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Resumo
Abstract
The present study turns on the death rituals in the province of Goiás and his
“confrontation”, expressed in the testamentary dispositions, in the ordering, in the
registrations of deaths and other documents. Here, as in the whole national territory, the
Church and the Fraternities exercised an essential paper in the actions of the society
around the death, those were entrusted of propitiating the sacraments to the dying ones,
essential subject in the daily of the XIX century. The ritual has a great meaning for the
community, as: to favor a good place for the dead; peace and quiet for the alive ones;
etc. This represents his vision of the beyond, of the practices of the terrestrial world and
the relationships with the extra-land. Along the century the society goes by important
modifications with the secularization of the death and continuous abandonment of the
religious dispositions and the appearance of the secular cemeteries.
Word-key: Goiás. Death. Ritual. Century XIX.
1
Mestre em História – UFG. Doutorando em História – UFG. Professor UEG – UnU Iporá. Este texto foi
ampliado e adaptado dos resultados do Projeto de pesquisa intitulado: Os rituais de morte em Goiás no
século XIX: imaginário, símbolo e representação, com financiamento da Universidade Estadual de
Goiás, no ano de 2007.
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Resumen
2
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-0316.
https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf. Acessado em 09-08-
2007.
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Goiás. Já há algum tempo que pesquisamos sobre as questões relativas a este tema em
Goiás e ao manusear esses documentos vislumbramos a possibilidade de estudar os
procedimentos concernentes à morte em Goiás no período oitocentista e de interrogar os
valores culturais goianos e, por conseguinte, da região centro-oeste. O teor da oração
citada por Luiz Mott tem grandes semelhanças com os conteúdos dos testamentos que
encontramos, revelando assim que essas atitudes eram amplamente disseminadas por
todo o território brasileiro.
O projeto oportunizou-nos contribuir de maneira importante numa área
ainda carente da historiografia estadual e no conhecimento da memória local. A
importância de tal atividade pode ser corroborada na argumentação de Raymond
Williams falando do lugar de seu nascimento e onde viveu e, das transformações
“vividas” por este espaço no tempo, que é, na prática, o fazer da história.
Como já disse antes, nasci numa aldeia e até hoje moro numa aldeia.
Mas nasci ao pé das Black Mountains, (...). Agora vivo na planície,
(...).
Este contraste físico é uma presença constante para mim, mas não é o
único contraste. No seio daquela aldeia nas Black Mountains, como
também nesta, há um contraste profundo impregnado de inúmeros
sentimentos: contraste entre o que parece natureza virgem – a
presença física das árvores, aves, paisagens em movimento – e uma
agricultura ativa, que na verdade produz boa parte da natureza. Ambos
os tipos de sebe – ali sobre uma plataforma, aqui brotando do chão
plano ou ladeando uma vala, juntamente com os carvalhos e
avezinhos, os olmos e pilriteiros que as acompanham, tudo isto foi
visto, plantado e cultivado pelo homem. No final da trilha perto da
casa de minha infância existe agora uma rodovia, pela qual passam
caminhões em alta velocidade. Contudo, aquele caminho foi aberto,
pavimentado e usado por veículos: só está ali há duas gerações, desde
o tempo em que um jovem construtor casou-se com a filha de um
fazendeiro e recebeu um pedaço de terra para lá construir sua casa, e
depois sua oficina, juntamente com o caminho, e depois as casas
vizinhas, e depois oficinas sucessivamente convertidas em casas; a
primeira dessas oficinas veio a ser a primeira casa de meus pais. No
campo onde vejo o olmo e o cavalo branco, atrás de minha casa atual,
existem tênues vestígios de uma construção do século IX, [...]. 3
3
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 14.
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Este passado observado por Williams revela um tempo que não está morto,
mas “vivo” entre as pessoas e na mente do historiador. Estamos tentando debater como
a idéia de que o passado deve ser encarado dentro de uma relatividade, a do homem. E
que a “banalização” do tempo tem tornado o passado como algo morto e sem sentido, e
pior, os avanços tecnológicos tornam as coisas superadas com muita rapidez. A
superação é uma verdade, mas isto não significa que este passado deve ser desprezado
como algo abominável, esta não é a atitude esperada por parte de um historiador ciente
do seu ofício.
