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OLIVIA CHIAVARETO PEZZIN

Almanaque Abril em CD-ROM:


A desmaterialização da Editoração

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de bacharel em Comunicação
Social com habilitação em Editoração.

Orientação: Profa Dra Elisabeth Saad Corrêa

São Paulo
2009
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial

deste trabalho, por qualquer meio convencional

ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde

que citada a fonte.

(mais informações: oliviapezzin@hotmail.com)


OLIVIA CHIAVARETO PEZZIN

Almanaque Abril em CD-ROM:


A desmaterialização da Editoração

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de bacharel em Comunicação
Social com habilitação em Editoração.

Orientação: Profa Dra Elisabeth Saad Corrêa

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Ana Elisa Ferreira Ribeiro


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG)

Profa. Ms. Daniela Bertocchi


Faculdades de Campinas (FACAMP)

São Paulo, 27 de novembro de 2009


Dedico esse trabalho aos meus pais, Antonio Carlos
Pezzin e Marcia Baptista Chiavareto Pezzin,
responsáveis por todo o apoio e carinho necessários
em minha vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos amigos de todas as escola públicas em que estudei: Escola


Municipal de Primeiro Grau Prof. Noé Azevedo, Escola Técnica Estadual de
São Paulo e Carlos de Campos, e da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Agradeço à gentileza dos entrevistados e colaboradores desse Trabalho, em


especial Abel Reis, Fábio Volpe, Simone Bortolotto, Ricardo Lombardi, Mateus
Pereira, Victor Malta e Paula Carlos.

Agradeço à orientação da professora Beth Saad e o incentivo do prêmio de


melhor trabalho em nível de iniciação cientíica, graduação e especialização
no III Encontro Nacional sobre Hipertexto, realizado em outubro de 2009, em
Belo Horizonte.

Agradeço à minha família, aos meus irmãos Dante e Erico, que igualmente
lutaram para estudar em instituições públicas, e por im a Bruno Melnic Incáo
por trazer tantas felicidades e emoções à minha vida.
“Ser editor poderia hoje signiicar mover-se
contra a corrente, em respeito à tradição do editor.
Negá-la. Se tornar diretamente empreendedor da
vida cotidiana”.
Alberto Abruzzese
RESUMO

É possível estudar a produção de edições multimídia off-line, como exemplo de


mídia digital que está numa fase de maturidade, como suporte e mercado, ainda
que estagnada no mundo todo. Dado esse estágio de desenvolvimento consolidado,
podemos analisar tais edições eletrônicas como a fase de transição da editoração
tradicional para a digital, do suporte material “papel” para o imaterial “on-line”. Através
do estudo de caso do Almanaque Abril em CD-ROM, suas tentativas de transposição
para a internet e a manutenção da versão impressa, é possível avaliar a consciência
da tecnologia e de seus usos, das quais os produtores editoriais (entre eles, o setor de
marketing editorial) tiram proveito, explorando novos nichos.

Palavras-chave: editoração multimídia, tecnologia, marketing.

ABSTRACT

Off-line electronic publishing can be studied as an example of digital media that


achieved maturity, both as a market and as a format, even if it has been stagnated
all over the world. With this stage of consolidated development, we can analyze those
electronic editions as the transition step from traditional publishing to the digital one,
from the material ‘paper’ format to the immaterial ‘online’ one. Through the case
study of Almanaque Abril in CD-ROM, its efforts on transposing to the internet, and the
maintenance of the printed version, it is possible to evaluate the comprehension of the
technology and its uses, from which the editorial producers (among them, those from
editorial marketing) can proit, exploiting new markets.

Key-words: multimedia publishing, technology, marketing.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO - O mundo da Editoração, um passo antes


da hipermídia: ruptura e continuidade

2. TECNOLOGIA E EDITORAÇÃO: DISCURSOS MIDIÁTICOS


2.1 Crítica das práticas midiáticas na pós-modernidade

2.2 A multiplicidade das mídias e o impacto tecnológico


dos suportes

2.3 A desmaterialização da Editoração


2.3.1 Multimídia, multicódigos
2.3.2 Hipermídia, hipertexto

2.4 Editoração multimídia off-line: desenvolvimento de


publicações eletrônicas
2.4.1 Multimídia management e bricolagem: novos
modelos para a Editoração
2.4.2 Consumo e leitura de novas mídias

3. O PRODUTO EDITORIAL ALMANAQUE ABRIL:


MIDIAMORFOSES
3.1 REFERÊNCIAS : A reinvenção do gênero almanaque.

3.2 PANORAMA: Práticas editoriais - rupturas e


continuidades 13

3.3 RETROSPECTIVA: Almanaque Abril em CD-ROM

3.4 PERSPECTIVAS: Considerações para o futuro

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

5. BIBLIOGRAFIA

6. APÊNDICE 1 – BRICOLAGEM DIGITAL


1. INTRODUÇÃO
O MUNDO DA EDITORAÇÃO, UM PASSO ANTES DA HIPERMÍDIA: RUPTURA E
CONTINUIDADE

Minha primeira experiência com uma publicação eletrônica aconteceu na Escola

Municipal de 1º Grau Prof. Noé Azevedo, na periferia da zona norte de São Paulo, onde

tive aulas de informática, em um laboratório recém-inaugurado. Lá se ensinava informática

básica, mas a grande sensação era mesmo “navegar” no CD-ROM do Almanaque Abril. Com

a assistência de uma professora, recém-treinada, eu e meus colegas tivemos nosso primeiro

contato com esse novo modo de ler, editar e pesquisar conteúdos. Era 1995 e eu tinha 11

anos. Desde então fui acompanhando inconscientemente o processo de democratização e

acesso das pessoas e dos conteúdos à internet.

Mais que em uma era de mudanças, estamos em uma mudança de era. No mundo

das Comunicações (abrangendo também os estudos ligados à economia, cultura, semiótica,

sociologia, tecnologia, entre outros), o grande tema desse início de século é a revolução

informacional-comunicativa da rede mundial de computadores.

Grandes autores, com diversas vertentes (em geral, divididas entre pessimistas e 15
otimistas), tentam avaliar, dimensionar e prognosticar os efeitos da internet sobre nossa

civilização. Além desse recente fenômeno, se difunde a preocupação sobre modos sustentáveis

de produção e proteção do meio-ambiente (após o alarme dos cientistas sobre o possível

colapso do sistema natural da Terra). Essas discussões estão em pauta no mundo todo,

porém, é difícil avaliar cenários e fenômenos tão inéditos na História, justamente porque

eles estão em curso e seus efeitos são, de qualquer forma, imprevisíveis. A contribuição e o

desaio dos comunicadores é o de tentar mapear o estado atual do sistema da Comunicação e

da Inovação (no Brasil e no exterior), descrevendo como ele funciona, quem são seus atores

principais, seus pontos fortes e fracos para a reformulação das teorias da Comunicação. Nesse

cenário, onde a malha de difusão da informação se pulveriza em diversos meios e velocidades

(relativizando o espaço-tempo e, vez ou outra, provando a convergência) temos a repetição

e o alcance dos meios de comunicação desenvolvendo um novo modelo de construção do

conhecimento: o do tipo rizomático. Nesse emaranhado, os estudiosos da comunicação

tentam apontar padrões e desvios, e acima de tudo trazer cada vez mais a comunidade para

dentro desse jogo. Lembrando que comunicação e comunidade têm a mesma raiz latina.
Dentro do curso de Editoração, na Universidade de São Paulo, a grade curricular

baseia-se na Editoração tradicional, na herança cultural dos grandes editores-livreiros, e

assim o suporte “livro-impresso” reina como principal meio difusor de cultura. As artes

do livro, sua edição, preparação e políticas públicas, a literatura e toda a cadeia produtiva

desse suporte formam a maior parte da grade curricular especíica e obrigatória, como

veremos no próximo capítulo. O restante da grade contempla a parte jurídica da área, o

marketing editorial e também algumas concepções sobre hipermídia. Porém, entre o livro e a

hipermídia, existiu a multimídia, e em tantos anos de curso, ela permaneceu intocada como

tema e plataforma editorial, mesmo tendo uma importância considerável no passado recente

da área. Hoje, parece encerrada no meio dos anos 1990, morta como sistema e possibilidade.

Ao deixar essa lacuna na história dos meios editoriais, tem-se a impressão de que o editor

acordou no século XXI tendo o mundo imaterial da hipermídia para enfrentar, sem bases

que não sejam a da mídia em papel. As experiências dos meios ou mídias eletrônicas of-

line (ME of-line), esse instigante e inovador capítulo da história editorial, mantém-se no

ostracismo para os estudiosos de comunicação no Brasil, dada a escassa produção sobre

o tema; mas em outros países, como a Itália, é contemplado por aqueles que estudam a

Editoração e as mídias. Por esse motivo, quase toda bibliograia utilizada é estrangeira (em
16
especial italiana1), com tradução realizada pela autora.

O advento das tecnologias de comunicação digital fez surgir um novo modo de

fruição, gestão e produção da informação. No mundo da Editoração, aconteceram dois

eventos que transformaram profundamente o ofício do editor e o mercado das publicações:

inicialmente, o desktop publishing, que introduziu o computador na linha de produção nos

inais dos anos 1980, foi o primeiro passo para a digitalização dos conteúdos e sua profusão.

Já no início da década de 1990, as novas mídias digitais, em especial as com leitura óptica

(como o CD-ROM), possibilitaram a compactação de dados e o nascimento das publicações

multimídia, iniciando um novo modo de estruturar conteúdos e, principalmente, de lê-los. A

grande novidade se baseia no tripé interatividade, multimídia e hipertexto. Apesar de ser

uma ME of-line, o CD-ROM, foi um relevante momento no processo de desmaterialização

da Editoração. Na época de seu surgimento, era preciso “treinar” os leitores para que

eles pudessem usufruir das possibilidades da publicação multimídia (que apresentava

coordenadamente textos, sons, imagens, vídeos e links), através do computador pessoal. O

1 Isso se deve ao intercâmbio estudantil realizado pela autora entre fevereiro e julho de 2009, na Università degli studi di

Genova, Itália; dentro do projeto de cooperação entre o CINDA (Centro Interuniversitario de Desarollo) e o CCINT-USP.
que hoje, já não é necessário, nem para crianças de cinco anos. Não só o computador é visto

com mais naturalidade, como apresenta interfaces cada vez mais amigáveis, orgânicas e

intuitivas para quem os usa. E essa é a preocupação de quem faz a emergente área de Design

de Interação: estudando a relação homem-máquina, a cognição, a usabilidade. Por ora, se esse

trabalho se concentrará nos primórdios dessa interação, por meio da Editoração multimídia

of-line. Agora, em 2009, ica claro que essa é, parafraseando Manuel Castells, não uma

revolução de produtos, mas de processos.

Um dos mais relevantes estudiosos da área, Roger Chartier (1998:103), diz que “a

compreensão e o domínio da revolução de amanhã (ou de hoje) dependem largamente de sua

correta inscrição em uma história de longa duração”. Assim, é pertinente estudar e avaliar a

Editoração eletrônica, se concentrando em um estágio subitamente anterior ao da internet:

um período de transição da Editoração tradicional (material) para a eletrônica (imaterial),

quando ela ainda se apresentava em suporte físico, mas já possibilitava a fruição eletrônica e

interativa.

Nesse contexto, Alberto Abruzzese (2003:XVIII) aponta a vantagem dos editores

como produtores de mídias digitais:


17
(…) atingido a maioridade em todos os seus diversos aspectos,

[os editores multimídia] são os únicos que têm uma tradição “nas costas”,

que consolidaram especialidades proissionais ao seu interno, e que podem

entrar plenamente na categoria da, assim chamada, indústria cultural

(...), dentro da experiência de mais de uma década no setor do CD-ROM,

surgem questões cruciais que permitem desmistiicar temas de grande

interesse, no que tange à cultura, a comunicação e a estruturação do

conhecimento.

Com o advento do CD-ROM, novos produtos editoriais surgiram, oferecendo

percursos de leitura personalizáveis em uma publicação, usando diversos tipos de linguagens,

advindas da Editoração tradicional, da televisão e da informática. O que, segundo


Castellano (2006), foi realizado com o “objetivo de formar uma síntese inovadora em

termos de produtos e serviços, de modo a encontrar as expectativas de target especíicos e

comunidades de interesse”.

Um dos exemplos mais consistentes da área é o Almanaque Abril, que completa 35


anos em 2009, e que entre 1994 e 2005 produziu versões do título em CD-ROM, encerrando

12 anos de experiências em ME of-line. A equipe editorial, em 2006, decidiu permanecer

com o título exclusivamente em suporte impresso, e mesmo com a realidade avassaladora

da internet derrubando seu desempenho comercial, a publicação conseguiu retomar 16%

do mercado desde 2007. Antes disso, buscaram-se alternativas e complementações para a

versão eletrônica na rede, mas com a queda gradativa das vendas, optou-se por descontinuar

o formato CD-ROM. Nesse momento, as ME on-line já eram mais abrangentes e pertinentes

que as of-line, com o mercado de DVD-ROMs e CD-ROMs estabilizado no mundo todo.

O estudo de caso, então se mostra interessante, como estratégia metodológica para

esse trabalho. Através dele, será possível identiicar como se realizam as dinâmicas editoriais

de um produto diferenciado e atento ao contexto e aos fenômenos de seu tempo, como o

Almanaque Abril.

Um dos pioneiros da Editoração multimídia of-line no Brasil, o Almanaque Abril

teve grande sucesso editorial e esteve sempre em constante atualização, dentro da cultura

empresarial da maior editora do País: a Editora Abril. Nos últimos 10 anos, o Almanaque

alterou e deiniu não apenas o suporte do produto, mas seu formato e design, sua distribuição
18
e seu preço. Será analisada, também, a sua natureza editorial de livro-do-ano (notadamente

entre almanaque e enciclopédia), e as características da publicação que a tornaram notável,

estabilizada e duradoura no mercado; como, por exemplo, a capacidade de irmar-se como

uma fonte coniável e que relete o “espírito do tempo”. O trabalho também dimensiona o

CD-ROM como um paradigma tecnológico que atingiu editores e leitores, apresentando

novos hábitos, não só na produção como na leitura do texto. Identiicando as especiicidades

dos ME of-line, inserido em um contexto de reestruturação mercadológica, tecnológica e

produtiva (marketing, tecnologia e editoração).

Através da história editorial do produto, entrevistas com os diretores da publicação

impressa e eletrônica e dados da publicação têm-se como característica um título em

constante remodelação, assumindo aspectos experimentais, dentro de um mercado

competitivo (marketing oriented). Assim, serão analisados os resultados das decisões, os

desaios do passado e em andamento, o que para Robert K. Yin (2005) é um dos focos do

estudo de caso. Com a descrição e análise do processo de produção e adaptação de conteúdos,

através dos modelos de self-content providing e de bricolagem digital, será possível identiicar

as atuais estratégias dos produtores editoriais quanto aos diferentes tipos de textos, a
tecnologia envolvida e a adequação ao público-leitor, na busca de um modelo de negócio,

capaz de responder aos anseios dos leitores e da editora.

É importante reiterar que, para uma análise mais consistente dessas transições, é

preciso considerar a teoria não só sobre a consciência da tecnologia e seus usos, mas também

sobre as particularidades das mídias - que além de uma simples adaptação de conteúdos,

requerem uma visão cautelosa sobre os padrões tecnológicos e características de consumo

(fruições).

Para embasar o estudo de caso, esse trabalho apresentará uma parte preliminar

e contextualizante, sobre os estudos das práticas midiáticas e a evolução tecnológica na

Comunicação (com ênfase nas recentes inovações introduzidas pelas mídias eletrônicas)

tendo em vista a inluência da forma sobre o conteúdo, para então se iniciar o estudo de caso

do Almanaque Abril. Ambas as partes tentam dimensionar o estado-da-arte e os desaios

das práticas midiáticas na Editoração. Em particular, será analisada a evolução do CD-ROM,

tendo-o como primeira mídia eletrônica editorada e vendida como tal, a partir da bibliograia

publicada, será possível inseri-lo na história das mídias. Nesse sentido, Roger Chartier
(2002:62) lembra a indissociação de forma e conteúdo (apontando a importância do editor):
19
Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as

formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam

profundamente da construção de seus signiicados. O “mesmo” texto,

ixado em letras, não é o “mesmo” caso mudem os dispositivos de sua

escrita e de sua comunicação.

Para isso, conceitos de semiótica serão fornecidos a im de apresentar as discussões

sobre a fruição e as novas formas de leitura, que culminaram em um novo modelo de

construção do conhecimento. A partir de então, será possível comparar os discursos sobre

as tecnologias midiáticas, tanto pelo viés sociológico como pelo produtivo, embasando

os argumentos sobre as possibilidades e escolhas entre os suportes e os novos modelos de

consumo das plataformas editoriais, sejam elas multimídia ou não.

Esse trabalho toma então o caso do Almanaque Abril, analisando o processo de

adaptação mercadológica desse produto em função das mudanças de padrões tecnológicos e

características de consumo. Além disso, o trabalho tem o objetivo de explorar e compreender

o processo de transição entre plataformas, expor suas peculiaridades e apontar como


os diferentes setores envolvidos com o processo editorial exercem sua inluência no

desenvolvimento destes projetos.

Por im, reiterar a função social do editor, que atua na sociedade não só com o

conteúdo de suas publicações, mas também com os meios e formas que escolhe para a

divulgação e o acesso das informações. Essa visão é sintetizada por D.F. McKenzie (1986 apud

CHARTIER, 2002:64):

(...) o processo de “publicação” dos textos implica sempre uma

pluralidade de espaços, de técnicas, de máquinas e de indivíduos. Portanto, trata-

se, antes de tudo, de encontrar quais foram as diferentes decisões e intervenções

que deram aos textos impressos suas diferentes formas materiais.2

20

2 McKENZIE, D.F. Bibliography and sociology of texts. Londres: the British Library, 1986.
21
2. TECNOLOGIA E EDITORAÇÃO: DISCURSOS MIDIÁTICOS

Para contribuir e ampliar as discussões sobre o universo dos meios eletrônicos of-

line e assim tornar mais consistente a análise da evolução do uso das mídias digitais no Brasil,

se propõe o estudo de caso do título Almanaque Abril (com especial ênfase em sua versão em

CD-ROM). Porém, para que tal estudo se concretize com maior embasamento, é importante

avaliar como os proissionais e pesquisadores da área são formados e qual o estado atual dos

estudos e práticas das novas mídias. Apresenta-se, então, uma abordagem histórica e acessível

para a formulação de uma crítica das praticas midiáticas, reiterando a importância dos

estudos de caso das obras produzidas, para o avanço das próximas produções.

Nesta parte, Tecnologia e Editoração, os discursos midiáticos serão analisados e

descritos, primeiramente dentro da Academia e posteriormente nas práticas dos editores

no que concerne à produção e concepção de produtos editoriais multimídia. A partir

da teorização das potencialidades da multimídia e da hipermídia na Editoração, será

possível também analisar o processo de desmaterialização da área, que culminou em uma

reestruturação organizacional, metodológica e até epistemológica, trazendo cada vez mais o

leitor para dentro da produção editorial, ou seja, permitindo que a comunidade inluencie
23
cada vez mais na Comunicação.

2.1 CRÍTICA DAS PRÁTICAS MIDIÁTICAS NA PÓS-MODERNIDADE


Os estudos teóricos da área de Comunicação enfrentam instigantes fronteiras nos

últimos anos, dada as mudanças de paradigmas impostos pela era digital. De modo geral, as

novas teorias se concentram na possibilidade das mídias como instrumento social (político-

econômico) e lingüístico. Com o acesso à internet se popularizando no Brasil1, o sentido

colaborativo desse novo espaço aberto toma formas e proporções inéditas, um tanto quanto

imprevisíveis. Assim, os pesquisadores observam e analisam as transformações nas relações

sociais (interpessoais, governamentais), na forma de apreender e expressar conteúdos e ainda

como o ambiente multimidiático digital inluencia os outros meios de comunicação pré-

1 Segundo relatório do Ibope divulgado em agosto de 2009, 37,3 milhões de pessoas usaram a internet no trabalho ou em

residências no Brasil, crescimento de 2,3% sobre os 36,5 milhões registrados em julho. A quantidade de pessoas com acesso no trabalho

ou em residências cresceu 5% e chegou a 46,7 milhões. Em relação ao mesmo mês de 2008, a alta foi de 19%. O número de pessoas

que moram em domicílios com computador ligado à internet subiu para 42,2 milhões. Projeções apontam a existência de 64,8 milhões de

pessoas com acesso à internet em qualquer ambiente (residências, trabalho, escolas, lan-houses, bibliotecas e telecentros), considerando

os brasileiros de 16 anos ou mais de idade com posse de telefone fixo ou móvel.


existentes, como os de suporte em papel ou audiovisual. Conigura-se assim um dos cenários

de discussão mais efervescentes da história dos Estudos Sociais Aplicados. A estabilização de

nomes, conceitos e discursos sobre a era digital é um passo fundamental para a compreensão

desse fenômeno em curso. Desse modo, será possível desenvolver um pensamento

mais crítico e consciente sobre os usos e efeitos das tecnologias midiáticas, superando a

visão deslumbrada da virtuose tecnológica, notadamente dividida entre “apocalípticos e

integrados2”.

Através de estudos sobre o pensamento complexo (Morin) e rizomático (Deleuze e

Guattari), sobre a cibercultura (Lévy) e as possibilidades sociais das novas mídias (Castells)

será possível formar comunicadores mais relevantes para o século XXI, inseridos nas

discussões da pós-modernidade. Ford (2003:93) resume a amplitude das discussões em pauta:

A mudança tecnológica que se produziu nos últimos 15 anos é muito

forte. Integraram-se à paisagem comunicacional e às habitações o controle remoto,

o videocassete, o PC, a antena parabólica e a TV a cabo, o CD e o CD-ROM, o

telefone celular, a Internet etc. Isso se veriicou em um tempo muito mais curto do

que outras mudanças na história da humanidade, como a passagem da oralidade

para a escritura ou o caso dos diferentes avanços do jornalismo escrito ou do


24 cinema. Seus efeitos sociais, cognitivos, culturais, fazem parte de uma zona central

de nossos estudos e das novas políticas de comunicação e cultura.

Assim, os teóricos da Comunicação mapeiam a complexidade dessa nova realidade

apresentada pela rede mundial de computadores, se posicionando em maior parte através da

produção e revisão de conceitos. Nos cursos de Comunicação Social (Editoração, Jornalismo,

Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Audiovisual), espera-se a formação de

proissionais com abordagem crítica das práticas midiáticas, e que eles possam contribuir

para a melhoria da realidade comunicacional no País. Na área de Editoração, as novas

mídias têm um vasto campo a ser desvendado, pois elas possibilitam a transformação de

toda a cadeia produtiva: desde a produção de conteúdo, sua edição, até sua distribuição e

controle. Porém, no que tange à formação dos editores na Escola de Comunicações e Artes da

Universidade de São Paulo (ECA-USP), existem lacunas que tornam deiciente a visão crítica

sobre a área.

O objetivo do bacharelado em Editoração, por exemplo, é o de capacitar os alunos

2 Expressão popularizada por Umberto Eco, aqui colocada como a divisão entre tecnocéticos e tecnoentusiastas, para saber

mais ver ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993.
à edição de texto e imagem (outrora também havia a edição de audiovisual), e que eles

possam adaptar conteúdos a diversos meios de comunicação. Porém, uma rápida avaliação

da grade curricular3 revela a incapacidade do curso de inserir o aluno no atual contexto das

mídias. O bacharelado prevê 32 matérias obrigatórias: cinco disciplinas-base para o estudo

da Comunicação, sete disciplinas relacionadas a assuntos derivados da Editoração, três

ligadas à Hipermídia e 17 focadas no mundo do livro e das letras. Portanto, estima-se que

54% da carga obrigatória de aulas é direcionada às práticas editoriais iniciadas por Gutenberg

em 1450, e cujo último expoente tecnológico foi Aldo Manuzio, seu contemporâneo. Isso

relete a importância do mundo impresso e de sua tradição para a formação dos editores,

sendo fundamentais para qualquer tipo de prática editorial; mas também revelam um

descompasso com a realidade das novas mídias que se desenvolve há quase 20 anos. Além

disso, a dominância “impresso-livreira” sobre a grade curricular do curso de Editoração

acaba reletindo em outras disciplinas, que poderiam ser mais abrangentes. Em Introdução à

Editoração, por exemplo, não se apresenta uma discussão além do editor tradicional-livreiro;

o mesmo acontece com Indústria Editorial e Planejamento em Comunicação, há carência

também na atualização das bibliograias sugeridas pelas disciplinas.

No caso desse currículo, as discussões sobre as novas tecnologias e seus impactos na 25


Editoração icam restritas a apenas seis disciplinas4 (18% do curso), cujas ementas apresentam

tópicos relacionados às novas mídias, mas que, devido aos professores ligados à área de

impressos, não têm tais assuntos contemplados. Na prática, portanto, a realidade das novas

mídias na Editoração é discutida em 15% das disciplinas do curso5.

Um dos motivos da falta de mais matérias relacionadas às novas práticas editoriais é

a escassez de professores pesquisadores na área de Editoração. Desse modo, eles icam ligados

às suas práticas proissionais que são, na maioria quase absoluta, relacionadas ao mundo dos

livros e dos impressos em geral.

Provedores de acessibilidade do conteúdo, transformadores da realidade cultural

3 Através do sistema jupiterweb, com a grade curricular em vigor desde 2005 (última reforma).

4 Metodologia para Produção Hipermídia, Laboratório de Produção de Sistemas Interativos de Hipermídia I, Legislação e Ética da

Indústria Editorial, Marketing em Empresas Informativas e Editoriais e História da Editoração II.

5 Já que em História da Editoração II, o assunto não chega a ser abordado, conforme relato dos estudantes em setembro de

2009.
e até da ordem social, a disciplina História da Editoração mostra o uso dos suportes como

vetores de transformação do modo de fazer e pensar de editores, autores, livreiros e leitores

(os tradicionais atores da cadeia editorial6). Mas a discussão teórica sobre os impactos e

transformações das novas mídias no campo editorial se restringe apenas às disciplinas de

História da Editoração II e Metodologia para Produção Hipermídia, que prevêem (isso não

signiica que realizam) um dimensionamento histórico dos suportes midiáticos eletrônicos.

Além disso, cabe ressaltar que, no decorrer do curso, as disciplinas especíicas

permanecem em duas instancias teóricas: o mundo do livro e das letras e a hipermídia. Essa

polarização entre mundo material (Editoração tradicional) e imaterial (Editoração eletrônica)

acaba enterrando um mundo de possibilidades práticas e teóricas, nas descontinuadas

disciplinas de edição de audiovisual e multimídia of-line. Reitera-se, assim, uma visão de

determinismo tecnológico, onde um meio destrói o outro e há uma notável preferência pelo

savoir-faire do editor-livreiro, da Editoração tradicional.

Tal cenário acadêmico não aprofunda as interações entre o editor e as novas

mídias, comprometendo a formação dos futuros proissionais que deverão lidar com novas

possibilidades e impactos sociais em termos de produção, distribuição e leitura. Para isso, a


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cadeia editorial tem de ser vista de modo mais abrangente: os atores envolvidos não podem

ser apenas aqueles que concernem à produção do texto, mas se deve buscar os novos atores (e

suas contribuições) dentro da evolução tecnológica dos meios de comunicação, como airma

Braga (2002:34, grifo nosso):

O problema da relexão na área não é o de airmar uma tomada de

posição (num sentido ou noutro), mas de examinar que coisa é esta em construção

na e pela sociedade – os processos mediáticos – em sua realidade histórica.

Veriicar como isso parece funcionar (...) para assim produzir conhecimento sobre

os processos mediáticos e as interações que estes engajam.

Sem saber muito bem como, durante o curso de Teoria da Comunicação, por

exemplo, passa-se da televisão para a internet, menosprezando as experiências e a cultura

desenvolvida em torno da mídia eletrônica of-line (ME oline), ou CD-ROM/DVD-ROM.

Em geral, essa passagem da história dos meios se apresenta resumida no assunto “revolução

da era digital”, que elenca as evoluções da informática e não das publicações; logo em seguida,

passam-se aos atuais e relevantes discursos sobre a hipermídia, que se impõe como o atual

6 Para saber mais PEZZIN et. al. (2007).


paradigma da comunicação. Tal é a lacuna, que a bibliograia na área da mídia CD-ROM,

ica encerrada entre 1986 (quando Bill Gates promove o livro he New Papyrus 7) e o inal

da década de 1990, quando o suporte cai gradativamente em desuso. Além de escassas, no

Brasil, as produções acadêmicas sobre o CD-ROM discutem o aspecto tecnológico-produtivo,

ou as possibilidades de uso pedagógico/instrumental, mas não analisam a relação editorial

com essa mídia. Ou seja, em geral, são manuais práticos de como construir a estrutura

multimídia, com o discurso sempre dirigido à incrível compactação de dados, e quase não há

abordagem sobre design de interação, as possibilidades e tipologias de publicação multimídia

e a avaliação do impacto social. Em suma, a bibliograia de ME of-line não analisa a cadeia

do editor, mas sim a do produtor tecnológico, que é apenas uma parte do processo. Hoje, com

a experiência acumulada dos editores multimídia, podemos entender e atualizar os conceitos

relativos a essa mídia eletrônica, com mais consciência do fenômeno como um todo, por não

estarmos mais na nascente ou no meio de sua evolução.

Essa visão pode ser resumida por França (2002:63), que acredita que “as modiicações
na realidade exigem também o desenvolvimento dos nossos instrumentos conceituais, que

não podem simplesmente reiterar as mudanças, mas devem ser capazes de compreendê-las.”

27
Portanto para avançarmos nas discussões acerca dos processos midiáticos, será

adotada a visão metodológica dos autores do livro de Prado (2002), Critica das praticas

midiáticas, que fazem parte da Pós-Graduação da ECA-USP. As abordagens e discursos

que são pertinentes a esse trabalho são, em especial, aquelas que apresentam a pesquisa e

crítica dos meios de comunicação, através de uma visão que desmistiica o deslumbramento

tecnológico. Faz-se apenas uma ressalva quanto à origem dos pesquisadores, que estão em

geral ligados ao Jornalismo, reletindo a escassez de acadêmicos na Editoração, como dito

anteriormente.

Uma interessante forma de se fazer pesquisa na área de Editoração é analisar a

trajetória individual dos produtos editoriais, como esse presente estudo de caso. Essa é um

dos modos mais contundentes de avaliar o processo evolutivo de uma técnica e ainda mais de

um pensamento sobre ela (savoir-faire), e é também feito nos estudos formais e informais de

Cinema e Audiovisual, como diz Braga (2002:33):

Os críticos de cinema e teatro se ocupam tanto do contexto histórico

dessas produções, quanto de cada produto pontual, fazendo uma crítica que pouco

7 LAMBERT, S.; ROPIEQUET, S. CD ROM. The New Papyrus: The Current and Future State of the Art. Microsoft Press, 1986
se vê na crítica das mídias contemporâneas, que se preocupa prioritariamente com

as interações sociais que esta provoca. (...) É possível, portanto, fazer a premissa de

que, quanto mais desenvolvido seja um sistema crítico, mais provavelmente ele se

voltará para uma análise de produtos especíicos (e menos para análises do meio

em sua generalidade); mais se torna competente para fazer distinções reletidas

entre tipos e gêneros, relacionadas a seus usos disseminados na sociedade; e

inalmente, mais competente em interpretar estruturas e processos (em vez de

simples e impressionisticamente “julgar” bom ou mau um produto).

