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Interruptores,

multiplicadores e
estimuladores comuns:

14 projetos para
São João de Meriti

Org.
Cauê Capillé
Thiago Soveral
Mariana Maciel

Grupo UrCA, Prourb


FAU UFRJ

1a edição
Editora FAU UFRJ
Rio de Janeiro, 2020
C243i Interruptores, multiplicadores e estimuladores comuns: 14 projetos para São João
de Meriti / Organização de Cauê Capillé, Thiago A. T. de Soveral e Mariana Maciel
Rio de Janeiro : Editora FAU UFRJ, 2020
343 p. : il.

ISBN: 978-65-89444-00-8

1. Projeto de arquitetura (Estudo e Ensino) 2. Edifícios públicos 3. São João de


Meriti. I. Título. II. Autor

CDD 725

2
Interruptores, multiplicadores e
estimuladores comuns:

14 projetos para São João de Meriti

Catálogo de projetos que abordam sobre as condições de ‘dependência, distância e


deficiência’ da periferia metropolitana, a aparente ‘ineficiência emancipatória’ das
infraestruturas de mobilidade e o potencial político de arquiteturas públicas no contexto
urbano de São João de Meriti.

Organização:
Cauê Capillé, Thiago Soveral e Mariana Maciel
(Grupo UrCA, Prourb, FAUUFRJ)

Os projetos foram realizados por estudantes da FAUUFRJ, nos ateliers e TFGs


coordenados pelo Professor Cauê Capillé em 2018 e 2019. Parte desta seleção de
projetos foi exposta de 11 de abril a 10 de maio de 2019, no edifício da FAUUFRJ. Na
abertura da exposição, foram apresentados os projetos: ‘A periferia no centro’, vencedor
do Concurso Nacional ‘Urban 21’ de 2018; e ‘Equipamentos travessia’, vencedor do
Concurso ‘Arquitetos do Amanhã’ de 2019.

FAU UFRJ

Este trabalho de pesquisa/projeto contou com colaborações e contribuições diretas


e indiretas durante os anos de 2018-19 e, portanto, é preciso agradecer: ao Grupo
de Pesquisa Urbanismo, Crítica e Arquitetura (UrCA), no PROURB, no qual temos
debatido e aprofundado grande parte dessas ideias; à equipe do Projeto de Extensão
Rio-Metrópole, com quem desenvolvemos importantes atividades de debate sobre a
metrópole fluminense em 2018; às(os) arquitetas(os) que colaboraram com palestras
e/ou bancas externas nos ateliers; à Secretaria Municipal de Captação de Recursos,
Urbanismo e Habitação de São João de Meriti (em especial, à Ruth Jurberg e ao
arquiteto Lucas Duarte pelas três visitas de campo aos projetos atuais da Secretaria,
tanto com as(os) alunas(os) da graduação, quanto com pesquisadoras(es)); à Câmara
Metropolitana de Integração Governamental, pelo material disponibilizado à FAU
UFRJ e pelas palestras concedidas no âmbito dos eventos ‘Rio-Metrópole’; às trocas
com Daniela Javoski sobre os projetos em andamento na Prefeitura do Rio de Janeiro;
à FAPERJ, pela Bolsa de Pós-Doutorado FAPERJ Nota 10 (2017-18), pelo Auxílio
ARC (2019), e pela Bolsa para Iniciação Científica (2020-21); ao CNPq, pelo Auxílio
Universal (2018-21) e Bolsa de Iniciação Científica; e à UFRJ, pelo Auxílio ALV (2020),
pela Bolsa para Iniciação Científica PICIC e pelo importante e estimulante apoio
institucional que oferece à pesquisa e desenvolvimento científico.

GRUPO UrCA

3
4
6 Interruptores, multiplicadores e estimuladores
comuns: 14 projetos para São João de Meriti
Cauê Capillé e Thiago Soveral

