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EM NOME DO PADRE, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO: ritos de morte em

Goiás no século XIX


Deuzair José da Silva1

Resumo

O presente estudo versa sobre os rituais de morte na província de Goiás e o seu


“enfrentamento”, expressos nas disposições testamentárias, nas encomendações, nos
registros de óbitos e demais coisas. Aqui como em todo o território nacional a Igreja e
as Irmandades exerciam um papel essencial nas ações da sociedade em torno da morte,
essas eram encarregadas de propiciar os sacramentos aos moribundos, questão essencial
no cotidiano oitocentista. A ritualização tem um grande significado para a comunidade,
como: favorecer um bom lugar para o morto; paz e sossego para os vivos; etc. Isto
representa a sua visão do além, das práticas do mundo terreno e as relações com o extra-
terreno. Ao longo do século a sociedade passa por importantes modificações com a
secularização da morte e contínuo abandono das disposições religiosas e o surgimento
dos cemitérios seculares.
Palavras-Chave: Goiás. Morte. Ritual. Century XIX.

Abstract

The present study turns on the death rituals in the province of Goiás and his
“confrontation”, expressed in the testamentary dispositions, in the ordering, in the
registrations of deaths and other documents. Here, as in the whole national territory, the
Church and the Fraternities exercised an essential paper in the actions of the society
around the death, those were entrusted of propitiating the sacraments to the dying ones,
essential subject in the daily of the XIX century. The ritual has a great meaning for the
community, as: to favor a good place for the dead; peace and quiet for the alive ones;
etc. This represents his vision of the beyond, of the practices of the terrestrial world and
the relationships with the extra-land. Along the century the society goes by important
modifications with the secularization of the death and continuous abandonment of the
religious dispositions and the appearance of the secular cemeteries.
Word-key: Goiás. Death. Ritual. Century XIX.

1
Mestre em História – UFG. Doutorando em História – UFG. Professor UEG – UnU Iporá. Este texto foi
ampliado e adaptado dos resultados do Projeto de pesquisa intitulado: Os rituais de morte em Goiás no
século XIX: imaginário, símbolo e representação, com financiamento da Universidade Estadual de
Goiás, no ano de 2007.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
Resumen

El presente estudio habla a respecto de los rituales que envolven la muerte en la


provincia de Goiás y su enfrentamiento, expresos en las disposiciones testamentarias, en
las encomendaciones de las almas, en los registros de óbitos y otros documentos. Aqui,
como en todo el território nacional, la Iglesia y las hermandades ejercían un papel
importante en las aciones de la sociedad alderredor de la muerte, esas eran encargadas
de ofrecer los sacramentos a los moribundos, cuestión essencial en lo cotidiano del siglo
XIX. El ritual tiene un gran significado para toda la sociedad, como: favorecer un
bueno lugar para el muerto; paz y sosiego para los vivos; etc. Isto representa su vision
de após la muerte, das praticas de las cosas terrenas y las relaciones con el extraterreno.
A lo largo del siglo, la sociedad pasa por importantes modificaciones con la
securizacion de la muerte y el continuo abandono de las disposiciones religiosas y el
surgimento de los cementerios seculares.
Palabras-llave: Goiás. Muerte. Ritual. Siglo XIX.

Meu Menino Jesus da Porciúncula: amo Jesus, adoro Jesus,


bendigo Jesus, reverencio Jesus, agradeço a Jesus,
exalto Jesus, santifico o nome Santíssimo de Jesus por agora
e sempre e no último suspiro glorifico a Jesus no Santíssimo
Sacramento da Eucaristia. Peço ao céu e à terra, peço
às flores do campo, e peço às estrelas do céu, peço ao sol
nos seus raios, peço à lua na sua luz, peço às aves do céu:
cantai! Peço aos peixes nas suas conchas, peço aos rios no
seu curso e belo correr, peço aos anjos, peço aos santos,
peço aos homens e às mulheres, peço a todas as línguas e
nações remotas, me ajudem a dar graças a meu Jesus Cru-
cificado porque nos criou e nos remiu com o seu precioso
sangue! Peço à Sagrada Família, a São João Batista, a São
João Evangelista, ao meu Anjo Custódio, à Santa do meu
nome, que louvem por mim ao Senhor por tantos benefícios
e tão grandes misericórdias que de suas liberantíssimas
mãos tenho recebido e que me faça uma criatura tal qual ele
quer que eu seja. Amem! Jesus, Maria, José, eu vos dou o
meu coração e minha alma. Rosa. 2

O contato com alguns testamentos e registros de óbitos existentes no


Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central – IPEH-BC, em Goiânia,
trouxe à tona um interessante tema de investigação: os ritos de morte na província de

2
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-0316.
https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf. Acessado em 09-08-
2007.

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Goiás. Já há algum tempo que pesquisamos sobre as questões relativas a este tema em
Goiás e ao manusear esses documentos vislumbramos a possibilidade de estudar os
procedimentos concernentes à morte em Goiás no período oitocentista e de interrogar os
valores culturais goianos e, por conseguinte, da região centro-oeste. O teor da oração
citada por Luiz Mott tem grandes semelhanças com os conteúdos dos testamentos que
encontramos, revelando assim que essas atitudes eram amplamente disseminadas por
todo o território brasileiro.
O projeto oportunizou-nos contribuir de maneira importante numa área
ainda carente da historiografia estadual e no conhecimento da memória local. A
importância de tal atividade pode ser corroborada na argumentação de Raymond
Williams falando do lugar de seu nascimento e onde viveu e, das transformações
“vividas” por este espaço no tempo, que é, na prática, o fazer da história.