Portanto, tomando essa premissa, para se ter uma maior capacidade de avaliar

os tipos, gêneros e suportes editoriais, o sistema crítico deve se desenvolver analisando

pontualmente as obras e não apenas localizando-as em um contexto histórico. Nesse caso, o

aluno formado em Editoração teria uma visão mais contundente do seu campo de atuação:

avaliando criticamente os cenários que se apresentam em todas as etapas do processo

produtivo, desde a coordenação geral até a distribuição das obras editadas. De todos os

modos, esses estudos de caso ajudam na avaliação da pertinência social do produto editorial

– seja pelo conteúdo, quanto pelo formato ou pela forma de distribuição. Assim, espera-se

que a prática dentro das mídias seja realizada de modo consciente e não apenas intuitivo,

mas apoiada por uma visão atualizada e consistente da área, como diz Braga (2002:38, grifo
28
nosso): “(...) correlatamente, devemos incluir no conjunto dos processos críticos os esforços

de desenvolvimento dos próprios produtos e seus processos de oferecimento, em busca de

qualidades de disponibilização socialmente mais pertinentes”.

Além de optar pelo estudo de caso como forma de incrementar o sistema crítico,

o presente trabalho busca analisar o processo de inovação e adaptação das novas formas

editoriais. Um conceito interessante para estudar as ME of-line é o de remediação,

que aborda a evolução das tecnologias midiáticas, através do movimento de ruptura e

continuidade, integração e substituição em relação à Editoração tradicional. Assim, segundo

essa linha que será retomada ao longo do trabalho, os meios digitais têm a tendência a

englobar os meios analógicos, remediando-os.

Na visão de Bolter e Grusin (1999), as tecnologias digitais são híbridos, que

combinam técnicas, materiais, elementos sociais e econômicos. É uma interação formada

pelos atores sociais, os aparelhos tecnológicos e as dinâmicas globais. Para ilustrar essa

rede de inputs e outputs, Ramos (2002) lembra que nem todos os gadgets comunicativos

“dão certo”; e que a convergência dos meios - tema que será retomado mais adiante - não
é tão simples e natural quanto parece, devido às especiicidades de fruição e percepção

dos suportes. Ele cita o e-book e o myweb (um aparelho de TV integrado à internet) como

exemplo de não-adaptação aos hábitos estabelecidos na história da comunicação, lembrando

que não ouvimos rádio pela TV. Para o autor, a tão aclamada convergência dos meios,

imposta pela tecnologia, não é uma realidade inexorável.

O estudo da história das mídias e das suas práticas deve, então, se inserir no

contexto pós-moderno, do qual Jacques Derrida e Derrick de Kerkhove fazem parte. Isso

signiica buscar o pensamento dionisíaco, não-dialético, defendido por Mafesoli (1996 apud

FRANÇA, 2002:63): “uma realidade plural exige um pensamento plural, ou ‘dionisíaco’, o

mais próximo possível da riqueza, do dinamismo e da vitalidade ‘deste mundo aqui’”8.

Assim, observar o cenário das mídias, na sua atual e desaiante conjuntura, requer o

intuito de preservar os contrários, evitando impor sínteses ou visões reducionista que neguem

ou digam superar o passado. Estamos em um contexto onde os sistemas se apresentam como

complexos, onde lógicas diversas convivem sem dominância.

Essa visão é defendida por Roger Fidler (1997 apud SAAD, 2003:55), ao introduzir o

conceito de midiamorfose, que enfatizar o processo de diálogo e integração entre as mídias, 29


sejam elas novas ou velhas:

[...] deveremos estar razoavelmente seguros sobre o fato de que qual

seja a mudança na sociedade e nos media eles irão incorporar e avançar a partir

das experiências do passado. Ao deixar a história ser o nosso guia, veremos que as

forças que moldarão nosso futuro são essencialmente as mesmas que moldaram

nosso passado e que as elevadas taxas de aceleração da inovação tecnológica

decorrem do maior volume de tecnologias que surgem ao mesmo tempo e que

geram um impacto cruzado mais evidente.9

Tal processo decorreria, então, através de um sistema evolutivo entre as mídias,

de adaptação às novas realidades comunicacionais. São os conceitos de co-evolução, co-

existência e complexidade – em todo o sistema de comunicação (meios ou empresas) –

que, segundo Beth Saad (2003:56), “desencadeiam um processo de auto-organização para

sobrevivência em ambientes em constante mutação”.

No mais, até o momento Bolter e Grusin (1999:89, tradução nossa) apresentam a

8 MAFFESOLI, M. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis:Vozes, 1996, p.13.

9 FIDLER, Roger. Mediamorphosis: Understanding New Media. Califórnia: Pine Forge Press, 1997. p.7.
mais difundida interpretação sobre a evolução das mídias, a remediação, onde “cada novo

meio encontra a sua legitimação porque preenche um vazio ou corrige um erro deixado

por seu antecessor, porque faz uma promessa que o meio que o precedeu não foi capaz de

cumprir”.

2.2 A MULTIPLICIDADE DAS MÍDIAS E O IMPACTO TECNOLÓGICO DOS SUPORTES


A história da Editoração é, em grande parte, a história de seus suportes. Cada

advento concebido ao longo dessa linha do tempo impactou não apenas a produção editorial,

mas também as práticas de leitura e consumo10. Por exemplo, com a invenção da imprensa de

Gutenberg, a leitura icou mais acessível e o hábito de ler, mais individual e silencioso. Com

os avanços da litograia e da fotograia, a reprodutibilidade técnica foi banalizando o texto

impresso, que antes era considerado “sagrado” e muitas vezes único11. Esses dois fenômenos

históricos são apresentados como paradigmáticos dentro da história da comunicação social e

são conduzidos por um advento tecnológico.

Segundo Chartier (1998:100), os suportes digitais também signiicarão (mais)

uma revolução no modo como lemos e nos apropriamos do texto, pois “ler sobre uma tela
30
não é ler um códex. Se abrem possibilidades novas e imensas; a representação eletrônica

dos textos modiica totalmente a sua condição”. Portanto essas novas maneiras de ler, as

novas relações com a escrita, e por conseqüência, as novas técnicas intelectuais de adquirir

um conhecimento têm a ver, antes de tudo, com “a revolução dos suportes e formas que

transmitem o escrito”. Chartier ainda conclui com uma sugestiva comparação: “Nisso ela tem

um único precedente no mundo ocidental: a substituição do volumen pelo códex – do livro

em forma de rolo pelo livro composto por cadernos reunidos -, nos primeiros séculos da era

cristã.”

Para os editores, tais revoluções signiicaram não apenas uma mudança nos hábitos

de consumo, mas principalmente nos modos de produzir e distribuir produtos editoriais:

uma oportunidade para experimentar novas técnicas e ser pioneiro na área.

O cenário atual dos meios de comunicação é marcado pela multiplicidade de canais,

que concorrem entre si desde 1950 até os dias de hoje, com o fenômeno radicalizado com

10 Para saber mais BURKE, P. e BRIGGS, A. (2004)

11 Para saber mais BENJAMIN, W. (1936)


o advento do digital e seus inúmeros dispositivos. A relação entre as mídias se tornou mais

densa e rica, com a participação cada vez maior dos leitores/espectadores, inluenciando a

produção. Essa interferência dos “consumidores”, percebida com mais entusiasmo atualmente,

não era notada nas (já famosas e antigas) Teorias de Comunicação com base na Escola de

Frankfurt. Nelas, os meios de comunicação de massa – dentro da chamada Indústria Cultural

– como a TV, o rádio, o cinema e o jornal impresso eram produzidos e distribuídos com

base no modelo “centro-periferia” (UM à MUITOS), oferecendo uma interatividade baixa,

realizada através da chamada opinião pública. Hoje, percebe-se uma lógica de produção

que tenta incluir os leitores, porém isso não diminui o poder dos editores, enquanto

disseminadores de informação selecionada, como argumenta Ferri (2004:34):

(...) no seu sentido lato (livros, revistas, jornais, produção televisiva e

cinematográica) [a produção editorial] constituia e constitui ainda hoje o eixo

portador da comunicação dos conteúdos, sejam esses de informação, de estudo ou

de lazer. O editor constitui o ponto fundamental de intermediação entre os autores

ou as instituições culturais voltadas à pesquisa e à deinição dos conteúdos e os

fruidores, sejam eles ouvintes de rock ou estudantes de biologia molecular.

A abrangência e as características dos então chamados “editores-mediadores12”


31
não serão discutidas aprofundadamente nesse trabalho, porém é pertinente conhecer, com

propriedade, os cenários e dispositivos de mediação, onde poderão atuar. Como foi dito, hoje

os meios de comunicação estão inseridos na realidade da multiplicação e pluralidade das

mídias, o que segundo Santaella (2002) atinge uma “massa” e estabelece vínculos intertextuais

ou “trânsitos e intercâmbios” entre si. A experiência da mídia se enriquece por esse contexto

dissipado, fragmentado e complementar, tanto para os leitores quanto para os produtores.

Essa não é uma opinião isolada, pois também Ramos (2002:100) adverte que para o estudo

“realista e efetivo” das práticas midiáticas é preciso “considerar a permanência de uma

multiplicidade de mídias, com regime de fruição diferenciados”.

Portanto torna-se estratégico para a Editoração, o estudo dessa multiplicidade que

caracteriza os diferentes tipos de acesso e fruição aos textos comunicacionais13. Sua origem

está na popularização da informática, do compactamento de dados, da digitalização dos

12 Os editores-mediadores ou editores-articuladores são responsáveis pela captação, sedimentação e estimulação de conteúdos

e tendências que interessam a certa linha editorial e que estão dissipados pelos múltiplos canais de comunicação. Atuam com o

conhecimento colaborativo e por isso são vistos menos autoritariamente e mais como fomentadores, multiplicadores ou “catalisadores de

interlocução”.

13 A definição de textos comunicacionais será aprofundada no tópico multimídia, multicódigos.


conteúdos e do desenvolvimento dos “novos espaços da escrita” (BOLTER, 2001), que izeram

surgir novos suportes como o CD-ROM. Segundo Chartier (1998:105), essa é “uma revolução

maior que a do códex” na história da Editoração, pois “cada forma, cada suporte, cada

estrutura de transmissão e de recepção da escrita afeta profundamente os seus possíveis usos

e interpretações.”

Os hábitos de uso e leitura dos suportes são fundamentais para a prática e o estudo

das novas mídias editoriais, superando as discussões sobre a perenidade do material. Vale

lembrar que um pergaminho antigo pode ser digitalizado por escaneamento, se transformar

em imagem digital e ser armazenado em um CD-ROM, que durará mais de 100 anos. Porém,

são poucos os que têm ou terão o hábito de acessar esse conteúdo através desse suporte. A

apropriação do suporte é também considerada por Santaella (2002:45) ao dizer que “(...)

quaisquer meios de comunicação ou mídias são inseparáveis das formas de socialização e

cultura que são capazes de criar, de modo que o advento de cada novo meio de comunicação

traz consigo um ciclo natural que lhe é próprio.”

Ainda sobre a multiplicidade dos meios, é possível identiicar dois fenômenos na

comunicação digital, muito divulgados pela mídia e que geraram estudos e especulações
32
tecnoentusiastas: a convergência e a divergência dos meios.

O avanço tecnológico e as buscas por dispositivos (gadgets) mais completos e práticos

levaram à chamada “convergência dos meios de comunicação”. Esse foi o conceito norteador

dos celulares que captam o sinal da TV digital e da myweb/webTV14, que mistura internet

e televisão. Além desse fenômeno, e devido à maleabilidade da edição e distribuição dos

conteúdos digitais (graças à padronização dos tipos de arquivos), foi possível dispersá-los em

muito mais tipos de mídias, em menos tempo ou quase ao mesmo tempo. Muitos teóricos

chamam esse fenômeno, que busca o Neutral Media Storage15, de divergência.

Há ainda a complementaridade dos meios, que se apropriam desses dois fenômenos

para criar a cross-media16: diversos canais são utilizados para conseguir uma interatividade

do leitor para com o conteúdo. Um exemplo de cross-media seria uma revista de culinária

14 Dispositivo acoplado à TV de alta definição que possibilita a navegação na internet, sem computador. Sua fruição não se

mostrou satisfatória, pois as pessoas não adquiriram o hábito de usar a internet na sala, em uma televisão. Isso mostra que a convergên-

cia não é tão simples quanto se pensa.

15 Armazenamento de dados que podem ser usados em mais de um meio e formato.

16 Para saber mais BURY, Scott. Cross-media PUBLISHING. Electronic Publishing; Jun 2005; 29, 6; ProQuest Computing. pg. 18
que remete ao link de seu site na internet, onde é possível encontrar um vídeo que mostra

o que fazer com o resto dos alimentos usados nas receitas apresentadas na revista impressa.

Esses fenômenos revelam a capacidade das mídias de difundir-se e permear-se no cotidiano,

além de expor seus limites de linguagem e, portanto, de fruição. Isso signiica trabalhar com

as possibilidades dos meios levando em conta as características de acesso/leitura/uso que os

consumidores fazem deles.

Durante o desenvolvimento de sua linguagem, a internet usou aquelas disponíveis,

adaptando-as ao seu meio. Hoje, é comum dizer que a linguagem da internet “contamina” a

dos meios impressos, indicando que os meios - impressos ou digitais - estão se apropriando

mutuamente das linguagens desenvolvidas.

Porém, para esse estudo é mais interessante avaliar como as novas mídias

desenvolveram a sua linguagem, pois assim teremos algumas características do processo de

inovação e, portanto, de “evolução” das mídias que fazem parte da Editoração.

Grusin e Bolter (1999) apontam o “looking at e o looking through” ou “olhar para

e olhar através” da mídia como o cerne da mediação nos novos meios. Com o “olhar

através”, os desenvolvedores das novas mídias tentam, de acordo com Ferri (2004:54, grifo 33
nosso), “camular o meio da percepção do fruidor (...) através de interfaces cada vez mais

transparentes ao ponto de transmitir a sensação de se estar em contato direto com os

conteúdos, sem a mediação de um meio de comunicação”. Portanto, a remediação é a mimese

do meio no dispositivo/aplicativo. No caso das publicações eletrônicas, o “olhar para” é

realizado através da performance que o leitor desenvolve para realizar uma tarefa que ele

mesmo se propôs. Nesse processo, a hipermediação, ele toma consciência da estrutura da

publicação, seus mecanismos ou ainda “como ela funciona”.

Para compreender melhor esses dois conceitos (olhar “para” e “através” de um meio)

é essencial analisar o percurso histórico-técnico-social das publicações eletrônicas, e os

conceitos de multimídia e hipermídia, que possibilitam a produção e fruição dessas mídias.

É fundamental, primeiramente, conhecer o processo que desencadeou esse novo cenário: a

desmaterialização da Editoração, graças à era digital.


2.3 A DESMATERIALIZAÇÃO DA EDITORAÇÃO
Como foi dito na introdução desse trabalho, houve um processo de desmaterialização

progressiva e histórica na Editoração, pouco estudada no Brasil. Entre as publicações

impressas (desde a invenção da imprensa até hoje) e as eletrônicas on-line (ou ME on-line),

existiu uma fase intermediária: a da Editoração multimídia17, com os ME of-line, mais

conhecido pelo suporte CD-ROM.

Este processo começou com a inserção gradativa da informática na produção

editorial, como é demonstrado no quadro a seguir:

QUADRO 1 - A DESMATERIALIZAÇÃO DA EDITORAÇÃO

EDITORAÇÃO EDITORAÇÃO EDITORAÇÃO


TRADICIONAL MULTIMÍDIA HIPERMÍDIA

Inovação Desktop publishing Mulimídia


Hipertexto
tecnológica (DTP) Interaividade

34 CD-ROM/
Suporte Impressão Internet
DVD-ROM

1970 1980 1990 2000 2010

EDITORAÇÃO TRADICIONAL

EDITORAÇÃO MULTIMÍDIA

EDITORAÇÃO HIPERMÍDIA

Fonte: quadro elaborado pela autora.

O quadro 1 mostra as características de cada “tipo de Editoração”, em ordem

cronológica, porém é importante ressaltar que a Editoração tradicional mantém-se (muito

bem) até hoje e foi potencializada com o desktop publishing (DTP) no im dos anos 1980.

A Editoração multimídia surgiu no início da década seguinte, atingindo a maturidade

no inal dela – apesar de sofrer forte concorrência com a Editoração hipermídia (então

17 Diz-se Editoração digital, eletrônica, hipermídia, multimídia ou interativa. Em inglês, o termo Electronic Publishing é o mais

usado.
nascida no meio dos anos 1990) – e ainda existe, mas com cada vez menos títulos lançados,

caracterizando a sua decadência como suporte.

O início da desmaterialização da Editoração deu-se com a digitalização dos

conteúdos e o DTP. As empresas de comunicação de massa digitalizaram seus acervos tendo

em vista duas inalidades: “valorizar o patrimônio documental” dando novos tipos de acesso

e uso, podendo até ter a ajuda do governo (que vê tal procedimento como preservação

cultural), como faz a TV Cultura, digitalizando seus antigos programas. Ou, então, ela tem o

objetivo de “incrementar o atual conteúdo”, agregando o material pré-digital à consistência

de seu banco de dados, com a inalidade de reutilizá-lo nas publicações, como faz a Editora

Abril com o DEDOC (Departamento de Documentação). A informação digital torna mais

fácil a elaboração e a manipulação dos conteúdos e pode ser modiicada durante o processo

editorial.

Solidoro (2004:74) também aponta essa etapa inicial como fundamental para o

desenvolvimento das publicações eletrônicas:

Assim, enquanto a Internet nasceu digital desde o início, o processo de

digitalização da Editoração tradicional começou nos anos 1980 do século passado


35
com o advento do processamento de textos e do DTP para depois chegar aos anos

1990 à Editoração em CD-ROM, seguida da atual oferta de conteúdos, informação

cotidiana e serviços online.

Moulthrop (1999 apud FERRI, 2004:16) conclui a partir desse fenômeno, que

“o que chamamos Editoração hoje é em grande parte o negócio de converter os bits em

caracteres impressos sobre o papel e de obter lucros distribuindo esse suporte material aos

consumidores”18. Portanto essa foi uma grande mudança para a produção editorial apenas,

pois inicialmente não se desenvolveu uma fruição por meio eletrônico.

Outro aspecto que reforça o fenômeno da desmaterialização na Editoração é

a mudança da “logística material” (impressoras, gestão de estoque e distribuição) para

a “logística cognitiva” (as redações, o marketing, o direito de autor, as estratégias e as

tecnologias da comunicação multimídia). Esse momento de passagem favoreceu, segundo

Carbone (2004:150), “o nascimento de micro-empresas que operam com proissionais liberais

para as grandes e médias editoras que não querem treinar seus funcionários para o produto

18 MOULTHROP, S. Computing, Humanism And The Coming Age Of Print. 1999. Disponível em iat.ubalt.edu/moulthrop/essays/

uva99/
multimídia”.

O DTP, a fotocomposição (que acabou com o chumbo e a linotipo), o foto-retoque

eletrônico, a criação do CD são avanços na estrutura de produção e difusão dos conteúdos,

porém inluenciaram também os recursos humanos e econômicos dentro das editoras, o que,

conforme Eletti (2003:69) “traz às redações a consciência de que o digital está se tornando o

ponto-chave da nova produção editorial, preparando assim os operadores do setor a afrontar

os desaios da hipertextualidade que se desenrolará em poucos anos”.

Para se compreender melhor as inovações e complexidades que o digital introduziu

na Editoração, é necessário discutir os desaios enfrentados pelos editores do início da década

de 1990. Lidar com o digital era apenas uma parte do processo, pois os grandes experimentos

e desenvolvimentos na área surgiram a partir da utilização da linguagem multimídia e

da hipermídia nos até então inéditos suportes eletrônicos, que se apresentavam em três

modalidades: ópticos (CD-ROM), magnéticos (disquetes) e online (internet).

2.3.1 MULTIMÍDIA, MULTICÓDIGOS


36 Como apontado no quadro 1, “A desmaterialização da Editoração”, o surgimento

dos CD-ROMs viabilizaram as publicações multimídia, pois era possível compactar muitos

dados em um suporte físico, praticamente sem perdas na qualidade do original, pois os dados

digitais são preservados apesar da reprodutibilidade (os processos de cópia não desgastam

o arquivo original). O desenvolvimento e as características desse suporte serão analisados e

descritos posteriormente.

Nesse momento, a grande diferença da Editoração eletrônica para a tradicional,

logo, um dos maiores desaios para seus produtores, foi lidar com as suas duas principais

características: os vários códigos e linguagens envolvidos e a interatividade que o produto

deveria proporcionar.

Segundo Castellano (2006, grifo nosso), multimídia é “um sistema de apresentação

e comunicação que utiliza ao mesmo tempo, e de forma coordenada, textos, sons, imagens,

vídeos, com o intuito de obter uma representação das informações que seja eicaz e cativante”.

É importante ressaltar que audio-livros podem ser considerados multimídia, porém não

para esse estudo que considera a fruição por meio eletrônico. Além disso, é preciso fazer a

distinção entre os produtos da Editoração eletrônica, que na realidade são muito diferentes
entre si. A principal delas está entre aqueles of-line e os on-line. Alguns produtos como o

e-book estão na fronteira entre essas duas áreas, pois eles são disponíveis on-line e lidos of-

line (em dispositivos de leitura apropriados).

Neste trabalho usaremos o conceito semiótico de texto comunicacional para

entendermos a quantidade de informação que está inserida no contexto multimidiático.

Sucintamente, texto comunicacional é tudo aquilo que transmite uma mensagem

contextualizada, com signiicações passíveis de análise semiótica19, podendo ser palavras,

imagens, sons, audiovisuais, multimídias ou hipermídia. É importante ressaltar que cada um

desses códigos20 desenvolveu uma linguagem ao longo do tempo, como o audiovisual, na TV

e no cinema, por exemplo. Sua justaposição com outros tipos de códigos altera a sua leitura.

Assim, a palavra texto está sendo usada neste trabalho, com a abrangência semiótica,

muito utilizada nos estudos em comunicação. O leitor, portanto é o indivíduo (muitas vezes

também chamado de usuário) que lê e interpreta os textos comunicacionais. Ana Elisa


Ribeiro (2006) também compartilha dessa visão: “[...] textos são, obrigatoriamente, objetos de

escrita e de leitura intersemióticos, relacionados, sem muita distinção, a imagens, sons, cores,

palavras, animação e, claro, aos lugares onde estão realizados, o ‘suporte’”.


37
Castellano (2006, tradução nossa) desenvolveu um quadro, que mostra os textos

comunicacionais envolvidos em uma publicação multimídia.

Funções Formas de informação


Lingüísico Texto escrito
Canal Icônico Símbolos codiicados (sinais)
visual
Reprodução de objetos do
Referencial
mundo real (fotograias, desenhos)

Lingüísico Texto falado


Canal
audiivo Referencial Músicas, sons

19 Objetos de estudo, como um filme, são encarados como textos que transmitem significados (tomados como derivações da

interação ordenada de elementos portadores de sentido, os signos, inseridos em um sistema estruturado), de maneira parcialmente

análoga aos elementos portadores de significado numa língua. Adaptado de wikipedia.org.br

20 Segundo Décio Pignatari, “as mensagens podem ser codificadas quando já expressas por meio de signos (letras, por exemplo);

então, uma codificação seria uma transformação, geralmente unívoca e reversível, por meio da qual mensagens podem ser convertidas

de um conjunto de signos para outro. O código semafórico e o código dos surdos-mudos – melhor ainda, o Código Morse – representam

exemplos típicos. Dessa forma, as linguagens teriam um longo desenvolvimento orgânico, enquanto que os códigos seriam inventados

para algum fim específico e sujeitos a regras explícitas” (PIGNATARI, D. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo: Ed. Perspectiva,

1968).
Percebe-se, a partir dos códigos envolvidos, que a multimídia potencializou a

imersão, pois toma os canais visuais e auditivos, ampliando o raio perceptivo da realidade

informativa, abrindo novos modelos perceptórios e não apenas visões. Isso signiica

o surgimento de novos modos de perceber ou estar no mundo e não apenas outras

perspectivas.

A percepção do mundo através da predominância da visão é geralmente vinculada

a uma restrição ou redução sensorial. Ferri (2004:51), resgatando McLuhan, argumenta

que “a escrita é responsável por criar um desequilíbrio sinestésico-sensorial a favor dos

olhos, transformando a percepção espacial do canal auditivo para o visual”. Para ele, os

textos falados, sons e audiovisuais disponíveis em um universo multimídia resgataram “o

espaço circular, contínuo da audição” que havia se transformado, com a cultura visual, no

“espaço linear, euclidiano, mensurável e divisível gutenberguiano”. Agora esse novo ambiente

é tão imersivo quanto invasivo (rich media). Os recursos auditivos proporcionados pela

multimedialidade representam “uma verdadeira mudança sócio-antropológica [cujo] único

termo de comparação é a distante passagem da oralidade à escrita.”(ABRUZZESE, 2003: V).

Tamanha é a consciência da “abertura das percepções”, que surgem estudos em


38
afecting computing, ou informática afetiva, que seria uma comunicação capaz de atender as

necessidades dos leitores, tendo em conta seu lado emotivo e sensorial.

Além de familiarizar-se com os códigos envolvidos, é importante para os editores

conhecer as linguagens que se uniram no desenvolvimento da linguagem multimídia. Para

Eletti (2003:45), ela é composta por três elementos que juntos têm resultado superior à soma

desses componentes separados:

1) a informática, que representa o suporte e a interatividade. (onde se realiza)

Ela trouxe a estrutura técnica, tornou possível a uniicação das mídias e códigos. Suas

características são: “a rigorosidade lógica, modularidade das estruturas, a não-linearidade do

seu desenvolvimento, a precisão e o granulamento das suas deinições”.

2) a Editoração, que insere o conteúdo textual. (o que se realiza)

O conteúdo que além dos textos comunicacionais, são as intertextualidades: “[...] evocando

assim outras experiências especíicas que têm sua origem tanto na cultura oral, quanto na

escrita, [...] sem excluir as especiicidades ligadas ao design gráico”;


3) o audiovisual televisivo, que insere a forma e o ritmo da fruição. (como se realiza)

A linguagem televisiva dos anos 1990 tinha como característica, segundo Eletti (2003:46-47)

“a cultura fragmentada (...) do ritmo, seqüência, continuidade e paralelismo”.

Assim, segundo o autor, surge uma linguagem madura:

(...) nascida da integração de vozes, tradições e proissionalismos com

pesos distintos, (...) [cujos] três componentes lingüísticos, sem dominância,

alcançam resultados profundamente originais e inovadores do ponto de vista, seja

da percepção e da organização racional de conteúdos, como da carga emotiva da

comunicação.

Não só devido à produção, a linguagem tem forte peso também na determinação

dos possíveis usos dessa nova mídia. A interatividade, por exemplo, não era uma experiência

absolutamente inédita, pois em menor grau ela foi se desenvolvendo no meio televisivo,

quando foi possível escolher a programação entre centenas de canais (durante a famosa

“geração zapping”). Logo depois, com o VHS, podia-se escolher o que ver e a que hora, dando

maior autonomia ao espectador, na programação do conteúdo disponível.

Porém, foi nos videogames que a linguagem interativa obteve maior expressão,
39
em especial quando eles saíram dos liperamas e entraram nas casas (consoles). Conforme

Eletti (2003:76), os produtos comunicativos on-line e of-line têm características fortemente

relacionadas aos videogames: “o aspecto lúdico, o objetivo claro, o tempo real e o luxo

contínuo que uniica as fases da ação”. Será visto, nos próximos tópicos, que as características

de interatividade (através da interface) e de performance são as mais relevantes heranças da

linguagem dos videogames.

É importante lembrar que a Editoração multimídia of-line estava inserida em um

contexto mais amplo, que afetou toda a sociedade: a introdução do digital no cotidiano.

Esse processo foi propício aos ME of-line a partir da massiicação do computador pessoal,

por volta de 1995, quase dez anos após o lançamento do CD-ROM. Porém apesar de ser um

pressuposto para o surgimento de um novo segmento da Indústria Cultural, a simples difusão

dos computadores não gera um novo nicho ou mercado sozinho: é preciso desenvolver

conteúdos especíicos e experimentais para esses novos meios (CASTELLANO, 2006).

Esse processo, que culminou nos meios eletrônicos on-line, tem não só a leitura em

suporte digital, mas todos os seus textos produzidos e publicados digitalmente (o processo de
digitalização de conteúdos impressos vai diminuindo, a partir do momento que as fotograias,

ilmes, sons e textos são gerados eletronicamente). A fase anterior ao ME on-line, a da

Editoração multimídia foi extremamente importante para a experimentação da linguagem

multimídia. Em um primeiro momento, a falta de padrões, que trazia diversidade gráica e

de sistemas de navegação, resultou em uma miríade de publicações mal-resolvidas e com

subutilização do potencial interativo. Atualmente os CD-ROMs imitam o desenvolvimento,

ainda em curso, da linguagem da hipermídia, cujas características serão descritas a seguir.

2.3.1 HIPERMÍDIA, HIPERTEXTO


A multimedialidade não é caracterizada apenas pela presença de uma variedade

de textos que se comunicam com o leitor. Para que um sistema ou obra seja deinido como

multimídia deve existir a possibilidade de um usuário interagir com ela, mediante um sistema

de cálculo, a im de se obter um ou mais luxos de textos. Em geral essa interação é feita

através de um sistema hipertextual com links, feito através de caracteres textuais e ícones

que remetam a outras partes do documento ou a outros documentos, conigurando assim a

hipermídia.
40
O processo de produção desse tipo de publicação eletrônica será visto adiante. Antes

disso, é importante conhecer os conceitos envolvidos para projetá-la. Um dos principais

é a interatividade que é a capacidade por parte de um dispositivo eletrônico, de reagir a

estímulos externos produzindo fenômenos perceptíveis por quem os gerou. Um meio de

comunicação é tão interativo quanto é capaz de modiicar a informação transmitida por meio

do input do leitor.

A hipermídia é um campo fascinante que está sendo desbravado por estudiosos

de todas as disciplinas, em todo o mundo. Está sempre em expansão e atualizando

sua linguagem. A hipermídia também remediou as mídias já existentes, tomando as

características de linguagem desenvolvidas pelas plataformas multimídia. Ferri (2004:13)


enfatiza essa remediação, ou interação midiática, como sendo o fenômeno que, nos meios

(eletrônicos, para Bolter, ou não, para McLuhan), tem como conteúdo outra mídia. Remediar,

recontextualizar e trabalhar com releituras são processos pós-modernos, que comprimem

a dimensão histórico-espaço-temporal. Dentro da hipermídia on-line, o autor aponta “um

novo espaço do saber e da educação que integra e remedia a história dos espaços da escrita

precedentes”. Seu poder, além de “integrar conteúdos que na comunicação analógica eram
veiculados em suportes radicalmente diferentes e incomunicáveis”, é o do saber colaborativo,

que cria um contexto comunicativo-identitário através de intertextualidades.

Esse “novo espaço da escrita” (BOLTER, 2001) evidenciou a relação entre os textos,

através da ampliação do poder relacional do editor de conteúdos, por exemplo. Através do

hipertexto, uma das principais características estruturais da hipermídia, é possível também

criar a desejada interatividade. Assim como no cinema, os pioneiros do hipertexto tiveram

que aprender, através da experimentação, como projetar nesse meio especíico. Hoje essa área

se liga à disciplina de Design de Interação e Arquitetura da Informação como será visto mais

adiante.

A visão revolucionária do hipertexto é discutida por Chartier, para quem os

dicionários impressos ou um índice de um livro já eram exemplos de uma estrutura

hipertextual, como diz Ribeiro (2006:6): “[...] Chartier aborda o hipertexto [...] como um

dos artefatos de ler e de escrever, sempre o considerando dentro de uma longa história

de idas e vindas, extinções e inovações, assim como, principalmente, de concomitâncias

e continuidades”. Porém, o autor francês não aborda a fundo a questão da interatividade,

fundamental em um hipertexto eletrônico.


