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Além da Tocaia

Teobaldo Branco
Teobaldo Branco

Além da Tocaia

Ijuí - 2007
Branco, Teobaldo
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Bairro São Geraldo
Ijuí-RS 98700-000
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Revisão: Cleusa Schneider
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do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
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Reprodução proibida sem a permissão, por escrito, do autor.
Nota: Os nomes, datas e lugares idênticos são mera coincidência, a história
trata-se de pura ficção.

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques
B816a Branco, Teobaldo
Além da tocaia / Teobaldo Branco. – Ijuí : [s.n.],
2007. – 232 p.
1. Literatura 2. Literatura brasileira 3. Terras 3. Posse
de terras I. Título
CDU : 869.0(81)
869.0
DEDICATÓRIA

O destino de qualquer civilização está no conhecimento do passado,


que inevitavelmente se transforma, evolui e contempla o seu futuro.
A partir dessa visão, o futuro se concretiza no desenvolvimento das
origens, que enaltece a espécie humana, pois torna o fazer artístico ligado ao
prazer estético de criar a expressão de um mundo ideal, na construção do futuro
real.
A história que passamos a contar representa uma época que envolve a
pessoa civil e jurídica, instituições públicas e privadas no contexto regional.
Entendemos que, a partir dos interesses individuais, sociais ou da civilização,
acontecem os episódios marcantes no espaço e tempo histórico de cada povo.
Desejamos fazer nossa contribuição resgatando personagens e fatos,
que se encontram no anonimato, colocando no palco da imortalidade histórica.
Com gratidão dedico esta obra a todos colaboradores, leitores e especialmente
a uma pessoa:
Veronica (esposa)
SUMÁRIO

PREFÁCIO ...................................................................................................... 9
PARTE I
Redenção ....................................................................................................... 11
PARTE II
A Tocaia ......................................................................................................... 81
PARTE III
Depoimentos .................................................................................................. 99
PARTE IV
Busca da Verdade......................................................................................... 125
PARTE V
O Jogo da Investigação ............................................................................... 147
PARTE VI
Desafios do Delito ....................................................................................... 177
PARTE VII
O Veredicto .................................................................................................. 193
PARTE VIII
Além da Tocaia ............................................................................................ 209
PREFÁCIO

É com orgulho de colega que apresento aos leitores mais uma obra do já reconhecido
escritor e professor Teobaldo Branco.
Esta obra relata a epopeia de famílias tradicionais de uma localidade interiorana, cujo título
“Além da Tocaia”, graças à habilidade de seu autor, esconde uma história real fantástica
ocorrida no início do século 20.
O enfoque dado à trama, que qualifica a capacidade do escritor, traduz com fidelidade as
acirradas lutas pelo poder de mando nos pequenos núcleos urbanos que surgiam no começo
do século passado, destacando a ousadia de Teobaldo Branco em abordar temas tão
apaixonantes e polêmicos como os enfrentamentos políticos que amiúde resultavam em
embates mortais, como o que ocorreu nesta novela que, pontilhada por atrativos tantos, se
quer ler de um só lance.
Destaca-se nesta obra a acuidade com que o autor detalha fatos históricos e os situa com
tal fidelidade na linha de tempo que o enredo se entrelaça com fatos históricos da época.
Destaca-se também, nas entrelinhas, que o autor mostra ser um apaixonado pela trama
política da localidade fictícia que serviu de cenário para o crime que inspirou esta obra.
Cabe um comentário final sobre este livro que tive a honra de prefaciar: o texto encerra o
inconformismo do escritor em relação à forma como foi conduzida toda a investigação sobre a
morte de uma figura proeminente da localidade na qual transcorre toda a trama e, mediante
esse inconformismo, vem provocar lembranças tantas naqueles que vivenciaram a história real
que inspirou este romance, e ao mesmo tempo provocar no leitor, que não vivenciou os fatos,
a perplexidade diante da envergadura desta obra que, graças à perspicácia do autor em florear
o enredo, torna a leitura provocante e agradável.

Mário Anacleto Ruchel


Professor, advogado e escritor.
ParteI

Redenção

“É da planície que o homem vê melhor o infinito, pela


contemplação, sem obstáculos, dos horizontes que o rodeiam”.
(Carlos de Araújo Lima, advogado e ex-deputado, Os grandes
processos do júri).
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Além da Tocaia

Redenção, a terra dos sonhos. Sonhos de um mundo ideal, que incentivou


a arte de descobrir novos caminhos, levando o homem por meio do pensamento
a interpretar e explorar os fenômenos da natureza, buscando a essência
do universo, aproveitando a experiência do cotidiano e as invenções da ciência,
no sentido de qualificar a vida humana.
Estudar a história de um povo permite uma retrospectiva analítica mediante
uma visão cósmica da civilização e das sucessões das eras cronológicas de
desenvolvimento, que têm por base os acontecimentos mais notáveis, geralmente
de caráter social, histórico ou cultural. Visto pelo tempo as sequências
de mudanças da natureza e da sociedade; períodos de maior duração de certas
conjunturas da civilização, que caracterizam o desenvolvimento ou a expansão
das formas de vida no espaço do pampa gaúcho.
No início do século passado, a campanha era uma terra em que o homem
experimentou o mundo, num anterior estágio de lutas, confrontando-se com o
espaço incomensurável e imenso das distâncias e diferenças. Em confronto
com os revoltosos, cujo destino era as conquistas pela guerra, sob o céu sem
amparo e guarida: O homem exposto aos revezes do meio contraditório, da
guerra, no desamparo dos fenômenos do campo e do tempo fez refletir o efeito
cultural, selando a alma do homem no coração da terra. Histórias de uma civilização
que habitava e vivia num recanto deste continente de São Pedro de Erico
Verissimo.
Ao imaginar a evolução das descobertas humanas e vendo a rotatividade
das espécies, num curso gradual de um processo de mudanças e de um complexo
universo em desenvolvimento, o passado reconstituído é um mundo irreal.
Ver o passado significa contemplar de longe o curso de sua história sem alterá-la.
É uma forma fantástica de ver a vida de um povo com neutralidade, limitando-se
a observar com onisciência, como se assiste a um filme.
Histórias contadas pelos moradores do povoado do 2º distrito, chamado
Degredo, interior do município de Redenção, eram ricas em mitologia. Uma
pequena vila que derramava sua paisagem de sul a norte, do poente ao nascente,
onde se misturavam os campos e as matas, já na entrada da serra. Uma

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povoação que prosperava, com prenúncio de muita bonança, legendando nomes


importantes, pela estrutura social diversificada. Havia uma tendência de se
tornar uma cidade complexa e grande. Na época, a vila contava com casas
comerciais, que atuavam em todos os campos, comercializando tecidos, ferramentas,
materiais domésticos, suprimentos alimentícios, cerâmicos, compravam
a produção local e exportavam para outras regiões do Estado, fazendo o
intercâmbio do progresso. A sociedade local oferecia prestação de serviços,
oficinas tanto na área da agricultura, transporte, de natureza doméstica em
geral, como na construção civil. Havia algumas indústrias de produção de
equipamentos agrícolas e de transporte. A agricultura e pecuária eram as principais
atividades da região.
Nas terras de Redenção a campanha era imensa com extensas áreas de
campo, permitindo viajar longa distância sob o vento minuano, sem encontrar
sequer uma habitação, percebendo-se o potencial das estâncias. A vila do
Degredo era um distrito da terra da mãe de Deus, centrada na relação entre
fazendeiros e minifúndios situados no noroeste do estado. As relações eram
ricas de episódios, vindos de todos os lados; histórias que revelavam lembranças
de fatos e acontecimentos que ficaram na memória de toda gente.
Certa vez, numa tarde quente de verão, encontrava-se na sombra de um
laranjal, no pátio de sua casa, no interior, um caudilho dos pampas tomando
chimarrão em companhia de seu neto, quando este lhe perguntou:
– Vovô! Conte-me uma história!
– Qual delas?
– Ah! O senhor vive falando do seu tempo. Como era quando criança?
– Vou contar um episódio que bem me lembro.
– Que episódio?
– A história ocorreu no dia de um casamento, do qual seu pai era testemunha.
Era no interior, as povoações eram pequenas, diferentes de hoje.
– Sei, vovô! Como é a cidade grande?
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– Lá tem mais recursos. É bom morar na cidade grande.


– Vovô! O que são recursos na cidade?
– Escola, luz elétrica e calçamento, têm lojas de calçado, roupa bonita e
comida. Tem tanta coisa que nem me lembro.
– Vovô! Eu gosto daqui, desta casa, dos animais.
– É! É bom gostar de si. Do que se faz. É importante para se viver bem.
– Quem se casou, Vovô?
– Casou-se um moço amigo nosso, com uma jovem da redondeza. Ela,
moça bonita e com certas propriedades. Eles formavam um belo casal.
– Como se chamava o noivo e a noiva?
– Ah, sim! O noivo era Severino Vitorelo. Ela, Conceição dos Santos.
– E daí?
– Daí saiu festa.
– Como era a festa?
– No dia do casamento tinha leitão assado, galinhas e saladas: E bebidas:
vinhos tinto e branco, produção da casa, de boa qualidade, e muitos doces
para todos.
– A festa era grande?
– Sim! Reuniu-se muita gente, parentes, amigos e vizinhos. A festa durou
três dias, desde sexta-feira até domingo.
– Três dias de festa, vovô!
– Sim! O povo comia e bebia por conta da casa.
– O que mais?
– Na festa houve leilão para os noivos, discurso, trova, aposta, jogo de
bocha, de osso, até carreira e baile para todos.
– As crianças dançavam?

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– Claro! Até as crianças dançavam. Era uma festa familiar. Deixou lembranças.
– Onde foi a festa, vovô?
– A festa foi na casa do Senhor Antônio, pai do noivo.
– Onde vovô?
– No interior do distrito de Degredo.
– Como foi o casamento?
– A cerimônia foi no civil e no religioso, realizou-se no povoado do
Degredo, por que lá havia registro civil.
– O que é registro civil?
– É uma repartição pública que registra e fornece documentos oficiais,
como registro de nascimento, de casamento e outros.
– Vovô, quem morava aqui antes?
– Ah, sim! – Aqui era uma região próspera, procurada por aventureiros,
por exemplo, os italianos vieram em busca de terra para trabalhar e produzir, no
sentido de construir patrimônio para viver com suas famílias.
– Vieram os italianos e quem mais?
– Aqui era terra dos índios. Vieram da Europa os portugueses, depois os
italianos, alemães, poloneses e outros, assim formaram uma grande colônia,
onde vivemos.
– O que são aventureiros?
– Aventureiros eram aqueles que vinham comprar terras. Estas terras
eram dos Coronéis As pessoas vinham pela riqueza da terra, que era cobiçada.
– Quem eram os coronéis, vovô?
– Eram grandes proprietários e autoridades, o coronel João Joaquim de
Lima e o coronel Constâncio Terra e outros. Era um problema.
– Que problemas?

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– Sobre negócios de terra.


– Por que, vovô?
– Havia invasões de terra, problemas de divisa, de documentos ilegais.
Havia pressão para venda a qualquer preço para o interessado.
– Quem era interessado?
– Alguém que desejava formar uma estância, ou propriedade maior,
forçava os pequenos proprietários a venderam as terras.
– E se não queriam vender?
– Daí invadiam e queimavam as casas, deixando a família na rua, ou
roubavam animais, assustavam a família, também inventavam falsos documentos
de propriedade. As pessoas ficavam com medo e retiravam-se.
– Quem invadia as casas?
– Eram jagunços mandados pelos grandes proprietários.
– Vovô! Hoje não acontece mais isso?
– Não da mesma forma.
– Naquela época era perigoso?
– Sim! Acontecia tanta violência que dava medo. Luta pela terra.
– Vovô! O senhor disse que ia contar uma história. Que história?
– Vou contar a história do delegado.
– Que delegado?
– História do Delegado Arcelino Furtado.
– Como era a história desse delegado?
– Certo dia, num sábado ao meio dia, ele saiu da Delegacia onde trabalhava,
e na estrada foi assassinado ao ir para casa.
– O delegado morava na Delegacia?

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Teobaldo Branco

– Não! O Delegado residia em Vila Nova com a família e trabalhava no


povoado de Degredo, sede da Delegacia.
– Vovô, delegado era polícia?
– Sim! Delegado é da polícia civil. Soldado é militar, também tinha capangas
civis na Delegacia, que auxiliavam nas necessidades eventuais.
– O que é capanga, vovô?
– Capanga é um homem que se coloca a serviço de alguém por pagamento.
No caso da Delegacia eram homens civis para reforçar a guarda da
polícia. Muitos capangas são os fora-da-lei, que fazem maldade a serviço de
outros.
– Mas se quem paga for bom?
– Daí o jagunço faz segurança, sempre relacionado à justiça.
– Vovô! Ele sempre morou aqui?
– Ele quem?
– O delegado, vovô!
– Não! Tinha-se notícias de que o delegado veio por convocação de
autoridades estaduais.
– Tinha delegado aqui antes?
– Aqui tinha um Intendente, que assumia o papel de delegado. O delegado
veio depois, avisado e ciente de uma missão.
– Que missão, vovô?
– Missão de fazer algumas correções de justiça e moralizar os desmandos
que aqui aconteciam, comandado por alguns mandões.
– Por que toda essa bagunça?
– Certo! O cerne de todas as questões era a terra.
– Por quê?

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– Bom! A terra é a fonte da vida, deixada por Deus, onde as pessoas têm
sua casa, produzem alimentos, criam animais, têm seu sossego, por isso gerava
os conflitos.
– Conflitos como, vovô?
– Olha! São desacertos entre os homens pela propriedade da terra. Acontecia
muita violência, que culminava com a perda de vidas humanas. As matanças
eram comuns, com ou sem justa causa.
– Por que aconteciam essas matanças?
– Ora, por que! As pessoas valem pelo que têm. Aquele que mais tem,
manda mais. O dinheiro é o que diferencia as pessoas, até hoje.
-E daí, vovô?
– Bom! Essa é a causa de existirem pobres e os ricos.
– Vovô, quem é o melhor destes?
– Destes, quem?
– Pobres, ou ricos, vovô!
– Boa pergunta! Têm pobres e ricos bons. Têm pobres e ricos maus.
– Então, vovô, quem são os maus?
– Acontece que alguns pobres são submissos por necessidade e tornam-
se capangas. Naquela época defendiam com fé os interesses do patrão,
muitas vezes cometiam crimes a mando. Ou assumiam a culpa em troca de
pagamento, com isso defendiam os interesses dos outros. Dessa forma os dois
são maus.
– Vovô! Por isso que existe a guerra?
– Sim! São os interesses egoístas dos homens. Os homens constroem
sua história, que é o caminho dos filhos no futuro.

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Teobaldo Branco

O CRIME DO TENENTE

Certa vez houve uma carreirada e festa no interior do Degredo, localidade


de Centro Novo, na fazenda de Bibiano Leitão. O organizador da promoção
solicitou reforço policial, e se fez presente o comandante militar; tenente
Humberto Valentin de Lima, da guarnição da Brigada Militar, do município de
Redenção, para manter a ordem. A certa altura, no decorrer da festa, houve um
duelo entre Pedro Mentira contra um tal de Chico Matos. O desafio à espada
acabou com a morte do tenente. Enquanto Pedro Mentira e Chico Matos pelejavam
aguerridos numa luta de vida e morte, o tenente Humberto Valentin de
Lima interferiu:
– Homens, por favor, parem! – falou o tenente.
– Tenente, cuidado! Alertou um cidadão que estava num grupo de curiosos
ao redor.
A luta de arma branca arrepiava os presentes. Parecia que um e outro
estavam sendo espetados ou aparados com golpes de espada. A luta criara um
ambiente de apreensão e ansiedade, precipitava-se a presença do público da
festa, que se aglomerava em torno dos lutadores: Alguém gritou:
– Onde estão as autoridades para separar essa briga?
O início da peleja começou próximo de uma mesa ao redor da copa, local
do comércio de bebida e comida. A briga provocou algazarra e gritaria dos
presentes, pois cada golpe de espada e salto para ataque ou defesa levava-os
em direção a um espaço aberto, deslizando para um gramado plano.
O tenente e dois soldados aproximaram-se. O tenente, com o revólver
em punho, apontado para cima, gritou:
– Aqui é a polícia. A ordem é para cessar essa briga.
O tenente chegou junto tentando separá-los, mas os lutadores não perdiam
o impulso dos golpes certeiros que, se não fosse a habilidade de cada um,
havia uma definição final de um vencedor e outro vencido com morte, certamente.
O tenente interferiu novamente:
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Além da Tocaia

– Parem, por favor! Atendam, aqui é a polícia.


O tenente detonou um tiro de revólver para cima na intenção de cessar
a briga. Nisto, o Pedro Mentira foi ferido com um corte no peito tão fundo, que
deu para ver o derramamento de sangue na roupa. Sua camisa branca refletia o
contraste da lesão. Chico Matos parou retirando-se alguns metros, e ficou
aguardando seu rival, que segurava a espada numa mão e com a outra espremeu
o sangue de sua camisa, sem tirar o olho do seu rival.
O tenente e outros policiais aproximaram-se dos lutadores, tentavam
acalmá-los. De repente houve um estampido, um tiro de revólver partiu da
multidão e acertou o tenente. O tenente, de pé ao receber o projétil sofreu o
impacto, perdeu a cor do rosto, ficou pálido, baixou o braço e a arma caiu-lhe da
mão, rodeou o corpo e caiu de lado na terra.
Os lutadores parados presenciaram o acontecido e retiraram-se cada um
para um lado. Com isso finalizou a luta. A bala atingiu o tenente pelas costas,
que detonou o seu coração. Foi atendido por pessoas locais, mas morreu momentos
depois. O atirador sumiu.
Este e outros acontecimentos no distrito foram os motivos que levaram
as autoridades locais a solicitar ao centro regional um delegado austero para
colocar em ordem aquele povo, que costumava estabelecer leis pelas próprias
mãos.
A CAPTURA
A história do delegado Arcelino Furtado está inserida na história do
povo da região.
Certa vez o delegado fora prender José Leal, no interior rural do distrito,
um sujeito bagunceiro, que levava uma vida errante, vivia desocupado e não
fazia falta a ninguém. Era briguento por seus direitos – conforme alegava, crítico
da lei (considerava-a injusta), contra tudo era um revoltado. As pessoas que
o conheciam diziam que ele era trabalhador. Tinha sido preso uma vez. O dele

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Teobaldo Branco

gado maltratou-o, fazendo caminhar na corda, a rabo de tatu, conforme o poder


legal dos capitães que ainda se faziam presente na prática da justiça. Mas na
história da prisão de José Leal comentava-se que o delegado não foi pessoalmente,
mandou seus policiais, ou melhor; seus capangas, que foram prender o
fora da lei. Na Delegacia, o delegado ordenou:
– Soldado Antônio! Por favor, venha até aqui.
– Pronto, delegado Arcelino! O que devemos? A suas ordens.
– Antônio! Prepare um grupo de homens para irem prender um anarquista,
bagunceiro.
– De quem se trata, delegado?
– O tal de José Leal. Lá da costa do rio Prateado.
– O que ele aprontou?
– Bagunça! Faz parte de um bando de desocupados, bebem demais e
fazem desordens. Além de tudo, querem ter a índole de valentes. Não é a primeira
denúncia, já é hora de passar um corretivo nos líderes para cessar os incômodos
no interior. Por isso levem uns cinco homens e sejam cautelosos, porque
esse é bicho rebelde.
– Vamos três da Delegacia, mais o Odorico e o Graciliano, pois trata-se
de sujeitos de experiência na guerra contra indivíduos perigosos.
– Tá bom, Antônio! O Odorico conhece a redondeza e sabe onde
encontrá-lo. Não posso acompanhá-los, pois preciso ficar na Delegacia para
fazer alguns despachos urgentes. Procurem surpreendê-lo, evitem violência.
Vocês sabem como fazer.
Na ocasião saíram cinco homens, três fardados e dois civis. Todos usando
o mesmo meio de transporte, o cavalo. Armados com três fuzis e cinco revólveres.
– Odorico! Você conhece bem o José Leal? – perguntou o soldado Manuel
Oliveira.
– Sim, mais ou menos! Conheço todo o rincão. Acredito que José Leal
refugiou-se na casa de sua mãe, chamada de Vó Benta, fica em São Mirim Velho.
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Além da Tocaia

– Que hora chegaremos?


– Ora! Provavelmente à noite. Espero! – Vamos chegar naquela casa e
nos informar.
A comitiva dirigiu-se até a frente de uma casa na beira da estrada. Era
uma casa humilde de madeira. O soldado Antônio gritou:
– Ó de casa!
Apresentou-se um homem alto, arrepiado, bigode grande e retorcido,
cor de fogo, um tipo mal-encarado, roupa suja, bombachas rasgadas no joelho.
Nos fundos da casa apareceram uma mulher e um menino, que espiaram e logo
se esconderam.
– Boa tarde, senhor!
– Boa tarde. Sim senhor, as suas ordens!
– Precisamos de informações! Onde fica a residência da Vó Benta, mãe
de José Leal?
– O que houve?
– Não houve nada, apenas uma investigação. Precisamos falar com José
Leal, ou com sua mãe.
– Sendo assim, fica em São Mirim Velho, a quatro quilômetros daqui.
Segue a estrada maior até o primeiro cruzamento, dobra à direita; vai em direção
ao rio; a segunda estrada segue à esquerda, a trezentos metros tem uma casa
nos fundos de um laranjal, à direita. É ali.
– O que o senhor tem a dizer?
– Da Vó Benta?
– Não! Do José Leal, seu filho, é claro.
– O José é um moço bom para nossa vizinhança. De respeito, topa
desafios, defende os mais fracos, até parece meio justiceiro. Dizem que não
gosta de polícia. Não temos nada contra.

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Teobaldo Branco

– Certo! Então vamos. Até logo. Até Logo.


A escolta seguiu em direção ao rio Prateado. Rio de águas profundas.
Seguiram na estrada, sempre atentos as informações do morador, que era colono
no interior do distrito, em cujo terreno havia uma casa, um galpão, chiqueiro,
galinheiro, forno de fazer pão; no pátio havia porco solto, pato, galinhas e três
cachorros bravos.
– Soldado Antônio! Você é o chefe do pelotão. Já está ficando noite,
começou escurecer. O que fazemos, pois estamos nos aproximando. Aqui é São
Mirim Velho.
– Certamente, ele está na casa da mãe. Vamos sitiar a casa. Já é noite, vai
ficar mais fácil nos aproximarmos. Devemos deixar os animais escondidos a uns
500 metros, para não sermos percebidos. Assim podemos surpreendê-lo.
De dentro da casa a velha mãe percebeu que estavam sitiados pela
polícia.
– José, José! Venha cá rápido.
– O que foi, mamãe?
– A casa está sitiada pela polícia.
– Mamãe, não fique apavorada e temerosa. – diz ele pressentindo o pior.
– José! Quero te fazer um pedido!
– Que pedido, mamãe?
– Filho! Você deve se entregar logo de saída para evitar o pior. Eles não
vieram para perder.
José, com o instinto de valente, disse:
– Mamãe, não posso entregar-me. A senhora se proteja dentro de casa.
Porque tenho um plano.
– Que plano, José?
– Mamãe! Não há mais tempo. A senhora vai saber já.
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Além da Tocaia

José foi a todos os quadrantes da casa e verificou que estava realmente


sitiada. Observou vultos movimentando-se ao redor, a uns cinquenta metros
de distância. Logo, na frente da casa ouviu uma voz.
– Ó de casa! Ó de casa!
Ninguém de dentro respondeu. Não se podia ver ninguém de onde soou
a voz. A noite favorecia uma fuga, bem como a aproximação do pelotão dos
soldados no sítio da propriedade.
– Mamãe! Vou fugir, tenho possibilidades.
– Não, José! A polícia vai te matar, por favor.
– A morte tem hora. Tenho fé, sou novo e amo a vida. Vou sair pela porta
da frente.
– Não, José! Eles vão metralhar. Você não escapa. Por amor de Deus não vá.
– Mamãe! Proteja-se dentro de casa. A senhora é inocente, não vai lhe
acontecer nada. Querem a mim. Adeus.
José Leal abriu a porta da frente e saiu correndo, em ziguezague, abrindo
fogo para todos os lados. Houve intensa troca de tiros. O chefe que comandava
o pelotão era Antônio Conceição, soldado experiente.
– Soldado Manuel! Ele saiu pela porta da frente, não pude ver direito. –
gritou Odorico.
– Atire, Odorico! Atire no vulto. Vamos atrás, rápido. – disse Antônio.
– Graciliano! Venha rápido, antes que, ele entre no capão de mato, pois
a escuridão da noite vai atrapalhar. Devemos prendê-lo antes de entrar no mato.
O pelotão saiu rastreando em sua captura.
José Leal corria, e a certa distância jogava-se no chão e atirava, levando
perigo aos perseguidores. Assim, foi até a costa do rio Prateado na entrada do
bosque. Ele foi baleado, o tiro veio de trás, a bala correu por baixo do couro da
perna, parando no joelho. José quando percebeu já estava dentro da mata, nas
margens do rio.
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Teobaldo Branco

A mata fora sitiada com rapidez e astúcia pelo comandante Antônio,


dois soldados colegas de guarnição, mais dois civis, Odorico e Graciliano,
exímios atiradores. José cruzou a mata, saindo do outro lado e defrontou-se
com o soldado Conceição; percebeu que estava com apenas duas balas na
arma, tentou surpreendê-lo. José Leal posicionou-se atrás de uma árvore como
trincheira. O soldado viu e gritou:
– José Leal, se entregue! É a polícia!
Em resposta José ameaçou-o dizendo:
– Se não quiser morrer neste fim de mundo baixe a arma, está em desvantagem,
visto à pequena distância, retire-se rápido, está sob a mira de uma arma.
– Calma! – falou Antônio Conceição.
– Soldado Conceição! Levante as mãos, porque senão leva bala.
– Certo José! Tá bom!
O soldado foi saindo de mãos levantadas. Sabia que não teria chance.
– Retire-se, mas não arrisque. Não desejo matar ninguém, apenas me
defender.
– Estou me retirando, José! Hoje você ganhou.
– Soldado Antônio! Vire-se e vá em frente sem parar. – ordenou José
Leal.
O soldado não teve outra alternativa, retirou-se com cuidado, por que
conhecia os maus elementos da região. Isso permitiu que José Leal entrasse
novamente no mato, depois saiu por uma vala grande, no meio de uma restinga,
e escondeu-se, dentro de um bueiro, numa estrada próxima. Dali fugiu para a
povoação Cel Merenciano, a uns 30 quilômetros, próximo ao município de Campo
Belo, onde permaneceu por alguns meses até curar-se.
Depois do acontecido José Leal contava que na ocasião, se fosse preciso
atirar, uma bala teria reservado para si, por que não admitia morrer pelas
mãos dos homens do governo.

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Além da Tocaia

A MISSÃO

A história segue a rotina do delegado Arcelino, em seu exercício profissional,


na sede da Delegacia, na localidade do Degredo. Ao meio dia preparavase
para voltar à Vila Nova, onde residia, para almoçar. Ele encilhava seu cavalo,
de pêlo baio, animal de montaria, bem tratado e de estimação, esperto e ágil,
quando andava na estrada era passarinheiro. O cavalo era realmente lindo,
usava um apêro de primeira qualidade, era um animal de montaria bem encilhado.
Naquela manhã o delegado recebia a visita de João Calone:
– Soldado Antônio! O delegado está?
– Oh! João Calone. Como vai o senhor! Como está a sua fazenda?
– Está bem, prosperando!
– O delegado Arcelino está lá dentro, no gabinete. Pode entrar! – Autorizou
o soldado.
– Com licença, delegado Arcelino!
– Entre senhor Calone! Por favor, tome um lugar, sente-se. Como vai a
lida da pecuária?
– Vamos enfrentando alguns problemas. Por isso estou aqui.
– Vamos ver que podemos fazer! Pode falar, Calone.
– No meio da minha fazenda têm três sítios, uns ladrões que passam me
incomodando. Vivem roubando gado de minha tropa. Não vendem e não saem
das terras, preciso fechar o quadro de minha propriedade. Quero que o senhor
faça uma busca de uns roubos em suas casas.
– Precisa registrar a queixa, senhor Calone! Depois agiremos.
– Delegado! Não gosto de fofoca, nem ser envolvido com gente baixa.
Se mandar um soldado, mandarei meu pessoal junto por garantia. Temos que
passar o chicote naqueles vagabundos, para que resolvam vender seus piquetes.

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Teobaldo Branco

– Senhor João Calone! Não faremos nada arbitrariamente. Todas as providências


devem ser dentro da lei, seja contra pobre ou rico. O senhor desculpa,
mas dessa forma não podemos agir.
– Olha, delegado Arcelino! O senhor é funcionário do governo e sabe
que temos poder aqui. Se o senhor trabalhar de acordo com os homens de bem,
estará de bem com o povo.
– Senhor Calone! Está ameaçando-me, por acaso? O senhor saiba que
sou autoridade policial público, não de grupos, Se concorda em registrar a
queixa nos conformes da lei, agiremos para averiguar o problema. O contrário
nada feito.
– Senhor delegado! Acaso está negando-se cumprir a lei.
– Não! Se for registrado nos trâmites da lei. Estamos prontos a averiguar
o problema, mas não simplesmente para atender seu desejo com o objetivo de
aumentar sua posse. A nossa função é cumprir a lei ao pé da letra.
– Pensa que sou homem de ajoelhar-me diante de alguém? Jamais! Vou
adiante. Fique com sua Delegacia.
– O senhor é quem sabe.
– Vamos ver quem manda mais!
– Veremos!
João Delfino Calone saiu da Delegacia, caminhando rápido, pisando
duro, soltando faísca de bravo. Os soldados Antônio Conceição e Manoel
Oliveira, que conversavam com um cidadão na frente da Delegacia, saudaram no
na saída, mas ele não deu resposta, apenas resmungou: “incompetente”. O
soldado Antonio entrou e falou:
– Mas, delegado Arcelino! Que bicho mordeu o senhor João Calone?
Sabe, Antônio! Esse é um dos aproveitadores por que é fazendeiro. Ele
pensa que tem o rei na barriga. Quer porque quer a posse das terras de uns
colonos coitados. O seu desejo é fechar o quadro de sua estância.
28

Além da Tocaia

– É, delegado Arcelino, o sol é para todos.


– Olha soldado Antônio! Os homens são capazes de escolher meios fraudulentos,
até criminosos para realizarem seus objetivos. Os acontecimentos denunciam
as influências nas decisões de autoridades sob pressão política, ou
econômica, que levam os homens a agirem indecorosamente, e muitas vezes vai
resultar em conivência com o estelionato e injustiça social, como fato real.
– Assim, repete-se diariamente a história das corrupções.
– Este fato que aconteceu aqui com o senhor Calone, ocorre em todo o
Brasil. Isto ocorre sob a pressão do poder, por causa do lucro.
– A nossa autoridade deve ser imparcial, custe o que custar. Sabemos
que toda a ação se reflete em registros da história. Se formos firmes a mudança
é uma consequência.
– Delegado Arcelino! Com essa postura arranjamos fortes inimigos!
– Certamente! Devemos estar preparados para isso. Prefiro estar do
lado da lei. Os fora-da-lei que se preparem, pobres ou ricos. Defendemos a
ordem de uma sociedade organizada, pretensamente justa.
– Olha, delegado Arcelino! Esse que saiu praguejando é perigoso aliado
de outros. Tenho medo.
– Soldado Antônio! A história do povo é construída de acontecimentos,
essa marca cultural influi em nossa vida atual. Sabemos que os atos do passado
influem hoje, em nossas ações. Se temos consciência a nossa obrigação é
tentar mudanças para o futuro. Por isso não tenho medo. Tenho uma missão e
pretendo desempenhar da melhor forma possível.
– É, delegado! É verdade!
– Entendo que a história está ligada a três elementos; o homem, a terra
e o tempo. O homem é o fator principal da história, pela organização política,
social e religiosa de qualquer povo. As organizações não dependem exclusivamente
da vontade do homem, ela está relacionada com as possibilidades da
terra e com a evolução do homem no tempo. Assim é que penso.
29

Teobaldo Branco

INCIDENTE DE SERVIÇO

O delegado de Degredo, o capitão Arcelino Furtado, participava pessoalmente


dos serviços policiais com dureza e intransigência pela lei. Certa vez
ocorreu o assassinato de um rapaz no povoado de Esperança, interior do distrito.
Os pais mais que depressa deram parte do ocorrido na Delegacia de Polícia.
O irmão da vítima estava em uma loja comprando roupas para o luto de seus
familiares. Naquele momento o delegado Arcelino compareceu com uma guarda
na casa comercial de Odorico Mantel, localizada na vila. Chegando lá encontrou
o referido moço armado com um revólver. O delegado percebeu e logo
chamou atenção:
– Moço! Você está carregando uma arma?
– Sim, seu delegado! Sou irmão da vítima, o assassino está solto por aí.
Esta arma é para defender-me. – respondeu Ernesto, o irmão da vítima.
– Você está fora da lei, por isso deve entregar essa arma. – advertiu o
delegado.
– Não posso entregar, ficarei desarmado, o assassino pode me matar. –
retrucou o Ernesto.
– Entregue a arma, ou darei voz de prisão. Ordenou a guarda: Prendam-no
– ordenou o delegado.
Os policiais se foram em direção ao moço armado, dentro da loja, ocasião
em que ele tentou uma fuga entrando na casa do proprietário. Um dos
guardas atirou no momento da fuga, acertando de raspão a perna do moço.
– Pessoal! Vamos atrás, não deixem que ele fuja.
– Podemos entrar na casa, senhor Delegado? perguntou um policial.
– Sim! Vamos logo, antes que ele escape. – respondeu o delegado.
O delegado entrou na casa comercial com seus soldados, alguns militares,
outros capangas ou da guarda civil. O dono da loja intervém no sentido de
acalmar a agressão. O senhor Mantel disse ao delegado:
30

Além da Tocaia

– Soldados! Por favor, fiquem aí, não entrem, comprometo-me a entregá-lo


– garantiu.
– Então, vamos rápido! – advertiu o delegado.
– Está aqui ele, não o maltratem. – falou a senhora Iracema, dona da
casa.
Durante o acontecimento, ocorreu um tumulto das pessoas presentes
na loja e da família, principalmente a presença de mulheres. O moço veio e
apresentou-se aos policiais. O próprio delegado dominou-o, levando-o a força
para o pátio, retirou a arma da cintura e posteriormente empurrou, o derrubando:
– Arruaceiro! Você anda armado por ser mau elemento. – falou um policial.
– Não roubei! Paguei com meu dinheiro! – respondeu o moço.
Dois policiais mandaram-no calar a boca, ao mesmo tempo deram-lhe
empurrões, fazendo-o rolar no chão.
– Por que bater no rapaz? – interferiu, o proprietário da loja.
– Em desrespeito à lei, pelo uso de arma e ofensa à autoridade. – respondeu
o delegado.
– O pobre rapaz perdeu um irmão e ainda apanha da polícia, isso é
injusto. – reclamou o proprietário da loja.
– Pessoal! Vamos atrás do criminoso. Moço! Vá em liberdade e cumpra
a sua obrigação. Depois do enterro do seu irmão compareça na Delegacia para
prestar depoimentos sobre a arma. – intimou o delegado ao retirarem-se.
– Aceitamos desarmar. Covardia, não! falou um homem presente.
– Sim! Deu um empurrão pelo pescoço do rapaz que rolou na terra. –
criticou outro presente no local.
– Claro! O delegado além de autoridade, é mais forte. Vocês observaram
a força desse diabo. – comentou uma senhora presente.
– O delegado estava armado, acompanhado de soldados e jagunços, por
isso dominaram e esbofetearam o coitado do rapaz. – criticou outro presente.

31
Teobaldo Branco

– Esse episódio é considerado como um ato de desagravo aos direitos


do cidadão, foi uma injúria, afronta à liberdade, ato de prepotência, de tirania e
crueldade humana. – lamentou o dono da loja.
Os tesouros do passado são os despojos da guerra. Isso significa que
todo acontecimento dos homens constitui uma história, que pode ser advertência
para a memória e lição para as relações dos homens no futuro.
AVISO
O capitão Arcelino Furtado era um delegado austero e enérgico, impunha-se
com bravura fazendo respeitar a lei. Ele tentava corrigir os abusos, atenuava os
excessos, mitigava os padecimentos públicos, querendo ser benéfico, equânime.
Como autoridade policial tinha qualidades de caçador de algozes com rudeza,
mas com a sutileza de seus instintos procurava ajudar e orientar os cidadãos.
O distrito era uma enorme extensão territorial em que Arselino Furtado
era subprefeito e subdelegado de polícia, ao mesmo tempo era administrador e
policial. Os cargos centralizavam todas as decisões administrativas e judiciais.
Era uma guerra ao tratar da disciplina do cidadão e dos direitos sociais.
O centro da atenção na época focalizava três elementos culturais predominantes:
a posse da terra e poder; o português perpetuado no continente,
índios e negros (trabalhador pobre) e os imigrantes (italianos, alemães e outros)
novos conquistadores de espaço.
O homem é o elemento principal da história, pela organização política,
social e religiosa de qualquer povo. A evolução não depende exclusivamente
da vontade do homem, mas a organização está relacionada com as condições
distributiva de riquezas e com o desenvolvimento do homem no tempo.
O referido delegado fora designado pela Secretaria de Segurança do
Estado do Rio Grande do Sul, a pedido de autoridades de Redenção, para
solucionar os conflitos regionais insuportáveis, concentrados no distrito de
Degredo, dentro de uma jurisdição regional. Ele já havia passado por várias
regiões desempenhando a função de delegado de Polícia.
32

Além da Tocaia

A região do distrito de Degredo era abrangente em área territorial, e ali


imperava a desordem, as injustiças, a corrupção e brigas em relação à posse da
terra; carecia de autoridade local para moralizar e controlar os sintomas da doença
política e econômica que deixavam sequelas profundas, com reflexos culturais.
O capitão Arcelino Furtado viera para comandar a Delegacia de Polícia e
da Subprefeitura, em que assumiu o posto interino. Na ocasião o senhor João
Delfino Calone, fazendeiro local, tomava conta da mesma.
Em seguida o capitão criou um grupo de Polícia Civil, composto de dez
homens, para apoiar os três soldados da Brigada Militar destacada, com objetivo
de controlar as desordens. Delimitou as linhas gerais de seu domínio,
elaborando um projeto de guerra feroz pela lei contra os desmandos existentes.
Surgia o ódio, infundia-se o terror de tirano entre seus opositores, uma aversão
com uma réplica de impopularidade. A propaganda contra ele aligeirou-se em
caricatura de mau, uma aura de aventureiro. O homem simbolizava o tirano
diante de seus correligionários de poder, não da lei. Os infratores migravam
para outras jurisdições, para não serem presos. Ele tornou-se figura impopular
para seus adversários políticos, fazia soprar os ventos do despotismo entre os
seus rivais do poder econômico.
Numa manhã:
– Candinho! Para onde vai?
– Bom dia, delegado Arcelino! Estou indo a Santa Fé, ao passar Centro
Novo vou descansar o meu cavalo, lá tenho parentes. Depois seguirei viagem.
– É! Um dia lindo para viajar, a temperatura está boa, amena.
– Sim, delegado Arcelino! Há pequenas nuvens no horizonte; a tendência
é de tempo bom.
– De fato! Sopra uma brisa, com tendência a desaparecer dando lugar ao
calor do sol, na maior parte do dia. – Quais as novidades, Candinho?
– De minha parte, tudo em ordem, delegado! – Assuntei num armazém
em Vila Nova, mas não consegui saber quem contra quem, nem quando. Sobre
uma tocaia. Não gosto nem de saber essas coisas.
33

Teobaldo Branco

– Candinho! Se soubesse poderia estar salvando uma vida. Onde foi e


quem ouviu falando? Podemos antecipar investigações de um crime.
– Olha, delegado! Quem eu ouvi falando são empregados de um fazendeiro,
não descobri seu nome. Conheço de vista, mas não sei os nomes.
– Tudo bem, Candinho! Você tem mais acesso a esses assuntos. Eu
permaneço dentro desta Delegacia, minha saída acontece somente a serviço.
As saídas são por motivo de encrenca, desacertos, violências, injustiças de
uns sobre outros. Só sei depois que acontecem as coisas.
– É, delegado! Peço licença, quero continuar a viagem, quero almoçar
em Santa Fé.
– Está bem! Está bem, Candinho. Vá com Deus.
Na Delegacia de Degredo, o delegado Arcelino encaminhava suas últimas
providências para voltar para sua casa, na Vila Nova. Entre a Vila Nova e o
distrito de Degredo havia uma mata fechada, que na beira da estrada formava
uma restinga de arbustos, com moitas de taquara, fechando um dos lados. No
decurso do trecho havia uma baixada sem visão de habitação, que se estendia
até as matas.
De repente o senhor Brasiliano Ferreira Escobar era um cidadão residente
e proprietário no distrito, exercia o cargo de inspetor, ao passar na Delegacia
avistou o delegado Arcelino que o cumprimentou:
– Bom dia, delegado Arcelino!
– Bom dia, senhor Brasiliano!
– Hoje está um lindo dia! Como será o final de semana? – perguntou o
senhor Brasiliano.
– Nunca se sabe! O futuro é incerto! Somente o amanhã saberá o dia de
ontem; o hoje nunca saberá o dia de amanhã. Hoje podemos ser; amanhã não
ser. Esta é teoria do tempo, senhor Brasiliano! – respondeu o Delegado.
– Certo! Mas a esperança fortalece o fato de vivermos mais e melhor. Por
isso, tenhamos esperanças no futuro. – contrapôs seu amigo Brasiliano.
34

Além da Tocaia

– Ah, Brasiliano! Admiro Vossa Senhoria pela sabedoria de suas palavras.


No entanto, um assunto me preocupa profundamente, pois ouvi alguém
falar que escutou conversa sobre uma tocaia no ar, cochicho num bar da Vila
Nova. Se o senhor descobrir alguma coisa, avise-me para que possamos evitar
alguma desgraça.
– Prontamente, delegado Arcelino! Tenho interesse na manutenção da
segurança das pessoas de nossa comunidade. Sabe! A sua designação para
este distrito fez bem ao povo do distrito. A sua pessoa ajudou a sufocar as
desordens, as anarquias, que perturbavam as pessoas de bem na redondeza. A
sua integridade em favor da lei tem um custo, mas tem mais honras e glórias. –
exclamou o senhor Brasiliano.
– Agradeço senhor Brasiliano! – disse o delegado Arcelino. – Vejo na
sua pessoa um amigo, pela liderança em favor da harmonia da família desta
jurisdição do Degredo, por ajudar como autoridade, sugerir idéias na formação
de nossa guarda civil no distrito, auxiliando os soldados da Brigada Militar, em
número ainda insuficiente. Fortaleceu o nosso esforço pela legalidade constitucional
de nossas leis. Mais uma vez, obrigado!
– Olha, delegado! A guarda civil acrescentou mais dez reforços aos
policiais. Isso significa uma força à repressão das desordens, contra os
desmandos de alguns que cometem injustiças. Sabe! O seu capricho em cumprir
a lei sem discriminar ninguém fortalece nossos ideais, senhor Arcelino. –
elogiou Brasiliano.
– A nossa vontade é pelo respeito ao cidadão de bem, este é um princípio
que impera em nosso sangue, pelo cumprimento da lei, a qualquer custo,
sem temer a ninguém. Olha, senhor Brasiliano! A minha vida se resume a cumprir
a minha missão como autoridade, sem medo; cumprir e fazer cumprir as leis
de nosso país, sem proteger e sem vingança contra ninguém. Estes foram sempre
os meus ideais. – declarou o delegado.
– Homens desse quilate são raros, delegado! Por outro lado, tem muita
gente que não gosta. Mas, mudando de assunto, como tem se comportado seu
cavalo baio? – perguntou o senhor Brasiliano, com um sorriso.
35

Teobaldo Branco

– Meu automóvel, senhor Brasiliano! – falou o delegado Arcelino. – É


um animal de estimação. Este cavalo é minha força, pois devo muito a ele, ao
deslocar-me para qualquer lugar a distância, vou e volto com rapidez. Ajuda-me
resolver problemas profissionais, em qualquer lugar de minha jurisdição. Posso
afirmar que permaneço mais em companhia do cavalo baio do que com minha
família. É difícil dizer, mas é verdade.
– Amigo Arcelino! O dever me chama, devo ir. Até amanhã. – saudou
Brasiliano.
Até amanhã, se Deus quiser. – respondeu o delegado.
O delegado Arcelino Furtado era um homem de porte médio, de boa
altura. Era de cor morena clara, de cabelos castanhos lisos, começando a ficar
grisalhos, usava corte comprido. Aparentava 50 anos de idade. Usava bigode
aparado, barba feita. Tinha a boca e lábios médios, proporcionais com a
fisionomia do rosto. Seus olhos tinham uma cor esverdeada; nem apagados de
morto, nem brilhosos de violento; encarava as pessoas olhando nos olhos ao
falar, parecia enérgico, refletia fidelidade e franqueza nas palavras e nos gestos.
O capitão Arcelino Furtado tinha uma postura física ereta no caminhar.
Quando andava a cavalo, o que fazia com distinção. Ele era um homem corpulento
e forte, possuía muita força física porque fazia exercícios diários para manutenção
da saúde. Era habilidoso espadachim, educado ao falar com as pessoas, tinha
nível, mas sabia ser duro com os perversos, desordeiros, não aceitava corrupção,
era um homem pelo direito, sendo por isso mal-visto por alguns, os donos da
colônia, que o consideravam um empecilho para os seus desmandos.
Ao descrever a passagem de uma história de onde se consegue ou se
perde a imagem real ou fictícia dos acontecimentos, a memória a reconstrói no
tempo, ao buscar nas fontes o nome de Degredo, assim denominado por ter
sido cenário selvagem de emboscadas naquelas estradas. Naquele tempo com
histórias de matanças, por brigas políticas e pela posse das derradeiras quadras
de campo daquela paisagem regional, no limite da serra, espaço ondulante
do território gaúcho, os homens que vinham já não encontravam um palmo de
terra por que já tinham dono.
36

Além da Tocaia

No calor da narrativa, tipos de má-fé, linguarudos e mexeriqueiros citavam


nomes com intencional culpa da falada tocaia. Muitos davam o valor à deslealdade
e intrigas, mas para a maioria do povo as notícias entravam por um ouvido e
saíam por outro. Um dia um tropeiro mascate com boas relações na região, cego
de um olho, ao salientar as vantagens de ser fazendeiro, em vista da extensão de
terras férteis ao pastoreio, num pouso descobriu um misterioso caso.
SONÂMBULO
No interior do município de Redenção, nas terras de Antônio Vitello,
amigo do delegado Arcelino, na localidade de Centro Novo, interior do 2º distrito
do Degredo, vivia um morador chamado Libertino Paz, cuja família era composta
de quatro filhos homens e uma filha, falecida ainda menina. Na sua propriedade
rural viviam a trabalhar com produção agrícola diversificada, também
possuíam um pequeno rebanho de gado, entre outros animais. A família vivia
na esperança de dias melhores.
Ocorria de tempos em tempos, um fenômeno misterioso no dia-a-dia
daquela família, mas pouco se dava importância, pois começava a entrar na
rotina e caía no esquecimento. Cada vez que ocorria o fenômeno o pai perguntava:
– Filho! Quem de vocês fechou o gado no piquete durante a noite?
– Não sabemos. Não foi nenhum de nós. – respondeu Jordão, mais
velho.
– Por favor, se foi por brincadeira, falem!
O filho mais velho da família acusava:
– Talvez, o Pedrinho.
– Não papai! Não fui eu. Só se foi o Jango.
– Eu não, papai! Não acuse sem ter provas.