16 Equipamentos travessia: infraestrutura como


arquitetura no espaço perimetropolitano
Maria Rúbia Pereira

44 A periferia no centro: um outro olhar sobre São


João de Meriti
Ariane Pereira e Larissa Monteiro

70 O limite do limite: um ensaio no território da Via


Light
Mariana Maciel

96 Garagem da cidade: dispositivo urbano temporal


Ana Totti, Arthur Frensch, Betina Albrecht e
Mariana Cruz

116 Rua quintal


Denisse Neuman, João Pedro Pina e Marta Aguerri

134 Autonomia local


Rafael Pamplona

152 Vagalume: batalha comum e invisível


Amanda Vieira, Gema Martinez e Giovana Paape

170 Ativação do comum através das intra-quadras do


centro
Flávio de Paiva, Joanna Ferreira, José Eduardo Rigon e
Milena Coutinho

202 Parque e usina de resíduos sólidos de Belford Roxo


Filipe Santa Rosa e Jéssica Torres

228 O cemitério no morro


Bruno Kraemer, Fernanda Bravo, Gabriela Cândido e
Luiza Voss

250 Praça-palco-terminal: espaço público a partir das


infraestruturas de mobilidade
Carolina Rapozo, Mariana Felner, Silviane Carvalho e
Thainá Bessa

280 Plataforma da cidade: rearranjo da estação de


trem Pavuna/São João de Meriti e suas principais
dinâmicas associadas
Gabriela Maya, Livia Borelli e Moana Reis

304 Articulador urbano: a convergência cotidiana do


trânsito
Angela Blanco, Isabela Martins, Julia Reyes e
Wallace Alvim

330 Margem infraestrutural


Ariane Pereira, Clement Novaro e Larissa Monteiro

5
Interruptores, multiplicadores e estimuladores comuns:
14 projetos para São João de Meriti

Cauê Capillé e Thiago Soveral

Periferia metropolitana e a promessa da infraestrutura


A Região Metropolitana do Rio de Janeiro é frequentemente caracterizada
espacialmente por três condições interrelacionadas1: por uma estrutura ‘centro-
periferia’ de dependência econômica, cultural e política2; por distâncias territoriais
entre atividades urbanas; e por inúmeras deficiências infraestruturais e de qualidade
do espaço urbano. Essas três condições – dependência, distância e deficiência3– de fato
sintetizam profundos problemas socioambientais cotidianamente vividos por mais de
dez milhões de habitantes4.

Entretanto, a construção da retórica dessa tríade – dependência, distância e deficiência


– serve frequentemente como base para que se endossem projetos megalômanos (e
‘compulsórios’) de transformação nas periferias, geralmente associados à construção
de infraestruturas de mobilidade metropolitana. Apesar de serem justificados
pela promessa de acesso das populações periféricas aos recursos da centralidade
metropolitana, esses projetos têm a tendência de facilitar o sentido inverso, isto é,
economizam a possibilidade de domínio central aos recursos (humanos, naturais, etc)
das periferias. Na periferia da RMRJ, quanto melhor o acesso a infraestruturas de
mobilidade metropolitana, maior a dependência aos centros econômicos, políticos e
culturais5.

Vontades de cidade compacta no mundo da ‘urbanização sem


urbanidade’
Há um esforço recente, por parte de órgãos públicos de planejamento, de reverter o
esquema centro-periferia da RMRJ para um ‘arquipélago de centralidades’, aplicando
ideias de adensamento urbano reforçadas pela Nova Agenda Urbana da ONU Habitat
(2016). Esse esforço busca, entre outros objetivos, reforçar centralidades existentes
da Baixada Fluminense. No entanto, as complexidades dos ‘mares metropolitanos’ da
América Latina desafiam essas ‘vontades de cidade compacta’6.

O principal desafio emerge do fato que o planejamento de novas centralidades para a


periferia metropolitana vem comumente atrelado a ideias tradicionais de centralidade
urbana, geralmente eurocêntricas. Há entre nós planejadores, se não explicitamente, às
vezes apenas sutilmente, uma série de receitas prontas da ‘boa centralidade’, que é feita
de densidade caminhável, centros históricos, cultura lenta, etc. Embora essa cultura
seja realmente a possível imagem da qualidade de vida urbana, alcançada através do
acúmulo contínuo das riquezas do planeta, serve apenas de miragem extraplanetária
para a realidade das periferias metropolitanas. Em síntese, como descreve Albert Pope
(1996), uma das principais características da urbanização contemporânea é sua ausência
de forma: habitamos megalópoles incapazes de funcionar como locus de política e
identidade tradicionais.