41
Neste trabalho não serão discutidos profundamente os limites e as possibilidades

do hipertexto, mas suas características mais importantes que afetaram a produção editorial.

Um exemplo é a não-linearidade da narrativa, produzida através da intertextualidade, da

descentralização e da intratextualidade, identiicadas por Ribeiro (2006), e que garantem o

acesso e a movimentação do leitor entre os textos através da ligação disponível entre eles. Tal

aspecto é abordado com entusiasmo por Ferri (2004:45):

A hipertextualidade mina a noção fundadora de toda a tradição da escrita linear das

tabuinhas de argila ao papiro, dos manuscritos ao livro de Gutenberg, que é deinida através

da relação entre linearidade espacial, temporal e narrativa, e vinculada ao espaço material da

escrita.

Porém, nos domínios da edição, antes de ser linear ou não-linear o conteúdo de uma

publicação tem que ser hierarquizado. Nesse ponto reside o principal poder do editor, como

também enfatiza Coscarelli (2003 apud RIBEIRO, 2006:8):

Dizer que um texto é composto de elementos que são dispostos um após

o outro, numa seqüência linear, não signiica que o texto seja linear. Uma notícia
vem “logo após” uma manchete, mas elas não formam uma seqüência linear. Há

uma hierarquia marcada aqui. A diferença do tamanho da fonte usada nesses

dois segmentos do texto indica para o leitor que ele precisa diferenciar esses dois

elementos. O mesmo acontece com os títulos e os subtítulos, presentes em vários

gêneros textuais21.

Portanto, o direcionamento do luxo é realizado em suportes tanto impressos como

digitais, através das “entradas de leitura”: um dos principais trabalhos do editor, e que revela a

força ou qualidade da edição.

É preciso lembrar também que o leitor não está separado do contexto em que vive,

fora da leitura. Isso já era apontado por Umberto Eco no livro Lector in Fabula (2002):

a bagagem cultural de um leitor potencializa a leitura, dando maior abrangência às suas

interpretações imediatas sobre o texto. A grande novidade trazida pelo hipertexto é a reunião

de um conjunto de textos, com diversos códigos, que ampliam a experiência de leitura,

evocando de forma imediata não só todas as intertextualidades ligadas à palavra escrita, mas

também aos sons e ao audiovisual. Portanto, o hipertexto torna o conteúdo imediatamente

mais rico de informações contextualizadas. Ele permite ao leitor conceber a sua própria

lógica linear, construindo um modelo narrativo dentro de suas necessidades, curiosidades e


42
expectativas. A interatividade então é, nas palavras de Pierre Lévy (1999:79), “a possibilidade

de reapropriação e de recombinação material da mensagem por seu receptor”.

Na Editoração multimídia, a interatividade deve ser projetada em todos os seus


detalhes, atentando para as características já citadas do hipertexto, com a pena de lançar o

leitor em um labirinto, sem orientação, que trará uma experiência de frustração na fruição

(como será discutido nos próximos tópicos). O mesmo Lévy (1996:37 apud RIBEIRO, 2006)

conirma essa característica:

Com efeito, hierarquizar e selecionar áreas de sentido, tecer ligações

entre essas zonas, conectar o texto a outros documentos, arrimá-lo a toda uma

memória que forma como que o fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual remete,

são outras tantas funções do hipertexto informático22.

Um dos efeitos da produção e do uso dessas novas tecnologias foi incrementar

21 COSCARELLI, Carla V. Hipertexto e subversão: um diálogo com Andrea Ramal. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2003. Disponível

em http://bbs.metalink.com.br/~lcoscarelli/GEhptxramal.htm

22 LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.


a discussão sobre o projeto moderno23, já questionado pelos pós-estruturalistas e pós-

modernos24, colocando um desaio epistemológico na criação, transmissão e difusão do saber.

Coloca-se, assim, em dúvida todo o sistema gutenberguiano que, segundo Ferri (2004:52)

envolve “o conceito de texto, leitor, escrita, narrativa, história da literatura e da educação,

linearidade e sujeito”.

Podemos observar que é mais comum encontrar relexões tecno-cientíicas do

assunto, como em Chartier e Bolter, do que uma análise estrutural-lingüística sobre os

hipertextos. Os links e seu potencial descentralizador provocaram essa concentração de

interesse no desenvolvimento tecnológico e no potencial comunicativo da hipermídia. Essas

novas relações estruturais por meio de interfaces são difíceis de decodiicar. Memmott (2000

apud FERRI, 2004:49) diz que da lexia gerou-se a “perplexia”: “uma confusão das aplicações

ontológicas, literárias e tecnológicas”25. A saída parece estar na integração dos saberes, por

meio da interdisciplinaridade.

O processo de digitalização trouxe, portanto, algumas conseqüências inéditas à área

da comunicação que Eletti (2003:27) identiica, destacando quatro delas:

1) Não se distingue mais original e cópia. Se o original é digital, sua reprodução terá 43
a mesma informação independente do número de cópias (exceto no caso de compressões).

Isso trouxe uma facilidade de manipulação e atualização dos conteúdos, como acontece

diariamente em um jornal on-line.

2) Inserção da quarta dimensão (tempo) na escrita. Introduzindo o movimento

nas palavras, coloca-se uma nova forma de cognição, semelhante ao audiovisual. A partir

de então é possível ampliar as possibilidades de intertextualidade. Mas vale lembrar

que nem todos os designers de interface têm domínio da micro-edição e não fazem uso

dessa potencialidade, capaz de interferir na hierarquia dos textos. De modo geral, usam

descontroladamente os efeitos visuais de movimento. Isso é chamado pelo autor de

“analfabetismo de estruturas”. Felizmente a área de Design de Interação desenvolve esses

23 No fin-de-siècle, o progresso industrial gerou uma crença eufórica na ciência e na tecnologia como redentoras da humani-

dade. O projeto moderno intencionava libertar as pessoas do trabalho excessivo, através da racionalização do cotidiano, haveria então

mais tempo para o lazer e para a qualidade de vida.

24 A teoria memética tem caráter sócio-biológica, ou seja, analisa os fenômenos culturais como os biológicos, num processo

evolutivo. Nesse trabalho ela é apresentada com o intuito único de ilustrar a diversidade das discussões sobre o fenômeno tecnológico.

Para saber mais: RECUERO, Raquel. Memes em weblogs: proposta de uma taxonomia. Revista FAMECOS, v. 32, 2007, p. 23-31.

25 MEMMOTT, Talan. Lexia to Perplexia. 2003. Disponível em www.trace.ntu.ac.uk/newmedia/lexia


conceitos, através de estudos de cognição e semiótica.

3) A não-linearidade nas estruturas narrativas. O texto multimídia e hipertextual

apresentam uma nova modalidade de leitura, desaiando os hábitos seculares de narrativa

seqüencial (previamente rompidas com o uso do “lashback” nas narrações).

4) Um salto de qualidade na evolução dos memes. Essa idéia, levantada por

Eletti, insere as novas tecnologias dentro de uma “teoria evolucionista dos meios”, enquanto

processos cognitivos e expressivos. A comparação é justamente com Darwin: “um salto

similar àquele que trouxe da primeira proteína com memória da sopa primordial, as formas

evoluídas dos reprodutores mais perto de nós, até chegar ao atual DNA.”26

Como é possível perceber, esse assunto, tão complexo e novo para todos, ainda não

apresenta muitos conceitos sedimentados: são impressões e tentativas de estabilizar o que está

em movimento. Portanto, no próximo tópico será avaliado o desenvolvimento da Editoração

eletrônica dentro dos meios eletrônicos of-line, pois esses já alcançaram maturidade em

termos editoriais, tecnológicos e mercadológicos suicientes para uma discussão mais

consciente e pertinente sobre a realidade comunicacional.

44

2.4 EDITORAÇÃO MULTIMÍDIA OFF-LINE: DESENVOLVIMENTO DE PUBLICAÇÕES

ELETRÔNICAS
Nas publicações multimídia, o foco desse estudo, costuma-se dizer que os leitores

são “livres para fazer seus caminhos de leitura”, mas analisando as práticas de produção

podemos ver que o editor, juntamente com o proissional multimídia e o designer criam

luxos possíveis de navegação e esferas relacionais intertextuais, como será visto mais adiante.

Nesta plataforma, notadamente usando o suporte CD-ROM, a ramiicação dos caminhos não

é potencialmente ininita como na internet. A racionalização da busca é o grande benefício

promovido por esses títulos, cuja prioridade é o desempenho da tarefa do leitor.

Os CD-ROMs (Compact Disc - Read Only Memory) foram inventados a partir

dos CDs, usados inicialmente na indústria fonográica, no meio dos anos 1980. Para efeito

de comparação com outras mídias, é interessante apresentar algumas características desse

26 A teoria memética tem caráter sócio-biológica, ou seja, analisa os fenômenos culturais como os biológicos, num processo

evolutivo. Nesse trabalho ela é apresentada com o intuito único de ilustrar a diversidade das discussões sobre o fenômeno tecnológico.

Para saber mais: RECUERO, Raquel. Memes em weblogs: proposta de uma taxonomia. Revista FAMECOS, v. 32, 2007, p. 23-31.
suporte. Os discos ópticos são suportes físicos, compostos por uma camada de plástico em

sua base (policarbonato), outra de material reletivo (em geral, alumínio) e por im uma

camada protetora (onde é possível imprimir), também de plástico, conforme a ilustração a

seguir:

FIGURA 1 – DIAGRAMA DAS CAMADAS DE UM CD

45

Fonte: wikipedia.org, entrada CD-ROM

[A] - camada de policarbonato onde os dados são codiicados


[B] - camada reletora que relete o laser
[C] - camada selada para evitar oxidação
[D] - as ilustrações são impressas nessa camada
[E] - o raio laser lê o disco de policarbonato, é reletido de volta e lido pela unidade de disco.

A gravação e a leitura acontecem através de um dispositivo a laser, a partir do centro

do CD para a sua borda externa, usando o sistema binário (1 e 0, conforme mostra a igura

2). Para realizar essas duas operações é preciso ter dois tipos diferentes de laser (um para ler,

com baixa potência, e outro para gravar). No caso da leitura desses discos ópticos, o laser

não entra em contato físico com a superfície do suporte, como acontece com os disquetes

magnéticos, o que prolonga a sua vida útil.


FIGURA 2 – VISÃO POR MICROSCÓPIO ELETRÔNICO DE UM CD-ROM GRAVADO

Fonte: Castellano, 2006

Devido à sua tecnologia acessível e as potencialidades de seus usos, em 1986, como

já foi dito, Bill Gates apontava-o como “o novo papiro”; porém, no início da década seguinte,

o CD-ROM ainda tinha maior atenção sobre seu potencial informático, ou seja, pela sua

capacidade de armazenamento, sendo muito usado em banco de dados.

Conforme relata Chaves (1991), por volta de 1990, as editoras começaram a produzir

publicações em CD-ROMs, utilizando gradativamente uma linguagem mais acessível aos

“analfabetos em programação” e controlando a produção pela mesma lógica dos produtos

impressos, através da tiragem e venda, ainal era um suporte físico. No Brasil, a prensagem

dos discos era feita pela indústria fonográica, em grande escala, na zona franca de Manaus.
46
Em 1995, gravar, prensar e embalar um CD-ROM em caixas de acrílico custava em média 10

dólares para o produtor editorial (SABBATINI, 2005).

A história desses produtos “hoje maduros e que ainda podem ser encontrados nas

bancas” foi, segundo Eletti (2003:44), “longa e tortuosa, cheia de equívocos e reconsiderações,

[...] caracterizada pela sua impressionante potencialidade de contaminação das linguagens

e de envolvimento com o leitor, uma atitude exploratória nos confrontos dos objetos

de conhecimento”. Os ME of-line remediaram os meios precedentes, por seu poder

multimidiático e hipermidiático, apresentando uma imersão, interdisciplinaridade e

narratividade que é nativa do meio e nunca antes vista. (BRAGA, 2005)

Como foi dito, a remediação é o processo de reutilização de um meio em outro,

adaptando-o (Repurposing): um meio é aquilo que remedia e não mais, como entendia

McLuhan, algo que está no meio do caminho entre fruidor e mensagem. Essa teoria é

usada para explicar como funciona a inovação tecnológica nas comunicações. É importante

frisar que essa abordagem histórico-linear, pode ser considerada evolucionista, porém não

aponta uma “inevitável destruição das tecnologias obsoletas”. Forma-se então uma rede
de possibilidades de fruição, entre os diversos canais midiáticos, que está condicionada ao

triângulo interativo entre mensagem, meio e leitor. Como diz Ferri (2004), um meio não

pode operar isoladamente porque é sempre uma relação com outros meios, porém é na

performance hipertextual ou multimídia que se realiza a autonomia do fruidor em relação ao

meio.

É nesse contexto que, no inal da década de 1990, os CD-ROMs ingressaram na

categoria de produtos de massa, atingindo relevante número de vendas e lançamentos, além

de terem vários formatos personalizados, com diversos tipos de aplicações, como os discos

com formas extravagantes, os mini-CDs e os CD-cards, feitos para projetos especiais ou

promocionais. Existiram até CD-ROMs perfumados (snile CDs), que tinham uma fragrância

aplicada por processo de serigraia em sua camada protetora e que podia durar até um ano.

O disco exalava o perfume, devido ao calor liberado pelo dispositivo de leitura. Esse é um

interessante exemplo de como foi inserido o sentido do olfato nos ME of-line.

FIGURA 3 – EXEMPLOS DE CD-ROMS COM FORMATOS EXTRAVAGANTES E PERFUMADOS.


47

Fonte: Castellano, 2006

Apesar da diversidade de formatos e aplicações, os CD-ROMs voltados para o público

em geral, não apresentavam discos diferenciados. Uma grande parte deles teve na banca

de jornal o canal de distribuição preferido, devido a fórmulas de venda casada com outros

produtos como livros e revistas (o que caracteriza um produto editorial híbrido). Segundo

Solidoro (2004), essa política distributiva levou ao rebaixamento do preço do CD-ROM e

a visão desse produto como um “encartado” ou subproduto, pois nem os editores, nem os

leitores entendiam a essência qualitativa do produto multimídia.


No mercado dos ME of-line, as enciclopédias foram os primeiros títulos a serem

lançados e vendidos como produtos editoriais. Com a estabilização do mercado, no inal dos

anos 1990, era possível identiicar alguns tipos de publicações eletrônicas of-line:

• REFERÊNCIA (enciclopédia, almanaques, dicionários, arte e cultura, mapas,

guias de turismo)

• EDUCATIVOS (cursos de línguas, de disciplinas escolares, de informática)

• ENTRETENIMENTO (videogames)

• EDUTAINMENT (educativos lúdicos, em geral para crianças –

educational+entertainment)

Uma das razoes do pioneirismo digital das enciclopédias multimídia, que são obras

de referência, foi a sua estrutura não-linear, que indicava uma “transposição natural” para o

hipertexto: não se lia “do começo ao im”, mas “pulando” a partir de uma entrada e seguindo

para outras, segundo a vontade de aprofundamento do leitor. Além disso, era possível buscar

a informação por mais de uma coordenada, ou seja, procurando com mais de uma palavra-

48 chave ou critério. Essa característica de banco de dados digital, aliada ao barateamento dos

drivers de CD-ROM, consolidou as obras de referência nesse suporte, que poderiam conter

em apenas um disco, o conteúdo de 10 a 20 volumes de uma coleção impressa (até 2005

usava-se a capacidade de 500MB, depois 700MB). Portanto, o principal benefício percebido

com os CD-ROMs foi a velocidade da performance do leitor, devido à rapidez na recuperação

da informação solicitada. A aceitação do CD-ROM pode ter acontecido também por se tratar

de um suporte físico que, segundo Solidoro (2004:209), “pode dar ainda a percepção (parcial)

da materialidade de um texto e de uma obra fechada (portanto armazenável, estocável e

catalogável)”.

Na virada do século XX, a internet começa seu processo de popularização, em

especial no Brasil, resultando no início da crise do CD-ROM como suporte editorial: nesse

momento as vendas dessas publicações sofrem quedas graduais. No início, como a velocidade

da conexão não permitia um grande luxo de informações e principalmente era muito cara,

os produtores não viram os dois meios em competição, pois os CD-ROMs ainda ofereciam,

além de melhor performance, uma excelente relação custo/benefício para o leitor. Assim,

procuraram integrar os ME of-line e on-line, com “iniciativas editoriais hibridas”, como a


atualização on-line de um CD-ROM, fornecida periodicamente (esse tipo de publicação é

chamada de webCD).

Com o surgimento do DVD (Digital Video Disc), pareceu natural que a indústria

editorial migrasse para essa nova mídia, considerada a evolução do CD-ROM, com

capacidade de armazenamento até 10 vezes superior27, e que permitia a gravação nos dois

lados. Porém, isso não ocorreu. Um dos motivos foi a origem da mídia, que não nasceu para

o mercado editorial, mas para o cinematográico28. Além disso, o formato em disco do DVD

é similar ao do CD, e por mais que coubessem cinco vezes mais dados (o que implicaria

em um custo de produção, gestão e direitos autorais muito mais elevado), os consumidores

não estavam dispostos a pagar cinco vezes mais por “apenas um disco”. Era, então, mais

rentável para as editoras venderem o conteúdo de cinco CD-ROMs separados e manterem

o preço baixo e acessível em bancas, cuja lógica de venda é fascicular/periódica. Por isso os

DVDs (assim como os posteriores HD-DVD e Blu-Ray disc) foram melhor aproveitados

pela indústria cinematográica e de videogames, que necessitavam de mídias cada vez mais

potentes, para melhorar a qualidade e a competitividade de seus produtos.

Na Europa também ocorreu o fenômeno dos CdTV e Cd-I que eram discos
49
que rodavam em leitores exclusivos acoplados à TV, como um console de videogame.

Apesar de seu breve ciclo, os proissionais que atuaram nesses suportes adquiriram uma

experiência mais substanciosa com relação à interatividade, ergonomia e usabilidade: tinham

preocupações de linguagem especíicas do meio, como redução de texto escrito na tela,

clareza dos links, navegabilidade, intuitividade dos comandos, etc. Assim, construindo a

sintaxe (gramática) própria do meio, desenvolveu-se a autonomia lingüística dos ME of-line.

Esse movimento foi mais acentuado nos Estados Unidos, devido aos altos investimento na

linguagem e criação de videogames, o que resultou numa abundante oferta de CD-ROMs não

só de referência, mas de edutainment e educational (plataformas educativas), com linguagem

multimídia mais soisticada.

O italiano Valerio Eletti (2003) airma que na América Latina “prevalecem


as importações de títulos: CD-ROMs que vêm sobretudo da Espanha e dos Estados

Unidos”. O fato é que a produção da ME of-line no Brasil icou dividida também entre os

desenvolvedores de jogos e as editoras, que na maioria dos casos não viam o produto como

27 A capacidade de armazenamento salta de 4 GB (de um DVD comum) a 17 GB (se for um double-sided, double-layered DVD).

28 Resultado de investimentos de um consórcio de empresas que incluía Pioneer, Sony, Time Warner, JVC, Philips, entre outras.
capaz de vender-se sozinho: era necessário agregá-los a uma publicação impressa (produto

editorial hibrido), a não ser que fossem educativos ou edutainment. Esse fenômeno pode ser

percebido no caso do Almanaque Abril, que, ao contrário do que diz Eletti, foi o primeiro

CD-ROM enciclopédico comercial produzido em português no mundo, como será visto no

próximo capítulo.

Ainda hoje, as publicações em CD-ROM têm suas vantagens: não é preciso se

conectar à internet, portanto não é necessário gastar com provedores de acesso e telefonia;

A performance pode ser mais rápida e o tempo de consulta, menor, pois é mais direcionado;

além disso, existe uma vantagem em relação à segurança e à privacidade dos dados.

A popularização da internet, e o fenômeno da web 2.0, estagnaram as vendas das ME

of-line no mundo todo. Aos poucos seus conteúdos eram pirateados na web. A percepção de

que o saber colaborativo e a interatividade têm mais valor, agilidade e lugar na internet é um

dos fatores que diminuíram a importância da ME of-line. Além disso, há a concorrência com

enciclopédias multimídia online, como o Wikipédia. Tornou-se estratégico para as editoras

pensar no lançamento ou não de novos títulos em CD-ROM.

50 Com esse cenário acontecendo na Inglaterra antes do que no Brasil, Sara Lloyd (1997)

alertou sobre a estagnação do mercado do CD-ROM que, uma década antes, era visto por

muitos como “a mídia que acabaria com os livros”:

não é claro se o CD-ROM como meio pode se sustentar em um mercado

de massa, ou se ele apenas será um produto que se adaptará a certos tipos de

publicações, ou ainda se ele será totalmente ultrapassado por outras formas

eletrônicas de distribuição de conteúdo, como a internet. (...) Desenvolver um

título em CD-ROM é um alto risco. Ele precisará vender três vezes mais, do que se

fosse um livro do mesmo preço.

Hoje, com um mercado radicalmente reestruturado, o editor não “voltou à

Editoração tradicional”. Ele é ainda mais valorizado por sua capacidade de selecionar

e organizar, pesquisar e gerir projetos complexos de produção, como é a de um título

hipermídia por exemplo. Além disso, novas possibilidades se abrem para os especialistas em

Direito, documentação e gerenciamento.

A tecnologia multimídia está dispersa em várias plataformas de comunicação

materiais e imateriais, como o celular, o e-book, a internet, os DVDs. A padronização da


tecnologia empregada e o desenvolvimento da linguagem multimídia promovem uma

estabilização nos seus hábitos de leitura e uso. Seu principal desaio é a contínua atualização

dos conteúdos. Além disso, outros desaios, mesmo que não sejam centrais, se impuseram e

se apresentam para a área, ampliando as discussões sobre os efeitos do digital na Editoração,

como será visto a seguir.

2.4.1 MULTIMÍDIA MANAGEMENT E BRICOLAGEM: NOVOS MODELOS PARA A

EDITORAÇÃO
Neste tópico será apresentado o processo de produção de um título multimídia of-

line, com base nos conhecimentos de diversas áreas e aproximando, sempre que possível, o

foco para o processo editorial – apesar de como um todo ele envolver processos de outros

campos, que também são importantes para a discussão dos novos desaios impostos pela

tecnologia. Veremos, portanto, a complexidade da produção, como o título é projetado, quais

as proissões e competências envolvidas, as áreas emergentes que nasceram para melhorar a

relação homem-máquina e que podem ser consideradas pela Editoração, com o objetivo de

melhorar a qualidade dos produtos. Uma discussão sobre o método de projeto, com destaque

para a bricolagem digital é oferecida como forma de complementar as questões envolvidas 51

com o desenvolvimento das ME of-line, e por conseqüência também das ME on-line.

Alberto Abruzzese (2003: VII, grifo nosso), enfatiza a mudança de paradigma que

as novas mídias estão impondo aos comunicadores, a principal delas, no conhecimento

necessário para a realização de tais projetos.

Para projetar bem, é preciso adquirir uma precisa noção do objeto de

produção. É necessário saber separar o surgimento de uma nova necessidade

dos conlitos e mudanças de um determinado ambiente de vida. Saber analisar

a subjetividade que em tal emergência se exprime. Pesquisar como a satisfação

dessas necessidades pode ser facilitada, assim através de quais procedimentos elas

são criadas, se tornam acessíveis, propagandeadas e consumidas. É na dimensão

qualitativa dessas mensagens que a cultura da empresa, as estratégias de mercado

e das tecnologias reivindicarão capacidades e possibilidades, as quais muitas vezes,

as instituições do saber tradicionais não dispõem. (...) Mas é no contato direto com

a experiência formativa que os modelos de organização que se fazem necessários à

realização de um “bom projeto” encontram um modo de serem colocados à prova

nos planos culturais e sociais.


A multimídia, o hipertexto e a interatividade são os fatores críticos que tornaram

mais complexa a fase de projeto e desenvolvimento dos produtos editoriais, em relação à

Editoração tradicional. O produto inal deverá oferecer vantagens imediatas ao leitor, das

quais se destacam a gestão de grande quantidade de informações, o aumento da eiciência

humana e o acesso à informação, que serão discutidos no tópico sobre consumo e leitura

de novas mídias. Para a realização de um produto multimídia que tenha essas vantagens, é

preciso uma equipe de produção que projete de forma integrada e interdisciplinar.

As estruturas e linguagens são desenvolvidas em um meio eletrônico quando se

atenta aos seguintes itens, na fase de projeto:

• Blocos de informação: os links são comparados a parágrafos, unidades

fragmentadas e curtas, mas com um argumento desenvolvido, autônomo e

polissêmico.

• Estabelecimento dos hipertextos: uma série de potenciais elos entre os textos,

que são lidos “quando e como o leitor achar conveniente”.

• O texto, nesse tipo de obra, não é estável, pois depende da perfomance do leitor.
52
• Produção de um luxo harmônico (Eletti, 2003): estabelecimento de um

equilíbrio entre os diversos componentes multimidiáticos dentro do espaço

disponível no interior de um CD-ROM.

• Desenvolver a gramática nativa do meio: “um conceito fundamental nas recentes

pesquisas é o do espaço na textualidade eletrônica”. Conceito que vem de Bolter,

“não apenas escrever no espaço mas com espaços”, como retoma Ferri (2004:50).

Esses desaios são incorporados durante as fases de produção de uma publicação

multimídia of-line: conceituação, estudos de factibilidade, fase projetual, produção

editorial, debugging (pré-testes), produção industrial, lançamento e distribuição. Depois

das vendas, iniciam-se as fases de gestão do estoque e as eventuais segundas ou terceiras

recomercializações.

Durante a produção editorial se destacam alguns momentos que, apesar da

interdisciplinaridade do projeto, interessam mais a esse trabalho e revelam a forte herança da

cadeia editorial tradicional, conforme aponta Eletti (2003:13):


• Deinição dos objetivos editoriais,

• Identiicação do target de referencia (ou dos fruidores a quem se volta o produto),

• Deinição editorial do produto (missão),

• Identiicação dos autores e colaboradores editoriais a adquirir,

• Organização da equipe editorial-redacional,

• Deinição das características industriais do produto (tamanho, tipo de papel, de

capa, etc.),

• Identiicação dos canais de distribuição (livraria, banca, supermercado),

• Deinição de preço e tiragem,

• Impressão e confecção,

• Distribuição, recuperação do investimento, novas edições e gestão do estoque.

É possível notar, nos itens grifados, as fases em que geralmente atuam os especialistas

em marketing, participando desde o início da cadeia produtiva. 53

No caso das publicações eletrônicas of-line, o projeto editorial inicia-se através da

sua encomenda, que pode ser feita por dois tipos de clientes: o mercado editorial e o mercado

corporativo. No caso desse último, o budget é deinido e as publicações são adequadas ao

discurso e à imagem da empresa-cliente. Em geral, é um serviço prestado pelas editoras, que

as produzem em seus setores de “publicações customizadas”. O produto é visto como parte de

uma ação de marketing, sendo distribuído aos funcionários e clientes dessa empresa-cliente.

Já os produtos lançados no mercado editorial, contam com um budget calculado pela

editora, como investimento em um negócio. Uma parte é administrada dentro da própria

empresa, enquanto outra é destinada à contratação de empresas terceiras especializadas

(chamado de outsourcing) na programação do CD-ROM, por exemplo. Em geral, quem

encabeça a publicação é chamado de diretor de redação, e pode apresentar as seguintes e

concomitantes funções: contabilista, designer multimídia, gestor de produto e gestor de

projeto. Essa pessoa tem hierarquicamente o controle da produção do título, tanto na parte

conceitual quanto na parte operativa. Com essas atribuições, o diretor de redação saberá

quantos recursos inanceiros e humanos são necessários para a realização da obra.


Além disso, é comum existirem quatro outras iguras proissionais que trabalham

juntas na fase de conceituação do produto: o product manager, assessorado pelos especialistas

em sotware, design e conteúdo. É importante lembrar também a inluência dos especialistas

em marketing, durante essa primeira fase.

O próximo passo é organizar um método de produção. Na grande maioria das vezes,

utiliza-se a mesma metodologia dos produtos impressos: o tradicional método cartesiano, que

divide o projeto em tarefas cada vez menores. Existem vários exemplos dessa metodologia,

um dos mais famosos é o método criativo desenvolvido por Bruno Munari (2002).

Apesar de lidar com estruturas de construção mais propícias ao rompimento

dessa tradição, o modelo cartesiano é também empregado na criação e planejamento das

publicações eletrônicas, pois tal mudança demandaria tempo e capacidade organizativa

interdisciplinar além do usual. Na maioria dos casos, portanto, utiliza-se o modelo onde

o projetista – depois de analisar a conceituação e o estudo de factibilidade do produto –

desenha a estrutura hipertextual, traçando diagramas em blocos e depois de luxo (low

charts). Os low charts, em geral são divididos em blocos primários (menus de partida) e

secundários (submenus), que se ramiicam, formando “árvores”, cujas “folhas” são a unidade
54
“atômica” de conhecimento. Existem ainda dois tipos de árvore: com mais ou menos

hierarquia de informações, ou seja, mais “horizontais” ou “verticais”. Em ambos os casos, a

rapidez do acesso à informação desejada é dada de acordo com a clareza da hierarquia. Nesses

conceitos nota-se a importância de um trabalho de edição de conteúdo consistente e bem

elaborado (utilizando até conhecimentos de resumo e indexação, da área de biblioteconomia),

controlando a proliferação de links29.

É importante lembrar: mais do que apresentar estruturas ramiicadas,

interseccionadas, anelares ou estrelares, os hipertextos são vistos hoje em formato rizomático,

onde os conteúdos complexos são ligados por nós de interesse e as nuvens de tags se

apresentam como alternativas mais adaptadas e orgânicas, do que a simples hierarquização

dos temas.

Após essa fase, iniciam-se os testes de usabilidade, por uma empresa externa à editora

através de um protótipo do produto (alpha release). Depois, há uma colagem dos conteúdos

29 O projetista divide os conteúdos em ilhas (blocos) temáticas que se interligam sem repetição, redundâncias ou falhas lógicas

entre si, garantindo os percursos hipertextuais. Nesse momento, é possível ter uma idéia de onde distribuir o material disponível (texto,

imagens, vídeos) até o limite de armazenamento digital de um CD-ROM (750 MB) ou DVD-ROM (4 GB).
produzidos sobre o esqueleto estrutural, seguindo o low chart, inalizando em um beta

release (um título completo, mas não arte-inalizado). A partir de então, iniciam-se as etapas

de controle, feitas fora da editora: é lançado o master candidate, que segue para o debugg, ou

correção dos erros de programação, e então, para mais um teste de usabilidade.

Dentro da editora, são feitos três testes: conteúdo (revisão dos textos), congruidade

(funcionalidade dos links) e funcionalidade (navegabilidade e interação). É importante

lembrar que em geral, os ME of-line eram produzidos para duas plataformas: MAC

e Windows, preterindo o Linux (devido à pequena quantidade de usuários). A versão

da plataforma operacional também era um problema, pois dentro da obsolescência

programada da informática, havia o risco de produzir um título que funcionaria apenas nos

microcomputadores mais atualizados.

Finalizado esse processo, é confeccionada a embalagem (packaging). Ironicamente,

a percepção de valor do produto editorial eletrônico of-line está – em grande parte – na

embalagem, pois o leitor não pode ler o produto sem um computador, no momento da

compra. Por se tratar de um objeto físico, mas cuja fruição é digital, as embalagens tendem

a imitar os formatos dos livros tradicionais. Talvez em livrarias fosse até possível instalar
55
um terminal de prova para os CD-ROMs (como acontece no caso dos videogames), mas

como o foco da venda eram as bancas de jornal, as ações de marketing apelavam para as

características físicas do produto, acreditando na vontade do leitor de ter não apenas o

conteúdo, mas um objeto que pudesse colecionar ou colocar em sua prateleira.

