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Para Humboldt, a escrita divina forma o que está inscrito, gravado. E acho que
posso usar essa frase para começar a explicar sobre essa comunidade rural a
qual minha mãe nasceu. Todos os agricultores que ali residem possuem algum
grau de parentesco com uma família e outra. Por muitas gerações as pessoas
casaram-se só com quem morava ali também, formando um verdadeiro elo de
afetividade, o que em minha opinião torna a convivência entre eles tão singela.
Esses agricultores possuem as suas pequenas propriedades onde cultivam
principalmente o café conilon para venda. Suas rotinas são sempre as
mesmas, trabalho familiar para cuidar da lavoura de segunda a sábado,
domingo pela manhã ir à igreja e a tarde no campo de futebol para jogar,
encontrar os amigos e tomar uma cerveja. As mulheres participam igualmente
de todas essas atividades, só se dedicam mais aos compromissos da igreja e
por outro lado não tem o compromisso do time de futebol, mas vão ao campo
encontrar as amigas e até bebem também. Com essa vida pacata e seguindo
sempre o mesmo cronograma é que os moradores passam seus costumes e
tradições adiante e apesar do advento das telecomunicações e outras
tecnologias, Córrego da Onça será sempre a roça, como carinhosamente
chamamos, das minhas origens.
A respeito dos costumes e tradições da comunidade vamos nos ater para esse
trabalho a parte religiosa. A igreja local tem como santo padroeiro o Santo
Antônio, que é festejado todo ano no dia 13 de junho e é pra ele que
geralmente as pessoas fazem suas preces, pedem por boa colheita,
agradecem pela chuva... Como toda igreja cristã vivem fervorosamente
também as datas santas como Páscoa e Natal e a respeito da primeira,
Córrego da Onça tem uma tradição muito bonita e antiga. Para falarmos dela
precisamos explicar um pouco a geomorfologia do local. Córrego da Onça está
compreendido no Monumento Natural dos Pontões Capixaba uma área de
preservação ambiental nacional composta por vales, pontões e montanhas
rodeadas por remanescentes da Mata Atlântica preservada e cachoeiras. Um
desses pontões se localiza no coração da comunidade, a chamada Pedra da
Onça que possui um Cruzeiro, cruz de madeira no topo da formação rochosa
colocada pela comunidade em 1965. Essa pedra, designação que eles usam
para a formação rochosa, virou símbolo da comunidade e mais que isso, se
tornou parte dos rituais religiosos que acontecem durante a passagem da
Páscoa.
Na sexta feira Santa, dia da morte de Jesus Cristo para o catolicismo, muitos
grupos religiosos passam o dia em jejum e oração ou fazem a procissão
chamada via sacra onde relembram as 12 etapas, ou estações da morte de
Jesus. Essa procissão costuma acontecer dentro das igrejas ou em vias
publicas como ruas e avenidas e também podem ser encenadas por grupos de
jovens, por exemplo. Em Córrego da Onça uma da maneiras que eles fazem
essa via sacra é subindo a Pedra da Onça passando pelas estações da morte
de Cristo até chegar ao topo, na cruz de madeira, onde é feito uma celebração
final. A subida do Cruzeiro possui umas partes por meio a mata e outras na
pedra descampada bem íngreme e lisa de modo a ser cancelada a procissão
caso esteja chovendo na semana sem um sol forte para secar a rocha. Do topo
do Cruzeiro é possível avistar a igreja e todas as propriedades dos moradores
da comunidade, além de outras localidades como Águia Branca e Pancas onde
fica a continuação do Monumento Natural dos Pontões Capixabas. A paisagem
é de tirar o folego lá em cima, mas também por todo o trajeto de subida
conseguimos presenciar cenas únicas e viver momentos de fervorosa fé e
devoção. Além do motivo principal explicado acima, a subida no Cruzeiro
também é um momento de pedir e agradecer pela colheita, pela chuva, pela
vida da natureza e humana.
Quero deixar registrado também que por ser símbolo da comunidade, a Pedra
da Onça, também atrai pessoas de outras localidades interessadas, em alguns
momentos, à apenas deslumbrar sua bela fauna e flora ou apreciar a paisagem
geral com uma vista a 700 m acima do nível do mar. Isso não significa que
essas pessoas não se importam com a procissão ou com a cerimônia religiosa
que está acontecendo simultaneamente. Mas talvez elas enxerguem aquela
paisagem de uma forma a não ser pelo viés religioso, e por vezes, eu me incluí
nesse grupo algumas vezes. Experenciei a subida nas primeiras vezes através
do momento da Páscoa pela religião católica e hoje eu consigo compreender
que não é só isso que significa. Aquela comunidade além de buscar a subida
ao monte alto como forma de remissão dos pecados e de estar em paz com
Deus também enxerga a própria natureza como completa, mística e sagrada
por si só. Só agora dotada da minha bagagem geográfica é que consigo
compreender que é muito mais do que uma procissão religiosa e estar
escrevendo esse trabalho é a minha reflexão sobre isso.
Compreender o sagrado dos locais não é algo fácil, possível, para todas as
pessoas, só quem vive/vivenciou ou tem a sensibilidade de se importar com a
manifestação é que consegue se aproximar mais de uma explicação. Diante
disso apenas uma subida a um monte sem uma procissão religiosa em
conjunto, pode ser algo sagrado caso essa experiência te tire da zona de
conforto e te faça refletir sobre as questões místicas e profundas dentro de ti.
Antes eu vivenciava as manifestações só religiosas, hoje com as mudanças em
minha vida em torno disso eu tenho procurado vivenciar as manifestações mais
completas diante daquilo que eu consigo enxergar significado. Saí da minha
rotina também ao me permitir viver isso. Saí da minha rotina ao ver significado
e sentimento em tudo, a pensar que cada coisa simples que acontece pode ser
espiritual e sagrado porque cada uma delas está dotada de vida e vida é o
maior exemplo disso tudo. Compreendo que o sagrado também pode continuar
sendo sagrado para alguém que não está ligado mais intimamente a religião.
Arrisco até a dizer que em breve os estudos geográficos se consolidarão em
uma temática de espiritualidade no geral e não apenas manifestações
religiosas, pois espiritualidade é muito mais amplo, pode ser de acordo com os
elementos da natureza, os ciclos, o universo, as forças de luz...A
espiritualidade são representações de tudo aquilo que consegue dar um brilho
em nossa vida, nos fazer respirar fundo, agradecer e vibrar coisas boas. E é
dessa forma que eu termino este relato sobre a representação cultural que me
toca.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS