quais, alguns dos autores mais citados são
Richard Bauman (2006), com estudos sobre folclore; Victor Turner (1974, 1978 e 2005), que
trata de símbolos, rituais e ritos de passagem; Carlos R. Brandão (1985, 2004 e 2010), sobre
Catolicismo Popular em Goiás, romarias e festas populares, dentre outros, que delineiam os
conceitos acerca do tema. Dessa forma, os autores aqui citados serviram como ponto de
partida para que se encontrasse o caminho ideal para o desenvolvimento da pesquisa.
A fim de compreender o campo das performances, foi necessário entrelaçar a
pesquisa por meio de três autores principais, que discutem Performances Culturais,
antropologia e cultura popular: Schechner (2002 e 2012), Milton Singer (1985) e Turner
(1974, 1978 e 2005). Por meio dos estudos do primeiro autor, abordou-se a performance e
seus processos de liminaridade. Com o segundo, verificaram-se estudos históricos, teorias da
antropologia, estudos da performance e simbolismo cultural; enquanto o terceiro autor, que
também desenvolveu pesquisas com Clifford Geertz (2001) e Richard Schechner (2002),
trouxe estudos sobre símbolos, rituais (e suas rupturas), além de Van Gennep (2011), com os
Ritos de Passagem.
Assim sendo, a necessidade de compreender a participação de mulheres em uma
festividade tradicionalmente masculina, enquanto Performance Cultural, passa por caminhos
que buscam identificar as integrantes e demais participantes da folia das ―donzelas‖, as
relações que existem entre elas e o reconhecimento dos elementos tradicionais do festejo, bem
como os simbolismos que envolvem os rituais e a identificação da memória relacionada ao
grupo e à fundadora do povoado, a Santa Dica.
Contudo, em consequência do novo cenário mundial de isolamento social, provocado
pela pandemia de Covid-19, a realização dos festejos no ano de 2020 foi cancelada; portanto,
o estudo de campo também. A aplicação de questionários, inicialmente previstos, bem como
22

suas análises, foram, consequentemente, canceladas. Mesmo assim, de acordo com material
anteriormente colhido foi possível realizar o estudo, como demonstra a figura 3.

FIGURA 3 - PELA MANHÃ, O GRUPO DE DONZELAS FAZ O GIRO PELAS CASAS DO DISTRITO
ENTOANDO MÚSICAS E COLETANDO ESMOLAS (DONATIVOS)

Fonte: Vinícius Luz (2018)

Para realizar a análise dos rituais que envolvem as Performances Culturais da folia
feminina de São João, a abordagem utilizada foi a pesquisa exploratória, pela necessidade de
aprofundamento e compreensão do grupo social de mulheres, passando por sua organização,
formação histórica e motivações.
De acordo com Gil (2002), a pesquisa exploratória tem por objetivo:
Proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais
explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm
como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de
intuições. Seu planejamento é, portanto, bastante flexível, de modo que
possibilite a consideração dos mais variados aspectos relativos ao fato
estudado. Na maioria dos casos, essas pesquisas envolvem: (a) levantamento
bibliográfico; (b) entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas
com o problema pesquisado [...]. (Gil, 2002, p. 41).

Em relação aos procedimentos técnicos para essa abordagem, conforme descreveu o


autor, foi realizada a pesquisa bibliográfica e parte do estudo de campo, nesse caso, por meio
de entrevistas com alguns moradores, no formato de conversas espontâneas com o diretor da
Escola Estadual, Marcos César Teles de Camargo e com a sobrinha de Santa Dica, Brigitt
Cipriano, juntamente com a sua mãe, irmã de Dica, Bernarda Cripriano, durante os festejos de
2019, do distrito e com as folioas, que fazem parte dos festejos.
23

Portanto, as perguntas levantadas durante as conversas espontâneas (com gravações


autorizadas) passaram a balizar a pesquisa, como forma de compreensão, até mesmo, das
relações que se estabelecem entre as integrantes do grupo de folia. A busca por respostas é
uma forma de adentrar e evidenciar o caráter de Performance Cultural, além de explorar os
dados históricos e, possivelmente, antropológicos e religiosos do festejo.
Como o objetivo geral foi compreender e analisar a procissão, enquanto uma
performance cultural, bem como os objetivos específicos estivessem ligados à identificação,
compreensão, reconhecimento e à história (cultural) da manifestação, os procedimentos
técnicos foram os meios para alcançar esses objetivos.
Nesse contexto, segundo Gil (2002), a pesquisa bibliográfica apresenta algumas
vantagens:
A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao
investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do
que aquela que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem torna-se
particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados
muito dispersos pelo espaço. [...] A pesquisa bibliográfica também é
indispensável nos estudos históricos. Em muitas situações, não há outra
maneira de conhecer os fatos passados se não com base em dados
bibliográficos (GIL, 2002, p. 45).

Após a pesquisa bibliográfica havia um planejamento de estudo de campo, cancelado


em virtude da pandemia de COVID-19. Com isso, a pesquisa precisou tomar um novo rumo:
as conversas espontâneas gravadas, durante os festejos de 2019, foram fundamentais para
balizar essa nova direção, com o objetivo de compreender como os indivíduos experimentam
e interpretam os acontecimentos. Embora seja necessário evitar o direcionamento da
investigação.
Essas entrevistas buscaram ampliar a compreensão que os participantes têm de si
mesmos, desde a origem da festividade e suas motivações, até possíveis mudanças históricas
ocorridas antes ou após do falecimento da idealizadora da Folia e fundadora do distrito, a
Santa Dica. Nesse sentido, a inter-relação entre os aspectos socioculturais e a história regional
estão entrelaçados.
A base metodológica utilizada foi a descrição etnográfica, apoiada por fotografias
que descrevem in loco os aspectos dessa manifestação. A investigação etnográfica dessa
pesquisa foi a observação não-participante. As descrições etnográficas, conforme descreve
Eckert e Rocha (2003, p. 3), são "práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais, a partir da
observação, desenvolvidas no contexto da pesquisa‖. Ainda segundo o autor, o investigador
interage com o outro, organiza a experiência e lhe dá sentido. Para isso, o etnógrafo – ao agir
24

no tempo/espaço do outro/observado – descreve seus pensamentos em diários, relatos ou


notas de campo.
O trabalho etnográfico, conforme descreve Clifford Geertz (2001), consiste em
captar o significado das ―ações simbólicas‖– ou performances – em determinado contexto
social específico. Ainda, segundo Azzan Jr, relatado em Curado (2009):
Esses contextos se inscrevem nos atos, gestos, bem como em acontecimentos
aparentemente casuais. Para o autor, a densa descrição etnográfica envolve
tanto a subjetividade quanto a intersubjetividade – a relação dialógica do
etnógrafo com os seus interlocutores – devem estar presentes (AZZAN JR.,
1993 apud CURADO, 2009).

A partir disso, percebe-se que a descrição etnográfica é permeada por histórias e


considerações, contadas a partir da observação de seus participantes. A escrita etnográfica
buscou evidenciar o que não era percebido de modo a valorizar a investigação em campo,
com o subjetivo e o objetivo, com a intenção de encontrar respostas para os questionamentos
da pesquisa.
Para tanto, essa pesquisa foi estruturada em quatro capítulos. No primeiro, procurou-
se situar e ambientar o leitor sobre o distrito de Lagolândia, sua história ligada ao movimento
messiânico de Santa Dica, bem como a importância política e histórica dessa personagem
goiana, ainda outras festividades do distrito, além da Folia de São João.
No capítulo dois, situou-se o leitor com a descrição da festa e seus ritos, alguns
símbolos presentes na manifestação e na ambientação sobre São João, as Festas Juninas e os
santos católicos. Em Lagolândia, a forte memória de Santa Dica nos rituais e festejos.
No capítulo três, adentrou-se no universo das performances. Os autores Richard
Schechner (2002, 2012), Milton Singer (1985) e Victor Turner (1974, 1978, 2005) embasaram
as definições sobre performances e rituais; enquanto, Robson Camargo (2013), Clifford
Geertz (2001, 2008), Carlos Rodrigues Brandão (1985, 2004, 2010) e Richard Baumann
(1987, 2005, 2006) contextualizaram e deram base para as discussões sobre performances,
antropologia, festas em Goiás, folias e interpretações das culturas. As respectivas obras
encontram-se listadas nas referências desse trabalho.
No capítulo quatro, destacaram-se os registros fotográficos, realizados durante os
festejos de 2018 e 2019, além de alguns personagens e a descrição de alguns símbolos.
Visualmente, por meio das fotografias, foi possível compreender a descrição dos ritos, sua
organização, a hierarquia da festa, as performances e os ensaios que antecederam à
festividade.
25

Constituem-se, como partes integrantes dessa dissertação, alguns anexos e dois


apêndices. Um dos anexos apresenta a fotocópia do livro de cânticos das donzelas, com
algumas músicas escritas à mão pelas participantes. Outro anexo traz uma breve descrição
etnográfica dos festejos de 2019, composto pela transcrição de quatro páginas anotadas à mão
pelo pesquisador.
O apêndice é constituído pelos três questionários com questões norteadoras,
aprovadas pelo Comitê de Ética, que serviriam como base para as entrevistas, embora não
tenham sido aplicados em decorrência da pandemia.
Todos os capítulos e anexos dialogam no sentido de busca e desvendamento das
Performances Culturais na Folia de São João, em Lagolândia.
26

CAPÍTULO I

1 UM LUGAR CHAMADO LAGOLÂNDIA

Antes de adentrar ao assunto do capítulo, trazendo a contextualização histórica que


leva ao surgimento da Folia de São João, no distrito de Lagolândia, fez-se necessário recorrer
a conceitos que fundamentassem e diferenciassem a História Cultural, a memória e a
identidade, nesse caso, da comunidade pesquisada.
No caso específico da Folia de São João, o caminho da pesquisa passou pelo
movimento messiânico liderado por Benedita Cipriano Gomes; pelo contexto histórico,
político e social do início do séc. XX, em Goiás e no Brasil; pela migração para a região de
Lagolândia e, finalmente, pelo surgimento das festas religiosas do distrito, dentre elas a Folia
de São João, objeto dessa dissertação.

1.1 ENTRE A HISTÓRIA CULTURAL, A MEMÓRIA E A IDENTIDADE

Do ponto de vista etnográfico, buscou-se evidenciar, por meio da História Cultural,


uma nova forma de compreensão da sociedade e da história, colocando a cultura (e as pessoas
de cada época) como parte integrante do que passa a se chamar de narrativa. A partir desse
novo ponto de vista da história, estudos sobre manifestações de cultura popular, como as
folias, por exemplo, passam a ter como protagonistas os próprios ―fazedores‖ das festas.
Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados
partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. A cultura é
ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma
simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas,
às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portanto, já um
significado e uma apreciação valorativa (PESAVENTO, 2003, contracapa).

Nesse novo contexto, o homem comum passa a fazer parte das narrativas, visto que
se torna um sujeito importante e atuante, surgindo o conceito das mentalidades, pois o nível
cultural passou a ser entendido como uma forma de determinação primária da sociedade
(PESAVENTO, 2003). Porém, esse conceito não é preciso.
A mentalidade era uma maneira de ser, um conjunto de valores partilhados,
não-racionais, não-conscientes e, de uma certa forma, extraclasse. Falava-se
de permanências mentais e de sentimentos que atravessavam épocas e
culturas, partilhados por diferentes extratos sociais, mas sem que houvesse um
trabalho de aprofundamento teórico do conceito. (PESAVENTO, 2003, p.
31).
27

Desse modo, a História Cultural traz novas correntes historiográficas com mudanças
epistemológicas e nos métodos empregados, que objetivam revelar e, muitas vezes, dar
relevância ao secundário.
No caso da Folia de São João de Lagolândia, a História Cultural se faz pela
abordagem do comportamento humano, individual ou em grupo. É a capacidade de interpretar
papéis e seguir padrões comportamentais, com ―temas, figuras, motivos, símbolos, estilos e
sentimentos‖ (BURKE, 1992, p.15) e, dessa forma, compreender o que se chama de ―espírito
de uma época‖ (BURKE, 1992, p.16).
Esse ―espírito de uma época‖, por sua vez, pode ser resgatado também por meio do
que se chama de memória, muitas vezes, abordado unicamente por seus aspectos físicos ou
cognitivos, tem a sua construção enquanto fenômeno pessoal, coletivo ou social.
Contudo, ―a princípio a memória pode parecer um fenômeno de cunho pessoal, pois
cada indivíduo possui lembranças sobre sua trajetória de vida‖ (AMORIM, 2012, p. 108). No
entanto, para Halbwachs (1990),
Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali
eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com
outros meios. [...] Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos
a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social
(HALBWACHS, 1990, p. 51).

Assim, segundo o autor, relatado em Silva (2016), ―a constituição da memória de um


indivíduo resulta da combinação das memórias dos diferentes grupos dos quais está inserido‖
(SILVA, 2016, p. 248). Nessa relação ―o indivíduo isolado de um grupo social não seria capaz
de construir qualquer tipo de experiência, assim como também não é possível que mantenha
qualquer tipo de registro sobre o passado‖ (SILVA, 2016, p. 251).
Consequentemente, a memória pode ser compreendida como elemento da identidade,
pois estabelece ―uma ligação com o passado, enriquecendo o presente, selecionando pela
lembrança e pelo esquecimento o que se deve rememorar, sendo pleiteada também por
fornecer um lugar de pertencimento, uma memória comum‖ (AMORIM, 2012, p. 109).
Segundo Stuart Hall (2006):
Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas
identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e
das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não
são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas,
pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias casas (HALL, 2006, p. 88 e 89).
28

Portanto, a noção de pertencimento e identidade da comunidade e da Folia de São


João, em Lagolândia, não se faz unicamente pelo lugar geográfico, por se tratar de um
conjunto de memórias e histórias em comum, vividas onde, de acordo com o autor, as pessoas
retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um
retorno ao passado.

1.1.1 A memória, a identidade e o gênero no grupo em análise

Nessa perspectiva, o conjunto de memórias e histórias apresenta dimensões


importantes, que precisam ser compreendidas. O fato de se tratar de um distrito e de uma,
dentre várias outras, tradição fundada por uma líder mulher, conforme já apresentado, torna-se
necessário compreender a dinâmica na qual a manifestação se originou e está envolvida.
Para tanto, é importante elucidar questões de identidade e abordar a questão do
gênero, enquanto uma forma de ser no mundo e, nessa maneira de ser, entre a forma como as
pessoas são percebidas e condicionadas (GEBARA, 2000 apud GONÇALVES, 2010b).
Ainda, segundo o mesmo autor, o jeito de agir e o modo como se portam é fruto de uma teia
complexa de relações culturais.
Na Folia de São João, o grupo de pessoas que a realiza é protagonizado por
mulheres, como já mencionado, chamadas localmente de ―donzelas‖ e, mais recentemente,
folioas, mostrando-se diferente de outras folias, como é o caso da Folia de Reis, realizada
predominantemente por homens. Trazendo para a perspectiva de gênero, entre o masculino e
o feminino, ―quando se pensa em espaço feminino (...), não é o fato de ser, biologicamente,
homem ou mulher, mas no produto de uma construção social‖ (GONÇALVES, 2010b, p. 10).
Ainda para o autor:
Ao se pensar na existência do conceito de gênero, deve-se pensar a existência de
um processo dinâmico em sua formação. Porque gênero deve ser visto como
elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas
entre os sexos e como sendo um modo básico de significar relações de poder
(SCOTT, 1990 apud GONÇALVES, 2010b, p. 10, 11).

Nesse contexto, uma folia de mulheres, pensada enquanto conjunto de significados, é


permeada por ―arranjos sociais‖, talvez arbitrários às normas socialmente aceitas a cada
gênero. Segundo Scott (1995, p. 81), existe uma divisão sexual do trabalho e das tarefas
cotidianas, ―está implícito que os arranjos sociais que exigem que os pais trabalhem e as mães
executem a maioria das tarefas de criação das crianças estruturam a organização da família‖.
29

Nesse sentido, há uma divisão de papéis clara, que define a função de cada um, na família e
na sociedade.
Nas folias, como é o caso da Folia de Reis, a predominância masculina pode
representar um tipo de perpetuação das relações e comportamentos, entre homens e mulheres,
na sociedade. Já a Folia de São João, com os seus aspectos peculiares, cria uma nova
identidade, por ser um grupo com crenças, gênero, ritos e memórias em comum entre e com
marcada diferença em relação ao grupo de Folia de Reis, predominantemente masculino.
Entendendo, aqui, a identidade e a identificação enquanto:
na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do
reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo
ideal (HALL, 2000. p. 106 ).

Por meio desse reconhecimento, evocado pela memória, ―as identidades parecem
invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a
manter uma certa correspondência‖ (HALL, 2000, p. 109).
A identidade do grupo, portanto, tem sua coesão a partir de sua relação de gênero,
aliada à religião e está intimamente ligada ao sentido de pertencimento ao local de origem,
Lagolândia, e a história de sua precursora, fundadora dos costumes e líder local.

1.2 BREVE HISTÓRIA DA CIDADE DE PIRENÓPOLIS E O SURGIMENTO DE SANTA


DICA

A fim de se adentrar à pesquisa sobre as performances de mulheres na Folia de São


João, foi necessário conhecer a conjuntura histórica da época, com o objetivo de ambientar o
leitor sobre o surgimento, a formação econômica, cultural, social e política do distrito naquele
período histórico e, dessa forma, compreender a mentalidade da época.
O distrito de Lagolândia faz parte do município de Pirenópolis que, por sua vez, foi
uma das primeiras regiões povoadas e prósperas de Goiás. O seu surgimento, no séc. XVIII,
com o nome de Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte, está associado ao Ciclo do
Ouro, que perdurou durante quase todo o século; porém, com o declínio, consequentemente
veio a estagnação econômica e o isolamento da região em relação ao restante do país.
A história de Pirenópolis se iniciou com a vinda do Bandeirante Bartolomeu da Silva
Filho, o Anhanguera Filho, que havia sido expulso de Minas Gerais em decorrência da Guerra
30

dos Emboabas1. Porém, ―mesmo sendo ele o ‗descobridor‘ [das minas]2, (...) não é
considerado o fundador do arraial, ficando o crédito para Manuel Rodrigues Tomar‖ (PAIVA;
MARTINS, 2010, p. 32). A figura 4, apresenta um recorte da cidade, já em 1886. Lembrando
que, nessa época, a região de Goiás estava subordinada à Capitania de São Paulo.

FIGURA 4 - VISTA DA CIDADE DE PIRENÓPOLIS EM 1886

Fonte: Autor desconhecido. Disponível emhttp://bit.ly/2s9d9Pj

Já, a partir de meados do séc. XIX e até o início do século XX, após o fim do Ciclo
do Ouro, o cenário do antigo arraial de Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte,
agora com o nome de Pirenópolis (Cidade dos Pireneus), mantinha, assim como grande parte
da região de Goiás, as suas atividades econômicas voltadas para o comércio e a produção
agrícola.
Goiás viveu um longo período de transição. Desaparecera uma economia
mineradora de alto teor comercial. Nascia uma economia agrária, fechada, de
subsistência, produzindo apenas algum excedente para a aquisição de gêneros
essenciais, como o sal, ferramentas, etc. (PALACÍN, 1994, p. 48).

Segundo Paiva e Martins (2010), essa produção, porém, não tinha grande
representação no total do país. De acordo com Vasconcellos (1991, p. 73),
entre os 49 municípios de que se compunha o Estado de Goiás até 1930, o de
Pirenópolis não se encontra entre os vinte maiores produtores agrícolas. Sua

1
A Guerra dos Emboabas foi um confronto travado entre bandeirantes paulistas e os emboabas (portugueses e
imigrantes de outras regiões do Brasil), de 1707 a 1709, pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas
de ouro na região do atual estado de Minas Gerais.
2
Coube a Urbano do Couto, e o crédito dado a Manuel Rodrigues Tomar - Esboço Histórico de Pirenópolis
(Jarbas Jayme, 1971).
31

produção era de subsistência e o excedente que havia para a comercialização


não ultrapassava os limites regionais.

A população do município, segundo Vasconcellos (1991), era de 9.272 habitantes,


enquanto Goiás, que na época ainda era composto pelo atual estado de Tocantins e o Distrito
Federal (Figura 5), tinha uma população de 511.919 habitantes. ―A população escassa e o
pequeno orçamento fazem de Pirenópolis um município de pouca representatividade no
Estado‖ (VASCONCELOS, 1991, p. 53). Com isso, a economia era insignificante no
contexto nacional.
O orçamento de Goiás atinge seu máximo [...] em 1930, com o valor de
6:069:073$700. Comparando-o ao de outros estados da Federação, vê-se que
ele só tem similar no Piauí, sendo igual a 1,6% do de São Paulo, o maior do
país (MAGALHÃES, 1935 apud VASCONCELOS, 1991).

FIGURA 5 - CAPITANIA DE GOIÁS E LOCALIZAÇÃO DE PIRENÓPOLIS NO SÉC. XIX

.
Fonte: IHGG (Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

A sociedade goiana, ainda de acordo com Vasconcellos (1991), reproduzia o quadro


nacional, repousando, nos primeiros 30 anos do séc. XX, o poder político e a economia
32

nacional na propriedade de terras. Desse modo, no início do séc. XX, o poder político tinha
concentração nos moldes da chamada República Velha.
Nesse sentido, a dinâmica social e as relações econômicas e políticas do estado de
Goiás, no período da República Velha e, por consequência do Coronelismo, delineiam a
realidade e a mentalidade da época, fundamentais para compreender as hierarquias e o
panorama nos quais a cidade de Pirenópolis estava inserida.
De acordo com Frederico Oliveira da Paixão e Margot Riemann Costa e Silva
(2013), a República Velha, ou Primeira República, é marcada, no âmbito federal, pela política
―Café com Leite3‖, na qual, os candidatos de São Paulo (grandes produtores de café) e de
Minas Gerais (criadores de gado bovino e produtores de leite) se revezavam no poder,
mediante o apoio dos coronéis. Esse período é compreendido entre 1889, com a Proclamação
da República, a 1930.
O estado de Goiás, distante da capital federal, naquela época sediada na cidade do
Rio de Janeiro, era considerado de localização periférica no âmbito político, o que abria
espaço para o poder dos coronéis locais. Os coronéis, e as suas relações militares, mantinham
seus status e poderes por meio da propriedade sobre a terra, da dependência política e na
manutenção do atraso.
Os coronéis eram fazendeiros, grandes proprietários de terras, que detinham o
poder econômico, social, político e militar da região. Eram apoiados e
envolvidos na política estadual e até federal, em contrapartida, garantiam
apoio eleitoral aos candidatos indicados pelos governantes por força do voto
de cabresto, estes por sua vez, davam ―carta branca‖ (total liberdade) a estes
fazendeiros em seus domínios. A manutenção do poder baseava-se na
adequada manipulação do orçamento e pela reprodução do atraso4, assim,
mantinha-se a população em situação de dependência frente os chefes
políticos, além de evitar-se fiscalizações e intervenções federais que pusessem
em risco o poder local. (PAIXÃO e SILVA, 2013, p. 219).

O coronel, dessa forma, detinha o poder de dominação pessoal na região de suas


terras, que lhe garantiria o atendimentos de seus interesses. Segundo Palacín e Moraes (1994,
p. 94), a população ―tão pouco numerosa, vivia disseminada nas grandes extensões das
fazendas e dos sítios. Era uma população quase que integralmente rural‖. Nessas
circunstâncias, ―o governo tinha sua autonomia bastante reduzida pela prepotência dos
‗coronéis do interior‘.‖ (Idem, p. 98).

3
Política Café com Leite: Alternância e predominância do poder nacional por parte das oligarquias de São Paulo
e de Minas Gerais, durante o período chamado de República Velha.
4
Atraso, segundo Palacin (1994), entendido como isolamento e falta de infraestrutura.
33

As relações de trabalho também tinham grandes diferenças, em comparação com a


configuração dos dias atuais: a relação era de prestígio e um certo poder pela proximidade
com os coronéis, não existindo, unicamente, a relação monetária entre trabalho e dinheiro,
pois:
[...] trabalhar para alguém não significava simplesmente um contrato de
serviço prestado e de um salário recebido, era principalmente o
estabelecimento de um laço pessoal de confiança mútua e de dependência
pessoal. O empregado tornava-se assim ―homem do patrão‖, num sentido real,
embora sem o formalismo e sem a ideologia do antigo feudalismo
(PALACÍN, 1994, p. 98).

A diferença mais profunda encontrava-se no poder político, visto que ―o trabalho, as


diversões, o vestuário, e até a alimentação do fazendeiro não diferiam substancialmente da de
muitos dos seus empregados‖ (PALACÍN, 1994, p. 98). Destacando-se, assim, o
apadrinhamento que caracterizava essa relação patrão/empregado.

1.2.1 Santa Dica

Nesse contexto social e político, em 1905, nasce em uma das fazendas da região, a
36 quilômetros de Pirenópolis, na fazenda ―Mozondó‖, Benedita Cipriano Gomes, que mais
tarde passaria a ser conhecida como Santa Dica. Filha mais velha de oito irmãos, seus pais,
Benedito Cipriano Gomes e Benedita Pereira de Siqueira, tinham uma pequena parcela da
fazenda, onde trabalhavam como agricultores e possuíam um engenho de cana, onde
produziam rapadura (VASCONCELLOS, 1991). Era um trabalho de subsistência, pois,
apesar de possuírem terras, não tinham quase nenhum dinheiro.
As terras da Fazenda Mozondó, localizada na área rural de Pirenópolis, Goiás,
situavam-se próximas ao Rio do Peixe e pertenciam em grande parte à família
Cipriano Gomes, oriunda da cidade de Itu, São Paulo (JAYME, 1973 apud
CURADO, 2009).