Nesse cenário, dois campos de desafios – diagnóstico e ação projetual – surgem a partir
de uma agenda de projeto sensível às novas dinâmicas da metrópole: que ferramentas
utilizar para ler e projetar a metrópole? Que fenômenos/sistemas/ecologias/formas
precisamos ativar para poder atuar na ‘supermodernidade’ da ‘completa urbanização
sem urbanidade’7? Se os processos contemporâneos de formação da paisagem urbana
tomaram escalas e estruturas ainda mais complexas que as do século passado, é preciso
portanto saber reciclar as ferramentas de análise e projeto para essas novas condições.
‘Quem’, ‘como’ e ‘quando’ se tornaram questões-chave para os projetos de arquitetura e
cidade atualmente.

6
Aposta do atelier: De dentro das infraestruturas comuns
Nesse contexto de completa urbanização e periferização, as infraestruturas
metropolitanas – estações, vias, grids, veículos, passagens, etc – formam a arena,
o ‘espaço de aparecer’8 onde se disputam as questões políticas que mais movem as
massas: lutas contra o domínio do cotidiano. Atuar de dentro das infraestruturas
comuns implica em abordagens menos prescritivas e mais empíricas, intuitivas,
sensíveis, híbridas, abertas e relacionadas com a realidade pós-industrial, globalizada,
metropolitana existente. Implica em considerar a cidade existente (em especial, as
infraestruturas) como ponto de partida e como material de projeto a fim de transformar
as paisagens metropolitanas feitas de consumo, tornando-as menos estruturas de
domínio e, mais, plataformas de empoderamento/negociação do coletivo. Implica em
considerar que a arquitetura é capaz de produzir e naturalizar cotidianos através de sua
disposição para organizar coletivos9. Assim, através do redesenho do cotidiano comum
e metropolitano, essa agenda busca contrapor a dependência do sistema financeiro
desigual10; atuar na dinâmica multi-escalar da ‘distância-velocidade’11 das infraestruturas
de garantia da eficiência do mercado (‘não lugares’); e reverter a deficiência do espaço
urbano em promover o direito à cidade.

Em síntese, essa agenda propõe atuar ‘dentro e contra’ os atuais sistemas, economias
e morfologias insustentáveis, propõe reativar o direito à cidade nas periferias
metropolitanas a partir da arquitetura de seus equipamentos e infraestruturas comuns.
Propõe, desse modo, agenciar ‘metamorfoses do ordinário’12: reciclagens tipológicas a
partir dos elementos do mar metropolitano, para estimular13 cidade (e conflito) contra a
isotropia desse mesmo mar.

Exposição na FAUUFRJ em 2019


Exposição de 10 projetos para São João de Meriti. Ver publicação
‘Interruptores, multiplicadores e estimuladores comuns’ (2019).

7
Visitas de campo em 2018
Acima, Praça Antática no bairro de Vilar dos Teles, em visita de campo
após entrevista na Secretaria Municipal de Captação de Recursos,
Urbanismo e Habitação. Abaixo, visita de campo com alunas(os) da
graduação, observando a estrutura do Ramal de Trem de Passageiros
de Belford Roxo, visto de uma passarela ao lado da Praça da Matriz, no
Centro de São João de Meriti.

8
Interruptores, multiplicadores e estimuladores em São João de
Meriti: 14 projetos de 2018 e 2019
Em 2018 e 2019, organizamos uma sequência de ateliers de projeto na FAU UFRJ
para atuarem como laboratórios de estudo sobre a periferia metropolitana do Rio de
Janeiro. Em especial, selecionamos o Município de São João de Meriti como estudo
de caso, por conta de sua posição estratégica nos recentes projetos de transformação
metropolitana, bem como pela facilidade de contato com gestores e planejadores da
Secretaria Municipal de Captação de Recursos, Urbanismo e Habitação. Em especial, é
importante citar as trocas, visitas de campo e palestras em parceria com Ruth Jurberg,
na época Secretária de Captação de Recursos, Urbanismo e Habitação de São João
de Meriti. As alunas(os) da graduação puderam participar dessas visitas de campo e
palestras; e tiveram acesso aos dados fornecidos pela Secretaria e por outros órgãos de
planejamento, como a Câmara Metropolitana (que forneceu material de pesquisa para a
FAU UFRJ através de um acordo de pesquisa e desenvolvimento científico).

Nos ateliers, foram produzidos inúmeros diagnósticos sobre a posição de São João de
Meriti na metrópole fluminense. Esse material foi publicado recentemente e pode ser
acessado pelo site do grupo de pesquisa UrCA PROURB FAUUFRJ14. Em especial, vale
citar a produção de seis mapas sobre a condição de periferização de São João de Meriti.