Como já disse antes, nasci numa aldeia e até hoje moro numa aldeia.
Mas nasci ao pé das Black Mountains, (...). Agora vivo na planície,
(...).
Este contraste físico é uma presença constante para mim, mas não é o
único contraste. No seio daquela aldeia nas Black Mountains, como
também nesta, há um contraste profundo impregnado de inúmeros
sentimentos: contraste entre o que parece natureza virgem – a
presença física das árvores, aves, paisagens em movimento – e uma
agricultura ativa, que na verdade produz boa parte da natureza. Ambos
os tipos de sebe – ali sobre uma plataforma, aqui brotando do chão
plano ou ladeando uma vala, juntamente com os carvalhos e
avezinhos, os olmos e pilriteiros que as acompanham, tudo isto foi
visto, plantado e cultivado pelo homem. No final da trilha perto da
casa de minha infância existe agora uma rodovia, pela qual passam
caminhões em alta velocidade. Contudo, aquele caminho foi aberto,
pavimentado e usado por veículos: só está ali há duas gerações, desde
o tempo em que um jovem construtor casou-se com a filha de um
fazendeiro e recebeu um pedaço de terra para lá construir sua casa, e
depois sua oficina, juntamente com o caminho, e depois as casas
vizinhas, e depois oficinas sucessivamente convertidas em casas; a
primeira dessas oficinas veio a ser a primeira casa de meus pais. No
campo onde vejo o olmo e o cavalo branco, atrás de minha casa atual,
existem tênues vestígios de uma construção do século IX, [...]. 3

3
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 14.

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Este passado observado por Williams revela um tempo que não está morto,
mas “vivo” entre as pessoas e na mente do historiador. Estamos tentando debater como
a idéia de que o passado deve ser encarado dentro de uma relatividade, a do homem. E
que a “banalização” do tempo tem tornado o passado como algo morto e sem sentido, e
pior, os avanços tecnológicos tornam as coisas superadas com muita rapidez. A
superação é uma verdade, mas isto não significa que este passado deve ser desprezado
como algo abominável, esta não é a atitude esperada por parte de um historiador ciente
do seu ofício.
A província de Goiás no século XIX caminhou lentamente. Deficiências
estruturais, como: falta de capital para investimento, de escolas, de mão-de-obra
qualificada, a longa distância dos grandes centros econômicos e de vias de
comunicação, associada a uma administração pública ineficiente com desequilíbrio
entre receita e despesa, entre outras, impedem um maior desenvolvimento do território
goiano.
Mas isto não quer dizer que a região fosse uma ilha, isto se reflete na
reprodução de costumes e tradições herdadas de outras plagas. No aspecto religioso as
evidências são facilmente perceptíveis, tal como no restante do país pratica-se um
catolicismo rústico de forte teor devocional e a exigência do cumprimento de uma série
de ritos que ia desde o batismo ao nascer, às missas de corpo presente e de intenção da
alma na ocasião da morte. Aqui, como lá, a ritualização era grande. Voltemos aqui à
epígrafe que complementa de forma bastante clara as ações a que estamos referindo:

Meu Menino Jesus da Porciúncula: amo Jesus, adoro Jesus, bendigo


Jesus, reverencio Jesus, agradeço a Jesus, exalto Jesus, santifico o
nome Santíssimo de Jesus por agora e sempre e no último suspiro
glorifico a Jesus no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. [...] Amem!
Jesus, Maria, José, eu vos dou o meu coração e minha alma. Rosa. 4

A oração mostra que no ideário da população é de suma importância a


adoração e o apoio de todos os santos, em todos os momentos da vida, isto fica evidente
quando percebemos na frase “vos dou o meu coração e minha alma” uma entrega total
do pedinte. O enfoque que propusemos trilhou os caminhos da história cultural
4
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-0316.
https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf. Acessado em 09-08-
2007.

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procurando decifrar os códigos e práticas cotidianas dos habitantes da província,
procurando indagar sobre a maneira e as razões desses procedimentos habituais da
população. Vale lembrar que recorrer à história cultural parece um modismo na
atualidade. Quase tudo é possível de ser visto sobre o paradigma cultural. Isto está
ligado à polêmica em torno do que é história cultural e de suas fronteiras. Os termos
social e cultural estão sendo usados de forma quase equivalentes. A partir de 1970 o
território do historiador cultural se ampliou muito, as duas técnicas exigem formas
próprias de leitura, que no entanto, não estão claramente definidas. Outro ponto
importante são as fronteiras culturais, vistas hoje não mais como ponto de intersecção,
5
mas como lugares de “relação”. Pensando assim, temos a possibilidade de
estabelecermos as “construções” elaboradas pelos atores envolvidos, suas condições
objetivas, que nada mais são do que sua "visão" de mundo, resultado dos embates
diários do coletivo. Coletivo esse que deve ser percebido na totalidade do território
brasileiro, estas são elaborações históricas, contém os campos de atuação e de
envolvimento de seus membros.
Ao longo da sua vida os homens criam e recriam os elementos da sua
cultura, as atitudes e respostas dos indivíduos são compreendidas em seu interior. Na
situação descrita por José de Souza Martins podemos perceber o exercício dos membros
de um ambiente, aqui numa situação particular: a morte.
Há um conjunto de cuidados, que são tomados na relação com o morto
e no deslocamento do corpo. O primeiro deles diz respeito ao
afastamento da família. Após as despedidas e bênçãos, a família é
praticamente afastada do moribundo e do corpo. Daí em diante, o
tratamento do morto, desde a lavagem até o sepultamento, é
incumbência de estranhos, nunca de parentes próximos. Após lavado e
vestido, o corpo deve ser tirado do quarto para a sala da frente, o
cômodo que dá para a rua e para a estrada. E deve ser tirado com os
pés para a frente, precedido por alguém que conduz a vela acesa. O
velório deve ser feito de modo que o corpo fique com os pés em
direção à porta e a cabeça em direção ao interior da casa. Luiz da
Câmara Cascudo observa que a posição do morto na casa é o inverso
da posição do nascimento. Esse é, provavelmente, o costume mais
comum e generalizado em todo o país. 6