As mídias eletrônicas também trouxeram novos dilemas jurídicos para a área de

Editoração. No momento, a legislação para direitos autorais em publicações digitais baseia-

se em princípios incompatíveis com essa realidade. “A possibilidade de adquirir um direito

de reprodução de uma imagem, som e vídeo é a principal causa do falimento ou sucesso de

um empreendimento editorial de grande relevo”, avalia Eletti (2003:174). Ou seja, quanto


mais recursos inanceiros a editora tiver, mais rico em conteúdos serão seus produtos, pois

se apresentarão como mais relevantes para a sociedade do que outros com menos material

protegido e exclusivo.

A obra multimídia como um todo é passível de direito autoral, mas devido ao seu

caráter digital, é cada vez mais pirateada na internet, através de downloads em banda larga.

Até pouco tempo atrás, era muito trabalhoso “baixar e subir” arquivos grandes (acima de
100 MB) na internet, o que tornava difícil encontrar publicações em CD-ROM completas

na rede, devido ao seu tamanho. Mesmo assim, era possível comprar cópias piratas com

os camelôs, por aproximadamente ¼ do preço de mercado do original. Vale lembrar que

quanto menor o preço e a acessibilidade de um produto ME of-line (como ocorre nas

bancas de jornal), menor a chance de pirataria, pois os consumidores não vêem motivação

para isso. Atualmente, com os torrents e a banda larga mais acessíveis, é possível encontrar

edições de CD-ROM, totalmente de graça na internet. Também se encontram na rede,

revistas escaneadas, mas em menor número, pois quanto maior a publicação impressa, mais

trabalhosa é a digitalização e o compartilhamento. Em geral, a qualidade da pirataria de

produtos impressos é muito menor do que a de produtos digitais.

A distribuição dos ME of-line utiliza os mesmos canais e logísticas da

Editoração impressa, tradicional. O que importa nessa etapa não é o suporte do produto

editorial, mas seu público-alvo (mercado ou corporativo). O team do projeto tem em geral

três setores (seja o ME on-line ou of-line): a área de gestão (marketing/comunicação),

gráico/editorial e tecnológica. “Dentro de uma editora tradicional, o diretor editorial, que

geralmente tem uma formação humanística, une a competência adquirida na publicação de

56 produtos impressos à competência ligada às tecnologias de comunicação”, descreve Carbone

(2004:153).

Apesar de toda a teoria desenvolvida até agora, Valerio Eletti (2003) critica as

produções multimídia of-line, que parecem não ter encontrado ou desenvolvido uma

gramática própria para esse meio. Em sua opinião elas apresentam, em sua abertura e menus

principais, uma alta multimedialidade com sínteses, efeitos especiais e edição televisiva;

depois descendo a hierarquia dos submenus, uma ou mais camadas de conteúdo perdem aos

poucos a multimedialidade e adquirem uma riqueza textual ou de referência especializada.

Essa opinião, do não-desenvolvimento de uma linguagem própria da hipermídia,

está relacionada aos estudos de interação homem-máquina. Sem aprofundamento nessa área

é difícil desenvolver publicações soisticadas e mais complexas, descobrir novas técnicas e

formas para a comunicação digital.

Para contribuir no preenchimento dessa lacuna, serão apresentados alguns conceitos

relacionados à interface digital, desenvolvido através dos estudos de usabilidade, design de

interação e psicologia cognitiva. Aliados a uma possível reestruturação organizacional e de


metodologia projetual, esses conceitos, que surgiram com as mídias eletrônicas, nortearão

as novas fronteiras do conhecimento dentro da Editoração. Eletti (2003:145) corrobora com

essa visão ao airmar que “esses estudos são indispensáveis para uma realização melhor

do produto, seja do ponto de vista racional quanto emocional, em especial no campo da

usabilidade”.

A fruição de uma obra, a sua leitura, está diretamente ligada à interface, o ponto de

contato entre a informação e o leitor, em geral, simpliicada por “onde o texto é apresentado,

onde a comunicação se realiza”. No caso de uma publicação impressa, a interface é o espaço

do papel, onde serão colocados elementos para a sua fruição (imagens e texto). Já nos meios

eletrônicos, a interface é a máscara da programação, que permite ao leitor uma interatividade

capaz de comunicar. Jef Raskin (2003:5 apud Eletti, 2003:145, grifo nosso) sintetiza: “aquilo

que os leitores querem é praticidade e resultados, mas tudo o que vêem é a interface. Do

ponto de vista do leitor, a interface é o produto”30.

O design de interação é um dos campos de estudos que interessam à Editoração,

pois realiza a interface de uma publicação digital, como um site ou um CD-ROM. Abordando

as possibilidades de interações entre homem e máquina, através da psicologia cognitiva


57
(estudos de percepção, recepção), matemática (processos lógicos) e a lingüística; o design de

interação identiica dois aspectos distintos de uma plataforma eletrônica: o lógico-funcional

(o da programação do produto) e o estético-comunicacional (o aspecto gráico e a metáfora

do produto). O lógico-funcional, em geral é feito pelos programadores de informática, já o

estético-comunicacional pode ser feito por comunicadores especializados. Através desses

últimos se constrói a linguagem da hipermídia, a sua gramática, como os sublinhados, as

porções de imagens “ativas” e os botões e ícones para indicar os links e a barra de rolagem,

que possibilitam a leitura na tela. Além disso, há sempre a preocupação com a navegabilidade

(função lógica), que é desenvolvida atualmente por métodos de wireframe31.

O design de interação usa, segundo Ferri (2004:49, grifo nosso), um modelo de


construção baseado em:

1. Análise (o que deve funcionar – e não como);

30 RASKIN, J. The humane interface, new directions for designing interactive systems.(2000); trad. Italiano. Interfacce a misura

d´uomo. Milão: Apogeo, 2003.

31 Os wireframes são protótipos que visam diminuir a complexidade e melhorar a visualização do produto multimídia, fundamen-

tando o projeto, sua implementação e fruição.


2. Arquitetura da informação (que edita as informações, hierarquizando-as,

através de “noções de classe”);

3. O design do objeto (baseado na análise e prevendo a implementação)

4. e a implementação (tradução para a linguagem de programação, banco de dados,

etc.).

Os elementos desenvolvidos pelo design de interação são: movimento, espaço,

tempo, aparência, texturas e sons. Essas características devem ser coniáveis, apropriadas,

inteligentes, lúdicas, prazerosas e responder aos comandos do leitor (SAFFER, 2007). Esses

comandos, por exemplo, devem ser colocados de forma auto-explicativa e intuitiva, sempre

na mesma posição em diversos submenus, para “dar condições ao leitor de memorizar

imediatamente as funções de navegação, os seus mecanismos e a sua posição na tela”,

conforme diz Eletti (2003:157, grifo nosso).

Um dos principais temas dessa área, considerado seu ponto de partida, é a escolha

e construção de uma metáfora de base, que guiará e sustentará toda a comunicação da

publicação. Eletti (2003:147) alerta que “a falta dessa passagem é imediatamente notada nos
58
produtos hipermidiáticos que apresentam em seu interior uma vistosa falta de coerência

visual”. Existem dois tipos de metáforas de base – representações do ambiente no qual se

colocam os conteúdos e os diversos níveis hierárquicos do título multimídia interativo: a

do tipo igurativo e a do tipo abstrato. No primeiro tipo estão aqueles títulos que simulam

um ambiente (seja em 2D ou 3D), onde se desenvolve o percurso. Como exemplo é possível

citar os jogos de videogame e os CD-ROMs de edutainment. No segundo, estão obras como

o Almanaque Abril, que oferecem uma metáfora de dicionário, repertório, banco de dados,

sem criar um cenário complexo para o acesso às informações. A ergonomia e funcionalidade

dessas interfaces são veriicadas e aprimoradas através de testes de usabilidade sobre o

protótipo.

Um dos conceitos mais importantes desenvolvidos na hipermídia é o de usabilidade,

que questiona a lógica de “liberdade de leitura” que muitos autores citam quando falam desse

assunto, como faz Roncaglia (1999 apud CARBONE, 2004:46, grifo nosso):

(...) se pressupõe que seja deixado ao leitor o direito de organizar

seu próprio percurso discursivo e que assim criaria uma lógica argumentativa

autônoma e desvinculada dos poderes do autor. Esse discurso implica em


um hipertexto com estrutura “fraca”, desvinculado de qualquer hierarquia

predeinida e sobretudo caracterizada de uma escritura não argumentativa,

associativa e aforística32.

Portanto, o design de interface segue uma lógica estrutural e hierárquica de

posicionamento do conteúdo. Esse processo, que cria os menus e submenus e destaca

graicamente as informações é conhecido no meio editorial como micro-edição. Como esse

grifo na palavra “micro-edição”, o editor gráico destaca e hierarquiza contextos, dando um

tratamento ao texto bruto. Essa ação é de fundamental importância devido à cultura visual

que se impõe desde a escrita. Assim os contextos da informação são depurados e editados,

para uma leitura direcionada, como reforça Ferri (2004:47):

(...) hoje a pesquisa se irma sobretudo a considerar o hipertexto como

um instrumento útil à construção de contextos de informação. Isso faz com que

o signiicado dos dados não resida mais em si mesmo, mas na estrutura na qual

é inserido. Nesse sentido, a tarefa do hipertexto é aquela de fornecer a expressão

da estrutura interna das informações [FORMA]. Essa perspectiva naturalmente é

muito diferente daquela adotada há dez anos no estudo dos hipertextos, que dizia

que a estruturação era importante para garantir a navegação: agora se diz que as

informações possuem uma própria estrutura e que o hipertexto fornece um modo


59
de exprimí-las/expressá-las. Portanto, a hipertextualidade não tem só a ver com a

apresentação de uma estrutura, mas sobretudo com a sua implementação.

A partir do tratamento do conteúdo, iniciam-se as preocupações com a usabilidade,

que têm quatro dimensões principais: a eiciência, a facilidade de aprendizado, a facilidade

de lembrar os comandos principais e a satisfação no uso. A usabilidade é uma parte da

teoria da ergonomia cognitiva e merece atenção, conforme aponta Carbone (2004:164): “se

airma, dentro do projeto editorial, a idéia de que a usabilidade é um componente importante

na qualidade de um produto com base informática e, portanto, é um fator de vantagem

competitiva”.

Já Solidoro (2004:195) reforça a idéia de que “nada na fase projetual é feito por

acaso. Tem-se atenção máxima às escolhas cromáticas, à disposição visual dos elementos,

à intuitividade da interface, à legibilidade das informações textuais”. Ou seja, os produtos

editoriais eletrônicos devem ser “fáceis de usar”, garantindo um acesso simples e prático aos

seus conteúdos. Por isso, os testes de usabilidade contam cada vez mais com a colaboração

32 RONCAGLIA, G. Ipertesti e argomentazione, in CARBONE;FERRI. Le Comunità virtuali. Milão: Mimesis, 1999, p. 219-242.
dos leitores inais, tornando o processo de produção interativo e dinâmico: o leitor torna-se

assim, também um dos co-autores da obra multimídia.

Essa preocupação com a usabilidade tem força porque a estrutura hipertextual pode

criar ambientes labirínticos e, se não oferecer um guia ou mapa, deixa o leitor frustrado, com

a sensação de estar perdido em uma montanha de informações. Esse fenômeno é conhecido

como overhead cognitivo.

Para se projetar uma interface que atenda aos objetivos do design de interação é

preciso ter a deinição do leitor inal – quais seus contextos, background cultural, atitudes,

expectativas e hábitos no confronto com o sistema. Em todo caso, Solidoro (2004) lembra

que existem características universais: “os modelos conceituais dos leitores é um modelo

mental, muito informal [orgânico], formado de uma união de relações (as quais o leitor toma

consciência) entre vários elementos”. Os seres humanos criam modelos mentais de orientação

para novas situações em grande parte baseando-se na experiência cotidiana pregressa, usando

a familiaridade, a semelhança, entre outras estratégias. O leitor então tem a necessidade de

contextualizar as informações recebidas e de reconhecê-las com clareza.

60 Para entender as decorrências que uma abordagem user-centered, como essa, realiza,

parte-se para a comparação das expectativas do leitor para um produto de referência e

outro, de entretenimento. Espera-se, no caso dos videogames, uma experiência que tenha

apelo emocional ou estético, por exemplo. No quadro 2 é possível observar algumas das

características “esperadas” pelos fruidores nesses dois tipos de publicações multimídia of-line:

QUADRO 2 – SOBRE AS DIFERENCAS COGNITIVAS DAS ME OFF-LINE

VIDEO GAMES OBRAS DE REFERÊNCIA

FOCO NA EXPERIÊNCIA FOCO NA PERFORMANCE

EMOTIVO / ESTÉTICO PRÁTICO / ACESSÍVEL

ALTA CARGA DE INFORMAÇÕES DISSIPADAS INFORMAÇÕES RECUPERADAS ON DEMAND

“MISSÃO” “TAREFA”
Devido a essas características, os desenvolvedores de jogos têm uma experiência em

interfaces muito mais soisticada (construindo linguagens mais elaboradas para esse meio)

do que os produtores editoriais, que ainda se prendem aos modelos da Editoração tradicional

e do banco de dados. Para atingir o mesmo nível de linguagem, é preciso que os editores

conheçam ao menos um pouco sobre psicologia cognitiva, utilizada nos estudos de interação

homem-máquina.

A disciplina human computer interaction nasceu da ciência cognitiva, que por sua

vez se iniciou nos anos 1980. Segundo Solidoro (2004:167), são “modelos mentais que os

leitores empregam na interação com o computador e podem ser de dois tipos: estruturais e

funcionais”. No primeiro, há a memorização da estrutura de funcionamento do sistema. No

segundo, o leitor desenvolve o conhecimento dos procedimentos conforme vai utilizando o

instrumento ou sistema. Ainda não existem evidências empíricas (provas) de que os leitores

desenvolvem esses dois tipos de modelos mentais durante a fruição de uma obra, pois eles

são formulados/inferidos pelos produtores de hipermídia, durante a fase de estruturação e

navegabilidade do sistema. O mais correto, então, seria airmar que a interface produz uma

relação entre dois sistemas de conhecimento: o do leitor e o do sistema hipermídia (que

desenvolve um tipo de leitura para um tipo de leitor). A eicácia da interface relaciona-se 61


com a regularidade e também com a competência do leitor ao lidar com o sistema. Por isso,

novamente, deve-se atentar ao contexto cultural do leitor, como diz Solidoro (2004:170):

“a qualidade de uma interface não depende apenas dos parâmetros técnicos, mas se liga

estreitamente à psicologia do leitor e aos seus modelos cognitivos, aos seus processos

motivacionais”.

A área da psicologia cognitiva é útil para o desenvolvimento de produtos editoriais

eletrônicos mais consistentes, pertinentes e inovadores. Ela identiica que a fruição depende

basicamente da compreensão do funcionamento do sistema, a aprendizagem dos comandos e

o entendimento das metáforas utilizadas. Ao menos, conforme Solidoro (2004:171), ela será
mais satisfatória ao leitor inal, ao se levar em conta:

• O processo de percepção – a interação com a interface, inputs e outputs com o

sistema humano e eletrônico.

• A atenção – como ela é utilizada dentro da interface

• A memória – retenção de códigos, a apreensão do sistema


• A organização do conhecimento – como o leitor constrói um modelo mental da

estrutura hipermidiática e o modo como ela é organizada.

• Os estilos cognitivos e as estratégias decisionais – os estilos de fruição que os

sistemas exigem dos leitores reletem a sua complexidade.

Um produto editorial que seja bem desenvolvido permite ao leitor se concentrar

na tarefa a ser realizada e não na carga cognitiva que ele apresenta. Ou seja, ele se atenta à

interface e não ao meio (multimídia of-line).

Um artefato digital complexo, como um CD-ROM multimídia, exige um

planejamento e uma metodologia diferenciada. A instabilidade tecnológica cria novos

métodos de produção, de “natureza inovativa (e, portanto não consolidada)”, com o objetivo

de “atingir a máxima potencialidade destas tecnologias, por meio de seu uso consciente”

(SOLIDORO, 2004:121). Esse contexto permite o desenvolvimento e a veriicação de novos

paradigmas cognitivos, que podem ser imprevisíveis em quantidade e qualidade, ou seja,

incentivam a experimentação em busca de novas gramáticas e sintaxes (ABRUZZESE, 2003).

O projeto em geral é desenvolvido por uma equipe que trabalha em paralelo, para
62
evitar demoras no processo que sejam incompatíveis com os anseios do mercado. Mas, nem

sempre o bom funcionamento das partes (que envolvem a idealização, realização e gestão do

tempo) é suiciente para garantir a qualidade do conjunto da obra.

A atividade de projetar um artefato digital tem de situar-se nos desaios

metodológicos que tendem a distanciar-se da tradição projetual problem-solving33, buscando

a natureza do produto digital, baseada no tripé multimídia, interatividade e hipertexto.

Solidoro (2004:122) também acredita que “o planejamento de produtos e serviços digitais

evidencia os numerosos e até agora conlituosos declínios do agir técnico sinalizando a sua

necessária evolução”. O agir técnico são as decisões que promovem “regras de fechamento”

em um sistema, no âmbito operativo, com a intenção de obter processos controlados, recursos

planiicados e erros reconhecíveis (LUHMANN, 1991 apud SOLIDORO, 2004:122)34.

Para a evolução do fazer digital – que inluencie as competências, a atividade

projetual e as formas de organização do trabalho – sugere-se uma metodologia mais

33 Cujo desenvolvimento do projeto é feito com base seqüencial, condicionando-o ao ritmo dos fluxos de trabalho determinados

cronologicamente (Grantt) ou disciplinarmente/especialidades (Pert) ou ainda misturando as duas abordagens.

34 LUHMANN, N. Soziologie des Risikos. Berlim/Nova York:Gruiter, 1991.


experimental e cognitiva, baseada em “procedimentos heurísticos” (SQUAZZONI, 2003 apud

SOLIDORO, 2004:122)35.

A metodologia projetual, então se polarizaria entre “algoritmo-aplicada”, mais

cartesiana, e “heurístico-experimental”, que aproxima as disciplinas e suas linguagens,

através da sobreposição (intersecção) de competências práticas e teóricas, contribuindo

assim para o saber complexo em ambientes inovativos: “a complexidade dos projetos de

Editoração multimídia requerem, de fato, a integração e não simplesmente a soma das

diversas competências necessárias à construção. (...) É um confronto relexivo.” (SOLIDORO,

2004:128).

O mesmo autor apresenta, como metodologia “heurístico-experimental”, o conceito

de bricolagem digital36, como forma acessível de adaptação a essa nova realidade. Para os

editores tradicionais, mudar é uma decisão que requer altos investimentos. A bricolagem

seria uma solução para evitar tais gastos e uma reestruturação profunda em médio prazo, o

que acarretaria em altos riscos. Do termo francês, e usado nos processos DIY (do it yourself),

a bricolagem é uma colagem de materiais, adaptados a uma situação especiica, usando as

práticas e conhecimentos do cotidiano.


63
Aplicada à metodologia projetual, a bricolagem digital é metáfora para uma

modalidade construtiva mais experimental e que nasce do improviso-adaptativo durante

algumas fases do projeto, devido à falta de tradição na produção dos ME. Para o autor, “a

arte do momento, a recombinação criativa e engenhosa de elementos diferentes entre si e

colocados juntos através da bricolagem conservam a característica do provisório, assim como

nos artefatos digitais, que são de fácil maleabilidade e reelaboração”. (SOLIDORO, 2004:124).

Essa metodologia permite ampliar a atuação da cognição sobre o modelo engenheirístico,

unindo as fronteiras de disciplinas aparentemente distantes, com a inalidade de encontrar

uma solução provisória e não estável e deinitiva. A ordem emerge depois dos resultados e

não é completamente programada; os materiais usados em um caso são maleáveis e versáteis

para serem adaptados a outros projetos.

O mais interessante dessa metodologia é a inversão da visão consolidada dos métodos

“testados e aprovados” que, como receitas prontas, são menos custosos. No caso dos ME,

35 SQUAZZONI, F. La progetazzione come processo euristico sperimentale e Il ruolo degli strumenti tecnologici nelle organizzazio-

ni complesse. Bologna: Baskerville, 2003.

36 Ver anexo 1. Bricolagem digital.


Solidoro (2004:125) alerta que há um altíssimo risco “quando se buscam soluções deinitivas

e estáveis dentro de um contexto caracterizado por uma fortíssima variabilidade e na qual

não é permitido subvalorizar a entrada inovativa dos ICT [information and communication

technology].”

O autor ainda diz que o projetista “bricoleur” digital, deve apresentar uma gama

consistente de competências em marketing, tecnologia e comunicação. Com essa formação,

ele será capaz de avaliar as possibilidades de utilização/fruição do produto, os contextos

de mercado e gerir o projeto, multidimencionando os problemas que esse carrega. Sendo

assim, esse é um proissional muito mais complexo que o editor tradicional, capaz de unir

e sintetizar uma profusão de fatores e processos em continua atualização, para então “criar

novas combinações de uso entre linguagens e competências que vão se unir no percurso

projetual” (2004:125). A prática do método depende basicamente da interação entre os

proissionais envolvidos e a capacidade desse team heterogêneo, em cooperar criativamente,

através de um “processo crítico, problemático, multidimensional e dinâmico” (2004:129)

redeinindo assim continuamente a atividade projetual ligada ao artefato digital. O sistema de

partnership, onde se contrata uma empresa especializada em uma parte do processo, como a

64 programação do CD-ROM, por exemplo, também pode ser utilizado nesse método, contanto

que haja uma gestão consistente dos conhecimentos. Mesmo que descentrado, e possibilitado

através da internet, o networking deve favorecer a integração criativa e atualizada dentro de

um projeto.

Podemos resumir a bricolagem digital, como um modelo pós-estruturalista de

projetar: contínuo, colaborativo, interdisciplinar, mutante e complexo; mais preocupado com

a capacidade de transposição do que com decisões que impliquem na rápida aplicação de

uma rotina no fazer técnico. Torna-se, então, necessário novos modelos de organização para

planejar o luxo e o método de trabalho de modo que o produto seja lançado dentro do prazo

estabelecido, e com uma melhor previsão dos custos e recursos humanos. Segundo a tradição

norte-americana, esses são os componentes críticos do trabalho (the project management

triangle): tarefa – tempo – recursos. Sobre essa reestruturação, Eletti (2003:163, grifo nosso)
argumenta:

Os projetistas têm uma última tarefa a desenvolver: a estruturação

racional e detalhada da equipe produtiva e da cadeia de produção. Ou seja, quem

e como deve intervir no trabalho, respeitando a seqüência das operações, mas


agindo o máximo possível em paralelo e deinindo nós de convergência.

A tradicional divisão em tarefas especializadas, que ocorre geralmente nos projetos,

traz à tona a falta de integração entre as disciplinas. O resultado é a mistura de linguagens

técnicas de tradições diferentes. O proissional do áudio tem a tradição do rádio, o do

audiovisual, da TV ou do Cinema, o designer gráico, da revista ou cartazes. Assim, a

linguagem multimídia se torna um embate entre as linguagens precedentes, já que não há

uma busca sistemática pela linguagem desse novo meio. É necessário então, um gestor da

equipe de trabalho, que tenha conhecimento de todas as linguagens envolvidas, dialogando

com os especialistas a im de encontrar a melhor solução para os problemas editoriais que

surgem por falta de tradição na ME of-line.

O processo de desenvolvimento de um hipermídia é adaptativo e lexível, permitindo


refazer etapas inteiras, na busca de uma metodologia de desenvolvimento que só se

encontrará com a experiência e a sensibilidade dos desenvolvedores. Na fase de conceituação

e de construção dos suportes nascem os mais férteis momentos de inovação editorial, de onde

podem surgir novos campos para a Editoração e novos modelos de negócios. A atividade é

complexa, porém é na parte de determinações e gestões de riscos e custos de projeto onde


65
ela geralmente concentra seus maiores esforços, em detrimento da resolução de problemas

relacionados ao tempo de decisão e experimentações de soluções.

2.4.2 CONSUMO E LEITURA DE NOVAS MÍDIAS


Nesse tópico serão apresentados conceitos que consolidem a diferença entre

Editoração eletrônica e impressa. Já foi apontada a complexidade do projeto multimídia, com

ênfase às questões da quantidade de códigos envolvidos e da problemática da interatividade

do conjunto. Isso permite airmar, dentro da realidade da multiplicidade das mídias, a

possibilidade de escolha entre variados modelos de fruição, dentro de igualmente variados

canais comunicativos, o que signiica um grau de liberdade na construção de um produto

editorial frente aos diversos cenários e modelos de utilização dos leitores (SOLIDORO, 2004).

A visualização dos conteúdos e a fruição deles nos impressos são realizadas

diretamente no suporte físico (papel), enquanto nos meios eletrônicos, é necessário um

dispositivo (como computador ou e-book, com leitor óptico e monitor). A mais notável

diferença é que o impresso e o CD-ROM têm seu conteúdo estabilizado, ixo e não podem
ser modiicados pelo leitor, apenas fruídos. Na internet, no entanto, o conteúdo e também

a visualização são eletrônicos, dependendo dos dispositivos e da conexão com a rede.

Mesmo depois de publicado, o conteúdo que está na web é passível de alteração pelos

leitores, com menor ou maior grau de diiculdade. Conigura-se assim um ambiente aberto

e potencialmente ilimitado, cuja principal característica é a atualização continua, seja de

linguagens como de conteúdos, que cada vez mais se distanciam das dinâmicas dos impressos

e das ME of-line.

Solidoro (2004:137) chama a atenção do editor para usar a potencialidade do digital,

seguindo a análise das “verdadeiras exigências dos leitores”:

(...) é tarefa do editor escolher a combinação mais eiciente (os leitores

querem interatividade? Se sim, de qual tipo?) e mais caracterizante a respeito

do contexto comunicativo, aos reais vínculos do projeto e aos objetivos pré-

determinados. (...) Ao oferecer conteúdos multimídia e interativos é preciso saber

distinguir entre o que é necessário e o que é acessório, entre o que pode ser um

valor para o leitor e o que, ao invés, não corresponde a uma demanda social.

Um produto editorial multimídia é uma representação do mundo rica em

66 conteúdos polissêmicos, sinestésicos, interativos e hipertextuais. Porém, ela pode ou não

ser necessária a uma representação que se deseja para determinados leitores, através de

determinados conteúdos. Até mesmo uma representação que inclua o hipertexto, ou não,

deve ser considerada, pois ela é uma das tantas opções de construção lingüística e cultural,

assim como a TV, o rádio ou o livro. A tecnologia, portanto, não é impositiva, e sim uma

possibilidade que não pode ser ignorada.

Durante a idealização dos produtos editoriais é crucial considerar a inteira cadeia

dos suportes que vão constituir o canal de comunicação com o leitor: potencialidade, limites,

riscos, hábitos de utilização, conteúdos em modalidades diferentes. Para ajudar nesta decisão

editorial é importante saber como os textos são fruídos na hipermídia.

Como dito anteriormente, o hipertexto funciona através da performance, isto é,

um movimento realizado em um espaço durante um tempo. A fruição então consistiria

no “adaptar-se de uma mente móvel em um meio móvel – segundo Ferri (2004:53) – essa
adaptação é imposta hoje pela remediação”.

Retomando a teoria de Bolter e Grusin (1999), a comunicação digital media,


hipermedia e remedia. Quando ela hipermedia acaba por fazer o contrário da remediação,

ou seja: “manifesta a mediação do meio, revelando-a através da sua multiplicação, os signos

da mediação comunicativa. (...) Esta instância tende a tornar o fruidor consciente de uma

performance comunicativa” (FERRI, 2004:54). É o reconhecimento da mímese dos processos

comunicativos. O mesmo Ferri ainda airma que na comunicação digital, o leitor se relaciona

com três tipos de fenômenos, criando expectativas sobre eles: a desintermediação digital –

“tendência do provedor de conteúdo digital a eliminar os pontos de mediação no que tange à

utilização” –, a interatividade e personalização, e a provisão de conteúdos (content providing).

Portanto, o modo de ler que se desenvolve nessas mídias, tem como base a

interatividade que elas oferecem ao leitor. Nesse contexto, a lógica de leitura push-pull se

torna interessante para o estudo da fruição na Editoração eletrônica. Essa diz que os meios

analógicos, como os livros, são lidos através do push, porque eles “espirram, empurram” o

conteúdo ao fruidor de modo mais ou menos direto. Já com conteúdos digitais, incluindo

os ME of-line, ocorre o pull, quando o leitor deve puxar, escolher, “explorar os conteúdos

antes de fruí-los, através de uma modalidade muito similar ao ‘aprender jogando’” (FERRI,

2004:37). Segundo o autor, “o modelo pull da internet e das tecnologias digitais tendem a se

tornar aquele que condicionará os formatos dos outros meios, em transição para o digital. 67
Isso signiica que se a tendência de leitura é baseada nesse modelo interativo (pull), é provável

que o e-learning e o content providing – os novos desaios editoriais – sejam desenvolvidos

através dessa lógica.

Na internet, a web 2.0 ou open source intelligence (como os blogs, twitter, redes sociais

diversas), são importantes, pois constroem um conhecimento colaborativo e espontâneo,

não necessariamente original: “resumem, comentam, resenham, elencam, recolhem

informações espalhadas em dezenas ou centenas de sites”. O editor pode atuar também com

esse trabalho que “apesar de ter custos industriais muito mais baixos, se torna custoso e difícil

de produzir de modo contínuo um tipo de informação ‘em tempo real’”, como argumenta
Solidoro (2004:115). Já Eletti (2003:100) observa que a Editoração multimídia interativa está

“caminhando claramente rumo à personalização, a im de melhor responder às exigências de

cada leitor, após décadas de produção de comunicação absolutamente massiicada”, ainda que

segmentada.

A história da Editoração multimídia é, portanto, fundante e fundamental na

história da Editoração eletrônica não apenas por criar o elo entre os impressos e a
internet, mas também por mostrar que, como diz Solidoro (2004:99), “basta uma pequena

inovação tecnológica para mudar rapidamente toda a produção internacional e sobretudo

a sua ilosoia”. Isso signiica também altos investimentos para a produção editorial: a

reestruturação projetual e organizacional revela toda a gama de competências especiicas

envolvidas. A multimídia, portanto, não é uma escolha obrigatória, mas uma decisão baseada

num contexto editorial especíico, avaliando o momento dos objetos comunicativos.

Com as relações entre tecnologia e Editoração estabelecidas no contexto dos ME of-

line, será analisado o caso do primeiro CD-ROM comercial em língua portuguesa, produzido

no Brasil: o CD-ROM do Almanaque Abril, produzido pela Editora Abril e veiculado

paralelamente e em conjunto com sua versão impressa, de 1994 a 2005.

68
3. O PRODUTO EDITORIAL ALMANAQUE ABRIL: MIDIAMORFOSES

Após a revisão teórica sobre as mídias eletrônicas of-line, trazendo as principais

questões sobre a multiplicidade das mídias e sua remediação no inal do século XX, opta-se

pelo estudo de caso de um título editorial de relevância para o tema: O Almanaque Abril.

A escolha pelo método é pertinente, pois, a partir dele, é possível “investigar um fenômeno

contemporâneo dentro de seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o

fenômeno e o contexto não estão claramente deinidos” (YIN, 2005:32).

O título Almanaque Abril (AA), além das motivações iniciais relatadas na introdução

do trabalho, foi selecionado devido à sua capacidade de adaptação à realidade informativo-

comunicacional, na qual se insere, além de ser um “livro-do-ano” que busca a atualização e

a pertinência social como obra de referência. Outros motivos também posicionaram o AA

como relevante para esse estudo de caso, em especial a sua trajetória rumo à internet, iniciada

com a versão eletrônica em CD-ROM, e que apresenta características importantes dentro do

mercado editorial, a saber:

1. Importância histórica: produto diferenciado e singular, com 35 anos de mercado,

pioneiro no lançamento de um título editorial em CD-ROM no Brasil, cuja


69
maturidade foi atingida com 12 anos de experiência acumulada em produção e

mercado multimídia.

