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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESÍRITO SANTO

GEOGRAFIA HUMANA E CULTURAL

NATALIA CRIVELLARO COUTO

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA

A disciplina de Geografia Humana e Cultural me permitiu fazer uma coisa muito


importante: voltar para o meu eu interior e minhas origens. Confesso que ainda
tenho muito que estudar, mas o pouco que conseguimos debater nas aulas em
sala e experimentar nas aulas de campo já foi o suficiente para nos
aproximarmos desse campo incrivelmente diverso que é a Cultura. Para mim,
se me perguntarem qual a definição de cultura eu ainda ficaria sem palavras
concretas para responder. E refletindo sobre, eu diria que é exatamente isso,
quando algo te toca tão no seu íntimo que te faltam palavras para descrever e
você não tem alternativa se não sentir toda a onda de sentimentos de
pertencimento, amor, aceitação, liberdade, felicidade e completude que a
situação pode lhe trazer. E quando eu penso nesses sentimentos só consigo
pensar na minha família, em especifico por parte de mãe, que vive no interior
de Águia Branca numa comunidade rural chamada Córrego da Onça.

Essa comunidade é mais uma daquelas tipicamente fundadas por colonos,


imigrantes europeus, no século passado que caracterizaram o modelo de
formação do território e do Estado espírito-santense. Por muitos anos eu
reneguei essas minhas origens, principalmente no período conturbado das
emoções da adolescência, não querendo saber sobre a história e constituição
do lugar e de nossa família e não querendo viver a experiência única do
cotidiano rural. Eu simplesmente passava por aquele local, ficava alguns dias e
ia embora exatamente do jeito que eu cheguei. O que mudou é que hoje na
minha bagagem de mão está a Geografia. Ela é a responsável pelo
amadurecimento, escuta, percepção, leitura e por tudo o que eu tenho me
tornado. A Geografia é a ferramenta que me ajuda a potencializar todos os
meus órgãos do sentido e a minha intuição. E dotada da minha bagagem de
mão, retorno para o Córrego da Onça para uma viagem profunda através do
tempo, da paisagem e dos sentimentos.

Na primeira aula fomos apresentados ao Carl Sauer e eu fiquei maravilhada em


como ele constrói suas ideias bebendo de fontes do idealismo alemão
principalmente Goete e Hegel e geógrafos como Ratzel e até William Davis. O
idealismo é realista, objetivo, partindo do visível para chegar ao invisível, aquilo
que já aconteceu, pois as causas que vão transformando o mundo são
primeiramente físicas. A natureza seria um livro aberto para ler, interpretar e se
identificar com a natureza sendo um dos papeis do geógrafo a busca por essas
leituras interpretações e identificações. Logo é possível trazer a ideia de cultura
como uma derivação morfológica já que a geografia moderna surge para
explicar essas diferenças e rugosidades na natureza.

Para Humboldt, a escrita divina forma o que está inscrito, gravado. E acho que
posso usar essa frase para começar a explicar sobre essa comunidade rural a
qual minha mãe nasceu. Todos os agricultores que ali residem possuem algum
grau de parentesco com uma família e outra. Por muitas gerações as pessoas
casaram-se só com quem morava ali também, formando um verdadeiro elo de
afetividade, o que em minha opinião torna a convivência entre eles tão singela.
Esses agricultores possuem as suas pequenas propriedades onde cultivam
principalmente o café conilon para venda. Suas rotinas são sempre as
mesmas, trabalho familiar para cuidar da lavoura de segunda a sábado,
domingo pela manhã ir à igreja e a tarde no campo de futebol para jogar,
encontrar os amigos e tomar uma cerveja. As mulheres participam igualmente
de todas essas atividades, só se dedicam mais aos compromissos da igreja e
por outro lado não tem o compromisso do time de futebol, mas vão ao campo
encontrar as amigas e até bebem também. Com essa vida pacata e seguindo
sempre o mesmo cronograma é que os moradores passam seus costumes e
tradições adiante e apesar do advento das telecomunicações e outras
tecnologias, Córrego da Onça será sempre a roça, como carinhosamente
chamamos, das minhas origens.