Ateliers em 2019
Os ateliers e bancas
frequentemente contaram
com colaborações externas. Na
foto, apresentação do projeto
‘Garagem da cidade’ (Ana Totti,
Betina Albrecht, Arthur Frensch
e Mariana Cruz) no atelier PA3
co-orientado por Juliana Sicuro,
com as bancas externas de Luísa
Bogossian e Thiago Almeida.

Como mencionado, o principal desafio da pesquisa em andamento e dos ateliers (atuais


e de 2018-19) foi o de como projetar a ‘disposição política’15 da arquitetura – ou, dito de
outra forma, como, através da arquitetura, projetar disposições econômicas, culturais
e sociais mais justas. Em 2018 e 2019, foram elaborados 70 trabalhos, por quase 180
alunas(os) da graduação da FAU UFRJ, desde Trabalhos Finais de Graduação a Ateliers
de Projeto. Desses, selecionamos 14 para serem apresentados nessa publicação.

Os projetos selecionados têm uma independência temática – cada projeto aborda uma
questão específica dentro desse debate mais amplo que levantamos acima – e não devem
ser compreendidos como integrados. São, inclusive, potencialmente contraditórios.
No entanto, embora cada projeto tenha sido selecionado por qualidades específicas
individuais, alem de justaposições, há na coleção a produção de um repertório e
elementos emergentes para o projeto na periferia metropolitana. Numa tentativa ainda
inicial de organização desse repertório, apresentamos os trabalhos a partir de conceitos
emprestados de outros autores16:

9
Três repertórios
Interruptores
São João de Meriti é marcado por fraturas causadas por infraestruturas de mobilidade
metropolitana: em especial, a Rodovia Dutra, Trem (ramais Santa Rita e Belford Roxo)
e Via Light. Quatro projetos tomam partido dessas fraturas: Maria Rúbia Pereira
(‘Equipamentos travessia’) considera o funcionamento da Rodovia Dutra como ‘estrada-
mercantil’ capaz de produzir periferização e investiga como as infraestruturas de
atravessamento podem aproveitar a escala da rodovia para a produção de equipamentos
públicos de uso coletivo, que articulam hibridamente tanto a economia da rodovia,
quanto os usos locais dos municípios cortados. Ariane Pereira e Larissa Monteiro
(‘A periferia no centro’) produzem uma análise do tecido urbano de São João de
Meriti, observando fraturas produzidas pelo loteamento descontínuo e, a partir dessa
observação, projetam arquiteturas/infraestruturas sistêmicas para contrapor a isotropia
política das periferias. Mariana Maciel de Farias (‘O limite do limite’) se aprofunda
sobre os elementos que fracionam a periferia, especialmente quando se sobrepõem
causando uma enorme margem espessa e contínua de limite da urbanidade. Através
desse aprofundamento, assume o limite e a interrupção como estratégias de projeto e
trabalha na sistematização de uma possível transformação dessas margens espessas para
que produzam urbanidades cotidianas de valor local. Ana Totti, Arthur Frensch, Betina
Albrecht e Mariana Cruz (‘Garagem da cidade’) observam o ritmo cotidiano da principal
garagem de ônibus em São João de Meriti e propõem uma profunda transformação no
seu valor de uso coletivo, sem alterar o programa de manutenção da frota: hackeiam
inúmeras ociosidades do sistema atual para que contribuam no fortalecimento político e
econômico da Baixada.

Esses projetos atuam, assim, semelhante ao que Keller Easterling (2014) chama de
‘interruptores’: infraestruturas capazes de atuar no controle dos fluxos infraestruturais.
Esses interruptores produzem, por suas disposições infraestruturais, possibilidades
de adensamento coletivo dentro das infraestruturas. Produzem, portanto, pequenas
multidões nos mares isotrópicos das periferias.