5
Cf. BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 2005. pp. 146-9.
6
MARTINS, José de Souza. “A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça”. In: A morte
e os mortos na sociedade na sociedade brasileira. MARTINS, José de Souza (Org.). São Paulo:
Hucitec, 1983. p. 265. (Grifos do autor).

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Algumas destas situações descritas por Martins ainda são encontradas no
interior do Estado, como expor o corpo com os pés para a porta de saída da casa,
conforme já tivemos oportunidade de presenciar. A morte não é simplesmente o ato de
separação mais visível até pelo sentimento de dor externado no desespero dos vivos.
Trás consigo elementos econômicos, valores comportamentais, expectativas. O
relacionamento dos vivos com essa separação sugerem características essenciais da
interpretação da sociedade sobre a “vida no além” e, muito mais, do dia a dia das
pessoas. A religiosidade é um destes pontos centrais, como destaca Vovelle: “No
Ocidente católico, sobretudo, a igreja se manteve como um lugar privilegiado para toda
7
uma série de atos relativos à morte e ao além-mundo”. A importância do aspecto
religioso nos rituais de morte também é destacada por Eliane Silva na introdução de sua
tese de doutoramento:

Acreditar em Deus, na alma, nas comunicações entre vivos e mortos,


em fantasmas parece significar que a idéia de uma aniquilação total é
desagradável. As crenças em algum tipo de sobrevivência após a
morte indicam uma recusa obstinada ao aniquilamento e uma tentativa
de estabelecer uma forma de continuidade, principalmente se o
homem puder ver garantida a conservação de elementos considerados
fundamentais: a razão, o conhecimento, os afetos, o poder de ação e
comunicação. Em suma, imortalidade e a eternidade, sejam elas
memória ou sobrevivência espiritual. Em verdade, essas crenças estão
ligadas a perguntas cruciais sobre a vida, o destino e a origem de tudo,
a natureza primeira do Todo. Quem somos? De onde viemos? Para
onde vamos? Os homens se debatem entre duas propostas que o
atormentam: o Divino Celestial e o Comum Apovorante. 8

A trama sobre a morte passa pela compreensão das relações entre estes dois
mundos distintos: material “vivo” e celestial “morte”. Duas situações muito “presentes
em nosso meio e por isto mesmo cheia de interrogações, principalmente pelo fato de
nossas dúvidas e falta de “controle” com a vida no além-túmulo. É com certeza um
diálogo difícil, mas instigante, dando a possibilidade de inquirir sobre uma situação que

7
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história – fantasmas e certezas nas mentalidades desde a
Idade Média até o século XX. Tradução Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1997. p 351.
8
SILVA, Eliane Moura. Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade. Campinas: Unicamp, 1993. p.
8.

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fala muito sobre um povo. Para “falar” com este povo recorremos basicamente às
seguintes fontes: Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões,
Certificados, Editais, Etc. 1734-1824. Registro de Óbitos de Pirenópolis de 1803-1810,
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Abadia, Compromisso da Irmandade
do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário da Cidade de
Meiaponte, Registro de Testamento 1842-52 da Cidade de Goiás, Livro 1º de
Regulamentos expedidos pelo Presidente da Província 1858, Regulamento para
Cemitério, ano 1859. Esclarecemos que não atualizamos a grafia das citações preferindo
manter a originalidade destas.
Buscamos compreender as construções e elaborações em torno da morte no
século XIX em Goiás, interpretando o significado simbólico, os hábitos e as mudanças
ocorridas em torno do assunto, desta forma a ação humana se torna mais importante na
construção do espaço do que o meio. É a práxis social. Sendo uma pesquisa de caráter
regional procuramos aporte metodológico na micro-história, pois acreditamos que sua
aplicação permite um diálogo mais consistente com as fontes.

A micro-história como prática é essencialmente baseada na redução da


escala de observação, em uma análise micróspica e em um estudo
intensivo do material documental. [...]. Para a micro-história, a
redução da escala é um procedimento analítico, que pode ser aplicado
em qualquer lugar, independentemente das dimensões do objeto
analisado. 9

A redução da escala de observação não implica que não se possa construir


generalizações, o exame mais minucioso das fontes permite estabelecer maiores
significações ao objeto e, portanto, uma generalização mais próxima do real. O estudo é
particular, mas a sua identificação e significado é feito à luz de seu próprio contexto
específico. O trabalho de Ginzburg neste sentido é elucidativo.

9
LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: A escrita da história: novas perspectivas. BURKE, Peter
(Org.). Tradução Magda Lopes. São Paulo: Unesp. 1992. p. 137.