2. Sucesso de mercado, apresentou sua versão em CD-ROM voltada para os

brasileiros e não era uma tradução, como a maioria das enciclopédias desse

suporte disponíveis em sua época.

3. Apesar da decadência do suporte CD-ROM e da concorrência com a internet,

no início do atual século, o título impresso foi mantido e conseguiu ligeiro

crescimento em vendas, após descontinuar sua versão multimídia.

Com esses atributos, a trajetória do AA consegue revelar as práticas editoriais,

baseadas na avaliação do mercado e no uso das tecnologias, que são o foco desse trabalho.

Usando a estrutura editorial das últimas edições da publicação, como metáfora de base

para esse estudo de caso, serão selecionados os “pontos de atenção” que a formaram e a

transformaram, para poder então avaliar os impactos das decisões editoriais e entender

quais os modelos de negócio que se adequaram ou não aos fenômenos tecnológicos e

mercadológicos impostos à prática da Editoração nos últimos anos.


Duarte e Barros (2005:219) apontam o método de estudo de caso para trabalhos

cuja inalidade é analisar melhor um fenômeno, através da noção de que o objetivo principal

da pesquisa reside na compreensão dos eventos, indicando objetivos como a descrição, a

tipologia, o desenvolvimento teórico e o teste limitado da teoria. Desse modo, esse estudo,

além de descrever a trajetória histórica do Almanaque Abril, oferecerá subsídios teóricos

correlatos, relacionados ao marketing, para então, a partir da análise dos discursos e dados,

“testar a teoria”.

Procura-se, então, “contribuir para a compreensão dos fenômenos sociais complexos,

sejam individuais, organizacionais, sociais ou políticos. (...) [Através do] estudo das

peculiaridades e das diferenças daquilo que o torna único e por essa mesma razão o distingue

ou o aproxima dos demais fenômenos” (DUARTE; BARROS, 2005:234). Por im, o método

se mostra apropriado, pois permite relacionar o fenômeno de ruptura e continuidade

tecnológica, na área editorial.

A estrutura a ser usada ou “metáfora de base” é mesma do Almanaque Abril 2008

(divida em referências, panorama, retrospectivas e perspectivas); une a história editorial

da publicação (com destaque para a tese de doutorado de Mateus Pereira, A Máquina da


70
Memória1) às entrevistas realizadas com líderes da equipe editorial (atuais, do ano passado

e do momento em que surgiu a versão em CD-ROM). Além disso, serão analisados

documentos fornecidos pelos editores e produtores que relatam a trajetória do Almanaque2

e seus dados mercadológicos, releases e campanhas de marketing. Assim, será possível

reconstruir e avaliar importantes estratégias editoriais e de marketing de uma das maiores

editoras do Brasil, e quais foram suas motivações e impactos no mercado editorial nacional.

Por im, como será visto, apesar de ser uma publicação da era moderna, fruto

do espírito do seu tempo, o Almanaque Abril concentra em si os dilemas dos editores

tradicionais, dentro da era digital: com natureza por vezes contraditória, porém com todas as

possibilidades de, olhando o passado recente, se preparar para o futuro.

1 Tal tese de 2006, da área de História da UFMG, prioriza a dialética entre passado e presente no conteúdo das edições do

Almanaque Abril, sem atentar-se diretamente para o CD-ROM, porém revelando práticas editoriais relevantes para esse trabalho.

2 O documento Histórico Editorial, fornecido pelo diretor de redação, relata as mudanças editoriais e organizacionais da

publicação, além dos resultados comerciais durante a sua trajetória, desde 1974 até 2003.
3.1 REFERÊNCIAS: A REINVENÇÃO DO GÊNERO ALMANAQUE
O almanaque é um tipo de produto editorial caracterizado pelo acúmulo de

informações (MEYER, 2001). É uma publicação anual com conteúdo selecionado em

uma ou mais áreas do conhecimento, dispostos de acordo com o calendário ou pelo

menos apresentando uma cronologia sobre o(s) assunto(s). Nos almanaques se encontram

informações astronômicas e astrológicas, estatísticas e listas diversas, efemérides, linhas do

tempo, datas importantes e tudo o que pode ser útil no cotidiano, sendo então um “livro de

todo o saber”.

Seu caráter anual e atrelado ao calendário astronômico é a única pista do legado

etimológico da palavra almanaque, cuja hipótese mais difundida remete ao termo árabe al-

manakh ou al manaj3, que signiica justamente calendário (GLICK ET AL, 2005). A palavra

foi gravada pela primeira vez em uma obra da literatura de astronomia árabe, no século XIII,

para se referir “às efemérides do Sol e da Lua”. Depois, esse termo evoluiu semanticamente

signiicando uma série de tabelas, com ou sem textos explicativos, dando informações sobreo

posicionamento diário do sol, da lua e dos planetas, o que já era feito pelos astrônomos

babilônicos. Glick et al (2005:29) explica: “Esses períodos de recorrência ou ciclos, são ixos

e se repetem em um determinado número de anos (...) o que dá ao almanaque um uso 71


‘perpétuo’”. Muitas obras do gênero foram produzidas, até mesmo por Gutenberg, sempre

associadas aos calendários dos corpos celestes e posteriormente, a um tipo de adivinhação

através de horóscopos. Porém, elas não apresentavam o termo almanaque em seu título como,

por exemplo, o Sheapheard’s Kalendar, primeira obra do gênero escrita em inglês, a partir do

original francês (1497). O uso do termo almanaque difundiu-se a partir de meados do século

XVII, segundo Mateus Pereira (2006).

Não se sabe ao certo a origem editorial desse tipo de publicação, mas que sua

trajetória foi longa, dissipada e difundida4, e que produziu vários subgêneros ao longo da

História. Conforme Pereira (2006), os almanaques contemporâneos têm caráter geral, mais

abrangente que os seus antecessores: “o discurso ao mesmo tempo retrospectivo e seletivo

dos almanaques, desde o século XVIII, reagrupava os acontecimentos de todo um ano,

mostrando o desenvolvimento e a ‘lógica’ da história a um público amplo”. Esse tipo de

3 Manaj parece ser a arabização do vocábulo latino manacus, que designava o círculo do relógio solar que marca a sucessão

dos meses. Revista Mundo Estranho, acessado em 08/10/09 (mundoestranho.abril.com.br/cultura/pergunta_285881.shtml).

4 “Até o século XIX, os almanaques foram, depois da Bíblia, um dos principais impressos utilizados no ocidente” (Pereira,

2006).
almanaque variava muito suas características estruturais de um título para outro, colocando-o

em uma “encruzilhada de gêneros” conforme relata o autor:

Às vezes um livro do ano das enciclopédias, ou seja, um livro que

atualizava as informações e fazia um resumo, uma resenha e uma cronologia dos

acontecimentos “mais relevantes” do ano que terminava; às vezes um manual,

dado que havia conteúdos de vulgarização cientíica e de utilização didática; às

vezes um anuário estatístico, porque continha muitos dados e tabelas; às vezes um

atlas, dado o conjunto de mapas, gráicos e bandeiras; às vezes uma publicação

biográica; e às vezes, ainda, uma enciclopédia, porque pretendia dar conta “de

todo o conhecimento”.

Marlyse Meyer, para a exposição “Do Almanak aos Almanaques5”, dividiu as

produções brasileiras em dois tipos: Almanaques Gerais (ou de Atualidades, segundo Pereira)

e Almanaques de Farmácia. Fortemente associado às enciclopédias (e, portanto, ao projeto

moderno), além de ser identiicados como “vetor de progresso, o almanaque oferece, com

efeito, receitas práticas ou aulas (...), úteis ou necessárias para a vida cotidiana dos indivíduos

– sem esquecer seus aspectos recreativos – ou, para a construção de laços comunitários”

(MEYER, 2001:18). No Brasil, os almanaques distribuídos em farmácia coniguram um

72 tipo único, derivado dos almanaques europeus dirigidos aos camponeses, como o Pharol da

Medicina (1887), e são associados a laboratórios como Fontoura ou Kraemer.6 Além desses

dois tipos, mais notáveis, ainda existem os almanaques de cordel no nordeste (como o Juízo

do Ano), e aqueles produzidos com particular atenção à zona rural, como o Jeca Tatu, de

Monteiro Lobato.

Nesse trabalho, apesar da diversidade e particularidades dos almanaques no

Brasil, será analisado o subgênero que deu origem ao Almanaque Abril: os almanaques de

Atualidade, cuja herança editorial remonta a “antiga literatura dos almanaques urbanos

enciclopédicos”, porém publicados em um único e grande volume, por empresas jornalísticas

e, portanto, com textos bem mais enxutos que os de uma enciclopédia (PEREIRA, 2006). É

importante enfatizar, então, que apesar da idéia de “organização, classiicação e ordem” que

caracteriza as produções enciclopédicas (CHARTIER, 1999), os almanaques tendem a ser

mais dinâmicos devido a sua periodicidade anual e, no caso do Almanaque Abril, a sua

linguagem jornalística, o que o torna um produto destacado das enciclopédias (que também
5 Exposição sobre os almanaques brasileiros, organizada pela Fundação Memorial da América Latina e Unicamp, no Memorial

em 1999.

6 Para saber mais: PARK, Margareth B. Histórias e Leituras de Almanaques no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
publicavam volumes extras para a atualização da coleção), unindo uma retrospectiva do ano

que passou a um guia de generalidades7.

Em entrevista concedida à Pereira (2006), Celso Nucci8, explica que o AA “de certa

forma era um registro vivo da história contemporânea”. Tais características reforçam a

vocação do almanaque como publicação que relete o zeitgeist ou “espírito do tempo”, cujo

texto é aparentemente estável, mas como aponta Jerusa Ferreira (2001:19, grifo meu), ao

mesmo tempo:

uma conexão sempre móvel e atualizável, a depender dos públicos

leitores, das épocas e das direções que se impunha a este corpo diverso de

saberes. (...) Jogo, divertimento, informação pragmática, articulação de crenças e

ritos, e ainda a inserção de novos dados que podem parecer corpos estranhos, mas

que são exatamente aquilo que faz a especiicidade do almanaque, equilíbrio entre

um conjunto estabilizado e a inserção do novo.

Essa variedade de públicos leitores9, épocas e direções, izeram do almanaque um

gênero eclético, “suscetível de se adaptar a conteúdos e formas múltiplas” (PEREIRA, 2006),

na tentativa de ser cada vez mais uma obra periódica capaz de reletir o contemporâneo,

característica que revela sua importância. 73

No caso do Almanaque Abril, lançado para 1975 em dezembro de 1974, sua origem

foi a tradução e adaptação de he Oicial Associated Press Almanac10, publicado nos Estados

Unidos, cujos direitos de 1974 foram adquiridos pela editora brasileira. Uma reinvenção

do subgênero “urbano”, o Associated Press Almanac, vinha da tradição iniciada com o

conterrâneo World Almanac: and book of facts, de 1868. Tais obras, além de apresentar

estatísticas globais, tinham especial atenção aos dados referentes aos Estados Unidos.

Obras similares foram lançadas no mundo todo ao longo do século passado11. Na época do

7 Segundo Pereira (2006): “Esses ‘novos’ almanaques guardam alguns traços dos almanaques urbanos e enciclopédicos que

surgiram na França, no século XVIII, com a publicação do Almanach Royal e o Calendário de la Cour, ambos de 1700, destinados ao

público burguês e citadino. (...) Talvez a obra mais importante do subgênero de almanaques urbanos enciclopédicos tenha sido a obra

produzida na Alemanha denominada Almanach de Gotha, cujo primeiro exemplar data de 1763.”

8 Ex-diretor estratégico do Almanaque Abril durante parte da década de 1980 e 1990. Entrevista concedida em abril de 2002.

9 Encontrava-se, a partir do fim do século XVII, almanaques para todas as classes sociais, para todos os interesses e níveis

culturais (BRAIDA. Colportage et Lecture Populaire, 1996:200. apud PEREIRA, 2006).

10 “Successor to The New York Times Encyclopaedic Almanac. Maplewood, Hammond Almanac, Inc.” (Pereira, 2006).

Segundo Celso Nucci, em entrevista a Pereira (2006), em 2002.

11 Seguindo o mesmo modelo, na Inglaterra foi lançado o famoso Whitaker’s Almanak, em 1869.
lançamento, existiam obras similares ao Almanaque Abril no Brasil, como o Almanaque

Mundial (editado na América Latina desde 1954), o Almanaque Correio da Manhã e o

Almanaque Seleções: a enciclopédia compacta. Segundo Pereira (2006),

(...) na América Latina, essa tradição de almanaques, publicados por

empresas jornalísticas com vista a oferecer dados sobre todos os países do mundo,

instalou-se à medida que o processo de urbanização e industrialização ganhou

grandes dimensões, em parte, fruto dos novos rumos que a modernidade-mundo

tomou após a Segunda Guerra Mundial.

Essa idéia também é vista por Ferreira (2001:20) ao dizer que “o almanaque comporta

e nos traz sempre a idéia de uma grande modernidade. Até no modo de se conjugarem os

fragmentos e mais palavra-imagem-idéia (...).”

Transitando entre o instável (novos saberes) e o estável (conhecimentos “perpétuos”),

passado (preservação da memória) e presente (o ano que passou e as previsões do

futuro), entre a curiosidade (efêmera e popular) e o saber sedimentado (enciclopédico e

erudito) os almanaques revelam o potencial lexível de sua estrutura editorial. Esse caráter

“esquizofrênico” é identiicado por Pereira (2006) como uma das razões da força do

74 Almanaque Abril:

Ele não é, pois, somente herdeiro de uma forma editorial que permite

colocar tudo em seu interior, mas também de uma ambigüidade relativa à

desvantagem simbólica versus a vantagem editorial da forma almanaque, que

caracteriza os almanaques urbanos e enciclopédicos do século XVIII francês. Essa

ambigüidade perpassa toda a trajetória de produção do Almanaque [Abril].

Essa desvantagem simbólica, citada pelo autor, é o sentido pejorativo e popular,

do “saber de almanaques”, que seriam “conhecimentos fúteis”. Esse disseminado contexto

semântico de descrédito foi discutido pelos fundadores do Almanaque Abril, porém optou-

se pelo uso do termo almanaque, devido aos similares estado-unidenses (que estampavam

o nome da empresa jornalística como fonte de coniabilidade em uma obra de referência).

Mesmo assim, o sentido mais popular era sempre lembrado pelos leitores do AA, que ora se

manifestavam parabenizando a edição por “ser séria”, ora pediam piadas, charadas e palavras

cruzadas, típicas dos almanaques de farmácia (PEREIRA, 2006).


3.2 PANORAMA: PRÁTICAS EDITORIAIS – RUPTURAS E CONTINUIDADES
Neste tópico serão relacionados os momentos de ruptura e continuidade do

Almanaque Abril, derivados de práticas editoriais em contextos mercadológicos e

tecnológicos diferentes: tempos de crise e expansão, multimídias, mudanças de formato e

internet. Para isso, o histórico editorial, os releases de lançamento e os dados mercadológicos

mostrarão indícios das práticas: seus contextos e os resultados atingidos. Serão utilizados

trechos de entrevistas com antigos membros da equipe editorial– inclusive as realizadas

por Mateus Pereira à época de sua tese de doutorado – extraindo deles visões das práticas

editoriais durante a trajetória passada da publicação. Além disso, será empregada a técnica de

pesquisa em profundidade, pois tal método permite compreender fenômenos de abrangência

limitada, caracterizar a riqueza de um tema e saber como o acontecimento é percebido pelo

conjunto dos entrevistados, ou seja, é ideal para a análise de processos através de relatos de

interpretação e experiências (DUARTE; BARROS, 2005).

Os entrevistados da recente e da atual equipe editorial do Almanaque Abril foram:

Ricardo Lombardi (diretor de redação em 2007 e 2008), Fábio Volpe (diretor de redação

desde abril de 2009), Simone Bortolotto (atual assistente de redação e ex-coordenadora de

produção do CD-ROM) e Lucila Camargo (diretora de redação entre 1991 e 2000). Além 75
disso, um dos responsáveis pelo lançamento e desenvolvimento das primeiras edições do CD-

ROM, Abel Reis, também foi entrevistado. As entrevistas, do tipo aberta e não-estruturada,

foram realizadas a partir de um roteiro de controle, com poucas questões que procuraram

abordar a amplitude do tema, conforme as indicações de Duarte e Barros (2005:66):

(...) apresentando cada pergunta da forma mais aberta possível (...)

o pesquisador faz a primeira pergunta e explora ao máximo cada resposta até

esgotar a questão. Somente então passa para a segunda questão. (...) A entrevista é

conduzida, em grande medida, pelo entrevistado, valorizando seu conhecimento,

mas ajustada ao roteiro do pesquisador.

As questões partiram de momentos que relacionavam a publicação às dinâmicas

editoriais, tecnológicas e mercadológicas, também procurando identiicar possíveis fatores

que causaram a decadência e a retomada das vendas do Almanaque. Seus relatos permitem

compreender características das práticas editoriais que estão além de relatórios como o

Histórico Editorial, pois os entrevistados tendem a ser mais críticos em relação aos contextos e

às experiências vividas. Além disso, “saber como e por que as coisas acontecem é, muitas vezes,

mais útil do que obter precisão sobre o que está ocorrendo” (DUARTE; BARROS, 2005:64).
Para poder entender a publicação, é preciso inicialmente localizar sua origem e sua

missão dentro da casa editorial, que, segundo Fábio Volpe12, mantém-se a mesma desde seu

lançamento em 1974: “ser uma fonte de dados de referência”. Porém, cabe lembrar que essa

fonte de dados está ligada à lógica de self content provider da Editora Abril, que é a verdadeira

gênese do seu Almanaque: essa publicação surgiu para aproveitar os recursos informativos do

então recém-inaugurado Departamento de Documentação (DEDOC) – setor criado para dar

suporte ao lançamento da revista Veja. Porém, seu conteúdo e sua soisticada infra-estrutura

de arquivamento, deveriam também gerar lucros, por se tratar de uma “unidade de negócio”.

Para isso, Roberto Civita teria sugerido o lançamento de um almanaque, nos moldes norte-

americanos, que aproveitasse os recursos do DEDOC. Ou seja, seria lançada uma publicação

barata, dentro do foco “abriliano” de educação e cultura, que disseminasse a coniança na

marca Abril.

O prestígio do nome Abril foi construído a partir da metade do século XX, devido

às importantes publicações da editora, atingindo expressão nacional graças às vendas de

fascículos e revistas em milhares de bancas de jornal13; assim foram distribuídos e vendidos

milhares de produtos, com preço acessível e que tiveram forte ligação com a formação

76 intelectual da classe média, durante a ditadura militar. As atenções com a distribuição,

tradicional calcanhar de Aquiles das editoras no Brasil, deu lugar às preocupações com o

conteúdo editorial.

Em outras obras, como na enciclopédia Tudo (1977), o presidente-fundador da editora,

Victor Civita, apontava no editorial, estar contribuindo para a formação dos leitores modernos,

que seriam “pessoas apressadas que precisavam de informações atualizadas e sintéticas; (...)

[pois] para se manter atualizado, não adiantava ao leitor dispor de várias fontes de consultas.

Era necessário facilitar o acesso ao conhecimento de modo rápido” (PEREIRA, 2006, grifo

nosso). Esse discurso é mantido e reiterado ao longo dos slogans (“Fácil. Rápido. Atualizado.”)

e dos editoriais das 35 edições impressas do Almanaque Abril. Mesmo em tempos de internet,

com a concorrência do Google e da Wikipédia, a capacidade de seleção de seus editores –

atualizada, coniável e sintética – garantiria a rapidez no acesso à informação.

12 Entrevista concedida em 16/09/09

13 Esse canal de distribuição foi uma alternativa à escassez de livrarias no Brasil. Segundo Pereira (2006), em 1969, a Abril,

através da DINAP, tinha à sua disposição 12.000 pontos-de-venda contra 800 livrarias. Em 1996, tinha 23,9 mil pontos-de-venda, dos

quais 17,1 mil eram bancas de jornal, o que representava 98% do potencial consumidor brasileiro. Já em 2004, contava com mais de 30

mil pontos-de-venda, sendo 20 mil bancas de jornal e 14 mil canais “alternativos”, cobrindo 3,6 mil municípios do país. No final da década

de 1990, o Almanaque começou a ser vendidos em pontos-de-venda “de varejo” (livrarias, supermercados e lojas de conveniência).
Uma das maiores qualidades do Almanaque Abril, por exemplo, foi reunir e

condensar informações estatísticas sobre o País, que antes eram “dispersas e desarticuladas14”.

Já na primeira edição, todo conteúdo sobre o Brasil (40% da edição), foi produzido pela

editora, através do DEDOC15. Essa relevante contribuição também se realizou na versão em

CD-ROM, a primeira obra desse tipo de suporte, feita em português e para o Brasil. Apesar

disso, o sucesso do AA deu-se mais pela infra-estrutura da editora (com gráica e distribuidora

própria, além de forte departamento publicitário) do que apenas pelas suas qualidades

editoriais, conforme lembra Hallewell (1985:568 apud PEREIRA, 2006, grifo nosso):

Em meados dos anos 1970, a Editora Abril era a maior editora da

América Latina, sendo responsável pela publicação de cerca de oitenta periódicos

no mercado brasileiro. Dada a facilidade de contar com uma estrutura editorial

desta magnitude, o Almanaque tornou-se, em pouco tempo, um sucesso de vendas

e um importante bem simbólico da editora16.

Outra característica da Editora Abril, que deve ser considerada, é a tentativa

de ocupar todos os nichos ou segmentos editoriais, em especial, nos seus momentos de

expansão. Para isso, Victor Civita (1973 apud PEREIRA, 2006, grifo nosso) chamava a

atenção ao uso da intuição do editor como método de inovação e experimentação na


77
Indústria Editorial:

(...) em termos práticos, o resultado é que a editora não é uma grande

empresa, mas a soma de muitas pequenas empresas, que têm as vantagens e

desvantagens de pertencer a uma grande empresa. (…). Segundo item: disposição

para tentar coisas novas. Esta é uma vantagem de uma empresa grande. Nós

tentamos. Sistematicamente, dezenas de coisas por ano que ninguém em sã

consciência, ninguém responsável, ninguém lúcido faria se a sua sobrevivência

dependesse do sucesso de qualquer uma delas, porque nós sabemos, por

experiência, por bom senso, e também por “chutômetro” que uma parte dessas

coisas vai dar certo e outras não. A nossa preocupação, que vem a ser o terceiro

item, é uma preocupação constante com a deinição precisa da personalidade e

do mercado de cada publicação. De vez em quando, a gente consegue identiicar

um mercado novo, uma área nova onde falta uma publicação. Ás vezes a gente faz

uma pesquisa, outras vezes a gente sai com a cara e a coragem para ver se existe

mesmo esse mercado17.

14 Segundo Celso Nucci, em entrevista a Pereira (2006), em 2002.

15 A partir de 1983, a publicação passa a ter redação própria no núcleo Guias.

16 HALLEWELL, L. O Livro no Brasil – sua História. São Paulo: T.A. Queiroz, Universidade de São Paulo, 1985.

17 CIVITA. V. A Conquista de Novos Leitores pela Editora Abril, 01/02/1973. (Mimeo).


Além de tentar descobrir novos nichos e lançar novas publicações, a qualidade do

produto também era constantemente avaliada, primeiramente em termos jornalísticos, e, no

meio da década de 1990, em termos de design e legibilidade. Até 1996, por exemplo, o papel

jornal era empregado no Almanaque, cujo tamanho (15 cm x 23,5 cm) foi mantido até 2001.

A partir de então se inicia uma série de alterações no design e no formato da publicação, que

por seis anos tentou encontrar um ponto de equilíbrio entre o barateamento dos custos e “o

apelo de novidade” para o crescimento das vendas. Como obra de referência, o AA passou

por dois momentos de renovação em seu conteúdo: a padronização da escrita (teor de obra

coletiva) e o enxugamento dos textos para uma linguagem mais sintética e que pudesse

aumentar a legibilidade (tamanho das letras). Esse segundo momento resultou em uma

diminuição da quantidade de informações, em seu sentido absoluto, e tornou o número ixo

de páginas um desaio anual para os redatores, pois as informações aumentam, mas o volume

da obra não, o que obriga a reformulações anuais nas estruturas e capítulos mais maleáveis

da publicação. Conforme Fábio Volpe, atual diretor de redação do AA, esse problema não

aconteceria se o almanaque estivesse na internet, portanto as reestruturações do conteúdo

impresso são intensas, baseadas na pertinência de um determinado assunto no momento da

edição. Volpe airma, por exemplo, que o tema “religiões” será realocado como um subitem
78
de “sociedade” para a próxima edição (2010). Apesar das mudanças, Pereira (2006), identiica

uma estrutura básica, nos assuntos abordados pelo Almanaque Abril, divida em quatro

grandes áreas: Retrospectiva do ano anterior, Brasil, Mundo, e Conhecimentos Gerais.

Na forma de organização do conteúdo, o Almanaque se apresentou quase sempre

em um volume, composto por capítulos temáticos e um mini-atlas (apresentando dados

comparativos entre o Brasil e o Mundo). Porém nos anos de 2001 a 2003, ele foi dividido em

dois volumes (justamente Brasil e Mundo), apresentando também um guia de cidadania e um

“almanaque de esportes” em 2005 e 2006. Esse formato. em dois ou mais volumes, foi uma

“aposta editorial” que procurou diminuir o tamanho do almanaque, pois, segundo Simone

Bortolotto18, tinha-se a idéia de que o produto deveria ser portátil a ponto de “caber na bolsa”.

Outra alteração importante foi a divisão em ordem alfabética entre as edições de 1996 e 1998,

o que se revelou bastante impopular. Porém, essas mudanças reletem a preocupação com

o sistema de organização, uma tentativa de melhorar a busca do leitor por uma informação

especíica. É possível identiicar três momentos de “transformação editorial” no AA,

conforme avaliado por Pereira (2006): o primeiro, entre 1975 e 1985, “foi marcado por uma
18 Entrevista concedida em 16/09/09.
certa padronização das capas, lombadas e por poucas mudanças de conteúdos”. O segundo

momento, entre 1985 e 1995, revelou uma preocupação com a linguagem jornalística, e

atualização constante dos textos, que deveriam ser ainda mais enxutos e sobretudo didáticos,

com o uso maior de imagens. Nesse período, o Almanaque já gozava de reputação e

credibilidade suicientes, tornando-se até uma expressão cotidiana (“procure no Almanaque

Abril”).

Reletindo as características de publicação ágil, precisa e com capacidade de atualizar-

se, em 1994, foi lançada a versão em CD-ROM, dentro da lógica da empresa em investir

nas novas tecnologias comunicacionais. Sobre a publicação multimídia, cuja trajetória será

discutida no próximo tópico, Pereira (2006, grifo nosso) aponta um interessante fenômeno:

Progressivamente, a edição eletrônica interfere na publicação impressa

de duas formas. Por um lado, levando a um encurtamento dos textos da versão

impressa para que eles pudessem ser aproveitados na versão eletrônica, uma vez

que se supunha que textos longos não eram lidos em tela. Por outro lado, a versão

eletrônica começou a conter determinadas informações que a versão impressa

tratava de forma resumida ou simplesmente não mencionava. Ela apresentava

mais informações que a versão impressa. Um artigo sobre o CD-ROM do

Almanaque airmava que esse outro suporte continha 25% a mais de dados que a 79
versão impressa e possibilitava ao leitor utilizar vídeos, sons e imagens. Percebe-se,

novamente, a tentativa de distinguir o Almanaque das enciclopédias tradicionais,

em que esse processo ocorria de maneira inversa: “Com as enciclopédias ocorre

o contrário. As versões em CD são mais baratas, mas normalmente têm textos

1994 menos completos que as impressas.”19

Em um terceiro momento (a partir

de 1996), o Almanaque Abril mudou o

target da publicação, do público geral, para o

público jovem. Essa estratégia intensiicou-

se com a mudança de núcleo do Almanaque:

de Cultura para Jovem, o que revela um

reposicionamento de marketing, em particular,

para o Guia do Estudante e seus especiais

(publicações atreladas ao Almanaque Abril),

possibilitando um foco publicitário mais

19 Jornal da Tarde, 21/07/1994, p. 07


deinido, conforme relata Fábio Volpe. Outra notável diferença desse momento é a preocupação

com a qualidade gráica, no uso de papel superior e na abundância de imagens e cores, além do

“rejuvenescimento” através do design gráico e dos infográicos, muito valorizados dentro do

núcleo, como aponta Volpe. As seções associadas tradicionalmente aos almanaques, como os

calendários e curiosidades foram perdendo espaço, mas não desapareceram. A intenção, desde

1996, era transformar o AA em uma fonte de pesquisas escolares por excelência, que atendesse

alunos do ensino médio e fundamental, porém – segundo Lucila Camargo20 – “sem perder
a perspectiva de atender outros públicos, tais como jornalistas, empresários, professores [e

curiosos]”. A versão eletrônica do Almanaque Abril, em CD-ROM, e a difusão da internet, da

TV a cabo e outras tecnologias inluenciaram diretamente os rumos da publicação impressa;

a partir da edição de 1996, tais modiicações, conforme acredita Pereira (2006), “tinham o

objetivo de atrair ou focar a obra no público jovem ou estudantil”. Desse modo, o autor lembra

que o slogan “uma enciclopédia de um só volume” passa a ser “a sua fonte de pesquisa”.

Com a multiplicidade das mídias, cada vez mais a coniabilidade das informações e sua

seleção foram valorizadas pelos diretores editoriais do AA. A equipe de redação, formada por

jornalistas, revisores e consultores, seleciona e conirma, entre uma ininidade de dados, os mais

80 pertinentes para o momento (indicando também onde saber mais sobre os temas tratados).

Foi possível comprovar essa busca pelo conteúdo relevante e atualizado, no dia da entrevista

com Fábio Volpe e Simone Bortolotto, quando não só os jornalistas acessavam conteúdos pela

internet como, de fato, estavam lendo os jornais do dia durante o expediente21. Essa seria, então,

uma das principais vantagens da publicação: a capacidade de reunir e editar, em linguagem

acessível, somente “o que interessa”, em meio à diversidade e à desordem de informações das

múltiplas mídias. Pereira (2006, grifo nosso), também percebe tal direcionamento:

Em um momento em que as pesquisas via Internet foram se

consolidando, as funções do Almanaque Abril se transformaram. Para

se adaptar a essa nova realidade, o periódico procurou ser o livro capaz de

sistematizar o conhecimento atualizado difundido pelos diversos meios de

comunicação. Os protocolos e as imagens vinculadas ao Almanaque pretenderam

fazer o leitor acreditar que a publicação continha os elementos essenciais para a

compreensão do tempo presente.

20 Entrevista concedida a Mateus Pereira (2006) em maio de 2002.

21 Essa prática não é sistemática nas redações de revistas. Na experiência de estágio que tive, entre 2006 e 2008, nas

editoras Globo e Abril, os jornais sempre estiveram a disposição, mas poucos os liam.
Com esse teor de contemporaneidade, a trajetória do Almanaque foi permeada por

mudanças mercadológicas e tecnológicas. Em 1996, quando mudou o público-alvo, a decisão

foi, segundo o Histórico Editorial, resultado de uma “discussão com a diretoria editorial”.