Multiplicadores
Easterling (2014) chama de ‘multiplicadores’ as infraestruturas que atuam politicamente
não pelo espécime específico, mas pela abundante distribuição em espécie pelo planeta.
Automóveis, portas USB, baterias, contêineres, etc –são exemplos de ‘multiplicadores’.
Redesenhar um destes multiplicadores não tem o impacto que o redesenho de todo
o sistema, de toda uma população de encaixes e cadeias produtivas. Cinco projetos
utilizam uma estratégia multiplicadora no território, especialmente considerando a
multiplicação de loteamentos comuns nas periferias. Como os trabalhos não tomaram
esses conceitos como ponto de partida – como dito, esta é uma organização a posteriori
– alguns trabalhos mencionados acima retornam dentro desse segundo repertório:
Ariane Pereira e Larissa Monteiro (‘A periferia no centro’) alteram os parâmetros de
uso dos lotes, produzindo pequenas praças de acesso entre enclaves de loteamento.
Denisse Neuman, João Pedro Pina e Marta Aguerri (‘Rua quintal’) questionam sobre
o processo de apropriação coletiva das ruas de São João de Meriti, projetando uma
metodologia participativa e infraestruturas multiplicadoras de transformação das
ruas em lugar de prática coletiva do comum. Rafael Pamplona (‘Autonomia local’)
investiga sobre a possibilidade de alteração da economia local a partir de transformações
administrativas (por exemplo, a implementação de uma moeda social) e em sistemas
de distribuição (por exemplo, bicicletas com caçamba compartilhadas) e adensamento
produtivo, possivelmente impactando toda a forma urbana das residências de São
João de Meriti. Amanda Vieira, Gema Martinez e Giovana Paape (‘Vagalume’)
questionam, a partir da Batalha de Rap da Praça do Skate de São João de Meriti, noções
de propriedade, pertencimento e visibilidade política nos quintais de meio de quadra.
Flávio de Paiva, Joanna Ferreira, José Eduardo Rigon e Milena Coutinho (‘Ativação
do comum’) propõem uma ativação urbana para intensificar usos coletivos a partir dos
estacionamentos e galerias que se repetem nas intra-quadras da Baixada, especialmente
nas centralidades urbanas.

10
Estimuladores
Todos os trabalhos apresentados defendem uma postura projetual de estímulo das
situações urbanas existentes, ao invés de determinar uma lógica externa ao contexto de
São João de Meriti. Essa postura não implica em aceitar precariedades ou romantizar
situações de ‘dependência, distância e deficiência’. Mas também não implica em impor
receitas prontas de ‘boa urbanidade’, normas ‘corretas’ e ‘cientificamente comprovadas’.
Essa postura implica, portanto, em abordagens menos prescritivas e mais empíricas,
intuitivas, sensíveis, híbridas, abertas e relacionadas com a realidade pós-industrial,
globalizada, metropolitana existente. São posturas que, como já defendemos em
outro trabalho , buscam aprender com a metrópole e para a metrópole, semelhante
ao trabalho ‘Grand Paris Stimulé’ (Klouche, Decoster, & Poulin, 2009), coordenado
por Djamel Klouche e L’AUC, do qual emprestamos o conceito ‘estimuladores’. Nesse
sentido, embora cada projeto busque contrapor as lógicas de ‘dependência, distância e
deficiência’ existentes, essa busca parte da própria cidade como ponto de partida e como
material de trabalho.

Alguns projetos se destacam em relação a essa postura de estímulo do existente, em