Nessa época, sendo a mortalidade infantil uma constante, a gestação e o nascimento


da menina, que aconteceu na quarta-feira que antecedeu a Semana Santa, de acordo com
Curado, (2009), foi marcada por acontecimentos pouco comuns que, mais tarde, contribuíram
para fortalecer o misticismo em torno de Benedita Cipriano. Conforme relatos de seus
familiares:
desde o ventre já se mostrava diferente, pois pouco se movimentava e ao
nascer não chorou, o que preocupou os familiares e intensificaram as
conversas ao pé de ouvido, comuns nos pequenos aglomerados populacionais
(CURADO, 2009, p. 02).
34

Segundo Rezende (2011), o pai tivera um sonho no qual era avisado por um anjo de
que sua filha nasceria com uma missão muito especial, e que deveriam ajudá-la a cumprir.
Isso parece se confirmar, desde a primeira passagem da vida que dá a menina Benedita
notoriedade e a torna uma curandeira conhecida e respeitada na região, com poder político e
um imenso grupo de seguidores. O fato é o seu suposto caso sobrenatural de ―ressurreição‖,
aos sete anos de idade. Conforme Vasconcelos (2011), acometida de um mal desconhecido,
cai gravemente enferma:
Após tentar os recursos locais, chás e simpatias, é tida como morta ao final de
três dias de prostração. Ressuscita, no entanto, ao lhe ser dado o tradicional
banho dos defuntos. A notícia deste fato se espalha, primeiramente na
vizinhança para, em seguida, ganhar o município, o estado e o país
(VASCONCELLOS, 2011, p. 79).

FIGURA 6 – A JOVEM BENEDITA CIPRIANO GOMES – SANTA DICA

Fonte: Autor desconhecido, retirado do Jornal O Popular

Em poucos anos a menina já havia atraído seguidores. ―A princípio fora somente


curandeira, [...] alvo de admiração dos sertanejos. (VASCONCELLOS, 1991, p. 79). Com o
tempo, passou ainda para milagreira e profetiza.
Após as primeiras curas, passou Dica a ser acreditada também como
milagreira, pois, tendo ouvido solicitações dos fiéis e a elas dado respostas
que correspondiam à expectativa dos consulentes, estes passaram a crer e
apregoar o milagre. [...] Dica sofreu ainda a passagem de milagreira a
profetiza, pois, com o evoluir das conferências ali realizadas, começou
também a dar conselhos e, transmitir ordens e prever acontecimentos.
(VASCONCELLOS, 1991, p. 80).

A biografia de Santa Dica, nos anos que se seguem, será descrita nos próximos
subcapítulos, de acordo com a sequência de fatos pertinentes à presente pesquisa, sobre a
prática performática de mulheres na Folia de São João. Contudo, faz-se necessário ressaltar
35

que, segundo Paiva (2003), nesse período, cerca de 98% da população de Goiás era
analfabeta, com base nos dados do Censo de 1920. A medicina convencional (alopática),
nessa mesma época, também não era acessível ao sertanejo.
[...] Os médicos eram uma raridade e quando estavam disponíveis o preço da
consulta não era acessível a todos, assim como a medicação manipulada nas
antigas farmácias. Além do mais havia resquícios, principalmente entre os
sertanejos, de que os médicos não eram bem vistos pela Igreja. A maioria
deles recorria a rezas e promessas objetivando a cura. (CURADO, 2009, p. 3).

Nesse panorama histórico e social há um ambiente propício para a instauração de


sistemas político e sociais que, atualmente, são denominados de movimentos messiânicos,
comuns, também, em outras partes do país, como Canudos, na Bahia, liderado por Antônio
Conselheiro, também ligado à questão da terra.

1.2.2 O movimento messiânico de Santa Dica

Os fenômenos religiosos são estudados por ciências que, atualmente, saem dos
domínios da Teologia. A História, a Antropologia e a Sociologia também abarcam o tema,
pois estão envoltas nas complexidades das relações humanas. Por essa complexidade, também
podemos compreender alguns fenômenos como movimentos sociais, sendo o caso do
Messianismo.
Segundo a definição de Pontes (1992, p. 15), o conceito de messianismo tem
assumido as mais variadas acepções. No sentido vulgar ou corriqueiro, significa ―a crença na
existência de um personagem ou de uma doutrina que, por suas qualidades intrínsecas ou
mágicas levará a sociedade humana a uma situação paradisíaca‖. Por meio desse mesmo
autor, há uma compreensão de que:
Tais movimentos têm em comum o fato de se manifestarem sempre em
momentos de graves crises sócio-políticas, assumem quase sempre um caráter
revolucionário e, em sua essência, se constituem numa resposta dos povos
oprimidos (PONTES, 1992, p. 11).

De acordo com Max Weber (2004, p. 354), a autoridade carismática é conferida a


quem possui um ―poder supracotidiano, sobrenatural e divino [que] o predestina [...] a um
poder de mando‖, provavelmente, enviado por Deus. Para Gomes Filho (2012, p. 75), ―a
liderança de Dica em seu movimento messiânico pode ter sido orientada pela crença em sua
‗santidade‘, sendo a santidade um dos fatores de legitimação de sua ação religiosa‖, como
milagres e profecias, além da fama e da crença em seus poderes sobrenaturais.
(VASCONCELLOS, 1991).
36

Para Souza Barros (1977), os movimentos messiânicos também possuem uma


filiação em temáticas sociais, ocasionados pela ―causação social da miséria‖, próximas da
conceituação marxista, com ―as instituições secundárias decorrendo das primárias‖
(BARROS, 1977, p. 157). Ainda segundo esse autor, o messianismo tende a se fixar em duas
linhas, ―a mágico religiosa [...] e a de colocação do problema religioso apenas como veículo
para a solução de caráter econômico e social‖ (Idem, 1977, p. 157).
A situação econômica e o desenvolvimento social da região eram ruins. Como já
descrito, a organização política de Goiás se dava aos moldes do coronelismo, durante a
chamada República Velha, e toda a região era marcada pela pobreza e isolamento. Portanto,
pode-se entender o movimento liderado por Santa Dica como um fenômeno de características
messiânicas, pois, em sua biografia, registra-se que atingiu um período de ―milagres‖ e
profecias, quando a devoção atraiu milhares de pessoas para a região da fazenda Mozondó,
onde morava.
Nesse período de grande migração, segundo Vasconcellos (1991, p. 82), não foi
possível precisar a quantidade de novos moradores; porém, é certo afirmar que ―foi acrescido
um número substancial de habitantes e que aquela aldeiola de umas doze casas se transformou
em uma vila coberta de casas, ranchos e fogos‖. Por essa razão (Figura 7), outros
pesquisadores dão conta de que:
em cerca de dois anos, a pequena fazenda Mozondó se tornou um vilarejo
conhecido por ―Lagoa‖, ―Reduto dos Anjos‖, ―Calamita dos Anjos‖, e, mais
tarde, ―Lagolândia‖, onde a ―santa‖, segundo relatos, reuniu cerca de 500
seguidores /habitantes, e onde até 70 mil pessoas a teriam visitado em romaria
entre 1923 e 1925 (GOMES FILHO, 2012, p. 10)

FIGURA 7 - PRIMEIRAS CASAS DE LAGOLÂNDIA

Fonte: Reprodução de Rezende, 2009, p. 101

Nesse mesmo período, o então Rio do Peixe, que rodeava a fazenda Mozondó, foi
renomeado por Santa Dica para Rio Jordão. ―Um grande número de fiéis [...] fizeram dali a
37

sua habitação permanente e para lá foram em busca de viver com segurança sob a proteção
dos anjos‖ (VASCONCELLOS, 1991, p. 82). O autor afirma, ainda, que havia a crença
popular baseada na magia religiosa, de um reduto onde os anjos vinham falar com sua
representante na terra, Santa Dica. A população local passa a seguir as ordens da líder, com
suas próprias leis, muitas vezes em desacordo com a lei civil.
As novas leis emanadas da autoridade carismática são obedecidas sem
qualquer questionamento e sua obediência significa a legitimação da nova
liderança que procede de uma nova leitura ou reinterpretação ao povo do
mundo sertanejo. (VASCONCELLOS, 1991, p. 95, grifos nossos)

São leis, ideias e novos ideais que surgem no reduto (VASCONCELLOS, 1991),
fazendo com que o trabalho e as relações com a terra passem a ser pensados de uma forma
diferente de até então.
Ela [Dica] descrê que a terra seja propriedade daqueles que têm título dela. A
terra é de Deus, teria afirmado a santa, e assim, sendo propriedade de Deus,
deveria ser empregada para o trabalho coletivo daqueles que vivem como
irmãos. Seu produto deverá pertencer a todos, recebendo cada um segundo a
sua necessidade. (VASCONCELLOS, 1991, p. 96)

Essas ideias, o poder político e as influências socialistas passaram a incomodar os


coronéis da região, com riscos à ordem pública5. Havia o temor de um novo Canudos, agora
em Goiás. Jornais goianos e mineiros passaram a noticiar o fato e pedir providências ao
governo. O jornal católico Santuário de Trindade, na edição de 25 de outubro de 1924,
reafirma um pedido feito por um outro jornal, pedindo intervenção no reduto:
Tanto o ‗DEMOCRATA‘ da Capital como nós destas colunas já dirigimos um
apelo à polícia do Estado para pôr um paradeiro as especulações e
perturbações da ordem ocasionadas pela tal DICA DOS ANJOS. Os efeitos
perniciosos das insinuações já se fazem sentir entre o povo ignorante e sempre
propenso à novidade e causas curiosas. Os fazendeiros já se queixam, que
apesar da falta extraordinária de braços para a lavoura e outros serviços, não
podem vencer a obstinação de certos fanáticos que recusam a trabalhar nos
sábados porque a tal moça do Rio do Peixe afirma que nesse dia não se deve
trabalhar. (JORNAL SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1924, apud
VASCONCELLOS, 1991, p. 95 e 96)

Diante da pressão política, da Igreja e da imprensa, houve a abertura de um processo


criminal (Processo 651/1925), que resultou em uma invasão ao chamado ―reduto dos anjos‖,
onde o movimento de Dica ocorria. O confronto foi chamado de ―Dia do Fogo‖, ocorrido no
dia 14 de outubro de 1925. Segundo Gomes Filho (2012), o conflito teve duração de apenas
30 minutos, com poucas baixas.

5
Os jornais da época relataram a formação de uma comunidade com leis e ordenamento próprio, liderado por
Dica. Segundo Rezende (2009), havia a acusação de que Dica incentivava o não pagamento de impostos.
38

Os relatos dos moradores descrevem a pouca quantidade de baixas na invasão


(16 mortos e 5 gravemente feridos) como uma comprovação dos poderes
sobrenaturais de Dica, uma vez que a mesma não foi morta ou mesmo
capturada pelas forças policiais. Além disso, há relatos na tradição oral de que
as balas que chegavam à ―santa‖ eram presas por seus cabelos, ou caiam a
seus pés em forma de grãos de milho, dentre outros inúmeros relatos orais que
atribuem ao evento cenas miraculosas de heroísmo e santidade da parte de
Dica. (GOMES FILHO, 2012, p. 10)

Após o conflito, na semana seguinte, segundo o ―processo 651 (1925: 76v), Dica foi
encontrada e presa em Raizama, atual município de Alto Paraíso‖ (GOMES FILHO, 2012 , p.
127), sendo libertada somente no ano seguinte, quando, de acordo com dados do mesmo
processo, em 13 de julho de 1926, pressionado pela população, o Superior Tribunal de Justiça
de Goiás declarou improcedentes as denúncias contra os acusados, ordenando a soltura dos
mesmos. Contudo, ―foi proibida [...] de retornar ao reduto. No mesmo ano [...] mudou-se, com
alguns seguidores, para o Rio de Janeiro, onde [...] passou a ser conhecida em várias partes do
Rio e São Paulo‖ (GOMES FILHO, 2012, 127).

FIGURA 8 - DESENHO DE TARSILA DO AMARAL, QUE ILUSTROU O LIVRO MISTICISMO E


LOUCURA: CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DAS LOUCURAS RELIGIOSAS NO BRASIL, DE
OSÓRIO CÉSAR, 1939, DÉCADA EM QUE DICA SE TORNOU NACIONALMENTE CONHECIDA

Fonte: site de leilão de livros raros - www.veranunesleiloes.com.br

Dica volta a Goiás acompanhada pelo jornalista Mário Mendes, natural do Rio
Grande do Norte6 e repórter do jornal A Reação, onde foi designado para escrever sobre ela
(BRAGANÇA, 2019). Segundo sua irmã, Bernarda Cipriano, ―no caminho, ele [Mário
Mendes] passou a gostar dela e ela a gostar dele. E ele tomou conta dela. Ela já chegou

6
O estado do Rio Grande do Norte é amplamente mencionado em conversas com moradores do distrito.
39

grávida‖. Mais tarde, ainda de acordo com Bernarda, após o nascimento da criança, Dica teria
se casado com o jornalista Mário Mendes.
Meu pai tinha muito ciúme dela, quando ela era nova, e quando ele chegou,
meu pai ficou muito bravo, bravo demais. Eles apanharam ela, o pessoal que
morava aqui, [...] levaram ela pra baixo de Minaçu… Minaçu não, Uruaçu. Lá
ela ficou, guardando a gravidez até ganhar a criança. Ela ganhou a criança lá.
Aí, quando eles trouxeram ela, pra apresentar ao meu pai, pra ela casar com
ele, ele não tinha trazido os documentos. [...] Meu pai fez ele buscar os
documentos pra ver se ele era casado, né? Aí, deu que ele era casado, viúvo e
tinha um casal [de filhos] (informação verbal7).

Segundo informações obtidas no livro de casamentos da Paróquia Nossa Senhora do


Rosário, em Pirenópolis (Livro de Casamentos, 1928 a 1935, p. 2v e 3 - Paróquia Nossa
Senhora do Rosário – Figura 9), o casamento foi realizado no ano de 1928. Consta no cartório
de Lagolândia que, em escritura assinada por Dica8, em 1933, ela passou a assinar como
―Benedicta Cypriano Mendes‖, adotando o sobrenome do marido.

FIGURA 9 – REGISTRO NO LIVRO DE CASAMENTOS

Fonte: Paróquia Nossa Senhora do Rosário - Pirenópolis/GO

Dica ―permaneceu em matrimônio até final da década de 1940, a partir da qual seu
marido [...] a teria vendido a um sócio, Francisco Luís Teixeira, o Chico Teixeira (GOMES

7
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
8
Escritura referente à Fazenda Sapezal e Mozondó, Livro 1, folha 59.
40

FILHO, 2012, p. 128). Não foi a primeira a vez que o marido assim procedeu, conforme
Rezende:
Observando o interesse do sócio por sua bela esposa, Mário a vende para este,
pela quantia de 50 contos de réis. Não foi a única vez que o marido a vendera,
anteriormente já fora por duas vezes, como mercadoria que iria ser usada para
dar prestígio a aquele que a possuísse. Porém, Dica não aceitou. E novamente
era o que Mário Mendes achava que a esposa iria fazer. Entretanto, Dica já
cansada das trapalhadas do marido, resolve submeter-se a venda. [...]
(REZENDE, 2011, p. 45).

Com esse segundo marido ―Dica permaneceu casada [...] até sua morte em 1970‖
(GOMES FILHO, 2012, p. 128), em Goiânia, ―ao passar por uma cirurgia de intestino,
quando acabou não resistindo e morreu antes do final da operação (REZENDE, 2011, p. 52).
Quanto ao primeiro marido, Mário Mendes, embora fossem oficialmente casados,
chama a atenção as tentativas de venda de seu cônjuge. Em pesquisas realizadas sobre a
situação da mulher na primeira metade do século XX, bem como no período colonial e, mais
especificamente no estado do Rio Grande do Norte, de onde Mário Mendes era natural, não
foram encontrados casos semelhantes, de vendas (ou tentativas de venda) de esposas.
No período colonial, a condição da mulher, no olhar dos homens que eram herdeiros
dos valores portugueses, era de um ser inferior (RIBEIRO, 2000), embora, no caso específico
de Mário Mendes, seja possível pressupor que as tentativas de venda não tivessem relação
com heranças culturais ou históricas.

1.2.2.1 Um outro movimento

Para ajudar a compreender o fenômeno messiânico observado em Lagolândia, fez-se


necessário recorrer a um outro movimento, em outra região do país, com características que
podem corroborar com esse estudo, porém, sem o viés comparativo.
No nordeste do Brasil, entre o final do século XIX e início do século XX, surge um
personagem importante na história do semiárido brasileiro, que ganhou repercussão
internacional com a sua história levada ao conhecimento do Vaticano. Cícero Romão Batista,
conhecido como Padre Cícero, ganha relevância histórica após sua ordenação como padre, já
em Juazeiro do Norte, no estado do Ceará, lugar onde a religiosidade e a vida do sertanejo era
marcada por crenças e relatos de manifestações de fé e catolicismo popular.
Existia espaço para propaladas aparições tanto de almas penadas quanto de
pavorosas mulas sem cabeça. Benzedeiras desfaziam quebrantos com a ajuda
de rosários, como também de patuás e folhas de pinhão-roxo. Davam-se
notícias de curas extraordinárias, de palestras com mortos e de intervenções
miraculosas do Além. A recorrência das secas e pestes inclementes ajudava a
fazer de cada manifestação da natureza um recado de Deus — ou uma
41

artimanha do diabo — contra o mundo imperfeito dos homens (NETO, 2009,


p. 22).

Nesse cenário, durante a chamada grande seca9, na celebração de uma missa, no ano
de 1889, ao receber a hóstia das mãos do Padre Cícero, essa teria se transformado em sangue
na boca de uma das devotas. O fenômeno teria se repetido outras vezes e ficou conhecido
como o ―Milagre de Juazeiro‖.
[...] Maria de Araújo era uma das várias devotas que se encontravam na
capela de Joaseiro para assistir à missa e acompanhar os rituais que se
celebravam [...]. Foi uma das primeiras a receber a comunhão. De repente,
caiu por terra e a imaculada hóstia branca que acabava de receber tingiu-se de
sangue (DELLA CAVA, 1976, p, 45).

A notícia do fato ocorrido, o ―Milagre de Juazeiro‖, ganhou repercussão e atraiu


milhares de devotos,
Juazeiro transformara-se em chão sagrado. Moradores das cidades e
localidades mais próximas chegavam de forma espontânea ao minúsculo
povoado, atraídos pelas narrativas que davam conta do sangue de Jesus
derramado em pleno agreste. Mas foi em 7 de julho, um domingo que
marcava o ápice da tradicional festa cristã do Precioso Sangue, que Juazeiro
assistiu pela primeira vez à chegada maciça e ordenada de milhares de
peregrinos. Foi a primeira de todas as romarias. Naquela manhã, cerca de 3
mil pessoas — quase dez vezes a população do lugarejo — apinharam-se nas
estreitas e diminutas ruelas do local (NETO, 2009, p. 41).

Porém, a pedido do Padre Cícero, o milagre foi investigado por uma comissão da
Igreja, que não comprovou o fato. Contudo, não houve consenso entre a Igreja e os devotos. A
Igreja proibiu, em relatório, que Padre Cícero pregasse sobre os milagres, "que ainda não
tinham sido comprovados" (DELA CAVA, 1976, p. 56).
Se o ―Milagre de Juazeiro‖ for considerado como evento fundador da peregrinação e
da notoriedade de Padre Cícero e, por outro lado, Juazeiro como lugar de salvação,
Lagolândia e o ―reduto dos anjos‖ pode, também, em época distinta, ser reconhecida como
lugar de salvação, tendo como evento fundador o caso de retorno à vida de Santa Dica, depois
de ser dada como morta.
Os acontecimentos da vida de Dica, assim como a sua influência social e política, se
comparados à historiografia de Padre Cícero10, em escalas diferentes, ajudam a compreender
o caso messiânico de Goiás, que atraiu devotos em torno de uma figura central, respeitada
pelas classes mais pobres e motivo de desconfiança ou perseguição da Igreja e do Estado. A

9
Período de grande estiagem no nordeste brasileiro, no final do século XIX, que teria sido responsável pela
morte de aproximadamente 500.000 pessoas.
10
Padre Cícero chegou a ser prefeito de Juazeiro do Norte e Vice-Governador do estado do Ceará.
42

interferência em assuntos da política é uma marca do messianismo brasileiro, dadas as


marcantes desigualdades sociais. Em Goiás, há o diferencial de ser em torno de uma mulher,
em época e local dominados pelos cânones masculinos.

1.2.3 A participação de Dica nas revoluções

Dica ingressa na política, por influência do marido, no período em que permaneceu


casada com o jornalista potiguar Mário Mendes, com o qual teve cinco filhos, sendo dois
adotivos (REZENDE, 2011)11. Como se observa nessa época, mesmo com iniciativas e ideias
próprias, era comum que a mulher precisasse da figura ou da presença masculina para
alcançar ou permanecer em postos de destaque, normalmente o pai ou o marido.
A presença política de Dica foi determinante. Seus seguidores votavam em quem ela
mandasse (VASCONCELLOS, 1991), por essa influência, seu marido é eleito prefeito de
Pirenópolis em 1934. ―Mário Mendes foi [...] o único eleito ou nomeado a exercer essa função
que não pertenceu às famílias tradicionais do município‖ (REZENDE, 2011, p. 42). Nesse
caso, ela foi a responsável pela concretização dos projetos políticos do primeiro marido que,
como já descrito, demonstrava posturas impróprias, mesmo para a época.

FIGURA 10 – DICA E MÁRIO MENDES COM A PRIMEIRA FILHA DO CASAL

Fonte: Reprodução de Vasconcellos (1991, p. 9312)

11
Houveram tentativas de entrevistas com duas filhas, que residem em Goiânia, porém, não foram realizadas
devido ao isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, além da impossibilidade de realização online.
12
A reprodução original está em Famílias Pirenopolinas, volume 4, de Jarbas Jayme (1973).
43

Mais tarde, segundo dados do portal da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás13,


Mário Mendes foi eleito Deputado Estadual como 7º suplente, assumindo mandato em maio
de 1937. De acordo com as informações da Assembleia, ele foi filiado ao Partido Social
Republicano (PSR), entre 1934-1937.
No âmbito nacional, o país vivia um período de crescente instabilidade política.
Nesse período houve duas revoluções, ambas com a participação de Santa Dica com um
exército próprio: A Revolução de 1930, que pôs fim à República Velha e a Revolução
Constitucionalista de 1932, contra o Governo de Getúlio Vargas.

1.2.3.1 Participação na Revolução de 1930

A Revolução de 1930 teve, como uma de suas consequências, a deposição do então


presidente da república Washington Luís, no dia 24 de outubro de 1930. O mesmo movimento
impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes.
O líder dessas mudanças foi Getúlio Vargas, cabeça da chapa derrotada nas
eleições presidenciais de fevereiro de 1930. Vargas chefiou o governo
provisório desde a deposição de Washington Luís até que ele mesmo fosse
eleito indiretamente, desta vez com base em uma nova Constituição,
promulgada em 1934; em 1937, contudo, dá-se novo golpe, outra vez
encabeçado por Vargas, inaugurando o Estado Novo, o qual se estenderá até
1945 [...] (CABRAL, 2011, p. 133 e 134)

Em Goiás, não havia um clima revolucionário. A participação efetiva na revolução


limitou-se a um pequeno grupo em Rio Verde, liderado pela ação pessoal de Pedro Ludovico
Teixeira que, ―ao explodir a revolução [...], reuniu um grupo de 120 voluntários no Triângulo
Mineiro, com o qual tentou invadir a região sudoeste de Goiás‖ (PALACÍN, 1994, p. 104).
Nessa ocasião, Pedro Ludovico foi preso (PALACÍN, 1994).
A Revolução de 30 foi uma revolução importada para Goiás, e nem poderia
ser de outra maneira, pois não foi uma revolução popular, nem sequer uma
revolução de minorias com objetivos sociais. [...] Foi, portanto, uma
revolução feita por grupos heterogêneos da classe dominante descontente [...].
(PALACÍN, 1994, p. 103).

Contudo, mesmo de Lagolândia, alguns aspectos históricos envolvem Benedita


Cipriano Gomes na Revolução de 1930. De acordo com Rezende (2011) a trajetória de Santa
Dica teve importante papel em escala estadual, o que possivelmente mudou os rumos da
história de Goiás:

13
Informação no Portal da Assembleia Legislativa de Goiás (ALEGO):
https://portal-legado.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1907
44

De Lagolândia partiram 40 homens seguindo Santa Dica [...]. O objetivo do


grupo era libertar Pedro Ludovico do cárcere em que era mantido pelos
revoltosos [em Rio Verde], opositores à transferência da capital, o que foi
realizado com êxito (REZENDE, 2011, p. 93).

Na sequência dos acontecimentos, Pedro Ludovico foi nomeado interventor federal


do estado de Goiás, em 22 de novembro de 1930, por Getúlio Vargas. Para Silva e Mello
(2013, p. 59), Pedro Ludovico privilegiou, ―desde os primeiros anos de governo, a construção
de uma nova cidade-capital para o estado, com o intuito de romper com as bases de
sustentação da estrutura oligárquica goiana‖, visto que:
Getúlio Vargas apoiou o projeto de transferência da capital goiana
apresentado por Pedro Ludovico. Podemos afirmar que ambos lograram êxito
na produção de marcas para seus quinze anos de governo ininterruptos, de
1930 a 1945. (SILVA; MELLO, 2013, p. 59).

Em 1932, devido a sua participação na Revolução de 1930, além de Santa Dica,


―foram convocados para comandar tropas do Exército, seu pai e o seu tio, que eram
seguidores, moradores de Lagolândia‖, segundo Rezende (2011, p. 95).

1.2.3.2 Participação na Revolução Constitucionalista de 1932

A Revolução Constitucionalista de 1932 foi um conflito remanescente da Revolução


de 1930, ocasionado em decorrência da longa permanência de Vargas, ―as pressões para a
reconstitucionalização do Brasil se intensificaram a partir de 1932, especialmente em São
Paulo, estado que foi mais prejudicado com o fim da República Velha‖ (CABRAL, 2011, p.
138). Consequentemente, houve reação:
São Paulo se levantou em armas contra a União na chamada Revolução
Constitucionalista de 1932, que, afora o apoio tímido de Artur Bernardes, em
Minas Gerais, e de Borges de Medeiros, no Rio Grande do Sul, não alcançou
a repercussão nacional desejada. Em poucos meses, o levante foi derrotado
em armas, mas provocou a convocação da Constituinte para o ano seguinte.
(CABRAL, 2011, p. 138).

De acordo com Rezende (2011, p. 94), durante a Revolução Constitucionalista de


1932, Santa Dica e seu marido Mário Mendes ―são considerados experientes por terem
participado da Revolução de 1930 em Goiás [...], são convidados a se juntarem às tropas
oficiais do governo estadual e federal‖.Diante disso:
Em 1932, Benedicta assumiu a frente de outro exército que foi incorporado ao
Batalhão Goiano de Siqueira Campos, sendo solicitada a lutar do lado dos
legalistas na Revolução Constitucionalista de São Paulo, travando combates
na Ponte do Jaraguá, Itajobi, Kilômetro 432 e Chapadão (SILVA, 2005, p.
19).
45

Santa Dica reuniu um grupo de 150 homens que ficou conhecido como ―pés com
palha e pés sem palha‖. ―Ninguém sabia marchar [...], então a líder mandou fazer cordões de
palha de milho e amarrar no pé direito de cada soldado e a orientação partia de Dica: pé com
palha (batia o pé direito), pé sem palha (batia o pé esquerdo)‖ (REZENDE, 2011, p. 94).
[...] [o exército] voltou sem nenhuma baixa, resultado atribuído à liderança de
Benedicta. Um episódio famoso foi quando seu exército precisava passar pela
ponte de Jaraguá, em São Paulo que estava minada. Ela ordenou que um de
seus soldados a atravessasse de olhos vendados, e como nenhuma bomba
detonou, toda tropa também atravessou a ponte com os olhos tapados, sendo
que a ponte veio a ruir após passar o último soldado (SILVA, 2005, p. 18).

FIGURA 11 - BATALHÃO DO EXÉRCITO DA SANTA DICA EM UBERLÂNDIA – MG, SEGUINDO


PARA A REVOLUÇÃO DE 1932, EM 24 DE AGOSTO DO MESMO ANO

Fonte: Reprodução de Vasconcellos, 1991, p. 101

Após a Revolução de 1932, a fama e o prestígio de Dica já se tornara nacional. ―O


coroamento deste período de Dica foi a emancipação do distrito de Lagolândia, conseguido
através de um favor político [...] com o deputado estadual na época Olímpio Jaime‖
(REZENDE, 2011, p. 88).
No âmbito nacional, segundo Rezende (2011, p. 90), em 1932, durante a Revolução,
―Dica surpreendeu o jovem médico [Juscelino Kubitschek] ao prever que o mesmo ainda
assumiria o cargo majoritário do país‖, antes da carreira política. ―Juscelino, após tomar
posse, como presidente do Brasil, desfila com ela [Dica] pelas ruas de Goiânia‖, talvez como
reconhecimento das palavras recebidas no passado.
46

1.2.4 Lagolândia nos dias atuais

Atualmente, Lagolândia é um distrito de Pirenópolis que enfrenta um crescente


esvaziamento populacional, percebido, também, no trajeto da folia, em ruas vazias, entre as
casas dos moradores (Figuras da abertura). Em conversa com o professor Marcos César Teles
de Camargo, diretor da escola pública estadual do distrito14, o êxodo é provocado
principalmente pela baixa atividade econômica, que ocasiona desemprego e o isolamento da
região. ―As pessoas saem em busca de oportunidades de trabalho, a maior parte na sede do
município de Pirenópolis‖, afirma o professor. Segundo Marcos César:
hoje o serviço público emprega mais funcionários que as fazendas. No serviço
público tem a educação, nas duas esferas. No estado temos uns 20
funcionários, na saúde tem uns cinco funcionários do município, mas que são
alocados aqui, tem os Correios, a Saneago, tem funcionários da limpeza da
prefeitura… então, se a gente pegar um levantamento, a gente tem aqui, na
nossa cidade, uns 50 a 60 funcionários públicos. A zona rural não emprega 50
diaristas. [...] O comércio por aqui é pequeno, tanto que nós temos só dois
pontos de comércio (informação verbal15).

FIGURA 12 - O PRÉDIO DA ESCOLA PÚBLICA DO DISTRITO LEVA O NOME DE SANTA DICA,


BENEDITA CIPRIANO GOMES

Fonte: Vinícius Luz (2019)

A cidade de Pirenópolis, segundo dados do IBGE16, tem estimativa populacional para o


ano de 2017 de 23.006 habitantes. Porém, apesar de não existirem dados oficiais sobre a

14
O prédio da escola pública abriga duas instituições de ensino: pela manhã é municipal e, no período da tarde,
estadual.
15
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
16
Informações encontradas no endereço: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/pirenopolis/panorama
47

população de Lagolândia, relatos de moradores e do professor dão conta de que, atualmente,


o distrito possui aproximadamente 250 habitantes fixos.

FIGURA 13 - VISTA AÉREA DO DISTRITO DE LAGOLÂNDIA

Fonte: Vinícius Luz (2018)

No entanto, o distrito já passou por um período com autonomia econômica e política.


Na década de 1960, o povoado foi alçado à condição de município de Lagolândia, com a
emancipação ocorrida em 14 de novembro de 1963.
Durante o curto período de sua emancipação o novo município foi
administrado por José Araújo Durães, depois por Geraldo Moreira
Damasceno, ambos nomeados, por indicação de Dica. O terceiro foi eleito,
com apoio da líder, Antônio Carlos da Silva e permaneceu no cargo até a
queda da emancipação, ocorrida em 10 de outubro de 1967. (REZENDE,
2011, p. 119-120)

Após o curto período de emancipação, o distrito voltou a fazer parte do município de


Pirenópolis. Com isso, Lagolândia passa por um longo processo de decadência, ―perde
maquinários, os cartórios, a delegacia [...]‖(REZENDE, 2011, p. 121). A emancipação ―caiu
devido a um processo instaurado pelos inimigos de Dica, justificando que o território do
município havia invadido terras do município de Barro Alto, com o qual faz divisa‖
(REZENDE, 2011, p. 120).
Dica morreu em 9 de novembro de 1970, na cidade de Goiânia. ―Foi sepultada,
conforme seu desejo, em Lagolândia, sob uma gameleira que fica em frente à sua casa‖
(SILVA, 2005, p. 20), conforme circunstância já descrita. O corpo foi posicionado ―com a
48

cabeça voltada para a igreja, e os pés para frente do casarão, como se um dia fosse se levantar
e quisesse permanecer para sempre em vigília‖ (REZENDE, 2011, p. 52).
Com o passar do tempo, o distrito não mudou muito. Atualmente, Lagolândia conta
com uma praça central, rodeada por casas, algumas em estilo que remetem à arquitetura
colonial, com um busto de Dica, rodeado por flores, e o seu túmulo à sombra de uma
gameleira, com raízes que brotam de seu sepulcro (Figuras 14 e 15), onde, de um lado está a
sepultura de seu segundo marido, Chico Teixeira e, do outro, apesar de não ter nenhuma
lápide, segundo informações de sua sobrinha Brigitt Cipriano, estaria sepultado o seu tio,
irmão de Dica, Benvindo Cipriano.
FIGURA 14 - TÚMULO DE SANTA DICA, SITUADO NA PRAÇA, EM FRENTE À
CASA ONDE RESIDIU ATÉ A SUA MORTE

Fonte: Vinicius Luz (2018)

FIGURA 15 – DETALHE DA LÁPIDE COM OS DADOS DE DONA DICA

Fonte: Vinícius Luz (2018)

A sua antiga casa, em frente à praça, ainda atrai fiéis e pesquisadores, com
atendimentos realizados por Divina Soares da Silva, que se autoproclama sucessora de Santa
Dica. Segundo informações obtidas em conversas com moradores, esse posto teria sido dado a
49

ela, ainda criança, pela própria Dica, ―em conversa com os anjos‖.

1.2.5 A casa de Santa Dica nos dias atuais

Conforme se observa, a vida de Benedita Cipriano Gomes, a Santa Dica, foi marcada
por acontecimentos, alguns históricos e políticos, que ultrapassam o caráter, percebido por
muitos, de mera curandeira. Com o seu falecimento, em 1970, e o fim da emancipação
política de Lagolândia, três anos antes, o distrito passa por um longo processo de decadência.
Somente em 1999 [...] esta situação começa a mudar. O distrito foi asfaltado,
a rede fluvial de esgotos foi construída e feita a reforma e ampliação da escola
local, que leva o nome de sua fundadora: Benedita Cipriano Gomes.
(REZENDE, 2011, p. 122)

Contudo, a memória que cerca o local remete ao passado marcado pelo movimento
messiânico que se instaurou ali. Atualmente, a antiga casa de Santa Dica ainda serve como
atrativo de fiéis, com atendimentos de cura, realizados no local. Dessa forma, o distrito não se
desvincula da presença de sua fundadora e, conforme define Geertz (2008), a religião, ou
religiosidade, se estrutura em sistemas simbólicos:
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3)
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo
essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e
motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).

Assim, a casa, como significado do símbolo [Santa Dica], pode ser uma
representação tangível de memórias ―de noções, abstrações da experiência fixada em formas
perceptíveis, incorporações concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças‖
(GEERTZ, 2008, p. 68) relacionadas à história da líder que viveu ali.
Essa dimensão simbólica, que se evidencia, também, pelo túmulo situado na praça, à
frente da casa, juntamente com a memória dos moradores locais, perfaz um sistema social
centralizado em padrões culturais, como define o autor, "modelos", ―cujas relações uns com
os outros ‗modelam‘ as relações entre as entidades, os processos ou o que quer que seja nos
sistemas [...] social ou psicológico‖ (GEERTZ, 2008, p. 69).
Esses sistemas sociais e psicológicos permanecem, mesmo com o passar do tempo. O
distrito revive, todos os anos, festas tradicionais iniciadas pela fundadora do distrito. A Folia
de São João, objeto dessa dissertação, tem como ponto de saída a casa de Santa Dica (Figura
16), à meia noite do dia 24 de junho, dia de São João.
50

FIGURA 16 - CASA DE SANTA DICA, FACHADA E PARTE INTERNA, COM DETALHE DE


GALHOS DA GAMELEIRA QUE COBRE O TÚMULO

Fonte: Vinícius Luz (2019) – Montagem do autor

1.3 UMA COMUNIDADE DE FESTAS: FESTAS EM QUASE TODOS OS MESES DO


ANO

O distrito de Lagolândia possui, em seu calendário de eventos, grande quantidade de


festas e tradições religiosas de origem católica. Embora cada uma dessas festividades tenha
significados e motivações distintas para a sua realização, ―[...] todas as comemorações do
distrito foram iniciadas por Santa Dica, por volta de 1920‖ (REZENDE, 2011, p. 138). Dessa
forma, de acordo com Gomes Filho (2009), a realização de festas e comemorações de
Lagolândia possuem grandes semelhanças com os rituais do catolicismo.
[...] Uma análise das festas e rituais estabelecidos por Santa Dica em sua
comunidade, percebemos uma grande semelhança entre estes e os rituais há
muito existentes na Igreja Católica. A razão fundamental disso encontra-se no
fato de que Dica, em nenhum momento renegou sua fé católica, pelo contrário
permaneceu – como ainda hoje seus fiéis permanecem – ritualmente
pertencente ao catolicismo, sem, contudo, estar subjugada ao domínio da
instituição católica (GOMES FILHO, 2009, p. 297).

A similaridade podia ser constatada na realização de ritos católicos, como registram


os estudiosos.
Dica passa a batizar os nascidos no reduto, o recém-nascido era vestido com
um traje branco, os pais e padrinhos (a maioria escolhia Dica como madrinha
e um dos Guias como padrinho), pegavam-no nos braços enquanto Dica
realizava rituais semelhantes aos da Igreja Católica, utilizava a vela, a água e
o óleo (REZENDE, 2011, p. 80).

Essa característica peculiar, no entanto, pode ser compreendida por meio do chamado
catolicismo popular, definido aqui, conforme Roberto Cardoso de Oliveira (1970), como
expressão e relacionamento direto e pessoal entre o homem e o sagrado, escapando ao
controle da Igreja, enquanto instituição.
51

Do ponto de vista da Antropologia, segundo Brandão (2010, p. 20), existem duas


tendências nos estudos das festas religiosas: ―a festa pode ser considerada um ritual ou uma
configuração de rituais, cujo acontecimento se opõe à rotina‖, enquanto:
[...] há uma tendência na antropologia mais remota em considerar como ritual
apenas solenização cerimonial de comportamentos coletivos, cujos propósitos e
símbolos, concentrados em ritos e mitos, têm algo a ver com a expressão do
sagrado, seja ele mágico ou religioso, no seu sentido mais amplo. (BRANDÃO,
2010, p. 20)

O ritual, conforme descreve Brandão (2010), pode ser visto como ―um meio de
comunicação entre o humano e o sagrado‖, trazendo consigo significados que formam a
identidade da comunidade. ―[...] Esse parece ser o ponto de vista de Victor Turner, para quem
o ritual realiza comportamentos formais codificados, separado dos da vida rotineira e que se
referem a crenças em seres e poderes místicos‖ (BRANDÃO, 2010, p. 20).
A partir dessas compreensões, a maior parte dos significados das festas em Lagolândia
remetem ao sagrado, ao mágico e ao religioso. Por essa razão, segundo Curado (2011), para a
finalidade de compreensão, é possível relacionar, temporalmente, o período da realização das
festas do distrito com as fases do ano. Para tanto, há uma ―divisão empírica dos anciãos
goianos, de maneira a agrupá-las em período das ‗águas‘ e período da ‗seca‘‖ (CURADO,
2011, p. 103).
Dessa forma, as principais festividades religiosas, de acordo com a sequência
cronológica em que acontecem (CURADO, 2011), são: a Folia de Reis, com início no dia 31
de dezembro e término em 6 de janeiro; a Folia de São João, em 24 de junho (tema da
presente pesquisa); a Festa do Divino Pai Eterno, no terceiro final de semana de julho
(REZENDE, 2011, p. 141); e a Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, entre os dias
sete e oito de dezembro de cada ano (REZENDE, 2011, p. 142), dentre outras.

1.3.1 A Folia de Reis em Lagolândia

A Folia de Reis é realizada por ―foliões do sexo masculino [...], o caminho vai de
Lagolândia até o povoado de Placas Vicentina e Região do Fundão‖ (REZENDE, 2011, p.
137). Essa Folia em Lagolândia, também iniciada por Santa Dica, ―apresenta características
semelhantes às da folia da cidade de Jaraguá. A prece recitada pelos foliões antes de cada
refeição foi ensinada pelos Guias‖ (REZENDE, 2011, p. 138), entidades espirituais com as
quais Dica alegava conversar.
52

Em Lagolândia, bem como em qualquer local onde é celebrada, a Folia de Reis tem
uma liturgia própria, que não faz parte da liturgia oficial da Igreja Católica, apesar de a
origem do festejo estar ligada ao evento bíblico da visita e adoração dos Reis Magos ao Jesus
menino e à colonização católica do país. Durante a conversa com o professor Marcos César,
ele explicou algumas das características da Folia de Reis em Lagolândia, como o ―Caetano‖ e
a ―Catarina‖:
[...] em outras folias da região, tem essas figuras também, muitas vezes com
outros nomes, que é a figura do palhaço. [...] Caetano e Catarina. É um casal.
[...] São só dois palhaços na folia daqui da região (informação verbal17).

A Folia de Reis representa ―um bom exemplo da maneira como a sociedade


camponesa estabelece relações sociais e simbólicas entre categorias de suas pessoas e grupos,
no interior da família, da parentela, da vizinhança, da comunidade‖, segundo Brandão (2010,
p. 55).
Como parte do ciclo do Natal, no distrito, os festejos são realizados ―todos os anos
do dia 31 de dezembro a 6 de janeiro‖ (REZENDE, 2011, p. 137). Apesar de não ser o objeto
dessa dissertação, na localidade, a Folia de Reis possui características ligadas ao movimento
de Dica. Segundo Rezende (2011, p. 138), ―a prece recitada pelos foliões antes de cada
refeição foi ensinada pelo Guias‖. Ou seja, é notório o papel influenciador da matriarca.

1.3.2 A Festa do Doce

A Festa do Divino Pai Eterno, no distrito, é conhecida como ―Festa do Doce‖, e


consiste na preparação e distribuição de doces para a comunidade e visitantes. Nos dias da
festa, ―[...] nota-se grande acúmulo de pessoas que se dispõem a colaborar com o Imperador
ou com os festeiros por devoção ao Divino Pai Eterno [...]‖ (CURADO, 2011, p. 155).
A Festa do Doce, diferente da Folia de Reis, que possui características semelhantes a
outras festividades da região, teve todos ―os hinos [...] ensinados nos dias de Conselhos pelos
Guias18, assim como a melodia‖ (REZENDE, 2011, p. 141). Como parte do ritual, que se
diferencia dos festejos do Divino Pai Eterno na cidade de Trindade, onde se realizam os
festejos mais antigos e concorridos, em Lagolândia:
Apresenta-se como figura principal da festa o Imperador (representa o Divino
Pai Eterno), cabendo a este organizar as novenas e alvoradas, preparar e

17
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
18
Dias de Conselhos dos Guias: dias destinados ao aconselhamento, por parte das entidades espirituais com que
Santa Dica alegava conversar, ou seja, nas sessões de consultas.
53

oferecer aos romeiros um banquete de doces em calda, no domingo que é o


dia de maior volume de romeiros. De alguns anos para cá, tem oferecido aos
visitantes um farto almoço, além dos doces. (REZENDE, 2011, p. 141).

Detalhe curioso é o fato de que a Festa do Doce, em homenagem ao Divino Pai


Eterno, tem a sua origem em uma passagem importante da vida de Santa Dica. Naquele
período, o Santuário da cidade de Trindade era administrado pelos Padres Redentoristas, que
chegaram em Goiás ―em 1894, vindos da Alemanha para cristianizar a romaria‖:
Os padres Redentoristas foram enviados à Trindade com o intuito de
cristianizar a Romaria e impor o preceito moralizador da Igreja na festa que
deveria ser religiosa, e não profana [...]. O objetivo principal da convocação
dos redentoristas alemães [...] era a administração do Santuário de Barro
Preto, hoje Trindade. (REINATO, 2010, p. 8)

A tentativa de ―moralizar‖ e ―cristianizar‖ a Romaria de Trindade foi, também, o


19
Zeitgeist que esses missionários representaram em Goiás. O jornal Santuário da Trindade
demonstra o posicionamento da Igreja e da Ordem Redentorista sobre o movimento liderado
por Dica.
É incrível que no século 20 ainda haja pessoas que se prestam a tais
baboseiras. Mais uma prova de que a falta de religião e a ignorância do
catecismo arrastam homens para a superstição e o fanatismo (JORNAL
SANTUÁRIO DE TRINDADE, 1924, apud VASCONCELLOS, 1991, p. 97).

Esse período, marcado pela presença dos Padres Redentoristas em Goiás e a ameaça
constante de intervenção da Igreja, provocou mudanças em Lagolândia. Conforme a História
Cultural, que traz abordagens em que o homem comum passa a fazer parte das narrativas, já
referenciada nessa pesquisa, de acordo com o relato do professor Marcos César:
[...] na época, o grande foco de Goiás eram os Padres Redentoristas de
Trindade e, paralelo a isso, esses padres combatiam a bruxaria no estado de
Goiás. Eles batiam de frente. [...] E Lagolândia passou a ser ameaçada pelos
Padres Redentoristas, porque aqui tinha uma bruxa, que estava conseguindo
trazer gente pra cá. Então, o que ela fez? Foi até aos padres [...]. O pai dela
então disse que construiria uma igreja católica em Lagolândia, se eles não se
envolvessem com a Dica (Informação verbal20).

A promessa de construir a igreja foi cumprida. Os seguidores de Dica acreditavam


que a igreja havia sido construída para eles (Figura 17).
[Foi construída] Para o povo, que era seguidor dela, pra nós. Para o pai dela,
que sabia que era um comércio, era uma troca para evitar o embate. Só que,
com a igreja pronta, não havia essa assiduidade de padres. Então, quem fez a
igreja? A Dica. Onde vai fazer as festas? Então, a Dica começou a ganhar
espaço, porque os padres não vinham… quando vinha um padre aqui, tinha

19
Zeitgeist: Termo alemão que tem por significado o espírito de uma época ou, características genéricas de um
determinado período de tempo.
20
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
54

que ‗falar a língua de quem‘? A língua dela. Então foi o pai dela que fez a
igreja, porque fez um acordo. Então, se você pega a Festa do Doce, as
Folias… Tudo foi criado pela Dica, que mantém a ligação da igreja com a
Dica (Informação verbal21).

Como origem, alguns moradores e o professor Marcos César contam que Dica era
devota do Divino Pai Eterno, mas tinha dificuldade de participar da festa de Trindade.
Segundo relato do professor João Guilherme Curado, a presença de Dica na cidade de
Trindade não era bem-vista, ela teria sido hostilizada pelos padres Redentoristas. Para evitar
conflitos, ela inicia sua própria festa, que não coincide com a de lá, pois pessoas do distrito
frequentam a festa de Trindade a cada ano. Por essa razão, teria instituído a própria festa do
Divino Pai Eterno, em seu reduto. Quanto à escolha do doce, existem três versões.
[...] contam que [...] à veneração aos Santos Anjos, que sendo crianças
apreciavam os doces, outra explicação é que os doces representam a vida que
nos espera no céu, longe das amarguras da vida terrena. Ainda encontramos
uma terceira versão, em que os doces servidos são para lembrar o maná caído
do céu, mandado por Deus, para alimentar o povo judeu que padecia de fome
no meio do deserto. (REZENDE, 2011, p. 142).

Os doces da festa são produzidos por voluntários, com ingredientes doados pela
comunidade e distribuídos gratuitamente para os participantes do festejo e visitantes.

FIGURA 17 - SALÃO DE FESTAS MÁRIO MENDES E A IGREJA IMACULADA CONCEIÇÃO -


LOCAIS ONDE SE REALIZA A MAIOR PARTE DAS FESTAS RELIGIOSAS DO DISTRITO

Fonte: Vinícius Luz (2018)

1.3.3 Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição e outras festividades

A Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, padroeira do distrito, é


―organizada por mulheres que ocupam todos os cargos necessários para a sua realização‖
21
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
55

(REZENDE, 2011, p. 143). A festa consiste na procissão, reza do terço e novena. Segundo
Curado (2011, p. 125), a missa ―ocorre no dia 8 de dezembro pela manhã e é a única
celebração que dispõe da participação do padre‖.
A Festa é realizada em Lagolândia desde a década de 1920 (REZENDE, 2011), pois,
segundo a autora, a imagem da padroeira teria sido a primeira escultura sacra a chegar à
região. Ressalte-se que, conforme descreve Curado (2011), Nossa Senhora da Imaculada
Conceição, seguindo o sincretismo religioso brasileiro, é associada à divindade Oxum,
entidade relacionada a religiões de matriz africana.
[...] enquanto a celebração acontece do outro lado do distrito, no Salão, uma
farta comida é preparada para ser distribuída para todos os presentes, pois a
Imaculada Conceição é relacionada à fertilidade e Oxum é reconhecida pelos
seus dons culinários (BERKENBROCK, 1997, apud CURADO, 2011, p.
126).

Além desses, o calendário de festas do distrito possui outros eventos, que acontecem
durante quase todos os meses do ano, como já relatado, todos instituídos por Dica. Sua
sobrinha, Brigitt Cipriano Rocha, acredita que há uma motivação para a realização das festas
no distrito. De acordo com o seu relato:
[...] a casa de vó Dica sempre foi uma casa de festa. Então, as pessoas
estavam trabalhando e se divertindo e, aí, você poderia saber o que as pessoas
queriam, o que achavam que era necessário… Então, qual era o melhor local?
a festa, né. Além de ser agradável… você ia conversando informalmente
(informação verbal22).

De acordo com Rezende (2011), essas outras festividades, além das já descritas,
como a Festa de São Sebastião, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, também fazem
parte do calendário de eventos de Lagolândia.
Já a Folia de São João, remonta à peregrinação de São João Batista, ―[...] com
consagrações na fogueira de São João e nas águas do Rio do Peixe, uma espécie de batizado
que representa aquele que Jesus recebeu [...]‖ nas águas do Rio Jordão (REZENDE, 2011, p.
139). Por se tratar do objeto dessa dissertação, essa festividade será abordada em capítulo
específico, a seguir.

22
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
56

CAPÍTULO II

2 A FOLIA DE SÃO JOÃO EM LAGOLÂNDIA

Neste capítulo há uma busca pela compreensão da festividade da Folia de São João,
que se estabelece no calendário de festas de Lagolândia. Para tanto, fez-se necessário,
primeiramente, entender o termo folia e as características das festas que levam esse nome e,
posteriormente, adentrar um olhar sobre a cultura junina.
De acordo com Brandão (1985), por todo o país, existem diversas festas católicas
populares dedicadas a santos padroeiros, ―festejos com leilões e danças no terreno da igreja ou
capela e, finalmente, um ou dois dias de grandes festas no fim de semana ao padroeiro‖, no
caso das folias:
[...] Folias de Santos Reis, Folias do Divino Espírito Santo, Folias de São
Sebastião, Folias de outros santos são grupos errantes de devotos cantores e
instrumentistas que angariam bens (dinheiro ou ―prendas‖) para a festa do
Santo (BRANDÃO, 1985, p. 137).

Segundo Eraldo Peres (2010, p. 27), ―Folia é festa [...]. O termo remete aos
cancioneiros e danças do renascimento europeu. Estas manifestações chegaram ao Brasil,
provavelmente trazidas pelos Jesuítas, como instrumento de catequização‖ e, por essa razão,
de acordo com Brandão (2010), passam a fazer parte da cultura popular.
A Igreja Católica apropria-se de elementos de um saber popular - cantos,
danças, versos, autos - que ela reescreve e dota de outras funções, como a
catequese de índios e, mais tarde, de negros escravos trazidos da África.
(BRANDÃO, 2010, p. 43).

Portanto, de acordo com a finalidade de catequização e a instrumentalização de


elementos do saber popular, Peres (2010), assim como Brandão (1985), relaciona a grande
quantidade de folias aos diversos santos padroeiros.
As folias como instrumentos de catequese foram incorporadas às procissões
coloniais e, consequentemente, às festas dos santos padroeiros. Daí uma
possível explicação para a multiplicidade de festas religiosas em que
comparecem: Folia de Reis, Folia do Divino, Folia de São Benedito [Folia de
São João], etc. (PERES, 2010, p. 27).

No Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo (2000, p. 242) refere-se à


folia, a partir de sua origem, quando ―antigamente, em Portugal, era uma dança rápida, ao
som do pandeiro ou do adufe, acompanhada de cantos‖. De acordo com esse Dicionário, a
folia só se fixou posteriormente, com características e modos típicos diferenciados em cada
local de manifestação.
57

Não tem em Portugal o aspecto precatório da Folia brasileira. Há a bandeira,


como Espírito Santo (a pomba) pintado e desenhado, a varinha de madeira
com fitas de seda, flores artificiais e uma coroa de folha-de-flandres,
ornamentada. (CASCUDO, 2000, p. 242).