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Deter-se tão minuciosamente nessa monótona sucessão de confissões
arrancadas pelo medo à tortura, seguidas de outras tantas retratações
igualmente precisas, poderá parecer inorportuno. Mas a tortura, na
realidade, não faz senão propor novamente, de forma exacerbada, a
característica essencial do processo por feitiçaria. Por mais óbvio que
seja, não será inútil lembrar que uma enorme parcela dos inquisidores
acreditava na realidade da feitiçaria, assim como muitíssimas
feiticeiras acreditavam naquilo que confessavam perante a Inquisição.
No processo tem-se em outras palavras, um encontro em diferentes
níveis entre inquisidores e feiticeiras, enquanto partícipes de uma
visão comum da realidade. 10

Os rituais são partes constitutivas de uma sociedade, não são situações


objetivas, mas construídos socialmente. A história cultural constitui-se em um método
que procura apreender o pensamento coletivo, fugindo aos sujeitos particulares. O uso,
o modelo de todos os dias, é neste ponto, que captamos as profundezas da cultura, onde
podemos ler os arraigamentos que constituem a memória da comunidade, revelando as
heranças do grupo: as rupturas, as perdas, as continuidades. Os estudos de rituais
obrigam o historiador a perceber estas intersecções, elas contêm o material à
compreensão dos mesmos, posto que, os ritos são práticas conhecidas e inteligíveis aos
seus membros.
O rito oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade
do sagrado. “Será necessário considerar os ritos como redutores de riscos e
incentivadores do sentimento de segurança, ou então, inversamente, como motivadores
11
de mais ansiedade? A primeira solução parece ser a mais habitual”. Percebemos daí
que os rituais dão sustentação e significado à vida, as ações se tornam reais na medida
em que se tornam modelos. Assim se adquire a realidade exclusivamente pela repetição
ou participação, tudo que não possui um modelo exemplar é vazio de sentido, isto é,
carece de realidade.
As ações em torno da morte passavam necessariamente pela atuação das
Irmandades. Deixamos claro que a nossa intenção não é um estudo das mesmas de
forma objetiva, mas é preciso lembrar que elas tinham um papel muito importante no

10
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 30.
11
RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes,
1996. p. 70.

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assunto. Conforme Scarano, no Brasil estas adquiriram feições diferenciadas do que
ocorria na Europa dando mais importância às categorias raciais e sociais. Aqui, ao que
parecem, estas se dedicavam apenas aos ofícios religiosos e a beneficência, não se
encontrando àquelas dedicadas aos grêmios profissionais.12 A opinião é também
compartilhada por João José Reis, que diz o seguinte:

Não só os negros e pobres se associavam a irmandades, que fique


claro. Na verdade, essas instituições religiosas leigas faziam parte da
vida de quase todos os grupos sociais e em geral as pessoas a elas se
associavam de acordo com sua condição social, origem nacional e
classificação racial. Havia irmandades de brancos, mulatos e negros;
de brancos da terra e d‟além-mar; de negros brasileiros e africanos; de
africanos de diferentes origens africanas. Com o avançar do século
XIX muito dessa segregação desapareceria, mas as irmandades, agora
racialmente misturadas, persistiram, embora sem o brilho do século
anterior. Todas elas, no entanto, em todos os tempos, se obrigavam a
zelar pela boa morte de seus membros durante as várias etapas dos
ritos fúnebres, entre outras coisas exigindo em seus compromissos que
os associados acompanhassem os funerais que promoviam. 13

Outro estudioso do assunto, Riolando Azzi afirma: “as confrarias são


associações religiosas nas quais se reuniam os leigos no catolicismo tradicional. Há dois
14
tipos principais de confrarias: as Irmandades e as Ordens terceiras”. Na colônia e no
Império as confrarias foram marcadas pela religiosidade e a devoção, exceto as
misericórdias que tiveram um caráter claramente social. As últimas desempenhavam
15
ambas as funções: religiosa e assistencial. Seus confrades eram obrigados por seus
pares a prestarem todo um ritual solene na passagem de um de seus membros, a eles
cabia desenvolverem todo um aparato que visava garantir um bom “lugar” ao falecido e
sua não realização poderia ser o presságio de infortúnios. Os rituais de morte eram

12
Cf. SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1975. pp. 24-5
13
REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no Brasil:
Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 2. p. 123.
14
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 89.
15
Cf. Idem. p. 92.

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assim muito importantes para o povo. Salvação para os mortos, conforto para os vivos.
Isto pode ser comprovado no Compromisso a ser assumido pelos seus membros.

Capítulo 1º
Da Irmandade em Geral
§ 4º Outro sim será a mesma Irmandade obrigada a acompanhar á
sepultura todos os Irmãos de Compromisso, e conduzilos no Esquife
da Irmandade; assim como suas mulheres e filhos até a idade de
quatorze annos, [...].
Capítulo 6º
Do Procurador
§ 3º Deve levar a campainha adiante em todas as occazioens que sahir
fora Irmandade, e tocal-a antes dos enterros, para convocar os Irmãos,
[...]. 16

Um primeiro ponto a ser lembrado é a importância das Irmandades no seio


do grupo, garantia dos atos fúnebres aos mesmos. No mesmo parágrafo fica também
determinada a obrigação de prestar tais trabalhos às esposas e filhos menores de seus
pares. O cumprimento de todas as etapas do ritual revela uma preocupação central: a
vida eterna. No mesmo Compromisso a determinação de prestarem os trabalhos nos
sepultamentos evidencia a ritualização de que estamos falando.