37
Teobaldo Branco

Assim se repetia; o gado que anoitecia solto na invernada amanhecia


fechado num piquete, pequeno potreiro próximo da habitação, onde se recolhe
o animal para serviço diário. No outro dia era uma ciranda de perguntas: – Quem
recolheu o gado e encerrou na mangueira? Esse acontecimento misterioso causava
espanto às pessoas da família.
Certa vez chegou um mascate, ou seja, um mercador ambulante que
percorria ruas e estradas a vender suas mercadorias, objetos manufaturados,
tecidos, jóias, etc. O referido viajante chegou à delegacia do Degredo, e ali foi
orientado a pernoitar na casa de um agricultor, próximo ao povoado de Centro
Novo. Ao chegar à casa falou:
– Sou mascate! Vendo mercadorias, viajo por toda a região, agora começa
anoitecer e necessito de um pouso por esta noite!
– Não temos quartos especiais para hóspedes! Mas se aceita simplicidade
pode ficar, falou o dono da casa.
– Agradeço! Assim poderei mostrar minhas mercadorias com calma.
– Tudo bem! Vamos ver o que podemos comprar. Contamos com pouco
dinheiro.
– Podemos negociar! Parte do pagamento pode ficar para a próxima
visita. Agora gostaria de liberar os animais, os burros de carga. Alimentá-los e
dar água.
– Jango!
– Pronto, papai!
– Você e o Pedrinho vão ajudar o senhor mascate a tratar de seus burros
na estrebaria. Dêem água e tratem bem os animais.
Anoiteceu, jantaram e o mascate foi dormir no quarto dos filhos, numa
varanda de um galpão separado da casa, onde o casal dormia. Pela manhã, o
mascate perguntou ao dono da casa.
– O seu filho é sonâmbulo?
38

Além da Tocaia

– Não! Não que eu saiba.


– Esta noite eu observei o seu filho mais velho. Ele levantou e foi até a
invernada, onde o gado estava deitado e dormia. O rapaz acordou todo gado e
repontou recolhendo para a mangueira. Após fechar a mangueira voltou, deitou
e dormiu profundamente.
O dono da casa reuniu toda a família para desvendar o mistério que
assustava a todos durante muito tempo.
– Ouçam o que este homem contou! – Jordão, você se lembra de esta
noite, de ter levantado e recolhido os animais para a mangueira?
– Não, papai! Tenho certeza de que não levantei. Se isto aconteceu, sou
vítima de alguma coisa.
– Moço! – falou o mascate. – Sonâmbulo é a pessoa que anda, fala e se
levanta durante o sono. A pessoa enquanto dorme age automaticamente, de
maneira sem nexo e faz coisas inacreditáveis. Dizem que neste estado a pessoa
pode ter mais força ou poder sobre as coisas ou sobre outras pessoas. O sonambulismo
pode ser doença, mas neste caso deve ser influência de algum problema
emocional ou algum tipo de alimento consumido em excesso durante a janta.
– Pode ser comida! – falou a mãe – Eles comem muito na janta e vão logo
para a cama, comida pesa no estômago, dificultando a digestão.
– Então vamos mudar a janta! – interferiu, o pai – A janta deverá ser de
alimento leve.
– Senhora mãe! – falou o mascate. – O sonâmbulo age na ordem do
pensamento incoerente e faz coisas reguladas por si mesmo, sem intervenção da
vontade, ou da inteligência, pode agir pela força dos hábitos, involuntariamente.
– Mas pode ser doença?
– Olha! – falou o mascate. – Todos devem saber o que seja o sonho, não
é? É difícil entender o interior humano. Sonhar é viver noutro mundo, vendo
uma sequência de fenômenos psíquicos, através de imagens, representações,
atos, ideias e outros que involuntariamente ocorrem durante o sono.
39

Teobaldo Branco

– Senhor mascate! Psíquico é ligado às ideias? – se durante o sonho


não se pensa?
– Boa pergunta! Boa e difícil! – explicou o mascate. – Em poucas palavras
devo dizer que o objeto do sonho é a sequência de pensamentos, de
ideias, mais ou menos agradáveis, que tratam da vida sentimental das pessoas,
que o espírito se entrega em estado de vigília, geralmente para fugir de uma
realidade, como uma fantasia dos desejos humanos.
– Então, sonâmbulo e sonho são quase iguais? – perguntou o dono da
casa.
– Meu senhor! respondeu o Mascate – Na verdade nem eu sei, mas,
tanto um quanto outro é a exteriorização pelo inconsciente das expressões de
ideias e desejos dominantes perseguidos com interesse e paixão preservados
no interior das pessoas.
– Qual é o médico para curar essa doença? perguntou a dona da casa.
– Ah, sim! falou o mascate. – Quem trata da alma são os especialistas.
O trabalho mascate era vender e viver nas estradas percebendo os problemas
econômicos das pessoas, assim como o delegado Arcelino Furtado,
pela lei trabalhava farejando os desmandos, os infratores no seu distrito. Muitas
vezes montava em seu cavalo e sozinho deslocava-se rumo às investigações,
e para isso tinha bons informantes. E lá subitamente se fazia presente. Em
pouco tempo perpassava todos os recantos de sua jurisdição, passo a passo,
em todas as estradas e caminhos, vislumbrava a paisagem daquela terra, onde
desempenhava uma missão profissional, que era a da justiça.
Ali na estrada, bem próximo dele, no lado oculto estava se armando uma
tocaia com requintes maquiavélicos de interesse de alguns. O delegado era
considerado um intruso, havendo a necessidade de eliminar o obstáculo. A
forma mais fácil era ceifar sua a vida, porque ele estava dificultando os desenfreados
desejos de muitos.
O delegado apresentava-se como um homem simples, mas correto. A sua
postura na função do cargo era de elevada exigência, pouco sorria, era um tanto
nostálgico e de certa quietude. Ele revelava um tom enérgico como compulsivo
40

Além da Tocaia

profissional no exercício da autoridade policial, bem como na administração pública


da Subprefeitura. A mágica de sua imaginação vicejava nos corredores da
lei, cujo discernimento contava sempre com pronta e lúcida inteligência observadora
e solitária, em que despertava o seu sexto sentido. Ele era pouco simpático
pela forma quieta, áspera, ríspida e viril para com os seus rivais, que tentavam
burlar a lei. Os políticos e detentores do poder eram alvos de inimizades, porque
o delegado perseguia a justiça no sentido de extirpar a corrupção.
O capitão Arcelino Furtado percorria todos os recantos de seu distrito,
que era uma extensão enorme. Às vezes, por um motivo ou outro, ao andar em seu
cavalo, passo a passo, tudo o levava a conhecer as estradas e paisagens dos
campos e da serra da região. Em suas caminhadas solitárias refletia sobre a realidade
existencial do indivíduo como homem, família e instituições sociais, que se
desenvolvia num processo cultural. Participava e interagia nas relações sociais
quando chamado ou por necessidade de ordem pública ou de justiça. Ele comparecia
a todos os lugares em caso de denúncia ou por ordem de investigações.
BAILE
Certa vez houve uma denúncia procedente de alguns moradores de um
povoado do interior de Centro Novo. Naquela ocasião o fato ocorreu na casa da
viúva Palhoto. A ausência da velha mãe favoreceu o filho mais novo, ainda adolescente,
que convidou uma turma de companheiros para organizarem um baile.
Eles decidiram e aprovaram a ideia, bem como partiram para a organização do dito
baile. Estavam reunidos Setembrino, Pedro, Constante, João de Deus e Miróca.
– João de Deus! Você vai fazer os convites – ordenou Pedro, o filho da
casa. Nós vamos organizar a sala, numa varanda do galpão. Espaço maior e
para evitar problemas dentro de casa.
– Quem vai comprar bebida para molhar a goela? – perguntou o Miróca.
– Pronto! Apresentou-se, o Setembrino – Irei com o João de Deus, passaremos
no povoado e traremos o necessário, além do gaiteiro. E vamos avisar
o povo.
41

Teobaldo Branco

– Vocês deixem a sala limpa, com bancos e mesas nos cantos! – alertou
João de Deus.
– Então vamos, João de Deus! – convidou Setembrino – Vamos direto
ao povoado, lá encontramos mais pessoas, e podemos semear o aviso. Ao
mesmo tempo poderemos comprar a bebida.
– Setembrino! – chamou João de Deus – Devemos ter cuidado nos
avisos, pois o baile deve ser de forma quieta, sem alarme. Sabemos que se
alguém ouvir, seremos denunciados.
– João de Deus! – alertou o Setembrino – Aqui no povoado temos três
olheiros do delegado Arcelino Furtado.
– O Antônio Vitello, é um! – informou João de Deus – os outros são
apenas desconfiança.
– O Antônio, o Felipe e o ferreiro e também o sapateiro. Não tenho
certeza.
– O importante – falou o João de Deus – e trazer o Inácio Torresmo com
a gaita, sem ele não há baile.
– Vamos! Vamos avisar o Ponciano para que as filhas se façam presentes,
abrilhantando o espetáculo. – convidou Setembrino.
– O Ponciano vai! – alegou João de Deus – Ele é viúvo, com isso leva as
filhas, mais duas viúvas soltas, que se dizem da raça boa.
– Mas, João de Deus! – ironizou Setembrino – As danças no baile vão
ser conforme Adão e Eva?
– Sim! – confirmou João de Deus – Baile de damas soltas. Podemos
liberar as danças à vontade, enfim você é dono da casa, a sua mãe saiu, ninguém
precisa saber.
– Quero tirar os atrasados! – afirmou o Setembrino.
– Setembrino! – alertou João de Deus – Você é casado, não tem medo de
levar à breca seu casamento.
42

Além da Tocaia

– Voltarei mais cedo! – informou o Setembrino – Falei para minha mulher


de ia jogar bocha no povoado e depois cartas com meus irmãos. Ela não se
importa com as minhas chegadas tardias, é de costume.
– Olha, Setembrino! – alertou João de Deus – Não devia brincar com o
casamento. Eu sou solteiro, ainda assim tenho receio, por que o baile é na casa
de meus amigos.
– Não... Não! – respondeu, o Setembrino – Não te preocupe, sou puto
velho, e macaco não cai de pau podre.
– Missão cumprida! – alertou João de Deus – Podemos voltar, tomar
banho e nos preparar para o baile. Setembrino! – Desconfiei de alguns cochichos
na venda, enquanto comprávamos as bebidas. Parece que alguém sabia
sobre o nosso baile. Não gostei do tipo de cochichos. Tinha cheiro de denúncia.
Deu medo.
– Não percebi nada! – declarou Setembrino – Não temos inimizades,
será que alguém teria interesse em nos denunciar? Acho apenas desconfiança.
– Sou suspeito! – declarou João de Deus – Idéia preventiva. Tenho um
pé atrás com tudo. É meu jeito de ser. Você tem razão, Setembrino! Certo.
– Vamos voltar para casa!
– Pronto! – confirmou João de Deus – Vamos.
Os dois cavaleiros voltaram conversando sobre o baile, fazendo planos
e sonhando como que poderia ocorrer na noite de lazer. O baile não tinha
licença, nem pagamento de taxa ou imposto, com fim social e público para a
referida reunião dançante. Havia risco nos aspectos legais, pela sonegação, ao
mesmo tempo não tinha segurança das autoridades legais em caso de um incidente
ou desavença entre os participantes. Era um risco que os promotores do
baile corriam.
Houve denúncia, certamente de vizinhos. Alguém presenciou o movimento
da organização, de saída e chegada de gente na casa, desconfiou não se
sabe como, descobriu e levou até o povoado, por meio de elementos interessados
no assunto, a avisarem o delegado Arcelino, no distrito.
43

Teobaldo Branco

O baile iniciou-se no começo da noite.


O delegado Arcelino e seus soldados dirigiram-se até a casa do inspetor
local, João Cavalheiro, em Centro Novo, lá jantaram e depois foram para o local
do baile, em uma escolta de oito homens.
João de Deus, um dos promotores do baile, sabiamente antecipou a sua
saída do recinto. Deu um estalo de premonição em sua mente. Antes da meianoite
retirou-se a pé, pois era perto de sua casa. Na estrada encontrou homens
fardados, a pé. Os soldados interrogaram-no:
– De onde vem? A sua procedência?
– Venho de uma viagem, a chamado.
– Chamado de quem, que mal lhe pergunte?
– Minha madrinha, Mariana Coelho!
– Chamado para quê?
– Para ajudar a resolver um problema de uma moça que engravidou.
– Resolver problema de moça grávida! Resolver o quê? Por acaso não é
você o malandro que se aproveitou da moça de família?
– Não. Não lhes devo nada para ser ofendido!
– Então, ajudar no quê?
– Falar com o rapaz. Ele é meu conhecido. Fui ajudar a convencer o moço
casar ou assumir o compromisso com a moça.
– Conhece a moça grávida?
– Sim!
– É parente sua?
– Não!
– Por acaso sabe de algum baile pela redondeza?
– Se soubesse estaria lá. Os senhores sabem de alguma coisa?
– Não, não..., Obrigado! Inté. Boa noite.
44

Além da Tocaia

João de Deus respondeu aos soldados com firmeza e objetividade, safando-


se da denúncia.
Os soldados foram em direção ao baile. De surpresa o delegado Arcelino,
juntamente com sua escolta, sitiou e entrou na sala, deu voz de prisão a todos. Entre
os presentes, o Setembrino era casado, o Constante e o Pedro eram filhos da casa.
O delegado removeu o pessoal da residência onde era realizado o baile,
local situado no interior, e os conduziu para a sede do povoado de Centro
Novo. Todos os homens e mulheres do baile foram levados para dentro de uma
mangueira. Lá obrigou todos a dançarem em campo aberto, desde a madrugada
até ao meio dia, sob o calor do sol de verão, abrilhantado por uma gaita, ao
toque do rabo de tatu, sob o comando do delegado, seus soldados e capangas.
Em todos os episódios existem os espertalhões. Neste caso o João de Deus,
prevendo que seria denunciado e preso, voltou para a casa de seus pais, pegou
uma arma cano duplo, calibre 28, escondeu o seu cavalo e apetrechos de montaria,
saiu a pé. Passou na casa de sua madrinha, onde se alimentou e partiu em direção
ao povoado Cel. Merenciano, indo até a casa do seu irmão, que era casado.
No caminho procurou andar pelos desvios, evitando ser visto. Em certo
momento, numa estrada geral, avistou ao longe três cavaleiros, palpitou perseguição.
Os cavaleiros eram soldados. João de Deus saltou no mato, escondeu-se
entre as touceiras de arbustos fechados, preparado para lutar, decidido a não
se entregar se fosse descoberto pelos policiais. Entre os arbustos, na tocaia,
observava cuidadosamente; num instante pensou em proteção, lembrando da
carta de Santa Catarina que possuía, colocou-a na boca para tornar-se invisível.
Acreditou e deu certo.
João de Deus continuou a caminhada até chegar na casa do seu irmão.
Lá posto, mandou buscar seu cavalo, logo se dirigindo à cidade de Campo
Belo. Ele era ex-militar revolucionário de 32, com baixa há pouco tempo, portanto
conseguiu hospedagem em casa de militares, bem como alimento para seu
cavalo nas baias do exército.
Lá ele permaneceu por algum tempo, fazendo trabalhos diversos para
sobrevivência e posteriormente voltou a sua terra, ao povoado de Centro Novo.
45

Teobaldo Branco

Quem sabe o verdadeiro destino de cada um?


Sim! O homem, a terra e o tempo constituem um perfil de caminho diferente
para cada um; é difícil saber se é mais complicado conhecer o mundo dos
outros ou o seu.
O homem é o agente principal da história; ao nascer começa a construir
a sua e a história da civilização onde vive, pela organização política, econômica,
social, cultural e religiosa. Estas são as relações que determinam as ações de
crescimento e desenvolvimento da sociedade em curso. As organizações estão
relacionadas com a possibilidade de evolução do homem no tempo, na construção
da história.
Cada pessoa tem uma história e esta é constituída de acontecimentos e
sua importância está na influência que poderá exercer no futuro. Assim, os atos
do passado influem no momento em que se vive, e essas ações, por sua vez,
vão influenciar no destino de cada um, no grupo familiar ou social, do qual
pertence. A história marca alternância com períodos de transformações, requisito
para modificações na vida dos homens.
A grande transformação humana ocorre por uma série de desenvolvimentos,
pelas políticas de governo de cada época, que são projetos prioritários
essenciais, de cultura, social, economia, científica e outros, de forma justa para
o povo, com isto determinando expansões cíclicas, alterando o período
evolutivo de cada civilização.

AMOR PROIBIDO
Uma pequena fazenda situada no distrito do Degredo, no interior, de
propriedade do inspetor provincial de uma pequena região, chamado Germano
Lamarca. Era local de encontro para decisões políticas e de resoluções da população
local. O condado regional sob o comando do delegado Arcelino Furtado,
de sua província, era o distrito de Degredo, que pertencia à Comarca do
município de Redenção.
46

Além da Tocaia

O proprietário tinha uma família de muitos filhos, entre rapazes e moças.


Residia em sua propriedade no distrito do Degredo. Vivia com prosperidade,
próximo de uma nascente de água que havia em suas terras, gerando vida e
muita fartura. A terra era um meio de subsistência da família e de comercialização
de agropecuários para investimento econômico, crescimento e desenvolvimento
social das pessoas.
Certo dia chegou um cavaleiro em sua casa. Era uma tarde fria de
inverno, no final do mês de julho. Tratava-se de um irmão de Germano, que
veio da colônia velha. Este, ao chegar, muito gracioso, saudou com cortesia e
abraços:
– Germano! Como tem passado por estas terras?
– Muito bem! No início tive dificuldades. Mas, ao adquirir esta propriedade
fui nomeado autoridade. Estou merecendo respeito de todo povo daqui!
– Vejo que está em ascensão. Você construiu uma linda casa, galpões e
instalações para pecuária. Muito bem! Não conhecia tua propriedade. Olha,
gostei de ver meu irmão crescendo, é muito bom. Possui uma linda área de terra!
– É! Veja aquela colina, aquela é minha propriedade. A divisa desce pela
encosta do riacho, vai por aquela mata. Vou lhe mostrar os limites pessoalmente.
– Certo! Com muito gosto irei ver a área de suas terras. Vejo com bons
olhos este lugar. Talvez aqui por perto possa construir meu futuro.
– Veio para ficar?
– Vim com essa intenção! Lá, a bananeira já deu cacho. Pela minha idade
pouco consegui. Tenho que mudar de rumo.
– Olha, Amélio! Tenho terras para você trabalhar à vontade, até conseguir
o teu pedaço de chão. Fique na minha casa, terá o seu quarto, pode comer
na minha mesa. Posso ajudá-lo a conseguir uma propriedade para você no
futuro. Afinal, você é meu irmão mais novo.
– Serei grato! Aceito, Germano! Permite-me, quero cumprimentar os outros
da família, sobrinhos que estão chegando.
47

Teobaldo Branco

– Vá, Amélio! Tenho de atender uma diligência de um morador local.


Problema de vizinhança sabe! Teremos muito tempo para conversar depois.
Amélio logo foi tomando pé nas primeiras atividades, encontrou-se com
os sobrinhos, participava com alegria do trabalho e dos encontros de lazer.
Construiu uma roça para plantar e colher os primeiros frutos. Estava conseguindo
adaptar-se bem à família e às relações com o povo local, favorecido pelo
irmão. Ele já tinha conhecimento do meio ao visitar outros parentes na região.
Amélio era jovem, solteiro, de uma família grande, descendente de italianos,
veio da colônia velha na década de 30. Tinha outros irmãos com suas
famílias, que migraram para a região, que o levou a sair da serra e aproximar-se
dessas terras planas e férteis. Cada irmão vivia em localidade diferente, ele
conhecia a região ao visitá-los. O cavalo era o seu meio de transporte, uma
forma prática de percorrer distâncias sem perder o mapa das estradas e lugares.
Amélio, na casa do seu irmão, saía com seus sobrinhos, participava de
esportes, bailes e diversões. Jogava futebol com distinção, era um forte zagueiro,
sendo solicitado pelos times de futebol locais.
Seus sobrinhos: José, mais velho, tinha 20 anos, que o acompanhava
nos trabalhos; e nas diversões, a Bruna tinha 18 anos, a Laia tinha 14, a adolescente
da família. Certo dia:
– Tio Amélio!
– O quê, José?
– Vamos trocar serviço!
– Podemos, com todo gosto. Explique como vai ser.
– Hoje trabalho na sua roça, amanhã, sábado, preciso de seus préstimos!
– O que será?
– Preciso mandar um recado para a Camila. Quero dançar com ela no
baile de amanhã.
– Será que ela topa?
48

Além da Tocaia

– Bom! O recado tem uma proposta! Sei que ela cai na rede. Percebi nos
seus olhos a sua simpatia. Olhos pretos que nem cereja. Lábios grossos, de dar
inveja.
– Ah, sim! Você está de olho, senti firmeza, meu sobrinho. De fato é uma
menina de corpo cheio, um mulherão.
– Vamos devagar, tio Amélio! Ela é só para minha fisga. Cai fora.
– Oh, bem! Estou brincando. Então, o interesse é sério.
– De fato! Mas vamos ver o futuro, nada está definido.
– Oh, José! Amanhã à tarde vou visitar uma amiga e passarei na casa da
Camila, então direi o recado, certo?
– Conte-me tudo! Quem é a namorada, tio Amélio?
– Não! Estou visitando um amigo, mas como pretexto, de fato eu estou
de olho na irmã, a Marieta.
– Certo! Tio Amélio, vai em frente. A família é boa. Então vamos ao
trabalho.
– Acertado! Vamos.
Passavam-se os dias. Novos sonhos de esperança, perspectivas de um
futuro promissor no despertar da vida. As atividades agrícolas e pecuárias
eram a suas principais atividades da região. A população era de pequenos e
médios proprietários, cuja produção era diversificada: primeiro para subsistência
familiar; segundo, os excedentes eram comercializados. Na década de 30
emergiam as grandes revoluções sociais, levadas pelo impulso guerreiro dos
habitantes, que formavam o povo sulista e toda sociedade brasileira. Época das
revoltas, de revoluções de ideias, tempo que anunciava mudanças necessárias
na sociedade brasileira.
Uma noite Amélio encontrava-se no seu quarto, para um pequeno descanso
antes da janta, pois havia trabalhado em serviço pesado e cansativo. De
repente percebeu:
49

Teobaldo Branco

– Amélio! O que está fazendo?


– Bruna! O que quer? Vê que estou deitado descansando? Tomei banho,
estou esperando a janta. Hoje foi duro e pesado nosso trabalho. – afirmou.
– Coitado! Judiado de trabalhar! Vou contar para ela.
– Bruna! Não brinca! Ela quem?
– A Marieta! Toda vizinhança já sabe do seu namoro com ela.
– Olha! Existe algo, mas é passa-tempo. Você também tem interesse na
família, não é?
– Amélio! – vim-lhe convidar para sairmos hoje à noite!
– Onde?
– No tio Jango! Quero me distrair um pouco.
– Hoje!
– Hoje à noite, depois da janta, vai ter um lindo luar. Vamos aproveitar a
luz clara da lua. A Laia vai, nós três. Precisamos de um cavalheiro para nos
acompanhar.
– E os manos?
– Os irmãos são xaropes. Quero ir contigo.
– Está bem, vamos. Aos poucos recupero as forças gastas no trabalho
de hoje.
– Acertado! Vou ajudar a mãe tirar a janta.
– Certo!
Passaram-se alguns meses, Amélio continuava como filho da casa. Era
um moço elegante, sempre alegre, de estatura alta, seus cabelos eram escuros,
lisos e finos. Ele era esbelto, de boa aparência, cuidava de si, era asseado,
sempre cavalheiro com as pessoas, representava o homem maduro, de alta
distinção. Era sorridente, charmoso, o bigode bem aparado, olhos pretos, nele
havia postura de galanteador, sempre feliz, era simpático nas suas relações com
as pessoas e disponível na sociedade.
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Além da Tocaia

Amélio gostava de polenta com radiche e vinho nas refeições. Havia


fartura naquela casa, os alimentos eram feitos em grande quantidade, a carne
frita em panelão, mandioca, batata-doce, arroz e saladas, pois sua horta era
cheia de verduras, graças a participação de todos da família. A produção agrícola
diversificada e abundante em alimentos, sem falar no pomar de frutas, que
formava um bosque ao redor da casa. Todo o dia era uma festa ao redor da mesa
grande, onde sentava toda família.
Ocorreu um encontro num jogo de futebol, no qual Amélio contribuiu
para a vitória do seu time que ficou campeão. Depois das festividades todos se
dirigiam para suas casas, numa linha de moradores locais. Na hora da saída:
– Amélio!
– Ah, é você, Marieta!
– Quero que me acompanhe até minha casa. E aproveito para convidá-lo,
para jantar com minha família.
– Está bem! Há algo de importante?
– Importante! Podemos fazer acontecer. Você disse que me ama, não é?
– Sim! E sustento. Palavra de Marasca não nega. Não volta atrás. Espera
um pouco, porque vou buscar meu cavalo. Assim podemos ir mais rápido a
cavalo.
Amélio retirou-se, logo voltando com seu cavalo zaino puxado pelo
cabresto.
– Na garupa do cavalo, negativo! – retrucou Marieta: – Você vai puxando
pela rédea até lá em casa. Depois, para ir embora sem eu, pode montar a
cavalo, tá!
– Estou querendo roubar uma moça para morar comigo, e daí? Você vai
comigo?
– Ninguém me rouba! Vai para onde? – questionou Marieta.
– Consegui terra e casa para morar! E daí? – Olhou em seus olhos. – Vai
comigo, Marieta? – provocou Amélio.
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Teobaldo Branco

– Não! Quero casar de grinalda e véu. Assim não dá. Não há necessidade,
ou talvez você queira casar com a noiva grávida, seu maluco?
– Não, não... Tudo é brincadeira, com todo respeito, agora podemos ir a
pé, o cavalo vai puxado.
A Marieta era uma bela moça de cabelos pretos e longos. Tinha bons
modos e disposta, falava à vontade, era alegre e delicada. Suas mãos grandes e
macias, lábios cheios, olhos grandes, cuja aparência transbordava desejos de
vida. Ela era firme nas decisões, mas não deixava de ser uma mulher fina. Essa
jovem tinha paixão pelo Amélio. Naquela noite, numa mesa farta de comida, com
toda a família:
– Um brinde! Viva! Saúde e felicidade para todos! Que Deus abençoe
esta mesa. – falou a mãe de Marieta.
Amélio pensou na vitória do torneio de futebol, no qual seu time e dos
filhos da família conseguiram ser campeões. As pessoas da grande família estavam
com um copo de vinho na mão, confraternizando;
– Muito bem! – saudou o senhor Odorico Nilison, pai de Marieta.
– Um brinde ao Amélio! – anunciou Marieta ao seu lado.
– Que a felicidade acompanhe a todos nós! – brindou Amélio.
Houve um bate copos até que todos sentaram para começar a refeição
da noite. O pai da Marieta, já sentado, levantou-se novamente.
– Em nome da Marieta e da família, quero dirigir-me ao nosso simpático
amigo Amélio. Percebemos que nossa filha gosta dele, pergunto se de sua parte
há reciprocidade nessa amizade?
– Sim! – demorou um pouco: – Gosto da Marieta. Ela agrada-me e tenho
interesse. Em meu nome dou a minha palavra que terei todo respeito a sua
família. – confirmou Amélio.
– Esse namoro arrasta-se por um certo tempo. Sentimos, por outro lado,
que o Amélio manifestou interesse, sabemos que é um moço direito. Pergunto:
– Pode nos honrar marcando a data de noivado?
52

Além da Tocaia

– Tenho interesse, mas não pensei em casar. Gostaria de adquirir uma


propriedade com casa para morar. – respondeu o Amélio.
– Marcamos a data de noivado! – interferiu, Marieta – Depois pensamos
o que fazer.
– Tudo bem! Se for assim, concordo.
– Então o noivado será a semana que vem, sábado à noite, com uma
pequena festinha familiar. Esta semana serão providenciadas as alianças para
celebrar a festa. Certo, Amélio? – indagou Marieta.
– Certo! – confirmou o Amélio.
– Acertado! – reafirmou o senhor Odorico Nilison.
Assim passou-se uma semana, com expectativas entre as famílias para
comemorar o anunciado dia do noivado, o qual transcorreu com alegria e consolidação
de uma comemoração festiva. A data coincidiu com o primeiro ano de
estadia de Amélio na localidade. Era a primeira colheita, que muito prometia.
Certa vez, depois do almoço ao meio dia, Amélio estava deitado sob uma
sombra das árvores frondosas, quando ouviu:
– Amélio! Água boa e sombra fresca! Dormindo, seu moleque!
– Ah, é você Bruna! Com este calor o mundo está quente. Vim tirar uma
sesta na sombra e na brisa fresca, debaixo destas árvores. E daí?
– Vim conversar contigo! Dá? – sentou-se ao lado.
– Dá! Conversar o quê, por exemplo?
– Por exemplo, saber se você está feliz aqui?
– Muito! – Amélio olhou de canto e sorrindo – Se não fosse minha
sobrinha!
– O quê? Senão fosse minha sobrinha!
– Você é linda, Bruna! Se não fosse minha sobrinha eu casaria contigo.
– Mas, se... – Bruna deu uma risada – Você é noivo, certamente ama ela!
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Teobaldo Branco

– Nosso noivado é passa-tempo. Até que eu encontre uma donzela que


ame de verdade. E você está de namoro com Adão, irmão da minha namorada,
ama ou não ama ele?
– Amélio! Nosso namoro também é passa-tempo, até que eu consiga
quem amo!
– Quem você ama de verdade, Bruna?
– Um galã que está muito perto de mim!
– Entendi! Mas com este galã é proibido!
– Quem proíbe? O coração não obedece. – pegou levemente na mão de
Amélio – E você sente alguma coisa por mim?
– Ah! – Sentou escorando-se no tronco de uma árvore, baixou a cabeça
e disse: – Acho que você é muito bela, como uma santa. Você é um encanto.
– Meu Deus! Tudo isto! Então estava certa. Sentia a ligação.
– Certa de quê?
– Do nosso amor, um pelo outro.
– Bruna! Não importa o que sentimos um pelo outro, esse amor é proibido.
Você é minha sobrinha. Não pode haver nada entre nós. O que meu irmão,
sendo seu pai, irá dizer?
– Então tudo bem, não existe nada entre nós! Tchau. – Bruna levantouse
e saiu para as lidas diárias.
– Tchau! Tchau! – Amélio saltou e dirigiu-se ao trabalho de sua roça.
A memória pintava-lhe imagens, enquanto Amélio trabalhava e pensava;
as lembranças o harmonizavam. Ele sentia-se confortável em família. Às
vezes chegava a sentir felpas em sua reflexão, algo que vinha lhe angustiar, mas
o manto da natureza desfazia qualquer perigo.
À tardinha todos se encontravam em casa. Depois do banho vinha o
mate amargo, hábito do povo gaúcho, depois a janta. Na ocasião seu irmão
Germano falou:
54

Além da Tocaia

– Amélio! Quero lhe fazer um presente.


– Muito bem! Que presente? Estou curioso.
– A partir deste momento, o cavalo zaino é seu. Você é viajante e precisa
para suas caminhadas. Fique à vontade, aproveite, mas cuide do animal, é de
estimação. Do mesmo modo pode utilizar-se dos nossos utensílios para o trabalho,
animais e carroças, arados e tudo o que precisar.
– Olha, Germano! – levantou-se e apertou a mão do irmão – Fico muito
grato pelo presente e pela ajuda que está me dando neste momento, prometo
lhe retribuir em dobro quando puder. Quero esforçar-me para isto.
– Não se preocupe! Queremos que você vença na vida, arrumando seu
canto meu irmão, e seja feliz.
– Obrigado! Obrigado!
As pessoas da família, cunhada e sobrinhos presentes comemoraram
com uma salva de palmas. A dona da casa e responsável pela comida anunciou
a hora da janta.
– Vamos jantar, pessoal!
– Sim senhora! dona Lurdes! – respondeu o marido.
Estava uma noite memorável e aos poucos a lua cheia começava a emitir
uma luz cor de prata convidando todos a fazer qualquer coisa, menos dormir. A
Laia falou:
– José e tio Amélio! Vamos jogar baralho no tio Jango? Depois de lavar
a louça.
– Vamos! – respondeu o Amélio, e perguntou: – O José vai junto?
– Não! Tenho outro compromisso!
– Ué! Que compromisso?
– Preciso conversar com o Luiz sobre o quartel.
– Eu vou junto! – falou a Bruna.
55

Teobaldo Branco

– Então vamos! – respondeu a Laia.


Aqueles passeios eram feitos habitualmente algumas vezes por semana,
nas noites de temperatura amena e com luar.
– Amélio! Passe seu braço no meu ombro, como namorado! – Falou
baixo para a irmã acompanhante não ouvir.
– Você gosta? – perguntou.
– Gosto! – pegou na mão de Amélio, disfarçadamente e colocou no seu ombro.
– Eu também gosto! – respondeu, passando o dedo nos lábios de Bruna.
– Hoje quero roubar! falou Laia
– Cruzes, Laia! Roubar o quê? – espantou-se Bruna
– No jogo! No jogo de cartas! Estudei um golpe que ninguém vai perceber.
Nem vocês vão saber, porque é segredo do jogo. Senão deixa de ser segredo,
se alguém souber.
– Segredo é outra coisa, Laia! Não de baralho. Coisas que não se pode
contar, porque compromete. – falou a Bruna.
– Os meus são esses, por enquanto! Eu não tenho ainda os que comprometem.
– Estamos chegando! – anunciou Laia.
A cada semana a intimidade aumentava entre Amélio e Bruna, bem como
a liberdade de ação e de exigências, despertando cada vez mais a intensidade
amorosa e o calor dos desejos. Surgiram das sombras as réstias de um amor
proibido. Muitas vezes Amélio tentava frear seus impulsos, mergulhando no
trabalho para buscar uma alternativa. Não conseguia.
Seu ego construía cada vez mais forte para a imagem da fantasia colorida.
Sentia-se alienado e febril, escorrendo por todo seu corpo o murmúrio do
mar apaixonado. Via aquela flor, a mais bela do jardim. Ficava surpreso. Ele
mesmo se recomendava, mas, uma nuvem branca e muito alta elevava a fantasia
em sua homenagem, desde o sol do amanhecer ao poente. Aquele pensamento
permanecia como um encanto. Horas de trabalho, de repouso, no silêncio seguia
crescendo a árvore do bem-querer.
56

Além da Tocaia

– Amélio!
– Pronto, Germano!
– Amanhã você vai até o Degredo, de jardineira, buscar a santinha.
Contigo vão a Bruna e a Laia. Certo!
– Que horário, Germano? Deve ser de tarde, não?
– É, isso mesmo! Então se preparem ao meio dia.
– Está bem!
Era uma tarde quente de verão. Após o meio dia, eles foram até o distrito
do Degredo, onde ficaram esperando um coletivo que trazia passageiro. Foram
até a vila e por coincidência permaneceram sozinhos.
– Amélio, você é carinhoso! Ah! Como gosto de você!
– Bruna! Eu também gosto de você! Mas é pecado. Sabe que nosso
amor é proibido. E muito proibido. Estamos correndo risco.
– Eu sei! O que fazer? Você me ama, eu te amo. Você é meu tio, isso eu sei,
mas o que importa?
– Se você me ama, então me dê um beijo!
– Aqui? Alguém pode nos ver! Vamos procurar um lugar mais oculto,
disfarçar uma visita nos fundos dessa casa, e daí?
– Então vamos.
Assim, os amantes passavam os dias, falando baixo, comunicando-se
por gestos, era um cerimonial do amor proibido, era um sorriso, o gosto de uma
fruta, a brisa dos ventos, o sabor da lida no trabalho, as muitas indagações.
– Amélio, aonde vai?
– Vou tomar um banho no riacho! – Deu um sorriso malicioso – Quer ir
junto? Levo toalha e sabonete.
– Quero! Mas... Mas! Disfarce. Vai à frente, depois vou por outro caminho.
– Não acredito!
57

Teobaldo Branco

– Pode acreditar! – respondeu a Bruna.


– Estou saindo. Vou esperar ansioso, Bruna.
– Então vai e aguarde!
– Até logo!
Era um riacho rodeado de matas e distante, cujas águas tinham boa
profundidade. O local era um mundo perfeito para um encontro amoroso. Havia
sombras, era uma tarde de verão. Enquanto Amélio tirava a roupa para o banho,
ouviu um ruído, parecia alguém se aproximando. Foi verificar e viu que era um
cão da casa que o seguira. Logo a viu:
– Bruna! Minha linda! Estou te esperando dentro da água.
– Estou vendo. Será que devo? Não é pecado, Amélio?
– Pecado é maldade! Tomar um banho não tem maldade. Tire a roupa e entre.
– Não! Estou com vergonha.
– Vergonha do quê? Seu corpo é lindo. Garanto que não acontece nada.
Vai ser apenas um banho. Pode entrar. Palavra de tio.
– Se for assim, então entro, mas com roupa de baixo. Não é, Amélio?
– Não sei por quê? Eu estou pelado.
– Pelado é feio! Nu é mais bonito, não é?
– É verdade, então tira toda roupa. Ao chegar em casa não tem que
explicar. Onde andou, o que fez? Não é verdade, Bruna?
– Tenho vergonha de entrar pelada!
– Nua é mais bonito. Acho que você fica mais bela. Pode entrar.
– Então tá. – Tirou toda roupa e entrou de lado, escondendo as vergonhas.
– Venha! – admirado Amélio disse: – Que belo corpo. Sinto vontade de
te acariciar. Pele delicada. Seios volumosos. O seu corpo é uma perfeição, uma
obra de arte. – Amélio pegou em sua mão e a puxou para si, dentro da água e
falou: – Veja como a água está agradável. Agora me dê um abraço e um beijo.
Aqui no fundo. Venha!
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Além da Tocaia

– Amélio! Parece que estou num paraíso! Que sensação? Meu Deus!
Chegou disparar meu coração. Ai, que emoção. Deu-me medo.
– Sinto o mesmo! Bruna. Um arrepio no corpo. Acho que sei o significado
disso!
– O que significa?
– O arrepio no corpo significa amor proibido, pecado. Podemos ser
excomungados pelo padre e pelas nossas famílias.
– Meu Deus! E agora!
– Podemos fugir e viver em paz num outro lugar. Você aceita?
– Sim! Aceito. Não sei como.
– Bruna! Cada momento é um momento. Vamos aproveitar este. Depois
pensamos outros e no nosso futuro.
– Amélio! Espero que você saiba das coisas, ou não?
– Pode confiar em mim, não deixarei acontecer nada contigo. Garanto.
– Se for assim, tudo bem.
A cada momento as reflexões das idéias faziam emergir o contraditório: de
um lado a força dos desejos atraídos pela paixão, de outro, a censura moral que
não permitia a consumação de um amor considerado proibido, ante a realização
dos sonhos de jovens. A luta dos contrários criava um duelo entre dois mundos,
a hesitação de enfrentar a verdade, pelo medo da frustração, que iria causar
danos morais, físicos, psicológicos, reflexos de uma sociedade conservadora. O
processo amoroso entre Amélio e Bruna teve continuidade naquela relação escondida,
ilícita pelos padrões sociais e morais da época. Um pequeno descuido
que fosse flagrado por alguém da família poderia trazer prejuízos inevitáveis:
– José! Amanhã tem jogo de futebol. Vamos jogar?
– Onde?
– Na Cidreira! O Nenê vai junto. Vamos botar esse guri para jogar no
segundo time. Deve começar novo.
59

Teobaldo Branco

– Novo! O Nenê tem 16 anos. Já é marmanjo. Quase homem.


– Vou junto com vocês! – intervém a Bruna.
– Está bem, Bruna! Vamos juntos. De lá vamos até minha noiva, certo!
– Ela não ouviu Amélio! – falou a cunhada, Lurdes.
– Sim, Amélio! – gritou a Bruna – Também vou visitar o Adão, meu
namorado, na mesma família. – falou de outra repartição da casa.
– Eu vou jogar bocha! – informou Germano.
– Hoje sai todo mundo? – indagou Bolívar, filho de 12 anos.
– Não esqueçam das obrigações, os animais não podem passar fome.
Estejam na hora de tratar a bicharada em casa. – advertiu Germano.
Nos fins de semana era sagrado o costume religioso, quando todas as
famílias, católicas ou não, se reuniam nas igrejas para assistir a missa ou culto.
No interior os jovens e velhos combinavam encontros esportivos ou diversões
familiares. Era o futebol, jogo de bocha, ou reuniões dançantes nos domingos
à tarde. Ao anoitecer as estradas vicinais floresciam com a presença de pares de
namorados, ou grupos de jovens e famílias que se dirigiam as suas casas para
reiniciar nova semana de trabalho.
Amélio e Bruna regressaram para casa ao entardecer. Haviam permanecido
algumas horas com a noiva e com o namorado do outro lado de uma
coxilha:
– Marieta! Vou acompanhar a Bruna até ali adiante! – falou Adão, seu
irmão.
– Em também vou, Adão! Acompanhar o Amélio. – propôs Marieta.
– Marieta, você deve tirar leite! Já é tarde, melhor ficar.
– Então vamos até o portão da mangueira, para não descontentar ninguém,
Adão. – alternativa de Bruna.
– Temos muito tempo para ficarmos juntos! Não briguem... por nós.
60

Além da Tocaia

– Até domingo próximo! – saudou Amélio. Tenho que levar a sobrinha.


– Tchau... Tchau... Marieta! cumprimentou Amélio.
– Até sábado, Bruna!
Era uma paisagem no interior da serra com matas e descampado coberto
de plantações. Solo plano com ondulações características do campo, formava
baixadas onde tinha correntes de águas, rios ou sangas, riachos. As estradas
acompanhavam as linhas divisórias das propriedades, geralmente nos espigões
das coxilhas, às vezes ligavam-se com travessões; as estradas principais, onde
cruzavam canhadas e riachos, por pontes de madeira ou bueiro. Estava escurecendo
na estrada deserta.
– Bruna! Que belo anoitecer! Você nos meus braços!
– Vamos falar de nós, Amélio. Sou sua mulher há quanto tempo?
– Começou no final do ano, lembra? Estamos no mês de março. O que
faremos agora? Você está em meus braços, meu amor. O que pode faltar?
– Foi em novembro do ano passado. É muito bom, mas como vai ser o
nosso destino? Sinto uma angústia. Estou com medo.
– Está com angústia? Angústia do quê? Está doente, Bruna?
– Não! Já sei, Amélio. Passou o prazo das minhas regras. Será que pode?
Será que estou grávida? Estou perdida!
– Quando é o prazo?
– A semana que passou!
– Mas pode atrasar. Não fique triste, você não está grávida! Observe de
ora em diante, talvez se enganasse na data. Pode ser equívoco. Eu te amo e isso
é o que importa.
– Se eu estiver grávida, o que vai acontecer? Você não pode me abandonar.
– Ah! Nunca! Vamos, dê-me um beijo. Linda.
– Essas matas são testemunhas do nosso amor, Amélio!
61

Teobaldo Branco

– A natureza somente testemunha a verdade, não julga ninguém.


– Sei! Quem julga são as pessoas! Todo mundo, a sociedade. Aí que
está o problema.
– Quem luta vence! Devemos vencer.
– Acredito! Mas tenho medo de alguma desgraça.
– Acredita em Deus?
– Sim!
– Tenhamos fé!
Passaram-se algumas semanas. Germano recebeu uma visita de seu
irmão Leonardo, que pernoitou em sua residência. Depois da janta comemorativa,
era costume realizarem uma cantoria com degustação de bom vinho,
hábito italiano. Ao encerrarem com alegria a comemoração familiar todos se
recolheram para dormir. Leonardo viu seu irmão Amélio no escuro, beijando
Bruna, pegando nas intimidades com liberdade, de modo denunciador. No
outro dia:
– Amélio! Venha cá. – esperava-o no pátio.
– Pronto, Leonardo! – foi em direção ao irmão.
– Desejo falar contigo! Mas vamos sair daqui, para que possamos conversar
com liberdade, certo?
– Está bem! Vamos!
– Vamos ver as suas roças, Amélio. Vamos pela estrada.
– Agora pode falar, Leonardo! Qual é o assunto?
– Amélio! Quero que seja sincero comigo! Responda-me, você anda
comendo sua sobrinha Bruna, sim ou não?
– O que é isso, Leonardo! Por que me pergunta isso?
62

Além da Tocaia

– Porque vi com meus olhos, você e a Bruna no escuro ontem à noite.


Por favor, não encubra nada. Fale a verdade! É coisa muito séria, Amélio. Alguém
me alertou. Os teus vizinhos, por isso eu vim; observei e comprovei a
verdade. Como fica o Germano, nosso irmão, quando saber da verdade? Não
sabemos a sua reação, tenho medo de um desatino.
– Leonardo, é verdade. Baixou a cabeça, olhando para o chão – Quando
vimos não havia mais volta.
– O que você quer dizer, não há mais volta?
– Ela está grávida!
– Meu Deus! É pior do que pensava, Amélio! Que enrascada! Pensei
que não fosse tão feio o problema. Logo na casa do teu irmão. – Balanceou com
a cabeça de um lado para outro. Quietos eles caminharam longo tempo – O que
pretende fazer, Amélio?
– Assumir a responsabilidade!
– Como? – gritou.
– Calma, Leonardo! Penso em fugir e viver com ela longe daqui. Estou
aguardando um negócio. Estou vendendo a minha planta na roça. Pego algum
recurso e fujo com ela. Sou novo e forte.
– Amélio! Quero ajudá-lo. Vou para casa e pensarei numa solução. Vocês
disfarcem, disfarcem... Voltarei, até logo.
– Até logo.
A privação de um amor proibido parecia uma maldição, a inquietação
espiritual os tornava temerosos, como se fossem o vendilhão do templo. As
coisas começaram a se tornar assombrosas, todos os dias e noites eram abatidos
por um temporal.
Leonardo foi embora e logo mandou chamar seu irmão Germano e contou
sobre a relação do tio com a sobrinha. Alertou que toda vizinhança sabia,
menos os pais e familiares. Estava disposto a casar para reparar o que fez.
63

Teobaldo Branco

Era uma tarde ameaçadora de chuva. Germano saiu e pernoitou fora de


casa. Na propriedade de Leonardo:
– Bom dia, Leonardo! Vim atender seu chamado. Fiquei preocupado,
pois o mensageiro disse que devia ser urgente, por isso vim.
– Muito bem, Germano! Como vai a família?
– Tudo bem! Ficaram trabalhando. Os teus como estão?
– Bem! Estão num mutirão. Eu fiquei em casa. Marasca não é do serviço.
Sabemos que mandar é melhor, não é Germano?
– É! De fato. – Sentou-se sob uma sombra aguardando Leonardo fazer o
mate tradicional.
Naquela tarde falaram sobre a família, seus pais e irmãos das colônias
velhas. Planejaram incentivá-los virem para esta região devido à planície e
fertilidade das terras. Depois da janta:
– Germano, vamos sair para ver o tempo? Parecia que ia ser uma noite
chuvosa, mas limpou, vai haver sol amanhã.
– Ah! Quem fala no tempo mente! Mas Leonardo, por que mandou me
chamar? Algum negócio? Deu uma risada – Espero que seja bom para mim.
– Germano! Desculpe-me. O assunto é um pouco constrangedor. Mas
quero que você compreenda a minha posição.
– Fale... Fale! Que assunto misterioso! Pode falar, vamos ver o que se trata.
– Olha, Germano! Silenciou um pouco e disse: – Recebi uma denúncia,
fui ver e comprovei, por isso estou lhe falando. Trata-se do Amélio.
– Do Amélio? Abre o jogo logo. O que está havendo com ele?
– Ele está envolvido com a Bruna.
– Está brincando! O meu irmão? Não acredito. Explica direito.
– Germano! Eu fui, vi e comprovei a verdade. A Bruna está grávida do
Amélio.
64

Além da Tocaia

– Eu mato esse infeliz! Desgraça na minha família! Não pode! Agora


mesmo vou acabar com esse traidor. Não respeita a sobrinha. Vou acabar com
os dois. Leonardo, você tem certeza do que está me dizendo?
– Sim! Falei com o Amélio. Ele vai assumir, quer casar com a Bruna.
Germano, o mal está feito e pronto, vamos ver o melhor caminho. Você não tem
culpa, não pode estragar a sua vida e de sua família. Além do mais, o Amélio é
nosso irmão. Você não pode ser condenado por matar um irmão.
– Lavar a honra, não é crime.
– Não é assim! Se isso acontecer, vai para julgamento. Germano, você é
uma autoridade. Não cometa desatino. Sei que é calmo e inteligente. Devemos
ficar quietos, sem alarme, nem os teus podem ficar sabendo. Mande tirar, ou
então faça casar.
– Não esperava isso do meu irmão! Mas, se o mal está feito, ela também
é culpada. Olha, Leonardo! Agradeço a tua consideração. Obrigado. Vou para
casa resolver o problema.
– Boa sorte! Use sabedoria, Germano. No caminho pense com calma e
haja corretamente.
– Obrigado!
A viagem de retorno foi monótona durante horas e horas a cavalo, chegou
em casa no calor do meio dia. Germano chegou e dirigiu-se ao seu irmão,
intimou-o a acompanhá-lo, longe da presença de familiares, na área da propriedade.
Agredido em sua nobreza moral de pai e de autoridade, manteve o controle
com seu irmão e com a filha Bruna. Encarou o irmão com ferocidade, de
revólver em punho.
– Eu amaldiçôo essa ingratidão e desrespeito de um irmão, que foi acolhido
em minha casa com carinho e consideração. Engravidar sua sobrinha
menor!
– Eu gosto da Bruna, ela tem 18 anos, por isso quero casar-me com ela,
com isso reparamos tudo, Germano!
65

Teobaldo Branco

– Cala a boca, canalha! Levou a arma (um revólver calibre 38) a testa de
Amélio, engatilhou, colocou o dedo no gatilho – Você merece uma bala! Covarde!
Ingrato com teu próprio irmão. Saia desta casa agora, traidor. Senão te mato.
– Germano! Por favor... Por favor. – Apavorado, afastava-se devagar,
mas a mira do revólver em punho o acompanhava, ora em direção à cabeça, ora
no peito – Me perdoe! Nunca desejei mal nenhum a você, ou a sua família,
quero reparar o que fiz. Meu Deus! Calma! Sou teu irmão, filho dos mesmos
pais. Um irmão mais novo. Nascemos juntos.
– Não confunde teu tempo e espaço com o meu! Arraste-se pelo que fez,
traidor. Você feriu a sua própria consciência e deverá pagar pelo que fez. Que
espécie de homem é você? Vai ter um filho com a própria sobrinha, ela ainda
menor! Pense, Amélio!
– Germano! Sou teu irmão de corpo e alma, que pensa, tem emoção e
sentimentos, por isso podemos resolver com amor, não com ódio. Desejo reparar
esse mal casando com a Bruna. Iremos embora. Assumo tudo.
– Meu irmão, meu genro! Pouca vergonha! Você não aprendeu a lição de
nossos pais sobre respeito. Diz-se conhecedor da vida, não poupa nem a sobrinha,
seu mau caráter. Merece uma bala.
– Germano! Não... Não, por favor! Se você me matar termina tudo. Quero
ajudar a solucionar o problema! Meu irmão, liberte o teu pensamento! Entenda! Com
violência não se consegue estrada limpa. Eu assumo, não importa o que somos.
– Vou acertar com a Bruna, essa cadela, puta. – falou Germano. – Dentro
de uma hora não quero lhe encontrar em minha casa. Se isto acontecer será um
homem morto.
– Por favor, não cometa uma leviandade, será ruim para todos. Ninguém
está fugindo da responsabilidade, Germano! Por favor, calma! A Bruna não
cometeu crime contra ninguém.
– Junte teus pertences e suma para longe. Espero que meus olhos não te
vejam nunca mais para o resto da vida. Irá pagar o que fez! Saia... Saia de perto
de mim! Ande... Ande! Senão te mato.
66

Além da Tocaia

Amélio retirou-se da casa. O desencontro aconteceu numa tarde quente,


logo após o meio-dia. Germano havia chegado de viagem da casa de outro
irmão. Chegou e silenciosamente retirou Amélio para os fundos de sua residência,
sem a presença de familiares, e realizou seu último acerto, afastando-o
definitivamente de sua vida.
A gravidez de Bruna ficou em sigilo, escondida dos demais membros da
família. Ninguém sabia de nada.
Na tarde que Amélio despediu-se da família para ir embora, todos ficaram
admirados, sem entenderem. De um dia para outro, ou na mesma hora, uma
resolução precipitada sem saberem o motivo. O caso tornou-se estranho, pois
se sabia que ele iria ficar até comprar sua propriedade.
Alguém notou o semblante tristonho de Bruna no momento que Amélio
saiu do pátio da casa. Ele partiu a cavalo, a passos lentos, devagar, sem
destino, para uma imagem sem volta. Várias vezes ele virou para trás a olhar,
com uma expressão pálida. A sua despedida foi como deixar parte do seu ser,
que morria para sempre. Ela, com olhos longínquos no espaço, algumas lágrimas
que vêm da alma rolara por seu rosto, não escondia a tristeza petrificada
no coração, aquela imagem insensível e fria, tornando-se, um ato desumano e
cruel, vendo sumir alguém pela estrada a fora, até desaparecer no horizonte
sem fim.
O tempo para quem saía e para quem ficava tornou-se infinito. Ela parecia
uma flor que começava murchar; visualizava pela abertura de uma janela, de
dentro de casa, escorada num armário da cozinha, como se estivesse sentindo
algo, uma despedida para sempre do seu amado, do seu sonho, mais ainda, do
pai de seu filho que escondia no ventre, e escondia das pessoas da família.
Aquele amor proibido.
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Teobaldo Branco

O DISTRITO

O distrito de Degredo expressava na sua vasta extensão territorial os


abrangentes campos e serras coloniais, com vários povoados na sua jurisdição.
Enquanto sede distrital, o Degredo representou um passado de epopeia, o
presente lembra com saudade e esplendor a contemplação dos desbravadores
que abriram caminhos com suas obras e ideias, que merecem elogios e aplausos
pela sua história. O evento principal e brilhante era destaque pela imaginação
monumental erguida na vila, praças, escolas, igrejas, identificando o progresso
de um novo tempo.
Em certos momentos a situação política da época, no governo de Getúlio
Vargas, transformou o Degredo durante algum tempo, em que a capacidade
administrativa dos pioneiros no exercício do poder era vista e admirada; o povo
em sua miscigenação cultural constituía o orgulho da população; com o desenvolvimento
não pode faltar a corrupção do dinheiro público que fazia desaparecer
com o passar do tempo. Essa ambição era uma das razões para os conflitos.
A sociedade desenvolvia construções arquitonicamente esplêndidas,
casas, igrejas, clubes belamente proporcionados. O magnífico templo católico,
orgulho da coletividade, estabeleceu-se como paróquia no povoado de Centro
Novo; símbolo da fé e do idealismo dos valentes; pioneiro do tempo e da
civilização, lembranças do degredo, assim como dos inconfidentes pela libertação,
representado pelo mártir Tiradentes.
Os escritos recordam a fase de civismo, lições de história, exemplo para
as gerações vindouras. O Brasil inteiro pode contemplar o clarão refulgente da
face desta comunidade nascida num longínquo dia de paz, bonança e
fraternidade entre os homens.
O passado revelou episódios onde os corpos mergulhados em tragédia,
uns morreram com a arma na mão, em defesa do civismo, da cultura e da justiça,
projetos do tempo; outros tombaram de cabeça erguida pela liberdade e soberania
dos homens, numa luta política defendendo interesses, cenas de impacto
no tempo. Compreendeu-se que vários extermínios significavam o fim, alternativas
de solução, porque não havia meios de os homens prosseguirem juntos.
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Além da Tocaia

As pessoas continham sua aflição no peito, não demonstravam a ninguém,


o clamor psíquico da ambição e poder, que sem querer estavam repassando
às gerações vindouras.
Cada povo fala, edifica templos e cidades, cultiva os campos, constrói
casas e utensílios a sua maneira, dentro de padrões e estilo próprios de sua
realidade, desde suas origens, para a formação cultural de um universo social. A
vida da população de Degredo estava no sonho de sua liberdade, que constituía
a esfera essencial da sua expressão espiritual, produzindo efeitos múltiplos de
comportamentos, caracterizando as relações do homem com o poder. Assim eram
os princípios e verdades dos ideais pressupostos da sociedade na época; um
tipo de origem cultural em formação, onde se expressava a alma humana.
ENCONTRO
A presença das pessoas em missas e festas promovidas pelas igrejas
expressava o ideal religioso do povo. A igreja católica do distrito realizou uma
festa comunitária num domingo de primavera. A abertura ocorreu com uma
missa e o restante do dia com comida, bebida, jogos e música para animar o
povo. As festividades eram apreciadas até pelas comunidades vizinhas.
Aquele dia Nádia, a filha do delegado, uma adolescente, mas já adulta
em altura e maturidade. Estudava num internato de freiras, estava de férias e
presente na festa. Lá, um jovem encantou-se por ela, pois a sua formosura
despertava galanteios dos jovens locais. Leone, o filho de um dos líderes do
distrito.
Depois da missa o Pe. José saiu da igreja:
– Nádia, como está?
– Bem, Pe. José.
– Você está uma linda moça!
– Obrigada, Padre.
69

Teobaldo Branco

Naquele momento Leone aproxima-se e interfere:


– Pe. José, concordo com o senhor!
– O que filho!
– Ela é uma linda moça.
– Há! Obrigada.
O Pe. José apresentou-os, indicando com a mão e dizendo:
– Nádia, Leone. Leone, Nádia. E, pediu licença, dizendo: – um dia abençôo
vocês, o dever está me chamando e retirou-se, deixando os jovens a conversar.
– Como está a festa, Nádia?
– Linda! Ah! Festa é lazer, sempre é bonita.
– Nádia! Você pouco aparece nesta comunidade, não é? – perguntou
Leone.
– Eu estudo fora. Por isso permaneço fora de casa. – explicou.
– Sabemos que você estuda fora, mas onde?
– Estudo na cidade de Três Maria, num internato religioso, de freiras.
– Ah, bem! – Você pretende ser freira? – perguntou Leone.
– Não! O curso é de normalista.
– Normalista! Depois vai fazer o quê? – perguntou.
– Depois de formada vou lecionar. Estou estudando para ser professora!
– Que linda professora!
– Você acha?
– Acho, sim. Que professora bela os alunos vão ter!
– Como é seu nome?
– Meu nome é Leone Giardino.
70

Além da Tocaia

– Ah! Você é filho do comerciante Giardino?


– Sim! Estou gostando de sua companhia. – Nádia! Seus cabelos são
lindos. Como uma potranca em campo bravio.
– Falei para minha mãe para cortar, estão muito compridos, mas...
– Mas, nunca! Os seus cabelos são lindos como os de uma deusa. São
longos e pretos fazendo contraste com sua pele branca, é um encanto. Acho-a,
a mais linda da vila.
– Você acha mesmo, Leone? Você apenas acha, ou está me cantando...?
Ao retirarem-se conversando para os arredores encontraram dois jovens
namorados. Saudaram-se jovialmente:
– Leone! Que linda menina, parabéns! – saudou Luiz Carlos.
– Luiz Carlos e Isaura! Apresento a Nádia minha amiga.
– Prazer! Prazer!... Somente, amiga, Leone.
– Sim! Por enquanto, estamos nos conhecendo. – respondeu Nádia.
– Nádia! Já a conheço, é filha do delegado? – perguntou Isaura.
– Sim! É filha do delegado. – respondeu Leone.
– Então o Leone está com respaldo da lei. – brincou Luiz Carlos.
– O papai não tem nada a ver! – intervém, Nádia. – Nós devemos ser
independentes do que são nossos pais.
– Brincar faz bem! – respondeu Luiz Carlos. – Isto é o que estamos
fazendo. Concordo plenamente contigo. Somos uma nova geração e devemos
mudar o destino do mundo.
– Como é seu nome todo? – quis saber Nádia.
– Sou Luiz Carlos Bronze. Este é meu nome inteiro. Sou amigo da
família do Leone, conheço seu pai. Estimo-o e espero ter uma amizade duradoura.
71

Teobaldo Branco

– Meu nome é Isaura Fontana, nasci neste distrito, conheço todos daqui.
Desejo ser sua amiga no futuro, somente, para unir nossas forças contra
esses anjinhos.
– Como está a festa? – perguntou Leone.
– Encontramos um camarada vomitando atrás de uma árvore. Falava
somente no Hugo... Hug... Hug... – ironizou Luiz Carlos.
Todos riram da simulação de vômito que Luiz Carlos dramatizou. Um
grupo de jovens alegre e brilhante achava graça de qualquer coisa. Logo saíram
em rumos diferentes, mas próximos do pátio onde se realizava a festa da igreja.
– Nádia! Quanto tempo falta para te formar?
– No fim deste ano estou formada!
– E daí? O que vai fazer, para onde vai? – perguntou Leone.
– O meu desejo depois de formada é pegar o diploma de professora, vir
para casa, pois sou única filha, ficar um pouco com meus pais. Depois arranjar
uma escola para lecionar.
– E depois?
– E depois não sei! Aguardar o futuro, para ver o que está escrito no
destino para mim.
– Nádia! Desejo continuar a ter contato contigo, mesmo que seja por
carta. Se for de seu agrado! – propôs Leone.
– Se for de interesse, podemos continuar.
– Nádia! Gostei de você desde o primeiro momento que meus olhos
pousaram sobre sua pessoa. Senti que você vai fazer parte do meu destino.
– Olha, Leone, sinceramente, você encantou-me também, mas vamos
devagar. Entendo que devemos nos conhecer mais e melhor, mesmo porque
devo me formar, para depois decidir nossa relação no futuro. Mas, de qualquer
forma, podemos continuar em contato durante as férias, ou então por carta.
72

Além da Tocaia

– Nádia! Se você permitir posso ir até o internato em Três Maria, pois


seguidamente vamos até lá, com fins comerciais. Daí eu posso numa dessas
viagens conversar contigo, ou até levar alguma coisa de seus pais, ou trazer
recado seu para eles.
– Leone! Boa ideia. Mas o que você faz?
– Ajudo meu pai na casa de comércio e na fazenda, criação de gado,
ovelhas e cavalos, mas principalmente meu trabalho de responsabilidade é na
loja. Estudei pouco, cursei o primário, sei ler, escrever e fazer conta, para ajudar
a administrar nossos bens, digo, do papai.
– Sim! Já conheço de nome seu pai. Ele é uma pessoa de influência no
distrito. Assim como outras pessoas importantes, aqui, a gente sabe pelas
notícias de outras pessoas. – falou Nádia.
– Nossos pais não têm nada a ver conosco, Nádia! Confirmando o que
você afirmou há pouco, se são ricos ou pobres, autoridade ou não, a nossa
amizade deve ser independente.
– Certo, Leone! Mas o que pretende ser no futuro, qual teu sonho
maior?
– Casar contigo!
– Não! Bobão! Fale sério.
– E você?
– Eu, também! retrucou Nádia.
– Também o quê? Explique melhor. Quero saber tintim-por-tintim.
A festa religiosa marcou o início da amizade entre Leone e Nádia e seguiram-
se os encontros. Ambos os jovens começaram a rir e brincar, descobrindo
os segredos de um amor que estava no berço. Um romance que nascia com
força dentro da realidade imaginaria destinada a uma vida desprovida de preconceitos,
de interesses políticos, econômicos, presentes na sociedade,
identificada apenas no sonho do amor.
73

Teobaldo Branco

Alguns dias depois eles se encontraram na loja:


– Nádia, bom dia! Que bom vir aqui, como está?
– Bom dia, Leone! Vim fazer algumas compras para minha mãe. Eu sinto-me
bem, obrigada.
– Você gostou do nosso encontro na festa de Igreja?
– Gostei, Leone! – Riu expressando alegria: – Aquele momento eu não
esquecerei. – disse Nádia.
A loja estava deserta, então Leone afagou suas mãos, do outro lado do
balcão, lenta e carinhosamente, enquanto contemplava seus olhos e depois
voltou a afastar-se com modos de cavalheiro. Nádia foi invadida de emoção
pela recepção carinhosa do jovem. Ela se encantou tanto que chegou a sentir
um sobressalto nervoso, refletindo um descompasso no seu coração, talvez
pela sua timidez e até alterasse o tom de voz. Um curto espaço de silêncio segue
com um momento formal de declarações:
– Nádia, gosto muito de você!
– O que quer dizer?
– Eu te amo Nádia. Gostaria de saber e você?
– Olha, Leone! Você é único para mim. Acho que te amo. Conforme te
disse; quero primeiro me formar, mas isto não impede de mantermos relações de
amizade.
– É claro que devemos nos encontrar. Nádia, dia e noite vejo a tua
imagem. Quando vai para o internato?
– Em março. Temos muito tempo para encontros, não é?
– Sim! Não quero perdê-la.
– Mas você não vai me perder. Por que motivo?
– Não! É uma forma de expressão, gosto muito de ti.
– Então arruma minhas compras porque preciso ir.
74

Além da Tocaia

– Muito bem! Agora está tudo pronto. Quando volta?


– Muito breve, aguarde! Até logo.
– Até logo.
Estava começando uma história de amor entre dois jovens, que de repente
transformavam-se em personagens de um lindo romance. As famílias de
uma pequena vila eram dominadas por valores e ideais, que governavam o
espírito comunitário e influenciavam na educação da nova geração. Os jovens
necessitam de solidariedade e admiração para sustentarem as paixões, realidade
que faz parte da vida de cada ser humano.
Leone e Nádia continuaram como um instinto de sinceridade que entrava
pela janela em seus destinos.
Ao chegar em casa a mãe de Nádia perguntou:
– Quem de atendeu na loja?
– Mãe! Quem me atendeu foi o Leone.
– Eu sabia!
– O que a senhora sabia, mãe?
– Nádia! Você anda caída por esse rapaz, não é verdade?
– Mãe! Ele é simpático.
– Você está namorando, conte para sua mãe.
– Ainda não, mas meio sim.
– Nádia!
– Mãe! Sim. Por que essas perguntas?
– Nádia! Existe uma rivalidade do seu pai com o pai desse moço na
Delegacia, por fofocas.
– Leone disse que nosso amor não tem nada a ver com intrigas de
ninguém, ele disse que me ama.
75

Teobaldo Branco

– E você?
– Eu também o amo de todo coração. Nada poderá nos separar.
– Está bem, Nádia. Vou falar com seu pai sobre vocês. Fique confiante,
vou apoiá-la.
– Mãe! O pai pode reagir, será? Penso assim por causa das brigas na
Delegacia e na subprefeitura. O pai é muito enérgico, como dizem, por isso tem
inimigos. Tenho medo.
– O seu pai vai apoiar, porque ele é bom pai, pode ter defeitos, mas com
certeza não vai ligar as questões públicas com a família. Em casa sempre está em
paz, não é?
– É, mãe! Espero que sim. Às vezes meu coração tem pressentimentos.
– Pressentimento do quê, menina?
– Mãe! Sinto sensações de angústia em certos momentos.
– Filha! Deve confiar em Deus. Você é boa menina, vai se formar no final
do ano. No próximo ano vem para casa como professora formada, seu pai vai
arrumar uma escola para você trabalhar. Daí poderá pensar no seu futuro.
– Obrigada, mãe.
O estigma do ódio entre as famílias pode romper um grande amor. O
desejo do amor brotou logo ao primeiro encontro. Em pouco tempo, Leone e
Nádia começavam a viver uma paixão avassaladora. Mas eles começaram a ficar
preocupados com certas histórias de ódio e rancor que separavam as famílias.
Intrigas apegadas a certas tradições que preservavam na memória, que poderia
ignorar o florescer de um amor pleno entre dois jovens.
MUNICÍPIO
Redenção era um município do Estado do Rio Grande do Sul, muito
grande em extensão territorial, e no tempo das agitações políticas surgiram
tantos distúrbios e entraves que ocasionaram o seu progresso e a sua evolu
76

Além da Tocaia

ção. A luta partidária assumiu aspectos gigantescos. De um lado, o espírito do


poder que desabrochava tosco, autoritário, detestado pela opinião pública; de
outro lado à consciência cívica do povo, que se erguia decidida a lançar ideias
de melhor destino ao infortunado torrão gaúcho.
Projetada a luta municipalista o caudilhismo se lançou à desvairada e
impaciente ordem política, postulada na autoridade, em detrimento da liberdade
individual, através do despotismo impetuoso, impulsivo e violento. Assim foram
lançadas todas as formas de tropelias, espancamentos, assassinatos, violências
de toda ordem e desrespeito homem e ao seu direito contra quem ousasse
fazer parte da posição política na época.
As ocorrências eram comuns, de que era testemunha o próprio Rio Grande
do Sul, que teve seu momento culminante em vários municípios, destacando-se
Redenção, como força-choque, de impressão forte e profunda nos acontecimentos
da vida das pessoas, com mania de impedir mudanças naturais na sociedade.
O momento trouxe alteração do meio provocado pelo impacto da força
humana, que altera o bem-estar do povo, de suas atividades, as condições
culturais, econômicas e a qualidade dos recursos ambientais, centralizando na
luta pela terra.
E, como todos os recantos do Estado do Rio Grande do Sul, o município
de Redenção possuía figuras diabólicas, propensas aos atos vis, torpes
e odiosos, para se perpetuarem no poder. Ainda bem que não constituía
regra geral, pois havia homens de bem, e bem intencionados. A bem da
verdade podiam influir no papel do poder, da autoridade que se implantava,
favorecidos pelo econômico, mas por uma razão ou por outra às vezes se
calavam.
Naquele recanto do Rio Grande do Sul, no município de Redenção aparece
a figura do capitão Arcelino Furtado, que exercia funções de subprefeito e
subdelegado de polícia no 2º distrito do Degredo. Ele tanto soube desmandar
quanto fazer enérgicas exigências em favor da lei, contudo mereceu um triste
atestado da cultura em nome da civilização: um assassinato.
77

Teobaldo Branco

CASAMENTO

A história dos homens se faz com os indivíduos na sociedade. Ali próximo


do povoado, na curva da estrada, dentro do mato, estava sendo preparada
uma surpresa, local próprio para um esconderijo na selva, com a instalação de
um posto de guarda para um aventureiro solitário, com uma missão a cumprir.
Por outro lado, havia a realização de uma festa de casamento, próximo da sede
do distrito, com a participação das famílias da comunidade local e vizinha, em
que comemoravam a união de dois jovens, com uma festa com comida e bebida
à vontade para todos.
O local da festa localizava-se próximo do povoado. A alegria era intensa,
havia muito diálogo:
– Severino Vitorelo! Meu noivo. Você está feliz? Hoje meu noivo, amanhã
meu marido, ou esposo, como queira. Seria bom permanecermos noivos
para sempre, daí seria um sonho.
– Conceição! Minha linda noiva. Sou feliz. Devemos viver hoje, amanhã
é outro dia. Lembra aquele dia em que eu peguei na sua...? Adorei. Mas, você
não quis.
– Severino! Senhor meu noivo! – fale baixo – Adorou o quê? Sou virgem,
muito respeito. Não te prometi nada. Falamos depois do casamento.
– Conceição! É um sonho! Hoje é dia da lua. Estou ansioso para provar
à deliciosa.
– Lua? O que quer dizer?
– Lua de mel. O que mais poderia pensar! – Então Conceição, minha
noiva! O dia é hoje.
– É dia do quê? Olha, minha a mãe e meu pai vem aí. Comporte-te! Os
convidados estão nos observando todo tempo.
– Sabe, Conceição! Hoje somos nós os atores principais, por isso temos
liberdade. Eu te adoro, meu amor. Então, beija-me, minha princesa.
78

Além da Tocaia

– Severino! Meu noivo, eu também te amo! Vai só um beijinho, mas


somente na testa.
– Na boca, Conceição.
– Beijo na boca, aqui não! Olha, os convidados estão nos olhando.
Calma, Severino; temos todo tempo do mundo, depois.
– Hoje quero provar a sua deliciosa! Você está linda, minha noiva.
– Que deliciosa...? Mas obrigada pelo elogio. Você é abusado, meu noivo.
Mas gosto do teu jeito de ser.
– Aquilo! Aquilo... Conceição.
– Fale baixo! Vamos receber aqueles convidados. Ah! É o pessoal lá do
Centro Novo, eles são nossos amigos.
– Parabéns, Severino! Parabéns, Conceição. Está aqui o presente em
nome da família.
– Obrigado, amigo João Maria e a jovem Maria Joana.
– Obrigada aos amigos pela sua presença.
– Escuta amigo Severino! No ouvido – Te desejo doze filhos.
– O que está cochichando? – interveio, Maria Joana.
– Muitos filhos! Muito amor e que não falte dinheiro.
– Se for isso, obrigada. respondeu Conceição.
Era um lindo sábado. Os noivos andavam de um lado para outro,
recepcionando os convidados que ainda estavam chegando. Sentia-se o cheiro
de churrasco, ao longe, ao se afastarem dos convidados, eles cochichavam:
– Conceição! Aquele dia que você pegou... O que você achou? – cochicho
no ouvido.
– Ah! Severino. Peguei para te provar.
– E daí?
– E daí... E daí.
79

Teobaldo Branco

– Explica, Conceição! O que achou na sua ideia?


– Você passou no teste, meu noivo. Ao contrário não havia casamento.
– Mas como fica nosso amor, Conceição?
– Ah! Estou brincando, meu amor! – Severino, você é o homem de minha vida.
– Amor! Hoje é um dia feliz para mim.
– Lembra do nosso juramento há poucos instantes na igreja? Com aquilo...
pequeno ou grande, você sempre será minha companhia até o fim de nossos dias.
– Olha o pessoal da Linha Santo Antônio! O Setembrino e a Cleuza, o
Pedro e a Lílian, com suas respectivas famílias.
– Parabéns! Parabéns ao noivo e à noiva. Aqui os presentes.
– Obrigado. Sejam bem-vindos para a festa.
Os noivos faziam o papel de recepcionistas, vigiando a frente da casa
para receber os convidados. Era um procedimento simbólico, significando o
protocolo ritual da festa.
A ação dos homens sobre o meio em que vivem influenciados pela terra
e pelo tempo são instrumentos de construção da história. O ser humano é capaz
de escolher os meios para realizar seus sonhos, estes são os seus objetivos. As
decisões influem nos acontecimentos, assim como os acontecimentos e fatos
influem nas decisões, que levam os homens a agirem, determinando o objeto do
caminho, que vai constituir o fato histórico.
Assim aconteceu no dia da festa de casamento. Estes e outros acontecimentos
repetem-se sucessivamente na história das pessoas, das famílias, da
comunidade regional, do Estado, da civilização sem interrupções estabelecendo
a relação da história dos homens.
Enquanto a vida parecia calma e pacata, o delegado tomava algumas
providências rotineiras, na Delegacia. O momento se afirmava na dialética, cujo
significado de história e cultura passava a ser opção, entre outros conceitos. A
realidade compreendida no momento como forma de pensamento influenciava
na construção da sociedade local e conduzia o destino daquela gente no decorrer
do tempo.
80

Além da Tocaia

P a r t e II

A tocaia

“A guerra é uma consequência inevitável de prova de soberania. Nem um mal


absoluto, nem um acidente, mas, o elemento ético, porque realiza a integração de
interesses que a sociedade civil, por si mesma, não pode estabelecer. Muitas vezes a
guerra evita a desorganização civil e fortalece o poder interno do Estado. O Estado, o
sujeito último que perpetua a vida de uma sociedade, limitada por leis, equivalente à
soberania vital da sociedade civil” (Herbert Marcuse)
Teobaldo Branco

A tocaia, bem ali próximo na curva da estrada, fora preparada atrás de


uma moita de arbustos, com um furo arredondado no meio, para colocar o fuzil,
sendo utilizada uma forquilha de um arbusto com a finalidade de permitir boa
pontaria. O esconderijo na selva foi aproveitado para instalação de um posto
de guarda, de um aventureiro solitário com a missão de pistoleiro. O facínora
com instinto perverso, cruel e malfeitor, instalou sua guarita de ataque no meio
de moitas fechadas no interior da mata, próximo da estrada.
A estrada passava no meio das matas ainda nativas. Aquele que planejou
seguiu e localizou os pontos estratégicos da tocaia, vindo pelo interior da mata
para não deixar vestígios. Fez com que o cangaceiro, como um cão errante, se
instalasse de modo que pudesse visualizar a estrada sem ser visto no interior da
mata. O bandoleiro selvagem armou uma casa com paredes de ramos para não ser
visto por quem passasse pela estrada, para sua segurança no sentido de evitar a
presença de testemunhas do ato bárbaro e desumano que pretendia realizar.
A surpresa e o mistério rondavam como uma nuvem que cobria o céu
daquelas terras e agitava como energia cósmica, tornando um mundo fantástico,
imprevisível no mundo das pessoas. Quando surgiu a conversa de uma
suposta tocaia, havia a suspeita de um matador que iria apresentar-se de carne
e osso. Não como farsa. Como se comprova o destino, sendo a estrada o caminho
dos homens.
O capitão Arcelino Furtado passava naquela estrada todos os dias a
cavalo. A referida trajetória era diária, de sua casa até a Delegacia, onde trabalhava.
Ele cavalga ao estilo esvoaçante e alegre, bem ereto, como legítimo
cavaleiro. Naquele dia no meio do capão, montado no seu cavalo, o capitão
Arcelino Furtado, sem imaginar o imprevisto, pensou que cavalgava com toda
segurança. O sobressalto do acontecimento inesperado ocorreu com o eco de
dois estampidos que lhe causou um estremecimento. O animal em que cavalgava
sentiu o impacto e arrancou correndo, mas na arrancada, derrubou o corpo
do Delegado, ali no local do incidente na estrada.
O pistoleiro matador saiu do seu esconderijo como um cão que segue
oculto e cruel, encaminhou-se correndo em direção ao corpo do delegado, que
estava caído na estrada, já sem forças. Como um salteador selvagem e rude,
83

Teobaldo Branco

desarmou-o. E com seu revólver em punho atirou contra a sua cabeça, para ter
certeza definitiva da execução, um compromisso de jagunço a serviço de um
mando, o que levou à morte Arcelino Furtado.
O cavalo saiu em disparada estrada afora ao sofrer o sobressalto provocado
pelo tiro, que lhe causou um instintivo sentimento de inquietação ante o
perigo real ou imaginário de ameaça. O animal, repentinamente, em estado de
pavor, assustado, disparou correndo a toda velocidade, chegando apressado e
fogoso na sede da Vila Nova. O cavalo fez um retorno e aproximou-se da residência,
com aspecto estranho e espantado. O estado nervoso e bravo em que
se encontrava o animal, não se deixando pegar, bufando e agredindo quem se
aproximasse, expressava os reflexos de uma cena de terrorismo.
Terrorismo de uns que condenam e executam outras pessoas. Uma forma
de ação política que combate seu rival mediante o emprego da violência. O
impacto do acontecimento deixou o animal em estado de espanto, de pavor e
apreensão, pelo modo simbólico de reagir, impondo sua vontade, como sentimento,
pelo uso da violência com terror.
A sorte dos povos merece a bênção dos céus, para iluminar com a estrela
da sabedoria e com aventura, para aumentar a longevidade humana no tempo,
como privilégios de paz para a felicidade das pessoas. As leis naturais
reconhecem que a essência do existir é a vida. Somos enquanto temos vida.
Sem vida ninguém pode ser.

A NOTÍCIA

Em plena festa de casamento, não muito distante da Delegacia, inesperadamente


surgiu a dolorosa notícia da emboscada e logo em seguida a confirmação
do assassinato do capitão Arcelino Furtado, ao meio-dia, em plena luz
do dia, em uma tocaia na volta da estrada, dentro da mata. Os boatos provocaram
muita tensão e certa inquietação entre os convidados. Muitos foram até o
local presenciar o fato, outros ficaram espiando de longe.
84

Além da Tocaia

A notícia surgiu não se sabe como, mas contagiou a população da vizinhança.


Ali muito próximo, o cavalo do delegado dava um espetáculo com sua
ferocidade, chamando a atenção dos curiosos que presenciavam, levando-os a
suspeitarem que tivesse acontecido algum incidente com seu condutor.
Um grupo de homens saiu à procura, na expectativa de uma surpresa
pelos sinais de prenúncio do cavalo. Saíram com cautela, precavendo-se de
algum perigo iminente. O grupo de pessoas seguiu o percurso da estrada rumo
à Delegacia, na sede do distrito de Degredo, que se localizava as duas vilas, à
distância de uns três quilômetros. No meio do caminho foram encontrando
pessoas que vinham de várias direções, que já tinham visto o corpo do delegado
Arcelino, caído sem vida no trilho direito da estrada, com uma lesão exposta
debaixo do braço, um ferimento nas costas e outro na cabeça.
Um grupo de homens imediatamente localizou a tocaia. Estava localizada
atrás de uma moita de taquaras e árvores, onde havia um espaço roçado,
com um disfarçado furo na moita, a altura de uma pessoa mediana, para o
atirador colocar o fuzil, suspenso na forquilha de um arbusto. No local da tocaia
dentro da mata havia sinais de que a mesma fora feita há algumas semanas,
pelos tocos de cigarros encontrados, pelo solo pisoteado e ramos cortados já
secos. Tudo revelava o tempo de preparação do ato.
Supõe-se que a execução foi realizada por alguém adestrado, de forma
planejada, para não deixar vestígios. Ele, o assassino, fugiu por dentro do mato,
num pequeno capão, sumindo definitivamente.
Todos ficaram alarmados, sem saber o que fazer, sem pistas.
As providências foram imediatas. A primeira comunicação foi para a
Delegacia de Polícia do município de Redenção, órgão hierárquico superior,
que atendeu com urgência e prontamente. De imediato os peritos se fizeram
presentes no local para realizar a avaliação. Constataram a falta de alguns objetos
do delegado: um revólver calibre 38, um relógio de bolso, a cinta com fivela
de prata com iniciais do nome, um rebenque, que ele usava espanando ao correr
do animal enquanto andava a cavalo, o que favoreceu a pontaria do matador, ao
acertar mortalmente debaixo do braço.
85

Teobaldo Branco

O corpo de Arcelino Furtado foi levado, inicialmente, para a casa de sua


família, na vila Nova para ser velado, e posteriormente foi trasladado à terra de
sua origem para ser enterrado. A esposa do delegado, a senhora Amélia e sua
filha Nádia, acompanharam-no até o local do enterro.
O medo da violência assolou a população, depois de saber como foi
armada a tocaia, bem como a coragem do assassino ao dar o primeiro tiro,
levando à morte aquela infortunada autoridade. O criminoso valeu-se do refúgio
da emboscada para a fuga. A encomenda criminosa estabeleceu uma confusão
e comprovou-se a envergadura do delito, escrevendo no livro da história
sobre o “crime da tocaia”. A curva do ventre da morte chegou a arrepiar a
memória da população.
A tocaia foi um ato que fez refletir sobre os ideais dos homens na
época. Soube-se, também, que o nome de Degredo, teve de mudar, por ter
sido cenário de tenebrosa emboscada seguida de matança a sangue-frio, em
outros tempos, alguns anos antes, numa briga sem piedade entre políticos
ambiciosos. Esse acontecimento ocorreu pela posse de algumas quadras de
campo, naquelas bandas, região do Rio Uruguai, no alto da serra, local de
chão plano e ondulante, onde não existia mais um palmo de terra que não
tivesse dono.
FUNERAL
A esposa chorava, abatida, e com medo de enfrentar o enterro do marido
assassinado brutalmente numa tocaia. Poucas pessoas permaneciam; a maioria
delas entrava e saía do recinto. O velório ocorria em clima de suspense, prenúncio
de violência que poderia surgir das sombras contra qualquer pessoa.
Havia comunicação, mas numa linguagem silenciosa entre as pessoas
presentes; a fala, a troca de ideias, discussão de assuntos, ou de opiniões, era
somente com vista à solução de problemas locais e regionais, prevalecendo o
entendimento e a harmonia. Sobre o crime, nada.
86

Além da Tocaia

O diálogo num ambiente de silêncio era um imperativo entre as pessoas.


A preferência das pessoas presentes era permanecerem caladas, mas algumas
não conseguiam ficar sem tagarelar, então falavam a fim de divulgarem acontecimentos,
idéias, planos, ou então bisbilhotar sobre a vida dos demais. Somente
ao pé do ouvido. Os olhos com olheiras grandes estavam atentos a qualquer
cochicho ou movimento, sempre na expectativa de alguma surpresa, numa desconfiança
de vida e morte.
Estava presente no velório o senhor Brasiliano Ferreira Escobar, apoiado
com o ombro no canto da casa, do lado de fora, trocando idéias com um
morador do interior, o senhor Candinho, conhecido na vila, que lhe disse:
– O delegado tinha inimigos, senhor Brasiliano?
– O delegado Arcelino não tinha inimigos reais, declarados; muita gente
não gostava dele pela irrevogável autoridade em favor da ordem pública. Pessoas
do povo, os desordeiros, ou políticos detentores de poder econômico,
que sentiam a repressão da lei em suas falcatruas, ou corrupções, tornavam-se
inimigos discretos do delegado.
– Ele tinha amigos?
– Sim! Havia gente que gostava do delegado, porque era homem de boa
prosa, de fala calma e com segurança, tinha instrução e sabia informar sobre qualquer
assunto, falava para as pessoas entenderem. Ele permaneceu aqui quatro anos,
até hoje, ao culminar em sua morte, um assassinato estúpido. Não era necessário.
– E, a sua família?
– A sua esposa, a dona Amélia, é aquela mulher de cabelos castanhos,
pessoa de bom caráter, sabe se relacionar com a vizinhança da vila onde reside.
Tem uma filha moça. O senhor pode entrar e conhecê-la.
– Moro no interior e gostaria de saber o porquê dessa tragédia.
– O delegado Arcelino incompatibilizou-se com o grupo de liderança
política, homens de dinheiro, porque ele era da lei, ao pé da letra. Sabe, a
ambição faz de tudo para conseguir seus objetivos, até pelos caminhos da
violência. O delegado Arcelino era PTB, republicano do lenço branco. Este foi
seu fim, ficam somente as idéias, até quando não sei.
87

Teobaldo Branco

– É, seu Escobar, boa pergunta. Pois é! Os homens vivem tão pouco e


ainda se matam?
– Acontece isso porque não se pensa na vida, valoriza-se mais o dinheiro,
a terra. A verdade é que nada se leva na morte. Matar é um erro.
– Morrer é um erro. É o pecado de Adão. Não tem volta. Anda cada vez
pior o comportamento dos homens, não é?
– É, seu Candinho! Os desonestos parecem ser mais fortes. A maldade
tomou conta. A mudança caminha para desonra, para a falsidade. Certamente
chegará o dia em que ninguém confiará em ninguém.
– Será um mundo desolado e triste, não é, seu Escobar?
– É, seu Candinho, esse mundo de guerra vai se agravar em outras
gerações depois de nós. Então seja o que Deus quiser.
POLÍTICA
A maioria das pessoas sabe, mas não sabe o que sabe; o que é política.
– Política como filosofia é o fenômeno relacionado ao conjunto de leis
abstratas e fixas que ordena o estado de espírito de uma realidade, na tentativa de
reencontrar a verdade em dados originais da experiência humana, entendida como
a intuição das essências; que trata do gerenciamento individual em si, da família,
das instituições e do Estado, com programas de ação e projetos determinados a
governar, que obedecem a princípios doutrinários com posições ideológicas, que
se estruturam a respeito dos fins constitucionais e culturais do Estado;
– Política como ciência compreende o conjunto de conhecimentos adquiridos
e produzidos com objetivos e com a capacidade de gerenciamento
econômico e sociocultural do indivíduo, da família, da sociedade, do Estado ou
de uma nação, fundamentada em uma estrutura de princípios culturais e constitucionais
estabelecidos. A ciência utiliza a política do conhecimento e da
transparência para justificar seus objetivos e fins;
88

Além da Tocaia

– Política como arte significa a capacidade do ser humano pôr em prática


suas idéias. A política-arte baseia-se nas boas relações das pessoas entre si,
a participação do indivíduo na sociedade, com o Estado e com o povo como um
todo, estabelecendo normas de valores: de ética, de moral, de respeito e de
justiça. É a atividade de criar sensações agradáveis e/ou estado de espírito,
carregado de vivência pessoal e profunda, com o desejo de renovação e
transcendência. A arte é um instrumento para a política bem governar o povo;
– Política partidária é a organização dos partidos de facções diferentes
com programas de ação e fins específicos, cujos interesses, ideais e objetivos
comuns de grupos ou pessoais. Está em jogo a posição, a vantagem e o ganho.
A política partidária usa a habilidade no trato das relações humanas para obtenção
de objetivos, com astúcia e ardileza, empregando artifícios e esperteza para
ganhar o poder.
Neste contexto a democracia é um sistema de interação do indivíduo
com a sociedade; o meio mais adequado para assegurar a liberdade individual
e a expressão do pensamento, bem como preservar os direitos coletivos com a
participação social, direta ou indireta, do povo; proposta de construção constitucional
de governo, em todas as dimensões da estrutura da sociedade, de
uma nação. A democracia baseia-se nos princípios de liberdade, igualdade e
solidariedade para a promoção da justiça, com efeito, a formação ideal do “amor”
entre os homens.
Assim, a política partidária era a luta do senhor Honorato Vitello, irmão
de Antônio, que ambos eram comerciantes e criadores, de famílias tradicionais
na região, pertencentes a partidos diferentes. Honorato da UDN era contra e
Antônio do PSD que era a favor do delegado Arcelino Furtado do PTB.
No distrito do Degredo havia um grupo de lideranças, que se opunham
à posição política do delegado Arcelino Furtado. Entre eles o senhor Antônio
Luiz Giardino, industrialista e comerciante local; o senhor Julio Silvestre Casieri,
importante burocrata, funcionário público do distrito; também o senhor João
Delfino Calone, comerciante e pecuarista residente na vila, próximo ao distrito
de Degredo, e Honorato Vitello, comerciante, inimigo político do irmão, Antônio
Vitello, comerciante e líder do povoado de Centro Novo.
89

Teobaldo Branco

Antônio Vitello era italiano imigrante, um homem de estatura baixa, de


caminhar ligeiro, que se adequou aos hábitos do gaúcho. Usava bombachas e
esporas de cor amarela, era atento observador, resolvia as coisas de improviso
com respostas e ações a seu modo, assim como seus descendentes da cultura
romana. Ele era liderança política no distrito, comerciante e criador residente em
Centro Novo. Ele lutava para transferir a sede do distrito para sua área, que já
tinha paróquia. Chegou a oferecer uma festa às autoridades municipais, regionais
e ao povo com o intuito de conseguir apoio para aprovação da transferência
da sede distrital de Degredo para o povoado de Centro Novo. Antônio
Vitello era amigo político e dava proteção ao delegado Arcelino Furtado. Houve
discursos.
Por outro lado, os líderes políticos de Degredo presentes na festa em
Centro Novo planejaram contra-resposta, depois da referida festa. Em oposição,
também organizaram e realizaram uma festa na sede do distrito com a
presença de autoridades importantes para neutralizar o movimento político de
Centro Novo.
A ambição excedia os limites do bem, da justiça, e empurrava para uma
luta ferrenha pela conquista de mais espaço, através do poder político, da
acumulação de riquezas, pela aquisição de bens imóveis de terra. A terra era a
origem dos problemas e aumentava a violência em todos os quadrantes do
distrito, herança cultural com raízes profundas imposta à sociedade brasileira.

O PROCESSO

O processo do “crime da tocaia” do Degredo apurou os culpados no


ano seguinte. As investigações foram envolvendo um grupo de moradores
locais, suspeitas de serem os mandantes do crime.
Os indícios iam revelando os culpados, os autores do crime da tocaia
ocorrido num sábado, dia 5 de janeiro de 1935. A princípio foi apurado em
relação à autoria do delito em investigação, a cargo do delegado Manoel Mostarda.
Em 1º de novembro do mesmo ano assume o delegado Inocêncio Men
90

Além da Tocaia

des, que reiniciou as investigações. Ele elaborou um relatório policial no início


do ano seguinte, enviado com o processo preparatório com novas investigações.
O delegado Inocêncio Mendes escreveu: nada pôde ser apurado pelo
delegado anterior em relação ao autor do crime.
Certidão de óbito da vítima:
A certidão de óbito do Arcelino Furtado, fornecido pelo Registro Civil
de Nascimentos, Casamentos e Óbitos, do Escrivão Distrital Luiz Silvestre
Casieri, escrivão oficial da Comarca de Novo Horizonte, do Estado do Rio
Grande do Sul. Registro de Óbito nº 122. Em cinco de janeiro de 1935 compareceu
Perseverando de Peçanha, soldado do distrito; declarou que morreu às 12
horas o senhor Arcelino Furtado, do sexo masculino, de cor branca, funcionário
público municipal, com 55 anos de idade, domiciliado e residente neste
distrito, filho de Manoel José Furtado e de Maria Aldina Furtado, ambos já
falecidos; era casado com Amélia da Silveira Furtado, deixou uma filha legítima,
de nome Nádia, solteira, estudante. Teve morte violenta, por um projétil de arma
de fogo. Não deixou testamento, nem bens a inventariar, e foi sepultado no
cemitério da sede do 4º distrito deste município. E para constar lavrei o presente
termo que vai assinado por mim e duas testemunhas: Tercilho Mafini e Firmino
de Brito, maiores, brasileiros e residentes neste distrito. Será colado o atestado
médico: Dr. Vilibaldo Carvalho, médico geral de Redenção.