A província de Goiás no século XIX caminhou lentamente. Deficiências
estruturais, como: falta de capital para investimento, de escolas, de mão-de-obra
qualificada, a longa distância dos grandes centros econômicos e de vias de
comunicação, associada a uma administração pública ineficiente com desequilíbrio
entre receita e despesa, entre outras, impedem um maior desenvolvimento do território
goiano.
Mas isto não quer dizer que a região fosse uma ilha, isto se reflete na
reprodução de costumes e tradições herdadas de outras plagas. No aspecto religioso as
evidências são facilmente perceptíveis, tal como no restante do país pratica-se um
catolicismo rústico de forte teor devocional e a exigência do cumprimento de uma série
de ritos que ia desde o batismo ao nascer, às missas de corpo presente e de intenção da
alma na ocasião da morte. Aqui, como lá, a ritualização era grande. Voltemos aqui à
epígrafe que complementa de forma bastante clara as ações a que estamos referindo:
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procurando decifrar os códigos e práticas cotidianas dos habitantes da província,
procurando indagar sobre a maneira e as razões desses procedimentos habituais da
população. Vale lembrar que recorrer à história cultural parece um modismo na
atualidade. Quase tudo é possível de ser visto sobre o paradigma cultural. Isto está
ligado à polêmica em torno do que é história cultural e de suas fronteiras. Os termos
social e cultural estão sendo usados de forma quase equivalentes. A partir de 1970 o
território do historiador cultural se ampliou muito, as duas técnicas exigem formas
próprias de leitura, que no entanto, não estão claramente definidas. Outro ponto
importante são as fronteiras culturais, vistas hoje não mais como ponto de intersecção,
5
mas como lugares de “relação”. Pensando assim, temos a possibilidade de
estabelecermos as “construções” elaboradas pelos atores envolvidos, suas condições
objetivas, que nada mais são do que sua "visão" de mundo, resultado dos embates
diários do coletivo. Coletivo esse que deve ser percebido na totalidade do território
brasileiro, estas são elaborações históricas, contém os campos de atuação e de
envolvimento de seus membros.
Ao longo da sua vida os homens criam e recriam os elementos da sua
cultura, as atitudes e respostas dos indivíduos são compreendidas em seu interior. Na
situação descrita por José de Souza Martins podemos perceber o exercício dos membros
de um ambiente, aqui numa situação particular: a morte.
Há um conjunto de cuidados, que são tomados na relação com o morto
e no deslocamento do corpo. O primeiro deles diz respeito ao
afastamento da família. Após as despedidas e bênçãos, a família é
praticamente afastada do moribundo e do corpo. Daí em diante, o
tratamento do morto, desde a lavagem até o sepultamento, é
incumbência de estranhos, nunca de parentes próximos. Após lavado e
vestido, o corpo deve ser tirado do quarto para a sala da frente, o
cômodo que dá para a rua e para a estrada. E deve ser tirado com os
pés para a frente, precedido por alguém que conduz a vela acesa. O
velório deve ser feito de modo que o corpo fique com os pés em
direção à porta e a cabeça em direção ao interior da casa. Luiz da
Câmara Cascudo observa que a posição do morto na casa é o inverso
da posição do nascimento. Esse é, provavelmente, o costume mais
comum e generalizado em todo o país. 6
5
Cf. BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 2005. pp. 146-9.
6
MARTINS, José de Souza. “A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça”. In: A morte
e os mortos na sociedade na sociedade brasileira. MARTINS, José de Souza (Org.). São Paulo:
Hucitec, 1983. p. 265. (Grifos do autor).
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Algumas destas situações descritas por Martins ainda são encontradas no
interior do Estado, como expor o corpo com os pés para a porta de saída da casa,
conforme já tivemos oportunidade de presenciar. A morte não é simplesmente o ato de
separação mais visível até pelo sentimento de dor externado no desespero dos vivos.