particular por incluírem, nessa ação estimuladora, elementos que hackeiam as condições
existentes a fim de construírem outras urbanidades. Filipe Santa Rosa e Jéssica Torres
(‘Parque e usina de resíduos sólidos de Belford Roxo’) criticam o esquema regional
de manejo de resíduos sólidos, que posiciona a Baixada como destino de todo o lixo
gerado na RMRJ. Entretanto, ao invés de reivindicarem uma inversão desse sistema,
aproveitam e intensificam essa ‘condição de destino do lixo’ como oportunidade de uma
imensa transformação da economia e paisagem da Baixada, a partir de uma reciclagem
de uma enorme área em Belford Roxo para se tornar um híbrido entre parque público
e usina de tratamento. Bruno Paragó, Fernanda Bravo, Gabriela Lima e Luísa Voss
(‘Cemitério do morro’) observam a violência com a qual os espaços livres e o solo da
Baixada são fatalmente transformados do dia para a noite em solos inertes para o bom
funcionamento do capital e propõem, então, uma radical aceitação dessa condição:
propõem que um morro recém ‘morto’ de São João de Meriti seja inteiro transformado
em um cemitério-parque, que institucionaliza a morte como cultura comum. Nessa
radical aceitação do fim do uso – com esse ‘programa derradeiro’ – de certa forma
restituem valor de uso como parque que fora. Carolina Rapozo, Mariana Felner,
Silviane Carvalho e Thainá Bessa (‘Praça-palco-terminal’) estimulam o funcionamento
como terminal de diversas linhas de ônibus da centralidade da Pavuna – São João
de Meriti principalmente através de um redesenho urbano da posição dos terminais
em função dos destinos das linhas. Aproveitam esse reordenamento para criar um
importante espaço público de visibilidade coletiva entre diferentes terminais. Gabriela
Maya, Livia Borelli e Moana Reis (‘Plataforma da cidade’) observam os principais
elementos que formam o funcionamento da estação de trem de São João de Meriti e,
a partir deles, propõem uma intensificação da estação como um grande centro cívico
e cultural, capaz de oferecer uma plataforma para programas inesperados. Angela
Blanco, Isabela Martins, Julia Reyes e Wallace Alvim (‘Articulador urbano’) analisam
a forma com que o metrô da Pavuna se expande para a cidade, definindo horários de
funcionamento e formas de uso para além de seu programa básico ligado à mobilidade
e, desse modo, propõem aproveitar essa condição para transformar a estação em um
articulador de equipamentos de uso público. Ariane Pereira, Clement Novaro e Larissa
Monteiro (‘Margem infraestrutural’) criticam o projeto da rodovia Transbaixada nas
margens do Rio Sarapuí pela arquitetura que tenderia a gerar: galpões e programas
logísticos-industriais que aproveitariam o solo barato da periferia para se instalarem,
resultando em diversos problemas sócio-espaciais associados a essa justaposição.
Propõem, porém, não o fim do projeto do corredor logístico, mas uma margem de
arquiteturas que promovem e estimulam tanto o corredor, quanto a cidade periférica
cortada.

11
Convidamos, assim, a leitura desses 14 trabalhos elaborados na FAU UFRJ e
selecionados do ano de 2018 e 2019 como repertórios de experimentações projetuais
sobre a metrópole fluminense.

É preciso, por fim, agradecer a contribuições diretas ou indiretas que tivemos durante
esse processo de pesquisa/projeto do ano de 2018-19: ao Grupo de Pesquisa Urbanismo,
Crítica e Arquitetura (UrCA), no PROURB, no qual temos debatido e aprofundado
grande parte dessas ideias (do qual fazem parte Guilherme Lassance, Mara Eskinazi,
Ana Slade, Pedro Engel, Marina Correia, André Cavendish, Juliana Sicuro, Pedro de
Moraes, Camille Reiss, Thiago Soveral, Rodrigo Codevila, Ariane Pereira, Larissa
Monteiro, Fernanda Bravo, Mariana Cruz, Arthur Frensch, Isabela Martins, Gabriela
Lima entre outras(os)); à equipe do Projeto de Extensão Rio-Metrópole (Fabiana
Izaga, Maria Paula Albernaz e Margareth Pereira, além das(os) bolsistas), com quem
desenvolvemos importantes atividades de debate sobre a metrópole fluminense em
2018; às(os) arquitetas(os) que colaboraram com palestras e/ou bancas externas nos
ateliers (Luisa Bogossian, Juliana Sicuro, Priscila Coli, Thiago Almeida, Rodrigo
Bocater, André Cavendish, Caio Calafate, Roger Peicho, Thiago Soveral, Luísa
Gonçalves, Diego Portas e Fabiana Izaga); à Ruth Jurberg e sua equipe (em 2018)
na Secretaria Municipal de Captação de Recursos, Urbanismo e Habitação de São
João de Meriti (em especial, ao arquiteto Lucas Duarte pelas três visitas de campo
aos projetos atuais da Secretaria, tanto com as(os) alunas(os) da graduação, quanto
com pesquisadoras(es)); à Câmara Metropolitana de Integração Governamental,
pelo material disponibilizado à FAU UFRJ e pelas palestras concedidas no âmbito
dos eventos ‘Rio-Metrópole’; às trocas com Daniela Javoski sobre os projetos em
andamento na Prefeitura do Rio de Janeiro; à FAPERJ, pela Bolsa de Pós-Doutorado
FAPERJ Nota 10 (2017-18), pelo Auxílio ARC (2019), e pela Bolsa para Iniciação
Científica FAPERJ (2020-21); ao CNPq, pelo Auxílio Universal (2018-21); e à UFRJ,
pelo Auxílio ALV (2020), pela Bolsa para Iniciação Científica PICIC e pelo importante e
estimulante apoio institucional que oferece à pesquisa e desenvolvimento científico.