Segundo Márcia Tonello22, foram “decisões editoriais externas à redação”, pois se descobriu
que aproximadamente 60% dos leitores seriam estudantes e professores e 20%, pessoas

“ligadas à cultura enciclopédica”. Porém mesmo com o esforço de redirecionamento do

público, essa “minoria enciclopédica” se mantém iel à publicação até hoje. Fábio Volpe airma

que, na comunidade do Almanaque Abril no Orkut, os leitores estão mais preocupados em

demonstrar seus conhecimentos apontando incorreções no conteúdo do que em sugerir

alterações estruturais ou editoriais. Desse modo, revela-se também o grau de relacionamento

da publicação com o leitor, que seria mais distante em comparação a outros títulos da casa,

como a Mundo Estranho, onde leitores são convidados a interagir na pauta e na avaliação da

revista, através de comunicadores instantâneos. Porém, quando alterações estruturais são

realizadas, os leitores se manifestam, em geral rejeitando-as, através de emails espontâneos ou

pelas cartas-respostas, quando a Abril ainda usava essa ferramenta de feedback23.

No estudo das cartas enviadas pelos leitores à redação do AA, Pereira (2006)

identiicou alguns grupos, como os que elogiavam e agradeciam a publicação por possibilitar 81
a formação deles e os que criticavam a edição, por serem colecionadores ou “preciosistas”,

fazendo comparações entre edições ou com outras obras. No entanto, o autor airma que

As cartas indicando erros e sugestões, quase em co-autoria, indicam que

esse é o meio utilizado pelo leitor cujo im é a procura do controle de um tipo de

interação em que a interlocução é pequena, em que praticamente há uma ausência

de reciprocidade.

Porém, o próprio Almanaque airma, em seus prefácios ou em relatos da equipe, que

foram graças a essas manifestações que a publicação abandonou a ordem alfabética voltando

para a temática, em 1999; manteve as tabelas de índices demográicos correlacionados;

e mudou a data de lançamento para o início do ano em 1991, por exemplo. Essa última

mudança, segundo Pereira (2006), possibilitou que a edição cobrisse todo o ano civil que

passou; além de, ao deixar de ser lançada no inal do ano (onde um público mais amplo

poderia adquirir a obra), passou a adotar o início do ano letivo, encaminhando-se assim para

o público escolar.
22 Entrevista a Pereira (2006) em janeiro de 2002.

23 O Histórico Editorial aponta 1993 como o ano com mais retorno de cartas-respostas dos leitores: 20 mil.
Hoje, o direcionamento do AA para o público jovem é ainda mais acentuado e

perseguido, devido especialmente ao sucesso do Guia do Estudante24 como podemos notar no

release do site do Núcleo Jovem: “junto com a família de publicações do Guia do Estudante,

o Almanaque Abril auxilia alunos em fase de vestibular e professores que buscam formas

diferenciadas de abordarem temas diversos em sala de aula”25. Através dessa “submissão

mercadológica” do Almanaque Abril ao Guia do Estudante percebe-se a diiculdade de

posicionamento do primeiro, justamente por não conseguir focar com precisão ou mesmo

identiicar quem seja seu leitor para os anunciantes (mercado publicitário).

Esse estudo de caso tem especial interesse nas “pressões de mercado”, como as

apontadas acima, responsáveis pela mudança do target da publicação. Além disso, a própria

“ilosoia editorial” provoca alterações na obra, na medida em que ela vende não apenas pela

pertinência social do título, mas também pelo seu caráter de novidade, que faz com que os

leitores a comprem anualmente. Essas duas características, segundo Lauro Machado Coelho26,

seriam decisivas para a renovação do título, que teria “um público iel” e outro “lutuante”.

Segundo o jornalista, que trabalhou no AA de 1974 a 1994, outros almanaques brasileiros

similares, como o Bertrand e o Seleções “morreram porque não se renovavam”. Era preciso

82 então, “mudar para valer (...) [com um] conteúdo renovável considerável para justiicar que o

leitor compre sempre”. No entanto, ele airma que graças ao público iel do AA, a publicação

pôde resistir, “ainda que à custa de muitos sacrifícios, como cortar em um ano radicalmente o

número de páginas por uma decisão comercial”. Mudanças como essa também aconteceram,

por exemplo, em 1999, quando, apesar de introduzir o uso de marcadores laterais (que

permanece até hoje), a publicação voltou a ser impressa em preto e branco, e com papel inferior

à edição anterior. Esse momento – tido como uma “regressão” na qualidade editorial – foi uma

tentativa de cortar custos de produção em uma situação de crise27. O Histórico Editorial revela

que o borderô da edição de 1999 foi reduzido em 50%, uma editora foi demitida e “do ponto de

vista editorial, a discussão foi intensa e envolveu a revisão de conteúdo, enfoque e linguagem

da publicação”. O resultado dessa edição, mais barata e de pior qualidade gráica, foi um baixo
24 Subproduto do Almanaque Abril, ganhou redação própria em 1986. Conforme Volpe, o Especial Atualidades do Guia do

Estudante é vendido também para o Governo do Estado de São Paulo, que os distribui aos 500 mil alunos do 3º ano do ensino médio,

com fins pré-vestibulares.

25 Núcleo Jovem – Almanaque Abril (www.njovem.com.br/marca_almanaque.asp), acessado em 07/07/09, grifo nosso.

26 Entrevista a Pereira (2006) em janeiro de 2002.

27 A Editora Abril, em 1998 passou por uma reestruturação grande, devido à desaceleração econômica no País (na chamada

“crise cambial”) e também às dividas concebidas e atreladas ao dólar – uma das principais foi a compra do edifício-sede, na marginal

Pinheiros.
desempenho comercial: 96 mil exemplares, sendo que no ano anterior havia sido 130 mil.

Pela primeira vez, desde 1980, o AA vendia abaixo do patamar de 100 mil unidades vendidas.

Todas essas mudanças e tentativas de manter as vendas da publicação em um

momento de crise reletem o mercado editorial que, em especial no Brasil, é saturado. As

editoras que tem a banca de jornal como canal de distribuição estão no cenário mais acirrado

da competição. Portanto, para conseguir chamar a atenção dos consumidores nesse mercado,

a empresa tende a mudar seu foco em vendas (sales oriented) para se tornar marketing

oriented (ou seja, deve pensar a cadeia produtiva do começo ao im, com a assessoria das

estratégias de marketing). É nesse contexto que o marketing, seus estudos e estratégias,

tornam-se importantes, pois é dele “(...) a função de escolher que coisa vender, a quem

vender e como, programando as ações seguintes em termos de planiicação, realização,

coordenação e controle”,conforme a deinição de Cavalli (1999:12). Ainda segundo esse autor,

uma empresa atenta ao mercado, então, seria “capaz de identiicar e entender os desejos dos

consumidores, satisfazendo-os do melhor modo e no tempo oportuno” (CAVALLI, 1999:22).

Contudo, devido à falta de investimentos das editoras na área de marketing, não

apenas no Brasil, os diretores editoriais têm de usar o tradicional “chutômetro” na tentativa de


83
reposicionar a publicação e vender mais. No caso do Almanaque Abril, a tática se apresenta

no intuito de “estancar a queda nas vendas”, o que, como argumenta Volpe “em tempos

de internet acessível, já é uma grande vitória”. A partir do declínio das vendas em 1999, a

publicação impressa tenta retomar o patamar acima de 100 mil unidades vendidas. Para

isso, de 2000 a 2007, segue-se uma série de mudanças radicais no formato das edições. Em

2000, a edição antecipa seu lançamento para janeiro e é divida em dois volumes como dito

anteriormente28. Já em 2002, resolve-se por outro formato, com qualidade gráica superior e

preço mais elevado, o que, junto com o corte na divulgação do produto, trouxe um resultado

em vendas abaixo do esperado (90 mil exemplares). Em 2003, o lançamento volta a ser em

fevereiro, coincidindo com o início do ano letivo29.

28 A publicação foi dividida entre “Brasil” e “Mundo”, e podia ser vendida separada ou junta (com desconto). Além do fato de

cortar custos e ser portátil, conforme afirmado por Simone Bortolotto, a divisão provocou uma diminuição no número de informações,

pois o volume Mundo apresentava mais dados do que o formato e o número de páginas suportavam. Segundo o Histórico Editorial,

“desenvolveu-se paralelamente um estudo visando aumentar a exposição nas bancas”. Na época, o uso de cartas-resposta, que não

foi feito nas últimas edições do AA, revelou a aprovação dos leitores acerca da divisão em dois volumes. Em 2001, ela foi mantida com

a adição de um terceiro volume: o Guia da Cidadania, inseridos em uma grande caixa, com a expressão “Edição do Milênio”. Bortolotto

relata que “a caixa era grande e, ao contrário de seu intuito, se camuflava entre as outras coisas da banca de jornal”.

29 O lançamento nesta data lembra o poder do mercado didático no Brasil.


A data de lançamento, a qualidade gráica (que pode elevar custos), a divulgação e a

publicidade do Almanaque são geralmente apontadas pelo Histórico Editorial como fatores-

chave para o sucesso ou o fracasso da edição, esses são então pontos críticos recorrentes.

Observando os dados de vendas e a data da publicação (tabela 1), de fato pode-se inferir que

essas são as estratégias do marketing mix mais observadas pela Editora Abril, na tentativa de

retomar o desempenho comercial. O segundo ponto que cada vez mais se revela prioritário

é a redução dos custos, pois a publicação agora estabilizada no volume de vendas (depois da

edição de 2007, como será discutido), procura aumentar a margem de lucro através de cortes

nos custos da produção, enquanto busca um modelo de negócios alternativo ao impresso,

conforme será visto adiante.

TABELA 1 – DESEMPENHO EM VENDAS, DECISÕES EDITORIAIS E MERCADOLÓGICAS

Desempenho Data de
Edição
em vendas lançamento

1975 67 mil 12/1974

1976 92 mil 11/1975

1977 96 mil 11/1976


84
1978 90 mil 11/1977

1979 94 mil 12/1978

1980 100 mil 12/1979

1981 118 mil 12/1980

1982 189 mil 12/1981

1983 168 mil 12/1982

1984 120 mil 12/1983

1985 105 mil 11/1984

1990 164 mil 10/1989


Mudança da data
1991 160 mil 02/1991 de lançamento para
coincidir com ano letivo
e cobrir todo o ano civil
1992 110 mil 02/1992
anterior.
1993 120 mil 02/1993
Lançamento AA em CD-ROM
em maio/1994 1994 110 mil 02/1994

1995 160 mil 02/1995 Mudança de target:


de geral para jovens
1996 106,3 mil 02/1996 estudantes. Foco na
atualidade, menos
enciclopédico
1997 125,4 mil 02/1997 Redução de 128 páginas.

Lançamento 1998 130 mil 02/1998


coincide com o CD-
ROM, não com o ano 1999 96 mil 03/1999 Lançamento
letivo. Qualidade adiantado, divisão
gráica piora. 2000 125 mil 01/2000 em dois volumes.
Box “do milênio”,
2001 117 mil 12/2000 com CD-ROM junto.
Qualidade gráica
melhor aumenta preço 2002 90 mil 01/2002
do produto, corte de
verbas na divulgação. 2003 - 02/2003
Não coincide com o
início do ano letivo. 2004 54 mil -
Início da queda nas Último ano do CD-ROM:
vendas. 2005 47 mil - vendido como brinde da
versão impressa.
2006 49 mil -
Redesign do formato
2007 55 mil - aumenta o tamanho
e deixa a edição mais
Retoma 16% das 2008 57 mil 01/2008 chamativa e clean:
vendas em relação “estabilização”.
a 2006. 2009 Proj. 57 mil -

Fonte: Redação do Almanaque Abril, Máquina da Memória e Histórico Editorial

Segundo Márcia Tonello, as mudanças como vistas na tabela 1 foram decorrência


da “diiculdade de se obter maiores informações, mais seguras, sobre qual deveria ser de 85
fato o formato da publicação. (...). Tudo funciona muito na base da intuição”. Esse método

intuitivo do editor também é apontado por Volpe, que ainda avalia a participação do setor

de marketing como assessória30, pois eles dariam apenas “subsídios às decisões editoriais”,
como por exemplo, orçar a mudança no formato da publicação. Conforme Simone Bortolloto,

as sucessivas mudanças nos formatos foram feitas para melhorar os custos de produção, e

quando radicais, eram “acompanhadas de perto” pelo setor de marketing. Pode-se entender,

então, que a atuação especializada do marketing editorial, acontece posteriormente ao feeling

do editor, pois, segundo Volpe, não há pesquisas de mercado devido às verbas restritas do

borderô. O redesign da publicação, em 2007 (de dois volumes para apenas um), manteve o

preço anterior e resultou em um livro de 732 páginas, tamanho maior (18 cm x 25 cm),

totalmente colorido. Tal transformação partiu da própria redação do AA e conseguiu um

crescimento em vendas de 12% em relação ao ano anterior. O formato mostrou-se mais

visível em banca de jornal e comparado com a última edição em dois volumes (de 2006),

30 Volpe diz que as campanhas de lançamento da publicação, apesar de serem do setor de marketing (incluindo material para

ponto-de-venda, os raros filmes na TV e anúncios em geral) são sempre aprovadas pela redação.
desempenhou um crescimento de 16% em vendas, em 2008. Segundo Ricardo Lombardi31,

então diretor de redação do AA, o tamanho maior e a capa mais clean, foram os fatores

que izeram a edição de 2007 se destacar nos pontos-de-venda. O formato foi repetido em

2008, 2009 e será mantido na edição de 2010. Entre essas edições, apenas a cor da capa e a

quantidade de temas foram modiicadas.

“Em time que está ganhando não se mexe”, diz Fábio Volpe, justiicando a busca por

um formato que estagnasse a sucessiva decadência em vendas da publicação. Porém, para

Márcia Tonello32, a força do Almanaque deveria estar na reunião de informações e não em


mudanças bruscas. Ela identiica a existência do público lutuante (um público “que muda

muito”) como uma das variáveis que diicultam o posicionamento da obra no mercado.

Essa é, segundo Volpe, a principal diiculdade encontrada pelo “marketing publicitário” no

momento da venda de anúncios para o Almanaque. Hoje, a aproximação com o leitor se faz

por meio de algumas “ações esporádicas”. Uma delas é a pesquisa de opinião realizada na

edição de 2008 (tabela 2), que convida o leitor a responder um Quiz de curiosidades, cujas

respostas poderiam ser encontradas no AA (porém, era preciso responder pela internet, em

um hot site). Com essa ação, conforme relata Fábio Volpe, aproximadamente 10500 leitores

86 responderam as questões, formando um considerável peril do atual público do Almanaque,

que seria então formado por jovens adultos (e não por pré-vestibulares) em sua maioria.

TABELA 2 – ÚLTIMA PESQUISA DE PÚBLICO-LEITOR FEITA PELO ALMANAQUE ABRIL (2008)


Porcentagem dos
Faixa etária
que responderam

Até 20 anos 5%

20-30 anos 40%

acima de 50 anos 15%

Fonte: redação Almanaque Abril

Nesta pesquisa, entre outras questões, perguntou-se se o leitor gostaria de ter

uma versão do AA disponível na internet. A maioria esmagadora, 90% dos pesquisados,

mostrou-se favorável. Porém, não foi perguntado até quanto eles estariam dispostos a pagar

pelo serviço, o que seria uma questão essencial para a publicação que busca um modelo de

negócios para transpor-se à internet (como será abordado no próximo tópico).

31 Entrevista com a autora realizada em 02/09/08.

32 Entrevista a Pereira (2006) em janeiro de 2002.


A partir de 2002, sem encontrar uma saída economicamente viável para a web,

a publicação procura justiicar sistematicamente o seu valor através da credibilidade. O

tratamento das informações33, que são selecionadas em fontes primárias, oiciais e coniáveis,

ainda é, segundo Volpe, o principal diferencial do Almanaque Abril. Ele lembra a diiculdade

de se conseguir informações rapidamente nos sites oiciais do IBGE e do MEC34 que, apesar

de serem completos, apresentam dados brutos, isto é, não-tratados: “a informação está

dissipada e até para um internauta experiente é difícil de acessar”. O fator credibilidade se

torna, então, recorrente e prioritário para o Almanaque, também por ele ser uma publicação

de caráter jornalístico (feito por uma empresa jornalística) – o que no caso de uma

enciclopédia, não seria tão necessário, pois ela se “auto-valida”, através do argumento das

autoridades que a redigem (em geral especialistas).

Conforme dito anteriormente, existem dois aspectos que distinguem o Almanaque

Abril das enciclopédias: sua linguagem jornalística – que segundo Pereira (2006) foi

construída no cruzamento entre o discurso jornalístico, o saber acadêmico e o saber

escolar – e a atualização anual, ou seja, a periodização. Essa última característica confere ao

Almanaque poderes de reavaliar-se em ciclos breves (anuais), e promover alterações radicais,

pois a publicação é lexível e permite certa experimentação (as rupturas e as continuidades), 87


conforme o espírito do tempo presente e na tentativa de aumentar a margem de lucro do

negócio.

É importante ressaltar que o Almanaque Abril é a única publicação da editora a levar

seu nome. Além disso, ela é, segundo Volpe, “uma marca histórica, pois foi lançada pelo

fundador da editora, e por isso é muito estimada pela corporação”. Como a força do nome

Abril é valorizada internamente, o diretor da redação percebe que os investimentos de risco

se justiicam na tentativa de “salvar a publicação”. Como dito, o próprio nome da empresa,

já indicaria o prestígio do título, que inspiraria coniança e qualidade aos leitores, fruto dos

valores construídos sobre a imagem da Editora Abril (em especial devido à revista Veja e

as publicações da Abril Cultural). Além disso, a compra periódica de fascículos e revistas,

tradicional forma de comercialização dos produtos da editora, gera uma idelização efetiva

com o leitor, pois esse se relaciona com a marca repetidas vezes durante o ano, tornando seu

33 Segundo Volpe, todos os capítulos são revisados anualmente. Apesar de relatórios e banco de dados internacionais e ofici-

ais serem comprados para o AA, uma parte do conteúdo, em especial o mais jornalístico, é fruto de matérias e infográficos reaproveita-

dos de outras publicações da casa.

34 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Ministério da Educação, respectivamente.


consumo um hábito. Porém, apesar da consideração interna da publicação, os investimentos

em divulgação (como ilmes na TV) são escassos, deixando de atingir potenciais leitores.

Segundo Celso Nucci, “as variações de orientação na condução do Almanaque Abril são fruto

dessas tentativas de posicioná-lo para vender mais. [Porém] poucas deram certo”.

Para divulgar o Almanaque Abril 2008, a editora utilizou mídias como rádio, internet

e metrô. Louise Faleiros, gerente de Publicações, na época avaliou positivamente as vendas do

Almanaque, relacionando-as com as qualidades do novo formato do impresso35:

No ano passado, conseguimos um crescimento de 12% em relação

a 2006, um ótimo resultado se levarmos em conta que o título passou por

diiculdades no início dos anos 2000, com a evolução da internet. Na edição

passada, o Almanaque icou maior. Isso o deixou mais atraente e fez com que

tivesse uma melhor exposição nos pontos-de-venda, porém, dessa vez, usamos

uma cor especial na capa, o amarelo, para torná-lo diferente.

Através do descrito processo de posicionamento da publicação no mercado, é

possível perceber as diiculdades que a edição impressa enfrentou em diferentes contextos

tecnológicos e editoriais. No próximo tópico, no entanto, será oferecida uma visão mais

88 centralizada sobre a versão eletrônica do Almanaque Abril, em CD-ROM. Desse modo,

será apresentado o relacionamento entre as edições impressa e eletrônica, além dos desaios

impostos a essa editora tradicional pelo pioneirismo digital.

3.3 RETROSPECTIVA: ALMANAQUE ABRIL EM CD-ROM


Na análise da trajetória do Almanaque Abril, como parte do catálogo da editora, é

possível identiicar momentos de crise e expansão. Se a editora não está passando por uma

conjuntura de crise – que exige medidas de segurança, como downsizing, abandono de canais

de venda, concentração, cessão de partes e reposicionamentos – então ela tende a perseguir

uma estratégia ofensiva, na tentativa de dominar o mercado e crescer. Nesse sentido, a Editora

Abril também tem o desejo de expandir-se em tempos de economia forte e otimismo. Essa

vontade dá vazão a períodos mais inovativos e experimentais, quando novos nichos e produtos

são explorados. Alberto Abruzzese (2003: X) sintetiza essa capacidade de perceber tendências e
inovar, na igura do grande empreendedor, “capaz de aventurar-se em novos territórios, entrar

em projetos de riscos: (...) é preciso saber escolher e ter a intenção de fazê-los”.

35 Release da intranet da Editora Abril, acessado em 15/01/08, grifo nosso.


Para tal empreendimento, existem algumas estratégias usadas para a expansão do

mercado: intensiicação (desenvolvimento de mercado), diversiicação (busca por novos

mercados) e integração (domínio do mercado), conforme o quadro abaixo (CAVALLI,

1999:47):

PRODUTO ATUAL PRODUTO NOVO

MERCADO Desenvolvimento
Domínio do mercado
ATUAL do produto

MERCADO Desenvolvimento do
Diversiicação
NOVO mercado

A busca por novos produtos é feita geralmente em grandes feiras, como a de

Frankfurt, para livros, ou através de benchmarking em mercados similares, como, por

exemplo, o mercado de revistas na Inglaterra, cuja saturação é parecida com a brasileira.

Procurar produtos de sucesso em ambientes semelhantes é uma estratégia usual no

momento de investir em novos lançamentos. Entre as grandes editoras, como a Abril, existe

um trabalho sistemático e preventivo de pesquisa de bons títulos editoriais nos mercados


89
estrangeiros.

Porém, o caso do Almanaque Abril em CD-ROM foi atípico, pois houve a

identiicação de um novo produto e sua sugestão à editora através da proposta de uma

empresa externa, ou seja, outra empresa detectou e sugeriu uma oportunidade à Abril, na

condição de uma parceria para a realização do produto. Segundo Lucila Camargo36, “cariocas

trouxeram, em 1993, um CD-ROM americano que poderia servir de modelo para um similar

brasileiro, usando o teor enciclopédico do Almanaque Abril”. Ela se refere à empresa ATR

Multimedia, que desenvolvia CD-ROMs promocionais e institucionais para empresas (como

por exemplo relatórios anuais). Um de seus coordenadores, Abel Reis – atualmente presidente

da AgenciaClick37 – airma que, no inal de 1992, a empresa conheceu a enciclopédia Encarta,

da Microsot, e pretendia lançar algo similar no Brasil, devido à esmerada produção da obra

para os padrões da época. Porém, sem recursos (verbas e conteúdos), ofereceram o projeto

à Editora Abril. A então responsável pelo setor de New Media, Fátima Ali, aceitou o desaio,

reiterando a sua trajetória empreendedora (ela havia implantado anos antes, e com sucesso, a

36 Entrevista concedida a autora em 24/07/09.

37 Agência de Publicidade especializada em novas mídias. Entrevista realizada em 16/10/09.


revista Nova e a MTV Brasil)38. A parceria entre a ATR e a Abril durou três edições em CD-

ROM, de 1994 a 1996. Além disso, outras publicações foram realizadas, entre elas CD-ROMs

para a revista Exame e Playboy (a primeira versão eletrônica da revista, no mundo todo).

Ainda em 1993, a o CD-ROM do Almanaque Abril começou a ser produzido

paralelamente pela redação e pela ATR Multimedia, apostando em um novo mercado, e com

o marketing mix consolidado pela Abril. Porém, realizar o primeiro CD-ROM comercial do

Brasil foi, conforme Lucila Camargo, um processo que trouxe “muita novidade, demorando

mais tempo do que inicialmente se imaginou”. Essa visão é reforçada por Abel Reis, para

quem o projeto tinha as características de “experimento de ponta, vanguardista – como foi o

caso da MTV – e que gerou um processo de aprendizagem para todos: a equipe de redação

do impresso, por exemplo, tinha de fazer o que fazia antes e aprender coisas novas”.

Um dos primeiros desaios foi a migração dos conteúdos existentes para o formato

do CD-ROM. Era preciso, além dos textos e imagens da publicação impressa, enriquecê-lo

ao máximo com conteúdos multimídia (“era um desejo de todos da equipe e principalmente

dos leitores”). Novos conteúdos tiveram de ser comprados especialmente para o Almanaque

em CD-ROM, o que, para Abel Reis, assinala um dos principais problemas da editora:
90
construir um ativo em som e imagem, nativos do meio digital, mas não da Editora Abril.

A construção desse banco, que exige outro tipo de edição e armazenamento, é vista por Abel

como um dos motivos da diiculdade de adaptação da editora às mídias digitais. Além disso,

“um projeto mais rico em conteúdo torna mais complexo o processo de edição, passando a

ser, então, uma questão comercial e editorial (quanto mais se quisesse enriquecer, mais caro

icava o produto multimídia)”.

O desconhecimento da rotina e do fazer técnico entre a equipe de Abel e da redação


do Almanaque era mútuo: “nós não conhecíamos o cotidiano do editorial enquanto eles não

conheciam o potencial da técnica. Foi um processo pacíico, mas com fricções naturais, pois

o pessoal editorial pensava muito no print. Foi uma dinâmica de descoberta, acaso e fricção”.

38 Cláudia Costin lembra as realizações de Fátima Ali, identificando tal perfil empreendedor: “Além do muito que fez para

ampliar e aprimorar as atividades da Fundação Victor Civita, nunca é demais lembrar que muitas das coisas pioneiras da Abril foram

tocadas por ela e sua incansável capacidade de executar brilhantemente sempre com o olho no futuro. A revista Nova, a MTV, a área

de New Media e o primeiro Almanaque em CD-ROM do mercado brasileiro são alguns desses exemplos”. Em Cláudia Costin assume

vice-presidência da Fundação Victor Civita (04/07/2005). Disponível em http://www.abril.com.br/br/imprensa/conteudo_79468.shtml

acessado em outubro de 2009.


1995 1996 1997

91
1998 1999 2000

2001 2002

2003

Trajetória do
AA em CD-ROM
entre 1995 a
2004
2004
Para exempliicar essa situação, Abel lembra que a equipe de redação pensava muito em

função do layout da página impressa e em número de toques, o que segundo ele acabou se

reletindo na versão eletrônica, na tentativa de manter uma identidade entre as duas versões:

“o CD copiou a organização do impresso, mesmo sem ter uma real necessidade disso, pois

havia uma preocupação em manter a navegação [direcionamento da leitura] do impresso”.

Além disso, a sugestão de novas possibilidades dentro dos hipertextos era questionada pelos

editores do almanaque, pois não se tinha o hábito desse tipo de edição: “dizíamos que com tal

assunto poderia ser criado um link que remetesse a outro documento com mais informações.

Eles nos respondiam: eu vou ter que criar mais texto aí, por quê?” Portanto, em um momento

inicial, não se tinha a dimensão das potencialidades da estrutura hipertextual. O CD-ROM

era visto então mais como um suporte prático e eiciente de armazenamento de dados e

menos como uma nova mídia. Ou seja, para os editores da época, esse novo suporte parecia

ter como função principal, o armazenamento dos conteúdos que já existiam nas versões

impressas. Não se pensava em sinergia ou diálogo entre as mídias (cross-media), pois a versão

impressa era privilegiada dentro da estrutura editorial que priorizava seu cronograma de

produção pré-estipulado. Isso signiica que se evitava qualquer ação que pudesse colocar em

risco os prazos do Almanaque Abril em papel: “O CD-ROM podia atrasar, mas o Almanaque
92
impresso, não. Por isso o cross-media era inviável”.

O luxo de produção acontecia em duas equipes, da redação do AA e da ATR

Multimedia, como dito anteriormente. Segundo Abel Reis, Lucila Camargo, então diretora

de redação, era responsável pela articulação entre elas. A equipe da ATR era responsável

pela criação e concepção da interface e pelo planejamento de conteúdos – identiicando

oportunidades para enriquecê-los – além do desenvolvimento técnico. O primeiro projeto do

AA em CD-ROM foi realizado entre Rio e São Paulo, em uma época sem internet e celulares

acessíveis, o que signiicou gastos altos com interurbanos e viagens, que consumiam o

orçamento. A equipe era formada por diretores de arte, redatores e programadores, advindos

do design industrial e da informática, em geral da PUC-RIO, graças a uma parceria entre essa

universidade e a IBM, no inal da década de 1980. Abel Reis descreve o processo de produção
do título multimídia e avalia as diiculdades técnicas da época:

Havia os coordenadores de projeto que falavam com a Abril,

acompanhavam a produção dos materiais adicionais e o tratamento do conteúdo

para o CD-ROM (para marcar os hiperlinks). O formato com hiperlinks

[hipertexto] era feito através da ferramenta técnica usada no Encarta, o Microsot


Viewer. Porém, os padrões entre os arquivos eram diferentes do Ms Viewer, o

que causava problemas de acentuação, por exemplo. As ferramentas técnicas

disponíveis eram precárias, o que gerava muita diiculdade e retrabalho,

importação e tratamento. Os meios técnicos eram levados ao limite. A primeira

prensagem/impressão era feita em São Paulo39, em um processo caro e complexo:

30 CDs master candidates eram feitos e testados, em um processo de homologação

para garantir a estabilidade.

Apesar dessa precariedade técnica, em comparação com o cenário internacional na

época, Abel avalia a produção nacional digital em iguais condições de jogo, “como qualquer

player internacional”, pois mesmo com pouco dinheiro, eles tinham técnica e eram criativos.

Porém, apesar da posição de vanguarda do País em relação ao digital, a área era pouco

valorizada: “o Almanaque Abril em CD-ROM custou na época o equivalente a 50 mil reais, o

que hoje, um projeto desse porte, custaria no mínimo 50 vezes mais”.

Depois de seu lançamento em 1994, a obra multimídia teve enorme repercussão na

mídia e no mercado. No segundo ano, o setor comercial criou o selo Abril Multimídia, mas

ainda utilizando a própria estrutura do Almanaque Abril para toda a produção. Depois de

1996, a Abril decidiu internalizar a produção, dentro da equipe editorial. Para Abel Reis, a
93
experiência adquirida com o AA em CD-ROM deu-se no plano técnico, no processo de

trabalho e nas possibilidades de linguagem ligadas ao próprio meio: “foi um momento

de grande aprendizagem. Foi, além disso, uma chance única, em uma página especíica da

comunicação digital no Brasil”.

O Almanaque Abril em CD-ROM foi, então, um lançamento dentro da estratégia

de diversiicação do catálogo da editora que, apoiada por sua missão “democratizante” e sua

“tradição de pioneirismo”40, teve a enorme vantagem de usufruir completamente do canal

de distribuição (em bancas de jornal), o que segundo Cavalli (1999:48), é um dos requisitos

para explorar novos produtos. O autor também lembra também que quando os produtos e

mercados são estranhos à situação atual, não apenas eles mudam, “mas também a tecnologia,

os canais distributivos e os potenciais clientes: na prática nasce também uma nova empresa”.

E realmente foi isso o que aconteceu, com a divisão da Editora Abril para os assuntos de New

Media, além do selo Abril Multimídia.

39 Em uma empresa chamada Microservice, hoje responsável pela fabricação de discos Blu-ray.

40 Conforme difundido por Victor Civita e citado por Lucila Camargo em entrevista à autora.
A diversiicação e a experimentação, no período das ME of-line trouxeram algumas

vantagens para os editores tradicionais, tanto na produção como na comercialização:

1. Vantagem distributiva, ligada à possibilidade de utilizar também os canais

tradicionais (um novo produto que desfruta sinergicamente de um canal já

aberto e em funcionamento, como no caso do AA em CD-ROM).

2. Vantagens de diferenciação da gama de produtos oferecidos, através de linhas

complementares à produção principal (ampliação do catálogo).