Trás consigo elementos econômicos, valores comportamentais, expectativas. O
relacionamento dos vivos com essa separação sugerem características essenciais da
interpretação da sociedade sobre a “vida no além” e, muito mais, do dia a dia das
pessoas. A religiosidade é um destes pontos centrais, como destaca Vovelle: “No
Ocidente católico, sobretudo, a igreja se manteve como um lugar privilegiado para toda
7
uma série de atos relativos à morte e ao além-mundo”. A importância do aspecto
religioso nos rituais de morte também é destacada por Eliane Silva na introdução de sua
tese de doutoramento:
A trama sobre a morte passa pela compreensão das relações entre estes dois
mundos distintos: material “vivo” e celestial “morte”. Duas situações muito “presentes
em nosso meio e por isto mesmo cheia de interrogações, principalmente pelo fato de
nossas dúvidas e falta de “controle” com a vida no além-túmulo. É com certeza um
diálogo difícil, mas instigante, dando a possibilidade de inquirir sobre uma situação que
7
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história – fantasmas e certezas nas mentalidades desde a
Idade Média até o século XX. Tradução Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1997. p 351.
8
SILVA, Eliane Moura. Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade. Campinas: Unicamp, 1993. p.
8.
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fala muito sobre um povo. Para “falar” com este povo recorremos basicamente às
seguintes fontes: Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões,
Certificados, Editais, Etc. 1734-1824. Registro de Óbitos de Pirenópolis de 1803-1810,
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Abadia, Compromisso da Irmandade
do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário da Cidade de
Meiaponte, Registro de Testamento 1842-52 da Cidade de Goiás, Livro 1º de
Regulamentos expedidos pelo Presidente da Província 1858, Regulamento para
Cemitério, ano 1859. Esclarecemos que não atualizamos a grafia das citações preferindo
manter a originalidade destas.
Buscamos compreender as construções e elaborações em torno da morte no
século XIX em Goiás, interpretando o significado simbólico, os hábitos e as mudanças
ocorridas em torno do assunto, desta forma a ação humana se torna mais importante na
construção do espaço do que o meio. É a práxis social. Sendo uma pesquisa de caráter
regional procuramos aporte metodológico na micro-história, pois acreditamos que sua
aplicação permite um diálogo mais consistente com as fontes.
9
LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: A escrita da história: novas perspectivas. BURKE, Peter
(Org.). Tradução Magda Lopes. São Paulo: Unesp. 1992. p. 137.
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Deter-se tão minuciosamente nessa monótona sucessão de confissões
arrancadas pelo medo à tortura, seguidas de outras tantas retratações
igualmente precisas, poderá parecer inorportuno. Mas a tortura, na
realidade, não faz senão propor novamente, de forma exacerbada, a
característica essencial do processo por feitiçaria. Por mais óbvio que
seja, não será inútil lembrar que uma enorme parcela dos inquisidores
acreditava na realidade da feitiçaria, assim como muitíssimas
feiticeiras acreditavam naquilo que confessavam perante a Inquisição.
No processo tem-se em outras palavras, um encontro em diferentes
níveis entre inquisidores e feiticeiras, enquanto partícipes de uma
visão comum da realidade. 10
10
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 30.
11
RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes,
1996. p. 70.
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assunto. Conforme Scarano, no Brasil estas adquiriram feições diferenciadas do que
ocorria na Europa dando mais importância às categorias raciais e sociais. Aqui, ao que
parecem, estas se dedicavam apenas aos ofícios religiosos e a beneficência, não se
encontrando àquelas dedicadas aos grêmios profissionais.12 A opinião é também
compartilhada por João José Reis, que diz o seguinte:
12
Cf. SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1975. pp. 24-5
13
REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no Brasil:
Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 2. p. 123.
14
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 89.
15
Cf. Idem. p. 92.
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assim muito importantes para o povo. Salvação para os mortos, conforto para os vivos.
Isto pode ser comprovado no Compromisso a ser assumido pelos seus membros.
Capítulo 1º
Da Irmandade em Geral
§ 4º Outro sim será a mesma Irmandade obrigada a acompanhar á
sepultura todos os Irmãos de Compromisso, e conduzilos no Esquife
da Irmandade; assim como suas mulheres e filhos até a idade de
quatorze annos, [...].
Capítulo 6º
Do Procurador
§ 3º Deve levar a campainha adiante em todas as occazioens que sahir
fora Irmandade, e tocal-a antes dos enterros, para convocar os Irmãos,
[...]. 16
Capítulo 1º
Da Irmandade em Geral
§ Outro sim será a mesma Irmandade obrigada a acompnhar á
sepultura todos os Irmãos de Compromisso, e conduzilos no Esquife
da Irmandade; [...]. 17
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por eles e a intercessão da Corte celestial eram atitudes praticadas por todos como
18
mostram grande parte dos testamentos examinados. Vale lembrar que ao longo do
século XVIII as disposições religiosas vão cedendo lugar às materiais.