Capítulo 1º
Da Irmandade em Geral
§ Outro sim será a mesma Irmandade obrigada a acompnhar á
sepultura todos os Irmãos de Compromisso, e conduzilos no Esquife
da Irmandade; [...]. 17

A realização de todas as fases do ritual e as boas atitudes em vida são avais


de um bom lugar no mundo extra-terreno, havia uma crença de que a justiça humana
poderia até cometer algumas falhas, mas a divina era infalível, por isso todo o cuidado
seria necessário para evitar os castigos vindos do céu. Reconhecer os erros, pedir perdão
16
Copia do Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do
Rosário da Cidade de Meiaponte. Arquivo Histórico Estadual. Caixa Arquivo Irmandades.
17
Idem.

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por eles e a intercessão da Corte celestial eram atitudes praticadas por todos como
18
mostram grande parte dos testamentos examinados. Vale lembrar que ao longo do
século XVIII as disposições religiosas vão cedendo lugar às materiais.

Em Nome do Pay, e do Filho e do Espírito Santo, Amém# Eu Braz


Alvares de Castro. Christão Catholico, Baptizado na Villa de
Meyaponte de Goyáz, aonde nasci de minha May Ignez Álvares
Nunes, já fallecida; querendo que no momento da minha morte actum
determinadas as dispoziçõens que dos meus bens e haveres fazer-me
agradão; deixo neste meu testamento manifestado, pela maneira e
declarações seguintes, aminha ultima vontade= Declaro que sempre
me tenho conservado no estado de solteiro, e que neste estado tenho
trez Filhos de nomes Joaquim Alvares de Castro e Justiniano Alvares
de Castro e Manoel Alvares de Castro, todos trez filhos de Angelica
Pires Cardozo, aos quaes instituo meus unicos e universais herdeiros,
e Testamenteiros, e que por tanto Nomeio aos ditos meus trez filhos
Joaquim, Justiniano, e Manoel Testamenteiros eherdeiros de todos os
meus bens, haveres= [...]. 19

As preocupações com um bem morrer eram evidentes: a busca da


intercessão divina representada na Santíssima Trindade, se declarando cristão, católico e
batizado. Princípios religiosos que num primeiro momento podem parecer corriqueiros,
mas estes mostram as profundezas da cultura arraigada e presente no seio de toda a
comunidade, tendo a Igreja também papel de destaque nos atos relativos à morte. É aqui
que o postulado de Ginzburg fica demonstrado, nas coisas ditas “simples” e
“repetitivas” estão os verdadeiros elos do comportamento da população.
Uma inquietação que começa no mundo terreno e chega ao além. Busca a
intervenção sagrada, mas também redime dos atos em vida, uma garantia de passaporte
para a outra vida na forma desejada, obtendo a salvação da alma. As encomendações
mostram como dois mundos diferentes se entrelaçam, dão conta também dos princípios
morais que norteiam a sociedade. Esta ligação pode ser observada no reconhecimento

18
Cf. REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no
Brasil: Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 2. pp. 102-3
19
Testamento do Capitão Braz Alvares de Castro no Arraial de Anicuns. Livro de Testamentos – 1842-52
– da cidade de Goiás, folha 2. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.

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dos filhos, que ao que tudo indica era resultado de um amaziamento duradouro, não de
um casamento legítimo.
As pesquisas indicam que situações como estas são poucas, mas é uma
hipótese que demanda um aprofundamento em estudos de família e nem tampouco é
nosso objetivo. O fato de não citar o nome do pai pode sugerir ser o testador um filho
também nascido de uma união ilegítima. Mas o que nos interessa é perceber no
reconhecimento dos filhos um fato unido à morte. Este funciona como um indulto dos
pecados e ingresso ao céu. Neste outro testamento a presença religiosa e as incertezas da
vida pós-morte são também interessantes.

Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Trez Pessoas


Distintas e hum so Deos verdadeiro, Amém# Eu Joanna Archagela
Xavier achando-me gravemente enferma, possam em meu perfeito
juízo, e entendimento por mercê de Deos e querendo-me dispor para
esperar a morte que hei certa determino fazer este meu testamento da
maneira seguinte. Primeiramente invocando a minha Alma a Deos que
criou e a quem pesso a salve pelos Merecimentos de meu Senhor Jesus
Cristo e de Maria Santíssima, Nossa Senhora, e ainda invoco a todos
os Santos da Corte do Ceo sejao meus intercessores perante Deos. [...].
20

Primeiramente encomendo aminha Alma a Santíssima Trindade, e


rogo ao eterno Pai que a creou que pela morte, ePaixão de seu
ungenito Filho a queira receber para que vá gozar da Bem aventurança
para que foi creada, e rogo avirgem Maria senhora minha, aos anjos da
minha guarda, santo do meu Nome, e a todos os santos, esantas da
Corte Celestial queirão ser meus Intercessores para que vá gozar da
Bem aventurança para que foi creada, quando deste Mundo partir. 21

Podemos identificar aqui as opiniões em torno da morte, onde a religião tem


atuação central. A invocação da Trindade Santa evidencia um dos aspectos da conduta
religiosa na cultura local: a forte presença do catolicismo tradicional, situação não

20
Testamento de Dona Joanna Archangela Xavier no Arraial de Anicuns. Livro de Testamento – 1842-52
– da cidade de Goiás, folha 22. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
21
Testamento de João Francisco dos Guimaraens na Fazenda de Piloens. Registro de Testamentos da
Provedoria de Goyaz. Goyaz, 5 de Dezembro de 1829. p. 6v e 7. Exemplar digitalizado existente no
Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central – IPEH-BC. Goiânia, Goiás.