RELATÓRIO DA POLÍCIA

Primeiro relatório da Delegacia de Polícia de Redenção, em 20 de janeiro


de 1936, por Inocêncio Mendes, encaminhado ao Delegado da Comarca de
Novo Horizonte RS, o que segue: Em 20 de outubro de 1935 assumi a Delegacia
de Polícia de Redenção, logo voltei a atenção para o caso do assassinato de
Arcelino Furtado, subprefeito e subdelegado de Polícia no 2º distrito de Degredo,
ocorrido no dia 5 de janeiro de 1935. O crime estava envolto de mistério, por
isso não foi descoberto o autor, ou autores, mesmo com esforço da polícia
local. O fato ocorreu às 12 horas, no local entre a sede do distrito e a Vila Nova,
91

Teobaldo Branco

quando seguia para sua residência. O crime foi premeditado, cometido de emboscada,
no mato que margeia a estrada geral. Os malfeitores prepararam a
cilada, organizando um roçado e removendo todos os obstáculos que pudessem
prejudicar a visibilidade ou pontaria contra quem cruzasse na frente; desse
lugar ao centro da estrada há uma distância de vinte metros da “tocaia”. Ali
foram encontrados sinais evidentes de longa espera, bem como três cartuchos
de arma de guerra 7 mm, vazios de 1913, e uma vareta nº 2216, de fuzil Mauser,
tipo 1895. Conforme investigações procedidas, o primeiro tiro de fuzil atravessou
o tórax da vítima, havendo um segundo tiro, o qual assustou o cavalo que
arrancou com furor, derrubando o ferido dez metros mais adiante, uns trinta
distantes da “tocaia”. Caído sobre a estrada, mortalmente ferido, Arcelino Furtado
recebeu mais dois tiros na cabeça; esses tiros foram de revólver calibre 32,
sendo as balas encontradas no chão, sob a cabeça da vítima; quando o tiro foi
desfechado Arcelino já deveria estar morto. O seu chapéu estava ao lado do
corpo e não apresentava vestígios algum ou orifício de bala. A vítima foi despojada
de seu dinheiro, calculado em 800,00 cruzeiros, bem como de seu revolver
calibre 38, cano longo, de madrepérola, a cinta com fivela de prata, segundo
informações da família.
Arcelino Furtado desenvolveu atividade política no 2º distrito do Degredo,
anterior e posteriormente às eleições municipais de novembro de 1933;
muitas vezes procedeu com rigor e até com excesso de autoridade, por isso
surgiram inimizades e um elevado número de desafetos, como é público e notório;
essa situação agravou-se em fins de 1934 e janeiro de 35, como nos dão
notícias as cartas expedidas por Arcelino; tanto é que a administração municipal
havia determinado a transferência dessa autoridade para outro distrito e
designado o dia 15 de janeiro para esse ato. Tanto era o ânimo contra Arcelino
Furtado que na noite anterior ao assassinato mãos criminosas praticaram o ato
hediondo de lançar veneno na água do poço de sua casa, inutilizando a água;
essa tentativa de horroroso crime não produziu efeito imediato em virtude da
quantidade de a água existente no poço; o médico Dr. Vilibaldo Carvalho viajou
a Porto Alegre com amostras da água e lá constatou a existência de “cianureto
de potássio”, em quantidade suficiente para uma ação rápida.
92

Além da Tocaia

As investigações policiais em torno do crime nada tinham apurado; daí


transportei-me para o distrito, em 2 de novembro de 1935. Protásio do Nascimento
havia comunicado que a subprefeitura havia sido arrombada na noite de
1 de novembro. O subprefeito estava sendo ameaçado de ter o mesmo fim de
Arcelino Furtado. Ficou constatado que alguém tentou arrombar a casa por
uma janela, com o fim de penetrar no seu interior e, parece, para eliminar Protásio.
Ele afirma que estava interessado em desvendar o mistério do assassinato de
Arcelino Furtado. É bem de presumir que os responsáveis pelo crime planejaram
a eliminação de Protásio para pôr um fim às investigações.
O subdelegado Protásio do Nascimento refere-se a Augusto Cardoso
de Vargas, Francisco Heiber, os irmãos Moura e a um negro foragido. Os dois
primeiros foram condenados a 30 anos de prisão, na cidade de Campo Belo, por
terem assassinado de emboscada, com arma de guerra e com tiro na cabeça, a
Zeferino Antunes, crime cometido como aconteceu com Arcelino Furtado.
Ramiro e José Moura são réus pronunciados; o último preso está na cadeia
civil desta vila, aguardando julgamento. Pedro Moura, 3° irmão, elemento suspeito,
tinha em seu poder um fuzil Mauser, apreendido por forças do Exército. Pedro
Moura havia entregado uma “manlicher” velha, imprestável, e ocultando o fuzil
Mauser, que mais tarde, em novembro de 1935, foi apreendido pela 2ª CIM. Ele
interrogado pelo comandante, declarou que não entregou às autoridades policiais
porque era comerciante de armas. Chamado para dar explicação na Delegacia de
Polícia, negou o que havia dito, alegando ter se expressado mal. O ex-delegado
Manoel Mostarda havia sido exonerado do cargo por motivos políticos, e Protásio
ficou à frente das investigações para descobrir pista dos assassinos de Arcelino
Furtado. O interesse de Pedro Moura em intrigá-lo com o comandante da 2ª CIM,
declarando que era comerciante de armas, talvez tivesse a intenção de conseguir
a exoneração de Protásio, que estava muito “sabido”. Pedro Moura se contradiz,
afirmando que não entregou a arma ao delegado Mostarda porque este não lhe
pediu. No entanto, lembrou-se de apresentar a “manlincher” velha, mas não quis
entregar o fuzil, por quê? Elemento suspeito na hipótese de que, talvez esse fuzil
fosse companheiro da vareta nº 2216, encontrada no local da emboscada. Infelizmente
não conseguimos o número do fuzil de Pedro Moura por ter sido englobado
com outros apreendidos pela referida unidade do Exército.
93

Teobaldo Branco

As observações de Protásio tornam suspeito Pedro Padilha, como se vê


pelas cartas inclusas, com fundamentos que confirmou as declarações de Dona
Amélia Vieira Furtado, viúva de Arcelino, de vez que contém revelações importantes
com referência a Pedro Padilha. Este nega os fatos referidos por Dona
Amélia e confirma outros, como é o caso da discussão com Arcelino no restaurante
de Pedro Moura.
O mais acirrado inimigo de Arcelino Furtado foi o senhor Honorato Vitelo.
Entre eles ocorreram diversos incidentes. Em outubro de 1934 Vitello ausentou-se
do distrito sob pretexto de perseguição, o que se observa pela carta que
Arcelino escreveu ao seu desafeto, dizendo-lhe que voltasse porque eram infundadas
as perseguições aludidas. Também Raimundo Fagiolo, sócio de João Delfino
Calone, era inimigo de Arcelino, havia várias referências neste sentido.
Grave é o telegrama procedente da Delegacia de Campo Belo, em que
Augusto Cardoso acusa como responsáveis pelo assassinato de Arcelino Furtado
os reconhecidos desafetos: Pedro Moura, Honorato Vitello, Raimundo
Fagiolo, não fazendo referência a Pedro Padilha. Diante do exposto, a conclusão
de que são comprometidos no assassinato de Arcelino Furtado os indivíduos:
Pedro Moura, o mais acusado, Pedro Padilha, Honorato Vitello e Raimundo
Fagiolo.
Redenção, 20 de janeiro de 1936. Inocêncio Mendes, Delegado de Polícia.

O CORONEL E A ORDENANÇA

Certa vez Amélio acompanhava o coronel Inocêncio, um fazendeiro e


político maragato do interior do Degredo. Viajava junto com sua ordenança de
nome Hermenegildo. Ao compasso dos cavalos na estrada lamacenta, ele ouvia
a voz de comando e as ordens que o invadiam como tempestade. O tempo era
de chuva, que exigia proteção; o temporal, as nuvens negras, os trovões nos
campos e nas matas eram de dar medo. Eles seguiam em silêncio até a estrada da
lagoa. O Coronel sempre andava acompanhado de seu capanga, e agora viajava
para a Fazenda do Arraial.
94

Além da Tocaia

Amélio observou em certo momento que Hermenegildo que ia a frente,


retardou o passo do cavalo, colocou-se a par do patrão falou com voz mansa:
– Conheço um lugar bom, coronel! Posso mostrar, se o senhor quiser
fazer um pequeno desvio, coisa de pouco tempo. Fica ali adiante, para o caso de
precisar proteger a fazenda.
O coronel lembrou de sobressaltado de dona Ernestina, sua santa esposa,
entendida sobre espiritismo, que o levara a assistir a um espetáculo no
clube do distrito. O coronel contou que assistiu ao espetáculo de mágica e
ficou de boca aberta, assombrado. Era um secaio e sua mulher, uma brancona
que merecia macho, mais do que aquele amarelo, aperreado. Ele lia o pensamento
das pessoas e adivinhava coisa de assombrar. Talvez fosse truque muito
bem feito, que não deixava as pessoas descobrir o mistério.
O seu ordenança nada disse, era uma figura legendária, valente, nada no
mundo o assustava; sentia um certo temor diante das coisas do sobrenatural,
tinha medo de feitiço. Ele questionou:
– Uma bela ocasião, coronel! Queria estar lá para descobrir o segredo.
O coronel olhou o rosto do capanga, numa interrogação. Este esboçou
um sorriso. Hermenegildo tinha face de índio, cabelos negros, escorridos, maçãs
do rosto cheias, olhos pequenos e penetrantes. Ostentava o título de capataz.
Uma semana antes, na varanda da casa grande da fazenda, durante os
preparativos da seleção do gado de corte na invernada, o coronel havia falado
sobre os correligionários que se tornavam inimigos políticos. Comentou também
que o distrito tinha uma imensidão de terras de campo e de serra boas para
o pastoreio, até a margem do rio Índio.
O coronel criticou:
– Os políticos perderam a cabeça ao mandar um capitão para tomar
conta do distrito, armado de jagunços vindos de fora!
– Está prestando atenção, coronel? perguntou o capanga.
– Sim! Uma coisa é certa! Ou a gente cuida da gente e faz um plano, ou
sofre as consequências.
95

Teobaldo Branco

– Que plano?
– Armar uma emboscada e fazer o inimigo estrepar-se. Tem de precaverse,
em campo raso ninguém pode com político. – o coronel dizia “político” para
não pronunciar o nome do desafeto.
– Assunto de interesse, coronel?
Como era possível que o capataz se referisse ao lugar? Isso fez o coronel
sentir o coração pulsar; por acaso Hermenegildo tinha o dom de ler os
pensamentos? Em se tratando de gente de sangue índio nunca se pode saber.
Antes que o coronel abrisse a boca:
– Uma tocaia na curva da estrada, coronel, lugar que conheço.
Pensou, sem dúvida, não havia outra explicação. Hermenegildo adivinhara
o pensamento. Era uma lástima, um cabra de tanta competência, vagando
nas estradas. Serviu o coronel durante muitos anos, com uma lealdade repetida
por várias vezes, pôs à prova a sua confiança nas lutas passadas, por várias
ocasiões lhe salvara a vida. Na cidade de Redenção havia matado um comerciante
numa casa de prostituição. Era homem novo, quase sem barba, ninguém
daria nada por ele, na época. Hoje sem nome, ele foi para os jornais, defendido
a dinheiro por alguns e odiado por outros. O coronel arrepende-se de lembrar:
– O lugar da tocaia, coronel!
– O lugar da tocaia? Do que você está falando, explique-se melhor!
– Andam dizendo por aí que o capitão, o delegado do Degredo, vai
reforçar a escolta com homens de Campal, contratou mais cinco, são andarilhos,
gente sem memória e sem fé.
– Esperamos a chuva parar, o tempo voltar à calma, depois vamos dar um
jeito nessa jornada; sei como cortar o mal pela raiz, acho que você está com
medo da política, Hermenegildo. respondeu o coronel.
– Estou pondo sentido para o senhor não perder a liderança, coronel!
Estas terras são férteis, com um pouco de esforço e algum dinheiro se pode
abrir estrada e construir cerca.
96

Além da Tocaia

– Cuidado com os cabras, Hermenegildo!


– Coronel! Meus ouvidos estão zunindo. Esse vento minuano! O trovão
forma um barulho neste campo aberto, mesmo de capa nas costas.
– Olha, Hermenegildo! Estamos habituados ao relento, ao tempo, a esse
vento sul com chuva fina de inverno, tudo passa e vem a flor da primavera.
– É verdade, tem razão, coronel.
– Depois de armada a tocaia e designado um guapo ao posto do serviço,
vamos ver o que acontece.
Hermenegildo fica em silêncio e acentua a responsabilidade da empreitada,
louco para entrar em ação:
– Ai de nós se a pontaria errar, coronel!
– Olha, peão, apenas estamos pensando. Você parece que tem cabeça de
patrão.
Amélio acompanhava na escuta, tentando distinguir a conversa, pensando
numa manhã quente, com raios do sol, onde podia sentir o perfume da
vegetação verde. Via a imagem por detrás das árvores, na curva da estrada, à
espera de uma vítima, na imaginação. Habituado à liberdade, contrário à espera
a longo prazo, do perigo que já sentiu, era incômoda a sensação da agonia
diante da punição cruel de alguém, muitas vezes inocente. Amélio procurava
manter a calma, controlar o sobressalto; a sua luta era defender a vida. No calor
do diálogo entre o coronel Inocêncio e Hermenegildo, seu capanga, percebeu
homens duros. Ali, a língua era tenor de morte; a propósito, a obsessão da
tocaia, da emboscada, era fato consumado, e ele descobriu que a ambição
assumia dimensão infinitamente assombrosa.
Quem conta é o próprio Hermenegildo: diz que apareceu um peão de
apelido João Torresmo procurando serviço na fazenda do coronel Inocêncio.
Certo dia o rapaz deu com a língua nos dentes que deu pena de ver, falou
demais sobre a mulher de outro cabra mau peixe, que ficou sabendo. O cabra
prometeu capar o Torresmo. Noutro dia houve um encontro dos dois; naquela
97

Teobaldo Branco

hora todos temeram pela vida do negro, que era rapaz trabalhador e reservado,
muito estimado. Era carpinteiro, ferrador de animal de mão cheia, ferreiro engenhoso
na profissão. Ele tinha um defeito sério, apenas um: era bicudo até não
poder mais, metia o bedelho no que não devia, dando palpite e querendo resolver
tudo. Ia pagar caro pelo atrevimento, quem mandou ser intrometido? De
certo modo não tinha competência nem traquejo, não passava de um peão
ingênuo e folgazão. Naquela ocasião Torresmo escapou com as batatas nas
mãos. Nessas alturas é melhor que a gente, por prevenção, se faça de cego,
surdo e mudo.
98

Além da Tocaia

P a r t e III

Depoimentos

“A vontade é verdadeira e livre só como intelecto pensante.


A liberdade da vontade depende do pensamento, do conhecimento
da verdade. O homem só pode ser livre, se conhece a sua
potencialidade. O escravo não é livre; primeiro: pela submissão;
segundo: por não ter experiência ou conhecimento da liberdade.
A consciência da liberdade é o princípio básico do direito, da
moral e de todas formas éticas sociais. É o espírito de ação individual
e coletiva de uma sociedade” (Herbert Marcuse, Razão e
Revolução, Hegel no advento da teoria social. 1969, p. 177).
Além da Tocaia

PRIMEIRA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS

Aos 10 dias de março de 1936, na sala de audiências, no edifício do Foro


da cidade de Redenção, na presença do juiz Dr. Darci Barcelos, do escrivão
nomeado, Dr. Saul Mendonça, e do promotor público Dr. Justino Pereira, presentes
os denunciados e testemunhas intimadas, foi declarada aberta a audiência,
sendo as testemunhas inquiridas, uma por vez, sem que uma ouvisse as
declarações da outra, na forma legal, como descrito a seguir:
*1º DEPOIMENTO – DE João Claro do Nascimento, 62 anos, pecuarista,
casado, ex-subprefeito e ex-subdelegado, residente no 2º distrito do Degredo,
município de Redenção.
Juiz: – Senhor João! O que sabe sobre o assassinato de Arcelino Furtado?
– Para mim a vítima era violenta e carrasco. – respondeu João Claro.
– Por que diz isso de Arcelino?
– Porque uma vez ele armou um indivíduo que tivera seu irmão assassinado.
Cristiano Pires matou Francisco Brito; o delegado armou André Brito
para fazer parte da escolta em perseguição ao assassino. O indivíduo estava
ressentido e com ódio pela perda do seu irmão e, ao presenciar o assassino sair
de um mato em que se escondia, não hesitou, atirou contra o mesmo, matando-o.
– O que mais sabe sobre o capitão Arcelino?
– Outra vez o delegado saiu com sua escolta em perseguição a outro
assassino. Ao passar na casa comercial de Santo Mantel, encontrou um irmão
do assassinado, que estava armado de revólver, o que levou o capitão Arcelino
Furtado a intimá-lo a entregar a arma, tendo ele se negado a fazê-lo, mesmo
depois da segunda vez. Então Arcelino procurou desarmá-lo e obrigou a entregar-
lhe a arma. Foi quando ele detonou um tiro contra Arcelino e sua escolta.
– Houve reação?
– Sim! A escolta desferiu uma descarga contra o referido indivíduo, que se
chamava Sebastião dos Santos. O mesmo ficou ferido, logo após foi preso e
enviado para esta cidade. Ele alegou que o assassino de seu irmão estava refugiado
nos matos próximo e não havia sido preso, esta a razão de estar armado.
101

Teobaldo Branco

– O que sabe sobre o crime?


– Diz que o capitão Arcelino Furtado era do Partido Liberal e nas eleições
municipais era uma guerra contra o Partido da Frente Única. Certa vez
Arcelino Furtado autorizou o comerciante Honorato Vitello a interferir num
incidente ocorrido numa escola em São de João, por saber que Vitello era relacionado
no local, sendo, portanto harmonizado o problema. Soube que João
Calone é afilhado de Antônio Giardino. Ouviu dizer que João Calone e Julio
Casieri foram processados por haverem acorrentado um preso no distrito. Soube
que Arcelino Furtado prendeu Honorato, por isso eram inimigos.
O Juiz encerrou.
*2º depoimento – de Amélia Vieira Furtado, 48 anos, viúva de Arcelino
Furtado, doméstica, residente no 4º distrito deste município.
Juiz: – Dona Amélia, conte o que sabe, para podermos localizar os cúmplices
do crime.
– Não vi, somente ouvi os tiros no dia do crime, pensei que fossem
pescadores no rio Prateado, atirando de fuzil. Vi então o cavalo correndo próximo
da estrada, que vem da subprefeitura para Vila Nova. Logo mandei o empregado
ver se o cavalo havia escapado. Ele fez um sinal chamando-me, desloquei-
me pela estrada e chegando ao local vi meu marido já sem vida.
– O que a senhora fez?
– Pedi socorro para um atendimento médico. Apesar de haver muitos
moradores nas proximidades do local crime, naquela hora não havia ninguém,
depois chegaram Pompilio Reis e Pedro Padilha.
– De onde veio Pedro Padilha?
– Não consigo pensar que estes sejam os assassinos do meu marido.
– A senhora sabia se Honorato Vitello era inimigo de seu marido por
questões políticas?
– Meu marido não considerava Honorato seu inimigo. Soube que trouxe
um indivíduo de nome Roberto de Quadros para seu capanga. Ele morava na Rua
do Divino, mas após o crime passou a residir na propriedade de João Calone.
102

Além da Tocaia

– A senhora sabe se houve algum conflito entre seu marido e Pedro


Padilha?
– Sei! Houve uma discussão alguns dias antes do crime entre os dois;
ao escurecer ouvimos um desafio que saía do restaurante de Pedro Veiga. Meu
marido foi ver do que se tratava, pois ficava próximo de nossa casa. Nós íamos
visitar uma sobrinha e passamos na frente do local. Mas antes de chegarmos
no restaurante o autor do desafio montou a cavalo e retirou-se. Depois foi
chamado na Delegacia para dar explicações. Ele não atendeu ao chamado. Então
foi intimado a comparecer e trazer o revólver que foi referido no desafio.
Essa pessoa era Pedro Padilha. No dia seguinte ele compareceu na Delegacia,
retratou-se, dizendo: “delegado sou amigo”, alegando que eram intrigas de
outros. Até convidou meu marido para irem a uma festa no interior, no povoado
de Centro Novo, no dia 20 de novembro.
– A senhora acompanhou seu marido à referida festa, em Centro Novo?
– Sim! Lá percebi um complô formado por Honorato Vitello, Virgilio Magio,
João Calone, Pedro Padilha e Odorico Mantel. Certo momento, com a minha
aproximação, quando me dirigia à igreja, esse grupo estava combinando a retirada
de meu marido do distrito, tendo Padilha dito: “Por mim pode ficar o mesmo”.
– O que mais a senhora observou?
– Em seguida o grupo foi tomar cerveja na varanda da igreja. E mandaram
uma comissão convidar meu marido fazer parte do grupo.
– A senhora desconfiou de algo que poderia acontecer a seu marido?
– Em vista do que ouvi, aproximei-me e ali permaneci durante o tempo em
que meu marido esteve com eles. Ao terminar a cervejada ele ia sair do local, quando
foi impedido por Pedro Padilha, que o chamou discretamente, alertando: “Capitão!
O senhor não deve sair agora, porque o momento requer muito cuidado”. Meu
marido atendeu e pediu ao próprio Pedro Padilha, que chamou o chofer de automóvel,
Pedro Moura, levando-nos para casa. Por estes motivos e outros, me convenci
de que podia acontecer algo trágico. Só não foi consumado porque Pedro Padilha
impediu, certamente sabia. Ao chegar em casa meu marido disse-me: “Estou com
mau pressentimento, nada aconteceu porque o Pedro Padilha impediu”.
103

Teobaldo Branco

– Dona Amélia, a senhora sabe de alguma pessoa que viu o assassino,


no momento do crime. Em caso afirmativo, o nome da pessoa?
– A empregada de Julio Casieri, de nome Jandira, viu da sacada da casa
duas pessoas, uma alta, de roupa escura, saírem do mato e atirar na cabeça do
Arcelino, já caído. Ela pode depor, pode ser testemunha.
– Dona Amélia, no dia do crime ou pouco antes do desfecho, a senhora
viu Pedro Padilha?
– Não! Antes João Mafini nosso empregado, encontrou-se com Pedro
Padilha na estrada que liga a sede do distrito a Vila Nova. Pedro Padilha perguntou
a João Mafini, se o Arcelino estava em casa ou na subprefeitura.
– A senhora sabe sobre o atentado por envenenamento?
– No dia 4 de janeiro, na véspera do crime, a água do poço da nossa casa
amanheceu envenenada, conforme laudo médico realizado em Porto Alegre.
O Dr. Saul Mendonça pergunta:
– Se Arcelino tinha inimigos políticos no distrito, além de Honorato
Vitello, quais os nomes deles?
– Não sei de outros inimigos políticos.
– Como sabe sobre o complô, onde se realizavam as reuniões?
– As reuniões se realizavam na casa do Dr. Ademar Kremer, soube por
pessoas da família, que se achavam hospedadas na casa. A sobrinha Olga Pacheco.
– As suas sobrinhas informavam se Ademar Kremer participava dessas
reuniões?
– Sim! O doutor estava presente.
O senhor juiz pergunta:
– Por que motivo acredita que Honorato Vitello era o cabeça do complô?
– Porque André Brito certa noite viu um grupo de dez pessoas na casa
de Honorato, às 11 horas da noite, com cavalos encilhados, parecendo que iam
assaltar a nossa casa. E para lá se dirigiram para avisar.
104

Além da Tocaia

– A senhora acredita que Antônio Giardino e Honorato Vitello foram os


mandantes do assassinato de seu marido?
– Sim! Honorato pelos motivos expostos, e Antônio Giardino porque,
em companhia de sua esposa, poucos dias antes do crime, viajou para a cidade
de Igrejinha; ele ficou por lá e mandou a esposa de volta. Ela estava de posse de
uma carta queixando-se de Arcelino e dizendo que não se responsabilizava
pelo que ia acontecer. Essa carta foi publicada em jornal.
– Virgilio Magio ficou descontente por causa da nomeação de professores?
– Ele contava para os outros e este era o motivo para retirar meu marido
do distrito.
– O chofer, Pedro Moura, que transportou a senhora e seu marido da
festa religiosa até em casa, por que ele se acha denunciado no processo?
– Ele foi incluído no processo porque a Jandira viu duas pessoas saírem
do mato e atingirem o Arcelino na cabeça com tiros de revólver. Alberto Santilo
contou-me há seis meses.
– A senhora acredita que Raimundo Fagiolo e Pedro Moura participaram
do crime?
– Não, mas eles devem saber. Raimundo Fagiolo pode ter participado,
porque quando a Frente venceu o pleito eleitoral em Redenção, disse a Augusto
Cardoso que iam tirar meu marido do distrito “a toque de lata”.
– Augusto Cardoso é o mesmo que está cumprindo pena de 30 anos na
cadeia de Correção, em Porto Alegre?
– Sim!
– É do seu conhecimento que autoridades policiais suspeitam que
Augusto Cardoso pode ser autor do assassinato de Arcelino, em circunstâncias
idênticas ao crime ocorrido em Campo Belo?
– Sim! Solicitamos para as autoridades competentes averiguar a verdade.
O Juiz encerrou o depoimento lido e achado conforme.
105

Teobaldo Branco

*3º depoimento – de Manoel Oliveira, 30 anos, casado, soldado da


Brigada Militar.
Juiz: – Soldado Manoel Oliveira, o que tem a informar sobre o assassinato
de Arcelino Furtado?
– Sei que o senhor João Delfino Calone, na presença de Raimundo
Fagiolo, há um ano, comprou um revólver niquelado de cabo preto.
– Soube por que foi adquirido esse revólver?
– Segundo informações, Ramiro Moura confessou o crime e denunciou
os mandantes, estava presente o soldado Adolfo Dias e o soldado Luiz, que
julgaram não ser verdadeira a confissão. Na época ninguém procurou elucidar
o crime. O delegado anterior a Arcelino era Protásio do Nascimento. Enquanto
era subdelegado foi vítima de um atentado, de emboscada a tiros, não sendo
averiguado o caso pelo posterior subdelegado, João Calone. Um irmão de Ramiro
disse que ele, logo que foi preso na cadeia civil, contou que foi impedido por
um guarda quando tentava se enforcar, não dizendo os motivos.
No segundo interrogatório o soldado Manoel Oliveira respondeu:
– Não falei nada ao réu Ramiro Moura para se retratar, negar em juízo o
que confessou. Não nego que conduzi Ramiro Moura, por ordem do comandante
Adolfo Dias, a um banheiro para fazer as necessidades.
– Esteve destacado no distrito enquanto João Calone era subprefeito?
– Sim! Durante um ano estive sob as ordens de João Calone, mas nada
sei do que Ramiro disse: “Que ele tinha o que queria dos mandantes”.
Nada mais, havendo o juiz encerrou o depoimento.
*4º depoimento – de Antonio Moraes, 22 anos, solteiro, jornaleiro, residente
no 2º distrito do Degredo.
Juiz: – Senhor Antonio, o que o senhor sabe sobre Ramiro Moura?
– Soube que ele roubou um boi de João Calone quando este era
subdelegado do distrito.
106

Além da Tocaia

– Qual a relação de João Calone com Ramiro Moura após o assassinato


de Arcelino Furtado?
– Certa vez João Calone disse: “Se Ramiro Moura não comparecer hoje,
vou buscá-lo onde estiver”. Ele veio e João Calone perguntou sobre o motivo
da demora. Ramiro respondeu que estava trabalhando. Quanto ao roubo João
Calone disse: – Você está acostumado a marcar terneiros roubados com minha
marca, longe de mim. Devia ser preso e apresentado ao delegado de Polícia e
remetido para a cadeia civil. Ordenou que devolvesse o boi na sua fazenda, nem
que fosse somente os ossos.
– Então Ramiro Moura marcava animais roubados com o nome de João
Calone?
– Ouvi dizer que Ramiro havia marcado centenas de terneiros, ele era
capataz ou empregado de Calone?
– Pouco sabia sobre Ramiro.
– Como era João Calone como subdelegado?
– Ele costumava prender os faltosos à lei, soltando-os depois de dois ou
três dias. Dava conselhos quando a falta era pequena, ladrões ou desordeiro ele
não tolerava. Muitas vezes ofendia, mandava trabalhar, outras surrava e soltava.
O juiz encerrou o depoimento
*5º depoimento – de Cristiano Ferreira de Almeida, 50 anos, casado,
carroceiro, residente no distrito.
Juiz: – Senhor Cristiano, o que sabe sobre os denunciados?
Conheço os denunciados e nada tenho a dizer, o capitão Arcelino era um
homem violento.
– Quando e contra quem o senhor observou um comportamento violento
por parte de Arcelino Furtado?
– Certa vez, quando morava no distrito do Erval, o Arcelino invadiu a
residência de um sobrinho, na ocasião de um assassinato, julgando que o
assassino havia se refugiado na sua casa. Este o único caso de ação violenta
praticada por Arcelino Furtado, que eu saiba.
107

Teobaldo Branco

– O juiz perguntou: É verdade que no dia do crime você estava presente?


– Sim! Eu saí a cavalo às 11h30min, em companhia de Arcelino Furtado
em direção a casa Comercial de Honorato Vitello, a 200 metros, passamos e
mudei de rumo em direção a casa comercial de Nenê Santos, onde fui encontrar-me
com meus companheiros, acompanhado de Manoel Pacheco a pé, e com ele fui
até a sua casa.
O advogado defensor pergunta:
– Senhor pode informar a hora da chegada e as pessoas presentes?
– Cheguei a Subdelegacia às sete horas da manhã, ainda estava fechada.
Às oito horas, o capitão Arcelino abriu para atender uma audiência, rixa
entre vizinhos, estando presentes seis pessoas, Francisco Antônio Mendes e
Pedro da Costa e outros.
Promotor: – O senhor presenciou o assassinato de Arcelino?
– Não! Logo, ao separar-me de Arcelino, ouvi alguns estampidos de
arma de fogo. Soube em seguida do crime.
– O senhor foi ao velório?
Sim.
– O senhor é inimigo de algum denunciado?
– A única inimizade minha é com Honorato Vitello. Ocorreu porque minha
esposa era professora municipal e estava grávida. Ela chamada na
Subdelegacia, por Honorato, mesmo era Coordenador Escolar no distrito. Fui
em lugar dela tratar sobre o assunto e houve um desentendimento.
O Juiz encerrou o depoimento
*6º depoimento – de Judith Pereira do Nascimento, 26 anos, solteira,
doméstica, residente no distrito do Degredo.
Juiz: – Judith, a senhorita conhece os denunciados?
– Sim! Há cinco anos, mas nada sei.
108

Além da Tocaia

Dada a palavra à defesa, o advogado pergunta:


– No dia do crime foi à casa de Honorato Vitello? Se foi por que motivo
e a que horas?
– Sim! Mais ou menos ao meio-dia fui à casa comercial fazer compras,
sendo atendida por Honorato e sua mulher, que chegou ali Antonio Dias, que
contou sobre o crime de Arcelino Furtado.
O promotor encerrou o depoimento.
*7º depoimento – de Marciano Peres, 46 anos, analfabeto, filho de
Leovegildo Peres e Maria Sanforosa, residente no distrito.
Juiz: – O que sabe sobre o crime? Você trabalhou para João Calone?
– Eu trabalhava nos matos de João Calone tirando madeira para vender
para Eufrásio Barbosa. Um dia recebi um recado de João Calone para ir a sua
casa à noite e escondido, pelos fundos. Deixei o cavalo amarrado no matadouro.
Lá me apresentei e na ocasião chegou seu compadre Antonio Giardino, que
se mostrava nervoso. João Calone me convidou para descer até o porão da
casa e entregou-me um fuzil e um revólver com uma caixa de balas.
– Por que lhe entregou as referidas armas?
– As armas eram para mim e José Francisco da Silva. Calone disse: –
Preciso de vocês, acabo de saber que um grupo de seis homens, gente do
finado Arcelino, vem essa noite bater nas casas do Giardino, Honorato, Casieri
e na minha. Suspeito de vingança.
– O que aconteceu na referida noite?
– O Giardino pernoitou na casa de Calone. Ao clarear o dia retiraram-se
para suas casas.
– O que aconteceu depois?
– Foi perguntado ao Calone: Por que tanto medo, se foi ele que matou
Arcelino? Ele respondeu: – Foi o Giardino, mas não era preciso, o homem ia sair,
agora já está feito.
109

Teobaldo Branco

– Havia mais alguém envolvido?


– Percebia que Raimundo Fagiolo sentia satisfação com a morte de
Arcelino Furtado. Há poucos dias encontrei Calone e ele me disse: – Vou te
comprometer nesse processo. Também estão comprometidos Honorato Vitello
e Julio Casieri.
– Por que não denunciou antes?
– Tinha receio e não tinha garantia de segurança na zona colonial, onde
eles tinham mais parentes descendentes de estrangeiros, que se diziam donos
da colônia.
Nada mais havendo foi encerrado o depoimento.
AVENTURA DO CAVALEIRO ANDANTE
Na mesma tarde em que Amélio despediu-se da família para ir embora, os
familiares ficaram sem entender o porquê, de uma hora para outra, ter decidido
de ir embora, sem motivo. Tornou-se estranha a sua saída, pois todos sabiam
que ele ia ficar até adquirir uma propriedade para si.
Naquela tarde quente em que Amélio viajou, alguém da família notou,
Bruna, o momento em que Amélio retirou-se da casa. Ele partiu a cavalo, a
passos lentos, num gesto de adeus, devagar e sem destino, representando uma
imagem sem volta. Várias vezes ele se virou para olhar, com uma expressão
pálida de angústia. A sua despedida foi como deixar na memória um passado
para sempre. Algumas lágrimas que vinham da alma rolaram pelo rosto de Bruna.
Ela não escondia a tristeza no fundo do coração, aquela imagem insensível
e fria, tornando um momento cruel, vendo Amélio sumir pela estrada até desaparecer
no horizonte.
O tempo de separação torna-se infinito para quem ama. O tempo cura e
se transforma como uma flor que murcha e cai, nascendo nova flor. Assim se
abria uma janela para Amélio. Uma despedida para sempre; um novo sonho.
110

Além da Tocaia

Amélio, em seu cavalo, animal de montaria, viajava de um lugar para


outro em busca de nova vida. Chegou numa loja comercial na vila do Degredo
e falou com Leone, que se tornou seu amigo:
– Bom dia! Sou Amélio Marasca
– Bom dia! O que deseja, Amélio?
– Bom! Vou permanecer alguns dias no distrito. Sou da Colônia Velha,
procuro trabalho e futuramente pretendo adquirir um pedaço de terra para construir
minha vida.
– Já sei! Pretende casar e prosperar por estas terras, não é isso, seu
Amélio?
– Como é seu nome? – Perguntou e sorriu.
– Chamo-me Leone.
– Olha Leone! Lutei na Colônia Velha e não consegui nada, lá já deu
cacho. Resolvi conhecer terras novas, desejo fazer amizade, trabalhar e tentar
nova vida.
– Posso falar com meu pai e conseguir um trabalho, mas só posso dar
uma resposta a semana que vem.
– Ah! Fico muito grato, Leone. Tenho certeza que seremos bons amigos.
Espero que goste de futebol, este é meu esporte preferido.
– Você joga futebol? Precisamos de zagueiro, de defesa no nosso time.
– É a posição que costumo jogar.
– Então, Amélio, eu vou torcer e ajudar para que fique aqui no distrito.
Espero que faça parte do nosso time de futebol, e no futuro arranje um bom
casamento.
– Ora agradeço o seu empenho. Vou visitar um irmão no Alto Uruguai.
Ficarei alguns dias na casa de um amigo no interior, talvez venha conversar
contigo, mas com certeza no mês que vem estarei aqui, daí falamos, certo, Leone?
– Certo! Ficarei aguardando.
111

Teobaldo Branco

Amélio viajou retirando-se da propriedade de seu irmão. Fortes recordações


passavam pela sua mente. Ele partiu em seu cavalo, a passos lentos em
busca de um novo destino, com o olhar em frente, mas ainda refletia uma expressão
de angústia de um passado recente. Amélio seguia pela estrada vislumbrando
novo horizonte.
Certa vez, depois de certo tempo, viajava numa estrada da campanha,
sentiu-se perdido e foi em busca de informações. Encontrou-se numa estrada
com dois jovens irmãos, ela uma linda jovem, com a qual Amélio encantou-se.
Depois de dialogar e informar-se, foi até uma casa comercial, lá se encontrando
com um conhecido de nome Anaurelino, a quem perguntou: Quem eram aqueles
dois jovens? Resposta:
– São filhos de um fazendeiro italiano velho, bêbado e falido.
– Olha, Anaurelino! Vou casar com aquela moça.
– Amélio! Ela tem apenas uns 16 anos de idade. É uma menina.
– Não tem importância a idade. Ela vai ser minha, voltarei um dia e a levo
para viver comigo.
– Você está louco! E se ela não quiser? Outra coisa, o pai dela não brinca
em serviço, ele é mau peixe e ainda bebe um pouco. Você não sabe onde está
metendo o nariz.
– Tenho certeza. Ela quer. Vi nos seus olhos, à primeira vista.
– O que você achou nela para ficar encafifado desse modo, na primeira
vez que a viu?
– Olha! Isso é coisa de destino. Anaurelino, você vai ver para crer.
– Então, Amélio, desejo que tenha sorte. Só me convide para o casamento.
– Esteja certo que sim. Passarei muito por aqui.
Amélio seguiu o dia todo viajando. Ele conversava consigo mesmo,
fazia planos, chegava aos locais de comércio e informava-se, continuava por
lugares de colônias novas, colonização recente, indo em direção à casa de um
112

Além da Tocaia

irmão residente noutra região. Chegando lá aos poucos foi acomodando-se,


tinha facilidade em de se relacionar com as pessoas, estabeleceu uma linha de
amizade com a juventude e famílias locais.
Amélio não deixou o tempo apagar a bela lembrança que encantou sua
alma durante a viagem. Algumas semanas depois voltou a localidade onde
vivia a moça na tentativa de encontrá-la. Mandou recados até que conseguiu
encontrar-se com a filha do italiano bravo. Comparecia nas festas e bailes, até
que fez amizade e conseguiu conquistar a simpatia da linda Zoraidina.
Amélio seguiu a história de sua luta e paixões na esperança de ser feliz,
objetivo maior dos homens: seguir adiante pela força do destino em busca da
realização de seus sonhos.

SEGUNDA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS

Aos cinco de agosto de 1936, no edifício do Foro de Redenção, presente


o Juiz doutor Darci Barcelos, escrivão nomeado, promotor público: Dr. Justino
Ferreira; denunciados e seu defensor João Saldanha e Mariano Peixoto, testemunhas
intimadas, inquiridas uma de cada vez, na forma da lei.
*8º depoimento – de Jandira Batista da Silva, 18 anos, solteira, residente
no distrito do Degredo, prestou compromisso de informar a verdade.
Juiz: – O que sabe sobre a denúncia lida?
– Nada sei, somente vi a viúva de Arcelino correr em direção ao local
onde se deu o crime e o cavalo correndo encilhado.
– É verdade que a senhorita estava na sacada da casa de Julio Casieri,
viu duas pessoas, uma alta de roupa escura, saírem do mato e atirarem contra
Laudelino caído em terra?
– Não é verdade.
Foi dada a palavra ao promotor, que perguntou:
113

Teobaldo Branco

– A senhorita viu a viúva de Arcelino correr em direção no local do crime


da sacada da casa do Casieri?
– Não da sacada, de fora, onde buscava lenha.
– Se, a senhorita contou a uma empregada de Alberto Santilo ter visto
os assassinos, um de bombachas amarelas?
– Não é verdade, porque não conheço a empregada do Santilo.
– A senhorita, após o crime, continuou como empregada de Casieri ou
foi empregar-se noutra casa?
– Depois do crime trabalhei na casa do Casieri durante dois meses, indo
depois para Santa Fé, trabalhar.
– Veio em companhia dos acusados e na mesma condução?
– Sim! Vim com eles e na mesma condução.
– De quem era a condução e se pagou pela viagem, quanto?
– Viemos no caminhão de Vitorino Casieri, pagamento de 25 mil réis.
O juiz considerou o depoimento parcial e inverossímil, suspeito de assistir
à consumação do crime, na sua parte final e vem depor falsamente.
O juiz encerrou o depoimento.
*9º depoimento – de Artur Gonçalves Pacheco, 45 anos, comerciante,
residente no distrito.
Juiz: Como soube do crime?
– Na época exercia a função de Juiz Distrital. Fui avisado do crime pelo
soldado Perceverano Peçanha, indo depressa até onde jazia o corpo da vítima,
Arcelino Furtado. Encontravam-se lá a viúva e o escrivão, Julio Casieri. Fui eu
quem levantou o cadáver do local. A viúva, descontrolada, gritava palavras
horríveis a toda gente da vila, mas sem citar nomes.
– Quem eram os líderes do Partido Liberal no distrito?
114

Além da Tocaia

– Eram Antonio Giardino e Julio Casieri. A vítima, depois das eleições,


praticou arbitrariedades, andava com escolta armada e prendia pessoas. Certa
vez eu, acompanhei uma prisão, o indivíduo reagiu e o mataram. Arcelino Furtado
agia como se fosse para matar ou morrer. Certa vez eu, por ser do Partido
Liberal, se tivesse reagido teria maiores conseqüências, só por não ter tirado os
filhos de uma escola particular.
– É verdade que acompanhou a Comissão do Distrito para afastar
Arcelino Furtado, solicitando ao prefeito Leandro Dobler e ao delegado Manoel
Mostarda?
– Na época foi prometida a retirada de Arcelino Furtado. Logo ocorreu o
assassinato.
O juiz encerrou o depoimento.
*10º depoimento – de Alberto Santilo, 40 anos, casado, comerciante,
residente no distrito.
Juiz: – Quais as informações que o senhor tem a oferecer sobre o fato
que possam auxiliar nas investigações e na busca dos culpados?
– Acompanhei o delegado Mostarda até a casa da vítima, regressando
em companhia do Dr. Vilibaldo Carvalho. Um tempo depois uma empregada de
nome Etelvina disse que Jandira lhe contou ter ouvido os tiros e visto o matador,
pela cor das calças que vestia. Ela estava na janela da casa, que hoje
pertence ao major Pompilio Reis, mas na época de Julio Silvestre Casieri, a uns
500 metros de onde ocorreu o crime. De lá uma pessoa de boa vista pode
reconhecer outra..
Foi dada a palavra à defesa, que perguntou:
– Com que fim acompanhou o delegado à casa da vítima depois da
morte, no dia do fato?
– Fui como companheiro de Arcelino para oferecer meus serviços à
viúva; cheguei com o delegado Mostarda e permaneci até a noite e regressei
com o Dr. Carvalho.
115

Teobaldo Branco

– Promotor: O senhor contou à viúva sobre Jandira ter visto o flagrante?


– Sim! Contei para ela há cinco ou seis meses. Havia outra senhora
presente que não conheço.
– Contou a história de Laudelino Moraes, que presenciou na casa comercial
de Honorato Vitello a pessoa de Pedro Moura e outro indivíduo logo
após o assassinato de Arcelino Furtado?
– Sim! Não havia ninguém, isto há dois meses atrás. Contei que o filho
menor de Emilio de Moraes foi fazer compras na casa comercial de Honorato
Vitello. Segundo Emílio, no dia do crime, entre as 11 e 12 horas, ali chegou um
indivíduo de nariz aquilino, magro, claro, aparentando 30 anos, com rosto pintado.
Ao entrar na casa de Honorato, pelos fundos, disse: “Matamos o veado”.
Na ocasião Honorato recolheu esse indivíduo para dentro de casa.
– Pedro Moura estava de calças escuras no dia do crime?
– Não sei esse detalhe. Soube do fato horas depois. Viajei na condução
do delegado Mostarda.
A defesa tentou impugnar o depoimento. A testemunha é um pouco
surda.
O juiz encerrou o depoimento.

ENIGMA DE UM CRIME

A tarde cai no horizonte limitado pelo fio azul e branco do céu, numa
passagem de radiação solar desde o nascer ao poente. Dias de sol, noites sem
bruma, o progressivo endeusamento das trevas. No arraial da serra, sobre a
ondulação dos campos, aumentavam as ocorrências derradeiras numa luta dos
opostos humanos.
A formação do sistema social no cotidiano da população bramia de
orgulho, sobrepondo a mania do mando, cujo atrevimento e confiança da própria
força avultavam a convicção de competição e invencibilidade.
116

Além da Tocaia

Homens com a vontade de se constituir no deslumbramento para ter a


dádiva fantástica de poder sobre o povo. A exaltação dos mantos purpúreos e
os temas que pairam nos símbolos de sacrilégios realizam, numa celebração, o
orgulho de uma mística. A penúria torna mais áspero o herói no desenlace, que
resiste à iludida e insana peripécia, remetida a uma civilização rude, inculta e
desumana, que finalmente é domada; caem por terra os sanguinolentos e exaustos
como um supremo prodígio de justiça.
Como os tesouros do templo são os despojos de guerra. Profunda é a
atmosfera sombria, misteriosa, como a raiva de sua impotência, brada convulsivo,
daí vem o castigo hediondo. Da indecisão entre o temor da violação e a consciência
do erro emerge a temida cólera do chefe. Ninguém resiste ao poder do
dinheiro; a preferência pelo desejo e promessas; a decisão é fazer jorrar o
sangue da vítima, fato sinistro e de agouro, que afeta os prodígios do espírito,
vacilação da cultura.
As advertências previnem os acontecimentos sinistros e marcam épocas
memoriais, atiradas sobre o povo vultosa massa de perfume, uma fragrância
inebriando os homens, tornando-se adorno de pintura negra sobre a sociedade.
Os louvores à audácia e eficiência tática dos brutos celebravam a invicta
vitória convencional dos acordos do poder. O julgamento imprescindível
funciona como recurso ao ardil e à exaltação do astuto.
O vinho, ópio dos imortais que louva a opulência dos mortais, se fazia
presente, não distante do nefasto delito, de modo lascivo e insolente. Aqueles
homens que mantidos no poder faziam o seu ritual requintado em saudação à
volúpia, sob ao auspício milagroso do insofismável, que se impõe o austero
verdugo ímpio do povo.
A sofreguidão dos excluídos era incisiva ao gado redil do patrão, considerado
um flagelo lendário dos exércitos humanos. Nos domínios da terra a
autoridade nada sofre; tudo é consoante com a sua vontade caprichosa e despótica.
Os fracos são os que sofrem os tormentos e a rigidez do inverno; são
milícias insolúveis de problemas, que calados lutam pelo centauro, monstro
famoso, na esperança de conseguir o castiçal de luz para a salvação.
117

Teobaldo Branco

TERCEIRA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS

A 6 de agosto de 1936, no edifício do Foro da cidade Redenção, diante


do Juiz, Dr. Darci Barcelos, e um de escrivão nomeado, promotor Dr. Justino
Ferreira, defesa dos denunciados: Dr. Mariano Peixoto e João Saldanha e testemunhas,
foi aberta a audiência dentro da forma da lei.
*11º depoimento – de Laudelino dos Santos Moraes, 16 anos, solteiro,
jornaleiro, residente no distrito.
Juiz: – Como foi a história que viu na casa comercial de Honorato Vitello
no dia do crime de Arcelino Furtado?
– Eu estava no interior da loja comercial de Honorato quando ali chegou,
vindo dos fundos da casa, um moço magro, baixo, o rosto pintado com
tinta marrom, parecia ser Pedro Moura. O moço disse ao entrar na casa de
Honorato: “Matamos o veado”; e nesse momento um filho menor de Honorato
que também ali chegou, disse: “Mataram Arcelino Furtado”. Honorato deu um
tapa no seu filho, mandando-o para o interior da casa em companhia do moço.
Na casa comercial tinha mais pessoas, não recordo quem eram.
– Você conhece Pedro Moura, em caso afirmativo, e o outro que chegou
em sua companhia, de cara pintada, que disse: “Matamos o veado?”
– Eu conheço Pedro Moura, o outro não. Os dois voltaram para o interior
da casa com o consentimento de Honorato Vitello.
– Lembra-se de ter visto Judith, filha de João Claro, na casa comercial, e
se Pedro Moura e seu companheiro tinham armas?
– Não lembro da presença de Judith. Os dois não apresentaram armas.
– A que horas Pedro Moura e seu companheiro chegaram na casa comercial
de Honorato Vitello e de que cor eram suas calças?
– Devia ser, mais ou menos, ao meio dia. As calças eram escuras.
– A cor pintada no rosto do companheiro de Pedro Moura?
– Estava pintado com pintas pardas.
118

Além da Tocaia

– Informou à viúva de Arcelino sobre esses dados sobre o crime?