18
Cf. REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no
Brasil: Império. Coordenador-geral da coleção NOVAIS, Fernando; Organizador do Volume
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 2. pp. 102-3
19
Testamento do Capitão Braz Alvares de Castro no Arraial de Anicuns. Livro de Testamentos – 1842-52
– da cidade de Goiás, folha 2. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
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dos filhos, que ao que tudo indica era resultado de um amaziamento duradouro, não de
um casamento legítimo.
As pesquisas indicam que situações como estas são poucas, mas é uma
hipótese que demanda um aprofundamento em estudos de família e nem tampouco é
nosso objetivo. O fato de não citar o nome do pai pode sugerir ser o testador um filho
também nascido de uma união ilegítima. Mas o que nos interessa é perceber no
reconhecimento dos filhos um fato unido à morte. Este funciona como um indulto dos
pecados e ingresso ao céu. Neste outro testamento a presença religiosa e as incertezas da
vida pós-morte são também interessantes.
20
Testamento de Dona Joanna Archangela Xavier no Arraial de Anicuns. Livro de Testamento – 1842-52
– da cidade de Goiás, folha 22. Exemplar fotocopiado existente no IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
21
Testamento de João Francisco dos Guimaraens na Fazenda de Piloens. Registro de Testamentos da
Provedoria de Goyaz. Goyaz, 5 de Dezembro de 1829. p. 6v e 7. Exemplar digitalizado existente no
Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central – IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
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diferente em todo território nacional. Reportamo-nos novamente aqui a oração da
epígrafe que mostra também a busca da intercessão de toda Corte celestial
A morte ideal não devia ser uma morte solitária, privada. Ela se
encontrava mais integrada ao cotidiano extradoméstico da vida,
desenhando uma fronteira tênue entre o privado e o público. Quando o
fim se aproximava, o doente não se isolava num quarto hospitalar,
mas esperava a morte em casa, na cama em que dormira, presidindo a
própria morte diante de pessoas que circulavam incessantemente em
torno do seu leito – a morte representava „uma manifestação social‟,
como a definiu Philippe Ariès. Reuniam-se familiares, padres,
rezadeiras, conhecidos e desconhecidos. 23
22
MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-
0316. https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf. Acessado em
09-08-2007.
23
REIS, João José. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da vida privada no Brasil:
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Percebemos aqui que a morte não é sinal de separação, continua a existir
entre os dois mundos uma relação muito estreita evidenciada nas missas pelas almas,
nas encomendações, na arquitetura cemiterial carregada de imagens sacras e epitáfios
religiosos.
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e suas atitudes fortemente ligadas ao catolicismo. Recorremos aqui a Azzi que faz uma
ótima radiografia do catolicismo no Brasil. Apesar da extensão da nota, tem a vantagem
de fornecer todos os dados necessários à melhor compreensão do assunto.
25
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 9.
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Matriz, sendo primeiro encomendado por mim, quepara constar fiz
este Assento. 26
26
Registro de Óbitos. Pirenópolis 1803 a 1810. p. 20v. IPEH-BC. Goiânia, Goiás.
27
Idem. p. 21.
28
Cf. Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões, Certificados, Editais, Etc. 1734-
1824. Exemplar datilografado existente no IPEH-BC. Goiânia. Goiás. p. 14
29
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 114.
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Em seu clássico estudo sobre os ritos de passagem, Van Gennep
dividiu as cerimônias funerárias em ritos de separação entre vivos e
mortos, e ritos de incorporação destes últimos a seu destino no além.
Entre a separação e a incorporação, o morto ficaria no limite entre o
aqui e o além, uma espécie de parêntese existencial a ser ritualmente
preenchido pelos vivos.
São exemplos de ritos de separação a lavagem e o transporte do
cadáver, a queima de objetos pessoais do morto, cerimônias de
purificação, de sepultamento, rituais periódicos de expulsão do
espírito do morto da casa, da vila, enfim, do meio dos vivos, o luto e
tabus em geral. Ritos de incorporação seriam aqueles dirigidos a
propiciar a reunião do morto com aqueles que seguiram antes, como,
por exemplo, a comida servida para a sua viagem, a extrema-unção, o
próprio enterro do cadáver. Os ritos de separação e incorporação
freqüentemente se superpõem e até se confundem. 30
30
Idem. p. 89. (Grifos do autor).