Segundo Carlos Rodrigues Brandão (2010, p. 35), desde o início, a folia ―oscilou
entre a dança profana e o rito sagrado, [...] entre a praça, a nave da igreja, e os caminhos da
roça, do sertão‖. No entanto, aos poucos, de acordo com o autor, a Folia perdeu seu caráter
inicial de ―pedagogia catequética‖.
A igreja romanizada dos fins do século XIX lutou por varrer dos templos e
das procissões a tradição católica anterior - Ibérica e colonizadora - de
representar a religião através da memória dramatizada dos fatos religiosos,
com diálogos, cantos e danças (BRANDÃO, 2010, p. 40).

Atualmente, fora da liturgia oficial da Igreja Católica, a folia ―sobrevive em redutos


de cultura camponesa, multiplica-se entre incontáveis equipes, grupos e confrarias de foliões‖
(BRANDÃO, 2010, p. 43). Em Goiás, os cultos populares, de acordo com a folclorista Regina
Lacerda (1977) são ligados à religião católica e são extralitúrgicos.
[...] o povo tem seus cultos, reconhecidos e acompanhados, ou não, pelos
representantes da Igreja. Quando solicitada, ou vendo ali uma oportunidade de
estender sua obra catequética, participa dele, sem contudo, em muitos casos,
tomá-lo sob sua responsabilidade e direção (LACERDA, 1977, p. 37).

No caso da Folia de São João, celebrada em Lagolândia, no contexto de festas do


distrito, há uma similaridade com o rito encenado na Folia de Reis. É realizado um cortejo de
casa em casa - o Giro -, onde ―a comitiva ao costurar tempos e espaços, [segue] pedindo
esmolas e convocando bênçãos‖ (PERES, 2010, p.31).
Apesar dessas semelhanças, algumas diferenças também são observadas na
encenação em Lagolândia. Segundo relato da folioa Suelma Íris Valério, que participa da
Folia de São João no grupo de Guias, ou seja, que é responsável pela primeira voz dos
cânticos:
[…] na Folia de Reis eles [os cantores] são mais repentistas, eles criam a letra
na hora, de acordo com a situação. Só que eles cantam em dupla, tem o que
puxa com a primeira voz e o outro que faz a segunda. O primeiro produz os
cânticos ali na hora, o outro vai acompanhando. Na Folia de São João isso não
é possível pela quantidade de pessoas, não dá para improvisar, se não vira
bagunça, então são os mesmos cânticos (informação verbal23).

Portanto, apesar da similaridade observada entre as duas folias, de Reis e de São


João, percebe-se que são eventos distintos, sem uma codependência ou hierarquização entre

23
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
58

as festas, situadas no Ciclo do Natal e no Ciclo Junino, respectivamente. De acordo com o


professor João Guilherme Curado, morador de Pirenópolis e pesquisador das festas de
Lagolândia, em conversa sobre o tema, não há diferença de importância entre as duas festas,
observadas no calendário de eventos do distrito.
[...] A que atrai mais público externo seria a festa do Divino Pai Eterno, que
acontece em julho, conhecida como a Festa do Doce. Essa atrai mais pessoas.
Mas em todas as outras a população participa e a interação é muito grande.
Eles têm os conflitos internos, como em todos os lugares, principalmente nos
lugares pequenos, mas nos momentos de festa estão todos ali presentes. Eles
participam e colaboram. Então, não sei se há uma hierarquia e, como estão
bem espalhadas no calendário civil, servem muito para interagir a população
(informação verbal24).

Para situar a pesquisa e o leitor, foi necessário descrever o rito que acontece em
Lagolândia, desde as voltas em torno da fogueira até o encerramento no dia seguinte, com a
chamada ―recolhida‖. Para tanto, fez-se necessário recorrer, além da bibliografia, ao relato de
seus personagens e de parentes de Santa Dica.

2.1 BREVE HISTÓRICO DE SÃO JOÃO

Para conhecer o personagem central da Folia de São João, primeiramente, é


necessário adentrar em sua história e, dessa forma, diferenciá-lo dos demais santos católicos.
O Cristianismo possui dois Joões, o Batista e o Evangelista. O primeiro deles é João Batista,
relatado na Bíblia como filho de Isabel e Zacarias. Isabel era prima de Maria, a mãe de Jesus.
Zacarias era um sacerdote judeu, que acendia incenso no ―templo do Senhor‖ (Lucas 1:9).
Conta a história que o casal, Isabel e Zacarias, não tinha filhos, ―porque Isabel era
estéril, e ambos eram avançados em idade‖ (Lucas 1:7). Porém, em uma ocasião, um anjo, o
Anjo Gabriel, apareceu a Zacarias e anunciou a vinda de um filho ao casal: ―não temas,
porque a tua oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará à luz um filho, e lhe porás o nome
de João‖ (Lucas 1:13).
Após o anjo comunicar que Isabel ficaria grávida, Zacarias não acredita e recebe uma
punição, fica mudo até o nascimento do filho, que deveria se chamar João:
Disse então Zacarias ao anjo: Como saberei isto? pois eu já sou velho, e
minha mulher avançada em idade. E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou
Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas
alegres novas. E eis que ficarás mudo, e não poderás falar até ao dia em que

24
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
59

estas coisas aconteçam; porquanto não creste nas minhas palavras, que a seu
tempo se hão de cumprir (Lucas 1: 18-20).

No mesmo capítulo do livro de Lucas é narrado o anúncio da gestação e do


nascimento de Jesus, feito pelo mesmo Anjo Gabriel, meses depois. Após o anúncio, Maria, a
mãe de Jesus, questiona o anjo dizendo que é virgem. Como resposta, o Anjo Gabriel
responde, mencionando Isabel, ―e eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho em
sua velhice; e é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril‖ (Lucas 1: 36).
O segundo João relatado na Bíblia é o apóstolo, o seguidor de Jesus, também
conhecido como João Evangelista. O apóstolo é conhecido, também, por ter escrito um dos
Evangelhos do Novo Testamento25, o livro ―O Evangelho segundo João‖. O apóstolo também
escreveu três cartas, as Epístolas 1, 2 e 3 e o livro do Apocalipse (AGUIAR, 2008). Contudo,
o objetivo da presente pesquisa foi conhecer e contextualizar João Batista, que dá nome à
Folia de São João e a maior parte dos festejos juninos.
Conforme o Evangelho de Lucas (Lucas 1:26), João Batista tinha seis meses de
concepção, no ventre de Isabel, quando o nascimento de Jesus foi anunciado pelo Anjo
Gabriel. Por este motivo, 24 de junho é a data do calendário católico em que se comemora o
dia de São João, dia de nascimento de João Batista, seis meses antes do Natal, 24 de
dezembro.
Contudo, muito antes de seu nascimento, o Antigo Testamento falava de alguém que
anunciaria o nascimento de Cristo. Em Malaquias, ―nascerá o sol da justiça‖ (Malaquias 4:2).
Em Isaías, a ―voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo
vereda a nosso Deus. Todo o vale será exaltado, e todo o monte e todo o outeiro será abatido;
e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará (Isaías 40:3,4).
João Batista é anunciado como profeta26, ou Yokaanam, somente no Novo
Testamento. ―[...] Entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João, o Batista;
mas o menor no reino de Deus é maior do que ele‖ (Lucas 7:28).
Durante um período de sua vida, não muito claro no texto bíblico, João Batista viveu
no deserto da Judéia. O texto bíblico não explica o motivo, mas diz que ―naqueles dias,
apareceu João, o Batista, pregando no deserto da Judéia, e dizendo: Arrependei-vos, porque é
chegado o reino dos céus‖ (Mateus 3:1,2). O livro de Marcos fala que João vivia de forma

25
A Bíblia, livro sagrado cristão, é dividida em dois livros, o Velho (ou antigo) e o Novo Testamento. Cada um
desses livros é composto por subdivisões, também chamadas de livros. O Velho Testamento reúne livros
anteriores a Jesus Cristo. O Novo Testamento é composto por livros originados durante ou após a vida de Jesus
Cristo, até o primeiro século.
26
Profeta: Aquele que fala em nome de Deus e inspirado por Deus.
60

rudimentar, ―andava vestido de pêlos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus
lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre'' (Marcos 1:6).
Porém, João Batista tornou-se conhecido por ―Batista‖, o que batiza, pois realizava
batismos nas águas do rio Jordão, ―toda a província da Judéia e os de Jerusalém iam ter com
ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados (Marcos 1:5).
Sua vida foi marcada por batismos e peregrinações, ―ao redor do Jordão, pregando o batismo
de arrependimento‖ (Lucas 3:3). Durante suas pregações, anunciava a vinda de Cristo:
Depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou
digno nem de curvar-me e desamarrar as correias das suas sandálias. Eu os
batizo com água, mas ele os batizará com o Espírito Santo (Marcos 1:7-8).

Em uma ocasião, na passagem que o tornou reconhecido no Cristianismo, Jesus


Cristo teria descido ao rio Jordão e pedido para ser batizado por João Batista que,
inicialmente, teria recusado.
Então veio Jesus da Galiléia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado
por ele. Mas João opunha-se-lhe, dizendo: Eu careço de ser batizado por ti, e
vens tu a mim? Jesus, porém, respondendo, disse-lhe: Deixa por agora, porque
assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele o permitiu (Mateus 3:13-
15).

Após o batismo realizado por João, Jesus teria iniciado o período de pregação e
peregrinação, que teve início no deserto da Judéia.
E, logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba
descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho
amado em quem me comparo. E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ali
esteve no deserto quarenta dias [...] (Marcos 1:10-13).

A partir dessa breve ambientação, tornou-se possível entender parte da tradição que é
o objeto dessa pesquisa: em Lagolândia, em alusão ao rio Jordão, onde se realizavam os
batismos de João Batista, o rio do Peixe era chamado - no auge do movimento messiânico de
Dica - de rio Jordão. Na Folia de São João, os batismos realizados pela comunidade, durante
os festejos, ainda são realizados nas águas desse rio (Figura 18).
FIGURA 18 – MARGEM DO RIO DO PEIXE, AOS FUNDOS DA CASA DE DICA - LOCAL
UTILIZADO PARA OS BATISMOS NOTURNOS

Fonte: Vinícius Luz (2019)


61

2.2 BREVE ENREDO: DAS VOLTAS NA FOGUEIRA E OS BATISMOS AO GIRO


DIURNO

Desde os preparativos até a noite de 23 de junho, que antecede o dia de São João, a
comunidade de Lagolândia, a escola do distrito, os moradores e algumas pessoas que já se
mudaram de lá, aguardam a realização da festa, para assistir ou participar. No ano de 2019, foi
observado que todas as luzes da praça central, onde se realizam os primeiros ritos da Folia de
São João, foram apagadas: desde o momento da saída das folioas até o retorno à antiga casa
de Dica.
A fogueira é acesa à tarde, no dia 23 de junho, sem hora marcada. A primeira parte
do ritual compreende as três voltas em torno da fogueira de São João, ainda em chamas.
Nesse momento é entoado o cântico ―Capelinha de Melão‖. Durante a noite, o rito se restringe
às voltas em torno da fogueira, o batismo com a descida ao rio e o lanche, servido na casa do
festeiro do ano, escolhido por sorteio na festa do ano anterior, ou no interior da casa de Dica.
De acordo com o que foi observado e relatado pelos participantes, existem dois
festeiros. O primeiro é o responsável pelo evento da noite, com a organização da fogueira e do
lanche noturno. O segundo é o responsável pelo giro, do dia 24. Os dois festeiros são
escolhidos por sorteio ou, em alguns casos, se oferecem como pagamento de promessas. Uma
outra função, dentro da festa, é o papel do Regente, responsável por organizar o grupo e o
trajeto sem ―cruzar a bandeira‖ (para não cruzar caminho). Segundo o professor João
Guilherme Curado, ―é a ele que as pessoas se dirigem para pedir a visita da Folia‖.
Conforme relato da folioa Suelma Íris Valério, todo o rito se realiza no espaço de um
dia, com início na noite de 23 de junho e encerramento na noite seguinte, com a Recolhida.
Ainda, de acordo com ela, a outra parte do ritual da noite é a realização do batismo das
pessoas da comunidade, na fogueira e no rio:
No dia 23, após a fogueira cair, que agora nem esperam a fogueira cair
totalmente [...], primeiro a gente sai lá do Salão, canta em volta da fogueira,
dá as três voltas ali, depois a gente volta e é servido um agrado, pela pessoa
responsável pelo dia 23, depois de servido, quando as brasas já estão
apagadas, acontece a consagração das pessoas que levam crianças para
consagrar, primeiro em volta da fogueira e depois terminam o ritual lá no Rio
do Peixe (informação verbal27).

O local de realização dos batismos, seguindo a tradição, acontece onde Dica também
batizava. Brigitt Cipriano conta que os batizados aconteciam no fundo da casa de Dica, às
margens do Rio do Peixe. ―Era um hábito da Dica batizar ali, não só no momento da festa.
27
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
62

Ela batizava em outras ocasiões‖, durante todo o ano, ―mas o auge seria no momento da
festa‖, relata.

FIGURA 19 - BATISMO DE CRIANÇAS ÀS MARGENS DO RIO DO PEIXE, NO FUNDO


DA CASA DE DICA

Fonte: Acervo de João Guilherme Curado (2009), Montagem de Vinícius Luz

Dona Bernarda Cipriano, irmã de Dica, lembra-se da realização dos festejos em


outros anos, desde a década de 1920. Segundo dona Bernarda, era comum que os fiéis
também tomassem banho no rio, à noite, durante os batismos. Contudo, o rito do banho
noturno não foi observado em 2019:
Nesse festejo de João Batista, eles costumam ir ao córrego [Rio do Peixe]
tomar banho, à meia-noite. Então, tinha três mil pessoas lá no córrego. Saíram
daí da fogueira, mas não sei em que data que foi, se foi em 20, se foi em 19…
começou em 18 mas foi seguindo, né? [relato de dona Bernarda] (informação
verbal, grifos do autor28).

No dia seguinte, 24 de junho, o festejo é realizado com os rituais tradicionais das


folias, como o Giro (Figura 20), a Bandeira, o recolhimento de esmolas, donativos oferecidos
pelos devotos e a realização dos votos - pagamento de promessas - dos fiéis e dos devotos.
Pela manhã, o grupo se reúne no Salão Mário Mendes, localizado em frente à praça, no lado
oposto à casa de Dica. O local serve como ponto de partida do Giro, para o café da manhã, o
almoço e o lanche da tarde. Algumas partes do rito, como a oração e alguns cânticos de saída,
são entoadas ainda no interior do Salão.

28
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
63

FIGURA 20 - GIRO DIURNO ENTRE AS CASAS DOS MORADORES

Fonte: Vinícius Luz (2018)

A folioa Suelma Íris participa da Folia desde 1988. Seu pai foi Regente 29 durante
décadas, até o seu falecimento em 2017. De acordo com ela, o dia 24 também tem um rito
bem definido.
[...] a gente se reúne, às vezes no Salão Mário Mendes, outras vezes em algum
outro local, depende do gosto do folião, da pessoa responsável pela
organização. Então, a gente se reúne, é servido um café da manhã, é feita uma
oração, depois a gente canta a saída da folia, depois a gente sai e vai cantar
nas casas. É feito o Giro nas casas do povoado e, mais ou menos onze e meia
ou meio-dia, é servido o almoço, que quando está pronto, eles soltam alguns
fogos, então, a gente para o Giro onde estiver, deixando a Bandeira e os
instrumentos. A gente vem almoçar, depois do almoço a gente retoma ao
Giro. À tarde, eles sempre servem um lanche, por volta das três horas, que
também avisam por foguete. A gente retorna, lancha e retoma o Giro
(informação verbal30).

Todo o trajeto do Giro é acompanhado por moradores, devotos de São João Batista,
admiradores da Folia de São João ou mesmo antigos moradores. Segundo o professor Marcos
César, alguns moradores saem de Lagolândia, ―vão para trabalhar e voltam em alguma festa,
ou no final de ano.‖

29
Regente: Função responsável pela elaboração do trajeto do Giro e pela demarcação das casas que receberão o
grupo de foliões.
30
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
64

FIGURA 21 - DETALHE DO CADERNO DE MÚSICAS COM TRECHO DA MÚSICA MAIS


ENTOADA DURANTE O GIRO: O “AGRADECIMENTO DAS ESMOLAS”31

Fonte: Vinícius Luz (2020)

No cronograma da Folia, de acordo com a descrição de Suelma, sobre as paradas


para o almoço e para os lanches e o recolhimento de donativos (esmolas), o morador Danilo
Camargo, responsável pelas músicas, conta que o número de participantes nas refeições é
variável, bem como a utilização dos recursos obtidos com as esmolas.
Tem o almoço, o lanche, tem a janta… Alguns festeiros convidam muita
gente, quando tem muitas amizades, convidam a vizinhança da cidade…
Quando o festeiro tem menos amizade, convida só o pessoal daqui. Depende
de cada um. Então, [as folioas] saem pedindo as esmolas, em dinheiro, então,
um pouco vai para o festeiro e um pouco fica ali, para comprar alguma corda,
de alguma viola que tenha arrebentado, ou, alguma outra coisa (informação
verbal32).

Após o encerramento do Giro, há o espaço para a realização de outros ritos da Folia,


como rezas, sorteio do novo festeiro e cânticos. Nesse momento, o número de participantes já
é reduzido.
Quando termina, a gente retorna à casa do folião e, na porta, a gente faz a
chegada da folia. O folião recebe a folia, a gente entra, faz uns cânticos a mais
e, quando termina, é combinado o jantar, nós vamos para casa e depois
voltamos para a folia. Chegando lá, a janta é servida, tem a reza do terço,
depois tem o agradecimento da mesa, retornando para dentro da casa, a gente
tira a esmola. Têm as pessoas que não conseguiram pegar na Bandeira durante
o dia, porque não estavam em casa ou moram fora, a gente tira as esmolas e
canta a despedida, que já é o encerramento. Então, o Regente vai fazer a

31
Música disponível em https://youtu.be/GeRLGXaNUlA.
32
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
65

prestação de contas das esmolas e é feito o sorteio dos novos festeiros


(informação verbal33).

Contudo, o encerramento da festa não significa pausa no calendário de eventos de


Lagolândia. O encerramento da Folia de São João dá espaço para os preparativos da Festa do
Doce, em homenagem ao Divino Pai Eterno, realizada em julho.

2.3 DIFERENTES INTERPRETAÇÕES

O rito tem sua importância dentro das festividades e está presente em diversos
momentos nas comunidades e sociedades humanas. No caso de comunidades pequenas, "o
rito é uma síntese da interação entre o mundo religioso, sociocultural e ambiental" (TERRIN,
2004, p. 17), e Lagolândia que, atualmente, tem uma população estimada em menos de 250
moradores, parece expressar bem tal interação. O enredo da Folia de São João, visto enquanto
rito, tem a sua realização dividida entre os batismos, os Giros, as cantorias, o recolhimento
das esmolas e a reza do terço.
Enquanto síntese dessa interação entre os mundos, ou, ao menos parte dela, foi
possível perceber que nem sempre há consenso entre as interpretações dos significados dos
ritos realizados durante a Folia, especialmente sobre os batismos, apesar de significativo
número de participantes. Como foi visto em 2019, São João Batista ainda é rememorado pelos
batizados que, em Lagolândia, acontecem na fogueira e são finalizados no rio; batismo pelo
fogo e pela água.
Sobre a prática dos batizados da Folia, foi necessário recorrer ao texto bíblico para a
sua compreensão. De acordo com a Bíblia, o batismo é citado de duas maneiras por João
Batista (São João), com água e com fogo.: ―[...] depois de mim vem alguém mais poderoso do
que eu [...]. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo‖ (Mateus 3:11). O mesmo João
Batista, mais tarde, realiza o batizado de Cristo nas águas do Rio Jordão. ―Então Jesus veio da
Galileia ao Jordão para ser batizado por João‖ (Mateus 3:13).
O Rio do Peixe, em Lagolândia, no auge do movimento messiânico de Dica, era
chamado por ela e seus seguidores de Rio Jordão. Quanto à fogueira acesa na noite de 23 de
junho, de acordo com Danilo Camargo, ―é o sinal do Espírito Santo‖, levado no dia seguinte
pelas folioas, simbolizado pela Bandeira, às casas dos moradores.

33
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
66

Para Brigitt Cipriano, o ritual do batismo seria um ―ritual de consagração a São


João‖.
Depois que você faz esse cerco, que faz essa roda e canta ao redor à São João, aí
você vai à casa da vó Dica e é servida a comida. [...] Se você observar na
música, [...] você vê que tem relação com água, também. Então, as pessoas
pegam as velas e batizavam as pessoas aqui. Iam para o rio e terminavam esse
batismo lá. [...] Mas vejo que é como se a pessoa fosse, primeiro, lá na igreja e
fizesse o batismo com o padre. Então seria uma consagração… consagrar-se a
São João (informação verbal, grifos do autor34).

Na relação com a água, o professor Marcos César Teles associa ao trecho da música
entoada pelas folioas, ausente do livro de músicas, que diz: ―São João foi tomar banho com as
24 donzelas, as donzelas caíram na água e São João caiu com elas. Acordai, acordai, João.
São João está dormindo, não acorda, não35‖. Segundo a interpretação de Marcos César, a
música fala sobre a morte de São João, ―ele caiu na água de batismo [...], e por que ele não
está acordado? Está acordado no espírito, o físico dele morreu‖36.
A folioa Suelma Íris vê outra interpretação no mesmo trecho de música. Para ela,
―quando São João Batista batizava nas águas do Rio Jordão, foram 24 donzelas saudá-lo
cantando‖. De acordo com Suelma, essas 24 donzelas dão origem ao nome de ―donzelas‖ da
Folia de São João, em Lagolândia, ―a essas donzelas se deve a origem do nome donzelas na
folia daqui. Então, por isso 24 pessoas‖.
Dona Bernarda Cipriano, como já mencionado, lembra-se de que era costume ir ao rio,
―tomar banho, à meia noite. Então, tinha três mil pessoas lá‖. Para Bernarda, ―é João Batista
que convida, para tomar banho‖.
Ser madrinha, ou padrinho, no ritual da fogueira e da água, na Folia de São João, não
implica em regras claras. A folioa Suelma já batizou e já foi batizada no ritual. Ela explica
que ―muitas vezes é até a mesma madrinha [do batizado católico]. Outras vezes escolhem
outras pessoas, por afinidade‖. Segundo a folioa, a ―responsabilidade é a mesma‖.

2.3.1 As casas do Giro

A Folia de São João começa bem antes dos batismos e da saída das ―donzelas‖ em
suas voltas em torno da fogueira, na praça central de Lagolândia. A Folia começa com os
preparativos, com a escolha do festeiro, um ano antes, na edição anterior da festa. Participar
34
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
35
Trecho da música ―Capelinha de Melão‖ disponível em: https://youtu.be/PVwP8UbV0e0
36
Segundo o relato bíblico, mencionado em Mateus 14:1-12, Marcos 6:14-29 e Lucas 9:7-9, João Batista teria
sido decapitado, a pedido da personagem Salomé ao rei Herodes Antipas.
67

da Folia significa realizar, cada um no seu papel e em suas atribuições, as atividades


determinadas ou pertinentes a cada função da Folia.
Mesmo para quem não atua diretamente na festa, abrir as portas de casa e receber a
Folia é uma forma de participação, que precisa ser manifestada. Cabe ao Regente definir o
percurso do Giro, que todos os anos passa pelas casas dos moradores católicos da área urbana
do distrito. O percurso é definido de acordo com algumas regras, que se assemelham à Folia
de Reis. De acordo com Suelma Íris, o Regente define quais e a sequência de casas que devem
ser visitadas, desde as primeiras às últimas,
O Regente tem a função de organizar a Folia. (...) Porque no Giro, há uma
tradição de que não pode fazer cruz. Então, o Regente, tem que seguir a
tradição de que não pode cruzar [o trajeto] em nenhum momento (informação
verbal37).

A participação da comunidade, conforme observado entre os moradores, é


harmônica. Não foi possível perceber conflitos. O professor João Guilherme Curado
acompanhou os Giros por muitos anos, como pesquisador. Segundo suas observações,
existem conflitos entre famílias tradicionais do distrito, motivadas pela convivência; porém,
não se percebe influência no momento da realização das festas. Há, também, o caso de
pessoas que mudaram de religião, aderindo ao protestantismo e às religiões neopentecostais,
contudo, algumas delas ainda participam das festas.
Quando você tem uma casa, com várias pessoas morando e uma muda de
religião, (...) o ancião tem uma força que prevalece. Se foi ele que mudou,
provavelmente não vai aceitar a folia na casa. Mas, se for um jovem,
provavelmente [a Folia] continua. Em Pirenópolis, vejo que algumas pessoas
mudaram de religião, mas ainda participam [dos festejos tradicionais].

FIGURA 22 - PARTE EXTERNA DE UMA DAS CASAS DURANTE O


GIRO DIURNO DA FOLIA DE SÃO JOÃO

Fonte: Vinícius Luz (2019)

37
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
68

No interior das casas, percebe-se que existem as regras da Folia e as regras, ou


hábitos, dos moradores. O professor João Guilherme conta que, em alguns casos, ―as pessoas
mais velhas dizem ‗primeiro vamos servir [o lanche] para as donzelas, depois para os
visitantes‘‖. A prioridade é para as mulheres do grupo, as folioas. Assim como, para os
homens, cabe o papel e o espaço periférico das residências, muitas vezes do lado de fora
(Figura 22).

2.4 AS FESTAS JUNINAS E OS SANTOS CATÓLICOS

A Igreja católica possui um vasto panteão de santos e datas comemorativas, boa parte
dessas comemorações dão origem a ciclos festivos que têm por base o calendário litúrgico da
Igreja. Esse calendário, por sua vez, tem suas celebrações e festas realizadas todos os anos,
que na Igreja são chamados de anos litúrgicos. Esses anos litúrgicos podem ter algumas
variações de datas, como por exemplo, as celebrações da Páscoa e a Quarta-Feira de Cinzas
(logo após o Carnaval), porém, seguem uma estrutura principal que, segundo a Enciclopédia
Católica38, é composta pelo ―Tempo Comum, Ciclo Santoral e Ciclo do Natal‖.
Nessas divisões, encontram-se eventos festivos que homenageiam santos ou
acontecimentos importantes do Cristianismo. É uma divisão que obedece a uma dinâmica
cíclica de festas, de origem europeia e ligadas aos ciclos agrícolas, trazidos ao Brasil durante
o processo de colonização,
Uma origem europeia comum embalou as festas coloniais. A periodicidade da
produção agrícola induziu o homem em determinadas épocas de semeadura e
colheita a congregar a comunidade para celebrar, agradecer ou pedir proteção.
A repetição dos ciclos agrícolas, identificados com a reunião de grupos
sociais, acabou por dar a festa uma função comemorativa (DEL PRIORI,
2000, p. 13).