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diferente em todo território nacional. Reportamo-nos novamente aqui a oração da
epígrafe que mostra também a busca da intercessão de toda Corte celestial

Peço à Sagrada Família, a São João Batista, a São João Evangelista,


ao meu Anjo Custódio, à Santa do meu nome, que louvem por mim ao
Senhor por tantos benefícios e tão grandes misericórdias que de suas
liberantíssimas mãos tenho recebido e que me faça uma criatura tal
qual ele quer que eu seja. Amem! Jesus, Maria, José, eu vos dou o
22
meu coração e minha alma. Rosa.

O pedido de mediação de toda a Corte Celestial é um indicativo das


expectativas e das pretensões de todos em torno da morte: a salvação da alma ou uma
passagem rápida pelo purgatório. Os pedidos de ajuda parecem indicar também que
todos se acham pecadores, não um contumaz, mas pecadores. Característica de um
catolicismo que remonta à época medieval, trazido pelo colonizador e fortemente
disseminado em todo o Brasil.
Além disso, fazer as disposições finais era a forma de evitar que uma morte
inesperada e repentina atrapalhasse o caminho rumo aos céus. Isto pode ser comprovado
pelo desejo de uma morte natural em casa ao lado de todos os parentes “presidindo” o
ato, ao passo que o oposto é indesejável. Reis destaca este comportamento em seu
trabalho e mostra como isto era do agrado de todos. A realização completa desse
conjunto de atitudes objetivava garantir um bom lugar ao morto na outra vida e também
paz e sossego para os vivos.

A morte ideal não devia ser uma morte solitária, privada. Ela se
encontrava mais integrada ao cotidiano extradoméstico da vida,
desenhando uma fronteira tênue entre o privado e o público. Quando o
fim se aproximava, o doente não se isolava num quarto hospitalar,
mas esperava a morte em casa, na cama em que dormira, presidindo a
própria morte diante de pessoas que circulavam incessantemente em
torno do seu leito – a morte representava „uma manifestação social‟,
como a definiu Philippe Ariès. Reuniam-se familiares, padres,
rezadeiras, conhecidos e desconhecidos. 23

22
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-
0316. https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf. Acessado em
09-08-2007.
23
REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no Brasil:

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Percebemos aqui que a morte não é sinal de separação, continua a existir
entre os dois mundos uma relação muito estreita evidenciada nas missas pelas almas,
nas encomendações, na arquitetura cemiterial carregada de imagens sacras e epitáfios
religiosos.

Verba quarta # Declaro se me mande dizer duas Missas de corpo


prezente na mesma Capella aonde quero ser sepultado, eduas de
esmolla do costume pelas Almas do Purgatório, e não privo adita
minha herdeira e testamenteira de mandar dizer mais algumas missas,
que asua Charidade permittir pela minha alma. 24

As missas constituem parte de um salvo conduto que se completa nos


pedidos de locais de sepultamento, nos hábitos (vestimentas) a serem amortalhados, e
demais coisas, revelando importantes traços da composição social da sociedade. É de se
supor pela lógica que aqueles mais aquinhoados fossem os que utilizassem maiores
somas de recursos na salvação da alma, como exemplo: pedido de grande quantidade de
missas, dinheiro reservado às esmolas, etc. Até porque eram os que, na prática, faziam
mais disposições testamentárias, salvo raras exceções. Isto não quer dizer que os pobres
não se preocupassem com o assunto.
Posteriormente indica uma mudança no comportamento da população, que
aos poucos, vai passando por um lento processo de secularização. É garantia também de
que seus desejos sejam cumpridos e seus bens tenham o destino que determinou.
Preocupação material com certeza, testemunho dos vivos, a partir de então o mundo
terreno se torna mais importante e as disposições religiosas cedem lugar aos interesses
voltados ao destino dos seus bens. Terceiro, evidencia a religiosidade da população
muito preocupada com a salvação e o purgatório. As missas por outras almas indicam o
sentido de se reconstituir uma vida terrena ao lado daqueles mais queridos e de sua
convivência. Um quarto ponto e, mais importante, é que a paixão cristã no ideário da
população era atitude bem vista pela Corte Celestial. Uma boa relação com esta é um
presságio de conforto no além, esclarecendo também o caráter da religiosidade da época

Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume


ALENCASTRO, Luiz Felipe de. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 2. p. 104.
24
Testamento de Francisco José Guedes da Gama Lobo. Livro de Testamentos – 1842-52 – da cidade de
Goiás, folhas 4v e 5. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.

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e suas atitudes fortemente ligadas ao catolicismo. Recorremos aqui a Azzi que faz uma
ótima radiografia do catolicismo no Brasil. Apesar da extensão da nota, tem a vantagem
de fornecer todos os dados necessários à melhor compreensão do assunto.