31
Cf. AZZI, Riolando, O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978. p.
20.
32
Idem. p. 21.
33
Ibidem. p. 22.
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vivos. Daí a necessidade do cumprimento de todas as etapas do ritual funerário – às
vezes extensas e com centenas de missas encomendadas pela alma do falecido,
incluindo ainda parentes e amigos –. A esperança de todos é atingir o céu, e caso isso
não fosse possível o purgatório era opção desejável. Este não é um lugar intermediário
entre Inferno e Paraíso, mas um ambiente de purificação para aquelas almas que
morreram em estado de graça – já com um lugar certo no paraíso – e que precisam
passar por um estágio de preparação para ver Deus e o Céu. 34
A salvação vinha de acordo com o merecimento de cada um, daí a
preocupação em vida com os pecados. A vida depois da morte era sempre vista com
grandes dúvidas, ninguém ousava dizer que já estava salvo. Na eternidade a existência
podia ser bem melhor, mas só depois da absolvição dos pecados, a morte era então um
momento de forte apreensão. Esse temor não era algo sem controle, temia-se muito
morrer sem preparação, essa ajudava na espera da morte e também o acesso para o
além. 35
A escolha da mortalha a ser envolvido, do local de sepultamento, também
fornecem pistas importantes do mundo extra-terreno. Ser envolvido em vestes
semelhantes às dos santos era um presságio de bons fluidos e intervenção da Corte
Celestial em seu favor. Da mesma maneira que o local da última morada, ser enterrado
“das grades acima” era a vontade de muitos devido à proximidade com o altar, por outro
lado, alguns solicitavam ser inumados em lugares de menos prestígio. Tudo indica que
neste caso prevalece a idéia de que a humildade é o melhor caminho para se atingir os
céus, postura que se aproxima dos ensinamentos da Igreja, que assegurava prêmio para
a humildade e castigo para a ostentação. A reunificação da família ou do grupo da
parentela no pós morte também ocorria, vários pediam para serem sepultados próximos
de parentes já falecidos. Isto indica que se tentava reconstituir no além o mundo terreno.
Em “A morte é uma festa” Reis faz uma análise muito interessante sobre o assunto. 36
As construções tumulares e os epitáfios constituem outras extraordinárias pistas
do imaginário em torno da eternidade. Neste ponto as investigações ainda se encontram
em fase inicial, demandando pesquisas e exames mais precisos que pretendemos
34
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Purgat%C3%B3rio. Acessado em 25-07-2007.
35
Cf. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 95.
36
Cf. Idem. pp. 185-9.
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desenvolver em outro projeto. A secularização da morte em Goiás e a criação dos
cemitérios fora do âmbito urbano constituem também interrogações que procuraremos
responder no futuro e que a exigüidade de espaço e de tempo não nos permitiu avançar
no presente trabalho. Propusemos interrogar as ligações entre a construção da nação
com a independência e de uma cultura “nacional” com as questões relativas à morte, tal
interrogação também não foi possível responder. São muitas as perguntas sem respostas,
o que por um lado pode parecer frustrante, mas por outro um sinal de que o estudo não
foi em vão, tendo em vista que, acreditamos que a nossa missão principal é propor o
tema ao debate e a crítica de nossos pares.
Fontes
Goiás. Termos das Visitas Pastorais, Cartas Pastorais, Provisões, Certificados, Editais, Etc.
1734-1824. Exemplar datilografado existente no IPEH-BC. Goiânia. Goiás.
Bibliografia
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. 2005.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 19
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Luiz Mott. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil Colonial. Ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-
0316. https://www.unisinos.br/ihu/uploads/publicacoes/edicoes/1158330564.59pdf.pdf.
Acessado em 09-08-2007.
MARTINS, José de Souza. “A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos fúnebres da roça”. In:
A morte e os mortos na sociedade na sociedade brasileira. MARTINS, José de Souza (Org.).
São Paulo: Hucitec, 1983.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis:
Vozes, 1996.
SILVA, Eliane Moura. Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade. Campinas: Unicamp,
1993. (Tese de Doutoramento).
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