Essas festas têm suas origens anteriores ao próprio Cristianismo. A Igreja teria se
apropriado de festividades ditas pagãs, dando novas motivações e formulações que, com o
tempo, passaram a homenagear personagens católicos, como os santos e padroeiros.
[...] Mas com o advento do cristianismo, tais solenidades receberam nova
roupagem: a Igreja determinou dias que fossem dedicados ao culto divino,
considerando-os dias de festa. Estas festas são distribuídas em dois grupos
distintos: as festas do Senhor (Paixão de Cristo e demais episódios de sua
vida) e os dias comemorativos dos santos (apóstolos, pontífices, virgens,
mártires, Virgem Maria e padroeiras) (DEL PRIORI, 2000, p. 13).

38
Enciclopédia Católica: https://catholicum.fandom.com/wiki/Ano_lit%C3%BArgico
69

No caso de São João, ou das festas juninas, existem estudos que também relacionam
a fogueira aos rituais anteriores ao Cristianismo. De acordo com Ribeiro (2002), essas festas
também têm origem em rituais ligados ao ciclo agrícola e da fertilidade.
[...] as origens da festa nos remetem a tempos muito antigos, antes do
Cristianismo se consolidar na Europa. Naquela época, as festas que ocorriam
nesse período do ano comemoravam a deusa Juno - mulher de Júpiter - que
fazia parte do panteão dos deuses greco-romanos. [...] Ao pé da fogo, faziam-
se oferendas e pedidos aos deuses, para que espantassem os maus espíritos,
trouxessem boa colheita e muitos filhos. Originalmente, o ponto alto dos
rituais era o solstício de verão - o dia mais longo do ano no Hemisfério Norte
- que acontecia no dia 22 ou 23 de junho (RIBEIRO, 2002, p. 5).

Da mesma forma descrita por Del Priore (2000), Ribeiro (2002) também relaciona a
intervenção da Igreja, que teria se apropriado desses rituais pagãos e os incorporados às festas
católicas, nesse caso, às festas juninas:
[...] quando o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Ocidente - adotado
pelo Império Romano no século IV - as principais celebrações pagãs foram
sendo incorporadas ao calendário das festas católicas. No século VI, a Igreja
Católica reservou o dia 24 de junho para comemorar o nascimento de São
João Batista [...] (RIBEIRO, 2002, p. 5).

A presença da fogueira nas festas juninas, que teria sua origem no relato bíblico,
também pode ter origem nos rituais ditos pagãos. De acordo com a crença popular, Isabel
(mãe de João Batista) teria combinado um sinal para avisar a Maria sobre o nascimento de seu
filho. ―Esse sinal seria acender uma fogueira em frente à sua casa. A partir daí, o dia 24 de
junho ficaria marcado pelas fogueiras em homenagem ao nascimento de São João‖
(RIBEIRO, 2002, p. 5).
Contudo, essas informações e a presença da fogueira não se confirmam no relato
bíblico. Segundo a Bíblia, Maria teria ido visitar Isabel na região de Judá. Durante a visita,
João, mencionado como ―criancinha‖ que saltou do ventre, ainda não havia nascido (Lucas 1:
39-45). Não há menção à fogueira. Em outro trecho, no mesmo capítulo, ―Maria ficou com ela
(Isabel) quase três meses, e depois voltou para sua casa‖ (Lucas 1: 56).
Mediante esse início histórico das festas católicas, com origem em rituais pagãos,
esses costumes se fixaram nas encenações religiosas europeias. Como país colonizado por
Portugal, essas festividades também passaram a acontecer no Brasil.
As festas juninas acontecem no Brasil, desde o século XVI, trazidas pelos
jesuítas. As celebrações se mostravam muito eficazes para atrair a atenção dos
indígenas para a mensagem catequizadora dos padres, em especial as festas
que conjugavam fogueiras, rezas e alegria. O período das festas juninas
coincidia, ainda, com o época do ano em que os índios realizavam seus rituais
de fertilidade. (RIBEIRO, 2002, p. 65).
70

No caso da Folia de São João, além da história da formação das festas cristãs e do
embasamento bíblico sobre a vida de São João Batista, a complexidade da festa exige uma
leitura sobre o acontecimento místico da ritualidade. Conforme Del Priore (2000, p. 13), a
festa celebrada em ―dia comemorativo‖ do santo, anualmente, ocorre no que se pode chamar
de tempo sagrado, em que o homem religioso torna o acontecimento sagrado ritualmente
presente. Para Mircea Eliade (1999), há um deslocamento para o tempo histórico do
acontecimento místico, que ele chamou de Tempo primordial, pertencente à eternidade:
Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata se sempre de um
acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado
presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do
acontecimento mítico. Em outras palavras, ―saem‖ de seu tempo histórico –
quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e
intrapessoais – e reúnem se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que
pertence à Eternidade (ELIADE, 2001, p. 47).

Por essa razão, as festas religiosas em homenagem a santos ocorrem em um tempo


sagrado, que rememoram passagens ou acontecimentos da vida desses personagens cristãos.
Na Folia de São João em Lagolândia, também se rememoram passagens que teriam sido da
vida de São João, como os batismos. A sua realização em junho, mês em que também se
comemoram os dias de outros nove santos, tem o seu ápice nos festejos do dia 24, que pode
ser explicado, em parte, pelo calendário festivo dos chamados povos pagãos (não cristãos) já
mencionados.
Porém, dentre esses nove santos, três deles são especialmente homenageados, em
seus tempos sagrados, pela igreja e devotos no Brasil: Santo Antônio (dia 13) e São Pedro (dia
29), além de São João Batista (dia 24). Junho, no calendário católico, tem grande importância
para as festividades religiosas brasileiras, particularmente no catolicismo popular.
Desses três santos principais, Santo Antônio, tem o significado simbólico de estar
ligado ao amor e às causas urgentes. De acordo com Gilberto Freyre (2003), em Casa-Grande
& Senzala, no Brasil essa associação vem desde o período de colonização.
Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antônio. Por
exemplo: as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos.
Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos associados
às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil. É a imagem desse santo que
freqüentemente se pendura de cabeça para baixo dentro da cacimba ou do
poço para que atenda às promessas o mais breve possível (FREYRE, 2003,
p.415, 416).

O outro santo, São Pedro, que também é considerado o fundador da Igreja e o


primeiro Papa, também é festejado por seu significado simbólico ligado ao casamento, com a
especialidade de ―casar as viúvas‖ (FREYRE, 2003, p. 416). Segundo Câmara Cascudo
71

(2000, p. 506-507), esse discípulo de Jesus é conhecido como o santo chaveiro do céu. ―[...]
Recebe as almas, e o anedotário o coloca no primeiro plano para sofrer ou afastar as
sabedorias empregadas para uma entrada no paraíso‖.
Essas festas, em homenagem aos santos, por sua vez, têm as suas razões de ser e de
existirem. Segundo Brandão (2010, p. 25), ―[...] veiculam mensagens que fazem circular da
sociedade para ela própria significados e princípios que reforçam as estruturas da própria
ordem social‖. Em Lagolândia, reforçam anualmente as tradições, a ordem e a memória de
sua fundadora.

2.5 A MEMÓRIA E O CATOLICISMO POPULAR DE DICA

A realização de festas católicas, em Lagolândia, além do reforço anual das tradições


iniciadas por Dica, demonstra uma posição ambígua dessa personagem histórica goiana e sua
relação com a Igreja Católica e a política vigente no auge do movimento messiânico que
liderou.
Segundo Schumaher e Vital Brazil (2000, p. 634), no campo político ―seu apoio era
indispensável a todos os que desejavam alcançar sucesso nas eleições‖. Como religiosa, era a
líder espiritual de Lagolândia, ―atendendo a todos que iam a seu encontro com pedidos de
cura e de conselhos‖. Porém, a ambiguidade pode ser exemplificada pelo histórico de vida
dessa personagem, que já foi perseguida pela Igreja e pelas tropas do governo.
Embora, no cotidiano da comunidade, as festas e as tradições iniciadas por Dica
permaneçam, os rituais têm origem no catolicismo, mesmo que todos os festejos e as
celebrações, bem como os cânticos e todo o rito, façam parte do imaginário simbólico da
região. Os relatos dos moradores dão conta de que Dica organizou tudo. A folioa Suelma
esclarece que ―foi ela [a Dica] que fundou essa folia, em homenagem a São João Batista. Ela
falava para o folião como deveria ser, como era, como que não era‖.
A sobrinha de Dica, Brigitt Cipriano, sempre residiu em Lagolândia, porém, pela
idade, tem poucas lembranças da tia, que chama de ―vó Dica‖. Apesar disso, observa que
―quando vó Dica era viva, ela tinha uma relação com a igreja de amor e ódio‖. Porém, Brigitt
destaca a liderança na comunidade, ―as pessoas iam à igreja, mas acreditavam muito na vó
Dica, em qualquer coisa que ela falasse‖.
[...] quando vó Dica era viva, ela tinha uma relação com a igreja de amor e
ódio, eu acho. As pessoas iam à igreja, mas acreditavam muito na vó Dica.
Qualquer coisa que ela falasse… mas ela tinha amizade com o padre. Mas, se
72

você for olhar, tem um documentário e os jornais da época, a Igreja fala que
ela é uma bruxa, né? (informação verbal39)

O objetivo dessa investigação sobre a Folia de São João, ou seja, a performance do


grupo de mulheres e a referida folia podem ser compreendidas como manifestação do
chamado catolicismo popular pois, como tal, sua relação é direta com o sagrado. Segundo a
definição de Roberto Cardoso de Oliveira (1970, p. 74), ―o catolicismo popular expressa um
relacionamento direto e pessoal entre o homem e o sagrado, escapando ao controle da Igreja
como Instituição‖.
Do ponto de vista das crenças que se associam ao catolicismo popular, Souza Barros
(1977, p. 110) relaciona com um ―estado de empatia mágica‖, principalmente nas populações
rurais economicamente menos favorecidas, ―criadas em função das causas estruturais‖.
Assim, o ―mágico se associa aos problemas do cotidiano, [...] no caso das doenças, por
exemplo, as simpatias, as benzeções, a ação do curandeiro, a feitiçaria [...]‖ (BARROS, 1977,
p. 115).
Enquanto sincretismo entre o catolicismo e o espiritismo, o ―mágico‖, ou seja, a
capacidade que seria pessoal, dos curandeiros, tem a sua influência diminuída no interior do
país.
Com a penetração do espiritismo no interior, o mágico vai perdendo sua
influência, e grande número de curandeiros obtém hoje o poder de cura e de
intervenções, neste ou naquele sentido, através dos espíritos, ―se o antigo
modelo fundamentava a realização das curas unicamente na habilidade e na
capacidade pessoal, o novo tipo transfere toda a execução do tratamento e a
responsabilidade de cura para os ‗espíritos dos caboclos‘ [...], que são seus
guias‖ (BARROS, 1977, p. 115).

Como líder da comunidade de Lagolândia, e com características de curandeira, Dica


também seria orientada por espíritos, os quais ela chamava de Guias. O professor João
Guilherme Curado esclarece que esses Guias tinham características sui generis: ―eram anjos,
crianças que ficavam ali, na gameleira. Talvez por isso tenha esse tanto de crianças
participando dos festejos de Lagolândia‖.
Dica, então, receberia as orientações desses anjos e repassava à comunidade, exercia
a função de ditar regras, que eram prontamente aceitas e seguidas por seus seguidores.
A administração do reduto se faria com leis emanadas do Conselho Espiritual,
que era constituído por anjos que pertenciam à falange que vinha falar com a
santa. Estas leis seriam transmitidas ao povo diretamente por Dica sem
qualquer intermediário.

39
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
73

Havia uma crença geral que a santa Dica não só contactava, mas que ela
própria fazia parte de um grupo de anjos/ guerreiros ou anjos/ conselheiros
[...] (VASCONCELLOS, 1991, p. 84).

Além dessas ―leis‖, a religiosidade em torno de Dica dava a ela, também, segundo
Vasconcellos (1991, p. 88), uma obediência ―sem questionamento, pois suas ordens são
transmitidas do alto sem interferências ou mesmo sem ter que recorrer aos livros sagrados‖.
Dessa forma, as festas, iniciadas por ela, os cânticos e o uso de uniformes pelas folioas é um
exemplo da influência da líder entre os moradores. De acordo com a folioa Suelma Valério,
―o uniforme das meninas (Figura 23), ela [Dica] que decidia como deveria ser, a cor, o
modelo e tudo‖.

FIGURA 23 - FOLIA DE SÃO JOÃO EM 2002, UNIFORME LEMBRA A FARDA MILITAR

Fonte: Autor/ acervo de Wolney Fernandes

De acordo com Souza Barros (1977), a utilização de cores específicas tem origens e
implicações no catolicismo popular e no cristianismo mais remoto, com diferentes
significados para cada cor.
A influência mágica das cores, por exemplo, tem uma larga esteira de
implicações. Penetrou o cristianismo popular e já se tinha instalado, ao tempo
de antigas civilizações. O uso de cores preferenciais pelos magos e sacerdotes
para os atos dos cultos, a significação especial de cada cor e suas implicações
são bem conhecidas e se desdobram em inúmeros efeitos mágicos. O
catolicismo popular ligou às cores efeitos especiais. (BARROS, 1977, p. 91).
74

Por essas razões, percebe-se que há uma preocupação com o aspecto visual das
folioas. Há uma padronização das cores e das roupas, feita a cada ano, por meio da utilização
de uniformes. Em alguns anos, esses uniformes parecem remeter a passagens da vida de Dica,
como o uniforme que lembra as cores da farda militar das revoluções de 1930 e 1932.

2.6 A ORIGEM DA FESTA EM LAGOLÂNDIA E DO GRUPO DE MULHERES

Não existem informações ou pesquisas já realizadas sobre o surgimento do grupo de


mulheres de Lagolândia, o número 24 e o nome ―donzelas‖. Contudo, em conversa informal
com dona Bernarda Cipriano Gomes, irmã de Santa Dica, ela informa que a festa foi trazida
da região nordeste do Brasil, na década de 1920. Bernarda, com 91 anos em 2019, lembra-se
dos primeiros anos do festejo.
Foi trazida pela filha do primeiro marido dela, ela trouxe do norte [nordeste].
Do Rio Grande do Norte. Minha irmã casou com um rapaz do norte. [...] Ele
era jornalista. [...] tinha dois filhos, o Marco Aurélio e a Ivone. Aí, lá [Rio
Grande do Norte] festejava São João Batista e ela cantava. Esses hinos que
cantam aí, foi ela que cantou pela primeira vez, a Ivone. Então ela ensinou e
continuou.
Ela ensinava pra minha irmã, que explicava pra eles. Agora, ao redor da
fogueira, ela era a guia, enquanto Ivone ainda era moça. Depois ela casou, [...]
foi morar em Morrinhos, [...] era viva até pouco tempo, a Ivone (informação
verbal, grifos do autor40).

A filha de Bernarda, Brigitt Cipriano, sobrinha de Santa Dica, acredita que a Folia de
São João foi inspirada em alguma festividade potiguar. De acordo com Brigitt, o festejo foi,
possivelmente, adaptado de alguma outra festa, oriunda do nordeste.
Acho que essa festa veio de lá [Rio Grande do Norte] um pouco diferenciada
pra cá. É a única que já ouvi falar de folia de moças, de mulheres… de folia,
né. É um achismo, porque nunca ouvi falar de uma folia de mulher.
Como falei pra você, toda a história de Lagolândia é baseada na mulher, se
você for olhar, todas as, as… coisinhas têm mulher no meio. [...] Minha mãe
fala, por exemplo, que tem muitas coisinhas que foram modificadas pela vó
Dica. Os próprios hinos foram modificados por ela (informação verbal, grifos
do autor41).

Câmara Cascudo (2000) e Veríssimo de Melo (1977) não relatam nenhuma folia com
essas características. Porém, trazem outra festividade da região, parecida e protagonizada por

40
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
41
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
75

mulheres, como o Auto Pastoril, também conhecido, em alguns lugares, como Auto da
Lapinha, pertencente ao chamado ciclo natalino.
Representa a visita dos pastores ao estábulo de Belém, ofertas, louvores,
pedidos de bênção, com cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio
na noite de Natal, aguardando-se a missa da meia-noite. [...] As pastoras
cantam ao ritmo dos pandeiros, e a orquestra é de pau e corda, violões,
cavaquinhos, com um instrumento de sopro solista. (CASCUDO, 2000, p.
491).

Cascudo também relata uma outra festa, Joanina, ―Capela‖ (ou Capelinha de Melão).
A festa, que também é referenciada por Deífilo Gurgel (1990), em Espaço e Tempo do
Folclore Potiguar, encena um folguedo de São João, realizado na praia, à meia noite do dia
23 de junho. Segundo Cascudo (2000), a Capela:
É o nome que se dá aos grupos de foliões dos festejos populares são-
joanescos, ornados de capelas de folhagens, a caminho do milagroso banho e,
de volta, em animadoras passeatas. Os seus cânticos obedecem sempre a
estes tradicionais versos de estribilho: Capelinha de melão / É de São João, / É
de cravo, é de rosa, de manjericão. O nome comum e mais popular no Norte e
Sul do Brasil é rancho, significando grupo festivo, com instrumentos
musicais. Esses ranchos percorriam residências amigas, cantando e sendo
recepcionado com refeições típicas. (CASCUDO, 2000, p. 111).

Já Capelinha de Melão, de acordo com Cascudo (2000, p. 111), é uma festividade


―muito comum no Rio Grande do Norte, este pequeno auto é um folguedo entremeado de
cânticos, modalidade de pastoril. Costuma apresentar-se em tablado ao ar livre [...]‖.
Portanto, é possível, conforme relatou a sobrinha de Dica, que por aqui ―a festa foi
adaptada por ela‖. Em Lagolândia, o auto joanino do nordeste é mantido e perpetuado em
duas etapas diferentes. Primeiramente, à meia noite, a folia acontece como ritual de batismo,
que inclui as três voltas dadas pelas ―donzelas‖ em torno da fogueira, como descreve Brigitt
Cipriano:
As pessoas se batizam na fogueira. Elas rodam lá e vão ao rio. [...] o fogo e a
água. [...] ao chegar à meia noite. [...] Esse batismo não é das meninas, é da
comunidade toda de Lagolândia, se você observar a música [música das 24
donzelas], tem relação com água, também. [...] é como se as pessoas
quisessem consagrar-se a São João, talvez seria isso… então as pessoas têm
esse misticismo, e elas acreditam muito nisso (informação verbal, grifos
nossos42).

O segundo momento é marcado pelo percurso diurno, o Giro, realizado entre as


residências católicas do distrito. Conforme a descrição, realizada pelo diretor da escola
estadual de Lagolândia, Marco César, ―o percurso é feito em todas as casas católicas, [...]

42
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
76

identificadas previamente‖, segundo o conhecimento que o grupo possui sobre os moradores


do distrito.
De acordo com o levantamento realizado por Deífilo Gurgel (1981), publicado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com o título ―Danças Folclóricas do
Rio Grande do Norte‖, as principais festividades e manifestações populares do estado estão
agrupadas em Autos, Danças de Roda e Ciclos Festivos. Dentro dos Ciclos Festivos, o autor
destaca a existência da Dança das Bandeirinhas (Figura 24), que ―só existe na cidade de
Touros‖ (GURGEL, 1981, p. 31), dedicada a São João e exclusiva do sexo feminino:
... é privativa do sexo frágil e dela só participam senhoras e mocinhas e, na sua
primeira fase, [...] desenvolve-se diante da bandeira de São João. Após as
danças, o grupo, em cortejo, desfila pela cidade, altas horas da noite, com a
bandeira, até o rio próximo, onde, após o tradicional banho, ao som de estrofes
alusivas ao ato, retorna à casa de onde saiu para o encerramento (GURGEL,
1981, p. 31).

FIGURA 24 - BANDEIRINHAS - FESTA DE SÃO JOÃO, EM TOUROS (RN), EM JUNHO DE 1980

Fonte: Reprodução de Gurgel, 1981, p. 30

Apesar de grande semelhança com o festejo de Lagolândia, não há relato de


continuidade da festa no dia posterior. Apesar disso, suas personagens também são ―mulheres
e moças‖, como descreve Gurgel, com a presença da bandeira de São João e ―o banho no rio
mais próximo‖, como acontece no Rio do Peixe, em Lagolândia. Não há relato sobre a
quantidade ou se existe um número fixo de participantes.
77

Em documentário realizado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte43,


nota-se que, atualmente, o grupo de Bandeirinhas de Touros é formado por senhoras, com
indumentárias típicas e cânticos que não se assemelham à celebração de Goiás.
2.6.1 As mulheres do grupo

Diferente dos festejos do Rio Grande do Norte, em que não há menção ao número de
participantes, a Folia de São João de Lagolândia é realizada por um grupo aproximado de 24
mulheres. Porém, o número não é fixo, sendo variável a cada ano. A folioa Suelma Valério
lembra-se de folias mais antigas, pois participa desde a década de 1980.
Antes a folia era bem numerosa e mais animada. Hoje tem muitas crianças,
não sei se você observou, tem muitas criancinhas. Antes, essas criancinhas
não participavam. Antes tinham mais mocinhas, da adolescência para adulto.
Tinha uma animação maior e mais gente, o povoado tinha mais pessoas, hoje
reduziu bastante, muitas pessoas foram embora ou só vêm de vez em quando,
na época dos festejos e pronto (informação verbal44).

O atual cenário, com grande número de crianças participantes, é fruto de um


processo de esvaziamento da Folia de São João. De acordo com Brigitt Cipriano, houve um
tempo em que as pessoas tinham vergonha de participar dos festejos. ―Teve uma época em
que eram 12 participantes‖. Segundo Brigitt, o incentivo da escola colaborou com o aumento
do número de folioas. ―A escola trabalhou tanto isso, [...] as pessoas não gostavam de falar,
tinham medo porque foi muito reprimido‖. Brigitt lembra que os jornais e a Igreja
consideravam Dica como bruxa.
A folioa Suelma, professora na Escola Estadual do distrito, exerce a função de cantar
no grupo de Guias e ajudar na organização e no incentivo à participação das folioas.
[...] como sou a mais velha por parte das Guias, então tenho uma
responsabilidade maior de chamar as meninas, de incentivar a participação e
de mostrar a importância da folia pra elas e não deixar a tradição acabar.
Então, sempre faço esse incentivo com as meninas (informação verbal45).

Sobre a origem do termo ―donzelas‖, o relato dos participantes dá conta de que está
ligado à virgindade das folioas. Danilo Camargo, responsável pelas músicas explica que,
atualmente, a participação é para as mulheres ―ainda não casadas‖ ou que não tiveram filhos.
A folioa Suelma explica que, inicialmente, a relação com a virgindade era mais rigorosa,

43
Documentário ―Identidade de RN - As Bandeirinhas de Touros‖, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dGpp_8NHCok
44
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
45
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
78

[...] até um tempo atrás havia um rigor muito grande em relação a essa
questão da folia, das meninas terem que ser virgens para cantar na folia, tanto
que essa questão das donzelas está ligado a essa exigência, mas, com o passar
do tempo, as coisas foram mudando (informação verbal46).

Embora tenham ocorrido mudanças, em função das transformações sociais, a irmã de


Dica, Bernarda Cipriano, lembra de uma situação ocorrida em uma das apresentações da
Folia, que não sabe datar, da moça ―que não era direita‖ que foi substituída, por sua irmã
Dica, por outra folioa, casada.
[...] Ela estava noiva com um rapaz e gostava do outro, tinha escrito para o
outro dizendo que ia fugir com o outro. Estava noiva de um e escreveu para o
outro. E o outro, acho que bancou a sinceridade, e foi mostrar pra ele lá na
folia. A folia estava pra lá de um corregozinho que se chama Laje, meu pai
morava era lá, depois foi morar lá perto da capela. Aí, ele perguntou: ―você
vai casar com fulana?‖. Ele respondeu, ―nós estamos noivos e vamos casar‖.
O outro falou, ―olha aqui, ela escreveu pra mim, olha. Vai fugir comigo‖. E
ela cantando lá e ele falou com ela. Aí, por isso, ela rebelou e começou a
beber, ainda cantando. Aí, avisaram a minha irmã… tinha uma mulher de
Pirenópolis, Madalena Gomes, era escrivã e era casada, tinha família e tinha
filhos. Aí, minha irmã falou: ―põe a comadre Madalena pra cantar lá, é
casada, mas essa não pode cantar lá com as virgens. Essa não é virgem, mas é
casada‖ (informação verbal47).

A referida passagem indica um caráter originalmente conservador, do ponto de vista


dos costumes sociais da festa. As mulheres do grupo, segundo dona Bernarda, precisam ser
―sinceras‖, pois, segundo a tradição, o banho no rio seria com o próprio São João. As moças
seriam escolhidas por ele.
Mas, aqui, essas que cantam, são escolhidas lá ao redor da fogueira, São João
que escolhe elas, pra tomar banho. As 24 donzelas. Então, é escolhida por ele.
Se não for sincera, não canta. Se a pessoa que é responsável souber, não
deixa. Se souber que não é certa, não canta. É preferível uma pessoa casada,
como a minha irmã fez, do que a outra cantar. Ela (Madalena) cantou muito
tempo. Então, não canta. O folião pergunta, ―você é sincera mesmo?‖. É João
Batista que convida, pra tomar banho (informação verbal, grifos nossos48).

A faixa etária das folioas , conforme relatado por Suelma, abrange desde criancinhas
à mais velha, com 44 anos, sem ocupações estabelecidas. Porém, há um laço que une as
participantes e toda a comunidade: ―todo mundo é parente de todo mundo‖, de acordo com o
professor João Guilherme Curado.

46
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
47
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
48
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
79

2.6.2 A relação de Dica com a virgindade

O termo ―donzelas‖, conforme relatado pela folioa Suelma Íris e por Danilo
Camargo, responsável pela música, está relacionado à virgindade. Porém, a valorização ou a
simples menção dessa condição de castidade, remete-nos à história que permeia toda a cultura
ocidental de tradição cristã: a concepção e o nascimento de Jesus Cristo.
No relato bíblico, a mãe de Jesus Cristo, Maria, é anunciada como virgem já no
Antigo Testamento, ―portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que uma virgem
conceberá, e dará à luz um filho [...]‖ (Isaías 7:14). No Novo Testamento, que se diferencia do
Antigo pelas histórias e narrativas serem, temporalmente, após o nascimento de Cristo, a mãe
de Jesus é citada como ―desposada‖, ainda não casada:
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Que estando Maria, sua mãe,
desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito
Santo. Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou
deixá-la secretamente. E, projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um
anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua
mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo (Mateus 1:18-20).

Como herança cultural da colonização, o mundo ocidental e, especialmente, o


chamado Novo Mundo49 têm influências dos preceitos e valores cristãos. Desse modo, como a
virgindade é claramente tratada no texto bíblico, desde o Antigo Testamento, passa, por
consequência, a ser um valor (em algumas sociedades).
Segundo o texto bíblico, a virgindade é valorizada para o casamento ―[...] tomará por
esposa uma mulher na sua virgindade. Viúva, ou repudiada ou desonrada ou prostituta, estas
não tomará; mas virgem do seu povo tomará por mulher‖ (Levítico 21:13,14).
A Igreja Católica, como religião predominante no Brasil 50, enquanto participante do
processo de colonização do país, tem em seus dogmas a valorização da virgindade. Segundo
informações contidas no portal do Vaticano51, que relaciona a castidade com a vida dedicada à
Igreja (vida dos sacerdotes e outros religiosos), ―virgindade é virtude difícil [...], de renunciar
completa e perpetuamente aos prazeres legítimos do matrimônio‖.
No caso específico da Folia de São João, as ―donzelas‖ são valorizadas como as
protagonistas de todo o festejo. Contudo, Dica, a precursora da festa, teria sofrido um abuso
sexual, que culminou na perda de sua virgindade, antes do conflito armado com a tropa que

49
O Novo Mundo é formado pelos países que compõem o continente americano, a partir das descobertas do séc.
XV.
50
Senso 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/23/22107
51
http://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25031954_sacravirginitas.html
80

tentou invadir o povoado, no dia que ficou conhecido como ―o dia do fogo‖, em outubro de
1925.
[...] quando a moça se encontrava em estado de transe, segundo ela [Manoel
Torres, vulgo Caxeado] se aproveitou de estar a mesma indefesa e abusou
sexualmente dela [...]. A violência sexual sofrida foi um sofrimento físico e
moral para ela, sendo que já havia sido determinado pelos Guias que o seu
corpo não deveria ser violado, pois assim perderia o dom das curas
espontâneas que aconteciam até aquele momento. [...] Após o estupro,
suspenderam-se as manifestações dos Guias (REZENDE, 2011, p. 39).

Após o abuso, Dica teria perdido seus poderes, dados pelo contato com os chamados
Guias, por meio de transes e incorporações.
Quando os dons voltam a se manifestar, o tratamento feito pelos Guias passa a
ser realizado de modo diferente, agora que Dica não era mais virgem, deveria
passar a utilizar ervas com infusões, chás e garrafadas, intervenções cirúrgicas
em casos mais graves, caso assim necessitassem (REZENDE, 2011, p. 39).

Do ponto de vista jurídico, ou criminal, o abuso sexual era tratado como atentado à
honra. No Brasil, a proteção da ―honra feminina‖ e as conjunções carnais não consentidas,
chamadas de defloramento, passaram a ser criminalizadas, a partir do código penal de 1830,
logo após a independência do país.
[...] em 1822 o Brasil mostrava que se aprofundava na "civilização". A
promulgação do código criminal de 1830 seguia de perto as "conquistas"
europeias, avançando juridicamente na defesa da honra feminina. [...]
Garantiria a proteção de certas mulheres "capazes" de ter a honra a defender.
[...] Se não houvesse violência ("estupro violento" - art. 222), só seria
configurado como crime contra a honra feminina se a ofendida tivesse no
máximo 17 anos de idade, se provasse a virgindade e o defloramento (artigo
224) (ABREU e CAULFIELD, 1995, p. 18).

O código penal vigente no auge do movimento messiânico de Dica, quando teria


ocorrido o crime, previa que ―os principais crimes contra a honra feminina, [eram tratados]
nos artigos 26, 268 e 269, e definiu alguns conceitos e condições desses crimes‖ (ABREU e
CAULFIELD, 1995, p. 18). Nesse caso, a lei previa que de acordo com o artigo 276, no ―[...]
estupro de mulher honesta, a sentença que condenar o criminoso o obrigará a dotar a
ofendida52 [...]. Parágrafo único - não haverá lugar a imposição da pena se seguir-se
casamento".
No caso específico de Dica, como mencionado, a virgindade estava ligada, além da
―honra feminina‖, à sua decisão de não consentimento e às questões religiosas ligadas ao

52
Por meio de ação civil movida pela vítima, onde a mesma pode requerer o próprio valor do dote, que deverá
ser pago pelo estuprador.
81

cristianismo. Do ponto de vista religioso, a virgindade estaria ligada aos seus ―poderes de
cura‖ e ―aconselhamentos‖ espirituais.

2.6.3 A comunidade e a festa

Meio século, cinquenta anos após o falecimento de Dica, ocorrido em 1970, a


comunidade de Lagolândia ainda vive o seu legado. Portanto, existe uma relação entre a
memória, relacionada à manutenção dos festejos e tradições do distrito, que mantêm a
identidade da comunidade.
Durante a pesquisa de campo, foi observada a convivência harmônica, talvez com
conflitos que não se sobressaem em dias de festa, entre os moradores católicos, protestantes e
os seguidores (ou simpatizantes) de Dica. Pode-se inferir que essa harmonia se dê em respeito
à memória da personagem histórica, fundadora do distrito, personificada por meio da
lembrança dos moradores, que realizam as festas.
Segundo definição de Halbwachs (1990):
A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p. 71).

Essas lembranças, ou memórias, podem ser individuais ou coletivas; nesse caso, de


toda a comunidade. Ainda segundo Halbwachs (1990), têm relação com o lugar, com o espaço
e suas relações com o cotidiano, em um ―quadro espacial‖.
[...] o espaço é a realidade que dura: Nossas impressões se sucedem, uma à
outra. [...] Diremos que não há, com efeito, grupo, gênero de atividade
coletiva, que não tenha qualquer relação com um lugar, isto é, com uma parte
do espaço. [...] Todo quadro tem, com efeito, uma moldura. (HALBWACHS,
1990, p. 143 e 144).

Portanto, conhecer e compreender o espaço é indispensável, mas não é tudo. As


relações, as motivações e as memórias vão além, ―não se pode evocar o quadro pela moldura‖
(HALBWACHS, 1990, p. 144).
Por essa razão, as motivações que fomentam a realização da Folia de São João
podem ter, mesmo que em algum momento de décadas de sua realização, outros ideais além
do caráter religioso e devocional. Segundo o professor João Guilherme Curado, o mês de
junho compõe o ciclo casamenteiro.
(...) o que acho engraçado é que a folia passa entre as casas e as folioas
cantam para os homens, que estão sozinhos nas casas porque as mulheres
estão na Folia, cantando. Eu cheguei a pensar, em algum momento, será que
82

ali não seria um ritual, de apresentação… não é?. Um momento ali, de


interação, de mostrar: olha, elas estão disponíveis, não é? Não sei... É algo a
se pensar (informação verbal53).

Ainda para a interpretação e o relato do professor, há uma suposição de que o ritual


pode ter finalidades, ao menos originalmente, com a expectativa relacionada ao matrimônio.
Essas são moças disponíveis, donzelas, folioas… que estão aqui, sendo
apresentadas, cantando... (...). Tem alguns versos que falam na questão do
casamento… Ainda tem essas músicas? Está no ciclo junino, que é o ciclo
casamenteiro. Então, elas estão ali, cantando, fazendo orações… então, de
repente, não é? Então, não sei o que poderia vir daí… não sei. Não sei o que
deu origem, mas é possível (informação verbal54).

Pela perspectiva da comunidade, como foi observado em 2019 e relatado pela folioa
Suelma Valério, a participação se dá pela tradição iniciada por Dica, pela devoção a São João
Batista e pelo ritual do batismo, realizado no rio: ―É a tradição. As pessoas têm muita fé em
São João Batista pelo profeta que ele foi, quando batizava as pessoas nas águas do Rio Jordão.
Por isso fazem a encenação do batismo que ele fazia‖.
Para Danilo Camargo, há também a parte da doação das esmolas, que servem para
manter os instrumentos e ajudar o festeiro, quando necessário. Contudo, quando há uma
sobra, ―se alguma pessoa adoece, tem um dinheirinho em caixa‖.

2.7 OS PREPARATIVOS E A MÚSICA

A música tem grande importância na Folia de São João. As músicas, ou hinos, são
entoadas durante todos os momentos dos festejos, repetidamente, seguindo a sequência das
letras do caderno de músicas, cada uma destinada a uma etapa específica do Giro da Folia e
do ritual noturno das donzelas, em torno da fogueira.
O caderno de cânticos é composto por sete músicas55. A primeira delas, com o título
―Chegada‖, é cantada durante a chegada do grupo em cada residência, quando as folioas,
ainda se encontram do lado de fora. Dentre os seus versos, o primeiro, o quinto e o décimo
trechos sintetizam a finalidade da música: de anunciar que estão em frente à casa, de pedir
para entrar e de abençoar em nome de São João.

53
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
54
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
55
O caderno de músicas encontra-se digitalizado no Anexo dessa dissertação.
83

FIGURA 25 - “CHEGADA” - PRIMEIRO HINO DO CADERNO DE MÚSICAS-FOLIA DE SÃO JOÃO

Fonte: Vinícius Luz (2020)

A segunda música, ―agradecimento das esmolas56‖, foi a mais ouvida no ano de


2019. A música é entoada no interior das casas, durante e após o recebimento das esmolas
(donativos) dedicados a São João. Todos os trechos têm início com ―Deus vos pague a boa
esmola‖, seguido pela parte variável, escrita em três linhas, que sempre falam sobre
recompensa no céu, apadrinhamento de São João, proteção e bom destino, conforme os
trechos:

Deus vos pague a boa esmola


Dada com delicadeza.
No mundo ela é rainha
Lá no céu será princesa.

Deus vos pague a boa esmola


De joelhos sobre o chão.
Vós será recompensado
Pelo altíssimo São João.

Não foi encontrada referência ou similaridade dessa música específica de


agradecimento em outros festejos pesquisados na região. Contudo, na Folia de Reis e na Folia
do Divino Espírito Santo, durante os seus ritos, existem agradecimentos aos donativos e
esmolas recebidos, conforme se observou na Folia de São João.

56
Música disponível em https://youtu.be/GeRLGXaNUlA
84

De acordo com Brandão (2010), que fala sobre a Folia de Reis:


Os foliões pedem. A começar pelos donos da casa; as pessoas ofertam dádivas
em dinheiro e em produtos do trabalho rural; os foliões respondem cantando,
agradecendo, abençoando e tornando ―cumpres‖ votos de promesseiros. Pedir,
dar, receber, retribuir. Tornar tudo solenizado e cerimonial e, assim, estender
aos limites das dimensões comunitárias os tipos de trocas de bens e serviços
tradicionalmente comuns no mundo camponês (BRANDÃO, 2010, p. 56).

O terceiro cântico, ―Cânticos de N. Sª do Livramento‖ (figura 26), também é


realizado no interior das casas, embora, em um trecho de sua letra haja a menção a ―(...) nós
queremos entrar pra dentro‖, não faz referência a São João Batista. Em 2019, a música foi
entoada duas vezes, uma do lado de fora e outra no interior de uma residência.

Figura 26 - HINO DO CADERNO DE MÚSICAS DA FOLIA DE SÃO JOÃO

Fonte: Vinícius Luz (2020)

A quarta música, ―Cruzeiro‖, não foi ouvida no ano de 2019. A letra faz pouca menção
a São João Batista, em sua maior parte, fala de Jesus e outros ícones católicos, como a
Imaculada Conceição, o Santíssimo Sacramento, o Divino Pai Eterno e Nossa Senhora, além
da bandeira da Folia.
A quinta música, ―Bendito, ‗agradecimento da mesa‖ (Figura 27), é cantada durante as
refeições, realizadas no Salão Mário Mendes. O cântico é acompanhado de oração, guiado por
uma das folioas, que menciona nomes e pedidos em nome da comunidade. Dentre os versos,
são cantados agradecimentos, louvores e pedidos de bençãos.
85

FIGURA 27 - “AGRADECIMENTO” - CADERNO DE MÚSICAS DA FOLIA DE SÃO JOÃO

Fonte: Vinícius Luz (2020)

Por fim, duas músicas: ―Saída‖ e ―Despedida‖. A música de ―saída‖ foi ouvida, em
2019, durante ou após a saída do grupo de folioas do Salão Mário Mendes, após o lanche
matutino. Contudo, segundo relatado por participantes, normalmente é entoada na saída das
casas, no final de cada visita.
A música ―Despedida‖ marca o encerramento dos festejos, após o último rito, quando
é escolhido o festeiro do próximo ano. Como despedida, a música diz que São João está se
despedindo, para nos esperar na glória:
Despedida, despedida,
Despedida de Belém
São João está despedindo
Até o ano que vem.

Despedida, despedida,
Despedida nesta hora
São João está despedindo
Pra nos esperar na glória.
86

Contudo, o principal hino da Folia de São João, ouvido durante todo o trajeto do dia
24 e na noite anterior, durante as voltas em torno da fogueira, não está presente no caderno de
músicas. A já referida música: ―Capelinha de Melão‖, tem o nome que pode fazer referência
ao festejo do Rio Grande do Norte, chamado ―Capelinha‖.
Capelinha de melão
é de São João,
é de cravo, é de rosa,
é de manjericão.

São João está dormindo,


não me ouve não,
acordai, acordai, acordai, João.

Segundo a folioa Suelma Valério e Brigitt Cipriano, todas as músicas foram


ensinadas por Dica. Porém, a irmã da líder, Bernarda Cipriano, conta que a Folia de São João,
especificamente, teve suas músicas ensinadas por Ivone, filha do primeiro marido de Dica, do
Rio Grande do Norte. De acordo com Bernarda, ―ela cantava, [...] foi ela quem cantou a
primeira vez, [...] ensinou pra eles [os integrantes do grupo de folia] e continuaram‖.
Quanto ao papel masculino, não há registros sobre uma possível proibição da
participação dos homens, como foliões. Em geral, nessa e nas manifestações do Rio Grande
do Norte, é reservado aos homens a função de tocar os instrumentos. Para a folioa Suelma
Íris, não há uma razão específica para as mulheres não tocarem os instrumentos,
Acho que é por não ter mesmo uma mulher para tocar. Pelo menos agora, não
tem nenhuma mulher que toca algum instrumento. São sempre os homens que
tocam na Folia de Reis, então, eles tocam também na Folia de São João
(informação verbal57).

O protagonismo das mulheres pode ser demonstrado na música: diferente das demais
folias, apenas as mulheres cantam. Para Suelma, ao homem cabe participar como músico ou
acompanhando o Giro, quando gostam ou são devotos de São João.
Os homens só participam nessa parte, de tocar instrumentos. Tem homem que
vai acompanhar a folia, às vezes, tem gente que gira a folia toda
acompanhando porque gosta, não está tocando nenhum instrumento, mas está
lá presente, acompanhando. Não tem problema nenhum, é tranquilo
(informação verbal58).

Comparativamente, ao contrário da Folia de São João, na Folia de Reis, em


Lagolândia, as mulheres não participam do Giro e, sequer, das músicas. ―Dela fazem parte
57
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
58
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
87

foliões do sexo masculino‖ (REZENDE, 2011, p. 137). Esse grupo, por sua vez, em 2019, era
composto por oito homens, com instrumentos: como um acordeão, dois tambores de caixa, 2
violões e um pandeiro.

FIGURA 28 - REUNIÃO DE MÚSICOS INSTRUMENTISTAS NA CASA DE DICA, APÓS AS TRÊS


VOLTAS NA FOGUEIRA

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Naquele ano, 2019, houve variação da quantidade de homens e instrumentos


musicais durante todo o festejo. Na noite do dia 23 foram quatro músicos, com um violão, um
tambor de caixa, um pandeiro e um acordeão (Figura28). No dia seguinte, durante o Giro, o
número aumentou para oito homens. O grupo masculino, diferente das folioas, não faz uso de
uniformes.
88

CAPÍTULO III

3 AS PERFORMANCES DAS MULHERES NA FOLIA DE SÃO JOÃO EM


LAGOLÂNDIA

No campo das performances culturais, devido ao seu caráter interdisciplinar, as


compreensões sobre os fenômenos estudados possuem um recorte mais abrangente. Nesse
campo, que pode ser definido pela transgressão da vida comum, cotidiana, ainda que
estabelecida normativamente dentro das práticas de grupos sociais, a performance ―vai além
dos limites estabelecidos para a vida diária‖(SCHECHNER, 2012, p.56).
Para compreensão das manifestações da Folia de São João, enquanto performances
culturais, com o objetivo de obter uma análise que ultrapasse o mero caráter descritivo,
conforme Sebastião Rios (2014), foi importante integrar diversos tipos de recortes, que
envolvessem o fazer dos antropólogos, etnólogos, folcloristas e artistas:
[...] para se estudar uma determinada sociedade ou cultura por meio das
performances culturais importa integrar diversos recortes: a análise textual e
temática da literatura - escrita e oral -, de lendas, de canções, como proposto
por folcloristas e linguistas; a descrição e o entendimento de rituais e festas de
grupos sociais específicos, como é próprio do fazer dos antropólogos e
etnólogos; o estudo do desenvolvimento de áreas específicas da arte como a
dança, a pintura, a música, realizadas pelos historiadores [...] (RIOS, 2014,
p.791).

Para o professor Robson Camargo:

as performances culturais se constituem pela identificação, registro e análise


de determinado fenômeno em sua múltipla configuração, em seu processo
contraditório de formação, de constituição e de movimento, de estrutura e de
gênese, de ser e de vir a ser, na percepção deste fenômeno em diálogo com
estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de
formas culturais contemporâneas. Performances Culturais [...] são a busca da
determinação do que foi, do que é e do que se pode tornar, não apenas um
levantamento particular do ―essencial‖ de determinada cultura, mas como
uma forma em processo de diálogo (CAMARGO, 2013, p.18;19).

Partindo desses preceitos e da compreensão de Sommerman (2008), a


interdisciplinaridade é a integração conceitual, uma nova forma de pensamento entre
diferentes campos que se estabelecem pelo objeto. Para Pineau (2005), uma pesquisa
interdisciplinar é caracterizada por um segundo grau de ligação entre as disciplinas que
completam, por exemplo, a exploração de um mesmo problema:
[...] pela partilha oral ou escrita dessa exploração. Essa troca impregna mais
ou menos os pontos de vista: fala-se então de uma interdisciplinaridade
89

centrípeta [...], que pode tornar-se centrífuga se essa impregnação é


transferida a outro objeto.‖ (PINEAU, 2005, apud SOMMERMAN, 2008, p.
31)

Por essa perspectiva de estudo interdisciplinar, que propõe os estudos de


performances culturais, optou-se por compreender a Folia de São João em Lagolândia,
dividindo a mesma em recortes, conforme definiu Rios (2014). Para tanto, o presente capítulo
empenhou-se em compreender os rituais como performances culturais. Mais precisamente, os
rituais da folia de São João.

3.1 UMA PERFORMANCE RECONFIGURADA

A prática da Folia de São João em Lagolândia, com o tempo, passa a ser


reconfigurada e assume novas motivações e formas de ser compreendida. Isso porque ―a
mudança de significação é sempre, no final das contas, uma reavaliação: o deslocamento [...]
de um contexto para outro‖ (BAKHTIN, 1986, p.135).
Nesse sentido, a Folia, que é organizada e encenada há décadas por moradores do
distrito de Lagolândia, passa por modificações que acompanham as mudanças sociais e
culturais da sociedade. Como exemplo, a configuração das personagens do festejo:
inicialmente chamadas de ―donzelas‖, por pressupor a participação de moças ainda sem
experiência sexual ou de senhoras casadas e, por isso, ‗direitas‘, como definiu Bernarda
Cipriano, irmã de Dica.
Com o passar do tempo, essa nova configuração tornou o termo folioas mais comum
entre os participantes do festejo, sendo que o número dessas mulheres, sempre foi por volta de
24, presumivelmente para corresponder ao dia do mês em que se homenageia São João. Para
Brigitt Cipriano, o número de participantes está relacionado ao trecho da música que diz: ―São
João foi tomar banho, com 24 donzelas…‖, entoado durante o Giro. Porém, atualmente,
segundo Marcos César, o grupo de mulheres é composto pela quantidade de pessoas
disponíveis para a festa, que oscila para mais ou para menos, dependendo do ano.
Possivelmente, como sinal de transformação cultural, essas mudanças fazem parte da
história sendo contada por seus atores, conforme define Burke (1992) e Pesavento (2003), em
estudos sobre a História Cultural. Dessa forma, segundo Richard Bauman (2006) a função e o
significado das Performances não podem ser compreendidos sem entender o contexto nos
quais estão inseridas, visto que pode mudar com o tempo.
90

Essas mudanças podem ocorrer como resultado da mesclagem entre culturas. O


antropólogo Néstor García Canclini, na obra Culturas Híbridas - estratégias para entrar e
sair da modernidade (2007, p. 40), traz o termo ―hibridismo cultural‖, que fala sobre
mesclagem de culturas, por meio de seus aspectos culturais, econômicos e políticos, formando
uma nova configuração cultural, da qual a sociedade se apropria.
Diante disso, não se pode considerar as Performances Culturais como imutáveis e
incontestáveis, visto que seria incorrer em erro (BAKHTIN, 1986). Ainda que essa prática, a
Folia de São João, esteja associada a um ritual, a performance, como o ritual, nunca é igual a
anterior, pois compõe-se de algumas modificações e alterações que fazem com que a
festividade nunca seja a mesma.
Contudo, de acordo com Schechner (2011, p. 222), que fala do público cada vez mais
sofisticado, as ―mudanças na audiência, levam a mudanças na performance‖. Dessa forma, a
audiência pode interferir nas performances, mudando o seu contexto, a ponto de ―matá-la
também‖. Para Schechner (2011, p. 222), ―há um limite de mudança que um gênero pode
absorver até deixar de ser ele mesmo‖.
No caso específico de Lagolândia, os contextos sociais e o falecimento de sua
precursora, a Santa Dica, também são fatores que complementam as mudanças sofridas nas
performances do grupo de mulheres. Talvez, a performance encenada no distrito mantenha,
além da ligação com a sua fundadora e de seus ideais, a estética e a relação visual simbólica
com o feminino, propositalmente em oposição às demais festividades.
Por esse motivo, do ponto de vista dos símbolos e da estética visual feminina, a
compreensão da festividade e de suas performances se dê pelo resgate dos símbolos e rituais
presentes na Folia, não necessariamente no seu surgimento, mas em sua significação nos dias
atuais, no contexto do grupo de mulheres como ―fazedoras‖ principais da festa. Nesse sentido,
o grupo se refaz a cada ano, reeditando a festa e os seus significados.
Porém, um outro ponto de vista que se abre para um entendimento da Folia de São
João, enquanto performance, é a cultura popular. Para essa compreensão, fez-se necessário
um mergulho no seu conceito, primeiramente, começando pela cultura. Para tanto, recorreu-se
à literatura básica, para uma definição que não limita mas, ao mesmo tempo, lança luz sobre o
termo.
O antropólogo Roque de Barros Laraia (1986), em Cultura, um conceito
antropológico, diz que, Edward Tylor, em 1871, ―definiu cultura como sendo todo o
comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética, como
diríamos hoje‖ Em 1917, com sua definição de que a cultura é a adaptação humana aos
91

diferentes ambientes da natureza, ―Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e
o biológico‖. Desse modo, ―completava-se, então, um processo [...] que consistiu inicialmente
em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocá-lo dentro da ordem da natureza‖
(LARAIA, 1986, p. 32).
Desse modo, a compreensão da cultura, enquanto comportamento aprendido, torna as
ações previsíveis, ―as pessoas sabem como agir e podem prever a ação do outro, [...] com o
qual nunca teve um contato anterior‖(LARAIA, 1986, p. 86). Para Alfred Kroeber, relatado
por Laraia (1986), a cultura também proporciona a nossa sobrevivência:
[...] a cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em
vez de modificar para isto o seu aparato biológico, o homem modifica o seu
equipamento superorgânico [...] e transforma toda a terra em seu hábitat. A
cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica
das gerações anteriores (LARAIA, 1986, p. 48 e 49).

Portanto, é possível compreender que a cultura é, também, responsável pela


adaptação e permanência humana no mundo. Porém, além dessa perspectiva, os estudos de
cultura abrangem outros diferentes focos e diferenciações. No caso da cultura popular, de
acordo com Burke (1992), o surgimento desse campo de compreensão da cultura teve o seu
surgimento, a partir do interesse pela cultura do povo, entre os séculos XVIII e XIX, com o
advento do Romantismo.
Conforme descreve Burke (1992, p. 16), até esse momento, ―o termo ‗cultura‘ tendia
a referir-se a arte, literatura e música‖, esclarecendo que:
hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros
usam o termo ―cultura‖ muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo
que pode ser aprendido em uma dada sociedade — como comer, beber, andar,
falar, silenciar e assim por diante [...] a história da cultura inclui agora a
história das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava
considerar garantido, óbvio, normal ou ―senso comum‖ agora é visto como
algo que varia de sociedade a sociedade e muda de um século a outro, que é
―construído‖ socialmente e portanto requer explicação e interpretação social e
histórica (BURKE, 1992, p. 16).