– Sim.
– Contou a Alberto Santilo sobre Pedro Moura e seu companheiro?
– Sim.
– Se estava na frente, e Pedro Moura e seu companheiro entraram pelos
fundos, como pôde vê-los?
– Eu vi e ouvi Pedro Moura e seu companheiro porque chegaram pelos
fundos, mas entraram pela frente.
– Arcelino Furtado tinha apelido de veado?
– Não, que eu saiba.
– Porque então deduziu ser Arcelino Furtado ao ouvir “Matamos o veado”?
– Conclui porque o filho de Honorato disse a resposta: “Mataram
Arcelino Furtado”, ficou claro.
– Que idade tinha esse menino?
– Devia ter uns cinco ou seis anos de idade.
– Porque somente depois de muito tempo da data do crime, sendo testemunho
de vista, contou a viúva de Arcelino Furtado?
– Porque não fui procurado antes.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
PRISÃO PREVENTIVA Nº 01
Em audiência o juiz autorizou a Corte da Promotoria, considerando Pedro
Moura e Honorato Vitello autores intelectuais e materiais, sendo indiciados, e
requereu a prisão preventiva dos dois nos termos do artigo 193 do Código
Penal do Estado. Os culpados serão recolhidos à cadeia municipal. Juiz Municipal
Dr. Saul Barcelos, promotor Justino Ferreira, em 10 de agosto de 1936.
119

Teobaldo Branco

DEPOIMENTOS

*12º depoimento – de Honorato Vitello, 39 anos, casado, filho de Ângelo


e Antonia Vitello, natural de Caxias do Sul, residente no distrito.
Juiz: – O que aconteceu no dia do crime?
– No dia passou o soldado Peçanha montado no cavalo da vítima em
direção a Centro Novo. Chegou Antonio Dias na minha loja comercial, ele era
estafeta do correio, dizendo que haviam matado Arcelino Furtado.
– Havia suspeitas?
– Não fui ao velório por ser inimigo político, desconheço a razão desse
crime. Sabia que houve atritos com João Calone, mesmo que companheiro político,
mas que não mantinham boas relações. Soube que Antonio Giardino saiu
do distrito antes do crime para Igrejinha, de automóvel com Pedro Moura.
Soube também que os companheiros iam afastar a vítima do cargo, porque
Arcelino era autoridade arbitrária e causou sobressaltos ao distrito. O próprio
companheiro político Antônio Giardino havia se retirado do distrito até sua
saída do cargo.
– O senhor tinha um mosquetão do Exército, um bornal de munição, um
revólver 22 de propriedade de Santo Damião, uma Winchester calibre 44,
municiada com 30 balas, trazida de Planalto, Erechim, quando veio em 1929. As
referidas armas foram encontradas em sua casa, na ocasião de sua prisão pelo
delegado Manoel Mostarda, após o assassinato de Arcelino Furtado. O que
tem a declarar?
– Preso um dia após o fato, suspeito que por razões políticas. Antonio
Giardino foi preso no município de Novo Horizonte, na localidade de Rio Branco,
pelas mesmas suspeitas e por ausentar-se do distrito. Eu era autoridade do
distrito antes da vítima, depois foi Protásio do Nascimento, posteriormente
assumi por pouco tempo a subprefeitura. Em 1936 houve o desarmamento. Foi
levado um revólver calibre 32, não lembro de alguém que tivesse arma de guerra.
O mosquetão era de propriedade de Ângelo Tamioto. Tenho Pedro Moura
na conta de rapaz trabalhador, não sendo fiel como empregado.
120

Além da Tocaia

– Quanto a Julio Silvestre Casieri?


– É um homem direito, não por ser meu cunhado. Tive uma conversa
com João Calone pela prisão de Anolino e Vitorelo, naquela época nos falamos
sobre a substituição de Arcelino Furtado. João Calone foi caixeiro em minha
loja. Nada mais.
O juiz encerrou o depoimento.
*13º – depoimento – de Pedro Moura, 40 anos, casado, chofer de automóvel
de praça, residente do 2º distrito do Degredo, filho de Hermínio José e
Emilia Maria Moura (residentes em Santa Ana).
Juiz: – O que tem a declarar sobre o inquérito do crime de Arcelino
Furtado?
– Há um mês, antes do fato, viajei da cidade de Redenção para o Degredo
no caminhão de Honorato Vitello. Ouvi numa parada na linha São José um
comentário sobre Arcelino Furtado: “Que o recurso seria matarem ele”; mais ou
menos naquela época, noutra ocasião, na casa comercial de Honorato Vitello,
foi repetida a mesma ameaça, na presença de outras pessoas, cujo nome não
recordo. Também uns 20 dias antes, no automóvel de minha propriedade, fez
uma viagem de Degredo a Santa Fé, com João Calone, este trouxe Ramiro, meu
irmão, mas não sei a finalidade. Na véspera do assassinato levei Antônio Giardino
de Degredo a Igrejinha, passando por Santa Fé e chegando lá se detiveram com
Dr. Honório Lisboa, que perguntou a Giardino: “Como vai o brabo de vocês?”,
referindo-se ao capitão Arcelino. Giardino respondeu: “Vai bem porque o serviço
vai ser feito”. Depois prosseguimos para Igrejinha. No dia seguinte, ao
retornar ao Degredo, Giardino foi para a localidade de Rio Branco, município de
Novo Horizonte.
– Sabia de um mosquetão de Honorato Vitello?
– Muitas vezes vi o mosquetão numa peça no escritório da casa comercial
de Honorato Vitello, outras pessoas deviam ter visto.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
121

Teobaldo Branco

RELATÓRIO DE DEFESA DOS RÉUS

Pede “habeas-corpus” – Em 16 de agosto de 1936:


Os advogados Mariano Peixoto e João Saldanha vêm impetrar habeascorpus
em favor dos acusados Pedro Moura e Honorato Vitello, presos na
cadeia civil da cidade da Redenção, onde sofrem constrangimento ilegal na sua
liberdade, em virtude de mandado do digníssimo juiz municipal, que lhes decretou
a prisão preventiva em 10 de agosto de 1936, processo crime, denunciados
como autores do assassinato de Arcelino Furtado, 5 de janeiro de 1935.
Exposição:
No dia 5 de janeiro de 1935, ao meio-dia, na estrada que conduz da Vila
Nova à sede do distrito do Degredo, foi assassinado com tiros de arma de
guerra e de revólver, o capitão Arcelino Furtado, então subprefeito e
subdelegado de Polícia naquele distrito. Assumiu o delegado Inocêncio Mendes,
que retomou as investigações e elaborou relatório, enviando ao juízo municipal.
O crime ocorreu na ausência de testemunhas, inúmeras foram as suspeitas,
mas o relatório aponta Augusto Cardoso, Ramiro Moura, Pedro Rodrigues
Padilha, Raimundo Fagiolo e um negro foragido, cujo nome se ignora. O promotor
público, de posse do processo, apresentou denúncia-crime contra Pedro
Moura, Honorato Vitello, Raimundo Fagiolo e Pedro Rodrigues. Instaurado o
processo penal, os réus compareceram em juízo e, submetidos a interrogatório,
negaram sua participação intelectual e material do fato criminoso. Nas audiências
depuseram todas as testemunhas. Terminada a inquirição, a última testemunha,
Laudelino dos Santos Moraes, menor de 16 anos de idade. Com base
neste o promotor requer a prisão dos dois indiciados a fim de prosseguir no
sumário de culpa.
Fundamento:
Solicitamos de Vossa Excelência assinalar que as investigações não
obtiveram nenhuma prova contra os indiciados. O crime cometido a 5 de janeiro
de 1935, ao meio-dia, em lugar habitado, permanece até hoje envolto na escuri
122

Além da Tocaia

dão, e não houve a identificação dos criminosos. Ainda envolto em trevas, sem
saber os autores, o que está a desafiar a autoridade judiciária, mesmo assim o
Dr. Juiz decretou a prisão, por entender fazer justiça.
Como pode alguém se refugiar de um crime que praticou da tocaia, com
ausência de testemunha, vai chegar pelos fundos de uma casa comercial, em
vez de preferir entrar pela frente, de modo que todos ouçam: “Matamos o
veado”. Como se vê, os indícios são vagos, leves e remotos. A vítima tinha
elevado número de inimigos no distrito. Eram muitos os moradores do distrito
que possuíam armas de guerra, arrecadadas pelo Exército. No dia do crime
Pedro Moura viajava de Igrejinha para Vila Nova, tendo almoçado ao meio dia
em Santa Fé, distante cinco léguas do local.
Diante do exposto, os impetrantes esperam que Vossa Excelência se
digne conceder a ordem ora impetrada, mandando expedir alvará de soltura a
favor de Honorato Vitello e Pedro Moura, por direito. Redenção, 16 de agosto
de 1936.
O juiz deu concessão à liminar.
123

P a r t e IV

Busca da Verdade

“Todas as ficções desaparecem da verdade, e todas as


loucuras se aquietam diante da razão” (Herbert Marcuse).
RELATÓRIO VERDE

Em 1936, a Justiça instaurou processo-crime contra Pedro Moura, Pedro


Rodrigues Padilha, Honorato Vitello e Raimundo Fagiolo, indigitados co-autores,
material e intelectual do assassinato do capitão Arcelino Furtado, subprefeito
e subdelegado de polícia do 2º distrito de Redenção, ocorrido em 5 de janeiro de
1935, denominado “o crime da tocaia”, entre Vila Nova e Degredo. Encerrada a
formação de culpa pelo Dr. Juiz desta Comarca, reconhecendo a inexistência de
maiores elementos comprobatórios de culpa.
Justificativa:
Dada à gravidade do fato delituoso, que se revestiu de circunstâncias,
bárbaras e brutais; esta Delegacia de Polícia não esmoreceu no intento de obter
um rumo seguro, que pudesse conduzir à elucidação do funesto crime. Em meio
a muitas diligências chegou a nosso conhecimento que Ramiro Moura, com
procedente duvidoso, já sofrera processo pela Justiça, e na época não averiguado
por ter praticado o roubo de um boi pertencente ao subprefeito e delegado
de polícia João Delfino Calone. O fato sobrelevou de importância, quando
tivemos conhecimento, pela circunstância da vítima do furto, era autoridade,
que este não tomou providências legais que a ocorrência reclamava. Veio a
nosso conhecimento que Ramiro Moura teria declarado que João Calone nada
poderia fazer porque não dispunha de motivos para lhe por na cadeia.
O delegado de Novo Horizonte, que efetuou a prisão de Ramiro Moura
em Santa Fé, transportou-o para esta Delegacia. O mesmo, interrogado, acusou
seu irmão Manoel Moura de executante do traiçoeiro e bárbaro assassinato
praticado contra a pessoa do infortunado Arcelino Furtado, bem como apontou
como mandantes: João Calone, Antônio Luiz Giardino, Julio Silvestre
Casieri e Honorato Vitello, o último um denunciado anterior.
Do mesmo modo ocorreu com Manuel Moura. Em suas declarações
aponta os mesmos indivíduos como autores intelectuais do crime.
A contribuição das informações esclareceu o mistério por tantos anos
encoberto; uma prática hedionda do brutal delito. Em 1º de fevereiro do corrente
foi realizada a diligência e transportados para a cadeia civil desta cidade os
127

Teobaldo Branco

referidos: João Calone, Antonio Giardino, Honorato Vitello e Julio Silvestre


Casieri. Tratava-se de um verdadeiro complô no intuito de retardar os interesses
da Justiça e evitar que, com possível intervenção de embustes e negócios,
se pudesse embaraçar o bom andamento do inquérito, sendo indispensável a
decretação de prisão preventiva, não só dos dois confessos, como também dos
mandantes conhecidos e apontados.
Nesta apresentação que faço a Vossa Excelência dos indivíduos citados
perceber-se a materialidade que se encontra devidamente provada pelo auto de
necropsia constante no processo de instauração em 6 de junho de 1938, contra
os autores e co-autores do “crime da tocaia”.
Redenção, 2 de fevereiro de 1940. Fernando Alves e Silva – Delegado de
Polícia.

QUARTA CONVOCAÇÃO
PARA DEPOIMENTOS

Aos 28 de fevereiro de 1940, na sala de audiências no edifício do Foro


desta cidade de Redenção, presente o juiz municipal, Dr. Eduardo João Bueno,
o escrivão nomeado, Promotor Público, Delegado de Polícia; os interrogados:
Ramiro, Manuel e José Moura e testemunhas Laudelino dos Santos Moraes e
José Francisco da Silva, ouvidos na forma da lei.

PRIMEIRO “CONFESSOR”

*14º depoimento – de Ramiro Moura, 40 anos, “confessor do crime”,


casado, branco, jornaleiro, analfabeto, filho de Hermínio José Moura e Emilia da
Silveira Moura, residentes no município de Novo Horizonte.
Juiz: – Queremos somente a verdade. Fale de sua vida e conte tudo
sobre o fato narrado.
128

Além da Tocaia

– Bom! Vivi durante 12 anos como empregado na fazenda de João


Delfino Calone, mas certo dia eu tive de sair da fazenda.
– Por que saiu?
– O patrão Calone aconselhou-me a escapar da região porque Arcelino
era muito ruim. Segui o conselho, indo residir em Santa Fé, município de Novo
Horizonte, depois fui trabalhar em Campal, com o agrimensor Sabino Anner da
Silva. Depois de um mês, lá chegaram de automóvel onde eu estava: o motorista
que era meu irmão Pedro. João Calone e Antônio Giardino, que depois de me
cumprimentar, chamou-me de um lado. O João Delfino disse-me em voz baixa:
– Tenho um serviço para ti.
– Que tipo de trabalho? perguntei.
– Quero que você mate o Arcelino Furtado.
– Matar! O Arcelino Furtado! – Exclamei. Ele disse:
– Por isso você vai receber 15 contos de réis, o mesmo que CR$ 15.000,00
Digo mais, com CR$ 5.000,00) você pode promover sua defesa, sobram CR$
10.000,00 para negociar e viver sem trabalhar. Lembra da briga, você soube
defender-se bem. O que acha?
– Bom! – Diante da oferta e de minha situação de pobreza, decidi aceitar.
– E daí em diante, como ocorreu? perguntou o juiz.
– Acompanhei João Calone e Antônio Giardino, e durante a viagem
Antônio Giardino ficou em Rio Branco. No dia seguinte segui para Vila Nova,
permaneci na fazenda de João Calone, às escondidas. Nos primeiros dias houve
alguns encontros entre Calone, Antônio Giardino, Honorato Vitello e Julio
Silvestre. A primeira conferência ocorreu no mato existente no invernada da
propriedade de Vitório Denarde. Ali estavam presentes João Calone, Antônio
Giardino e Honorato Vitello. Eles discutiram como devia ser o serviço para não
deixar pistas. João Calone recomendou-me que escolhesse uma pessoa de minha
confiança para acompanhar e se necessário ajudar no serviço, porque o
bicho é vigilante e brabo. No outro dia pensei no meu irmão Manuel.
129

Teobaldo Branco

– Continue detalhando todos os passos, ordenou o juiz.


– O patrão, João Calone, dois dias depois, indicou um ponto da estrada
geral, dizendo para comparecer às oito horas da noite, numa estrada de sua
fazenda. Eu saí a pé, lá momentos depois chegou João Calone, a cavalo, com
meu irmão Manuel. Voltamos para a fazenda e no outro dia à noite voltamos a
procurar um ponto estratégico, indicado por João Delfino Calone, para organizar
a “tocaia da estrada”, próximo a Vila Nova e o Degredo. Eu e Manuel saímos
a pé da fazenda sem ser vistos. João Calone foi a cavalo, entrou disfarçado no
mato, lá desmontou, levando-nos até um local próprio para a espera, localizada
na volta da estrada, dentro do mato. Era perfeito o local no interior da “tocaia”,
precisamente no cotovelo, permitindo visualizar qualquer transeunte, nos dois
corredores da estrada. Na ocasião João Calone disse: – Este lugar é o melhor
ponto para a espera, favorece a visão, vai ser a melhor tocaia que já vi. Veja aqui
a forquilha para escorar o fuzil, onde terá uma mira tranqüila; quero trazer o
Giardino, o Casieri e o Honorato aqui para confirmarem.
– O que foi feito no local da tocaia, dentro do mato? perguntou o juiz.
– O senhor João Calone desgalhou algumas árvores preparando o lugar
para que pudesse se movimentar com liberdade sem fazer ruído.
– Qual era o dia e horário? quis saber o juiz.
– O dia não me lembro, mas eram umas nove horas da noite. Naquele
momento fomos surpreendidos, quando vimos que ia passando o delegado
Arcelino, dirigindo-se da subprefeitura para a sua casa. Até o João Calone
escondeu-se e quietos observamos. Tomamos um susto, mas não fomos vistos.
– O que foi decidido ali e o que fizeram? indagou o juiz.
– Voltamos para a fazenda e retornamos outro dia para verificar e tomar
ciência do lugar, daí nós entramos na tocaia fazendo uma volta, vindo pelos
fundos do mato para não deixar pistas.
– E depois, nos outros dias, como foi a preparação, as armas e quem ia lá
visitar vocês? voltou a perguntar o magistrado.
130

Além da Tocaia

– Depois, eu e meu irmão Manuel permanecíamos duas ou três horas de


manhã e à tarde e, pelos fundos saíamos tentando não deixar corredor. Voltava
para a fazenda do Calone. Lá na fazenda, uma noite Manuel me falou: – Isso não
é bom, Ramiro. A verdade tem olhos, ainda é tempo para desistir, não temos as
armas. Eu disse:
-Vamos assistir à reunião daqui a pouco, daí vamos ver o que faremos.
– O que aconteceu? perguntou o juiz.
– Naquela noite o encontro foi no mato da invernada de Vitório Denarde.
Lá estavam João Calone, Antônio Giardino, Julio Casieri e Honorato Vitello. Na
ocasião Julio Casieri tirou seu revólver da cintura e alcançou a arma para Manuel.
Foi combinado que o Arcelino seria chamado de “Veado pardo”. Antonio Giardino
disse: – Amanhã providenciaremos as armas e logo estão no local para o serviço.
– E depois?
– No outro dia ficamos ocultos na espera da “tocaia”, quando chegou
João Calone, caminhando baixo, com um mosquetão com dez balas e seu revolver
carregado. Eram as armas para matar o “Veado pardo”, explicou.
– Continue explicitando a história, ela é curiosa. solicitou o juiz.
– No outro dia, o Arcelino Furtado passou com sua ordenança, de nome
Peçanha. Tanto um quanto outro, segundo João Calone, eram homens de ação.
A espera estava armada há alguns dias e não havia ordens de execução.
– Então vocês deviam aguardar a ordem? perguntou o Juiz.
– Sim! Certo dia, eles reuniram-se pela terceira vez para as últimas ordens.
Naquela ocasião eu estava quase convencido pelo meu irmão Manuel,
que sugeriu a desistência do intento de matar Arcelino. Contamos sobre a idéia
e João Calone, respondeu: – “Matar Arcelino Furtado é como matar um cachorro,
que não dá incomodo a ninguém”. O senhor Antônio Giardino disse: –
“Cachorro sem valor deve ser morto”. Julio Casieri e Honorato também disseram:
– “Este maldito não tem ninguém por si, e quem vai tomar peito depois de
sua morte?” Calone disse: – “Temos dinheiro”. Giardino completou: – “Com
dinheiro qualquer um pode defender-se”.
131

Teobaldo Branco

– História inacreditável, continue relatando tudo. – autorizou o juiz?


– Passaram-se muitos dias e Arcelino Furtado andava sempre acompanhado
de sua ordenança, o que levava a adiar o serviço. Honorato tinha sua
casa comercial a 500 metros. Ele aparecia seguido pelos fundos da mata no local
da espera, levar comida e água, era mês de fevereiro e quente. A casa comercial
de Honorato ficava entre a Subdelegacia e a “tocaia”. Ele vigiava e informava,
sobre o movimento de saída e chegada da escolta do capitão Arcelino Furtado.
A sua residência localizava-se num terreno alto, que permitia observar a vítima
e o predador da tocaia. A posição do esconderijo foi muito bem pensada, entre
os mandantes.
– Quanto tempo vocês permaneciam na espera? E a noite, o que faziam?
– No local da tocaia a gente ficava durante o dia, lá estudava os horários
de passagem do “Veado pardo”. Permanecíamos todas as manhãs e todas as
tardes até anoitecer espreitando a sua volta. De noite retornávamos para a fazendo
de João Calone, lá recebíamos instruções sobre o que fazer depois. Assim
tivemos algumas semanas até que certo dia, pelas nove horas da manhã, chegou
Honorato, pelos fundos da mata até a tocaia, onde estávamos eu e meu irmão
Manuel. Honorato disse: – Vim avisar: “O Veado vem corrido e sozinho”. Ele
usava um revólver na cintura, de João Calone, retirou-se depressa para sua casa.
– Como aconteceu o fato? perguntou o juiz.
– Ao aproximar-se do meio-dia, vimos o capitão Arcelino acompanhado
de alguém, que veio até a casa comercial de Honorato Vitello, mas o referido
acompanhante apartou-se, seguiu em outra rua, direção ao norte, daí ele veio
devagar, ameaçou galopar em seu cavalo baio, o que tornaria difícil a pontaria.
De repente tornou marcha lenta, bem ereto, retornando para casa para almoçar.
– Qual foi seu procedimento naquele momento, conte a verdade? ordenou
o juiz.
– Eu apoiei o mosquetão na forquilha preparada por João Calone e
esperei na pontaria. Arcelino Furtado passava a cavalo defronte à tocaia, numa
distância de uns 30 metros, puxei o gatilho, vi que ele sentiu impacto de uma
132

Além da Tocaia

bala de fuzil, acertei debaixo do braço, atravessou o peito, foi tudo muito rápido.
Ele permaneceu ainda a cavalo, atirei novamente e recebeu um segundo
tiro, daí ele caiu da sua montaria, levando um tombo no solo. Vi que perdeu a
força, seu cavalo disparou em direção à casa, ele ainda tentou sentar e puxar
seu revólver num instinto de defesa, mas eu saí rápido da tocaia, sem dar
tempo, indo até a estrada onde estava caído. Já com o revólver em punho dei
mais um tiro na cabeça para assegurar, porque diziam que esse delegado era
uma fera. Olhei para os lados da estrada não havia ninguém, peguei dele alguns
objetos: carteira com dinheiro, que continha CR$ 1.700,00, o revólver, outros
objetos e retornei para o esconderijo da tocaia, fugindo depois do local. Apresentei-
me ao Sr. Honorato em sua casa.
– Ao se apresentar ao Honorato Vitello, onde foi e o que foi dito na
ocasião, quais as pessoas que entraram em cena? perguntou o juiz.
– Eu entrei pelos fundos da casa até a loja.
– O que você disse na chegada ao senhor Honorato Vitello? voltou o
juiz.
– Disse que o veado estava morto.
– O que Honorato respondeu?
– Ele disse que custamos, mas matamos o veado.
– Quem se encontrava na ocasião e o que foi dito? quis saber o juiz.
– Achava-se na ocasião um menino, que perguntou: – O veado era
gordo? Honorato não gostou da atitude daquele menor.
– O que mais foi dito na ocasião? perguntou o juiz.
– Não lembro!
– O que fez seu irmão Manoel? voltou a perguntar o juiz.
– Depois do serviço Manoel, meu irmão, um tanto apavorado, tomou
rumo ignorado pelo interior da mata, sumindo do distrito. Eu fui receber o
prometido na última conferência que ocorreu na mesma noite, no mesmo lugar,
133

Teobaldo Branco

no mato da invernada de Vitório Denarde. Estavam lá presentes João Calone,


Antônio Giardino, Julio Casieri e Honorato Vitello. Entregue a eles as informações
e os objetos que tirei do delegado e fui receber o pagamento de CR$
5.000.00. Eu fui receber o pagamento no porão da casa de João Calone. Antes
de sair João Calone, junto com seus companheiros, aconselhou se caso viesse
apertar, era para apontar Zeca Pires como autor do assassinato. João Calone
ficou contrariado com a perda da vareta do mosquetão. Ele entregou o revólver
de Arcelino ao Antônio Giardino.
– O pagamento foi pontual? perguntou o juiz.
– João Calone havia prometido CR$ 15.000,00. Recebi CR$ 5.000.00, depois
não tinha mais dinheiro. Na ocasião João Calone recomendou segredo
sobre o crime. Várias vezes pedi o restante do pagamento de CR$ 10.000.00, da
dívida. Os mandantes alegavam falta de dinheiro. Numa ocasião eu precisava
de cem cruzeiros, o Honorato mandou-me trabalhar, trabalhei 15 dias e não
consegui, fui à casa de João Calone, que também negou o dinheiro. Ante a
negativa fui a sua invernada e peguei um boi e vendi a Rivadavia Dorneles.
João Calone descobriu e me chamou na Delegacia e lá disse: – Você é criminoso
e ladrão, pare de conversar se não te ponho na cadeia. Por esse motivo resolvi
revelar a verdade para responder pelo que fiz, mas todos os cúmplices deverão
pagar na Justiça o que devem.
– Esse grupo já havia feito outros planos iguais a este? perguntou o
juiz.
– Sim! Eu ouvi falar que o grupo já havia planejado eliminar Ari Rener,
ex-subprefeito e subdelegado de Polícia do Distrito, não aconteceu porque ele
era matreiro. Também planejaram matar outro ex-subprefeito e subdelegado, o
Sr. Protásio do Nascimento, em sua propriedade. O sujeito errou o tiro e ele
escapou.
Juiz encerrou depois de 6 horas de depoimento.
134

Além da Tocaia

PRISÃO PREVENTIVA Nº 02

Considerando merecer fé as provas, que não desvia da responsabilidade


do crime; a testemunha, Ramiro Moura, confessou com frieza a autoria
material do homicídio. Ele junto com seu irmão Manuel, narrando com extraordinário
sangue frio, o hediondo crime por ele praticado, declarou ter perpetuado
o mesmo por ordem de João Delfino Calone, Antônio Luiz Giardino, Julio
Silvestre Casieri e Honorato Vitello, sendo executado por meio de um plano
maquiavélico e covardemente arquitetado sob pagamento de CR$15.000,00.
Base em testemunhas, José Francisco da Silva declara que durante um mês,
por ordem do seu patrão João Calone, teve de montar guarda na casa deste,
Antonio Giardino e Honorato. Receava que suas casas fossem assaltadas por
parentes ou amigos de Arcelino Furtado. Antônio Giardino estava nervoso na
noite de montar a guarda. Ao passar no local do crime José Francisco, ingênuo,
questionou “Quem será que matou este homem?”, obtendo resposta de
João Calone: “Isto foi o Giardino”. Laudelino Moraes declara que ao chegar à
casa comercial de Honorato no dia do crime, Pedro Moura e seu irmão Ramiro,
afirmaram: “Matamos o veado”, que o menor presente perguntou: “O veado
era gordo?”, confirma a resposta do filho do comerciante, que disse: “Mataram
o Arcelino Furtado”. Dessa forma acha-se totalmente provada a
materialidade do delito, bem como a autoria intelectual concorrida para haver
o crime. Crime hediondo, inafiançável, requer e decreto a prisão preventiva
dos indiciados Ramiro Moura, Manoel Moura, João Calone, Antonio Luiz
Giardino, Julio Casieri, Honorato Vitello, em conformidade com o disposto
no Código no Processo penal. Redenção, 10 de fevereiro de 1940 – juiz: Eduardo
João Bueno.

DEPOIMENTOS

*15º depoimento – de Manuel Moura, 36 anos, casado, analfabeto,


jornaleiro, filho de Hermínio José Moura e Emília da Silveira Moura, residente
no 2º distrito.
135

Teobaldo Branco

– Juiz, depois da leitura acusatória: – É verdade que se encontrava no


interior da tocaia no momento do crime?
– Sim!
– Por que concordou com seu irmão?
– Alguns dias antes do assassinato de Arcelino, meu irmão Ramiro convidou-
me para o serviço mediante pagamento, sem estipular valores, a mando
de homens do distrito. Ramiro explicou com detalhes a tocaia e sempre ao se
referir a Arcelino Furtado dizia, “Veado pardo”.
– Conhecia a vítima e tinha boas relações?
– Sim! Todos são importantes na sociedade.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*16º depoimento – de João Delfino Calone, 44 anos, diante do juiz,
delegado, escrivão e representante da Promotoria:
– Sabe por que está aqui?
– Sim! Sobre o crime não tenho nada a dizer. Conhecia a vítima durante
o tempo que residiu no distrito, e os denunciados há muitos anos. Os mesmos
são homens de direito e nada têm em seu desabono de conduta. Todos são
bons, a vítima, sim, era de péssimo procedimento.
– O senhor é acusado de ser inimigo político e autor intelectual da morte
de Arcelino.
– Autor não! Sempre houve respeito entre eu e a vítima. Uma vez na
casa de comércio de Honorato Vitello havia uma palestra política, surgiu desentendimento
em virtude da prisão de Anolino Teixeira e Angelim Cazati, efetuada
por Arcelino Furtado. Na época Honorato Vitello declarou que: “Se não tirarem
este homem daqui, tenho quem acabe com ele”. Em pouco tempo houve o
assassinato. Assim ocorreu na minha casa comercial. Pedro Rodrigues Padilha,
dias antes, num desentendimento com Arcelino, disse: “Qualquer dia encho de
bala a barriga dele”.
136

Além da Tocaia

Foi dada a palavra ao advogado de defesa, que perguntou:


– É do seu conhecimento que a viúva de Arcelino o aponta como um dos
participantes do assassinato de seu marido?
– Sim! Soube que Antônio Giardino e José Medonho estiveram presos
por suspeitas, nada mais tenho a dizer.
O juiz encerrou o depoimento
*17º – depoimento – de Julio Silvestre Casieri, 41 anos, casado, funcionário
público (escrivão), filho de Pascoal Casieri e Lucia Casieri, residente no 2º
distrito.
Juiz: – No dia do crime o que presenciou?
– Após a realização de um casamento no Cartório próximo da
Subdelegacia e Subprefeitura, às onze horas fui para casa, em Vila Nova. Em
seguida chegou Pompilio dos Reis dizendo que “Assassinaram Arcelino Furtado”
e pedia que fosse ao local e avisasse o Juiz distrital Alonso Gonçalves. No
local estavam Amélia Furtado, Ermelindo dos Santos, Antonio Giardino, mais
duas pessoas que não lembro. Depois do levantamento transportaram-no para
a casa da viúva. Acompanhei o transporte e voltei, chegando no café de Pedro
Moura. Comprei doces e saí. Voltei na casa do finado, permaneci meia hora em
companhia do juiz distrital e retirei-me para minha casa.
– Conhece Jandira da Silva?
– Sim! Era nossa empregada.
– A sua casa tinha janela no sótão e de lá podia avistar o local do crime
e a casa de Honorato Vitello?
– No sótão tinha janela, do local podia se ver meio corpo. A residência
do Honorato não se avistava.
– Era amigo ou inimigo de Arcelino Furtado?
– Amigo e partidário
– É parente de alguém dos denunciados?
137

Teobaldo Branco

– Antonio Giardino e Honorato Vitello são cunhados, os outros amigos.


– Conhece Ramiro, Manuel e Pedro Moura, e tem algo a declarar?
– Sim, conheço! Sobre Manuel e Pedro nada tenho a declarar. Ramiro sei
que se envolveu em crime, em que foi vítima José Padilha, e um furto em que foi
vítima o Sr. João Calone.
– Na gestão de João Calone na Subdelegacia e Subprefeitura do distrito
o senhor foi processado?
– Sim! Por uma denúncia de Artelino de Oliveira, por ter amarrado o
denunciante, mas fui absolvido.
– Sabia da presença de armas de guerra no distrito?
– Soube depois do desarmamento no distrito.
– Sabia que Honorato tinha um mosquetão do exército, uma winchester
e um bornal com munições?
– Não sabia.
Nada mais havendo o juiz encerrou o depoimento.
*18º depoimento – de Antonio Luiz Giardino, 48 anos, casado, industrial,
filho de Luiz e Adélia Giardino, residente no 2º distrito de Degredo.
Juiz: – Sobre o inquérito, o que tem a declarar?
– Residi 25 anos na Ponte Grande e transferi-me para cá. Ao chegar aqui,
tinha apenas um rancho na sede, à Rua do Divino. Era um lugar muito atrasado.
Sou o fundador com a primeira casa comercial; depois desenvolveu-se com a
chegada de mais gente no lugar.
– Como explica ao ser recolhido à cadeia civil, a recomendação ao soldado
Baltazar para que se “fechasse”, querendo dizer, não declare nada sobre a
morte de Arcelino Furtado?
– Nada tenho a declarar.
– Ausentou-se do distrito dois dias antes do assassinato, e qual o destino?
138

Além da Tocaia

– Viajei para Rio Branco, município de Novo Horizonte, depois passei


em Santa Fé e Igrejinha, no automóvel de praça de Pedro Moura. A mulher de
Pedro Moura foi para minha casa com 10 anos e saiu com 19 para casar com
Pedro.
– Lembra com quem falou e o quê?
– Com Dr. Honório Lisboa. Ele me perguntou: “Como vai o homem lá?”.
Eu respondi que em poucos dias ele não incomodaria mais, porque já está
nomeado o seu substituto. Na verdade a vítima era meu companheiro político,
em 1934, mas depois, devido a sua ação no distrito, deixei de apoiá-lo.
– Resolveu deixar o distrito por causa da vítima? Se afirmativo qual o
motivo?
– Saí do distrito e mandei dizer pela minha mulher, que não voltaria
enquanto o Arcelino estivesse lá. O motivo eram suas declarações: “Que precisava
botar selo de comunista na testa do Calone”, atitude que não concordo.
Arcelino declarou que com o partido frentista dali em diante era no pau.
– Quando soube do assassinato e, se, pensou em alguém, quanto à
pessoa de João Calone, há possibilidade de ele mentir?
– Pensei! Como uma pessoa seria capaz de praticar um crime? Quanto a
João Calone, tenho-o como pessoa séria e verdadeira.
– Suspeita que Honorato Vitello possa ser responsável pelo crime de
Arcelino Furtado?
– Cheguei a supor, pela intriga que existia entre ambos.
– Como explica sobre Ramiro e Manuel Moura sendo executores do
crime?
– Tenho certeza de que é uma traição, não sei de onde partiu. Ramiro e
Manuel são “sujeitos baixos”, em todos os procedimentos.
– Considera mandantes João Calone, Honorato Vitello e Julio Silvestre
Casieri?
139

Teobaldo Branco

– Acho que não! Nenhum deles está envolvido no crime.


– Conhece José Francisco da Silva e se João Calone a fez seu capataz na
fazenda, o que sabe a respeito?
– Sei que José Francisco da Silva era seu capataz. Certa vez, ele foi
esbordoado por Luiz e João Batista Fabrin, sendo comprado por este para não
levar a questão adiante, era no tempo de João Calone, o subprefeito e
subdelegado de Polícia.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.

ADITAMENTO DO RELATÓRIO

Em aditamento às investigações policiais procedidas em torno do homicídio


do capitão Arcelino Furtado, e remetidas a este juízo, quando do pedido
de prisão preventiva, feito por essa Delegacia de Polícia encontram-se Ramiro
Moura, Manoel Moura, João Delfino Calone, Antônio Luiz Giardino, Julio
Silvestre Casieri, e Honorato Vitello. Passo às mãos de Vossa Excelência as
seguintes peças: depoimentos de Pedro Rodrigues Padilha, José Moura, Pedro
Moura, Antonio Giardino, Julio Silvestre Casieri, João Delfino Calone e Honorato
Vitello; o auto de apreensão de um revólver, que se faz acompanhar das fotografias
correspondentes ao objeto desta medida; a reconstituição do delito,
compreendendo um croqui do local do fato e oito fotografias destinadas à
melhor elucidá-la. Para melhor compreensão do delito que serve de objeto a
estas investigações na ocasião em que foi registrado:
Fato Criminoso:
O distrito de Degredo, de município de Redenção, em 1935, apresentava
certo tumulto em decorrência das campanhas políticas que ali se verificaram. A
vítima, subprefeito e subdelegado de Polícia do distrito, como é natural, participou
das campanhas. Por outro lado, autoridade zelosa e enérgica, Arcelino Furtado
procurava fazer que a lei fosse respeitada na sua jurisdição. É fácil compreender que
a vítima angariasse certas inimizades, gratuitas e traiçoeiras, que partiam daqueles
que não se conformavam com a ação decidida e enérgica da referida autoridade.
140

Além da Tocaia

Esta foi a origem do complô, hoje desvendado, que maquiavelicamente


se formou para assassinar Arcelino Furtado. Deste concerto criminoso passaram
a tomar parte as pessoas que, por a sua posição social e situação econômica,
melhor poderiam levar a cabo a empreitada sanguinária, e reuniram, com
efeito, João Delfino Calone, que além de criador e comerciante é pessoa de
influência que vem ainda das antigas campanhas políticas; Antônio Luiz
Giardino, que a sua condição de industrialista e pecuarista juntava também a
posição de líder político; Julio Silvestre Casieri, escrivão do distrito, e Honorato
Vitello, comerciante na sede do referido distrito. Estes foram, até onde indicam
os esclarecimentos já apurados, mandantes do brutal e bárbaro homicídio, e
tiveram como executantes, como se infere das confissões já remetidas a juízo,
Ramiro Moura e Manuel Moura, o primeiro envolvido em outro fato delituoso,
a morte de José Padilha, fato ocorrido em 1932.
Nomeado o senhor Protásio do Nascimento como subdelegado do distrito,
tomando as providências oportunas e adequadas, procurou esclarecer o
homicídio para poder apontar os responsáveis pelo assassinato. O delegado
de Polícia, o Sr. Inocêncio Mendes, retomou as providências para esclarecer o
assassinato com as indagações remetidas a juízo. Foram apontados como responsáveis
pela morte do capitão Arcelino Furtado os indivíduos: Pedro Moura,
Pedro Rodrigues Padilha, Honorato Vitello e Raimundo Fagiolo.
Esta Delegacia de Polícia não esmoreceu no seu empenho de esclarecer,
nos seus detalhes reais, aquela ocorrência delituosa. Foi então que, de diligência
em diligência, veio a apurar que o indivíduo Ramiro Moura, que por muitos
anos havia trabalhado, com João Delfino Calone, teria tomado parte no fato
delituoso. Localizado o paradeiro onde se encontrava trabalhando, no município
de Novo Horizonte, na fazenda do major Vitor Hugo da Veiga, solicitou-se
ao delegado de Polícia daquele município a captura de Ramiro Moura. Preso em
razão desta solicitação e remetido para a cidade de Redenção, ele foi interrogado,
quando confirmou sua participação no delito. Com os detalhes concordantes
e correlatos de sua confissão, indicou como mandantes: João Calone,
Antônio Giardino, Julio Silvestre Casieri e Honorato Vitello. As informações
prestadas por Ramiro Moura, além de apontarem os mandantes, revelaram a
141

Teobaldo Branco

participação de seu irmão Manuel Moura na consumação do delito. Com esta


pista remontamos a sua perpetração de toda a ocorrência delituosa. As peças
remetidas a Vossa Excelência são agora completadas com as que neste momento
passo as vossas mãos.
Os informes com indagações policiais remetidas a juízo vêm esclarecer a
responsabilidade penal: Ramiro Moura, Manoel Moura, Antônio Luiz
Giardino, João Delfino Calone, Julio Silvestre Casieri e Honorato Vitello,
aos quais foi decretada a prisão preventiva.
Informo a V. Exa. que, apesar de haver mencionado no início deste relatório
que a presente investigação seria acompanha também de uma
reconstituição do delito, esta peça, por não ter sido ainda inteiramente concluída,
que será oportunamente remetida a juízo.
Estas são as informações que se cumpria prestar, referentes ao assassinato
do ex-subprefeito e ex-subdelegado de Polícia do distrito de Degredo,
Capitão Arcelino Furtado. Redenção, 5 de março de 1940. Fernando Alves e
Silva – Delegado de Polícia.

O REENCONTRO

O assassinato do capitão Arcelino levou sua esposa Amélia e sua filha


Nádia, alguns meses depois a se mudaram para a terra de origem. A filha e a mãe
sofreram um choque dramático com a tragédia, que abalou suas vidas. O crime
levou a um ambiente confuso e de desconfiança, envolvendo muitas famílias,
não havia ambiente para mãe e filha residir no local. O pai de Leone era seriamente
suspeito no envolvimento do assassinato de Arcelino Furtado, por inimizade
política, por isso houve um afastamento entre seu filho Leone e Nádia.
O tempo foi colocando as coisas nos lugares, houve as primeiras prisões,
o tempo levou adiante a vida daquela gente.
Certo dia, depois de três anos, Leone viu em Três Maria a sua Nádia
passar numa rua em frente, a uma quadra, e dobrou, seguindo adiante. Pensou
nela e sentiu um forte desejo de tocá-la, aquela atração o levou a segui-la, era
142

Além da Tocaia

meio-dia. Ela, com um vestido rosa, de cabelos compridos e uma pasta na mão,
acompanhada de outra senhora, entraram num restaurante. Leone passou e
observou, percebeu que era realmente Nádia. Encantado, Leone atreveu-se a
entrar no restaurante e enfrentar o destino que o atraía. Rodeou a mesa onde
Nádia estava sentada e pediu licença:
– Nádia! Quanto tempo. Não pude passar sem vê-la.
Com receio de dar-lhe a mão para a saudação de chegada, apenas olhou
e sorriu, enquanto que Nádia levantou-se, inicialmente empalideceu, e um pouco
trêmula disse:
– Leone! Como vai?
– Nádia! Nádia!
– Leone! Saímos lá do distrito porque o ambiente era péssimo. E você,
como está?
O momento transformou-se num sepulcro de lembranças, entre as imagens
da esperança do amor que nascia entre os dois jovens. Ao mesmo tempo
revoava o episódio funesto que separou os destinos de Leone e Nádia. Ambos
de pé, Leone ofereceu a mão para saudá-la, dizendo:
– Bom dia, Nádia! Fico feliz em falar contigo.
– Bom dia, Leone! Também gostei de encontrá-lo, mesmo que tenha
alguma mágoa do que aconteceu lá no passado.
– Nádia! Eu senti perdê-la naquele instante, você era o meu sonho.
– O destino separou-nos, Leone!
– Nádia, você perdeu o seu pai, eu perdi mais. Eu falei com a minha mãe
sobre nós. Ela apoiou-me, mas um tormento atravessou o nosso caminho. Penso
que tudo tem conserto.
– Leone! Não há possibilidade de voltar como antes. Há uma rocha
muito grande na estrada, que não permite o mesmo fim.
143

Teobaldo Branco

Aquela senhora que acompanhava Nádia era sua tia, que assistia ao
diálogo e limitava-se escutar, mas percebeu que houvera amor no passado
entre os dois jovens. Convidou-os a sentarem:
– Nádia! Convide o moço para sentar.
– Desculpa! Leone, puxe a cadeira e sente-se.
– Obrigado!
O restaurante comportava um extenso espaço, no qual havia várias mesas
com muitas pessoas. Permaneceram sem assunto por algum tempo; a expectativa
era de continuar o diálogo sobre os sentimentos de ambos, mas flores
com espinhos arranhavam a alma da esperança.
– Leone, o que faz agora?
– Trabalho na loja como antes, sou motorista.
– Que bom!
– E você, agora formada, o que faz?
– Sou professora numa escola do município.
– Nádia! Gostaria de saber uma coisa.
– Que coisa?
– Você aceita que eu te visite?
– Leone! Terminou tudo. Desculpe sem ofendê-lo, vá embora, nunca
mais me procure, lamento, mas é assim que deve ser.
– Nádia! Não acredito. Lembra do nosso juramento? Nada podia nos
separar. Podemos recomeçar.
– Leone, existem coisas que você não sabe. São problemas que atingem
a nossa relação. Nem o tempo soluciona.
– Gostaria de saber! Está na hora do ônibus, tenho que sair. Vamos até a
porta, lá você me diz. Nádia conte-me o que não sei, fiquei curioso.
– Não, Leone! O futuro vai lhe dizer. Eu não posso falar, são apenas
lembranças. Leone, adeus. Quero que seja feliz.
– Nádia! Diga a sua tia que eu a amo. Adeus, até breve.
144

Além da Tocaia

DEPOIMENTOS:

*19º depoimento – de Pedro Rodrigues Padilha, 58 anos, branco, casado,


agricultor, guarda-costas, residente no 2º distrito do Degredo.
Juiz: Conhece a vítima?
– Sim! Tinha boas relações de amizade. Certa vez estava bebendo cerveja
num boteco em companhia de outras pessoas, Ataliba Reis, Pompilio dos
Reis e um castelhano que era muito camarada do capitão Arcelino. Na ocasião,
eu fazia referências desabonadoras a outros. Arcelino Furtado ouviu as vozes
que vinham do botequim e mandou um soldado verificar o que era. Eu saí e
troquei poucas palavras com o delegado, mas visto eu estar meio embriagado,
disse-me para comparecer na Delegacia no outro dia pela manhã. No outro dia
fui à Delegacia e chegando lá ele disse-me que apenas desejava tomar um
chimarrão comigo e convidou-me para ir junto a uma festa no povoado de
Centro Novo. Ele declarou que temia alguma “cilada pelas costas”. Eu disse,
pondo a mão no seu ombro: “Eu te garanto as costas e a retaguarda”.
– O que ocorreu lá na festa? perguntou o juiz.
– A festa ocorreu normal, algumas pessoas se embriagaram, mas não
houve desordens. O capitão Arcelino era discreto e não era bruto com os
outros, falava sério e com respeito. Não acreditava que ele tivesse inimigos de
morte, pois pensava que João Calone, Antonio Giardino, Honorato Vitello e
outros gostassem da vítima, até convidaram Arcelino para se fazer presente
numa mesa de cerveja. Sabia que eles sempre foram chefes da colônia e gostavam
de governar a seu jeito o distrito. Alguns dias antes do assassinato eu
ouvi dizer que puseram veneno no poço de água do capitão Arcelino. Também
soube que tentaram matar Protásio do Nascimento, subprefeito que substituiu
Arcelino. Os mandantes sempre se deram muito bem. Soube que Ramiro Moura
roubou um boi da fazenda de João Calone porque este não pagou o prometido
pelo serviço da “tocaia”, o assassinato de Arcelino Furtado. Ele entregou-se a
justiça e denunciando outros envolvidos.
Nada mais havendo, o juiz encerrou o depoimento.
145

ParteV

O Jogo da Investigação

“A maldição do homem é a luta pela liberdade a vida


toda” (Jean Paul Sarte, Filosofo existencialista).
APREENSÃO DE UM REVÓLVER

Delegacia de Polícia de Redenção, 5ª Região Policial.


Aos 5 de abril de 1940, no distrito de Degredo foi aprendido na residência
de João Delfino Calone, pelo delegado Fernando Alves e Silva, escriturário
João Carlos Luz e duas testemunhas; um revolver marca AE, calibre 38, longo,
niquelado, com número 5.545, que se encontrava enterrado no porão do prédio
de propriedade de João Calone. A arma achava-se ilegal. Nada havendo mais a
constar, lido e conforme. Delegado Fernando Alves e Silva.
DENÚNCIA
O promotor público da Comarca apresenta a seguinte denúncia: A Justiça
Pública, por seu representante abaixo-assinado, denuncia Ramiro Moura,
com 40 anos de idade; Manuel José Moura, com 38 anos de idade; João Delfino
Calone, com 42 anos de idade; Antônio Luiz Giardino, com 48 anos de idade;
Julio Silvestre Casieri, com 43 anos de idade; e Honorato Vitello, com 38 anos
de idade, pelo fato delituoso que, com fundamento nas indagações policiais
inclusas, passa a expor:
As agitações políticas que haviam convulsionado o distrito de Degredo
geraram, em 1935, rivalidades e dissensões acentuadas, que, alimentadas pelo
ódio, criaram certo tumulto na vida daquele lugar. Os interesses da ordem,
comprometidos ante as circunstâncias apontadas, exigiam da autoridade distrital
uma atuação enérgica, eficiente e real. O capitão Arcelino Furtado, que se encontrava,
então, à testa da Subprefeitura e da Subdelegacia de Polícia do distrito,
sentindo os imperativos dessa salutar reclamação, passou a desenvolver
enérgica campanha, tendente a fazer que a lei fosse respeitada na sua jurisdição.
Certos elementos, aqueles que se deixavam levar pelos estultos propósitos
de poderio e de mando, não se conformaram com a ação, decidida e enérgica,
empreendida pela referida autoridade.
149

Teobaldo Branco

O ódio que passaram a devotar a Arcelino Furtado os levou a elaborar


um complô sanguinário que, formado com o fim de eliminar aquela autoridade,
se encontra hoje desvendado. Fizeram parte desse concerto criminoso, algumas
pessoas que, por sua posição social e situação financeira, facilmente poderiam
levar a cabo a espreitada sinistra. Estavam neste rol os denunciados
João Calone, criador e pessoa de larga influência no distrito; Antônio Giardino,
industrialista; Julio Silvestre Casieri, escrivão distrital, e Honorato Vitello,
comerciante estabelecido na referida sede. A estes coube, a tarefa criminosa de
conceber a prática do delito, o assassinato de Arcelino Furtado.
Faltava-lhes somente o braço homicida que friamente se prestasse a
executar a tarefa. Encontraram-na, por fim, em Ramiro Moura e Manuel, seu
irmão, a quem prometera, pela execução do crime, a recompensa de quinze mil
cruzeiros. A promessa desse pagamento ocorreu no município de Campal, por
João Calone e Antônio Giardino ao buscar Ramiro Moura. Ele de chegada ao
distrito de Degredo, participou dos planos junto com os demais denunciados,
que faziam reuniões à noite e confabulações para execução do objetivo, e por
fim a execução do crime.
João Calone chegou a escolher junto com Ramiro Moura o local da
espera, auxiliando na preparação do esconderijo destinado à emboscada que
planejavam. Armados pelos mandantes, Ramiro e Manoel Moura passaram vários
dias no local, que ficava entre a residência da vítima e a Subprefeitura.
Constituía, por isso, passagem obrigatória para Arcelino Furtado.
Em 5 de janeiro de 1935, pelas 12 horas, aproximadamente, Ramiro e seu
irmão Manoel Moura foram informados por Honorato Vitello, que os procurou
no local do fato, de que o “veado vinha corrido e sozinho”. E no momento em
que a vítima alcançou aquele ponto, colocando-se ao alcance da mira dos
pistoleiros, foi traiçoeiramente alvejado por Ramiro Moura, que utilizou um
mosquetão apoiado na forquilha de uma árvore. Atingido em cheio por dois
disparos, Arcelino Furtado desmontou de seu cavalo e foi ainda alvejado mais
uma vez, por Ramiro Moura, que saindo de sua tocaia e chegando perto da
vítima caída, com um revólver fez os últimos disparos. Consumado o delito com
a morte instantânea da vítima, Ramiro Moura, depois de lhe haver despojado de
150

Além da Tocaia

seu revólver e de valores que trazia, foi de imediato à casa de Honorato Vitello,
a quem deu conhecimento de haver consumado o selvagem e brutal homicídio.
Recebeu, passados alguns dias da prática do fato, das mãos de Calone, parte
da paga que lhe havia sido prometida, a importância de cinco mil cruzeiros.
A Promotoria Pública assegura o direito de aditar à presente denúncia
novos esclarecimentos trazidos pelo sumário de culpa e passa a indiciar outros
participantes, da trama sanguinária, em que ficaram devidamente elucidadas as
demais ocorrências delituosas referidas pelo denunciado Ramiro Moura nas
suas declarações. Requer contra os indiciados que se instaure o competente
processo, ouvindo-se as testemunhas. Novo Horizonte, 20 de maio de 1940.
Severino Eugenio Machado, promotor público. Confirmado: Eduardo João
Bueno, juiz municipal de Redenção / RS.

DEPOIMENTOS

*20º depoimento – de Guilhermina Alves dos Reis, 37 anos, viúva,


agricultora, analfabeta, residente no 2º distrito.
Perguntada, ela contou:
– Eu estava na roça, em certa ocasião, carpindo próximo de minha casa,
era em fins de fevereiro, quando ouvi alguém me chamar. Voltei o olhar para um
lado e vi Antonio Vitello, comerciante de Centro Novo. Ele saudou-me e disse:
“Mulher! Você pode deixe de trabalhar no sol, desde que vá dizer duas palavras
contra os denunciados, sobre a morte de Arcelino Furtado”. – Como assim? –
perguntei. – Ele disse: “Pago as viagens, bem como sustentarei para o resto da
sua vida, com condições de viver na sombra e água fresca”. Eu disse: – Seu
Antonio sou pobre, mesmo assim, sou incapaz de acusar alguém sem provas,
sou honrada. Pense no assunto disse ele e retirou-se.
Passados alguns dias ele voltou e me perguntou: – “O que resolveu
sobre minha proposta, dona Guilhermina?” Respondi: – Nada! Não posso acusar
se nada sei sobre o crime! Respondi. Antonio Vitello zangou-se comigo, em
151

Teobaldo Branco

resposta me disse: – “Quem nasce para ser cachorro morre acuando”. Assim,
afastou-se sem mais nada dizer. Alguns dias depois fui obrigada viajar no seu
automóvel, junto com o soldado Perceverano Peçanha e Manuel Moura, para
prestar depoimento.
Nada mais a declarar o juiz encerrou o depoimento.
*21º depoimento – de Luiza da Silva Dalmer, 52 anos, casada, doméstica,
casada com Adolfo Dalmer, residente no distrito.
Juiz: – O que sabe sobre o inquérito? Ela respondeu:
– Sou católica apostólica romana por esse motivo estou aqui, antes
morava trabalhava e em Santa Fé, no hospital com Dr. Honório Lisboa. Antes
do assassinato de Arcelino Furtado.
– Dona Luiza, o senhor Antonio Giardino estava doente de fato?
– Ah! O Antonio Giardino ficou em tratamento durante dias, ele recusava-
se a observar a dieta receitada pelo médico. Ele comia carne assada, lingüiça
e fazia uso de bebidas alcoólicas, vinho. Ele disse ao Dr. Lisboa, que não
pretendia se tratar, pois tinha outros interesses.
– Então se tratava de motivos escusos?
– Certamente era disfarce com intenção de eliminar Arcelino Furtado.
Não queria estar no Degredo quando fosse praticado o serviço, para não recaírem
suspeitas.
– O que observou lá no hospital?
– O Dr. Honório Lisboa o estimava. Na ocasião disse ao Giardino: “Não
permita esse ato”. O médico procurou avisar a vítima, mas não tinha nada de
concreto e nem quem fosse rapidamente avisá-lo.
– Dona Luiza, e depois? perguntou o juiz.
– Depois de alguns dias chegou sua esposa Maria Giardino, no hospital.
Então Antonio manifestou o desejo de regressar, mas ela lhe disse que
ficasse para evitar a presença no distrito. Eles saíram, mas não sei se regressa
152

Além da Tocaia

ram ao distrito ou foram para outro lugar. Alguns dias depois passaram ele e a
esposa num automóvel guiado por Pedro Moura. Lembro-me, que o Dr. Lisboa
perguntou ao Giardino: “Como vai com o brabo?”, ao que ele respondeu rindo:
“Aquele não incomoda mais”. Nesse momento Maria puxou seu marido pelo
braço, dizendo-lhe: “Cala a boca homem, você fala demais”. Giardino disse em
nossa presença que ia para Igrejinha, ou para outros dois lugares. Depois do
fato eu, como religiosa, sinto-me cúmplice desse crime.
– Dona Luiza! As suas informações são importantes, continue, insistiu o juiz.
– Antes do assassinato Antonio Giardino e João Calone insistiram para
que eu fosse residir em definitivo no 2º distrito de Degredo.
– Que tipo de serviço fazia no hospital?
– Naquela época tinha licença de parteira. Depois do assassinato, certa
ocasião estava na casa de João Calone, que exercia a Subprefeitura e
Subdelegacia de Polícia. João voltou da casa de Giardino com galinhas assadas,
porque não se realizou um baile por causa da chuva. Eu fui convidada para
comer a dita galinha assada, ao que respondi: – “O que vem do Giardino não
aceito”. A mulher do Calone disse: “O meu marido queria construir uma casa de
material, mas eu me oponho, porque este lugar não pode progredir; aqui eles
são capazes até de matar”. Ela disse mais: – “João combina com aquele gato
seco e faz tudo de acordo com ele” (referindo-se ao Giardino).
– A senhora residiu no distrito?
– Sim!
– Dona Luiza, conte os detalhes.
– Está bem! Outra ocasião, falando com a mulher de Honorato, ela fazia
declarações de desabono a conduta do finado Arcelino, e eu disse: – “Deus
devia descobrir o matador”. Ela respondeu: – “Deus nos livre, dona Luiza,
Deus não permita que se descubra, esse que fez o serviço, permita que goze
bastante”. O meu filho menor, junto como filho de Marcelino Veiga, contou que
ouviu na casa de Vitório Denarde, Honorato Vitello, João Calone, Antonio
Giardino combinarem a eliminação de Arcelino Furtado.
153

Teobaldo Branco

– E daí, dona Luiza?


– Eu repreendi meu filho, que não falasse antes de ir à polícia. Soube da
Laura, mulher de Luiz Aguiar, que foi despedida, por mando de Giardino, e teve
de desocupar a casa; chorando se queixava desse procedimento, que não podiam
fazer isso ao seu marido, por saber muita coisa sobre o assassinato de
Arcelino. Houve um desacerto com João Calone e voltamos para Santa Fé.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*22º depoimento – de Ângelo Vileti, 51 anos, casado, residente no 2º
distrito.
Juiz: O que sabe sobre o crime da tocaia?
– Antes do crime eu residia nas terras de Maria Nicola. Na volta de uma
pescaria no Lajeado dos Patos, ao passar na casa comercial de João Calone, vi
luz numa peça da casa, pensei pelo adiantado da hora que fosse doença. Cerquei
a janela, ouvi a voz de João Calone, dizer: “Quem tem uma espingarda para
matar o leão baio é o Moura”. Não sabia de que Moura se tratava. Reconheci a
voz de Raimundo Fagiolo, que disse: “Cortar os branquilhos”; o Julio Silvestre
disse: “Vou por uma chave no poço”. E Giardino disse: “Isso vira no diabo”.
– Quando ocorreu esse fato?
– Uns 20 dias antes do crime.
– Ouviu dizer os nomes dos autores do crime?
– Na época residia nas terras de João Calone. O Ramiro estava em processo
por crime, soube do roubo de um boi da fazenda de Calone. Não deu em nada.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*23º depoimento – de Marciano Peres, 47 anos, casado, agricultor, residente
em São Lourenço das Missões.
Juiz: Onde estava e o que fazia no dia do crime?
– Trabalhava nos matos de propriedade de João Calone, tirava madeira
que comprava deste para vender para Eufrásio Barbosa.
154

Além da Tocaia

– O que sabe de importante para ajudar a desvendar o mistério do crime?


– Uma vez recebi um recado de João Calone para ir à noite até sua casa
e que chegasse escondido pelos fundos. Deixei o cavalo amarrado no matadouro,
no lado do potreiro, cumprindo suas ordens. Apresentei-me ao Sr. João
Calone, que acabava de chegar acompanhado de Antonio Giardino, e que parecia
estar nervosíssimo. João Calone me convidou para descer até o porão;
chegando lá ele entregou um mosquetão, um revólver e uma caixa de balas a
José Francisco da Silva, dizendo: “Eu preciso de vocês, porque acabo de saber
que vem um grupo de seis homens, gente do Arcelino, bater na casa de Antonio
Giardino e de Honorato Vitello”. Ele ainda disse: – “O Giardino vai pernoitar
esta noite aqui no porão, tem cama, para lograr a vingança, e ao clarear o dia vai
para casa”. José Ferrugem montou guarda várias noites e de manhã retirava-se.
– Suspeitava ou sabia dos autores e mandantes do crime?
– Pelo procedimento observado foram João Calone, Antonio Giardino,
Honorato Vitello e Julio Silvestre, eles diziam sem segredo que eram donos da
colônia, e que os brasileiros deviam obedecer aos estrangeiros. Aqueles que
não obedecessem eles mandavam para o inferno.
Nada mais havendo o juiz encerrou o depoimento.
QUINTA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS
Aos 25 de maio de 1940, no edifício do Foro de Redenção, na presença
do juiz Eduardo João Bueno; escrivão municipal, Dr. Leão Vizinewski; promotor
público: Dr. Severino Eugenio Machado; assistente da Promotoria, Dr. Célio da
Paixão, com a procuração da viúva da vítima; defesa dos réus: Dr. Humberto
Campos e Paulo Macedo, e testemunhas, audiência ouvida na forma da lei.
Escrivão.
*24º depoimento – de Protásio do Nascimento, 45 anos, casado, funcionário
público, ex-subprefeito e subdelegado de Polícia do distrito.
Interrogado sobre o inquérito, Protásio respondeu:
155

Teobaldo Branco

– Fui nomeado substituto de Arcelino Furtado em 6 de fevereiro de 1935


e permaneci até 10 de janeiro de 1938. Fui então transferido para o distrito de
Toros e em meu lugar ficou Honorato Vitello. Alguns dias depois da nomeação
de Degredo, assumi a Subprefeitura e Subdelegacia de Polícia e recebi uma
escolta acompanhada do delegado Manoel Mostarda para proceder à realização
do inquérito sobre o assassinato de Arcelino Furtado. A minha transferência
se deu por que as relações estavam muito tensas no distrito em conseqüência
do crime, houve incompatibilidade com Honorato Vitello, Antonio Giardino
e Julio Silvestre Casieri.
– Quando se procurou esclarecer as causas do crime? perguntou o juiz.
– Em 19 de novembro de 1934, pelas 10 horas da noite, estava dormindo,
quando fui acordado pelas professoras Letícia Minogio e Izali Machado da Silva,
que estavam de passeio na minha casa. Elas avisaram que a casa estava sendo
arrombada. Saltei para ver os autores e não tive sorte, haviam fugido. Encontrei
rastros e sinais de mãos e achei semelhança com as do Antonio Luiz Giardino.
– No velório observou alguma coisa?
– Observei a viúva dirigir palavras a Julio Silvestre: – “Esse bandido
ainda aparece aqui?”.
– Quando autoridade no distrito ouviu disparos de armas de fogo?
– Na época era proibido uso de armas.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*25º depoimento – do Dr. Geraldo Correia, 47 anos, casado, médico,
residente no município de Redenção.
Interrogado sobre o inquérito, respondeu:
– Conheço os quatros denunciados, que são homens honestos e trabalhadores.
Sobre a vítima soube que era agressiva como autoridade, provocou
conflitos, ocasionando ferimentos em pessoas. Certa vez teve de amputar um
braço de um paciente, em conseqüência de ferimentos recebidos da polícia.
Nas eleições a vítima infringia leis eleitorais com escolta armada de guerra. O
chefe Frentista do distrito era Ademar Kremer, de São José, interior do distrito.
156

Além da Tocaia

O advogado, Dr. Humberto Campos, perguntou:


– O senhor como prefeito em seu mandato teve à testa da Subprefeitura
do distrito do Degredo o Sr. Honorato Vitello e João Delfino Calone. Os mesmos
mostraram capacidade em suas funções, trabalho honesto em seu desempenho?
– A gestão nessa fase atravessou grande progresso em todos os setores
das atividades no distrito, gozando de absoluta calma.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*26º depoimento – de Graciliano Fontoura do Amaral, 35 anos, solteiro,
jornaleiro, residente no distrito.
Interrogado sobre o assassinato, respondeu:
– Soube do assassinato de Arcelino Furtado sábado às três horas da
tarde, ao voltar do serviço nas terras de Horácio Cortes da Cruz, acompanhado
por Francisco Rangel e Manoel Moura. O acampamento ficava a 1.500 metros
do local do crime.
– O que percebeu no dia do crime?
– Antes do meio-dia ouvi um tiro, nem comentei com os companheiros
de serviço. Era comum caçadores darem tiros na região.
– O senhor conhece os denunciados?
– Sim! Nada tenho a dizer contra.
– Manuel trabalhou até sábado ao meio-dia? Sabe do incidente com
queimadura de sua filha?
– Durante a semana não houve acidente, isto ocorreu na semana anterior
ao crime. Ele permaneceu até ao meio-dia no serviço.
– Quantas semanas trabalhou junto com Manuel em terras de Horacio
Cortes?
– A semana anterior em que houve o acidente, houve a queimadura de
sua filha, até duas semanas depois do crime estava na propriedade de Horacio
Cortes.
157

Teobaldo Branco

– Ouviu falar da prisão de Ramiro Moura por ser culpado do crime e


sabia que trabalhava para João Calone?
– Não sei se Ramiro Moura era peão de João Calone. Conheço a mulher
de Ramiro, mas não sei se estão separados. Nunca vi Ramiro junto com sua
mulher desde muito tempo antes do crime.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
FILHO ENCONTRA O PAI
Amélio não apagou, mas esqueceu as lembranças do passado, pois
reconstruiu sua vida com a jovem Zoraidina. A bela jovem encantou sua alma e
elevou seu espírito para seguir a caminhada da vida. O tempo foi passando sem
se dar conta, nasceram os filhos e a rotina do cotidiano o fizera envolver-se com
a nova vida, participando da sociedade do seu tempo. Assim, Amélio e Zoraidina
davam rumo no curso de sua história, com uma bela família, com filhos e encantadoras
filhas, que seguiam orgulhosos o caminho do destino.
A história de Amélio seguiu com luta e paixão na esperança de marcar
cada vez mais o seu destino com o seu jeito de ser. Ele era homem de bem, que
vivia do trabalho na terra, que aprendera de seus pais. Residia no interior, numa
propriedade rural, onde vivia dignamente com sua honrada família. Ele seguia
adiante em busca de realização de seus sonhos. Assim, construiu seu caminho,
tendo ao seu lado a jovem Zoraidina, e ambos envelheciam no tempo.
Certa vez, em uma manhã de primavera, Amélio recebeu a visita de um
amigo da cidade, em sua residência; um político que se chamava Rozalho. Ele
chegou dizendo que Amélio devia encontrar um cidadão, que o esperava na
vila, não muito distante. Então Amélio perguntou:
– Quem é?
– É uma surpresa, Amélio. Só não diga nada a Zoraidina, sua esposa,
falou num cochicho.
– Por que, amigo Rozalho?
158

Além da Tocaia

– Amélio, desculpe, mas não posso dizer-lhe nada, sei que vai ser uma
surpresa agradável. Peço que me acompanhe.
– Então aguarde. Vou tomar um banho e mudar-me. Em breve estarei
pronto para acompanhá-lo. Enquanto isso aproveite para comer frutas. Vá até o
pomar e apanhe o que desejar para levar a sua família.
– Certo. Deixe comigo, Amélio.
O povoado ficava a dez quilômetros de sua residência. Tão logo chegaram
ao local entraram num restaurante e Rozalho apresentou um rapaz de 20
anos de idade, que aguardava sentado. Ele levantou-se e ficou observando
Amélio e permaneceu encarando-o nos olhos. Rozalho disse:
– Amélio! Este jovem é Abel.
– Prazer em conhecê-lo, Abel!
– Com todo prazer, senhor Amélio Marasca, das terras do Degredo.
– Ah, sim! Tantos anos. Tempo de juventude, respondeu Amélio.
– Quantos anos faz, Amélio, que residiu no Degredo, quando jovem?
perguntou Rozalho.
– Não lembro, mas ultrapassou os 20 anos, se não me falha a memória,
explicou Amélio.
– Olha, Amélio! Veja 20 anos, esta é minha idade, que coincidência. –
falou Abel.
Rozalho procurou uma mesa, chamou um garçom para servir alguma
bebida para passar o tempo. Amélio, curioso para descobrir a surpresa, um
tanto desconfiado tentava disfarçar, pois era de sua natureza ser alegre, sorridente,
mas algo abalou seu coração como nunca antes. Sentia que algo vinha
mexer com suas estruturas, mas não imaginava o quê era. Enquanto isso Rozalho
preparava a acomodação para terem tranqüilidade e com isto poderem expressar
a verdade desconhecida, que pairava no ar. Logo Rozalho disse:
– Amélio! Este moço me procurou no local de meu trabalho, na prefeitura,
informando-se de sua residência, pois ele tem algo importante para lhe dizer.
159

Teobaldo Branco

– Olha, Rozalho! Você me conhece, sou fundador desta colônia. Por


isso, coloco-me à disposição para tratar qualquer assuntou. A minha vida é um
livro aberto, como diz o ditado.
– Certo, Amélio! Ando procurando a minha família, por isso estou aqui,
– disse Abel.
– Sim, pode falar!
– Desculpe-me, perguntar, o senhor tem um irmão chamado Antônio, e
viveu algum tempo em sua residência, com sua família?
– Sim!
– O senhor teve uma relação com sua sobrinha Bruna. Daí foi embora e
hoje está aqui na frente do seu filho. É desta forma que me apresento, pensando
ser aceito como filho.
– Meu Deus, não esperava! disse. Chocado ele afirmou: filho!
Amélio ficou pálido sofreu um enorme transtorno na alma. Ele sentiu um
impacto ao encontrar um filho do mundo, ao mesmo tempo constrangido moralmente
pelo o que aconteceu com sua sobrinha, seja por ignorância ou por amor,
mas a indiferença se expressa no tempo. Ele desabafou:
– Sim! É verdade! Com a voz embargada, Amélio disse: – Errei por causa
de uma paixão. Tive de sair para evitar um incidente familiar. Deixei a Bruna
grávida e perambulei a caminhar tonto pelas estradas, sentido o peso do pecado
ou da responsabilidade, que não tive oportunidade de assumir porque fui
impedido. Imaginem por quê? Houve muito sofrimento e aos poucos me afastei
para evitar uma tragédia. A última vez que vi Bruna foi aquela tarde de sol e
nunca mais tive notícias dela, nem de sua gravidez. Eu sentia no íntimo que algo
estava por vir. Este é um momento que está sendo de alegria e ao mesmo tempo
triste para mim. Agora gostaria que falasse de tua vida Abel.
– Me criei com uma família do município de Serrinha. Fui bem criado,
descobri que não era filho da família quando fui para escola. A minha vida foi
uma procura de mim mesmo. Saber as minhas origens genéticas, uma curiosida
160

Além da Tocaia

de que palpitava no meu coração, sempre. Ao localizar o nome de meu verdadeiro


pai, os dias tornaram-se um martírio até vir encontrá-lo. Assim como minha
mãe, que já conheci, pois foi ela que informou o seu paradeiro. Aqui estou para
comemorar tardiamente uma boa relação familiar com meu pai.
– Amélio! Um encontro desses é o momento mais sublime da vida de um
homem. Estou surpreso com o que estou assistindo, ver um amigo sentindo
tamanha emoção ao conhecer um filho do mundo, depois de 20 anos. – exclamou
o seu amigo Rozalho.
Amélio levantou com os olhos marejados de emoção, fez um sinal com a
mão e abraçou Abel, seu filho desconhecido. Ambos se abraçaram e choraram.
O coração de Amélio quase rebentou, assim como o do filho, que quase não
resistiu a tão grande emoção. Ali permaneceram longo tempo, numa reflexão
comovida de lágrimas; o tempo pode tardar, mas não falha, para contar a verdadeira
história da vida. Ao voltarem a se cumprimentar Abel disse:
– Peço sua bênção meu pai.
– Deus lhe abençoe, meu filho, – respondeu Amélio em lágrimas.
Os fatos e acontecimentos podem influir no destino das pessoas. Todos
fazem parte da paisagem da vida e são considerados como resultantes de causas
independentes da vontade; muitas vezes significa a sorte, o fado, mas
conta muito a sabedoria, tudo o que vem acontecer no futuro. Acreditar e ter fé
no bem com sabedoria fortalece o ser humano.
Amélio naquele momento da vida encheu-se de aspereza e aflição pelo
impacto emocional que sofreu; depois da despedida do filho e de seu amigo,
cercou-se de solidão, ficou como um solitário, então procurou afogar aquela
emoção com alguns goles de bebida. Chegou em casa embriagado em seus
sentimentos, tonto pelo dissabor profundo sem perceber o espaço e o tempo.
Amélio passou mal a noite, até adoeceu. Não conseguia responder às perguntas
de Zoraidina, sua esposa, pelo abalo que sofreu em sua razão. Ao poucos
conseguiu recuperar-se e seguiu seu destino.
161

Teobaldo Branco

A sua esposa Zoraidina, uma italiana com sangue de alemão, tinha o


poder de barganhar com Amélio a força moral que lhe impunha. Ela soube,
contado por parentes, logo depois de seu casamento, sobre essa gravidez e um
provável filho que iria aparecer em sua vida com certeza. Amélio fraquejava
diante da censura, por tratar-se de um caso com a filha de um irmão. Por esta
razão Amélio estava nas mãos de Zoraidina, que soube administrar o fato como
dona da moral para sobrepor autoridade.
O tempo encarregou-se de promover um inesperado encontro.
SEXTA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS
Aos 19 dias de agosto de 1940, na sala de audiências, do edifício do
Foro da cidade de Redenção, na presença do juiz João Bueno, do escrivão Leão
Vizinewski e do assistente de acusação. Defesa dos denunciados, Dr. Humberto
Campos e Paulo Macedo; do advogado da viúva, Dr. Célio Paixão, além de
testemunhas. A audiência foi aberta dentro da formas da lei.
*27º depoimento de Raimundo Fagiolo, 41 anos, comerciante, residente
no distrito de Degredo.
Juiz: – É acusado de co-autoria neste crime (1935), sócio de João Calone
na ocasião do assassinato de Arcelino Furtado, era réu no referido processo e
foi absolvido. A palavra é sua como testemunha, responda o que sabe.
– Não assisti o referido crime, soube do fato em minha casa de comércio,
por Ataliba dos Reis. Fui ao local, que era a menos de um quilômetro. Não ouvi
nenhum tiro. Fui ao velório. A vítima não gozava de bom conceito na Colônia,
ele era arbitrário.
– O que sabe da conduta de Ramiro Moura?
– Ramiro Moura era da pior espécie, perigoso.
– Ramiro na ocasião do crime residia nas terras de João Calone?
– Não! Residia em Santa Fé, de onde se mudou para Novo Horizonte, por
envolvimento num conflito que resultou na morte de José Padilha. A mudança foi
acompanhada de sua mulher, passando a morar nas terras de Braulíbio Cortes.
162

Além da Tocaia

– Era sócio de João Calone? Residia na mesma propriedade?


– João Calone residia na casa ligada à loja, eu morava distante, numa
casa independente.
– O que sabe do atrito entre João Calone e Arcelino Furtado?
– Não sei se eram inimigos, sei apenas que nunca mais os vi juntos.
– A luz no distrito costumava apagar às 10 horas da noite?
– Sim! Mas na loja ficava acesa até mais tarde para atender alguém
consumidor, ou por doença, às vezes ficava ligada toda a noite.
– Sabia que Honorato Vitello e Julio Casieri eram inimigos?
– Sabia! No tempo do crime eram inimigos, mas há um ano eles reataram
as relações. Honorato Vitello e João Calone pertencem à Frente Única; Casieri e
Giardino ao Partido Liberal.
– O senhor presenciou na Subprefeitura um negócio envolvendo um
revólver?
– Sim! Cheguei na Subprefeitura para pagar imposto, então vi o
subprefeito João Calone efetuar o pagamento de CR$ 800,00, a Marcelino Fivela,
preço pago por um revólver 38, cabo preto, niquelado.
– O senhor sabe se algumas testemunhas estão ganhando para depor?
– Sim! Basílio Roberto dos Anjos contou que seu sobrinho José Francisco
da Silva e também Marciano Peres ganharam cada um cinco mil cruzeiros
para acusarem os mandantes no processo.
– É verdade que Antonio Vitello é inimigo de seu irmão Honorato, este
acusado do crime?
– É verdade que Antonio e Honorato não mantinham relações. Antonio
Vitello e Arcelino eram amigos. Arcelino Furtado chegou a mudar-se para Centro
Novo, indo morar numa casa de propriedade de Antonio. Naquele tempo
Antonio pertencia ao Partido Liberal. Foi quando Basílio Roberto dos Anjos
contou-me sobre os depoimentos pagos, na presença de André Teixeira.
163

Teobaldo Branco

– Quem era chamado pelo apelido de “Leão Baio”?


– Não sei informar.
– É verdade que Luiza Dalmer retirou-se do distrito por causa de um
desentendimento?
– Não sei o motivo que Luiza Dalmer retirou-se do distrito. Ouvi dizer
que ela e Sebastião Pereira, ou Antonio Giardino, se desentenderam por uma
conta de remédios que Luiza deu à mulher de Sebastião. Não sabia que tinha
ido para as autoridades.
O advogado Dr. Paulo Macedo pediu a palavra e perguntou:
– Quando foi o início e o fim da sua sociedade comercial com João
Calone?
– A sociedade Fagiolo e Calone iniciou-se no ano de 1934 e se encerrou
em 1940. Antes eu era empregado de João Calone. Ele tinha trabalho no campo,
ocupava Ramiro Moura.
– João Calone e Antonio Giardino eram amigos?
– Sim! Mesmo que militassem em partidos políticos opostos, eram amigos
íntimos. Os mesmos costumam jogar baralho (solo), mais o Casieri, o
Ildefonso, tanto na casa de um ou de outro, ou ainda no restaurante.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*28º depoimento – de Sebastião Pereira, 46 anos, casado, agricultor,
residente no distrito.
O juiz interrogou sobre o inquérito e ele respondeu:
– A minha vida era trabalhar de carroceiro para Antonio Giardino desde
1923. Hoje trabalho de vez em quando para ele.
– Sobre o crime?
– Soube do crime imediatamente, na época eu morava no interior, a uns
10 quilômetros de distância da sede do distrito.
– O que sabe sobre os denunciados?
164

Além da Tocaia

– Sei que Ramiro Moura roubou um boi de João Calone, quando este era
autoridade do distrito. Ramiro devolveu o boi e João Calone deixou por isso. Na
mesma ocasião o distrito ficou sem policiais destacados.
– Luiza Dalmer receitou remédios para sua esposa?
– É verdade que minha esposa foi atendida pela parteira Luiza, que
receitou dois pequenos vidros de remédio, mas ela não melhorou. Chamamos o
médico para resolver o problema. Daí, eu fui ter com Dona Luiza e ela apresentou
uma conta de CR$ 290,00, mas achei exagerado esse preço. Fui pedir dinheiro
ao Antonio Giardino e ele deu-me CR$ 50,00 e disse: “Ela vai ficar satisfeita
com essa importância”, como de fato, ocorreu antes apresentei a conta ao
subprefeito João Calone. Ele também falou que solicitasse diferença. O marido
de Dona Luiza disse que não podia fazer abatimento, aquilo era de sua mulher.
O subprefeito João Calone encaminhou a conta para o médico Dr. Geraldo
Correia. O médico foi até o distrito, mas Luiza já havia mudado de residência.
– Qual é o seu conceito da vítima?
– A vítima era pessoa autoritária, andava acompanhado de escolta e
costumava ter em sua companhia capangas à paisana.
– Conhece o Cel. Constancio Terra?
– Conheço, ele é o maior fazendeiro da região. Há um ano trabalhei para
ele como carroceiro, antes para Antonio Giardino.
– Qual sua opinião sobre Ramiro Moura?
– Nasci e me criei no distrito, mudei-me para São José, no interior, em
1926. Seguidamente falava com Ramiro Moura, mas nunca o vi em terras de
João Calone. Depois o vi na casa de Fiorelo Cardinal, na Ponte Velha.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*29º depoimento – de Paulino Juvenal dos Reis, 39 anos, casado, agricultor,
residente no distrito.
Interrogado sobre o inquérito, respondeu:
165

Teobaldo Branco

– Conheço os denunciados e são de bom procedimento. Ramiro Moura


é apontado como mau elemento, conheço de vista, sem amizade.
– Sabe dizer se Arcelino tinha o apelido de “Leão Baio?”.
– Nunca ouvi falar sobre apelido de Arcelino Furtado.
– Há quantos anos morou no distrito?
– Há dez anos, próximo de Honorato Vitello. Uma distância de quinhentos
metros, que era campo aberto da casa até o local do crime, o mato onde foi
feita a tocaia.
– É verdade que o senhor foi abordado para vir depor contra os acusados?
– José Francisco da Silva me pediu para depor contra os mandantes, ele
dizia que tinha que rebentar os mesmos. Eu me neguei, alegando que nada sabia.
– Quem era o proprietário da terra onde foi instalada a tocaia?
– A terra pertencia a Laurentina Xavier.
– Conhece Luiz Aguiar Costa e Julia Moura Aguiar?
– Sim! Eles tiravam canas de milho para tratar o gado perto do local onde
foi feita a tocaia. No dia do crime eu não estava em casa, a minha mulher
Edivirges disse que não ouviu tiros, talvez estivesse envolvida com as crianças,
elas eram pequenas na época. Eu não fui ao local do crime e nem no velório
porque estava atarefado no trabalho. Fui ver depois o local da espera dentro do
mato. Observei vestígios de pessoas no recinto, que permaneceram durante
muito tempo, pelos galhos cortados, pisoteio, garrafas vazias, carteiras de cigarro,
caixa de fósforos e corredores no mato, de vai-e-vem até o local.
– Sabia que Ramiro Moura era peão de João Calone?
– Nunca ouvi dizer que Ramiro fosse peão, sabia que trabalhava de vez
em quando para João Calone.
– Conheceu Luiza Dalmer?
– Muitas pessoas queixavam-se de Dona Luiza, porque era careira em
seus serviços de parteira. Ela cobrava como médica. Atendeu um filho meu e foi
razoável no preço, curou o menino que passava mal.
166

Além da Tocaia

Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.


*30º depoimento de Vergílio Magio, 40 anos, industrialista, residente
no distrito.
Juiz: – Qual é sua relação de parentesco com os denunciados?
– Sou cunhado de Antonio Giardino e Julio Casieri.
– Conheceu a vítima?
– Arcelino era má autoridade no distrito. Não se importava com estradas,
nem com educação, vivia fazendo política. Eu não era inimigo dele. O
Arcelino pertencia ao Partido Liberal, enquanto autoridade no distrito, era do
meu partido. Não fui ao velório, nem no enterro.
– Conhece Ramiro Moura?
– Ramiro era dado ao vício da embriaguez e arruaceiro, roubou um boi de
João Calone, então subprefeito e delegado, lhe passou uma capina. A mulher de
Ramiro era costureira e residia em casa própria na vila.
– O senhor pediu a saída de Arcelino do distrito?
– Eu, mais Carlos Schveig e Artur Gonçalves Pacheco fomos até o
prefeito Leandro Dobler e ao Dr. Diogo Mendonça, chefe político, pedir o afastamento
de Arcelino do distrito, então meu companheiro do Partido Liberal.
Queixamo-nos do ambiente de terror, ele andava com maus elementos. Antes de
ir fui à Subdelegacia avisar Arcelino, mas ele limitou-se em dizer: “Nada conseguirão,
porque vim mandado pela direção do Partido Liberal”, do qual era chefe,
o coronel Diogo Mendonça. A comissão tratou do assunto e foi prometido o
seu afastamento, na semana seguinte ocorreu o crime. Era Protásio do Nascimento
quem ia assumir o distrito.
– Arcelino tinha apelido?
– Não tinha qualquer apelido. Pompilio Reis era conhecido por “Leão
Baio”. Basílio dos Anjos disse há dois meses, na presença da professora Tereza
Linhares, na bodega de Luiz Fagiolo, próximo da escola, que ouviu dizer que
Antonio Vitello pagou cinco mil para José Francisco da Silva, Marciano Peres e
167

Teobaldo Branco

Laudelino Moraes virem depor contra os denunciados. Emilio Fernandes


Moraes pai de Laudelino possui meia colônia e mudou-se para as terras de
Adelino Vitello, filho de Antonio. José Francisco da Silva trabalhou dez anos
para João Calone e foi despedido há um ano e meio por embriagar-se
freqüentemente, assim como Basílio dos Anjos, era alcoólatra.
– Conhece Antonio Vitello?
– Antonio Vitello é um lambanceiro, mau cidadão, não cumpre seus
negócios, nega e logra quando pode. Ele é comerciante que apenas auxilia a
igreja, paga despesas quando for lambança.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
*31º depoimento – de João Cielo, 50 anos, casado, agricultor, residente
no distrito.
Juiz: O que sabe sobre a vítima?
– Eu residia em Centro Novo quando Arcelino veio a ser subdelegado e
subprefeito do distrito de Degredo, ele residiu em uma casa de Antonio Vitello
no povoado. Eu via cercado de capangas de mau comportamento, aqueles que
fazem desordem.
– Conhece Ramiro Moura?
– Sim! Certa vez Ramiro Moura, armado de fuzil, em uma carreira em
frente de minha casa, tentou atirar em Antonio Vitello, não conseguiu graças a
minha intervenção. Ramiro e José Moura faziam parte da escolta de Arcelino
Furtado. Andavam o dia inteiro pelas estradas, assustando as famílias. Também
vi depois Antonio Vitello carregando em seu automóvel Ramiro Moura.
– Como foi a decisão sobre a sede do distrito?
– A antiga sede do distrito era a Vila do Divino, que passou denominar-se
Vila do Divino, depois passou chamar-se Degredo. Antonio Giardino e João
Calone queriam mudar para Vila Nova. Julio Casieri e Honorato Vitello desejavam
o retorno para Vila do Divino, enquanto Antonio Vitello lutava para mudar
a sede para Centro Novo, povoado do interior. Arcelino era solidário com Antonio
Vitello. Nada sei quanto à mudança da sede. Eu fui inspetor de secção do
distrito depois da morte de Arcelino.
168

Além da Tocaia

– Ramiro Moura trabalhou para João Calone?


– Ramiro trabalhou com João Calone antes de ser capanga de Arcelino,
também foi capanga do subprefeito Máximo Reis.
O juiz encerrou o depoimento.