A respeito dos costumes e tradições da comunidade vamos nos ater para esse
trabalho a parte religiosa. A igreja local tem como santo padroeiro o Santo
Antônio, que é festejado todo ano no dia 13 de junho e é pra ele que
geralmente as pessoas fazem suas preces, pedem por boa colheita,
agradecem pela chuva... Como toda igreja cristã vivem fervorosamente
também as datas santas como Páscoa e Natal e a respeito da primeira,
Córrego da Onça tem uma tradição muito bonita e antiga. Para falarmos dela
precisamos explicar um pouco a geomorfologia do local. Córrego da Onça está
compreendido no Monumento Natural dos Pontões Capixaba uma área de
preservação ambiental nacional composta por vales, pontões e montanhas
rodeadas por remanescentes da Mata Atlântica preservada e cachoeiras. Um
desses pontões se localiza no coração da comunidade, a chamada Pedra da
Onça que possui um Cruzeiro, cruz de madeira no topo da formação rochosa
colocada pela comunidade em 1965. Essa pedra, designação que eles usam
para a formação rochosa, virou símbolo da comunidade e mais que isso, se
tornou parte dos rituais religiosos que acontecem durante a passagem da
Páscoa.

Na sexta feira Santa, dia da morte de Jesus Cristo para o catolicismo, muitos
grupos religiosos passam o dia em jejum e oração ou fazem a procissão
chamada via sacra onde relembram as 12 etapas, ou estações da morte de
Jesus. Essa procissão costuma acontecer dentro das igrejas ou em vias
publicas como ruas e avenidas e também podem ser encenadas por grupos de
jovens, por exemplo. Em Córrego da Onça uma da maneiras que eles fazem
essa via sacra é subindo a Pedra da Onça passando pelas estações da morte
de Cristo até chegar ao topo, na cruz de madeira, onde é feito uma celebração
final. A subida do Cruzeiro possui umas partes por meio a mata e outras na
pedra descampada bem íngreme e lisa de modo a ser cancelada a procissão
caso esteja chovendo na semana sem um sol forte para secar a rocha. Do topo
do Cruzeiro é possível avistar a igreja e todas as propriedades dos moradores
da comunidade, além de outras localidades como Águia Branca e Pancas onde
fica a continuação do Monumento Natural dos Pontões Capixabas. A paisagem
é de tirar o folego lá em cima, mas também por todo o trajeto de subida
conseguimos presenciar cenas únicas e viver momentos de fervorosa fé e
devoção. Além do motivo principal explicado acima, a subida no Cruzeiro
também é um momento de pedir e agradecer pela colheita, pela chuva, pela
vida da natureza e humana.

Quero deixar registrado também que por ser símbolo da comunidade, a Pedra
da Onça, também atrai pessoas de outras localidades interessadas, em alguns
momentos, à apenas deslumbrar sua bela fauna e flora ou apreciar a paisagem
geral com uma vista a 700 m acima do nível do mar. Isso não significa que
essas pessoas não se importam com a procissão ou com a cerimônia religiosa
que está acontecendo simultaneamente. Mas talvez elas enxerguem aquela
paisagem de uma forma a não ser pelo viés religioso, e por vezes, eu me incluí
nesse grupo algumas vezes. Experenciei a subida nas primeiras vezes através
do momento da Páscoa pela religião católica e hoje eu consigo compreender
que não é só isso que significa. Aquela comunidade além de buscar a subida
ao monte alto como forma de remissão dos pecados e de estar em paz com
Deus também enxerga a própria natureza como completa, mística e sagrada
por si só. Só agora dotada da minha bagagem geográfica é que consigo
compreender que é muito mais do que uma procissão religiosa e estar
escrevendo esse trabalho é a minha reflexão sobre isso.

Para associar o que me toca no íntimo, uma experiência pessoal, com a


Geografia Cultural optei por trazer as contribuições de Zeny Rosendahl
geógrafa com grande ênfase nos estudos de Geografia Cultural atuando no
campo da religião desde 1994. Em seu artigo para a revista Espaço e Cultura
Intitulado Geografia e Religião: uma proposta (1995), ela aborda as relações
entre geografia e religião focando no estudo geográfico sendo diferenciado dos
estudos sociológicos e antropológicos. Ela seleciona alguns temas principais
que as pesquisas nesse campo podem recorrer, sendo que não é necessário
escolher apenas um, pois todos se correlacionam, são eles:

• Fé, espaço e tempo – difusão e área de abrangência;

• Centros de Convergência e irradiação;

• Religião, território e territorialidade;

• Espaço e lugar sagrado; Vivência, percepção e simbolismo.