Em especial gostaríamos de agradecer à Demetre Anastassakis, que com sua


reconhecida generosidade, colaborou com a pesquisa, dividindo sua vasta experiência e
seu profundo conhecimento sobre a região.

12
Notas
1 Vale citar, por exemplo, que dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010) mostram que
a mobilidade interurbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro acontece quase que exclusivamente na conexão da
capital com os outros municípios; e estudos do Instituto Pereira Passos (IPP) (JUNIOR, Helcio De Medeiros; JUNIOR, João
Grand, Distribuição dos empregos formais na cidade do Rio de Janeiro em 2008: uma análise espacial, Coleção Estudos
Cariocas, 2011.) mostram que o Centro do Município do Rio de Janeiro concentra grande parte dos postos de trabalho
formais da metrópole

2 Sobre esses e outros desafios para a RMRJ, ver por exemplo, os Cadernos publicados pela Câmara Metropolitana do RJ.
(2015, 2017a, 2017b, 2017c)

3 Isabel Arredondo (2005) sintetiza as metrópoles latino-americanas nessa tríade.

4 A Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem hoje mais de 12 milhões de habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 2016)

5 Ver o relatório do SEBRAE (2013) sobre acessibilidade a postos de trabalho e mobilidade metropolitana.

6 Sobre esse assunto, vale citar Isabel Arredondo (2005), Ananya Roy (2009) e Carolina Pescatori (2014).

7 Brenner e Schmid (2013, 2015) sugerem que hoje é possível falar da completa urbanização de todos os sistemas do
planeta, trazendo o debate do Antropoceno (Crutzen, 2002) para o campo do urbanismo.

8 Arendt (1998, p. 199) chama de ‘espaço de aparecer’ o espaço das pessoas reunidas em atos não relacionados a um
mundo utilitarista ou biológico. O ‘espaço de aparecer’ precede a formação de um ‘domínio público’ e é fundamental para a
condição política.

9 Sobre esse assunto, vale citar Robin Evans (1997), Bill Hillier (1996) e Keller Easterling (2014), que, de formas bastante
diferentes, abordam a capacidade potencial da arquitetura em naturalizar noções e práticas de coletivo, socialização e
individuação.

10 Fundamental citar aqui a obra de Milton Santos (1979, 1993, 2014) sobre a globalização nos países periféricos e as
importantes pesquisas de Lucio Kowarick (2002) e Raquel Rolnik (2015; 2015) em denunciar o sistema econômico
periférico brasileiro como uma das principais causas dos nossos maiores problemas urbanos.

11 Entre outros autores que debatem a distorção da forma urbana a partir dos novos meios de comunicação e transporte,
é interessante citar os trabalhos de Paul Virilio (1993, 2009b, 2009a) e Marc Augé (2010a, 2010b) sobre a perda do espaço
dimensional do ‘lugar antropológico’ para um espaço feito de densidades e dispersões de velocidades de acesso e produção
de informação dos equipamentos que nos ligam a rede mundial urbana (não-lugares).

12 As ideias de reciclagem e metamorfose fazem referência à ‘ecologia cinza’ de Paul Virilio (2009a) e às transformações
urbanas propostas por Paola Viganò (2013).

13 A idéia de estímulo é aqui associada ao projeto ‘Grand Paris Stimulé’ (2009), coordenado por Djamel Klouche.

14 Ver em: http://urca.prourb.fau.ufrj.br

15 Ver Keller Easterling (2014).

16 Os conceitos de ‘interruptores’ e ‘multiplicadores’ foram emprestados de Keller Easterling (2014); e o conceito de


‘estimuladores’ foi emprestado de Djamel Klouche (2009).

17 Conceito de Farias (2012).

18 Ver ‘Rio Metropolitano’ (Lassance, Varella, & Capillé, 2012)

13
Referências
Arendt, H. (1998). The Human Condition (Second edi). London: University of Chicago Press.

Arredondo, I. A. (2005). De perferia a ciudad consolidada. Estrategias para la transformación de zonas


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Perspectivas de Políticas Públicas (Vol. 2). Rio de Janeiro: Câmara Metropolitana de Integração
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Informação: Estratégias de Planejamento (Vol. 3). Rio de Janeiro: Câmara Metropolitana de Integração
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metrópole: Construindo um modelo para a metrópole. (V. Loureiro, Ed.) (Vol. 4). Rio de Janeiro: Câmara
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