Porém, ainda segundo o autor, surge a necessidade de divisão dos estudos de cultura,
entre as ―várias culturas do povo e as culturas das elites‖ (BURKE, 1992, p. 13). Para Maria
Laura Cavalcanti (2002, p. 2) ―o discurso sobre a cultura popular ganhou seus contornos
atuais no momento em que se reconheceu a existência de uma distância entre o saber das
elites e o saber do ‗povo‘‖. Nesse período, o movimento intelectual do Romantismo dava
grande importância às particularidades do que se chamava de povo.
Na visão romântica, o povo seria o elemento primitivo, comunitário e
autêntico, encontrado, sobretudo, no mundo rural. O folclore e a cultura
popular abrigariam nostalgicamente a totalidade integrada da vida com o
92

mundo, rompida no mundo moderno. Nessa perspectiva, folclore/cultura


popular e cultura de elite opõem-se, ainda que de modo complementar. A
questão pode tornar-se ainda mais complexa se introduzirmos nesse quadro de
reflexão o grande demônio corruptor geralmente denominado cultura de
massa, com relação ao qual ambos os níveis de cultura - popular ou de elite -
exibiriam uma aura de relativa pureza (CAVALCANTI, 2002, p. 2).

Trazendo os estudos sobre cultura para o contexto brasileiro, Alfredo Bosi (1992), ao
analisar os aspectos sobre a cultura no Brasil, expõe a sua multiplicidade de manifestações,
enquanto:
[...] fenômenos simbólicos pelos quais se exprime a vida brasileira tem a sua
gênese no coração dessa vida, que é o imaginário do povo formalizado de
tantos modos diversos, que vão do rito indígena ao candomblé, do samba-de-
roda à festa do Divino, nas Assembleias pentecostais à tenda de umbanda,
sem esquecer as manifestações de piedade do catolicismo que compreende
estilos rústicos e estilos cultos de expressão (BOSI, 1992, p. 323).

Por essa perspectiva de recorte, enquanto cultura popular no distrito de Lagolândia, a


Folia de São João, abordada do ponto de vista do culto a São João Batista, pode ser
compreendida como uma encenação religiosa coletiva, como performance das mulheres do
grupo e da comunidade.
As performances culturais são reiteradas por desempenhos coletivos, de
papéis culturais construídos e prescritos por um conjunto de normas sociais
cristalizadas, os quais são reencenados em ato presente, de maneira ritualizada
ou não (VELOSO, 2014, p. 196).

De acordo com Veloso (2014), ao analisar os textos de Turner, transpondo essa


definição para o culto popular da Folia de São João, é possível compreender que as
Performances Culturais estão presentes nos modos de comunicação e nas diversas
modalidades de congregações e rituais coletivos, dentre elas as mais convencionais.
Conta-nos Victor Turner (1988) que o antropólogo Milton Singer (1912-
1994), em um estudo publicado em 1955, usou o termo performances
culturais para designar modos de comunicação, verbais e não verbais,
entendidas como formas mais convencionais de performance, como as peças
de teatro, óperas, circo, carnaval, desfiles, os serviços religiosos, leituras de
poesia, casamentos, funerais, formaturas, shows, brindes, brincadeiras e
contação de histórias (VELOSO, 2014, p. 197).

Contudo, as experiências coletivas também passam pelo indivíduo, em suas múltiplas


formas de pensar e agir. No caso dos cultos, como é a Folia de São João, segundo Souza
Barros (1977, p. 144), há uma ligação com as práticas de sincretismo religioso, em que ―não
só o catolicismo popular, mas também práticas abonadas pela Igreja aceitam o mágico
tradicional‖, marcado por rituais que misturam santos católicos com outras práticas religiosas.
93

Essas tradições do sincretismo religioso que se perpetuam, em Lagolândia, também


pela copresença da memória de Dica, são experienciadas ano após ano por seus ―fazedores‖.
Estas pequenas ou as grandes tradições, são ―formas de pensamento
construídas pela humanidade‖, possibilitam distintas experiências pessoais,
definem distintos modos de ser e de ver, usos e costumes, e são construídas
carregando tensões, desejos, esquecimentos e fricções entre as pessoas, vilas
ou civilizações que pretendem ―comunicar a nós sua natureza, sua totalidade‖
em forma complexa e convincente (CAMARGO, 2013, p. 4).

Enquanto tradição local, esses festejos são reeditados todos os anos. Gerações que,
ao longo do tempo, somam ao sincretismo religioso de Dica, a performance do grupo de
mulheres, tomando a religiosidade enquanto fator aglutinador, de coesão social. Segundo
Waldney Costa (2017, p. 9), a coesão social e as experiências coletivas manifestam a ―ideia
de que a sociedade se recria ao se projetar na religião e a de que a vida religiosa eleva o
homem acima de si‖.
Ainda de acordo com o autor, ao trazer conceitos abordados nos textos de Durkheim,
nos ―fatos religiosos está a ideia de que exista na religião algo de eterno, pois a vida social só
é possível no simbolismo‖ (COSTA, 2017, p. 9).

3.2. A LIMINARIDADE E O RITUAL - CONCEITOS E INTERPRETAÇÕES

Para compreender a liminaridade presente nos rituais da Folia de São João, fez-se
necessário, antes de tudo, defini-la. Van Gennep (2011), ao falar sobre a liminaridade, trata-a
enquanto transição. Como descrito pelo autor, a transição das etapas da vida são naturais em
qualquer tipo de sociedade, consistem em passar de uma idade para outra, de profissão, de
papel social e, dependendo da sociedade, essas mudanças podem ser marcadas por ritos.
[...] O próprio fato de viver que exige passagens sucessivas de uma sociedade
especial a outra e de uma situação social a outra. [...] A cada um desses
conjuntos acham-se relacionadas cerimônias cujo o objeto é idêntico, fazer
passar um indivíduo de uma situação determinada a outra situação igualmente
determinada [...]. (GENNEP, 2011, p.24)

De acordo com esse autor, os ritos foram classificados e pesquisados, primeiramente,


em duas correntes principais:
Essa dupla corrente permitiu verificar que, ao lado dos ritos simpáticos e dos
ritos de base animista, existem grupos de ritos de base dinamista (impessoal) e
ritos de contágio. Estes últimos fundam-se na materialidade e na
transmissibilidade, por contato ou à distância, das qualidades naturais ou
adquiridas. Os ritos simpáticos não são necessariamente animistas, nem os
ritos do contágio necessariamente dinamistas. Encontram-se aí quatro
categorias independentes umas das outras, mas que foram agrupadas aos pares
94

por duas escolas que estudavam os fenômenos mágicos-religiosos de um


ponto de vista diferente (GENNEP, 2011, p. 27).

Nesse sentido, um rito pode ser de quatro categorias e ter 16 possibilidades de


classificação. Assim, em um mesmo conjunto de cerimônias, a maior parte dos ritos se
incluem na mesma categoria (GENNEP, 2011), como exemplo, do próprio autor:
[...] a maioria dos ritos da gravidez são dinamistas, de contágio, diretos e
negativos. A maioria dos ritos do parto são animistas, simpáticos, indiretos e
positivos. Mas trata-se sempre tão somente de uma proporção (GENNEP,
2011, p.29)

Quanto aos ritos de passagem, ainda os divide em três categorias: separação, margem
e agregação. Os ritos de separação compreendem, em boa parte das vezes, aqueles nos quais
se corta algo físico, ou há um rompimento que dá início a uma nova fase, como por exemplo,
o primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a cabeça e o rito de se vestir pela primeira vez.
Os ritos de agregação, que têm por finalidade, conforme expressão dos Wayao da
África Oriental, ―introduzir a criança no mundo‖ ou, ―lançar no mundo‖, são os ritos da
denominação, de amamentação ritual, do nascimento do primeiro dente, de batismo, entre
outros.
Por meio da existência dos ritos, é possível compreender a concepção das margens,
ou das liminaridades que, às vezes, adquirem autonomia, como no noivado. A passagem
material, ou a liminaridade, possui identidade através de diversas situações sociais, como:
[...] espaço intermediário existente entre eles, como no caso dos ritos
vinculados aos pórticos, aos limites do mundo doméstico ou às fronteiras
entre o mundo profano e mundo sagrado. Se os ritos de margem são também
chamados de ―liminares‖, os ritos de separação são ―preliminares‖ e os de
agregação, ―pós-liminares‖ (ARNAULT; ALCANTARA; SILVA, 2016).

Como um todo, Gennep (2011, p. 162) mostra pontos interessantes por: ―sua
significação essencial e sua situação relativa [...] tendo em vista um fim determinado‖. Nesse
sentido, falar sobre a Folia de Lagolândia é, de certo modo, falar sobre a puberdade
fisiológica e a ―puberdade social‖, ou, ritos de iniciação, descritos por esse autor, em que as
duas situações são essencialmente distintas e raramente se convergem. Ou seja, a puberdade
fisiológica enquanto puberdade física, biológica. Já a ―puberdade social‖, ainda de acordo
com Gennep (2011), enquanto passagem de um mundo para outro, seria marcada por uma
ritualização.
Portanto, em uma análise comparativa com a Folia em estudo, surgem os
questionamentos sobre a origem do festejo: seria possível dizer que, no início da festa, as
95

―donzelas‖ faziam parte de um rito de iniciação ou puberdade social? Seria um rito de


passagem para os moradores e as participantes, repetidos anualmente?
Para o professor João Guilherme, a folia poderia ser uma maneira de ―apresentar [as
mulheres] para a comunidade [...]‖. Talvez, disponíveis para o casamento, para a maternidade
e para constituir família.
Com base na análise e concepção de ritos, foi possível compreender a manifestação
da Folia de São João enquanto rito de margem, ligado ―às fronteiras entre o mundo profano e
mundo sagrado‖ (ARNAULT; ALCANTARA; SILVA, 2016). Como parte dessa definição,
existem diversas classificações para os ritos, como físico e/ou social, de magia, tabu, de
contágio, diretos, indiretos. Visto que fazem parte de um ciclo ao qual se deseja marcar e
revelar.
Para Durkheim (1978, p. 206), nas ―sociedades mais simples, (...) [os ritos]
traduzem, em sua essência, necessidades humanas aplicadas à vida social‖, pois, segundo o
autor, os rituais se repetem em todos os formatos de comunidade.
Por mais simples que seja o sistema que estudamos, nós reencontramos nele
todas as grandes idéias e todas as principais atitudes rituais que estão na base
das religiões mais avançadas: distinção das coisas em sagradas e profanas,
noção de alma, de espírito, de personalidade mítica, de divindade nacional e
mesmo internacional, culto negativo com as práticas ascéticas que são sua
forma exasperada, ritos de oblação e de comunhão, ritos imitativos, ritos
comemorativos, ritos de expiação aqui nada falta de essencial (DURKHEIM,
1978, p. 221).

Portanto, no campo teológico e das religiões, os rituais também se repetem. Na Folia


de São João, o ritual representado pelo batismo realizado no Rio do Peixe, perfaz o que
Gennep (2011) chama de ritos preliminares, ritos liminares e ritos pós-liminares.
Proponho, por conseguinte, denominar ritos preliminares os ritos de
separação do mundo anterior, ritos liminares os ritos executados durante o
estágio de margem e ritos pós-liminares os ritos de agregação ao novo mundo
(GENNEP, 2011, p. 37).

Seguindo essa compreensão, apresentada por esse autor, na cerimônia de batismo,


realizada pela comunidade na noite do dia 23 de junho, os ritos preliminares podem ser
compreendidos pelos momentos que antecedem as voltas em torno da fogueira, realizadas
pelo grupo de mulheres. Os padrinhos e madrinhas descem ao rio, enquanto a cerimônia das
folioas é preparada dentro e nos arredores da casa de Dica.
Os ritos liminares ocorrem durante o ritual das folioas, durante a noite, e no dia
seguinte, 24 de junho, quando o grupo de mulheres realiza o Giro pelas casas do distrito.
Durante todo o rito, o estágio de margem se refaz a cada momento, nos batismos noturnos,
96

nas voltas em torno da fogueira, nas cantorias, no Giro e no recolhimento das esmolas no
interior das casas.
Os ritos pós-liminares ocorrem na saída de cada casa, durante o Giro, e na noite do
dia 23, após as voltas na fogueira e o término do lanche, servido no interior da casa de Dica. É
possível, também, que esses ritos pós-liminares compreendam o período de um ano, no
intervalo entre uma folia e outra.

3.3 A LIMINARIDADE NA CULTURA COMO PERFORMANCE

No contexto da Folia de São João, pensar a cultura desse lugar, enquanto


performance, é compreender, conforme Erika Fischer-Lichte (2005) que qualquer
performance deve também ser encarada como um processo social. De acordo com a autora, a
performance está no centro de estudos e discussões sobre cultura e das diferentes expressões
artísticas.
(...) viemos a perceber que a cultura é também, se é que não é primeiro que
tudo, performance. Não é possível ignorar até que ponto a cultura é produzida
como, e em, performance – não só nas ―representações‖ proporcionadas pelas
diferentes artes, mas também e antes de tudo nas ―representações‖ associadas
a rituais, festivais, comícios políticos, competições desportivas, mostras de
moda e coisas do género –, performances estas que, de uma forma
mediatizada, chegam a milhões de pessoas (FISCHER-LICHTE, 2005, p. 73).

No caso da Folia de São João, a repetição anual da festa representa, também, uma
interação entre a comunidade, os participantes e os visitantes, estabelecendo relações entre os
modos de ver e participar dos festejos. Isso porque as performances culturais, segundo a
autora em questão, estão presentes nas representações associadas a rituais, festivais,
competições desportivas. Ainda na perspectiva da autora, ―uma performance ocorre pela co-
presença física de atores e espectadores, em que uns agem como ‗fazedores‘ e outros como
‗observadores‘ num determinado tempo e num determinado lugar partilhando uma situação,
um lapso de tempo‖ (FISCHER-LICHTE, 2005, p. 73).
Com essa premissa levantada pela autora, há uma descrição dos traços gerais dos
conceitos de performance, a partir do centro de investigação ―Kulturendes Performativen‖ (A
cultura como performance), divididos em quatro focos, resumidos como:
1. Uma performance ocorre pela co-presença física de actores e espectadores,
pelo seu encontro e interacção. 2. O que nela acontece é transitório e efémero.
Apesar de tudo, o que quer que ocorra durante a sua realização, manifesta-se
como hic et nunc59, e é experienciado como presente de uma forma

59
Que se realiza neste exato instante e local.
97

particularmente intensa. 3. Uma performance não transmite significados


predeterminados. Pelo contrário, é ela que suscita os significados que surgem
durante a sua realização. 4. As performances caracterizam-se pela sua
qualidade de ―acontecimento‖. O modo específico de experiência que
permitem é uma forma particular de experiência liminar. (FISCHER-
LICHTE, 2015, p. 73; 74)

O conceito de performance associado à cultura, explicado por meio das quatro


vertentes, coloca as apresentações com grande importância, também, nas ciências sociais.
Segundo Fischer-Lichte (2015), todos os participantes, autores e espectadores, estão
igualmente envolvidos na medida em que codeterminam e se deixam determinar por ele. ―O
potencial inovador, que o conceito da performance implica, tem ainda de ser descoberto e
explorado pelos estudos culturais e pelos estudos artísticos‖ (FISCHER-LICHTE, 2015, p.
80)
Em síntese, todas as vertentes interessam aos pesquisadores de cultura popular. No
caso da Folia de São João, todos os traços da performance estão presentes. Tendo em vista a
performance de mulheres de Lagolândia, a quarta vertente, ou argumento, é a que mais
despertou interesse. De acordo com a autora:
O espectáculo como acontecimento – bem diferente da encenação – não é
recorrente e não pode ser repetido. É impossível que ocorra uma vez mais
exactamente a mesma constelação entre actores e espectadores. As reacções
dos espectadores e o seu efeito sobre os actores e outros espectadores serão
diferentes em cada um dos espectáculos. Um espectáculo deve ser entendido
como um acontecimento também no sentido em que nenhum participante terá
sobre ele um controle completo, que é antes algo que lhe acontece, e em
especial aos espectadores (FISCHER-LICHTE, 2015, p. 80).

Por esse ponto de análise, da Folia de São João enquanto espetáculo, em que as
folioas e os moradores são os ―fazedores‖ e o ―público‖, os mesmos ―experienciam-se a si
próprios como co-determinando o seu decurso e, ao mesmo tempo, como sendo determinados
por ele [...]. A sua percepção segue tanto a ordem da presença como a da representação‖
(FISCHER-LICHTE, 2015, p. 80).
Nesse sentido, a performance do grupo de mulheres tem a sua existência e história
ligadas ao seu público participante que, em seu imaginário, devota fé à figura de Dica e,
assim, constituem relações entre a comunidade, com modos de festejar (e performar)
diferentes do cotidiano. A cultura, aqui, em relação às performances culturais, expressa-se e
se apresenta ―por meio da forma, [e das] materialidades corporais e gestuais que envolvem
relações em ato‖, conforme definição de Camargo (2011, p. 11).
98

CAPÍTULO IV

4 A FESTA EM IMAGENS

Para este capítulo, além das abordagens já mencionadas, fez-se necessário, também,
registrar e ilustrar a festa por meio de fotografias, a fim de demonstrar como ocorre a Folia de
São João, no distrito de Lagolândia, considerando as etapas da festividade e seus personagens
e significados e, dessa forma, adentrar o festejo, demonstrando ao leitor alguns dos detalhes
das etapas do rito, que não são descritos textualmente.
Conforme já mencionado, devido à pandemia de COVID-19, as entrevistas previstas
com os moradores, parentes e participantes foram canceladas. Portanto, o questionário
aprovado pelo Comitê de Ética da UFG não foi utilizado. A Folia de 2020 não foi realizada,
por determinação de decreto municipal. Em virtude disso, os propósitos de vida, o prazo
regimental do mestrado, o planejamento de ingressar no doutorado e a necessidade de
obtenção do título de mestre fizeram com que a pesquisa seguisse um novo rumo.
Por essas razões, foi necessário recorrer à utilização de algumas imagens fotográficas
produzidas nos anos anteriores. O uso de fotografias expande as possibilidades da pesquisa
científica e a compreensão da festa, conforme descreve Becker (2009):
A biologia, a física e a astronomia hoje são inconcebíveis sem evidência
fotográficas. Nas ciências sociais, somente a história e a antropologia, as
disciplinas menos ―científicas‖, usam fotos (...). A sociologia, arremedando o
caráter supostamente científico destes últimos campos, também não lança
mão delas. Em conseqüência, os poucos sociólogos visuais ativos são pessoas
que aprenderam a fotografar alhures e incorporaram a imagem fotográfica ao
seu trabalho acadêmico (BECKER, 2009, p. 189-190).

A descrição etnográfica, conforme já demonstrado na introdução dessa dissertação, é


permeada por histórias e observações, contadas a partir de seus participantes. A escrita
etnográfica busca evidenciar o que não era percebido, de modo a valorizar a investigação em
campo, com o objetivo e o subjetivo, ou seja, entre o que é observado e o que é percebido,
entre o que é visto e o que é compreendido, com a intenção de encontrar respostas para os
questionamentos da pesquisa.

4.1 O RELATO ETNOGRÁFICO

Apesar de um conhecimento prévio, das leituras e da participação em outras


manifestações ditas tradicionais, a vivência e o contato direto com os ―fazedores da festa‖,
99

durante o festejo, sempre traz novas experiências e uma nova forma de ver e interpretar a
manifestação da Folia de São João.
Para desenvolver um relato etnográfico do evento, bem como as performances como
metodologia de análise foi necessário ter um olhar interdisciplinar sobre a manifestação: a
Folia de São João faz parte de um contexto, está inserida em uma comunidade fundada por
uma líder, em um contexto histórico importante para Goiás e o Brasil, é protagonizada por
mulheres, faz parte de um ciclo festivo que permeia todos os meses do ano e, provavelmente,
tem a sua origem de inspiração em uma outra festividade de outro estado do país.
Com o conhecimento dessas e de outras particularidades, ao chegar em Lagolândia, na
noite do dia 23 de junho de 2019 - no que pretendia ser apenas uma sondagem preliminar e
findou por constituir-se na atividade de campo -, uma das primeiras iniciativas do pesquisador
foi compreender o espaço da festa, já repleto de moradores que aguardavam o início do rito.
Para tanto, a fim de facilitar a compreensão, buscou conversar com alguns moradores que
deram conta de que, naquele ano, o festeiro faria um bingo antes de iniciar a folia, com a
finalidade de arrecadar fundos.
Diferente dos anos anteriores, o festeiro distribuiu o lanche antes da saída das folioas,
invertendo a sequência usual dos acontecimentos, que consiste, primeiramente, na saída das
―donzelas‖ e do ritual em torno da fogueira. Após esse rito, as mulheres retornam à casa de
Dica, onde é servido o lanche. Em 2019, foi distribuído pão com recheio de carne, suco em
copo descartável e caldos.
A saída das mulheres aconteceu às 23 horas, diferente dos anos anteriores e da
tradição, sempre à meia noite. De acordo com moradores, o festeiro confundiu a sequência:
primeiro o rito da fogueira e depois o lanche, no interior da casa de Dica. Contudo, para
compreender e relatar sobre o espaço da festa, foi necessário realizar um esboço, à mão, sobre
o trajeto (Anexo I) e os principais pontos do ritual noturno. Esse esboço serviu como
referência para a realização de um infográfico, a partir de uma fotografia aérea, produzida no
dia seguinte, conforme Figura 29, apresentada na sequência.
100

FIGURA 29 - TRAJETO E DINÂMICA ESPACIAL DA FESTA, FEITO A PARTIR DE


OBSERVAÇÕES, DESENHOS E ANOTAÇÕES DE CAMPO DO DIA 23 DE JUNHO DE 2019

Fonte: Vinícius Luz

Como lugar de onde se irradiou o gérmen de Lagolândia, a casa de Dica é o local de


saída e de encerramento do rito noturno da Folia de São João. As ―donzelas‖ saem da casa e
dão três voltas em torno da fogueira, cantando Capelinha de Melão, e retornam ao interior da
edificação. Como acontece em todos os anos, é servido um lanche para os músicos, para as
―donzelas‖ e para a comunidade.
Essa etapa, do lanche noturno, é encerrada rapidamente, pois, segundo comentários
ouvidos durante este momento, ―é necessário acordar cedo‖. Alguns dos participantes, dentre
―donzelas‖ e músicos, moram em propriedades na zona rural e dividem as atividades do
trabalho no campo, de sustento familiar, com a realização das festas religiosas do distrito.
Talvez, por não ter esse motivo, o pesquisador foi um dos últimos a sair do salão
(casa de Santa Dica – Figura 30), na noite do dia 23, após o lanche. Curiosamente, havia um
altar improvisado em uma mesa, um copo com água, uma vela acesa e uma imagem de Jesus
Cristo. Rapidamente, apareceu uma moradora do distrito e apagou a vela. ―Para evitar
incêndio‖, disse, complementando: ―pode ficar à vontade, mas, antes de sair, não se esqueça
101

de apagar a luz e fechar a porta‖. Tal fato deu a entender que, aparentemente, a casa não é
habitada e é mantida pelos moradores –sendo um lugar onde se realizam alguns atendimentos
espirituais.
FIGURA 30 - INTERIOR DA CASA DA SANTA DICA APÓS O TÉRMINO DO RITUAL
NOTURNO DETALHE PARA A VELA ACESA

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Ao sair da casa, percorrendo um trajeto que atravessou toda a área destinada ao


festejo, foi surpreendente ver o seu esvaziamento completo. Já não havia ninguém, apenas a
brasa da fogueira e as bandeirolas da festa junina, realizada na quadra de esportes.
Rapidamente, ao procurar por Danilo Camargo, organizador e um dos responsáveis pela
música, notou-se uma pequena aglomeração, formada por um grupo de jovens, nas
proximidades de uma das casas. Com a aproximação, foi possível descobrir que se tratava do
uso de rede Wi-Fi: o distrito não é servido por nenhuma operadora de telefonia móvel,
portanto, os celulares não funcionam, nem mesmo a internet. Contudo, algumas casas
possuem telefone fixo, com internet banda larga.
Após localizar Danilo Camargo, que cedeu, gentilmente, hospedagem em sua casa,
localizada em uma fazenda do distrito, o pesquisador ouviu aexplicaçãode que a Folia de São
João ―foi originada pela Dona Dica‖, mas não sabe precisar de onde veio e qual a motivação.
Para participar, as mulheres não podem ser casadas ou terem filhos. Segundo ele, o termo
―donzelas‖ já está em desuso. Atualmente, somente os moradores mais antigos usam esse
nome, que foi substituído por folioa. O organizador também reforçou que, diferente da Folia
de Reis, o percurso realizado entre as casas dos moradores, conhecido como Giro, é feito
durante o dia e em um único dia, em todas as casas católicas do distrito, proporcionalmente, a
maioria, mas em número, são poucas.
102

FIGURA 31 - CAFÉ DA MANHÃ SERVIDO ANTES DO INÍCIO DO GIRO,


NO SALÃO MÁRIO MENDES

Fonte: Vinícius Luz (2019) – Montagem do autor

No dia seguinte, 24 de junho, ao acordar cedo, Danilo, o organizador, relatou que


pagou pelo trabalho de um diarista, para cumprir suas obrigações na fazenda. Mesmo assim,
acordou de madrugada para realizar outras atividades com seus familiares, antes de iniciar a
Folia. A chegada ao salão Mário Mendes deu-se às 7h45, para o café da manhã, composto por
refrigerante, café, biscoitos e roscas, que já estava sendo servido para os moradores e as
folioas, que trajavam um uniforme novo, branco e vermelho (Figura 32), formado por saia
vermelha e camisa branca, com golas e mangas na mesma cor das saias, além da inscrição
―Folia de São João‖, nas costas das camisas. O grupo fez um pequeno ensaio dentro do salão,
com saída por volta das 8h45.
FIGURA 32- INTERVALO DO GIRO: PARADA DE DESCANSO

Fonte: Vinícius Luz (2019)


A primeira parada do Giro (Figura 33) aconteceu na residência da prima de Dica,
Carmelita Cipriano. O grupo de folia entrou, entregou a bandeira para a dona da casa, dividiu-
103

se em duas fileiras, chamadas Guias e Contra Guias (primeira e segunda voz), cantou quatro
músicas, recolheu as esmolas (doações em dinheiro), encerrou o rito e partiu para a próxima
casa, continuando o Giro.