E de acordo com minha vivência pelo aspecto da religiosidade ao subir na
Pedra da Onça acredito que a temática da Geografia e Religião que mais se
relaciona é o último item citado anteriormente. No artigo que estamos utilizando
a autora Zeny cita Yfu Tuan dizendo que para ele o sagrado é tudo aquilo que
se destaca da rotina. A subida no Cruzeiro é algo que se destaca da rotina das
pessoas que ali moram, acontece uma vez ao ano e sob circunstâncias muito
específicas, como já explicadas nesse texto. E para a autora, os indivíduos que
são religiosos conseguem ver o sagrado no espaço, no lugar, na paisagem, na
natureza como um todo, sem distinguir um do outro, pois como dizia Eliseé
Reclus, o homem é a natureza tomando consciência de si mesmo. A população
de Córrego da Onça consegue ver o sagrado na subida na Pedra da Onça, na
natureza exuberante que a cerca, no chamado pela chuva e no fenômeno
acontecendo de fato. Tudo para eles está interligado. O Todo e a Parte são um
só.

É na subida que as pessoas vão passando pelos obstáculos físicos presentes


na rocha e pensando na superação das dificuldades de suas vidas e vibrando
ao chegarem no topo, se sentindo plenos, completos e orgulhosos. São esses
momentos que dão o algo a mais para querer se viver, que fazem-nos
questionar sobre a imensidão do mundo e a nossa pequeneza. Somos o Todo
e a Parte interligados. Segundo a autora “o homem consagra o espaço porque
sente necessidade de viver num mundo sagrado, de mover-se em um espaço
sagrado” (ROSENDAHL, 1995, p.64). Quando as pessoas sentiram que não
era mais suficiente que os ritos da Páscoa ocorressem na pequena igreja,
estes precisaram ocupar outros espaços e dotá-los de significado. Porém o que
vale salientar é que essa comunidade católica adotou uma formação rochosa
no sentido de monte para buscar uma materialidade do sagrado para eles.
Outra comunidade se ali habitasse, poderia dar outro sentido àquela forma da
natureza como afirma Rosendahl, a definição dos lugares como sagrados
reflete as vivências e percepções de um grupo em especifico. (1995, p. 68).

Compreender o sagrado dos locais não é algo fácil, possível, para todas as
pessoas, só quem vive/vivenciou ou tem a sensibilidade de se importar com a
manifestação é que consegue se aproximar mais de uma explicação. Diante
disso apenas uma subida a um monte sem uma procissão religiosa em
conjunto, pode ser algo sagrado caso essa experiência te tire da zona de
conforto e te faça refletir sobre as questões místicas e profundas dentro de ti.
Antes eu vivenciava as manifestações só religiosas, hoje com as mudanças em
minha vida em torno disso eu tenho procurado vivenciar as manifestações mais
completas diante daquilo que eu consigo enxergar significado. Saí da minha
rotina também ao me permitir viver isso. Saí da minha rotina ao ver significado
e sentimento em tudo, a pensar que cada coisa simples que acontece pode ser
espiritual e sagrado porque cada uma delas está dotada de vida e vida é o
maior exemplo disso tudo. Compreendo que o sagrado também pode continuar
sendo sagrado para alguém que não está ligado mais intimamente a religião.
Arrisco até a dizer que em breve os estudos geográficos se consolidarão em
uma temática de espiritualidade no geral e não apenas manifestações
religiosas, pois espiritualidade é muito mais amplo, pode ser de acordo com os
elementos da natureza, os ciclos, o universo, as forças de luz...A
espiritualidade são representações de tudo aquilo que consegue dar um brilho
em nossa vida, nos fazer respirar fundo, agradecer e vibrar coisas boas. E é
dessa forma que eu termino este relato sobre a representação cultural que me
toca.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROSENDAHL, Zeny. Geografia e Religião: uma proposta. Espaço e Cultura.


Rio de Janeiro, v. n. 1. p 45 – 74, 1995. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/3481/2411>. Acesso
em: 09 jun 2019

SAUER, Carl O. Geografia Cultural. Espaço e Cultura. Rio de Janeiro, v. n. 3.


p. 1 - 7, 1997. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/
6706/47991. Acesso em: 09 jun 2019

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