3. Vantagens devido ao “uso do know-how editorial e, às vezes, da base de dados

existente, além de aumentar o prestígio da imagem da editora”. (CAVALLI,

1999:50)

Cavalli (1999:46) ressalta a importância do momento oportuno para novos

lançamentos: “os objetivos e estratégias de marketing, além das deinições de prioridade

dependem diretamente e continuamente da análise das oportunidades e dos limites presentes

no mercado e no ambiente”. Quando o CD-ROM do Almanaque Abril foi lançado, em maio

de 1994, o Brasil vivia um momento de euforia: o Plano Real41 trazia prosperidade econômica
94
e o dólar acessível tornava possível a importação de produtos eletrônicos. Com esses fatores,

as vendas do CD-ROM, “com mais de 1 milhão de informações sobre o Brasil e o mundo”,

superaram as expectativas, atingindo 17 mil unidades vendidas, a 115 reais cada42. Como

estratégia promocional, a edição de 1995 realizou sorteio de computadores. Além disso, o

Histórico Editorial relata o impacto dessa nova mídia: “a redação é redesenhada com grandes

mudanças no organograma, parte da equipe é trocada. É planejada a edição de 95 já com

nova visão editorial, com textos mais curtos que possam ser melhor aproveitados pelos

leitores e melhor trabalhados em multimídia”.

Como conseqüência é possível notar que as publicações impressas de um modo

geral, em especial, nos periódicos, foram fortemente inluenciadas pelas mídias eletrônicas,

não apenas no tamanho dos textos, mas também nos recursos visuais: como airma Pereira
(2006), as edições do AA de 1996 a 1998 “utilizaram símbolos, ícones e palavras grifadas

em cores, dando a sensação de que a publicação impressa estava sendo feita tendo em vista

a versão eletrônica”. O autor também lembra que, em 1999, após 25 anos de publicação

41 O plano foi iniciado em fevereiro de 1994, mas a troca monetária para o Real deu-se em junho do mesmo ano.

42 Para efeito comparativo, a enciclopédia Encarta95, em inglês, custava R$66.


impressa, o AA procurava seu caminho do CD-ROM à internet. O prefácio da edição sugere

que além de pioneiro em publicações eletrônicas, com jornalistas capazes de selecionar os

conteúdos relevantes de um mundo em rápida transformação:

(...) o Almanaque ensaia agora os primeiros passos na internet com

um site que traz o resumo dos fatos mais importantes de cada mês. (...) Ainal,

de que vale 1 milhão de informações se elas não forem realmente úteis e

organizadas de forma a estar sempre à mão quando delas se precisa? Esse é o

valor do Almanaque Abril (...).

Portanto, devido a essa capacidade de atualização, no inal dos anos 1990, a

publicação apostou no Web CD, ou seja, uma ME of-line, mas que possibilitava o download

da atualização de seu conteúdo pela internet. Essa foi uma boa estratégia em um período de

web 1.0, ou seja, aquele em que se “descarregavam” os conteúdos on-line para fruição of-

line. Graças à potência, ao barateamento e à difusão da banda larga, a web 2.0 mudou essa

realidade e, por conseqüência a publicação em CD-ROM e impressa. Os conteúdos passaram

a se multiplicar exponencialmente com a colaboração dos leitores, e agora escritores da rede,

habituados à Wikipédia (site que é sistematicamente contrastado pelo Almanaque43).

Esse contexto revela também a complexidade na escolha da tecnologia do suporte 95


editorial, que implica em um plano de produção particular, ou metodologia projetual.

Um novo tipo de tecnologia envolve novas técnicas e saberes, e dentro de um fenômeno

contemporâneo tende a ser mais veloz do que a capacidade de absorção das empresas (em

especial as editoriais). Conforme visto durante o capítulo 2, ao contrário da editoração

tradicional, as ME criam maior interdisciplinaridade e requerem novos savoir-faire, pois

apresentam modelos lógicos não-lineares, plurisensoriais e imateriais. Desse modo, a

natureza das informações muda considerando a natureza do suporte.

O Almanaque Abril, por exemplo, é um apanhado s elecionado de conteúdos, porém

sua interatividade, organização, edição e leitura são absolutamente diferentes segundo o

formato em que se apresenta. Assim como sua utilização, sua forma de consulta e pesquisa

reletem o modo de sua condição (tipográica ou eletrônica). Além disso, a introdução

da cultura do digital na sociedade, através da difusão do PC e dos kits multimídia (com

43 No verbete “internet”, a obra procura apontar os efeitos da web 2.0 e da Wikipédia, em especial na credibilidade das

informações, com a construção colaborativa do conhecimento. O texto conclui, após entrevistar uma autoridade sobre a área (que no

caso era o professor da ECA-USP Massimo di Felice): “pode-se dizer que a maior mudança não foi no nível de ‘confiabilidade’, e sim no

nível de ‘desconfiabilidade’”. Almanaque Abril 2008, p. 179


dispositivos de leitura óptica) levou, segundo Eletti (2003:71), “a inovações lingüística e de

marketing, mais que tecnológica”. Essas novidades são incorporadas durante as fases de

produção de uma publicação multimídia of-line (conceituação, estudos de factibilidade,

fase projetual, produção editorial, debugging (pré-testes), produção industrial, lançamento e

distribuição), conforme visto no capítulo 2.

Também no que tange à organização do trabalho, a era digital transformou a antiga

cadeia produtiva editorial, inserindo iguras proissionais de outros ramos – que passaram

a ser indispensáveis para a criação dos novos suportes e serviços multimídia – exigindo ao

menos um proissional de informática na realização da estrutura interativa (programação)

necessária ao produto. Já, o DTP tornou o texto digitalizado mais fácil de ser editado,

auxiliando principalmente os autores de obras coletivas, como é o caso do Almanaque

Abril. Como efeito desse dinamismo, o editor também mudou seu papel, passando a ter os

conhecimentos de edição de texto e de arte, de modo amplo44.

Além disso, Solidoro (2004:97) lembra que, “do ponto de vista dos editores, a

digitalização dos catálogos signiicou também o confronto com novos problemas, ligados

ao tratamento e à segurança dos arquivos eletrônicos mediante soisticados e custosos


96
programas”. No caso do AA em CD-ROM, a preocupação com a pirataria fez com que a

editora cogitasse o uso de sistemas anti-cópia. Porém, observando a incapacidade das grandes

produtoras de cinema norte-americanas de controlar a pirataria de suas produções, a Abril

optou por um procedimento coibitivo por meio da delação e não da prevenção, como relata

Simone Bortolotto:

Em 2002, quando a pirataria do CD-ROM do AA já era muito grande,

podia-se encontrar a obra sendo vendido por R$5 nas ruas, logo após seu

lançamento, enquanto a original custava R$30. Tentou-se, ainda, contratar diversos

fornecedores de CD-ROM que tivesse mecanismos de segurança, mas essa era

uma realidade e uma questão difícil de resolver no mundo todo. A decisão da

superintendência foi, então, continuar a produzir o CD-ROM sem os mecanismos

anti-cópia e tentar cercar e coibir a venda e a pirataria, por meio de lagrantes dos

próprios funcionários reportados ao setor jurídico: no momento em que se via o

ponto-de-venda, o camelô ou o site pirateando, se denunciava.

44 Em seu maior nível hierárquico, o editor não costuma produzir conteúdos, apenas edita-os, prontos, dando uma unidade

aos textos (palavras, fotos, design) e criando a identidade do produto, a partir da linha editorial pré-estabelecida. Essa função se vê de

forma mais contundente na produção de periódicos e jornais.


Bortolotto ainda diz que em 2005 – último ano do CD-ROM – ele foi amplamente

pirateado e após sua descontinuação, muitos leitores ainda pedem a volta da obra interativa.

Para se entender a opção pelo im desse título multimídia, além do desaio jurídico-

editorial citado, deve-se levar em conta as questões mercadológicas que envolvem os novos

produtos e tecnologias. Há um consenso na área de que as ações de marketing, em especial

para os lançamentos (estudo de factibilidade) ajudam na escolha das tecnologias, canais

e interfaces mais eicientes para atrair e conquistar o pressuposto consumidor inal. Além

disso, através de diversas técnicas, como o focus group, as pesquisas de satisfação anuais, o

acompanhamento dos leitores na produção e até o uso das mídias sociais é possível identiicar

o público-leitor potencial, dando subsídios socioculturais para um mapeamento dos limites e

oportunidades de certo tipo de fruição, ou rastreando tendências em um público especiico45.

A partir do sucesso além das expectativas da primeira edição do CD-ROM do AA,

baseado no “faro do editor”, procurou-se então mapear quem seria o consumidor inal dessa

versão eletrônica. Tradicionalmente, para deinição dos objetivos a serem atingidos por

uma nova publicação46 e para a caracterização do público-alvo, se deve responder de forma

consistente às perguntas mercadológicas: o que, como, onde, quando e por que (para quem).
97
(ELLETI, 2003; CAVALLI, 1999).

É interessante ressaltar que uma das vantagens da segmentação da área e do

conhecimento do público-alvo é o aumento da qualidade do título, uma vez que o designer

de interface, por exemplo, saberá quem lê e como, e assim fará um diagrama de luxo (chart-

low) de modo a guiar o leitor em suas pesquisas, projetando uma interface mais adaptada e

intuitiva para aquele público. Apesar disso, em 1993, não era possível realizar pesquisas de

mercado por se tratar de um produto experimental. Segundo Abel Reis, naquela época, os

PCs com kit multimídia instalado eram pouco numerosos (estimados em 50 mil unidades

em todo o País). Ele lembra que, como se tratava de uma nova tecnologia, era provável que,

no caso de uma pesquisa, os entrevistados se deparassem com possibilidades nunca antes

imaginadas. Pelo mesmo motivo, não se temia a substituição das mídias (o temido “im do

45 Na Editora Abril, as publicações com público-alvo bem definido têm mais investimentos no setor de marketing, pois atraem

anunciantes. Esse não é o caso do Almanaque Abril, que conforme dito anteriormente e reiterado por Volpe, tem um publico fiel e outro

flutuante, porém não é totalmente específico como, por exemplo, o da revista Capricho (para jovens adolescentes do sexo feminino).

46 Para o lançamento de um novo produto, inicialmente é preciso fazer o benchmarking (análise da concorrência). Depois se

definem os canais distributivos de acordo com o público-alvo e os recursos humanos e econômicos necessários para a sua realização,

em um prazo que também deve ser determinado.


livro”), pois a tiragem do CD-ROM era baixa e nunca chegou a superar a do impresso.

Na época, Fátima Ali justiica a escolha da transposição do título Almanaque Abril

para o CD-ROM: “optamos pelo Almanaque por ser um título consagrado e por ser uma obra

de consulta e referência que se dá muito bem com a multimídia”.47 De fato, o mercado de ME

of-line, tinha nas obras de referência a sua maior fatia, pois esses títulos eram mais simples

de produzir, gerir e distribuir (e mesmo segmentadas, abrangem um numeroso público), o

que não acontecia com os edutainment48 (com mercado extremamente segmentado entre as

diversas e breves faixas de idade infantil) e os educational (que exigem plataformas de ensino

e desenvolvimento pedagógico, um investimento custoso).

Porém, com o sucesso da publicação multimídia, era preciso então identiicar o

público-alvo a im de desenvolver os próximos títulos e as estratégias de marketing que

seriam usadas na sua divulgação.Tal informação encontra-se em dados de pesquisas e análises

de um documento de 199649, oferecido pela redação. Naquele momento, dizia-se que o título

era uma versão especial, cujo leitor seria um

Louco por micro [computador], fascinado por recursos multimídia, que

faz questão de comprar tudo o que é lançado no mercado (ainda consome sem
98
pensar). Não se cansa de explorar os recursos oferecidos (pode passar horas na

frente do computador). Gosta de saber com antecedência dos novos lançamentos

em informática, gosta de mostrar domínio em informática, está atualizado em

relação ao mercado. É exigente, gosta de comparar com similares estrangeiros.

Envolve toda a família na exploração dos sotwares.

O documento ainda apresenta pontos importantes em uma breve análise SWOT

(uma das principais técnicas de marketing utilizadas), mostrando uma preocupação com o

mercado e a tecnologia emergentes no momento:

• Pontos fortes:

“Inteiramente em português, look and feel mais amigável, navegação clara e

eiciente, mapas exclusivos de países e estados, animações exclusivas, infográicos

interativos, material ‘imprimível’, fácil recuperação de informação (busca em

português), bom suporte técnico”.

47 Informática Exame Especial, julho de 1994. p.82. Recuperado por Abel Reis.

48 Os títulos edutainment são CD-ROMs que usam técnicas lúdicas de ensino, parecidos com os jogos eletrônicos. Por essa

semelhança existe uma concorrência com os videogames e os jogos tradicionais.

49 Documento chamado “Plan CD”, recuperado por Simone Bortolotto.


• Pontos fracos:

“Capítulos [seções] muito extensos, diiculdade em se orientar pelo ilemanager

de cada capítulo, erros de texto (de digitação e de padrão de graia)”.

• Oportunidades:

“Mercado de informática e CD-ROM em crescimento, nenhum concorrente

direto em português”.

• Riscos:

“Tradução de concorrentes estrangeiros, recessão limitando o consumo de

supérluo”.

Apesar de dominar o mercado, praticamente sem concorrentes durante os

primeiros 3 anos, o documento identiica uma competição justamente com as publicações

estrangeiras, de onde o AA em CD-ROM baseou-se: Encarta (da Microsot), Compton´s

(da Britannica), Grolier, Dorling Kindersley. Além desses, as publicações especiais como

II Guerra Mundial, d´O Estado de S. Paulo, e a revista em CD-ROM NEO Interativa e

NEO Wave, também foram citados. É interessante ressaltar que “existem dois tipos de

editores: aqueles que têm uma linha editorial para desenvolver (...) e aqueles que buscam 99
a ocasião oportuna, aceitando aos poucos as propostas que chegam de desenvolvedores

externos” (ELETTI, 2003:116). No primeiro caso se encontra o AA em CD-ROM, cujos

editores trabalhavam as edições ano a ano; no segundo, estão as publicações que lançavam

esporadicamente títulos em CD-ROM como suplemento ou encarte para promover a venda

do produto principal, como os brindes e promoções d´O Estado de S. Paulo e da Isto É, na

década de 1990 e início dos anos 2000.

Nesse sentido, em 1996, o CD-ROM do Almanaque Abril foi aperfeiçoado, seu preço

diminuiu (de R$115 para R$70, em dois anos) e segundo releases, teria 40% mais textos

e imagens que a edição anterior. Segundo o documento Plan CD, além de ter um “novo

formato” (ou seja, nova interface), ele seria dirigido ao público jovem, em consonância com

o novo foco editorial da publicação impressa. Ele apresentava, então, “navegação mais ágil,

textos mais curtos e hipertexto mais amplo” (o que signiica uma evolução na linguagem

nativa do ME of-line).

O conteúdo apresentado pelo CD de 1996 contemplava os fatos que marcaram os

anos 1990, através de uma “cronologia dos principais fatos nacionais e internacionais da
década, ano a ano, mês a mês”. Além disso, incluía fotos com áudio, vídeos e animações;

oferecia jogos (ou desaios) interativos50. Outros benefícios do CD-ROM seriam a ferramenta

de pesquisas cruzadas (podendo utilizar até 40 variáveis), os glossários de diversas áreas

especíicas como informática, política e cinema, as biograias de personalidades do século XX

e o Guia de proissões (um compêndio do Guia do Estudante).

A pesquisa “uso do computador” – realizada em 1996 e presente no documento acima

citado – identiica a classe A (57%) e B (34%) como os maiores consumidores de informática,

apontando a tendência de crescimento de consumo da classe C nessa área. A pesquisa ainda

diz que os entrevistados possuidores de computadores com kit multimídia (leitor de CD-

ROM, placa de som e vídeo) compravam “em média seis CD-ROMs por ano, a um preço

de US$ 70”. O mercado projetado de sotwares equivaleria a 800 milhões de dólares. O

documento airma que “2% dos que têm computadores e 1% dos que pretendem ter disseram

que o computador é difícil e complicado”. A pesquisa inaliza com a observação de que os

computadores são “altamente desejados”. Abel Reis, lembra que, na época, o público da versão

eletrônica era visto pela Abril como “mais premium” em relação ao impresso, porém, ressalva

que “com o passar dos anos essa idéia foi se diluindo”.

100
A partir dos dados acima, é possível perceber a abrangência desse mercado e seu

potencial de expansão dentro dos anos que se seguiriam. Além disso, o documento Plan CD

aponta a preocupação com um estudo de factibilidade, mensurando as oportunidades de

mercado, através de previsões no momento do lançamento do título, análise dos recursos

disponíveis e prospecção econômica da operação.

O desempenho do Almanaque Abril empolgou nos primeiros anos, mas foi instável

tanto na sua data de lançamento anual, quanto nas vendas (tabela 3 e gráico 1). A única

constante foi o declinío no preço da obra multimídia, como pode ser visto no gráico 2. Através

dos gráicos é possível veriicar o recorde de vendas, atingido na edição de 1997, quando 38 mil

unidades foram vendidas a R$66 cada, um retorno de R$ 2,5 milhões para a editora.

50 Como exemplo, na seção mundo, o leitor poderia testar sua memória identificando as bandeiras dos países (depois de

observar por um grupo de bandeiras, ele deveria montar a de um país indicado, usando uma paleta de cores). A versão possuia 1 490

verbetes, 50 vídeos, 54 animações, 770 fotos e 580 biografias.


TABELA 3 – DATA DO LANÇAMENTO DO ALMANAQUE ABRIL EM CD-ROM
Ano Lançamento
1994 05/1994

1995 06/1995

1996 -

1997 -

1998 -

1999 03/1999

2000 03/2000

2001 12/2000

2002 01/2002

2003 02/2003

2004 -

2005 -
Fonte: Histórico Editorial. 101

GRÁFICO 1 - DESEMPENHO EM VENDAS DE 1994 A 2000

Vendas do AA em CD-ROM

50

38

33
unidades
vendidas
(em mil)

30 29
desempenho
em venda
24.6
23

18
17

10
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
ano
Fonte: produzido pela autora, com dados do Histórico Editorial.

GRÁFICO 2 - PRECIFICAÇÃO

Almanaque Abril em CD-ROM em 10 anos:


precificação
150

115

100 90
valor
(R$)

70 preço do
66
60 CD-ROM

50 40

0
1994 1995 1996 1997 2002 2004
ano

Fonte: produzido pela autora com dados de releases de lançamento.


102

Comparando os gráicos 1 e 2, percebe-se a queda em vendas e faturamento,

especialmente após 1998. A diminuição dos preços tem a ver, além das datas de lançamento

instáveis apresentadas na tabela 3, com a concorrência entre os produtos similares nas bancas

de jornal (um canal que tende a baixar o valor dos títulos, apostando na venda numerosa e

repetitiva) e pela popularização da mídia no mercado. Esse fenômeno também é relatado por

Simone Bortolotto, em uma de suas primeiras airmações sobre o Almanaque Abril em CD-

ROM: “no início a publicação eletrônica bancava a impressa”, o que mostra o enorme lucro

da editora com a obra multimídia ao explorar o mercado pioneiramente; porém, ela também

aponta que, com o declínio das vendas e da mídia, o efeito foi o oposto (ou seja, a versão

impressa começou a inanciar a eletrônica).

Além da evidente concorrência com a internet, Bortolotto também cita outros fatores,
que contribuíram para a descontinuidade do AA em CD-ROM. O primeiro deles é a qualidade

da linguagem multimídia do título, no início do CD-ROM, que seria na verdade um atraso

tecnológico em relação aos similares internacionais: “havia uma diiculdade em estar no mesmo
nível das obras estrangeiras que usávamos como modelo, como a Encarta51”. Já em um segundo

momento, depois do ano 2000, a informática e a linguagem de programação começaram a

ser atualizadas simultaneamente em relação ao exterior, devido ao esforço competitivo das

empresas terceirizadas de programação. Porém, para diminuir os custos com o CD-ROM,

“mantinha-se a programação do ano anterior e mudava-se apenas a interface e o texto”,

relata Bortolotto, que ainda completa “dentro da redação do Almanaque, havia uma editora

responsável pela coordenação do projeto em CD-ROM, garantindo o tratamento do conteúdo

impresso para o eletrônico”.

Conforme Lucila Camargo, “a Editora Abril já sabia há alguns anos que o suporte cairia

em desuso”. Ela mesma airma ter participado de um congresso na Europa, no inal da década

de 1990, onde se discutia a decadência da mídia devido à concorrência com a internet. Mesmo

assim, em 2001, o mercado de ME of-line ainda rendeu lucros à Abril52. Em 2001, estudou-se o

lançamento de um CD-ROM na linha do Quiz do programa Show do Milhão53, porém tal título

não foi produzido. É importante enfatizar que o preço do CD-ROM, apesar de cair ano após

ano, era ainda o dobro da edição impressa, em 2002 (R$ 60).

Fábio Volpe também lembra o enorme sucesso da série de CD-ROMs da revista


103
Superinteressante, lançada em 2002 e 2003, vendendo 100 mil exemplares. Reunidos em uma

caixa, os CDs apresentavam arquivos com a reprodução de todos os números da revista54. Ou

seja, não havia a preocupação com o desenvolvimento de uma linguagem multimídia, o que

certamente foi econômico para a empresa, pois o produto era apenas uma reunião de arquivos

prontos. Apesar do sucesso, Volpe airma que “já em 2005, a caixa não vendeu quase nada,

mostrando o declínio do suporte. Hoje, a Super disponibiliza todo o conteúdo do arquivo na

internet, o que se mostra mais prático do que pegar vários CDs”.

Além do mercado, a equipe do Almanaque Abril tinha de enfrentar desaios dentro

da linha de produção do CD-ROM. Bortolotto airma que, em 2001, a empresa que produzia

51 A enciclopédia Encarta Online, da Microsoft, foi descontinuada totalmente em 2009 (após nascer em suporte CD-ROM,

em 1993).

52 Algumas ações de sucesso foram feitas com os encalhes, como a venda do software já instalado para uma linha de

computadores “educativos” da marca Samsung. Além disso, foram feitas algumas tentativas de vender para o governo.

53 Na época, os leitores diziam consultar o Almanaque Abril enquanto viam esse programa de TV. (PEREIRA, 2006). Simone

Bortolotto ainda diz que a produção do programa usou a publicação como critério de desempate.

54 A edição comemorativa de 15 anos da Superinteressante apresentava a digitalização de todo o conteúdo, em seis

CD-ROMs, através da visualização e busca nos PDFs das páginas publicadas (178 números). É possível encontrar cópias piratas e

gratuitas na internet.
o suporte foi à falência: “felizmente, deu tempo de consertar até o lançamento, arrumamos

outro fornecedor a tempo de produzir o CD em Manaus, junto com as prensagens da indústria

fonográica”. Ela diz que fornecedores externos são usados casualmente dentro da editora e

alguns problemas relativos à qualidade de brindes, por exemplo, costumam ocorrer também

com outras publicações da casa.

Para testar a qualidade do CD-ROM, eram utilizadas duas frentes. Conforme Simone

Bortolotto, primeiro, havia uma avaliação interna, dentro da redação. Depois a obra era enviada

a pessoas envolvidas com tecnologia, formadoras de opinião e “entendidos de CD-ROM”. Por

im, era oferecida a dez leitores junto com um questionário avaliativo. Ela identiica a edição de

2003 como uma das que mais avançaram tecnologicamente, pois “o fornecedor era melhor e

produziu um CD-ROM que rodava sem a instalação de programas e plug-ins no computador,

como acontecia nas outras edições”.

Porém, apesar do avanço tecnológico com os fornecedores no Brasil, o investimento

para a aquisição das multimídias e novos conteúdos foi diminuindo ano a ano, devido aos

altos custos com direitos autorais, o que causou um empobrecimento gradual na mídia

eletrônica55. Simone Bortolotto enfatiza que o suporte CD-ROM não impactava no custo
104
inal do Almanaque Abril, mas sim os direitos autorais (em especial as mídias feitas fora da

editora), e que devido a essa questão, em 2005, o CD-ROM tinha quase o mesmo conteúdo

que o Almanaque impresso. Nesse ano, a obra multimídia deixa de ser vendida separadamente

e é vendida em um pacote junto com a edição impressa, sem caixa de acrílico, como pode ser

visto na igura abaixo. Junto com os dois volumes do Almanaque e os brindes “almanaque

dos esportes” e “guia da cidadania”, o CD-ROM parecia um extra da edição impressa e não

um produto independente. Sem mais explicações sobre suas funcionalidades e vantagens, o

produto eletrônico parece mesmo um armazenador prático das informações que estão no

papel, facilitando a cópia para trabalhos escolares, por exemplo. Ou seja, as características da

multimídia não foram desenvolvidas e por não apresentar novidades que pudessem melhorar

sua venda independente, ele foi adicionado ao pacote para “agregar valor” ao produto impresso.

Como exemplo desse fenômeno Bortolotto cita uma animação do corpo humano

presente no CD-ROM que era muito apreciada por professores: “em alguns anos, aquela

animação icou com ‘cara de velha’, pois já existiam linguagens mais modernas [como o Flash].

55 Além disso, o título ficou restrito à plataforma Windows. Segundo Bortolotto, havia orçamentos para o lançamento na plata-

forma Macintosh, mas nunca foram realizados. Alguns leitores também se manifestaram para que a obra fosse disponível em Linux.
Para não deixar com essa aparência de conteúdo defasado optou-se por retirá-la, porém sem

uma substituição equivalente”. Ela ainda avalia que esse empobrecimento foi gradativamente

transformando a mídia eletrônica em um brinde da publicação impressa: “no seu último ano,

o CD-ROM não tinha nem capa de acrílico e apresetava muito menos conteúdo multimídia do

que no seu inicio; parecia, junto com os mapas e guias extras, mais um brinde do Almanaque

Abril”. A partir de 2005, a obra multimídia começou a ser vendida encartada na versão

impressa, assim, conforme analisam Bortolotto e Volpe, a sua retirada não foi impactante para

o mercado e para os leitores. É possível avaliar o processo de empobrecimento do conteúdo e

da qualidade do título como decisivo para a sua descontinuidade. Tal visão é corroborada por

Giovanna Castellano (2006), quando diz que “ apesar das inovadoras características estruturais

de um produto editorial multimídia, a sua riqueza fundamental está no conteúdo”.

Nota-se, neste momento, um interessante fenômeno: apesar do título multimídia

parecer ser mais um problema do que uma solução, muitos editores ainda se vêem obrigados

a lançar CD-ROMs, mesmo não vendo uma real necessidade em tal empreendimento, além

da inalidade de se mostrar competitivos ao mercado. Por isso é possível encontrar muitas

publicações com CD-ROM encartados, mesmo que poucas ou mesmo nenhuma vez eles sejam

consultados pelo leitor. 105

Isso não quer dizer que a produção de um ME of-line seja despropositada. Muitos

leitores, como foi dito, ainda pedem pela volta do AA em CD-ROM. Lucila Camargo56 lembra
que “uma obra de referência depende, fundamentalmente, das formas com que ajuda os leitores

a encontrar a informação que buscam”. Além disso, a multimídia abre novas possibilidades em

relação à mídia impressa, como pode ser visto na tabela abaixo:

TABELA 4 – VANTAGENS E DESVANTAGENS DA ME OFF-LINE EM RELAÇÃO À MÍDIA IMPRESSA.

Vantagens da ME of-line Desvantagens da ME of-line


O fator interaividade, mais eiciente,
devido aos mecanismos de busca,
A quantidade de informação
com jogos, possibilidade de copiar,
disponível pode mais distrair do
organizar, imprimir e salvar informações;
que direcionar a busca pelas
autodeterminação do percurso
informações, resultando em um
(apesar da estrutura hipertextual, o
esforço do leitor para atingir
leitor pode seguir uma leitura linear),
seus objetivos iniciais (“O que eu
aprofundamento por camadas com a
estava procurando mesmo?”).
possibilidade de retornar rapidamente à
consulta anterior.

Fonte: quadro produzido pela autora.

56 Entrevista à Pereira (2006) em maio de 2002.


Além das características apresentadas na tabela 4, os suportes físicos, mesmo com

a difusão da internet, ainda apresentam vantagens consideráveis sobre a rede. Uma

delas é a estabilização da informação, como diz Eletti (2003:56/7) em uma interessante

ressalva sobre a natureza dos suportes físicos, que evidencia a coniabilidade e o

colecionismo ligados aos mesmos:

Mas informação aberta signiica também informações instáveis: e

realmente a internet não é o melhor suporte para aqueles documentos que

devem permanecer invariáveis no tempo, como leis ou regulamentos, acordos ou

contratos, os quais o CD-ROM ou o papel impresso dão garantias de estabilidade

impensáveis para o on-line. [...] Colecionar livros e CD-ROMs não é apenas

algo ligado ao valor de uso dos conteúdos, mas também tem a ver com o valor

“totêmico” de possessão física do suporte, à possibilidade de tê-lo em casa e de

guardá-lo na própria biblioteca: motivo pelo qual todas as enciclopédias oferecidas

nas bancas em CD-ROM vendem numerosas cópias, mesmo se poucos são os

compradores que a consultarão de verdade.

106

Último ano do
AA em CD-
ROM: 2005
Considerando a trajetória da publicação e as características do mercado e da

tecnologia apresentadas, serão discutidos no próximo tópico os impasses e buscas por um

modelo inanceiramente rentável para o futuro do Almanaque Abril. Devido à tendência

de queda nas vendas, os diretores editoriais consideram a internet a mais interessante saída

para essa obra de referência, dada a popularização desse meio, comprovado por estatísticas

que reforçam o uso cada vez maior e direcionado à busca de informações, estudos e

pesquisa57. Desta forma, é possível airmar que a internet concorre e tende a se tornar

uma alternativa a outras mídias tradicionais, como a TV, o jornal e, em especial, as revista

impressas. Porém, esse que deveria ser um “caminho natural” para a publicação enfrenta

fortes e imprevisíveis obstáculos.

3.4. PERSPECTIVAS: CONSIDERAÇÕES PARA O FUTURO


O Almanaque Abril, apesar de dar os primeiros passos rumo à internet através dos

fugazes WebCD e das pequenas versões on-line58, não conseguiu encontrar uma estratégia

mercadológica que sustentasse o desenvolvimento tecnológico da publicação (culminando,

em 2005, na transformação da obra eletrônica em “um brinde”, que foi descontinuado).

Nesse contexto observa-se a tentativa dos diretores editoriais na busca por um projeto que se 107

mostrasse viável comercialmente na internet. Enquanto não se encontrava tal saída, a edição

impressa foi priorizada e através de constantes modiicações, procurou-se estagnar e retomar as

vendas desse título.

Atualmente, as preocupações com o conteúdo produzido para o CD-ROM e o potencial

da internet para o Almanaque Abril são discutidos dentro da editora. Tanto o ex-diretor de

redação, Ricardo Lombardi, como o atual, Fábio Volpe, vêem a passagem para a internet como

um “processo inevitável”. Esse caráter de urgência para a deinição do futuro da publicação

relete um movimento de transformação também nas funções do editor, como apontado por
Carbone (2004:357):

57 Na pesquisa realizada em 2006 pelo instituto CETIC.br, a “busca por informações” foi respondida como atividade principal

e de maior interesse entre os internautas entrevistados (85%), sendo que o tema pesquisa científica ocupa o segundo lugar na entre

aqueles com Ensino Superior (65%), Ensino Médio (51%) e Ensino Fundamental (56%). Segundo a pesquisa, “acredita-se que isto se

deve às facilidades propiciadas pela Rede, no que se refere às políticas de acesso livre às informações”. Disponível em www.cetic.br

(acessada em outubro de 2009).

58 A partir da edição de 1997, quem possuía o CD-ROM poderia atualizar a seção de retrospectiva (WebCD). Em 2000, o AA

apresentou uma versão online, com dados de 1997 a 2000. A partir de 2002, o CD-ROM se aproxima da internet apenas por meio de

sugestões de links para o aprofundamento da pesquisa.