O SEGREDO DA MULHER LUA

O mistério da tocaia trouxe muitas lembranças à memória da população


do Degredo. Os episódios e feitos do passado, imaginariamente, voltam na
memória do povo com alma e se transforma em lenda. A magia cultural do
município de Redenção passou de geração em geração, por todos os recantos,
expandindo fronteiras, transmitida de pai para filho.
Conta-se que no interior do distrito, a juventude, na solidão de uma vida
sexual em abstinência, usou a criatividade para atender essa a função natural
da vida. Para isso construíram um centro de lazer, no fundo de uma mata, próximo
do Rio Prateado.
A casa era para o fim de encontros, a dita festa pornográfica. Lá alguns
líderes, jovens da redondeza, programavam reuniões dançantes, ou bailes, e
exigiam que todos tivessem seus pares e na entrada tirassem a roupa.
Depois da construção do referido clube apareciam novos participantes;
alguns iam chegando apresentados por outros. Os mesmos pagavam um dízimo
de quatrocentos réis como contribuição à comissão fundadora da referida sociedade.
Eles diziam que era para sua manutenção.
O povo dançava conforme a natureza criara, como nos tempos de Adão e Eva.
Certa vez uma denúncia anônima levou o delegado e seus capangas a
flagrarem o povo da referida sociedade em plena atividade dançante num baile,
sob as luzes de lamparinas.
Conta-se que cada um estava com seu par, em atitude de respeito amoroso,
uns agarrados, outros escorados nos cantos com seu par falando de
amor, certamente.
169

Teobaldo Branco

O delegado, a estilo de um capitão do mato, arraigado às tradições morais,


alegando que a religião pregava que a nudez era pecado grave, prendeu todos os
presentes, lacrou a casa e obrigou todos a se deslocarem até a vila e dançarem
dentro de um piquete, sob os olhares dos curiosos. Com roupa, lógico.
As mulheres de família negaram-se a presenciar a referida dança.
A mata fechada do clube permaneceu lá, onde os jovens mais amorosos
iam se divertir, aproveitando o período romântico da época.
Tempos depois houve muita falação sobre a prática de lazer naquela
mata, que não era muito distante do povoado. O assunto mereceu divulgação,
revelava curiosos e interessados que iam às festas na mata. A regra obrigatória
era a entrada com par, homem e mulher. Alguns curiosos permaneciam durante
horas observando às escondidas, do alto das árvores. Até pais de família aproximavam-
se, a título de curiosidade, certamente.
O tempo fez cessar os falatórios sobre a imoralidade que animava o
centro de lazer da mata, dando lugar ao surgimento de uma lenda, a da “Mulher
Lua”: uma mulher nua, de cabelos prateados e longos, que aparecia no local,
durante três dias, no período da lua cheia.
A presença da mulher fantasma ocorria, próximo à área de lazer do clube
noturno, no centro da mata.
A “Mulher Lua” era uma sombra prateada que não permitia a aproximação
de ninguém, próximo do local onde aparecia. Ela era vista quase sempre
caminhando e ao menor sinal de alguma aproximação, ela logo se retirava em
direção ao rio, onde desaparecia nas águas profundas do rio Prateado.
Diziam que somente uma pessoa conseguiu se aproximar e falar com a
“Mulher Lua”, mas ninguém soube quem. Todos tinham curiosidade em saber
quem era a personagem misteriosa; o que fazia naqueles locais ermos, bem
como qual era a sua missão naquelas terras sem dono?
As pessoas que viram a sombra prateada da “Mulher Lua”, enquanto
caminhava, diziam que ela aparentemente era uma bela mulher, que caminhava
distraída, olhando as árvores, as flores, tocando delicadamente nos arbustos,
170

Além da Tocaia

afastando-os ao cruzá-lo. Mas, ao olhar para o céu, quando aparecia seu rosto,
diziam ser encantado, surpreendendo as pessoas que observavam. Muitas
pessoas iam até o local para ver a “Mulher Lua”, mas não conseguiam satisfazer
a sua curiosidade, tal era a expectativa de apreciar de sua beleza feminina.
Com a intensificou do desmatamento e o surgimento das máquinas na
agricultura, ausentou-se o mito da “Mulher Lua”.
SÉTIMA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS
Aos 15 de setembro de 1940, na sala de audiências do edifício do Foro
da cidade de Redenção, presente o juiz Eduardo João Bueno, um Escrivão;
Promotor Leão Vizinewski; defensores dos denunciados: Dr. Humberto Campos
e Paulo Macedo; e assistente de acusação, Dr. Célio Paixão, foi aberta a
audiência nos termos da lei, sendo ouvidas as testemunhas.
*32º depoimento de Antonio Vitello, 56 anos, natural da Itália, casado,
criador e comerciante e residente do Povoado de Centro Novo, distrito de
Degredo.
Interrogado pelo Juiz, respondeu.
– Sou indiferente com os desumanos.
O advogado dos denunciados, Humberto Campos, pediu a palavra:
– Solicito que Antonio Vitello providencie a apresentação dos documentos
de legalização de estrangeiro no Brasil, pois em decorrência da guerra a
Itália pertence ao “Eixo”.
O advogado de Assistência pediu a palavra:
– Declaro que a ausência do promotor público da Comarca, a quem cabia
se manifestar sobre o requerimento da defesa, por importar o mesmo com a
ordem pública, pois se trata de crime comum e não está nos autos. O Juiz deve
preparar o esclarecimento, que é estranha a matéria em debate, uma vez que é
verdade, não é inimigo dos denunciados, nem mesmo de seu irmão Honorato
171

Teobaldo Branco

Vitello. O juiz vai indeferir o requerimento dos denunciados, no que diz respeito
à não inquirição da testemunha para a mesma ser referida nos autos. É de
grande interesse para o esclarecimento da verdade, portanto a Justiça continua
seu interrogatório.
– Sobre o aliciamento de testemunhas pagas?
– Nunca viajei com José Francisco da Silva, nem mesmo falei sobre o
processo. Há uns cinco meses esteve em minha casa comercial para pagar seus
impostos. Sobre o conflito com o Fabrin apenas soube por outros. Certa vez
José Francisco da Silva falou do o assassinato de Arcelino, que julguei crime
hediondo. Nunca paguei ninguém para depor, nem a José Francisco da Silva e
nem a Marciano Peres.
– Viajou com Ramiro Moura?
– Viajei com Ramiro no meu automóvel porque dei carona, como dou a
qualquer pessoa que necessitar. Não é verdade o depoimento de Vergílio Magio
sobre desentendimentos com meu irmão Honorato, nem sobre afirmações de
investir dinheiro em lambanças. Não é verdade que procurei Pedro Padilha
numa carreira para pedir a seu irmão depor contra os mandantes.
– Sobre o transporte de testemunhas?
– Transportei Emilio e Laudelino Moraes, Luiz e Julia Vieira Aguiar por
requisição e responsabilidade do delegado de Polícia. Antonio Vitello disse: o
Arcelino residiu em minha casa gratuitamente, porque fui amigo dele, pois
éramos do mesmo Partido Liberal. Na ocasião de desacertos com meu irmão
Honorato, o qual me esbofeteou, pedi que Arcelino mandasse intimá-lo e desse
conselho, mas ele não obedeceu e foi preso. Conselhos para não agredir um
irmão, foi isto que aconteceu. Esta é a diferença.
O juiz perguntou: – O Senhor conduzia testemunhas contra os acusados
em seu automóvel até esta cidade, sempre acompanhado de Severiano
Peçanha, guarda da Subdelegacia do Distrito?
– É verdade que em meu poder tinha um cartão fornecido pelo delegado
de Polícia para que meu automóvel prestasse serviço à Polícia.
172

Além da Tocaia

O advogado Augusto Campos usou da palavra e solicitou ao juiz a


nulidade do depoimento da referida testemunha, para tanto apresentou um
documento, que segue:
Detenção – Lei de Segurança Nacional.
Delegacia da 5ª Região Policial – Novo Horizonte.
CERTIFICA, a pedido, que revendo o arquivo desta Delegacia de Polícia,
no registro do ano de 1939, ofício que encaminhou preso o indivíduo Antonio
Vitello, à Chefia de Polícia do Estado, com o seguinte teor:
Redenção, 6 de outubro de 1939. Ao Capitão Aurélio Barroso, Chefe de
Polícia, Porto Alegre. Com o presente estou apresentando a V.S.a o escrevente
desta Delegacia de Polícia, Sr. Rodrigo Brasil, que conduz preso a essa Capital
e com ordens de levar a Vossa presença o Sr. Antônio Vitello. Determinaram-me
prender o indivíduo acima referido por diversos motivos que, julgo, o enquadram
dentro dos dispositivos da Lei de Segurança Nacional. De há muito,
abusando de sua condição de colono e comerciante rico, vem este elemento
trazendo constantes agitações ao Distrito de Degredo, neste município, onde o
mesmo reside no lugar denominado Povoado de Centro Novo. Elemento “saudosista”,
querendo mandar no referido distrito, desprestigia quase que diariamente,
numa campanha surda e mentirosa, o subprefeito da localidade, que ao
mesmo tempo autoridade policial (subdelegado de Polícia), que na época era
João Delfino Calone. Não se limita, porém, àquele âmbito e àquela autoridade;
faz sistematicamente uma campanha contra o prefeito municipal, Dr. Geraldo
Correia, e contra os postulados do Estado Novo. Não deixa a colônia descansar
em paz; diariamente chegam-me aos ouvidos muitas reclamações contra este
elemento “perturbador”. A sua finalidade com a campanha era promover o
descontentamento
no distrito contra as autoridades de Redenção, para que os
moradores de “Centro Novo” pleiteie a desanexação desta Vila do Município
de Redenção a fim de que seja anexada ao município de Igrejinha, insurgindose
contra o decreto-lei que estabeleceu a divisão administrativa no Estado.
Arvorou-se, desde há muito, em “chefe” na Colônia. Procura por isso todos os
meios possíveis para adquirir prestígio, desde a campanha contra o subprefeito
173

Teobaldo Branco

e prefeito municipal, até as intrigas, boatos, chegando o mesmo a adotar idéias


e querelas individuais, comprando títulos para executar em juízo contra este ou
aquele cidadão que não seja do seu agrado, ou que se não chega a ele; faz
queixas contra funcionários, instigando a outros que o façam também. Enfim,
contrariando as disposições da própria Lei de Segurança Nacional, cujo espírito
é o de punir não somente aqueles que atentam contra a segurança do país,
mas também aqueles que de uma forma ou outra procuram diminuir ou embaraçar
os atos da administração pública. O caso de Antônio Vitello é típico, pois
agindo da maneira como age na Colônia atinge fundamente o sossego dos
colonos, ao mesmo tempo que procura diminuir a autoridade do prefeito, que é
o representante direto do Interventor Federal no município; solapando, assim,
indiretamente, o necessário prestígio de que se deve revestir no Estado Novo
a autoridade do funcionário, quer seja da esfera federal, estadual ou municipal.
Nem a minha autoridade de delegado de Polícia, nem, indiretamente, a Vossa
autoridade, escapam às manobras deste indivíduo, pois há poucos dias iniciou
no Distrito do Degredo uma campanha contra o emplacamento de veículos,
aconselhando os colonos a não fazê-lo em virtude da lei que dispunha o contrário,
e àqueles que já o tinham feito aconselhou que reclamassem a importância
paga ao subdelegado, em selos. Espalhou no Distrito um boletim, de cuja
leitura poderá o Chefe verificar o que acima ficou dito. Infelizmente não conseguimos
um original, por isso vai uma cópia que o subdelegado extraiu de um
folheto, que lhe foi apresentado por um dos colonos que foi à subdelegada
reclamar. E, assim, fica mais ou menos historiada a razão que me determinou a
efetuar a prisão de Antônio Vitello, entregando a solução do caso a Vossa
autoridade. Respeitosas saudações, assinada por Fernando Alves e Silva, delegado
de Polícia. Certifica, mais, que nessa ocasião era subprefeito e
subdelegado de Polícia o cidadão João Delfino Calone. Era tudo que continha
na cópia do oficio, que assino e dou fé.
O juiz Eduardo João Bueno invalidou o depoimento de Antonio Vitello
por denúncia de estar enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
174

Além da Tocaia

*33º depoimento – de Artelino Rodrigues da Cruz, 32 anos, casado


pelo religioso, jornaleiro, analfabeto, residente no 2º distrito, declarou:
O juiz pede que conte a sua história?
– Em janeiro de 1940 fui preso em minha residência por Oralino Gomes,
vulgo “Guri”, e pelo soldado Dário Fernandes, por ordem de Julio Casieri.
Depois na presença de Julio, me cientifiquei da acusação: a denúncia era de
Januário dos Santos, alegando que eu era elemento perigoso à ordem pública,
por ter começado a invadir a propriedade de Januário e prometer matá-lo. Não é
verdade a acusação feita pelo Sr. Julio Casieri. Ele me conservou preso em um
galpão de capim Santa Fé, de propriedade de Alfredo Reis, sendo amarrado por
uma corrente, pela perna.
– O seu relato é importante, continue!
– Antônio Vitello, de Centro Novo, sabendo do episódio, encaminhou o
seu advogado Justino Pereira para apresentar um requerimento ao delegado de
Polícia, no sentido de abrir inquérito policial. O Sr. Julio Casieri considerou um
caso morto. Antônio Vitello, com boas palavras, insistiu e mandou-me à presença
do seu advogado Justino Pereira com uma carta de recomendação. A referida
acusação havia sido encerrada pelo responsável na Delegacia de Polícia,
Fernando Alves e Silva, com testemunhas.
– E daí?
– Na oportunidade em que fui preso por Oralino Gomes, vulgo “Guri”, e
pelo soldado Dário Fernandes, que me levaram à Subdelegacia, também foi
presa minha mulher. O “Guri” chamou Julio Casieri, subdelegado substituto de
Calone, que disse: – “Está aqui o homem”. A minha mulher acompanhou-me
presa. Eu fui levado a um galpão, iluminado por vela por Alfredo Reis. E fui
amarrado por Julio com uma corrente pela perna. Ali estava Bilo Prestes preso,
também amarrado por outra corrente. Estava presente Euclides Schneider. Na
prisão permaneci três dias e depois fui liberado.
– O que mais?
175

Teobaldo Branco

– Depois fui procurado em casa pelo soldado, que deu-me voz de prisão;
conduziu-me à Subdelegacia do distrito, novamente fui interrogado sobre
o furto de uma badana. Logo fui conduzido para a propriedade de Alfredo dos
Reis; deram-me uma picareta para trabalhar na praça do distrito. Ao escurecer o
soldado disse: – “Se não fugir pode pernoitar em minha casa”. Fui à casa do
soldado e estava dormindo à noite, quando fui acordado por Julio Casieri. que
disse: – “Dário mande o preso levantar”. E perguntou: – “O outro já veio?” –
Sim – respondeu. O “Guri” havia amarrado outro pela perna. Ao fazê-lo, disse:
– “Tenho pena de amarrá-lo. Você é um pobre diabo que nem eu. Mas sou
mandado (falou em voz baixa)”. Um dia depois chegou João Calone, titular
subprefeito e subdelegado. Euclides Schneider seu substituto, disse: – “Bilo
Prestes está libertado depois de devolver produtos de roubo, uma badana e um
revólver Nagão 44, militar”. Ele era peão de João Calone e costumava beber
cachaça com Dário, soldado da Subdelegacia. Somente isso que sei.
Não havendo mais nada, o juiz encerrou o depoimento.

CARTA PRECATÓRIA

Carta precatória de inquirição expedida a testemunhas.


A Justiça pública, por seu representante abaixo assinado, denuncia
Ramiro Moura, com 40 anos de idade; Manoel José Moura, com 39 anos de
idade; João Delfino Calone, com 43 anos de idade; Antônio Luiz Giardino,
com 50 anos de idade; Julio Silvestre Casieri, com 41 anos de idade. Honorato
Vitello, com 38 anos de idade, pelo fato delituoso do assassinato de Arcelino
Furtado, em 5 de janeiro de 1935, distrito de Degredo, município de Redenção / RS.
Inquirição de testemunhas:
A Promotoria Pública, com base em denúncias solicita a inquirição das
testemunhas (lista anexa), a comparecerem no dia e hora marcada, conforme
convocação enviada individualmente para deporem e prestarem novos esclarecimentos
ao sumário de culpa, para elucidar o crime. Redenção, 10 de outubro
de 1940. 2º Cartório Civil e Crime – Juiz: Dr. Eduardo João Bueno
176

P a r t e VI

Desafios do delito

A política e o direito vêem


a sabedoria do poder,
a ideologia da obediência,
e o escravo do dever.

A história da caneta e do fuzil


do Delegado ao Escrivão;
o enigma do assassino e da vítima.
Justiça: quem manda? Quem vai à prisão?

Os interesses e os fatos dos homens;


a civilização, o destino e a memória;
os segredos, a justiça e a vida,
só o tempo contará a verdadeira história...
O TANGO

O distrito de Degredo representou um passado de epopéia. O presente


lembra com saudade, a contemplação dos desbravadores que abriram caminhos
com suas obras e idéias, que merecem elogios e aplausos pela sua história.
A arte principal com destaque e brilho eram os monumentos erguidos nas
praças; além de escolas, igrejas, identificando o progresso de um novo tempo.
Numa tarde de outono, na povoação de Centro Novo, interior do distrito
de Degredo, na ocasião ocorreu uma reunião dançante no clube da vila, num
salão com pista de dança. O evento da tarde se estendeu à noite com um baile,
pois era sábado, num período agradável com temperatura de outono. Na oportunidade
apresentou-se um conjunto musical da época, com instrumentos musicais,
com gaita, violão, instrumentos de sopro, como pistão e bateria. O estilo
musical de modo geral era de bandinha do interior, com participação original
dos imigrantes, caracterizando a miscigenação da cultura gaúcha.
No início do baile o conjunto tocava alguns números musicais clássicos
como tangos, para iniciar a dança. A sala permanecia sem participantes. Neste
momento o Teodomiro levantou-se e convidou a jovem Rosa para dançar, ambos
foram para a pista, era o único par. O casal exibiu-se muito bem, sendo
saudado com uma salva de palmas ao terminar o número musical. O tango foi
executado com estilo e perfeição, pelo par Rosa e Teodomiro. Depois de aplaudidos
os presentes solicitaram repetição. Os dançarinos exibiram a arte da dança
com formosura, para apreciação do público, que se tornou inesquecível na
memória dos participantes.
Estavam presentes no referido baile quatro filhos da família Burro, Júlio
e mais três irmãos, eram pelejadores com arma branca, espada. No decorrer da
reunião dançante houve um indício de desacerto entre Júlio Burro e Corisco
Viana, outro indivíduo respeitado no facão. Os responsáveis entraram em ação
para acalmá-los. Então Corisco disse:
– Vamos respeitar os amigos e esta gente. Se você for macho compareça
num duelo, no outro fim de semana de amanhã, domingo às dez horas, na
Esquina do Ipê, para tirar a cisma.
179

Teobaldo Branco

– Fica acertado. Estarei lá na hora, respondeu Júlio Burro.


Assim, o baile continuou num clima de paz e divertimento dos presentes.
No outro fim de semana, pelo trato do duelo, Corisco Viana dirigiu-se para
a dita Esquina do Ipê, quando ao longe lá avistou o Julio Burro esperando. A
incompatibilidade deles era de outras pendengas, mas nunca houvera oportunidade
de duelarem para mostrar a sua raça. Corisco Viana chegou a uma distância
de 50 metros do seu contendor, parou e falou:
– Hoje vamos medir raça. Está disposto para isso, amigo?
Julio Burro estava sentado numa pedra grande, no barranco da estrada,
à sombra de árvores que rodeavam o grande ipê que dava nome ao local. Julio
levantou-se devagar com a espada dependurada na cintura, deu um pulo na
estrada e disse:
– Venha, Corisco mais perto. Hoje não tem apartadores, sei o que devo
fazer – Fez sinal com a mão e esperou.
– Você e os seus irmãos são acostumados a dar pau de emboscada. Aqui
é de cara a cara, respondeu Corisco.
– Somos acostumados e vamos continuar dando pau nos teimosos. Fez
um sinal com a mão. Para o outro chegar mais perto.
– Olha, Julio! Faz tempo que você está em minha mira. Hoje um fica.
– Você fica. Porque não brinco em serviço, respondeu Julio Burro.
Julio Burro carregava discretamente na parte de trás da cintura, uma
pistola de dois canos, carregada com rolamento de bicicleta. A uma distância de
30 metros Julio firmou-se com as pernas afastadas, sacou a pistola e atirou
repentinamente, acertando Corisco Viana no tórax, que exclamou:
– Fui traído! O duelo era de espada.
Corisco Viana, na ânsia da morte, desertou em busca de salvação, foi até
a delegacia na Esquina Conceição, a 500 metros, próximo do povoado de Centro
Novo. Ao chegar lá mal conseguiu repetir:
– Fui traído de emboscada.
180

Além da Tocaia

Júlio Burro foi esconder-se na vila de Coronel Merenciano, no distrito


de Campo Belo. Lá ficou durante dois anos, depois foi para a cadeia por denúncia
de um desafeto chamado Lulu Machado.
Enquanto a Justiça preocupava-se em desvendar o mistério de um, outros
assassinatos continuavam acontecendo.
OITAVA CONVOCAÇÃO PARA DEPOIMENTOS
Aos 20 de outubro de 1940, na sala de audiências, no edifício do Foro de
Novo Horizonte, diante do Juiz, Dr. Eduardo João Bueno, Escrivão, Promotor
Público: José Barros Vasconcelos; Defensores dos réus: Dr. Nilton Costa e Paulo
Campos, testemunhas inquiridas. Abre-se a audiência dentro da forma legal.
*34º DEPOIMENTO DE Braulíbio Ribas Cortes, 53 anos, casado,
pecuarista, residente em Santa Fé.
Interrogado sobre o inquérito, respondeu:
– Sou cunhado de João Calone. Sou produtor rural distante de Degredo
a seis léguas.
– Conhece Ramiro Moura?
Ramiro Moura foi meu agregado e trabalhava no campo, por muito tempo.
Ele era caseiro quando se precisava. Ao falecer meu sogro, Benedito
Prudêncio, ausentei-me no dia 20 de dezembro de 1934, indo para o Degredo, e
voltei dia 5 fevereiro. No dia seguinte fui a sua casa, distante umas quatro
quadras, verificar o trabalho no arrozal de minha propriedade; estava tudo em
ordem. Na época também era meu agregado, Joaquim do Amaral. Eu soube do
assassinato de Arcelino Furtado por Joaquim, que soube na casa comercial de
Atanásio Côrtes, no dia 5 de janeiro.
– Quanto tempo Ramiro trabalhou em sua propriedade?
– Não lembro.
Nada mais, o juiz encerrou o depoimento.
181

Teobaldo Branco

BUSCA DE ARMA

5ª região Policial de Redenção – Delegacia de Polícia


Foi apreendido um revólver marca SW, calibre 38, cano longo. Segundo
informações, a arma pertencia ao capitão Arcelino Furtado. Estou remetendo a
referida arma, acompanhada de papéis e estopas estragadas pela ação do tempo.
A arma foi encontrada pelo colono Valdir Schmidt e sua mulher Alma, quando
capinavam em sua lavoura, em Centro Novo, distrito de Degredo. Segue
anexo o croqui e diversas fotografias encontradas.
Julguei de meu dever enviar a arma e objetos para juntar-se ao processo.
Estou prosseguindo as investigações em torno do caso para esclarecer
a verdade. Redenção, 25 de outubro de 1940, Fernando Alves e Silva – Delegado
de Polícia.

DECLARAÇÃO DE ACHADO

Aos 25 de novembro de 1940 compareceu na Subdelegacia de Polícia de


Degredo Valdir Schmidt (29), filho de Albino e Frada Schmidt, agricultor do 2º
distrito. Declarou que no dia 28 de outubro, estava em companhia de sua esposa
carpindo em sua roça. Alma, sua esposa, chamou-o para ver o que havia
achado. Era um revólver marca SW, calibre 38, cabo branco, cano longo. Ao
meio-dia o seu vizinho João Casieri veio em sua casa e ele mostrou o referido
revólver. Ambos julgaram que alguém teria deixado ali escondido nos matos,
produto de roubo. Por outro lado, a lavoura havia sido cultivada por Juca
Pinheiro que plantou feijão; assim, ele teria achado. Suspeitaram de que alguém
colocou a arma recentemente, início de outubro. Valdir e sua esposa foram num
velório na cidade de Igrejinha, lá ele contou sobre a arma para o sogro e cunhados.
Eles aconselharam que entregasse a referida arma imediatamente à autoridade
policial, porque poderia trazer embaraços futuros. No dia seguinte, chegando
à casa comercial de Antonio Vitello, deu um recado de seu vizinho e
contou sobre a arma que ia entregar na Delegacia. Antonio Vitello pediu para
182

Além da Tocaia

ver a arma, ao vê-la, teria dito: “Deixa estar, até parece o revólver do Arcelino”,
Pegou uma caderneta e anotou o número do revólver, e comentou: “Foi deixado
em suas terras a fim de envolvê-lo no crime, certamente”. Perguntado de alguma
suspeita, declarou que não tinha ninguém suspeito. Degredo, 25 de novembro
de 1940. Joel da Paz – subdelegado.
CONFISSÃO RETRATADA
Os autores confessos do crime, Ramiro Moura e Manuel Moura,
incriminaram João Calone, Antonio Giardino, Julio Casieri e Honorato Vitelo
como mandantes do “crime da tocaia”; depois da prisão preventiva e de algum
tempo no cárcere, Ramiro Moura retratou-se, negando a confissão inicial, em
depoimentos posteriores, alegando um ato de vingança pela acusação do roubo
de um boi da fazenda de João Calone, então subprefeito e subdelegado no
distrito. Ramiro Moura declarou que no dia do crime estava em Santa Fé. Reconhece
que esteve preso e foi processado pela morte de José Padilha sendo
absolvido, mas não sabe quem foi o autor do assassinato da Arcelino Furtado,
afirmando que mantinha boas relações com os acusados e testemunhas. Assim
foram os depoimentos de todos os denunciados, com a alegação de que não
havia testemunha no flagrante do crime, que as provas constituíram apenas
hipóteses falsas, portanto não havia prova material do delito.
A liminar de defesa dos réus diz: “Desce o pano, afinal, da hilariante farsa
denominada crime do Degredo, lugar em que residem os pseudo-protagonistas.
Numa manhã de sol de janeiro Arcelino Furtado fora chamado a prestar contas ao
demônio pelos crimes cometidos, com requintes de selvageria. Diz o ditado árabe:
“Quem semeia vento colhe tempestade”. Por isso enquanto autoridade no
distrito, num dos períodos mais agitados da história política do Rio Grande,
tantas tropelias cometidas com prisões e espancamentos, que certo dia veio a
colher o fruto de sua messe. Não aplaudimos o ato que culminou na morte daquela
infortunada autoridade, se não houvesse razões, mas sim pela maneira como
fora praticado, tão incompatível com o heroísmo do povo gaúcho, que sempre
enfrenta com nobreza o seu inimigo, não se valendo nunca dos refúgios de
183

Teobaldo Branco

emboscada. De qualquer modo, Arcelino Furtado foi vítima de sua própria imprudência.
Deveria supor que se assim agindo, algum dia uma de suas vítimas não
deixaria adormecer o seu ódio e chamá-lo-ia a prestar contas, como aconteceu.
Cinco anos se passaram quando surgiu o processo anterior a este, já havia como
centro de gravitação do mesmo “crime do Degredo” outros autores. A figura
sinistra de Antonio Vitelo, inimigo mortal de seu irmão Honorato, um dos acusados,
que veio a morrer na cadeia. Antonio Vitelo, homem rico, residente em Centro
Novo, era visto em todas as diligências do processo, acompanhando testemunhas
em seu automóvel, acusando sob a luz hedionda da trama, subornando e
instigando pessoas para deporem contra os denunciados acima citados”.
Nada é incontestável, para uns e para outros, pode ter sido apenas uma
desgraça.
Considerando o enredo, mediante elementos probatórios, de uma confissão
defeituosa, do volume de informações, vemos a ineficiência da integridade
de caráter e de honradez das pessoas, revelando o quilate moral da sociedade
da época, dos atos cometidos pelos políticos e homens; neste caso, designaram
o fato com o nome de “crime da tocaia”. Parece que ninguém aplaudiu o
gesto brutal da eliminação do capitão Arcelino, mas quem foi o autor, ou autores,
certamente um dia a Justiça surgirá para por ordem nos desmandos históricos
que permeiam a sociedade.

O GRANDE JÚRI

O juiz, Dr. Eduardo João Bueno, da Comarca de Novo Horizonte, revisou


os autos e organizou o júri a ser realizado no município de Redenção. Convocou
os jurados para o julgamento do “crime do Degredo”, assassinato do delegado
Arcelino Furtado.
Dr. Eugenio Machado, Promotor Público de Novo Horizonte/RS.
CERTIFICO, a pedido do Juiz da Comarca de Novo Horizonte, que revendo
os autos, a Justiça Pública moveu contra Antonio Luiz Giardino,
Honorato Vitello, João Delfino Calone, Julio Silvestre Casieri, Ramiro Moura
184

Além da Tocaia

e Manoel José Moura, consta dos autos de corpo de delito o teor seguinte:
Auto de corpo delito. Aos 5 de janeiro do ano de 1935, na sede do 2º distrito de
Degredo, município de Redenção, RS, presentes o delegado de Polícia, o cidadão
Manoel Mostarda, comigo escrevente, Pedro Martins, abaixo-assinado,
tendo prestado neste ato o compromisso legal o perito notificado Dr. Vilibaldo
Carvalho, médico profissional, e as testemunhas, os cidadãos: Marciano Peres,
Protásio do Nascimento e Laudelino Moraes, residentes todos na Vila de Degredo,
do município de Redenção.
Julgamento realizado no dia 9 de março de 1941, com início às 10 horas,
na Câmara de Vereadores do município de Redenção/RS.
– Presidente do júri: Dr. Mauricio Dorneles Pena.
– Promotor: Dr. Rosalino Siqueira; auxiliar assistente: Dr. Célio Paixão.
– Oficial de Justiça: Dr. Lauro Matos.
– Sorteio dos jurados: (7) sete dos 21 (vinte e um) convocados.
– Defesa dos réus. Advogados Dr. Humberto Campos e Paulo Macedo.
Leitura do Relatório do Processo
A Justiça pública, por seu representante abaixo-assinado, denuncia
Ramiro Moura, brasileiro, com 44 anos de idade, casado, jornaleiro, residente
neste município de Novo Horizonte. Manoel José Moura, brasileiro, branco,
casado, com 39 anos de idade, residente no 2º distrito deste município; João
Delfino Calone, brasileiro, casado, com 43 anos de idade, criador, residente no
2º distrito; Antônio Luiz Giardino, brasileiro, casado, com 50 anos de idade,
industrialista, residente no 2º distrito deste município; Julio Silvestre Casieri,
brasileiro, casado, com 38 anos de idade, funcionário público estadual, residente
no distrito, pelo fato delituoso, com fundamento nas investigações.
Informação ao Tribunal do Júri.
Certidão de óbito do acusado Honorato Vitello.
Livro 4, folha 171, Termo de Assentamento e Óbito. Registro Civil do
Cartório de Redenção, Estado do Rio Grande do Sul. Atesta o assentamento de
óbito de Honorato Vitello, aos 15 de outubro de 1940, falecido no Hospital
185

Teobaldo Branco

Santo Antônio, nesta cidade. Foi vitimado por colapso cardíaco fulminante na
cadeia pública, com 39 anos de idade, profissão comerciante, filho de Ângelo e
Antonia Vitello, naturais da cidade de Palermo, Itália, ambos falecidos, casado
com Adelaide Mazele Vitello, pai de cinco filhos, não deixou bens de herança.
Oficial do Registro Civil de Redenção, 15 de janeiro de 1940, Joel Garcia.
– Depoimento dos réus: Ramiro Moura, Manuel José Moura, João
Delfino Calone, Antonio Luiz Giardino e Julio Silvestre Casieri.
– Depoimento das testemunhas.
Debate:
Acusação, o promotor, Dr. Rosalino Siqueira.
– Senhor juiz e senhores jurados!
– As agitações políticas transformaram o distrito de Degredo e geraram,
em 1935, rivalidades acentuadas, que, alimentadas pelo ódio, criaram certo tumulto
na vida daquele lugar. Os interesses da ordem se comprometeram diante
das exigências da autoridade distrital, a ter atuação mais enérgica, eficiente e
real. O capitão Arcelino Furtado, que se encontrava à testa da Subprefeitura e
da Subdelegacia de Polícia daquele distrito sentindo os imperativos da reclamação,
passou a desenvolver enérgica campanha, procurando fazer com que a
lei fosse respeitada na sua jurisdição.
– Senhor presidente e senhores jurados!
– Os ambiciosos pelo poder e pelo mando não se conformaram com a
ação, decidida e enérgica, da referida autoridade. O ódio os levou a se reunir em
complô para eliminar aquela autoridade, crime que hoje se encontra desvendado.
Fizeram parte da emboscada criminosa as pessoas que, por sua posição
social e situação econômica, poderiam viabilizar a empreitada assassina. Faziam
parte desta: João Delfino Calone, pecuarista e pessoa de larga influência no
distrito, que faz declarações em jornais, por quê? Com que propósito procurou
a reportagem de um jornal para desfazer boatos alarmantes e infundados? A
Justiça e a sociedade, nesse emaranhado de provas, não conseguem ofuscar a
verdade, porque a verdade é como a luz, que entra pelas frestas; Julio Silvestre
186

Além da Tocaia

Casieri, funcionário público, escrivão distrital da referida sede. Casieri demonstra


que não é “pomba sem fel” nem um “manso cordeiro”, como o querem
pintar testemunhas de defesa, ocultando-lhe as felinas garras; Antônio Luiz
Giardino, industrialista e fazendeiro local, um réu que se socorre no álibi,
alegando sua ausência na véspera do crime, dizendo que saiu com sua esposa
no automóvel de Pedro Moura. Ele afirmou na Polícia que no dia do crime
estava na cidade de Novo Horizonte. As declarações de sua esposa não coincidem
com a sua, ela diz que saíram do distrito para passear e que soube do
crime depois de detidos em Rio Branco, pelo subdelegado do 9º distrito, de
Novo Horizonte.
A estes coube a tarefa criminosa de conceber a prática do delito que
culminou no assassinato do capitão Arcelino Furtado, homem que zelava pelo
cumprimento da lei.
– Vejam! Senhores jurados!
– Faltava-lhes o homicida que se prestasse a executar a criminosa e
desumana intenção. Encontram-no, por fim, em Ramiro Moura, reincidente no
crime, e em Manuel Moura, irmão, para a execução do crime, com a recompensa
de 15 mil cruzeiros. João Calone e Antônio Luiz Giardino foram buscar Ramiro
Moura no município de Campal, a 200 quilômetros de distância. No retorno ao
distrito de Degredo, ele participou com os demais denunciados de várias reuniões,
que se realizaram à noite num mato, às escondidas. João Calone, alguns
dias antes do fato, chegou mesmo a escolher com Ramiro Moura o local da
espera, havendo auxiliado na preparação do esconderijo, destinado à emboscada
que planejaram. Com a arma dos mandantes, Ramiro e Manuel Moura
passaram vários dias na tocaia, que ficava entre a residência da vítima e a
Subprefeitura, sendo passagem obrigatória de Arcelino Furtado. O crime, porém,
só não foi de pronto executado em virtude de a vítima, já por si, ser respeitada,
e por andar sempre acompanhada de sua ordenança, pois no dizer de um
dos denunciados ele era pessoa de ação. Urgia uma oportunidade em que
Arcelino Furtado, saindo só, sem às possibilidades de defesa, tornasse o delito
mais fácil e traiçoeiramente consumado.
187

Teobaldo Branco

– Senhor presidente!
– Por que acusam os irmãos Moura? E também, João Calone, Antonio
Giardino, Julio Casieri e Honorato Vitello (já falecido)? Qual a razão para assim
procederem? Não é difícil a resposta a tais perguntas. Se os irmãos Moura
foram instrumentos utilizados pelos mandantes, estes, inimigos que eram da
vítima, a quem temiam e combatiam pelas costas, porque não tinham coragem
de atacá-lo de frente, é natural a procura de terceiros para eliminar a vítima,
posto que lhes faltava coragem, mas sobrava dinheiro para indenizar quem
fizesse o serviço. Ramiro Moura antigo empregado de João Calone, pessoa de
confiança, tanto que não vacilou em ir procurá-lo no município de Campal, a
duzentos quilômetros de distância, para executar o hediondo e macabro plano
de eliminar a vítima.
– Senhores jurados!
– O momento esperado pelos facínoras apresentou-se, por fim, quando
em 5 de janeiro de 1935, antes do meio dia, Ramiro Moura e seu irmão Manoel
Moura foram informados, lá na tocaia, pelo Honorato Vitello (falecido), que o”
veado vinha corrido e sozinho”. Esta era a expressão combinada como senha
para aquele fim. Advertidos da aproximação, Ramiro e Manoel Moura tomaram
posição no esconderijo, aguardaram na tocaia a passagem pelo local da espera.
E, no momento em que a vítima defrontou-se naquele ponto, ao alcance da mira,
foi traiçoeiramente alvejado por Ramiro Moura, que utilizou um mosquetão,
apoiado numa forquilha de árvore, arma que lhe fora fornecido por João Delfino
Calone. Desferido o tiro, Arcelino Furtado foi atingido em cheio, ainda uma
segunda vez, e caiu de seu cavalo. Ramiro Moura saiu da tocaia e chegou bem
perto do homem caído e, com um revólver, fez o último disparo. Consumado o
delito, com a morte quase instantânea da vítima, Ramiro Moura, depois de lhe
haver despojado de seu revolver e dos valores que trazia, foi até a casa de
Honorato Vitello, a quem informou haver realizado o selvagem e brutal homicídio.
Passados alguns dias recebeu das mãos de João Calone, como parte da
paga que lhe havia sido prometida, a importância de cinco mil cruzeiros.
– Senhores jurados!
188

Além da Tocaia

– A Promotoria Pública assegura o direito de acusar o sumário de culpa,


na trama sanguinária, que fica elucidada contra os denunciados: Ramiro Moura,
Manoel José Moura, João Delfino Calone, Antônio Luiz Giardino, Julio Silvestre
Casieri incidiram em delitos, todos do Código Penal Brasileiro, motivo
pelo qual o Ministério Público faz a indicação de pena máxima contra os acusados.
– Senhores jurados!
– Este foi um delito planejado, sendo cometido de emboscada numa
tocaia, com superioridade de armas, sem dar a possibilidade de a vítima defender-
se. O crime merece a condenação máxima da justiça.
Obrigado.
Defesa dos réus
Advogado: Dr.Humberto Campos.
– Senhor juiz e senhores Jurados!
– O notável drama, para não dizer a pantomima de circo, longe do saudosismo
político, que se representa hoje neste palco judiciário, surge de cérebros
doentios e orientados por mãos invisíveis, atingiu o seu derradeiro ato, num
ambiente de profunda expectativa. Os dramalhões de há meio século, cujo final
a platéia estarrecida aguardava ansiosa, sentindo o momento de ver morto o
antipático vilão de bigodes negros, a retorcê-los nervosamente, com olhares
dúbios e atitudes esquivas, encontraram na época atual, em Redenção, um
renascimento completo!
Sabemos quem representa no cenário o papel de “homem mau”, carregando
nas costas, a contragosto, o peso da representação e da parte mais cruel
do melodrama; resta-nos conhecer o “herói” de atitudes romanescas, que espera
com um sorriso a flor dos lábios aplauso consagrado das multidões.
Vale a pena assistir ao final da interessante peça!
– Senhor presidente e senhores jurados!
– Finalmente, é importante que se restabeleça de uma vez por todas a
verdade, que se desfaça a injustiça gritante, a fim de que não permaneça uma
situação falsa, da qual será resultado flagrante o atentado a liberdade de cida
189

Teobaldo Branco

dãos vítimas da vingança privada de seus impenitentes inimigos. Visava-se


menos apurar o crime, ainda envolto em mistério, do que ver processados,
como autores intelectuais, pessoas que por sua posição social, política e financeira,
poderiam ser apontadas como tais, posto que delas desconfiavam os
tramadores e os inimigos. Não resta dúvida de que uma psicose delirante se
assenhoreou do psiquismo de muitos interessados na vingança da morte de
Arcelino Furtado.
– Senhores jurados!
– Obscureceu-se toda uma situação criada pela própria vítima no Distrito
onde exercia arbitrariamente, a ferro e fogo, sua autoridade de polícia e
subprefeito, jogando com a vida e a liberdade dos moradores daquela próspera
colônia, como se fossem papagaios de papel solto ao ar. Nunca se levou em
consideração o número de inimigos que Arcelino Furtado criara ao seu redor.
Se não bastasse, houve a retratação de Ramiro Moura, desfazendo toda a trama
arranjada contra os supostos autores morais, assumindo-se como executor,
chamando a si a culpa pelo delito. Ramiro Moura, por ignorância, ou por
desequilíbrio mental, ou por paga com promessa de nada lhe acontecer, ou por
vingança e ódio, mentiu quando afirmou, estimulado por outros, serem os seus
autores intelectuais do assassinato.
– Senhores jurados!
– A razão da confissão tem valor relativo. O juiz tem o dever, nos limites
da sua preparação técnica, de submeter a interrogatório e confissão à crítica,
contrapondo todos os elementos do processo, e examinando-os, segundo a
sua lógica particular, sem repelir, como elemento constitutivo da sua convicção
de verdade. Em síntese, a ausência de indícios capazes de gerarem uma convicção
plena. João Calone, Antônio Giardino e Julio Casieri, já que o “indiciado”
Honorato Vitello foi absolvido por uma lei suprema, a lei divina. Em virtude de
ter sido arrebatado pela morte na cadeia, por não poder suportar a dor moral
que o punhal da injustiça lhe cravou em cheio no coração de homem honrado.
Antonio Giardino ficou cego na cadeia pelo desprezo da justiça, os demais
estão resistindo.
190

Além da Tocaia

Para concluir, ponderando bem a prova dos autos, limpando-a das suas
impurezas e elementos estranhos, chegamos à conclusão e perguntamos: Matá-lo
por vingança? Vingança do quê? Matá-lo, para com isso afastá-lo do cargo? Não,
pois Arcelino Furtado, dentro de alguns dias seria substituído. Palavra que não
atinamos com o fundamento da acusação! Dos muitos inimigos que possuía a
vítima, por mortes, espancamentos, violências sem fim que praticou, não poderia
um deles assassiná-lo por vingança, nada mais? Apenas por vingança?
Dirigimo-nos ao presidente da Egrégia Câmara de Tribunal, aos nobres
jurados e pedimos a absolvição dos acusados.
Após o debate sobre os autos, de réplica e tréplica, fundamentando o
tema para esclarecer a verdade, o presidente do Tribunal procedeu ao trâmite
dos quesitos ao conselho de jurados para avaliar o julgamento.

QUESITOS E O RESULTADO DO JÚRI

Quesitos aos jurados (para elucidar executores e mandantes)


1) Se o (réu) no dia 5 de janeiro de 1935, às 12 horas, na estrada geral, entre a
sede do distrito do Degredo e Vila Nova, no município de Redenção, produziu
ferimentos a tiros de fuzil e de revólver na pessoa de Arcelino Furtado,
descrito no processo.
2) Se os ferimentos foram à causa da morte da vítima.
3) O réu procurou lugar ermo e fácil para cometer o crime?
4) O réu contratou e ordenou terceira pessoa para executar o crime com promessa
de pagamento?
5) Se o crime foi cometido com premeditação, com liberação criminosa e a sua
execução ocorreu num espaço de tempo maior de 24 horas.
6) O réu cometeu o crime com superior capacidade de armas, e sem dar possibilidade
de a vítima defender-se?
7) O delito foi cometido de emboscada, o assassino esperou em lugar escondido?
8) O réu cometeu o crime com promessa de receber pagamento?
191

Teobaldo Branco

O resultado da avaliação foi pela condenação, depois de debatidos os


quesitos sobre cada um dos réus.
De imediato a defesa dos réus, inconformada com a decisão dos jurados,
apelou ao Tribunal Superior do Estado para reverter os resultados do júri.

APELAÇÃO

Ao Desembargador do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul.


O juiz da Comarca de Novo Horizonte, em 10 de abril de 1941, vem à
presença de Vossa Excelência, desembargador do Estado, conforme a solicitação
da defesa, pedir a revisão do processo, requisitos essenciais para julgamento
dos acusados. A defesa alega que os réus Antonio Luiz Giardino, João
Delfino Calone e Julio Silvestre Casieri, não foram julgados, conseqüentemente
condenados na reunião do júri de 9 de março de 1941. Argumenta que os
autos de julgamento dos jurados só foram questionados quanto a da autoria
dos réus Ramiro e Manoel Moura. Entretanto, verifica-se que na Egrégia Câmara
do júri, os outros foram pronunciados como co-autores no homicídio de
Arcelino Furtado. Assim, a co-autoria figura-se como responsáveis. Se forem
dois ou mais réus, o juiz formulará tantos quesitos quantos forem eles. Conforme
libelo, o promotor apresentou acusação contra os cincos pronunciados.
Quanto ao mérito, a prova foi exaustiva na Egrégia Câmara Criminal, que decidiu
unânime contra todos os co-autores na morte de Arcelino Furtado. A defesa
exauriu todos os recursos possíveis para produzir a prova que pudesse mostrar
a inocência dos acusados. Cremos no senso de justiça desse Tribunal, ao que
pede a defesa a oportunidade de novo julgamento, para serem mostrados outros
recursos jurídicos (anexos) para convencer da verdade justa. Esperamos o
resultado da apelação, pedido para rever o julgamento e estabelecer justiça. Em
10 de abril de 1941. Juiz, Dr. Eduardo João Bueno.
192

P a r t e VII

O veredicto

“No campo da mente tudo é um enigma. A caminhada no


palco intelectual e emocional, interior da vida, nós podemos ser
livres ou escravos, bem como podemos ser autores ou vítimas da
nossa história” (Augusto Jorge, Cury, psicanalista, Revolucione sua
qualidade de vida).
OBSESSÃO SEM LIMITES

O ambiente da tocaia refletia o mundo do homem, contado pelo próprio


bandoleiro, que permanecia imóvel, à espreita, um observador oculto. Esperava
o primeiro sinal para abrir fogo; sentença de morte da tal autoridade, já encomendada.
O pistoleiro foi recrutado no interior da fazenda, porte de facínora, já
famoso pela perversidade, exímio em assassinar de emboscada. Um dos contratantes
aconselhou-o:
– Não pode ter dó nem compaixão, para não errar a pontaria.
O matador era um indivíduo que servia muito a seu patrão, nascido e
criado nas redondezas da colônia, analfabeto, pessoa de boa índole com os
peões, mas todos sabiam que ele aprontava, virava um demônio quando lidava
com cachaça, que gostava.
Lá na tocaia o bandoleiro conta que notou algum ruído suspeito numa
trilha que vinha dos fundos da mata, galhos sendo quebrados para abrir passagem.
Ouviu um escorregão, uma voz, um murmúrio apenas, viu pela trilha que
vinha um homem arqueado; ele ergueu-se e apontou o fuzil, por precaução, mas
era Honorato que vinha trazer informações ao esconderijo, pois disse bem ligeiro:
– Preparem-se para o ataque: “O veado vem corrido, espantado e sozinho.
Agora é com vocês, que são pagos para realizar o serviço”. Do mesmo
jeito que chegou, logo saiu rápido no meio das árvores, até sumir.
O pistoleiro e seu parceiro de tocaia voltaram a observar a estrada com
prudência. Lembrou do que o patrão lhe dissera:
– O tiro deve acertar a volta da paleta do pardo, para derrubar o bicho no
carreiro.
Ali na trincheira da tocaia continuava esperando. O bicho não aparecia.
Ele com o fuzil em punho, com ânsia e curiosidade. Mesmo que tendo nascido em
terra de valente, nas revoluções do sul, acostumado a despachar um e outro, até
arrancar os bagos de alguém, não fazia por malvado, mas para judiar do inimigo.
Naquele momento estava sentindo certa angústia causada pela espera.
195

Teobaldo Branco

Voltou na memória, relembrando a natureza da criação, era de sorrir,


visão de uma paisagem noturna, o campo, a mata, a serra sob o temporal e
chuva do inverno, como o cio das flores na primavera, os rios no calor de verão,
sob a chuva; a formosa flor do outono. Não existia mundo melhor, do que
aqueles lugares para se viver.
Um coronel fazendeiro certa vez lhe disse:
– Não quer ser político, peão? Ele ria da idéia. Pensou um pouco e
respondeu:
– Para ser autoridade, não quero. Não senhor! Quem menos manda neste
distrito é o subprefeito e delegado; ontem quem mandava era um tal capitão; hoje
sã os senhores os donos da colônia. Eu governar um lugar? hã! (balançando a
cabeça). Preciso de dinheiro para comprar, nem que seja o último fundão da terra,
mas lá quem vai mandar sou eu, quero ser proprietário. Eu e mais ninguém. Onde
se possa plantar milho e mandioca, engordar porco, ter animais e possuir uma
casa de moradia para viver com minha mulher e as crianças.
O pistoleiro, pensando fitava ao longe, parecia enxergar além do horizonte,
além do tempo. Ali da tocaia.
ÚLTIMO CONFESSOR
O julgamento prosseguiu em meio de alarmantes boatos sobre o episódio
do “crime da tocaia”. Não se deu por encerrado o caso, tornando imprevisível
o resultado, porque havia um terceiro cúmplice do assassinato que estava se
apresentando, tratava-se de Artur da Rosa. Diante do polêmico contexto, transformou-
se num emaranhado de surpresas, pelo inesperado do fato, que causou
sobressalto, criando um ambiente de confusão para as autoridades. Em seu
depoimento na Delegacia ele declarou: “Sou o verdadeiro matador do delegado”.
Levou à decisão de rever o julgamento anterior. Ele alegou que os jagunços
do delegado haviam atirado em seu irmão e lhe decepado um braço. Como
os anteriores, disse que matou o delegado na mesma hora, eliminando o fuzil
que usara para o crime, escondendo num mato, próximo da vila.
196

Além da Tocaia

*35º depoimento de Artur da Rosa, 30 anos, analfabeto, filho de Alberto


e Rosília Silveira da Rosa, casado com Carolina Rodrigues da Rosa, natural de
Santo Amaro, residente em Mato Queimado, no município de Campo Belo.
O juiz interrogou: – O seu depoimento é de testemunha. O que tem a dizer?
– Estou me apresentando como o cúmplice do assassinato de Arcelino
Furtado.
– Qual a razão? perguntou o juiz.
– O capitão Arcelino mandou prender meu irmão em Centro Novo.
– Qual foi o motivo?.
– O motivo foi que o senhor Antônio Vitello marcou um boizinho de três
anos do meu pai. Desde aí o capitão Arcelino, seu amigo, perseguia nossa família.
– Como foi essa perseguição?
– Certa vez meu pai foi a Rio Pardo, terra de onde viemos, onde tirou uma
Certidão de Boa Conduta e apresentou ao capitão Arcelino. Ele leu e declarou:
– “É um papel que serve somente para limpar o traseiro”. A perseguição contra
nossa família se agravou, tendo prendido e mal-tratado meu pai. Certa vez,
Arcelino mandou sua escolta a Centro Novo e me prenderam somente para
indicar a residência do meu irmão Miguel. Chegando em frente de sua casa, um
componente da escolta fez um sinal com a mão, chamando duas vezes. Ele não
atendeu. O soldado gritou:
– Venha cá! Meu irmão não atendeu. Eu falei:
– É contigo mesmo, venha cá, Miguel. Meu irmão levantou-se e fez um
gesto de guardar o fumo no bolso. A escolta suspeitou e disparou uma rajada
de mosquetão, que o feriu em vários lugares no corpo, esfacelou o braço direito.
Também desferiram socos e ponta-pé, puxando-o violentamente pelo braço
ferido. Vendo o abuso da autoritária ação policial, gritei:
– Por favor, não maltratem, ele está ferido. Respeitem! Meu irmão está
mal. A escolta se obrigou socorrê-lo levando-o ao hospital em Redenção, mas
ele perdeu o braço.
197

Teobaldo Branco

– E neste episódio, o que aconteceu contigo? indagou ou o Juiz.


– Eu fui recolhido ao xadrez do distrito por cinco dias. Pensei: “Hei de
me vingar”. No fundo da cadeia civil, ao fazer minha necessidade, avistei um
fuzil escorado no muro. Peguei-o e escondi, colocando ramos sobre o mesmo e
voltei à noite; tornei a esconder em outro lugar nas proximidades. Depois de
livre peguei e levei a arma.
– Quais as razões para apresentar-se como o matador do capitão Arcelino
Furtado?
– Achei por bem e por uma questão de consciência. Outros não deveriam
pagar pelo crime que eu cometi; o remorso me obrigou a apresentar-me.
– Como preparou a tocaia? quis saber o juiz.
– Procurei um lugar que pudesse atirar da mata sem ser visto. Ali permaneci
vários dias, quebrei alguns galhos para melhorar o visual. Esperava a
ocasião mais apropriada para matar o capitão Arcelino.
– Por que não atirou antes?
– Porque o capitão sempre vinha acompanhado. Aquele dia, ao meiodia,
vinha só; daí eu atirei. Com ele caído no chão fui até a estrada e dei um tiro
de revólver, terminando de matá-lo.
– Arcelino vinha acompanhado de quem? indagou o Juiz.
– Não lembro. Não conhecia.
– E depois de matá-lo? perguntou o Juiz.
– Fui para casa, após esconder as armas no mato. Cheguei ao anoitecer.
Em casa deitei-me para dormir. Depois de dois dias fui buscar as armas: um fuzil
e o revólver do capitão, que atirei no pátio de Antonio Giardino.
– Você já atentou contras outras pessoas, antes?
– Nunca. Só no caso do Arcelino.
– Quem preparou a espera? E de quem era a terra de onde se fez a tocaia?
continuou o juiz.
198

Além da Tocaia

– Não sei quem era o proprietário da terra. Na tocaia, eu desbastei o


mato para ver melhor a vítima na estrada.
– Artur, você furtou ou achou o fuzil?
– Não roubei o fuzil, quando o encontrei no pátio da cadeia.
– Quem forneceu a munição do fuzil?
– Ninguém! O fuzil estava carregado.
– Qual a posição que Arcelino caiu? questionou o Juiz.
– Caiu de bruços.
– Que arma e calibre que disparou o tiro de morte e onde acertou a
vítima?
– Era arma de calibre grosso, mas não lembro qual. Também não lembro
o local certo do tiro, sei que foi na cabeça. A cabeça é o melhor lugar para quem
mata e quem morre.
– Artur! Você teve companhia na espera? Tinha o vício de fumar e que
tipo de cigarro usava?
– Não tinha companhia. Fiz a espera só. Quanto ao vício, tinha o hábito de
fumar qualquer tipo de cigarro. Não lembro o tipo de cigarro que fumei na ocasião.
– Havia prestado depoimento antes sobre o processo?
– Não!
– O que fazia na época?
– Estava trabalhando em Santa Fé, não lembro de mais nada, porque já
se passou muito tempo.
– Você tinha alguma relação com Arcelino? Já havia falado com ele?
– Não!
– Por que atirou a arma no pátio de Antonio Giardino?
– Porque estava convencido que a perseguição sofrida era culpa de
Antonio Vitello, resolvi fazer por gesto de afronto para culpá-lo.
199

Teobaldo Branco

– Como era o revólver do capitão Arcelino?