Na história religiosa do Brasil estão presentes duas formas básicas de


catolicismo: o catolicismo tradicional e o catolicismo renovado.
Entre as principais características do catolicismo tradicional podemos
indicar as seguintes: é luso-brasileiro, leigo, medieval, social e
familiar.
O catolicismo renovado, por sua vez, apresenta entre outras as
seguintes características: é romano, clerical, tridentino, individual e
sacramental.
Em todo o período colonial, ou seja, nos três primeiros séculos de vida
cristã no Brasil, dominou inconteste o catolicismo tradicional. [...]
A época imperial se caracteriza por uma acentuada luta de hegemonia
entre o catolicismo tradicional, que goza do apoio do governo, e o
catolicismo renovado, propugnado pelos bispos reformadores.
A terceira fase, no período republicano, se caracteriza pelo domínio do
catolicismo renovado, enquanto o catolicismo tradicional é
progressivamente marginalizado. 25

A caracterização de Azzi permite-nos continuar o diálogo da importância da


Igreja na vida das pessoas. Atuando na vida terrena e no além, ela exercia uma forte
influência no meio social, a religião é a mediadora entre vivos e mortos. Neste aspecto a
Igreja exercia um papel central nas ações desenvolvidas. A partir de meados do século
XIX a sociedade caminha rumo à secularização das atitudes no tocante a morte
evidenciada na criação dos cemitérios municipais, nas construções tumulares – com o
surgimento de panteões cívicos e na mescla de adornos não sacros -, num progressivo
abandono das disposições religiosas nos testamentos. Da mesma forma a perda de
importância e o desaparecimento das Irmandades.

Aos dez deJulho demil oito centos equatro falesceo com os


sacramentos dapenitência, extrema unção Faustino Rodgrigues pardo
livre, cazado com Anna Maria: seo corpo foi amortalhado em panno
branco, e enterrado na Capellada Nossa Senhora da Lapa, filial desta

25
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 9.

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Matriz, sendo primeiro encomendado por mim, quepara constar fiz
este Assento. 26

Aos dezoito deJulho demil oito centos, equatro falesceo sem


Sacramentos por ser repentinamente Genoveva Vas, casada com Joze
Antonio de Mello, sepultado na sepultura de Fabrica numero trinta
ecinco, sendo primeiro encommendado pelo Reverendo Vigário,
emais Sacerdotes que havião, e para constar fiz este Assento. 27

Controlando os últimos atos em vida, a Igreja tinha um importante papel no


dia a dia das pessoas como já afirmamos, do mesmo modo que controlava os
acontecimentos depois da morte, fornecendo os atos de penitência, de extrema-unção e
comunhão fazia com que todos dela dependessem. Morrer “dentro” da Igreja e com os
sacramentos era desejo de todos e só não realizado em casos especiais como no Registro
citado acima. A internalização de tais atitudes não era uma situação de mão única mas,
orientada pela Igreja, bispos e vigários que recebiam ordens expressas de prestar todos
os serviços o mais breve possível sob pena de sanções por parte da administração
28
superior. Todos os cuidados tomados davam a entender que a morte era situação
profundamente ritualizada, que começava em testamentar as suas vontades, passando
pelos atos de comunhão, penitência, extrema-unção e encomendação.
Tão logo a morte fosse confirmada entravam em cena as carpideiras, que com
seus choros anunciam o fato. As carpideiras eram profissionais e choravam por qualquer
um. Mesmo que se recriminem tais atitudes é preciso lembrar e não fazermos um
julgamento preconceituoso de uma situação que era vista por todos naquela época como
normal e necessária “essas carpideiras também representavam um sentimento
obrigatório, e faziam uma obrigação ritualística. O comportamento objetivava, por
exemplo, afastar os maus espíritos de perto do morto e a própria alma deste de perto dos
29
vivos”. A seguir o defunto era preparado para o velório, banhado, feitos cabelo e
barba, as unhas aparadas e amortalhado. Reportando-se à Van Gennep, Reis afirma que:

26
Registro de Óbitos. Pirenópolis 1803 a 1810. p. 20v. IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
27
Idem. p. 21.
28
Cf. Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões, Certificados, Editais, Etc. 1734-
1824. Exemplar datilografado existente no IPEH-BC. Goiânia. Goiás. p. 14
29
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 114.

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Em seu clássico estudo sobre os ritos de passagem, Van Gennep
dividiu as cerimônias funerárias em ritos de separação entre vivos e
mortos, e ritos de incorporação destes últimos a seu destino no além.
Entre a separação e a incorporação, o morto ficaria no limite entre o
aqui e o além, uma espécie de parêntese existencial a ser ritualmente
preenchido pelos vivos.
São exemplos de ritos de separação a lavagem e o transporte do
cadáver, a queima de objetos pessoais do morto, cerimônias de
purificação, de sepultamento, rituais periódicos de expulsão do
espírito do morto da casa, da vila, enfim, do meio dos vivos, o luto e
tabus em geral. Ritos de incorporação seriam aqueles dirigidos a
propiciar a reunião do morto com aqueles que seguiram antes, como,
por exemplo, a comida servida para a sua viagem, a extrema-unção, o
próprio enterro do cadáver. Os ritos de separação e incorporação
freqüentemente se superpõem e até se confundem. 30

As ações desenvolvidas pelos Irmãos, o sepultamento, as missas pela alma


do falecido, bem como aquelas pedidas em testamento ou de acordo com o
compromisso assumido por cada membro da Irmandade e a cruz nas sepulturas
completa o quadro. Segundo Azzi a utilização da cruz como indicativo de local de
sepultamento está presente em toda história religiosa brasileira. 31 E mais:

A vinculação entre cruz de sepultura e cruz das almas é muito estreita.