FIGURA 33 - PRIMEIRA PARADA DO GIRO

Fonte: montagem / Vinícius Luz (2019)

Durante o percurso do Giro, o pesquisador foi interrompido por abordagens de alguns


moradores, perguntando se era do programa ―Mais Você‖, da TV Globo. Isso porque a equipe
da emissora fez uma reportagem no distrito, que havia ido ao ar no mês anterior e foi possível
perceber que algumas pessoas estariam interessadas na possibilidade de aparecer na televisão.
Uma das pessoas queria ensinar uma receita de doce de mamão e, também no decorrer do
percurso, algumas moças pediram para serem fotografadas.
Ainda na parte da manhã, a penúltima parada antes do almoço aconteceu em uma casa
em frente à residência de Bernarda Cipriano, irmã de Dica, como é conhecida na região. O
pesquisador foi informado e orientado a entrevistá-la, pois ―já está bem idosa‖, como
disseram. Sendo recepcionado por sua filha, a sra. Brigitt Cipriano Rocha, ocorreu a
possibilidade de uma conversa informal, registrada, com autorização, por um gravador de
bolso. Devido à idade avançada de Bernarda, com 91 anos, houve a intermediação de sua
filha, Brigitt. A conversa foi transcrita e passou a fazer parte de acervo particular do
pesquisador que utilizou alguns trechos no corpo dessa dissertação, na forma de citações.
As casas, como um todo, não possuem similaridade entre si. Foi percebido um padrão
de pouca repetição de cores, algumas com colorações diferentes em suas partes internas e
externas. No interior de cada residência, percebe-se a presença recorrente de imagens que
remetem ao sagrado, representado principalmente por santos católicos, por meios de pôsteres,
calendários de parede, pequenas esculturas e lembranças de missas e batizados, conforme já
pôde ser observado na Figura 33 e, abaixo, na Figura 34.
104

FIGURA 34 - MÚSICA E RECOLHIMENTO DE ESMOLAS

Fonte: Vinícius Luz (2018)

Após a conversa, o almoço já estava no final. O cardápio foi composto por arroz,
feijão tropeiro, carne frita, ‗gueroba‘ e salpicão. Os alimentos, na maior parte, foram
produzidos nas fazendas da região. Após o almoço foi servida uma sobremesa, com várias
opções de doces, dentre eles uma receita local de doce de inhame, que também é servido na
Festa do Doce, em homenagem ao Divino Pai Eterno.
FIGURA 35 - PARADA EM UMA DAS CASAS: MÚSICA ENTOADA ANTES DE ENTRAR

Fonte: Vinícius Luz (2019)


105

Ao sair, a preocupação do pesquisador voltou-se para fotografar alguns pontos


importantes do distrito, como o túmulo de Dica e de seu segundo marido, a fachada da casa e
a quadra de esportes, como também, o registro de imagens aéreas com um drone. Seguiu para
o rio do Peixe para conhecer os fundos da casa de Dica. Chegando ao rio, foi possível
observar que há um bambuzal e um barranco nos fundos, que dificulta o acesso às águas.
Retomando o Giro, chama a atenção o fato de grande parte das casas
estaremdesocupadas, sem seus moradores. Explicaram que há uma grande evasão
demográfica, durante a semana e que algumas dessas pessoas retornam, durante os finais de
semana e feriados. Há um acordo entre os vizinhos de vigilância das casas vazias.

FIGURA 36 - MORADORA RECEPCIONA AS FOLIOAS

Fonte: Vinícius Luz (2019)

O Giro seguiu normalmente, passando por várias casas. Em algumas, os moradores


pediram a bandeira para percorrer os cômodos. Voltando para o lanche, serviram pão com
carne moída, café e refrigerante de marca local. Nos fundos do Salão Mário Mendes, em uma
área coberta que abriga uma grande mesa de refeições, um imenso fogão à lenha, um forno de
barro e algumas bancadas utilizadas para o preparo das refeições, as mulheres já preparavam o
jantar, com toucinho e outros cortes suínos (Figura 36).
106

FIGURA 37 - PREPARAÇÃO DA REFEIÇÃO

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Surgiu a informação de que o caderno, com os nomes dos interessados em assumir o


posto de ―festeiro‖ do ano seguinte, havia sumido. Por isso, fariam um sorteio. Mesmo
ficando em Lagolândia até o final da tarde, chegou o momento da saída do pesquisador e não
haviam escolhido o festeiro de 2020.

FIGURA 38 - INTERIOR DA CAPELA DE NOSSA SENHORA DO LIVRAMENTO,


UMA DAS PARADAS DO GIRO

Fonte: Vinícius Luz (2018)


107

4.2 BREVE NARRATIVA VISUAL

A imagem, como narrativa, tem o poder de trazer a realidade representada, no


―confronto entre o registro verbal e o registro visual‖ (SAMAIN, 2004, p. 62). As
possibilidades de leituras, como complementação do texto escrito, é o que se buscou com as
imagens que compõem esse intertítulo, fornecendo ao espectador possibilidades de
compreensão e interpretação do ritual da Folia de São João.
Se o sentido do texto nos dá a impressão de ser único e fixo (embora seja,
também ele, passível de várias leituras) e capaz de abstrações e
generalizações, imagens têm uma natureza paradoxal: por um lado, estão
eternamente ligadas a seu referente concreto, por outro, são passíveis de
inúmeras ―leituras‖, dependendo de quem é o receptor (NOVAES, 2008, p.
457).

Nas imagens a seguir, foi possível perceber a faixa etária média das participantes, o
papel masculino, os instrumentos musicais, a vestimenta utilizada em 2019, que se assemelha
ao uniforme escolar (normalista60), o interior e o exterior das residências, com parte de seus
rituais, o ato comensal, comum nos festejos populares. A alimentação, por sua vez, é vista
como fator agregador da comunidade, de confraternização e representação cultural do festejo.
Os equipamentos utilizados para a captação de imagens, que ilustram a presente
pesquisa, foram: uma máquina fotográfica Canon 60D, com três objetivas: 50 mm, 18-135
mm e 8 mm (grande angular, olho de peixe). Como acessório da câmera, foi utilizado um
flash Speedlite Canon, modelo 430EX II. Além destes equipamentos, foi utilizado um drone
modelo DJI Spark. A seleção de imagens buscou priorizar as narrativas dos textos e, para esse
capítulo, a seleção, ou curadoria, a partir de temas que dão sequência à narrativa visual que se
propõe.
É importante ressaltar que as imagens aqui dispostas, quase que como único
documento de campo, vem como auxílio e ilustração da narrativa, desde o início da pesquisa.
Aqui, o exercício será de descrever alguns dos momentos importantes do festejo, registrados
nas fotografias.
Pela primeira fotografia (Figura 39), foi possível ver os restos da fogueira, ainda em
brasas, em frente à casa de Dica. No momento dessa fotografia, o grupo de quadrilha da
escola pública do distrito acabara de se apresentar. Era o momento em que todos aguardavam
a saída das ―donzelas‖ do interior da casa, que daria início à Folia de São João, com as três
voltas.
60
Uniforme comum das antigas escolas de ensino normal, no Rio de Janeiro, nas décadas de 1960 e 70.
108

FIGURA 39 - BRASAS DA FOGUEIRA DE SÃO JOÃO, NO DIA 23 DE JUNHO, NO INÍCIO DO


TRAJETO DAS FOLIOAS

.
Fonte: Vinícius Luz (2019)

A dança da quadrilha, realizada na quadra de esportes, deu lugar ao vazio (Figura 40).
Todos os participantes e espectadores se deslocaram para ver o grupo de mulheres que, nesse
momento, ainda não tinha iniciado o rito inicial da Folia.

FIGURA 40 - QUADRA DE ESPORTES ONDE SE REALIZA A FESTA JUNINA, QUEANTECEDE AS


VOLTAS DASFOLIOAS EM TORNO DA FOGUEIRA

Fonte: Vinícius Luz (2019)


109

Na sequência, o grupo sai em desfile cantando ―Capelinha de Melão‖ (Figura 41). Os


espectadores fazem um profundo silêncio, e só se ouvem os instrumentos dos músicos, a voz e
os passos das ―donzelas‖ que, rapidamente completam as três voltas ao redor da fogueira e
retornam para o interior da casa de Dica. A noite escura e fria é contrastada pelo brilho das
brasas e da lua.

FIGURA 41 - GRUPO DE FOLIOAS (“DONZELAS”), NO DIA 23 DE JUNHO, EM


TORNO DA FOGUEIRA DE SÃO JOÃO

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Na manhã seguinte, o Giro começa com o café da manhã, servido no Salão Mário
Mendes. Em seguida, o grupo se desloca entre as casas dos moradores católicos. Contudo,
além da linguagem verbal, pelo que foi contado pelos participantes, ―no campo, é
frequentemente através da experiência que aprendemos, muito mais do que pela troca verbal
com os nossos informantes‖ (NOVAES, 2008, p. 467-8).
Por meio das observações in loco, foi possível perceber o papel masculino e o
protagonismo feminino em todas as partes da manifestação. Nas imagens produzidas, algumas
com a única pretensão de registrar a festa, percebeu-se, a posteriori, que em todos os registros
os homens estavam em menor número e separados do grupo principal.
110

FIGURA 42 - PELA MANHÃ, O GRUPO DE MULHERES JÁ SE ENCONTRA NO SALÃO MÁRIO


MENDES, PARA O CAFÉ DA MANHÃ

Fonte: Vinícius Luz (2018)

Na imagem que segue (Figura 43), é possível perceber, pelo lado de fora da casa, o
músico da Folia de São João posicionado à janela da residência, em local pouco privilegiado
na organização espacial do festejo, na parte periférica, enquanto as mulheres ficam no centro
(geográfico e das atenções), entoando os cânticos da folia. A fotografia retrata uma das
primeiras casas do Giro, no período da manhã. Apesar da ainda pequena participação da
comunidade, os espaços e os papéis no grupo são bem definidos.

FIGURA 43 - PARTE EXTERNA DE UMA DAS RESIDÊNCIAS, DURANTE O GIRO

Fonte: Vinícius Luz (2019)


111

Na sequência de imagens (Figura 44), durante o cântico de entrada que pede


permissão para a entrada do grupo na residência, as mulheres tomam a frente, seguidas pelo
grupo de músicos e pela comunidade. Na maior parte, foi observado que o festejo é
acompanhado principalmente por mulheres da comunidade. Na referida fotografia, captada
em 2018 para o pré-projeto, nota-se que há uma variação de cores do uniforme das folioas,
que não se repetiu entre os anos de 2018 e 2019.

FIGURA 44 - CANTORIA ANTES DE ENTRAR EM UMA DAS CASAS

Fonte: Vinícius Luz (2018)

No ano de 2019 (Figura 45), foi percebida a mesma organização. Ao entrar nas casas,
as mulheres têm prioridade e, aos homens, cabe entrar por último, quando há espaço no
interior da residência, ou aguardar do lado de fora.

FIGURA 45 - MOMENTO DA ENTRADA DO GRUPO DE FOLIOAS: OS


HOMENS ENTRAM POR ÚLTIMO

Fonte: Vinícius Luz (2019)


112

No interior das residências, a maior parte construídas durante o movimento


messiânico de Dica, o rito se repete, de casa em casa. Algumas variações são, quando o dono
da casa pede, que o percurso da Bandeira seja estendido aos cômodos da residência, levada
por alguém da família.
FIGURA 46 - INTERIOR DE UMA DAS RESIDÊNCIAS

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Durante o Giro, no trajeto entre as casas, há uma coesão entre o grupo de mulheres.
O mesmo se percebe no grupo masculino. Não há mistura entre os dois grupos.

FIGURA 47 - TRAJETO REALIZADO ENTRE AS CASAS, DURANTE O GIRO

Fonte: Vinícius Luz (2019)


113

FIGURA 48 - GRUPO DE HOMENS INSTRUMENTISTAS, DURANTE O GIRO

Fonte: Vinícius Luz (2019)

Como é comum nas festas populares, o ato comensal está presente na Folia de São
João. Os participantes produzem boa parte dos alimentos nas propriedades rurais da região,
cozem os alimentos, comem e compartilham com toda a comunidade, como ato, também, de
celebração e confraternização da população local. Durante o almoço, é perceptível o número
maior de participantes, uma pequena multidão.

FIGURA 49 - ALMOÇO SERVIDO PARA A COMUNIDADE, NO SALÃO MÁRIO MENDES

Fonte: Vinícius Luz (2018)


114

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se encerra aqui, mas a pesquisa e o interesse em adentrar no universo


místico de Lagolândia e de Santa Dica continuam. As perspectivas que se abriram na pesquisa
interdisciplinar são infindáveis, as áreas de conhecimento se cruzam e, muitas vezes, se
tornam quase infinitas, com inúmeras possibilidades de abordagem.
Algumas limitações, impostas pela pandemia, fizeram com que o trabalho tomasse
um novo rumo, o que limitou a quantidade de entrevistados e o acesso a algumas fontes.
Contudo, todo esse processo instigou o surgimento de novas perguntas, novos desafios e o
estímulo para prosseguir na pesquisa, em nível de doutorado.
A incursão ao universo de Lagolândia proporcionou algumas novas percepções. Foi
possível notar que aprofundar em temas que, muitas vezes, parecem locais e pontuais, trazem
questões que dizem respeito a um âmbito maior, nacional e, talvez, mundial, como: a
influência política de lideranças religiosas, os interesses econômicos ligados à posse da terra,
o papel da mulher e a importância da união de pessoas em torno de objetivos comuns e da
comunidade.
A religiosidade e a fé estavam presentes durante todo o processo de pesquisa, assim
como o respeito à memória e à história do lugar, sempre ligado à figura central de Santa Dica
que, mesmo 50 anos após o seu falecimento, perdura e se mantém viva, renovando-se pelas
gerações, por meio de suas festas e tradições, manifestadas no hibridismo do catolicismo
popular com o espiritismo, muitas vezes oculto em Lagolândia.
Por esse motivo, Santa Dica é um ponto em comum, aglutinador, que une o passado
com o presente: Tudo, e todos, em Lagolândia, têm algo a dizer. A ―Santa‖, ou a ―dona Dica‖,
a ―Dica‖, a ―Benedita‖, a ―Madrinha‖, a ―vó Dica‖... está em tudo e em toda parte. Está
presente nas casas, nas histórias dos moradores, nos relatos históricos, na política local, no rio
do Peixe (ou, rio Jordão), na praça central com o túmulo (na outra praça também, com o seu
busto e o seu jardim), no comércio com fotografia na parede, no nome das ruas, como a rua 24
de outubro (data da Revolução de 1930), a rua Benedita Cipriano Gomes, a rodovia que dá
acesso ao distrito (GO- 479), conhecida como ―Caminho de Santa Dica‖, na escola, que leva o
seu nome… Tudo ―é‖ Santa Dica, no tempo presente e em estado permanente.
Fora do distrito, a percepção sobre Lagolândia é pequena: ao perguntar sobre o lugar,
nenhum pedestre de Pirenópolis sabia do lugarejo por seu nome. Para chegar lá, nenhum
transeunte pirenopolino soube responder sobre Lagolândia, foi necessário recorrer às suas
115

referências principais, como a ―terra da Santa Dica‖ ou, ―lá onde tem a Festa do Doce‖, como
facilmente é reconhecido.
Porém, a trajetória de vida de Dica, marcada por sua liderança política e espiritual,
também possui contradições que intrigam, talvez pelos costumes vigentes no tempo em que
viveu. Líder religiosa e política, reuniu milhares de pessoas em torno de seu carisma,
aconselhava e era considerada a ―madrinha‖ de todos. Lutou e liderou tropas em duas
revoluções (1930 e 1932); conheceu e teve acesso a políticos, como o ex-presidente Juscelino
Kubitschek; ou o fundador de Goiânia, ex-governador e interventor de Goiás, Pedro Ludovico
Teixeira, com importante participação em sua libertação na Revolução de 1930, em Rio
Verde.
Ao mesmo tempo, essa mesma mulher se submeteu a várias tentativas de ser
vendida, por parte de seu primeiro marido, com o qual se casou formalmente e com quem teve
cinco filhos. Esse mesmo marido foi eleito prefeito de Pirenópolis, por sua interferência. Até
hoje, segundo a bibliografia consultada, foi o único prefeito que não nasceu na cidade. Por
outro lado, a situação de se submeter, finalmente, à venda se torna contraditória a todos os
seus feitos e ao seu legado.
No caso da Folia de São João, que também é um legado de Dica, por ter sido iniciada
e, nos primeiros anos, ensinada e mantida pela ―matriarca‖ dos moradores, das festas e das
tradições locais, também faz parte de sua história de vida. Por essa perspectiva, não teve
outro modo de iniciar a pesquisa que não fosse pelo levantamento histórico da personagem, a
fim de conhecê-la, de apresentá-la, embasar a pesquisa e ambientar o leitor.
Por meio das (mesmo poucas) entrevistas, foi possível perceber que as mulheres do
grupo (as folioas) se sentem valorizadas por fazerem parte da história, sendo contada e
reeditada por suas cantorias e rezas, com uma festividade única e exclusiva, no meio de várias
outras, dentre elas a Folia de Reis, de predominância masculina.
Essas mulheres, também conhecidas por ―donzelas‖, vão de adolescentes a adultas,
são na maioria estudantes, algumas donas de casa e uma professora. Todas participam porque
querem manter a tradição e a devoção a São João Batista, padroeiro da festa. Porém, o termo
―donzelas‖ não parece ser, atualmente, tão bem aceito. Em conversas informais, com
moradores e com as ―donzelas‖, foi perceptível a preferência pelo termo folioa, que se adequa
melhor aos dias atuais.
Talvez, o uso do termo que remete à virgindade tenha nascido da passagem da vida
de Dica, da ocasião em que teria sofrido um abuso sexual. Esse período de sua vida teria
marcado uma mudança na forma de conversar com os seus Guias, na maneira de tratar as
116

enfermidades das pessoas que procuravam sua ajuda e, até mesmo, na mudança de seu
destino.
Como ritual, na modesta opinião do pesquisador, a ideia de que ―o mundo é um
palco‖ sempre vem à tona, particularmente acentuada nas cidades (BURKE, 1992, p. 82), na
―distância entre a aparência e a realidade‖, nas ―roupas, a maneira de falar […], são
indicadores não apenas de um estatuto social, mas também de atitudes e grupos de valores de
‗mentalidades‘‖ (BURKE, 1992, p. 83).
Lagolândia, nos dias atuais, apesar de poucos moradores, é uma comunidade com
suas memórias e identidade, sendo ainda viva em suas festas e tradições e, mesmo com o
advento das novas tecnologias, mantém-se firme com o legado de sua fundadora.
Por esses, e diversos outros motivos, já se pode considerar a Folia de São João,
realizada essencialmente por mulheres, como um fenômeno singular, oriundo de uma
passagem histórica importante de Goiás, protagonizada por uma mulher, no tempo dos
coronéis. Além disso, abre-se espaço para um alargamento das ideias; tornando-se, portanto,
um vasto campo para novas pesquisas, contribuindo, como pretendido, para que outros
trabalhos sejam realizados.
117

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Livro de Casamento. Paróquia Nossa Senhora do Rosário. Pirenópolis, nº 17, 1928-1935.
200p.
125

Apêndice A – Questionários

(Aprovado pelo Comitê de Ética da UFG, como o número: CAAE 19148619.4.0000.5083


- Em virtude da pandemia, a pesquisa tomou novo rumo e os questionários não foram
utilizados.

O presente questionário enquadra-se no âmbito da investigação sobre a Folia de


Mulheres de Lagolândia, ou, como também é conhecida, ―das Donzelas‖.
As perguntas nasceram com a intenção principal de responder, ou, ao menos,
fazerem parte das discussões sobre os objetivos da pesquisa: o geral, que visa compreender o
fenômeno, enquanto performance cultural e os específicos que se centram na história,
simbolismos e nas relações entre as participantes.

Grupo A (mulheres participantes)

NOME:__________________________________________________ IDADE:____

1) Desde quando participa da Folia de São João?


2) Foi incentivada por alguém? (quem?)
3) Qual é a sua participação na Folia? (qual é o nome da função que exerce e o que você
faz durante o festejo)
4) Descreva, a partir do início da Folia, o ritual realizado desde o início até o
encerramento.
5) Qual é o significado de participar da Folia, para você?
6) Sabe o motivo do nome ―donzelas‖? Se sim, qual é?
7) O que é feito durante o restante do ano? (algum ensaio, reunião, arrecadação / doação
de fundos…)
8) Há algo mais que considera importante mencionar/ relatar/contar?

Grupo B (grupo de moradores participantes)

NOME:__________________________________________________ IDADE:____

1) Desde quando participa da Folia de São João?


2) Como começou a participar? Já atuou no Giro?
3) Tem algum conhecimento sobre a origem da Folia?
4) Sabe o motivo do nome ―donzelas‖? Se sim, qual é?
5) Qual é o significado de participar da Folia?
(Se o entrevistado for mais velho)
6) Conheceu a Dona Dica? Qual a relação dela com a Folia?
7) O que significa / o que é pra você participar da Folia de São João?
8) Há algo mais que considera importante mencionar / relatar/contar?
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Grupo C (parentes / pessoas próximas a D. Dica)

NOME:__________________________________________________ IDADE:____

1) Qual é a sua relação com a D. Dica?


2) Como os moradores viam / se relacionavam com a D. Dica?
3) Você tem algum conhecimento sobre a origem da Folia? (Qual?)
4) Qual é o significado da Folia? (da lembrança mais antiga da atualidade)
5) Quem escolheu o nome da Folia?
6) Sabe o motivo do nome ―donzelas‖? Se sim, qual é?
7) Há algo mais que considera importante mencionar / relatar?
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Apêndice B - PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP / UFG


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Anexo I
Relato etnográfico de 23 e 24 de junho de 2019

Dia 23:

- Cheguei ao distrito por volta das 22h. Viagem longa de Goiânia até lá. Havia grande
movimentação na praça principal.

- Diferente dos anos anteriores, havia distribuição de pão com recheio de carne, suco em
copo descartável e caldos. A refeição foi oferecida pelo festeiro do ano.

- A saída das mulheres aconteceu às 23 horas, diferente dos anos anteriores e da


tradição, sempre à meia noite.

- Céu sem nuvens, mas a lua não apareceu.

Trajeto observado no dia 23 de junho de 2019.

- Trajeto de três voltas realizado com a música ―Capelinha de melão‖.

- A música foi interrompida somente no momento da saída das ―donzelas‖ (folioas).

- Fiquei só no salão (casa de Santa Dica), a música foi interrompida somente no


momento da saída das ―donzelas‖. Havia uma vela acesa em uma mesa. Apareceu uma
moradora do distrito e apagou a vela. ―Para evitar incêndio‖, disse. Antes de sair, ela
pediu para que, quando eu saísse, não poderia esquecer de apagar a luz e fechar a
porta. Aparentemente a casa não é habitada e é mantida pelos moradores.
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Interior da casa da Santa Dica após o término do ritual noturno. Detalhe para a vela acesa.
Fonte: Vinícius Luz (2019)

- Um dos organizadores, Danilo Camargo, explicou que a folia foi originada pela D.
Dica, mas não sabe precisar de onde veio e qual a motivação.

- Danilo também explicou que, para participar, as mulheres não podem ser casadas ou
terem filhos. Segundo ele, o termo ―donzelas‖ já está em desuso, atualmente, somente
os moradores mais antigos usam esse nome, que foi substituído por ―folioa‖.

- O organizador também reforçou que é um percurso, Giro, realizado em um único dia,


em todas as casas católicas do distrito.

Dia 24:

- Cheguei ao salão Mário Mendes às 7h45, o café já estava sendo servido para os
moradores e as folioas.

- Café da manhã composto por refrigerante, café, biscoitos e roscas.

- As folioas se apresentam com uniforme novo, branco e vermelho.

- O grupo faz um pequeno ensaio dentro do salão. A saída acontece por volta das 8h45.

- A primeira parada do Giro acontece na residência da prima de Dica, Carmelita


Cipriano.
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Primeira parada do Giro realizada na casa de Carmelita Cipriano, prima de Santa Dica.
Fonte: Vinícius Luz (2019)

- Algumas abordagens pela rua, por pessoas perguntando se era do programa ―Mais
Você‖, da TV Globo. Descubro que a equipe do programa fez uma reportagem no
distrito, que foi ao ar recentemente. Percebo que algumas pessoas estão alvoroçadas
com a possibilidade de aparecer na TV. Um dos moradores queria ensinar como se faz
doce de mamão.

- Várias moças pedem para serem fotografadas.

- No Giro, a penúltima parada, antes do almoço, aconteceu na casa de Bernarda


Cipriano, irmã de Dica, como é conhecida na região.

- Sou recepcionado pela filha dela, sra. Brigitt Cipriano Rocha.

- Sou orientado a entrevistá-la o quanto antes, pois ―ano que vem podemos não tê-la
mais‖, como disseram. Tivemos uma conversa informal, registrada por um gravador
de bolso. Devido a idade e à surdez, fui intermediado pela filha, Brigitt.

- Dona Bernarda acredita que a folia foi introduzida no distrito por volta de 1929.

- Cheguei ao almoço já no final, o cardápio foi composto por arroz, feijão tropeiro,
carne frita, gueroba e salpicão. Os alimentos, na maior parte, foram produzidos nas
fazendas da região.

- Após o almoço foi servida a sobremesa, com doce de figo, de leite e uma receita local
de doce de inhame (doces que também são servidos na Festa do Doce).

- Ao sair, fui fotografar alguns pontos importantes do distrito, como o túmulo de Dica e
seu marido, a fachada da casa e a quadra de esportes. Fiz, também, imagens aéreas
com um drone.

- Desci ao rio do Peixe para conhecer os fundos da casa da Dica. Chegando ao rio, vi
que há um bambuzal e um barranco nos fundos, que dificulta o acesso às águas.
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- Retomando o Giro, notei que grande parte das casas estavam desocupadas, sem seus
moradores. Explicaram que há uma grande evasão demográfica durante a semana e
que alguns dos moradores retornam durante os finais de semana. Há um acordo entre
os vizinhos, de vigilância das casas vazias.

- O Giro segue normalmente, em várias casas. Em algumas, os moradores pedem a


bandeira para percorrer os cômodos da residência.

- Voltando para o lanche, serviram pão com carne moída, café e refrigerante de marca
local. As mulheres já preparavam o jantar, com toucinho e outros cortes suínos.

- Fui informado de que o caderno, com os nomes dos interessados em ser o ―festeiro‖
do ano seguinte, havia sumido. Por isso, fariam um sorteio.

- Fiquei em Lagolândia até o final da tarde. Até a minha saída, não haviam escolhido o
festeiro de 2020
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Anexo II

Cartilha de músicas da Folia de São João


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