– Não me lembro da marca e nem da cor, sei que era arma de calibre
grosso.
– Por que somente agora chegou a essa resolução de apresentar-se,
depois de sete anos passados?
– Não me apresentei antes porque não queria ser preso.
– Hoje quer? perguntou o Juiz.
– Não! Resolvi porque constituí família e tive consciência do ato cometido,
o remorso levou-me a confessar o crime. O meu pai aconselhou-me a me
apresentar à Justiça para pagar o que devia.
– Se seu pai influiu na sua apresentação e confissão do crime, há quanto
tempo ele sabia?
– Meu pai soube há três meses, e então aconselhou a apresentar-me na
polícia.
– Quem mais sabia? perguntou o Juiz.
– Ninguém, somente meu pai sabia por que lhe contei.
– O senhor Agostinho Casieri esteve falando com você antes do júri?
– Agostinho foi procurar meu pai e veio conversar um pouco comigo e
logo se retirou.
– O senhor Lauro Calone esteve em sua casa?
– Não lembro.
– Artur! Você sabe que há pouco tempo houve o júri dos denunciados?
– Não fiquei sabendo disso.
– Qual a condução com a qual viajou até a vila, para se apresentar?
– Vim a cavalo.
– Lembra da peça perdida do fuzil usado no crime, no dia 5 de janeiro de 1935?
200

Além da Tocaia

– Não sei. Não lembro.


– Lembra da roupa do capitão Arcelino na ocasião do crime?
– Não lembro, faz tanto tempo.
– Como se sustentou durante os dias da espera da tocaia?
– Alguma coisa trazia de casa, outras comprava no restaurante de Centro
Novo.
– Sabia que Ramiro e Manoel Moura confessaram serem os autores do
“crime da tocaia”?
– Há poucos meses fiquei sabendo que Ramiro estava preso pelo crime
do capitão Arcelino Furtado.
– No dia do crime retirou a carteira e o dinheiro da vítima?
– Não! A minha missão era matar, não roubar.
– Conhecia Ramiro Moura?
– Conhecia apenas de nome, há pouco tempo. Surpreendi-me ao ter
conhecimento que os Moura apresentaram-se como autores da morte de
Arcelino Furtado, sabendo que o único autor sou eu, eles são inocentes.
– Artur da Rosa! Você sustenta ser o autor intelectual e material do
assassinato de Arcelino Furtado, em 5 de janeiro de 1935, no Degredo?
– Sim!
– Então, sendo verdade, assine o depoimento.
A justiça indiciou Artur da Rosa, que residia em Mato Queimado, Campo
Belo, como suspeito do assassinato de Arcelino Furtado. Ele apresentou-se a
Justiça por remorso e por incentivo do pai, sendo incluído no processo do
“crime da tocaia”. Para o bem da verdade e da Justiça, foi mais um personagem
para a prisão, para ser julgado como cúmplice do episódio do “crime da tocaia”.
A Delegacia de Polícia encaminhou ao juiz para um novo processo,
referente ao mesmo crime de 5 de janeiro de 1935, assassinato de Arcelino
Furtado, no distrito de Degredo, município de Redenção, que já havia sido
julgado. O indiciado foi levado a julgamento da mesma forma que o anterior.
201

Teobaldo Branco

PRISÃO PREVENTIVA 03

Em audiência, o juiz Dr. Eduardo João Bueno autorizou a Corte da Promotoria,


considerando Artur da Rosa, 30 anos, filho de Alberto da Rosa e de Rosília
Silveira da Rosa, casado com Carolina Rodrigues da Rosa, confesso autor intelectual
e material do assassinato de Arcelino Furtado, no distrito de Degredo, em
5 de janeiro de 1935, denominado o “crime da tocaia”. Requer a prisão preventiva
nos termos do artigo 193 do Código Penal do Estado. O culpado será recolhido à
cadeia municipal. Requer, ao mesmo tempo, uma reavaliação do julgamento anterior,
em processo deste mesmo crime. Em 9 de março de 1941.

JULGAMENTO POPULAR

O surgimento de um terceiro cúmplice confesso deu origem à revisão do


processo e do julgamento anterior, em 9 de março de 1941. O Tribunal do Estado
concedeu voto favorável à APELAÇÃO, e à liberação do alvará de soltura dos
condenados, sob a condição de não serem dispensados do referido processo
até posterior apuração da verdade.
A revisão dos autos colocou mais um no banco dos réus. O juiz, Dr.
Eduardo João Bueno, da Comarca de Novo Horizonte, determinou novo julgamento,
no município de Redenção. Convocou os jurados para mais um julgamento
do “crime do Degredo”, o assassinato do capitão Arcelino Furtado.
Dr. Eugenio Machado, promotor público de Novo Horizonte/RS.
CERTIFICO, a pedido do juiz da Comarca de Novo Horizonte, que revendo
os autos do crime, a Justiça Pública moveu contra Artur da Rosa conforme
consta no auto de corpo delito, aos 5 de janeiro do ano de 1935, na sede do 2º
distrito de Degredo, do município de Redenção, RS, presente o delegado de
Polícia, Dr. Inocêncio Mendes, o escrevente, Pedro Martins, abaixo assinado,
tendo prestado neste ato o compromisso legal o perito notificado Dr. Vilibaldo
Carvalho, médico profissional, e testemunhas, cidadãos residentes na Vila de
Degredo, do município de Redenção/RS.
202

Além da Tocaia

Júri realizado 25 de março de 1942, início: às 9h30min, na Câmara de


Vereadores do município de Redenção /RS.
Juiz sorteado: Dr. Patrício Dinis dos Santos.
Promotor: Dr. Lourenço Garcia; auxiliar: Dr. Roque Lopes Aires.
Oficial de Justiça: Dr. Milton Gonçalves Dias.
– Sorteio dos jurados: (7) sete dos 21 (vinte e um) convocados.
– Defesa do réu. Advogado: Dr. Carlos Santana.
Leitura do Relatório do Processo
A Justiça Pública, por seu representante, denuncia Artur da Rosa, brasileiro,
com 31 anos de idade, casado, jornaleiro, residente em Mato Queimado
no município de Campo Belo, pelo fato delituoso que, com fundamento de réu
confesso conforme a indagação policial inclusas passa a expor o promotor
público.
Depoimento do réu.
Debate:
Acusação – Dr. Lourenço Garcia, promotor.
– Senhor presidente e senhores jurados!
– Pela segunda vez este Tribunal julga os acusados. O final se dará com a
Justiça absolvendo-os do ato constrangedor a que estão sendo submetidos. Neste
segundo julgamento teremos um veredicto da expressão sensata de opinião pública.
Posso afirmar que não haverá erro no desfecho da sentença deste júri.
A versão exata e a única compatível com a prova apurada ao longo do
sumário pode-se resumir no seguinte:
1º) Inquérito policial viciado;
2º) Confissão dos supostos autores materiais de modo inaceitável, porque
afirmam e negam por várias vezes. Retratação e novas declarações do réu
Ramiro Moura;
203

Teobaldo Branco

3º) A constante negativa pelos supostos autores morais do delito;


4º) Indícios frágeis pela acusação, com testemunhas parciais de suborno.
5º) Apresentação do verdadeiro culpado, Artur da Rosa, cujas declarações
todas no mesmo sentido se encontram nos autos.
A razão estudada no presente caso são os depoimentos e confissão do
cúmplice, refletem a realidade objetiva e inegável.
– Senhores Jurados!
– Aqui está a nu o lado forte da verdade. Não existe outra prova. A
declaração de Ramiro Moura foi arquitetada, logo retratada, tornando-se falsa,
o que significa um ato odioso e vingativo, construído por ele mesmo, para
esclarecer a peça. Logo depois nega, quando sentiu o cárcere.
A Egrégia Câmara de julgamento analise este processo. A confissão de
Artur da Rosa mostra a sagacidade, elementos de convocação que por si só
são suficientes para ditar o pronunciamento exato e certo. É inútil o esforço
para obscurecer a razão. O bom senso, a verdade procura encontrar contradições,
mas elas não existem. Observem: não há contradição na confissão de
Artur da Rosa, ele apresentou-se por sua consciência, pelo remorso e influenciado
pelo pai.
As declarações de Artur da Rosa e de seu pai revelam que outras pessoas
estavam pagando por um crime que não cometeram. Nada mais nobre que um
pai aconselhar o filho a redimir sua culpa, evitando que outros paguem por seu
nefasto crime.
– Vejam! O pai, de posse do segredo do filho, aconselha-o a entregar-se,
sabia que seu filho tinha remorsos. Finalmente resolveu vir acompanhado do
pai apresentar-se à polícia. O Promotor pergunta: por que Artur se apresentou?
É simples: não se apresentou antes porque não gostava de cadeia.
Nada mais absurdo e infantil a acusação injusta, moldada na lama e na
infâmia da pseudoconfissão de Ramiro Moura, indivíduo que sabe representar
de forma tão eloqüente o papel que assume agora. Ao contrário de Artur da
Rosa, de tamanha surpresa, com evidência de sua confissão, digo aos jurados,
204

Além da Tocaia

uma confissão pode ser determinada pelo ódio, em virtude de perseguição. É


preciso ter-se em conta as características antropológicas e psíquicas de quem
confessa, para dar-se crédito as confissões! Independente do ódio e da paga,
natural para uma acusação ser falsa ou verdadeira. A confissão, muitas vezes, é
a expressão de um delírio, do desequilíbrio, afetado pela auto-acusação, conseqüência
da miséria humana.
– Senhores jurados!
Se verdadeira hipótese de acusação da Promotoria não teriam os supostos
mandantes se submetido a júri no ano passado. Neste caso a absolvição do
júri é a expressão da mais gritante ordem da justiça.
Vergílio Magio, único presente na apresentação de Artur da Rosa, acompanhado
de um soldado da Brigada Militar, veio do município de Campo Belo,
apresentar-se à Subdelegacia do 2º distrito de Degredo, deste município de Redenção.
Não vemos suspeita nesta atitude, veio cumprir seu dever, o que fez
praticando um ato de competência. Destaca-se que Artur da Rosa apresentou-se
ao soldado da subdelegacia e este ao subdelegado para os registros legais. A
circunstância da apresentação explica o nível de um crioulo ignorante e bruto,
Artur da Rosa, achar o caminho passando pelo local onde ocorreu o crime.
– Senhores jurados!
Os acusados sofriam as conseqüências do terror na colônia durante seu
reinado, com ações violentas e nefastas do então subdelegado de Polícia,
Arcelino Furtado, que redundou num episódio sinistro, que envolveu meio
mundo do distrito. O crime poderia ser cometido por um indivíduo, vítima de
sua violência. A Promotoria alicerçou a denúncia exclusivamente na motivação
política do assassinato de Arcelino Furtado, jamais aventou a possibilidade de
vingança pessoal. As pessoas cooperaram com a iniciativa policial, mas a denúncia
das investigações enveredou pela linha política, sendo irreais,
edificadas sobre terreno falso e inverídico.
Por que a senhora paixão toma lugar da razão, como aconteceu neste
caso. Artur da Rosa prova as violências cometidas por Arcelino contra sua
família, fatos de sua confissão, que difere de Ramiro Moura. A vítima Arcelino
205

Teobaldo Branco

Furtado, em sua jurisdição, não era uma autoridade zelosa e enérgica, conforme
se procurava acreditar. É triste e prejudicial à ação da justiça, enveredar para a
paixão que tolda os espíritos. Outra razão baseia-se na vontade que o indivíduo
usa como expressão da verdade, Artur da Rosa nunca negou sua confissão, ao
passo que Ramiro Moura arrependeu-se do seu orgulho vingativo e voltou
atrás, negando a sua afirmação.
– Senhores jurados!
Finalmente, o menino-prodígio Laudelino Moraes, testemunha de acusação,
possuidor de privilégios, continua a se contradizer nos seus depoimentos.
Diz que entrou no recinto o cara pintado acompanhado de Pedro Moura, de
nariz comprido, meio moreno, aparentando 30 anos, que disse: “Matamos o
veado”, sendo que Pedro estava em outro lugar. Afirma também que poderia ser
Ramiro Moura, a fisionomia era parecida. Tudo isso há sete anos. É incrível o
estilo da cena que se desenvolveu no processo do “crime da tocaia”.
Em nome justiça pedimos a condenação do acusado, Artur da Rosa,
como norma democrática da sociedade em que vivemos.
Debate
Defesa do réu: (não compareceu)
Indicado o advogado auxiliar da Promotoria:
Defesa do réu: Dr. Roque Lopes Aires.
– Senhor presidente e senhores jurados!
– Na minha profissão de advogado, exercida sem muito brilho, mas já um
tanto longo nos debates forenses, jamais havia encontrado um caso com este:
um segundo julgamento. Julgamento em que a acusação mostrou, de forma
inédita uma postura diferenciada no presente processo. O terceiro réu confesso
com absoluto desdém pela justiça. Isto ainda não é nada: Este drama criou
personagens responsáveis pela tragédia, que torna fantástico a um romance de
ficção, bem diversa da realidade.
206

Além da Tocaia

Artur da Rosa, assim como Ramiro Moura, considerado executor do


crime monstruoso e covarde, os dois confessaram e também Manuel Moura,
outro confesso, em todos seus pormenores, terem agido, os primeiros, por
paga e seguindo instruções dos mandantes: Honorato Vitello, João Delfino
Calone, Antônio Luiz Giardino e Julio Silvestre Casieri.
Hoje surge um novo quadro, em que os réus anteriores negam a autoria,
incluindo os confessos, e aparece novo personagem, Artur da Rosa, confessando
o “crime da tocaia”, para confundir o aparelho julgador que busca a verdade.
Nas declarações da prisão preventiva. Tanto Ramiro como seu irmão Manuel
Moura, ambos confirmam os seus depoimentos prestados na Delegacia de
Polícia, quando confessaram, mais uma vez com pormenores, a autoria do crime, a
mando por dinheiro, bem como a trama maquiavélica de outros denunciados.
A retratação de sua confissão foi tardia e absurda, porque se a confissão
pode ser retratada, nem por isso o juiz, segundo a expressão da lei, deve
aceitá-la, pois julgará de acordo com o livre convencimento, fundado no exame
das provas em conjunto.
Artur da Rosa ainda não fez sua retratação, mas certamente o fará. Se
não o fizer surgirá outro autor do misterioso “crime da tocaia”, no Degredo da
Redenção, digo ao inverso, na “redenção do degredo”. Aí está a metáfora do
mistério da verdade real.
Se entre os apontados mandantes de um lado, a vítima de outro; a inimizade
autorizava a presunção de complô, com sinistros propósitos. A vítima não
era inimiga de qualquer um, mas de um grupo de chefões. Como conciliar a
verdade dos depoimentos e as confissões dos autores materiais, com aquelas
testemunhas de defesa, falsas e repelentes, por subversão certamente, no decorrer
do longo processo?
Ramiro Moura declara que não sofreu coação de espécie alguma e nem
tampouco quis salvar alguém. Nem, também, confessou o crime por vaidade ou
para ocultar outro delito grave. Ramiro Moura o cometeu, mediante promessa
de pagamento de dinheiro. Nada mais e nada menos do que isto.
O novo personagem Artur da Rosa foi investigado a fundo o porquê de ser
autor. A Colenda Câmara restabelecerá a verdade e prestigiará o direito e a prova
dos autos, a fim de que a sociedade de Redenção os julgue pelo crime cometido.
207

Teobaldo Branco

DECISÃO DO JÚRI

A Egrégia Câmara de julgamento, com a presença do juiz, jurados, da


Promotoria e advogado de defesa, bem como dos assistentes, na conclusão
dos trabalhos retiraram-se para uma sala especial para votação dos quesitos.
Resultado: os jurados votaram pela condenação mínima, respondendo
quesitos de cada acusado individualmente.
O Presidente do Tribunal, Dr. Patrício Dinis dos Santos, leu a ata de
sentença pelo assassinato de Arcelino Furtado, em 5 de janeiro de 1935, no 2º
distrito de Degredo, município de Redenção. Submetido o julgamento em júri
popular pela decisão dos jurados. O acusado Artur da Rosa foi condenado a
pena mínima, considerado autor intelectual e material. Decorrido o prazo legal
sem interpelação de recurso, irá cumprir pena aberta, atendendo ao disposto da
lei, posteriormente seja posto em liberdade, dando-se baixa na culpa.
O “crime da tocaia” foi além dos fatos reais, o amor não exclui o espírito
que questiona e atropela a sociedade tradicional. A evolução acaba com barreiras
sociais entre os homens, tanto aqueles que desprezam com a arrogância e
prepotência, de qualquer modo elimina ou diminui as diferenças humanas; de
outro, as gerações interferem natural e harmoniosamente entre as raças, culturas,
religiões e preconceitos, levando de forma concreta a unir os espíritos, com
objetivos para boa vivência da humanidade junto à natureza. As ações determinam
as conseqüências de cada destino, o que levou Honorato Vitello a morrer
na prisão. Antônio Luiz Giardino saiu apalpando o mundo, sem visão, ressentido
pelo mal que ofuscou seus olhos, apagando o sol da vida interior. Julio
Silvestre Casieri cumpriu seu tempo na escravidão da parede social, arrebatado
de suas forças espirituais, saiu da cadeia para nunca mais voltar ao Degredo,
emigrou e morreu no horizonte de Campal. João Delfino Calone cumpriu pena
pelos frutos colhidos no Degredo, depois se afastou com seu orgulho de fazendeiro
e sumiu nas terras de Erico Verissimo, em busca de um mundo imaginário
ideal. As outras pessoas eram anônimos, estes desapareceram no espaço e no
tempo, não tiveram o mesmo fim, ficaram alguns ocultos, sem revelação na
história.
209
P a r t e VIII

Além da tocaia

“Porque ter medo da morte? Enquanto somos, a morte não


existe, quando ela passa existir, nós deixamos de ser” (Epicuro).
O ÚLTIMO ABRAÇO

A história de Amélio entrou em convulsão ao longo do tempo, penetrou


na essência das relações consigo mesmo e sua família, pois sempre teve princípios
éticos, sociais e políticos que norteavam o universo de sua vida. Amélio
teve forças porque fazia uso da sabedoria e tinha amor pela arte de viver. O seu
pensamento germinava como semente que enriquecia a sua história pela estrada
da retidão, que era saudável e equilibrada.
Amélio teve naquele momento, no encontro com seu filho, motivos para
ter depressão e ansiedade; a sua memória poderia ter alguns conflitos, mesmo
assim ele foi livre, feliz, não demonstrava nada, parecia sempre seguro e sábio.
Era uma pessoa deslumbrante e agradável, que não fazia inimigos. Foi apaixonado
por sua condição humana, não perdia a sua tranquilidade, no entanto
talvez em algum momento sentisse o tédio e o vazio existencial.
Algum tempo depois Amélio foi até a cidade de Igrejinha fazer exames
de saúde. Lá, em casa de parentes, localizou uma prima, a irmã de Bruna. Posteriormente
foi organizado por parentes interessados um encontro surpresa entre
Amélio e Bruna, que há mais de vinte anos não se viam.
No dia e tempo certo Amélio, numa de suas viagens à Igrejinha, foi
convidado por outro parente para uma janta especial, e sentiu alguma coisa que
poderia lhe acontecer algo de extraordinário. Em companhia de Aparício, um
amigo do passado, estacionou seu automóvel na residência de Chico Marasca,
seu primo em segundo grau. Quando chegaram, Amélio, observou a presença
de mais pessoas, pelas conduções na frente da casa.
Amélio entrou na frente e numa sala encontrou uma única pessoa, aquela
senhora que no passado fora a sua princesa, mas que por força do destino
teve de abandoná-la. O seu amigo Aparício voltou para deixá-los a sós.
Amélio ao vê-la sentiu no espírito que o destino foi fiel aos preceitos da
verdade. Bruna levantou-se devagar e com os olhos fixos em Amélio, em voz
baixa, disse:
– Amélio! Amélio!
211

Teobaldo Branco

– Meu Deus! Não esperava uma surpresa dessas! (com voz embargada).
– Amélio! Lembra de mim? (voz suave)
– Bruna! É você? (lágrimas).
– Sim! Sou Bruna. Deus atendeu meu último desejo nesta vida, – afirmou.
– Bruna! Eu sou culpado de tudo...
– Não, não! Não fale em culpa. Hoje é outro tempo, Amélio.
– Bruna! Não sei o que dizer. Fui um irresponsável. Cometi uma desgraça.
– Amélio! Queira acalmar-se, pois você não teve culpa; ninguém teve
culpa do que houve entre nós.
– De qualquer modo, Bruna, peço perdão pelo mal que lhe fiz, provocando-
lhe enorme sofrimento.
– Céus! Você não mudou. Amélio! O nosso segredo foi revelado (lágrimas).
– Sei, Bruna! Nosso filho Abel. O segredo.
– Sim! Nosso filho Abel.
Bruna olhava para Amélio, sem falar, com um leve sorriso.
Em silêncio, ambos permaneceram de pé, frente a frente, com olhares
fixos, refletindo sobre seu passado longínquo. A vida é um espetáculo de
raríssima beleza. Só a aprecia quem é capaz de escrever capítulos, nos momentos
mais difíceis da sua história. Amélio desfigurou-se ao sofrer um nocautear
de emoção, embargou a voz, gaguejou num atrapalho sentimental, o seu espírito
sentiu uma névoa de felicidade, ao mesmo tempo de angústia, por não poder
reconstruir seu passado.
Bruna, aquela senhora que não perdera suas características de beleza,
com que fazia Amélio cair de paixão, estava presente de forma madura, mais
malhada e experiente pelo sofrimento da vida. Ela recobrou os sentidos e num
momento percebeu aquele jovem do passado, ao qual entregara seu corpo e
sua alma. A vida estava sendo uma aventura sublime para eles.
212

Além da Tocaia

Amélio teve a coragem de olhar no espelho da alma, reconhecer o seu


erro e perceber a dor de Bruna. Reconheceu e chorou, uma forma de refazer o
futuro, que sempre buscava, através da consciência.
Diante de tamanha emoção Bruna dirigiu a mão para saudá-lo, e quando
Amélio avançou e estendeu a mão, Bruna abriu os braços, fechando os olhos disse:
– Amélio! O último abraço.
– Bruna! Abraço de uma saudade enrijecida pelo tempo.
– Aproveitemos, Amélio, enquanto há tempo em nossas vidas.
Naquele momento entraram os familiares e amigos que viabilizaram o
encontro. Amélio e Bruna não conseguiam disfarçar os fios de lágrimas que
marcaram seus rostos. Houve uma comemoração sem tocar muito nas velhas
lembranças, que dividiam Amélio e Bruna. Foi lembrado de Abel, mas pouco se
comentou, pois o assunto era uma relação sensível, por isso as pessoas evitavam
falar. Quanto à família de cada um, outras pessoas e familiares informaram,
pois não foi estabelecido nada naquela noite. O silêncio esteve presente na
recepção do reencontro.
Amélio, certo tempo depois, perdeu as forças, sendo vencido pela doença,
vindo a falecer, em seguida. Abel não conseguiu ter mais alegrias e também
partiu. Bruna continuou, mas o tempo passa depressa, e num instante, de jovens
no passado, volta-se a ser adulto e logo idoso; não sabemos o momento
do último suspiro, por isso é aconselhável procurar viver com intensidade cada
momento da vida.
DESENGANOS DO AMOR
O maior tesouro de uma vida é quando se come o pão da paz, banquete
de carneiro e novilhos imolados, com taças de vinho, no reino da alegria e do
amor, em comemoração à glória entre os deuses justos que reinam sobre a terra.
O tempo põe a verdade nos olhos dos homens e a palavra relembra a expressão
da memória, vendo a natureza da criação, o momento de sorrir, de ter a visão de
213

Teobaldo Branco

uma paisagem de sol, da fecunda terra, das matas, sob a chuva das estações; a
primavera das flores; o verão do calor, dos rios e do mar; o outono e as flores
com sua chuva formosa; o inverno úmido e frio, período de aconchego. Contemplar
com o espírito a bela imagem da vida e sentir a bênção celeste é uma
forma simples de perceber que este mundo é bom e vale a pena viver bem.
Muitos anos se passaram, e não houve um em que Nádia não tivesse
lágrimas nos olhos, chorado para os deuses imortais e pelos homens mortais,
sentimento entregue às chamas de consolo ungido pelos perfumes do esquecimento.
Um destino fadado a saborear a doçura dos anos juvenis da primeira
paixão, desfrutando emoções com alegria.
Hoje está no limiar da vida madura, enveredando para a velhice. Vinte anos
depois daquela tragédia, o pai de Leone perdeu a visão na cadeia, o que o levou
precocemente para o túmulo; sua mãe anos depois também faleceu. Ele formou
família e continuava comerciante, sucedendo seu pai em outra cidade vizinha, mas
foi obrigado mudar-se pelo desfecho do assassinato do delegado pai de Nádia.
Leone acompanhava sua filha Luzia ao internato “Normalista” para a
matrícula na cidade satélite regional, onde Nadia estudou. Ele lembrou de alguns
encontros juvenis com sua grande paixão, assim como quem diz: – Momentos
lindos de uma desilusão bela de amor, mas se tivesse a sorte de reviver
esse passado, nem que fosse tarde eu ficaria muito feliz.
No interior do colégio, em certo momento entrou uma senhora que lembrou
o charme e a beleza de Nádia. Leone sentiu um arrepio no corpo, despertando
a sua atenção e curiosidade. Ela voltou-se a distância e fitou rápido em
seus olhos, seguiu um corredor e entrou numa sala. Leone assustou-se num
pressentimento: – Será que é destino encontrar uma lembrança perdida que há
20 anos não vejo? É ou não é ela? Pensou: Se for, o que farei? Depois de certo
tempo na formalização e acerto da matrícula de sua filha Luzia, surge uma pergunta:
– O que estaria ela fazendo aqui? Bom! Seja o que for.
O ano escolar se iniciou e os habitantes envolviam-se no trabalho, em
convivência com suas famílias, cada um em seu lugar. Na escola do internato
Luzia estudava com aplicação. Certo dia, no final das aulas, uma professora
bateu em seu ombro e disse:
214

Além da Tocaia

– Desejo falar com você, Luzia.


– Pode falar, professora.
– Aqui no corredor não, venha até o gabinete.
Elas entraram numa pequena sala. A professora sentou-se numa poltrona
e convidou a menina Luzia a sentar-se. Luzia observou e percebeu uma
mulher que carregava traços de uma beleza especial; mesmo sendo uma senhora
mais de meia-idade, atraía com seu charme feminino. A professora olhou
Luzia nos olhos e sorriu; logo lhe perguntou:
– Luzia! Não leve por mal lhe perguntar, qual a sua idade?
– Tenho 16 anos.
– Bela idade! Eu também tenho um filho de 16 anos.
– Como é o nome dele, professora?
– Ele chama-se Ulisses. É um belo jovem, sou suspeita em dizer porque
sou sua mãe.
– Que nome lindo! Ulisses, um guerreiro grego. Parabéns pela escolha
do nome, professora.
– Talvez um dia você possa conhecê-lo. Bem! Eu quero perguntar algumas
coisas sem importância sobre seu pai! Onde ele mora e como é sua família,
enfim, apenas para saber se é alguém que conheci.
– Nós moramos em numa cidade pequena. Meu pai é comerciante e tem
terras, herança do vovô que ficou cego na cadeia e por isso morreu logo.
– O seu avô esteve na cadeia por quê?
– É uma longa história, acusaram-no de ser mandante da morte de um
delegado e subprefeito de Degredo, há muitos anos, eu não o conheci.
– Meu Deus! É ele.
– Ele quem, professora?
– Luzia! Nós vamos deixar para outra hora esta conversa, tenho um
compromisso neste instante. Levantou-se com a mão no rosto e retirou-se
rapidamente.
215

Teobaldo Branco

– Sim! Professora! Professora, o que aconteceu? Luzia pensou: O que


foi que fiz, ou disse para ela ficar emocionada assim. Seguiu até o corredor e viu
a professora sumir.
Nádia se surpreendeu com o destino. Não pode continuar a conversa
porque esmoreceu sob o choque de uma forte emoção. A jovem Luzia sentiu a
perturbação da professora pela sua palidez e um aparente desalento que surgiu
de súbito. O tempo deu outros rumos e a jovem Luzia, depois de alguns meses,
viajou para sua casa. Lá falou sobre a escola, confidenciou sobre o encontro
com a professora Nádia e citou o que haviam falado:
– Pai! A professora Nádia queria que falasse do senhor para certificar-se
se o conhecia.
Leone pensou de alguém conhecido, mas se surpreendeu quando a filha
disse:
– A professora Nádia convidou-me para falarmos no gabinete reservado
dela. Quando falei do vovô, de ser acusado do assassinato de um delegado, ela
ficou perturbada e pálida, desistiu na hora de falar, alegou compromisso e que
outra hora ia dar continuidade.
– É ela!
– É ela quem, papai?
– Aquela que fez a matrícula, filha! Nada mais.
Leone perturbou-se diante da filha, sentiu um calafrio que mexeu com as
suas emoções, algo de muitos anos de esquecimento reacendeu o passado
como um delirante sonho. Luzia observou o nervosismo do pai ao falar o nome
da professora, mas não reagiu, achou que era algo que ele pensou naquele
momento para ficar assim. Luzia não lembrou de comentar com a mãe, mesmo
porque ela abria-se mais com o pai. Alguns dias de férias e o retorno para o
internato religioso das Irmãs. Na viagem de volta ao colégio Luzia foi acompanhada
numa viatura pelo pai. Na secretaria a professora Nádia passou de uma
porta para outra. Luzia chama atenção do pai, mas envolvido com as malas da
filha não conseguiu vê-la. Leone permaneceu algum tempo e liberou-se pas
216

Além da Tocaia

sando por um corredor dentro de um jardim e pomar até a rua onde tinha deixado
o automóvel. Ao sair na rua sob a sombra de árvores de plátano e de cipreste
exalando um cheiro agradável, sai por outro portão uma mulher e vem em sua
direção. Leone tremeu na alma ao suspeitar que fosse Nadia, a deusa do passado
de sua paixão. Ela aproximou-se e foi reconhecida pelo mesmo estilo e elegância,
mesmo que com a maturidade dos anos: É ela – pensou Leone. Parou e
ficou na expectativa, observando a sua aproximação e percebeu que ela o reconheceu.
Naquela expectativa Nádia não conseguiu cruzar por ele pela atração
de um olhar que a fulminou. Parou e calada olhava em seus olhos. Leone,
engasgado, não conseguiu falar. Ficaram alguns momentos em silêncio, admirados
em delírio.
Leone perguntou:
– Você é a Nádia?
– Sim!
Numa postura delirante Leone abriu os braços e se aproximou sem palavras.
Instintivamente Nadia lançou-se em seus braços, assim como dois adolescentes
e apertaram-se abraçados por longo tempo, como se tivessem voltado
ao estado juvenil do passado. Depois ela, acanhada, com sinal de lágrimas,
arredou-se, sentida pela precipitação de seus atos incondicionados. Nos olhos
de ambos revelava uma inesquecível relação de amor. Ele, com a voz embargada,
no impulso de uma atração fatal, que lhe dominou a razão, jogou-se numa
alucinada fantasia do passado, ressentida pelo tempo, que naquele momento
reacendeu e ali estavam duas múmias arrebatadas pelo desamor, em frente uma
da outra. Então Nádia falou:
– Leone! Não esperava este momento. – Com o lenço limpou as lágrimas
– Nem eu, Nádia! Destino enganoso, prega cada peça na gente. – Leone
falou emocionado.
Um encontro emocionante, com muitas páginas em branco, mas com
uma história muito forte de sonhos e paixão, que ficou no imaginário por uma
descrença e pela discórdia social vivida na época. Reanimada Nádia pergunta:
217

Teobaldo Branco

– Há quantos anos?
– Mais de vinte anos. Você não esqueceu?
– Não!
– Eu também não.
– Como está?
– Estou casado e tenho uma filha que estuda aqui, respondeu Leone.
– A Luzia! Uma linda menina, parabéns pela filha que tem. Já falei com
ela. Ela te contou?
– Sim! Não esperava tudo o que vem acontecendo. Parece que estamos
desenterrando um passado que era tão lindo. Isso está mexendo com a gente de
forma arrasadora.
– É verdade, Leone!
– E você, Nádia? O que aconteceu com você durante esses anos?
– Casei-me e tive um filho. Meu marido tornou-se alcoólatra e morreu
vítima da bebida. Resido nesta cidade com meu filho.
– Qual a idade de seu filho?
– Ele tem a idade de sua filha e chama-se Ulisses. Um lindo moço, ele
está estudando.
– Nádia! Fico feliz em te encontrar. Muito feliz mesmo. Os dois deviam
ser nossos filhos.
– Leone! Eles são nossos filhos. Mas estou entendendo, você está
voltando ao nosso passado, infelizmente é passado. Nada podemos fazer.
– Mas podíamos ter feito. Se quiséssemos. Eu queria, mas com razão
você foi envolvida pelos males da política de nossos próprios familiares. Houve
muitas mágoas e ressentimentos que não devemos lembrar.
– Leone! Gostaria de conversar mais com você, mas tenho um compromisso,
devemos continuar em outra oportunidade, se fica bem assim.
218

Além da Tocaia

– Nádia! Rogo pela bênção do céu. Desejo continuar a vê-la para matar
uma saudade amargurada do meu coração.
– Leone! Você é homem casado e deve honrar seu matrimônio. Além do
mais, a sua filha Luzia está aqui e deve mantê-la até formar-se professora, assim
como eu.
– Certo, Nádia! Eu vou, mas não esqueço deste encontro, assim como
você, não é?
– Sim! Está bem. Então até amanhã.
– Até amanhã.
A despedida foi com beijos e num clima de descontração. Aquela tensa
expectativa chegou ao fim e se transformou uma relação cordial e agradável
entre Leone e Nádia. Ambos caíram nas nuvens, porque ocorreu uma surpresa
inédita em suas vidas. O referido encontro marcou a vida de duas pessoas com
uma reflexão sobre a história cultural da sociedade humana. A vida é bela até de
olhos fechados se o coração está em paz consigo e com o mundo; será mais
bela se for de qualidade; a verdadeira vida está no belo da justiça e na vontade
de viver com integridade e consciência. Os desentendimentos são confirmados
pelo pensador Marx, que diz: “A sociedade humana vive sob dois pólos, um
dominador, outro dominado; a causa das desigualdades é provocada pela exploração
do homem pelo homem”.
Certo dia Nádia recebeu uma visita de Luzia. Ela descobrira o endereço
da professora e caminhou por algumas quadras, à tardinha, depois do expediente.
Em frente à porta apertou a campainha. Nádia estava no banho, por isso seu
filho Ulisses foi atender a porta. Não esperavam ninguém, curiosamente abriu a
porta para ver quem era e ao ver Luzia, Ulisses teve um sobressalto, encantou-se
com a menina, e falou:
– Entre, por favor! Convidou-a, a entrar numa sala e a sentar numa
poltrona.
Luzia sentou-se e olhou ao redor, deu um pequeno sorriso, arrumou uma
sacola no colo, deu um pequeno pigarro de satisfação e aguardou a iniciativa
do jovem que a recebia. Ulisses perguntou:
219

Teobaldo Branco

– Você gostaria de falar com a mamãe?


– Sim.
– Por acaso é aluna dela?
– Não! Ela trabalha com as turmas finalistas. Eu sou das séries iniciais.
– Ah, bem! Eu também estudo na mesma escola. Não nos conhecemos
ainda. Como é o seu nome?
– Luzia.
– Que nome lindo! O meu é Ulisses.
– Já sabia o seu nome. A sua mãe me falou. O seu também é um bonito
nome. Ulisses, nome grego.
– É! Que estranho! A mãe falando de mim? Que feio!
– Não, Ulisses! Uma tarde dessas falei com sua mãe. Ela chamou-me
para conversar. Ela contou que tinha um filho e então perguntei o seu nome.
Hoje tomei a iniciativa de continuar nosso diálogo.
– Desculpe foi apenas uma brincadeira. Não duvido nada de minha mãe.
– A professora Nádia parece ser uma excelente pessoa. Eu gostei dela.
– Que bom, Luzia! Assim podemos ser amigos mais íntimos.
– De minha parte, confirmado.
– De minha também. Vale um aperto de mão?
– Vale!
Naquele momento de troca de cortesias entre os dois jovens, Nádia
entra na sala e cumprimenta a jovem Luzia. Ela lembra-se do que afirmara alguns
dias antes a Leone, pai de Luzia: “Eles são nossos filhos”. Nádia estremeceu
com a realidade desafiando um destino a sua frente. Pensou: Será que o destino
vai resgatar um passado turbulento com nossos filhos? Voltou-se aos dois
adolescentes que se entendiam muito bem, demonstrando afinidade e
companheirismo no diálogo que discutiam. Ulisses em tom de brincadeira, desafiou
sua mãe dizendo:
220

Além da Tocaia

– Mamãe, a senhora fala de mim para suas alunas? Que coisa feia?
– Filho! O que soube sobre isso?
– Mamãe! A Luzia já sabia o meu nome antes de me conhecer.
– Foi por acaso. Um encontro com a Luzia, aluna da escola, e nessa
conversa falei do seu nome. Nada mais.
– Mamãe! Estou caçoando com a senhora. Por sinal gostei da sua aluna.
– A Luzia não é minha aluna por enquanto. Mas serei feliz no momento
que for. Nádia dirigiu-se a Luzia e perguntou:
– Luzia, como está?
– Estou bem, professora. Vim para continuar nossa conversa, se a senhora
quiser. Aquele dia nós não conseguimos concluí-la, não é?
– É verdade! O tempo continua sendo o melhor remédio para o entendimento
dos desencontros entre as pessoas no passado.
– Mamãe! inquiriu Ulisses. – O que a senhora quer dizer com isso?
A afirmação de Nádia preocupou os jovens, levando Ulisses a estranhar
as palavras de sua mãe e fazer o questionamento: “O que a Senhora quer dizer
com isso?”. Nádia caiu num deslize, tendo de se explicar. Naquele momento da
vida, não podia esconder um passado que estava vindo à tona. Luzia e Ulisses
ficaram aguardando com curiosidade o que a professora Nádia ia dizer. Ela
pensou e tentou falar, gaguejou com um pequeno pigarro, estendeu o assunto
para ser esclarecido, que ainda permaneceu como segredo bem guardado, apenas
disfarçou com uma explicação, dando a entender sobre uma teoria geral
sobre o tempo, que não havia nada obscuro no que havia dito.
– Ulisses! A mãe falou no tempo como grande julgador dos atos humanos.
– Mãe! A senhora falou dos desencontros do passado. Parece que a sua
referência era de um caso pessoal. Era ou não era, mamãe?
– Filho! Não! A nossa vida é um livro aberto.
– Tudo bem, mamãe!
221

Teobaldo Branco

O ambiente encheu-se de uma expectativa misteriosa. Alguns dias depois


Nádia atravessava lentamente a Praça dos Bandeirantes. Ela era uma mulher
jovem com aparência de intelectual, ao andar demonstrava preocupação,
pois caminhava olhando para baixo, e se dirigia para o outro lado da praça. A
sua passagem por ali era com destino ao trabalho, levava uma pasta e papéis
sob o braço, era observada enquanto caminhava, Nádia ia em direção de Leone.
Ao avistá-lo romanticamente sentado próximo de um chafariz, ela parou. Ele
ergueu-se de improviso em sua frente, num impulso abraçou-a com gesto de
ternura, expressando um passado nos recônditos do tempo.
– Leone! Que surpresa!
– Nádia! Como vai?
– Preciso falar com você sobre nossos filhos.
– O que houve com nossos filhos, Nádia? – perguntou Leone.
– A Luzia, sua filha, esteve em minha casa e diante dela e de meu filho
Ulisses eu caí num deslize ao falar no passado. Eles desconfiaram e me questionaram.
O que devemos fazer? Você contou para Luzia sobre nosso passado?
– Não, mas acho que devemos contar, pois não existe erro e nem crime
naquilo que houve com nós, até por sinal foi muito lindo, não é?
– Sim! Até porque percebi que nossos filhos se gostaram.
– Como, se gostaram?
– Com certeza se tornarão amigos, por isso pensei em explicar que também
fomos amigos quando jovens, não é?
– Nádia! Nós éramos mais do que amigos. Você era minha paixão, penso
que eu era o mesmo para você; era ou não era verdade?
– É verdade! Mas você tem uma mulher e vive em família, será que não
vai ter conseqüências? Por isso devemos pensar como vamos contar sobre
nosso passado.
– Nádia, você tem razão! Mas penso que não devemos esconder a verdade,
nunca.
222

Além da Tocaia

– Certo, na primeira oportunidade contarei o segredo da nossa relação.


– O que a Luzia foi fazer em sua casa?
– Foi concluir um tema escolar com Ulisses, eles são da mesma escola e
amigos. Leone, não tome por surpresa se a amizade deles se transformar em
paixão igual a nossa.
– Por favor, Nádia! Mas se é destino, o que fazer? Seja o que Deus
quiser. Eu não tenho nada contra. Sei que você soube educar seu filho, certamente
será um homem de bem.
– Fico feliz com sua afirmação. Nádia disse: – Leone! Você é um bom
homem, por isso sinto-me em segurança para tratar sobre o assunto de nossa
amizade com nossos filhos, não é?
– Sim, Nádia! Devemos contar a verdade, deste modo não seremos julgados
devedores, ou cúmplices de nada.
– Leone! Tirei um peso do coração. Agora o dever me chama, preciso ir.
– Posso ir até sua casa com minha filha Luzia?
– Deixa o tempo passar, nada tenho contra, mas penso em sua família.
– Nádia! Ninguém cometeu crime algum.
– Leone! Você lembra quando fomos apresentados pelo Pe. José, ao
retirar-se, ele disse: – “Um dia eu abençoarei vocês”.
Lembro! Não aconteceu. Agora vamos rezar pelos nossos filhos.
– Tudo bem! Deixamos para outro dia, Leone.
– Está bem, até outro dia.
A imaginação e a realidade faziam surgir imagens novelescas durante
aqueles encontros. Encontros que reaproximavam um passado cruel, em que
muitos foram vítimas do absurdo político e pretensioso de pessoas com corações
egoístas e ambiciosos ao extremo, cujas conseqüências se estenderam
por várias gerações. Época em que o motivo forte, capaz de levar os mandantes
a sinistros propósitos pelos seus interesses. Quem, porventura, desconhece
223

Teobaldo Branco

do quanto os homens eram capazes pelo ódio e a paixão partidária naqueles


tempos da malfadada política? Eles alimentavam poder de “chefões” como autoridade
superior.
As águas do tempo lavam os rancores, o egoísmo e as desavenças de
cada época, renovam-se numa transformação transcendental culminando em
novas gerações. Assim aconteceu com Luzia e Ulisses, que foram enredados
por uma grande paixão, num tempo de paz, filhos de bravos contendores de
uma luta encarniçada de vida e morte no passado. O futuro cruzou o destino de
dois jovens para mostrar que o rumo da civilização tem seqüência na estrada do
futuro por via independente da vontade dos homens; como numa diplomacia
de acertos de novos tempos realizou-se na matriz São Pedro, na Praça dos
Bandeirantes, do município de Redenção, o casamento dos jovens Ulisses e
Luzia.
Certa vez Leone e Nádia sentados no banco da Praça dos Bandeirantes,
na cidade de Redenção, confabulavam sobre o tempo e a memória, que deixaram
rastros de um passado desconcertado pelo egoísmo e teimosia. Eram objetivos
agarrados aos materiais ao construírem sua história. Como analisar diante
de seus netos, que vislumbravam novos horizontes e uma nova vida. Os encontros
e desencontros no amor levou eles a viverem distantes, mas ao mesmo
tempo ligados um ao outro. A solidão que os acompanhou durante toda a vida
veio naquelas alturas do tempo surpreendê-los, ao verem nos filhos, serem
unidos pelo amor, que eles não viveram.

“O homem que se alimenta na sabedoria não difunde misérias”


(Imério Castelanza).
Os olhos da imaginação veem o passado como um enigma ao
observar o destino de uma civilização. Esta obra percorre
um período de tempo de várias décadas de história da sociedade
da época, presenciando as reviravoltas políticas sob o poder
econômico, refletindo os erros e acertos na formação cultural das
novas gerações.
O desenvolvimento da sociedade caracteriza a imagem da comédia
humana, representada pelas conjunturas sociais, por intermédio
das ousadias e dos desafios dos homens em busca de
seus ideais.
A terra sempre foi o centro gerador dos conflitos, esta é a verdade
no contexto universal dos homens. Assim ocorreu nesta história
literária.
A lém da Tocaia é uma obra que envolveu uma consistente
pesquisa bibliográfica e inúmeras investigações de campo,
além de visitas e entrevistas com pessoas e lugares da Região
Noroeste do Rio Grande do Sul, para proceder a anotações, gravações
em videocassete e fotos, no sentido de resgatar um memorial
de informações sobre os momentos, fatos e acontecimentos históricos
da época, que constitui o conteúdo deste livro.
Estou revelando os fatos materiais da vida artística para facilitar
a compreensão do texto. A própria biografia do autor evidencia
as fontes das ideias, porque a cristalização da personalidade assinala
a visão de mundo de quem escreve.
Acrescento que consultei muitas instituições religiosas, Secretarias
de Cultura dos municípios e fóruns do Judiciário regional,
incluindo o Arquivo Público de Porto Alegre, no qual obtive uma
riqueza documental para poder retratar o período cultural de uma
época, tentando dar vida aos personagens e templos anônimos,
que possam ser revivido pelo leitor.
Impressão e acabamento na

Editora Unijuí

Rua do Comércio, 1364


98700-000 - Ijuí - RS - Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0343

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