A indicação da sepultura tona-se com freqüência a origem do culto
dos mortos ou das almas penadas. 32
Provavelmente a devoção às almas penadas foi divulgada no Brasil
pelos portugueses, os quais por sua vez sofreram influências célticas.
33

De certa forma podemos aventar aqui a visão do além. Este é construído a


partir de dois espaços completamente opostos: o Céu e o Inferno. O primeiro um
paraíso, rico de todas as virtudes e aspirado por todos; o segundo desgraça e a ruína
total, lugar de desassossego e de constante atribulação para as almas e também para os

30
Idem. p. 89. (Grifos do autor).
31
Cf. AZZI, Riolando, O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p.
20.
32
Idem. p. 21.
33
Ibidem. p. 22.

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vivos. Daí a necessidade do cumprimento de todas as etapas do ritual funerário – às
vezes extensas e com centenas de missas encomendadas pela alma do falecido,
incluindo ainda parentes e amigos –. A esperança de todos é atingir o céu, e caso isso
não fosse possível o purgatório era opção desejável. Este não é um lugar intermediário
entre Inferno e Paraíso, mas um ambiente de purificação para aquelas almas que
morreram em estado de graça – já com um lugar certo no paraíso – e que precisam
passar por um estágio de preparação para ver Deus e o Céu. 34
A salvação vinha de acordo com o merecimento de cada um, daí a
preocupação em vida com os pecados. A vida depois da morte era sempre vista com
grandes dúvidas, ninguém ousava dizer que já estava salvo. Na eternidade a existência
podia ser bem melhor, mas só depois da absolvição dos pecados, a morte era então um
momento de forte apreensão. Esse temor não era algo sem controle, temia-se muito
morrer sem preparação, essa ajudava na espera da morte e também o acesso para o
além. 35
A escolha da mortalha a ser envolvido, do local de sepultamento, também
fornecem pistas importantes do mundo extra-terreno. Ser envolvido em vestes
semelhantes às dos santos era um presságio de bons fluidos e intervenção da Corte
Celestial em seu favor. Da mesma maneira que o local da última morada, ser enterrado
“das grades acima” era a vontade de muitos devido à proximidade com o altar, por outro
lado, alguns solicitavam ser inumados em lugares de menos prestígio. Tudo indica que
neste caso prevalece a idéia de que a humildade é o melhor caminho para se atingir os
céus, postura que se aproxima dos ensinamentos da Igreja, que assegurava prêmio para
a humildade e castigo para a ostentação. A reunificação da família ou do grupo da
parentela no pós morte também ocorria, vários pediam para serem sepultados próximos
de parentes já falecidos. Isto indica que se tentava reconstituir no além o mundo terreno.
Em “A morte é uma festa” Reis faz uma análise muito interessante sobre o assunto. 36
As construções tumulares e os epitáfios constituem outras extraordinárias pistas
do imaginário em torno da eternidade. Neste ponto as investigações ainda se encontram
em fase inicial, demandando pesquisas e exames mais precisos que pretendemos
34
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Purgat%C3%B3rio. Acessado em 25-07-2007.
35
Cf. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 95.
36
Cf. Idem. pp. 185-9.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 18
desenvolver em outro projeto. A secularização da morte em Goiás e a criação dos
cemitérios fora do âmbito urbano constituem também interrogações que procuraremos
responder no futuro e que a exigüidade de espaço e de tempo não nos permitiu avançar
no presente trabalho. Propusemos interrogar as ligações entre a construção da nação
com a independência e de uma cultura “nacional” com as questões relativas à morte, tal
interrogação também não foi possível responder. São muitas as perguntas sem respostas,
o que por um lado pode parecer frustrante, mas por outro um sinal de que o estudo não
foi em vão, tendo em vista que, acreditamos que a nossa missão principal é propor o
tema ao debate e a crítica de nossos pares.

Fontes

Copia do Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa


Senhora do Rosário da Cidade de Meiaponte. Arquivo Histórico Estadual. Caixa Arquivo
Irmandades.

Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões, Certificados, Editais, Etc.
1734-1824. Exemplar datilografado existente no IPEH-BC. Goiânia. Goiás.

Registro de Óbitos. Pirenópolis 1803 a 1810. IPEH-BC. Goiânia, Goiás.

Testamento do Capitão Braz Alvares de Castro no Arraial de Anicuns. Livro de Testamentos –


1842-52 – da cidade de Goiás, folha 2. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia,
Goiás.

Testamento de Dona Joanna Archangela Xavier no Arraial de Anicuns. Livro de Testamento –


1842-52 – da cidade de Goiás, folha 22. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia,
Goiás.

Testamento de Francisco José Guedes da Gama Lobo. Livro de Testamentos – 1842-52 – da


cidade de Goiás, folhas 4v e 5. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.

Testamento de João Francisco dos Guimaraens na Fazenda de Piloens. Registro de Testamentos


da Provedoria de Goyaz. Goyaz, 5 de Dezembro de 1829. p. 6v e 7. Exemplar digitalizado
existente no Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central – IPEH-BC. Goiânia,
Goiás.

Bibliografia

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BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. 2005.

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GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Purgat%C3%B3rio. Acessado em 25-07-2007.

Luiz Mott. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-
0316. https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf.
Acessado em 09-08-2007.

LEVI. Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: A escrita da história: novas perspectivas.


BURKE, Peter (Org.). Tradução Magda Lopes. São Paulo: Unesp. 1992.

MARTINS, José de Souza. “A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça”. In:
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___________. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no


Brasil: Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume
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SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos


Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1975.

SILVA, Eliane Moura. Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade. Campinas: Unicamp,
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VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história – fantasmas e certezas nas mentalidades


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Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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