A diiculdade está em suscitar novas necessidades. Dar uma cara

diferente aos conteúdos devido a sua distribuição imaterial signiica renovar a

indústria editorial apenas na fase inal da criação da cadeia de valor. (...) Até agora

[os editores] enfrentaram problemáticas relacionadas à realização dos produtos

of-line, é tempo de aprender e adaptar sua estrutura e inalidade econômica à

difusão de conteúdos veiculados através dos rich media [mídia e publicidade

interativa]. (...) Os editores se transformarão também em distribuidores, “quase”

em centro virtual de serviços bibliotecários ou arquivos históricos devido à massa

de textos colocados à disposição.

Para oferecer mais exemplos da abrangência da discussão é interessante apresentar

um caso paralelo, famoso no mercado editorial, e que foi acompanhado pelos diretores do

Almanaque e da Editora Abril: o caso da enciclopédia Britannica. Ele foi relatado por vários

estudiosos da área como Paolo Ferri (2004) e torna-se então pertinente para o estudo de caso

do Almanaque Abril, na medida em que os projetos de transposição para a internet levaram

em conta os resultados do caso a seguir.

ENCICLOPÉDIA BRITANNICA – DA EDITORAÇÃO TRADICIONAL AO DIGITAL CONTENT PROVIDING

A Britannica era uma das maiores e mais bem sucedidas enciclopédias do mundo,
108 quando decidiu digitalizar seu conteúdo e, nesse empreendimento, foi pioneira. Já em 1981

produziu uma versão consultável em computador e em 1989 lançou a primeira versão em

CD-ROM, chamada Compton´s Multimídia Encyclopaedia. Gradativamente, após vários

CDs lançados, a Britannica vai se tornando, de fato, multimídia. Em 1995, ela apresentava
dois CDs com fotos, ilustrações, vídeos e áudio e assim chegou até a versão em DVD-ROM,

em 1999. Nesse momento, ela decide levar todo o seu conteúdo para a rede, com acesso

totalmente livre e gratuito. Seu intuito era que os rendimentos com publicidade cobrissem o

investimento, as ações da bolsa disparassem e a imagem da companhia se fortalecesse a ponto

das vendas do produto impresso aumentar. No entanto, o resultado foi inverso, nenhum

investimento externo foi feito e a Britannica quase foi à falência.

Esse foi um relexo do otimismo exagerado com a nova economia, que gerou a

chamada “bolha especulativa da internet” na virada do milênio. A única alternativa, que

conseguiu salvar a publicação, foi a implantação do sistema fee-based content, ou seja, a

Britannica online seria acessada por quem pagasse uma assinatura (de US$ 60 anuais).

Para tornar essa opção atrativa, a empresa oferece não só o conteúdo da enciclopédia, mas
outros como atlas, linha do tempo, conteúdos temáticos59. Nessa última instância, Ferri

(2004:298) ressalta que “a Britannica garantia a qualidade de seu banco de dados, organizados

e certiicados através de sua marca e disponíveis a diferentes níveis de fruição (proissionais,

estudantes, curiosos, etc.). A qualidade da informação e sua certiicação se tornam relevantes

na produção do valor econômico.”

Portanto, com esse caso, é possível identiicar uma das novas fronteiras da Editoração:

prover conteúdos digitais. Com a abrangência cada vez maior da internet no Brasil, poucos

editores podem “se dar ao luxo” de ignorar novos conceitos e mercados que surgem para a

área. Atualmente, nessa campanha, os jornais estão conseguindo empreender mais do que

os periódicos (que ainda apresentam sites aquém do potencial da mídia digital). A área

livreira enfrenta importantes barreiras – em especial com direitos autorais –, esperando o

desenvolvimento do e-book, com destaque para o e-paper e o e-ink. Já no setor didático,

um dos grandes ilões editoriais, em franco desenvolvimento no País é justamente o das

plataformas hipermídiaticas (com investimentos do governo, e das empresas privadas).

Percebe-se claramente nessa área o papel dos editores como provedores de conteúdo,

interessados cada vez mais pelos resultados de pesquisas em tecnologia, fruição e educação a

im de aproveitar melhor os sistemas e-learning e a construção colaborativa do saber. 109

Nesse sentido, Paola Carbone (2004:299) sintetiza uma das mais signiicativas

transformações estruturais na indústria editorial, a mudança do foco de produtos para

processos:

O coração da questão é representado pela materialidade, no interior da

indústria editorial, da passagem da economia do produto (a possessão do bem, do

volume) à economia do acesso e do serviço teorizada por Rikin, Castells e Kelly60,

que se exprime na aplicação da cadeia de valores da indústria cultural com modelo

fee-based.

Contudo, tal modelo de assinatura ou mesmo a venda de conteúdo premium no Brasil

ainda sofre muita resistência por parte dos leitores/consumidores dentro da internet. Há uma

cultura do digital livre enraizada no País e também citada pelos entrevistados, o que explica
59 É importante lembrar que esse não foi um caso isolado, todas as enciclopédias que nasceram ou migraram para o CD-ROM

– não apenas a Compton´s (Britannica), mas a Encarta e a Grolier – foram, com maior ou menor sucesso, transpostas para a internet,

através do modelo de assinatura.

60 Pensadores que apresentam as mudanças de paradigma econômico, social e comunicacional da sociedade da informação

ou pós-industrial. São autores de, respectivamente, A Era do Acesso (Ed. Makron, 2001), A Sociedade em Rede (Ed. Paz e Terra, 2007)

e Novas Regras para uma Nova Economia (Ed. Objetiva, 1999).


a pirataria na rede, onde os copiadores se vêem mais como divulgadores do que “usurpadores

de conteúdo”.

Essa característica do internauta brasileiro foi considerada no momento em que a

Editora Abril procurou construir um projeto para o seu Almanaque na internet. Simone

Bortolotto relata que foram feitas propostas de modelo de negócio para a transposição da

publicação, durante todo o ano de 2007. Uma das mais ambiciosas foi o desenvolvimento

do que seria o Portal do Almanaque Abril: um site com um imenso e completíssimo

banco de dados, onde fosse possível encontrar todo e qualquer tipo de informação: tabelas,

imagens, texto, sons. Para tornar possível e atraente tal oferta, era preciso ter maior volume e

consistência de informações do que apenas os recursos disponíveis na redação do Almanaque

Abril. Optou-se então por usar todo o acervo do DEDOC da Editora Abril. “Iniciou-se um

trabalho de indexação exaustivo que resultou em um banco de dados onde era possível

encontrar sempre um resultado para as pesquisas simuladas por nós”, lembra Bortolotto.

Com o projeto mais palpável era então necessário buscar um modelo de

comercialização que o tornasse rentável – o que seria um dos principais desaios desse novo

portal. Simone Bortolotto, airma que se optou pelo modelo fee-based, (como o caso da
110
Britannica), até mesmo com a estipulação de três tipos de assinatura (trimestral, semestral e

anual): “chegou-se a pensar em valores, um semestre de assinatura sairia R$10 por mês, por

exemplo”. Outra possibilidade para a realização do projeto seria encontrar um patrocinador e,

de fato, encontrou-se uma empresa disposta a investir61.

Porém, esse projeto de 2007, já com valores inais estipulados e patrocinador,

fracassou e o portal não saiu dos limites da Editora Abril ironicamente por uma questão

corporativa, como lembra Volpe e Bortolotto. Disponibilizar todo o arquivo do DEDOC

signiicaria oferecer conteúdos que as próprias publicações têm diiculdades de compartilhar

entre si. Em suma, diversas revistas não aceitaram dividir seu acervo com a internet e ainda

sob o nome do Almanaque Abril, que é apenas uma entre as centenas de publicações da casa.

Por esse motivo interno, o projeto foi vetado, mas a vontade de encontrar uma solução, não.

Fábio Volpe, avaliando o projeto, revela que ainda faltam subsídios mercadológicos

mais concretos que permitam conhecer o público projetado para o Portal do Almanaque Abril –

o que parece ser fundamental para deinir os recursos necessários para tal empreendimento e a

61 O Banco Real aceitou patrocinar o Portal.


deinitiva passagem da publicação para a internet. Além disso, para a editora, é um investimento

de risco e que exige um ritmo de atualização diferente: “a grande questão que permanece é que

não se sabe se as pessoas pagariam para ter uma informação coniável. E quanto ela vale? Não se

sabe ao certo, também, qual deveria ser o modelo oferecido: venda de conteúdo premium, como

fazem a Folha e o New York Times, ou assinatura?”

Apesar dessa indeinição, além de suscitar o interesse de patrocinadores, buscou-se a

viabilidade da venda do projeto para o governo ou para sistemas educacionais. Durante essa

procura, outra empresa do grupo Abril, a Editora Ática, encomendou um novo projeto para que

o Almanaque Abril “engrossasse” o conteúdo de sua nova plataforma didática on-line (o sistema

de ensino Ser62), porém sem a possibilidade de altos investimentos. A redação propôs, então, um

modelo que não tivesse custos editoriais relevantes para ser realizado. Há três anos, essa parceria

do conteúdo do AA para o Ser é feita, dentro da própria redação, através do fornecimento

e atualização de conteúdo multimídia (apenas em História, Geograia, mapas, bandeiras,

Biograias e links63), porém disponibilizado somente aos assinantes do sistema de ensino.

Em 2010, o Almanaque Abril com a referência de ter sido um almanaque, o

panorama de sua trajetória e a retrospectiva de sua publicação eletrônica continua sem


111
uma perspectiva consistente para seu futuro, por não ter ainda encontrado uma fórmula ou

modelo de negócio viável inanceiramente para a internet, segundo a equipe editorial. No

entanto, há uma importante ressalva, Volpe lembra que existem funcionários da Abril em

Nova York, incumbidos de pesquisar o rumo das publicações similares ao Almanaque Abril,

em especial aquelas que foram à internet. Com essa atenção, talvez se encontre um modelo

que valha a pena seguir.

Já para Abel Reis, a questão vai além dos modelos de negócio: o desenvolvimento

da publicação deveria atentar para as características e possibilidades midiáticas na qual

pretende se inserir, no caso a internet. Desse modo existiriam outras possibilidades para a

publicação, cuja vocação seria de repositório de fatos e curiosidades úteis para estudantes,

jornalistas e pesquisadores: “dessa forma, a internet é um grande almanaque, e ainda com

mais diversidade. Pensando no conteúdo tratado e oferecido pelo AA, a Abril poderia ter

sido o grande Google brasileiro, no sentido de que ela tem o objetivo de disseminar a todos,

62 Disponível em www.ser.com.br.

63 Volpe lembra que são conteúdos didáticos editados de forma jornalística. Apenas as biografias e sugestões de links foram

reaproveitadas do conteúdo do CD-ROM. O restante é atualizado anualmente.


um conteúdo muito grande”. Como saída editorial para a internet, ele sugere algo próximo ao

Yahoo! Respostas, que na sua visão poderia ser melhor editorialmente.

Por enquanto, a publicação segue garantida pelo suporte impresso, como dito

anteriormente. Essa tática também exempliica um interessante fenômeno ocorrido com as

obras de referência nos últimos anos, em especial com dicionários e livros para o estudo de

Direito e Medicina, que possuíam diversas versões em CD-ROM: quase todas retornaram

às prateleiras das livrarias, impressas. Desse modo o público as percebe como um produto

de qualidade e longa duração, além de qualquer “modismo tecnológico”. Para os editores

também é uma boa oportunidade de estabilizar os preços em um patamar mais alto, já que

quando seus produtos foram às bancas de jornal, os preços tendiam a baixar.

É possível identiicar alguns motivos para esse fenômeno de “volta ao papel”, contra

a tendência da desmaterialização na Editoração, assim, o suporte impresso ainda apresenta

relevantes e interessantes vantagens sobre o digital:

1. Indústria editorial consolidada no segundo setor

Toda a cadeia produtiva da indústria da editoração tradicional foi desenvolvida


112
e articulada durante o último século, dentro da chamada lógica (e logística) da Indústria

Cultural ou “de massa”. Nessa área, existem três tipos de empresa editorial, todas identiicadas

como parte do segundo setor da Economia: a livreira (como a EDUSP), a de periódicos

(como a Abril) e a quotidiana (de jornais como O Estado de São Paulo). As duas últimas,

devido ao ritmo de atualização, tem uma característica mais jornalística. Apesar de ser

considerada uma atividade industrial, a produção editorial é um exemplo de cadeia de

produção não-fordista, onde o lucro é gerado por uma mão-de-obra intelectualizada.

Essa característica resulta em um certo engessamento dentro do setor, apontado por Eletti
(2003:11): “(...) a realização de um produto editorial oferece poucas margens à economia de

escala e à inovação do processo, enquanto a inovação do produto è muito mais rígida que nos

outros setores industriais”. Assim, apenas nas fases de reprodução e distribuição é possível

gerar uma grande vantagem competitiva sobre as demais empresas. Por isso a tendência

de agrupamento e monopólio de todos os serviços essenciais à cadeia, como fez a Editora

Abril, possuindo a maior distribuidora do País e com parque gráico próprio. O domínio da

distribuição e promoção em bancas de jornal, por exemplo, é identiicado por Eletti (2003:54)
como uma política de marketing, que até hoje premiou as grandes empresas líderes desse
tipo de canal: “... [essas empresas] apostaram e apostam na difusão de produtos a baixo preço,

subdivididos em mais saídas, a im de promover a acumulação, o colecionismo e a aquisição

repetitiva ao longo do tempo”.

Além disso, existem possibilidades de ainda explorar o mercado editorial de periódicos,

apesar da sua saturação. São estratégias que utilizam a conjuntura econômica nacional e

mundial para reduzir custos e aumentar a margem de lucro. Volpe airma, por exemplo, que

para os próximos anos estuda-se a impressão do Almanaque Abril na China, pois com o

mercado e o preço do produto (R$30) estagnados, a linha de receita não tende a subir, a não ser

pelo corte do custo de produção. Por outro lado, ele acredita na estabilização das vendas do AA

impresso, devido à tendência nacional de ampliação do poder aquisitivo da classe C, conforme

avaliado internamente através do aumento de vendas das revistas dirigidas a esse público64.

Vale lembrar que, na fase de distribuição dos produtos, os of-line têm o mesmo canal

que os da antiga editoração, ou seja, são vendidos nas bancas de jornal ou livrarias. Já os

produtos on-line não têm separação entre plataforma de produção e distribuição: o mesmo

local onde o conteúdo é produzido é também consumido, como no caso dos sites hipermídia.

A partir das características do ponto-de-venda é possível inferir que dentre os três tipos de
113
produtos editoriais, os of-line são os que possibilitam menos interação com o conteúdo,

no momento da compra. Carbone (2004:344) corrobora para essa análise, enfatizado que

“a possibilidade de avaliar um produto antes de comprá-lo é muito importante para um

consumidor, seja ele expert ou não”.

2. Colecionismo e biblioilia

Outro fator que se mostra cada vez mais relevante para os impressos é a biblioilia e

o colecionismo, que são experiências de consumo ligadas ao livro como objeto (hábitos de

uso que relacionam o leitor com os produtos, de modo afetivo, também mostrando certo grau

de fetichismo, como postulado por Marx). Fábio Volpe, por exemplo – apesar de perceber
o rumo do Almanaque Abril para a internet como obrigatório – acredita na continuação de

uma edição impressa da obra, mas em uma valorizada “versão de colecionador” (com tiragem

baixa, mas de luxo, com capa dura).

64 Denominadas dentro da editora Abril como revistas de “alto consumo”, são produzidas com tiragens altíssimas, pior quali-

dade gráfica e são em geral semanais ou quinzenais. Direcionadas ao público feminino, têm preço de capa baixo e temas populares

(como as revistas Sou+Eu, Tititi, Minha novela, AnaMaria).


Um dos principais argumentos dos biblióilos é a perenidade do suporte livro,

também identiicado por Eletti (2003:57, grifo nosso) como uma das grandes vantagens dos

impressos dentro dos novos modelos de leitura:

Podemos airmar que a fruição do produto de editoração multimídia

é fortemente vinculada ao suporte tecnológico, que condiciona de todos os

modos a sua utilização, apesar dos dispositivos de leitura serem cada vez mais

difundidos, e as modalidades de conexão à rede sejam cada vez mais acessíveis

em termos econômicos e, não menos importante, a população ique cada vez mais

informatizada. Contra isso, o livro continua fruível além de qualquer problema

de suporte tecnológico.

Outra característica dos suportes impressos – além de dispensar conexões ou

eletricidade – é a portabilidade, que garante também uma experiência tradicionalmente

conhecida de socialização: o empréstimo. A favor desse fenômeno Roger Chartier (1999:149)

diz que “o vigor da biblioilia, insensível à revolução eletrônica, prova que o livro permanece

uma entidade viva, já que ele passa de mão em mão e é colecionado”.

É importante ressaltar que, apesar dos fatores citados a favor dos impressos, o

fenômeno iniciado pelas mídias eletrônicas of-line trouxe novos modelos de negócios,
114
produtos, serviços e tecnologias para a Editoração. Aparentemente, o mercado dos ME of-

line atingiu sua máxima expansão, como lembra Eletti (2003:98), “a produção de novos títulos

diminuiu consideravelmente nos últimos anos, assim como se reduziram os produtores

que se dedicavam ao desenvolvimento dessa editoração”. No entanto, nota-se que o gênero

educacional inicia uma nova fase de desenvolvimento – seguindo a evolução tecnológica

– e especialmente concentrada na área de educomunicação e e-learning, aproveitando as

experiências bem sucedidas com os ME of-line (em relação ao hipertexto, a multimídia e a

interatividade).

Além desse setor, as inovações empreendidas pelos editores procuram criar, estimular

e suprir uma demanda tecnológica, facilitando o acesso aos novos suportes de leitura e enim,

abastecendo o mercado para esses dispositivos. Desse modo, a criação do mercado de e-books

acontecerá quando todos puderem e quiserem comprar um aparelho, que além disso, tenha

uma oferta abundante e diversiicada de títulos. Ou seja, para o leitor, a vantagem desses

novos suportes tem de ser muito evidentes (claras e imediatas) em relação às mídias habituais.

Mesmo com as interessantes possibilidades de diversiicação e inovação trazidas


pela tecnologia, grandes investimentos comerciais nessa área ainda são raros. Para Abel Reis,

“a Editora Abril. apesar de ter uma vocação para a experimentação, não tem apetite para

transformá-la em operações de larga escala, pois afetaria o modelo de negócio dominante”. Na

sua visão, a editora não consegue resolver como será sua passagem para estar deinitivamente

no mundo digital:

o legado mais pesado da Abril é a capilaridade com que chega a todas as

partes do Brasil, com conteúdo e mídia. Porém exatamente por isso, essa estrutura

a torna muito mais lenta para fazer movimentos de inovação. É uma posição

curiosa, porque a Abril é um gigante que ainda não encontrou seu destino no

digital. Eles deveriam, se quiserem mesmo parar de fazer revistas impressas em 20

anos, planejar a sua obsolescência como mídia impressa agora.

Além disso, Abel Reis identiica algumas características da tradição tipográica

que, apesar do pioneirismo da Editora Abril65, diicultam o desenvolvimento da linguagem

hipermídia. Uma delas é a natureza do digital ser a da imagem em movimento: “essa

linguagem, que hoje é trabalhada pela Globo e pela Record em seus portais, contamina

a internet”. Para Reis, faltam conteúdos audiovisuais que possam formar um ativo para a

editora. É interessante notar que esse foi um dos principais recursos multimídia com que
115
a editora teve de lidar no empreendimento do CD-ROM do Almanaque Abril. Atualmente

“a plataforma de conteúdo é mais diversiicada, utilizando a TV digital e o celular”. Essa

observação leva a um impasse, pois o conteúdo da editora e sua estrutura são riquíssimos,

porém existe pouco desenvolvimento sobre a linguagem nativa do digital, o que poderia ter

acontecido sistematicamente desde 1994:

Nos projetos da Abril predomina a referência da linguagem dos

impressos. Colocar a Superinteressante na internet, como ela é na revista em papel,

não é interessante, pois o internauta quer experimentar ludicamente a interface.

É preciso ter então outra visão editorial, um alargamento do projeto (o que inclui

decisões políticas e comerciais). O DNA do digital é instantâneo, urgente, imagem

em movimento e fragmentação. O literacy [missão alfabetizadora] apresentado

nas publicações impressas remete à idéia de que é preciso saber muito sobre muita

coisa e o digital não é assim. É um desaio mais profundo, talvez isso explique a

diiculdade de movimentação da Abril no digital. O problema é, então, de fundo;

os efeitos de superfície não vão resolver essa diiculdade.

65 Também lembrado por Abel Reis no projeto da editora em ter um provedor de internet próprio, em fins de 1994, que se

chamaria Brasil OnLine.


Portanto, além de empreender projetos isolados na internet, buscando modelos

de negócio X ou Y (no intuito de salvar suas publicações impressas), seria interessante,

então, para a Editora Abril, uma atenção “quase epistemológica” à sua própria missão: “ser

a companhia líder em multimídia integrada, atendendo aos segmentos mais rentáveis e de

maior crescimento dos mercados de comunicação e educação”66. Desse modo, ela poderia

– a partir do profundo entendimento sobre a realidade comunicacional e os novos métodos

de construção do conhecimento – revisitar sua tradição editorial, jornalística, comercial e

publicitária, para se adequar aos novos padrões da comunicação no século XXI.

Adriano Solidoro (2004:84) enfatiza o potencial mercado de destinação dos

serviços e produtos, já criado dentro da cultura digital, e que está para ser desenvolvido:

(...) os editores tradicionais nem sempre percebem as possíveis ofertas

dos meios digitais, desencorajados pelos resultados não excepcionais obtidos

com as fases iniciais de mercado de seus produtos digitais, eles tendem, então, a

evitar novos investimentos.

Essa é uma das barreiras no setor, também apontada por Abel Reis, para quem

“existe uma cultura de resultados rápidos e em curto prazo para empreendimentos


116 no Brasil”. Atualmente, no mundo todo, existem algumas “experiências de fronteira”

– iniciadas com os ME of-line –, cuja característica mais signiicativa, e que agora se

apresenta como tendência, é a personalização do luxo de informação (seja por parte dos

leitores, como dos editores). Além disso, a inserção da realidade virtual em plataformas

didáticas, o infolearn67 e as experiências positivas com book-on-demand e e-book ganharão

ainda mais possibilidades com os avanços da portatibilidade da informação através dos

celulares e do wireless.

Por im, sobre as inovações tecnológicas no mercado editorial, Valerio Eletti


(2003:81) lembra que “o público é sempre um juiz severo e lúcido quando deve decidir se

um novo produto é apenas moda passageira ou um autêntico instrumento inovador para a

satisfação eicaz de uma real necessidade”. Nesse sentindo, Abel Reis reforça o argumento

de que as mídias digitais tem que desenvolver-se dentro de seu meio, para serem melhor

aproveitadas por todos, leitores e editores:

66 Missão, Valores, Princípios e Visões. Disponível em http://www.abril.com.br/br/conhecendo/conteudo_43365.shtml (aces-

sado em outubro de 2009).

67 Treinamento corporativo em plataformas on-line.


no exterior se discute muito a questão da economia no mundo digital.

Chegou-se a conclusão de que está na hora de alguém pagar pelos conteúdos

editados. Independente dos modelos de anúncio ou assinatura, o produto/serviço

tem de mostrar seu valor ao leitor, assim eles pagarão o preço que considerarem

justo. Se a pessoa percebe que a compra não agrega ou que é algo facilmente

encontrado de outra forma, ela não vai pagar por isso. Desse modo, o formato

publicitário na internet tem de ser mais inteligente, mais do que um banner na tela.

Com essa visão, é possível perceber o atual estágio marketing oriented do mercado de

comunicação, que inclui o editorial. Nesse âmbito, a valorização e a idelização dos leitores à

marca Abril, e ao seu Almanaque, é hoje o maior patrimônio construído em anos de tradição

material, dando mais chances à editora na adaptação e construção de seu conteúdo nas mais

diferentes plataformas que vierem a ser exploradas e inventadas.

117
118
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual cenário dos meios de comunicação é um dos principais desaios dos

editores, em especial aqueles criados na editoração pré-internet. Todas as etapas do processo

de publicar e gerir a informação passaram por profundas modiicações, impostas pela

digitalização dos processos e principalmente pela cultura do digital na sociedade, que

aproximou os leitores dos editores e autores, a comunicação da comunidade. Tal passagem da

materialidade para a imaterialidade na Editoração ocorreu de modo muito rápido, em pouco

mais de 15 anos, e atualmente as atenções teóricas se concentram nos domínios da internet (e

suas implicações comunicativas, sociais, econômica e política, dentro dos jogos de poder).

É preciso, então, retomar as primeiras publicações eletrônicas, no intuito de recuperar

e enriquecer as discussões sobre a evolução das mídias, através das experiências do passado

recente, que não gozaram da devida atenção, talvez por serem consideradas efêmeras. Por

isso, o principal foco desse trabalho está na transição entre plataformas editoriais, tendo em

vista que cada meio tem sua especiicidade, modo de produção e desenvolvimento, além de

hábitos de uso e fruição próprios. Isso se dá pela natureza do suporte que, quando eletrônico,

permite o armazenamento e a combinação hierarquizada (editada e integrada) de diferentes

códigos e linguagens, ampliando a experiência sensorial e, portanto, a percepção da realidade 119


apreendida (linguagem multimídia). Além disso, o hipertexto possibilita a reunião imediata

de textos, ampliando os universos relacionados por capacidade intertextual.

Na revisão bibliográica sobre os meios eletrônicos of-line, ica evidente que a

experiência de projetar um produto editorial eletrônico é a maior herança do momento

editorial do CD-ROM. Nesse sentido, reitera-se a importância da reestruturação projetual,

com especial ênfase ao método da bricolagem digital: se o produto tem características

estruturais rizomáticas e hipertextuais, ele tende a se identiicar com metodologias

igualmente instáveis, mais adaptadas ao momento. Parece incoerente que o projeto de tais

estruturas continue tendo base no método cartesiano, pois assim corre-se o risco de diminuir

ou “racionalizar” as suas capacidades e, principalmente, as experiências inovadoras que o

meio eletrônico permitiria. Superar a visão do projeto como solução tecnológica ou gestão

econômica é um dos principais desaios dos produtores editoriais, como Adriano Solidoro
(2004:150) dimensiona ao analisar a metodologia do projeto:

(...) é preciso construir uma metodologia de criação de

produtos editoriais que garanta aos leitores respostas satisfatórias às


demandas sociais (...) (de conteúdo informativo, de ensino, de serviços,

de entretenimento, de novas formas de agregar conhecimento, etc.),

para chegar a imaginar novos modelos e cenários de uso das tecnologias

existentes (...), explorar novos campos de pesquisa e desenvolvimento.

Naturalmente, existe uma tendência no início das novas linguagens – em grande

parte pelo modo de pensar dos seus desenvolvedores – em estruturar os novos meios

conforme o uso e a produção dos antigos. Em todo caso, busca-se camular o meio do

leitor, para que ele possa fruir os conteúdos do modo mais natural e intuitivo possível,

aproximando-o de sua realidade cotidiana (remediando e hipermediando).

Dentro desse contexto, os CD-ROMs foram a primeira experiência editorial

massiva com multimídia e hipertextos e estão no início do processo de desmaterialização

da Editoração (do impresso ao eletrônico on-line). Sobre esse cenário encontramos, como

apontado por Ana Elisa Ribeiro (2006), duas vertentes: a européia – que com sua tradição
livreira se preocupa com a “morte do livro”, tendo Roger Chartier como expoente – e a

americana, que pensa as relações com a tecnologia, caracterizada pelo revisionismo de

McLuhan, na produção de Jay Bolter. Nessas duas vertentes não encontramos a polarização
120 entre apocalípticos e integrados, mas como se lê e o que se lê, respectivamente.

Dentro da discussão dos modos de ler, entre sucessões e rupturas, os meios

eletrônicos atingiram a atual relevância devido aos graduais avanços de sua linguagem,

especialmente no que tange à interatividade (com destaque para as interfaces dos

videogames). Em relação à editoração tradicional, o gesto de apreensão de conteúdos parece

ter mudado o foco: o leitor agora deve buscar a informação e não apenas recebê-la, através

do movimento de aquisição de conteúdos chamado pull. Isso não signiica que, antes da

hipermídia, quem tivesse curiosidade de se aprofundar em um tema não pudesse consultar

vários textos, incluindo canções e ilmes. Porém, isso exigia um esforço de acesso, com maior

ou menor grau de diiculdade, mas que agora são trazidos em abundância, de forma integrada

a um único suporte e com bem menos tempo despendido na realização das pesquisas.

Portanto, o objeto de estudo desse trabalho é a publicação eletrônica multimídia,

cujas características são as seguintes, conforme Valerio Eletti (2003:15):

• são elaborados, conservados, transmitidos e visualizados através de suportes

eletrônicos, sem papel.


• são complexos (integram texto, áudio, imagem, animações e vídeos no mesmo

meio).

• são hipertextuais (são organizados em ilhas, de maneira não-seqüencial)

• são consultáveis de maneira interativa, seja pela rede, ou por um suporte físico,

como CD-ROM ou DVD-ROM.

As publicações eletrônicas of-line surgiram no início da década de 1990, em

crescente quantidade de títulos, divididos em obras de referência, educacionais, edutainment

e entretenimento. As primeiras foram pioneiras no mercado, vistas como obras de natural

transposição. Os títulos de entretenimento seguiram o rumo dos videogames (um setor que

não conhece crise até hoje). Já o edutainment teve diiculdades em estabelecer-se em um

mercado de nicho tão especíico, competindo com muitos outros produtos informativos

para crianças. Os títulos educacionais foram a semente do desenvolvimento pedagógico em

plataformas on-line.

Dada essa facilidade das obras de referência, não foi espantoso ver diversas

enciclopédias e dicionários no formato CD-ROM. Com a crise do suporte, muitas voltaram


121
às prateleiras das livrarias, mas as que alcançaram fama com os fartos recursos multimídia

arriscaram-se na internet. Esse caminho também foi visto no Brasil, quando o CD-ROM

do Almanaque Abril foi lançado em 1994, baseando-se e concorrendo com o Encarta

da Microsot. Tal pioneirismo e os desaios encontrados pelos seus primeiros editores foi

atentado por esse estudo de caso, que procurou discutir as decisões dos produtores em

relação às mudanças na editoração, tecnologia e mercado apresentadas nos últimos 20

anos. Como lembra Castro (1977:89 apud DUARTE, 2005:219) “mesmo no estudo de caso, o

interesse primeiro não é pelo caso em si, mas pelo que ele sugere a respeito do todo”.1

O que chama a atenção no caso do CD-ROM do AA é que a Editora Abril, com toda

a capacidade de um gigante da comunicação foi capaz de lançar um produto experimental,

de vanguarda tecnológica, em um mercado que não se conhecia no Brasil e nessa empreitada

teve grande sucesso. Porém, com o declínio do suporte físico e a airmação da internet

nas pesquisas escolares, a mesma empresa não foi capaz de encontrar uma saída para a

publicação, que inicia uma curva descendente em vendas tanto na versão impressa, quanto

em CD-ROM.

1 CASTRO, Cláudio de Moura. A prática da pesquisa. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1977.
Sem ter desenvolvido uma consistente empresa de New Media ao longo dos 12 anos

de CD-ROM do Almanaque Abril, prevaleceram as ferramentas e estratégias editoriais

pré-existentes e que atualmente buscam formas de retomar as vendas, apenas com a versão

impressa. Existe um esforço da editora em encontrar seu lugar na internet, através de sites

de suas revistas e portais correlatos a elas. Porém, mesmo consciente do futuro cada vez

menos rentável dos impressos periódicos, ela mantém esse tipo de produto como seu foco

principal (ainal, ela detém o monopólio da cadeia produtiva industrial). As tentativas de

salvar o Almanaque Abril se tornam cada vez mais urgentes – visto que a pesquisa pelo

Google e Wikipédia se difunde assim como o acesso à internet no Brasil – porém, elas são

sempre ações secundárias dentro das prioridades do calendário e do organograma enxuto da

corporação. Ou seja, faltam investimentos sistemáticos capazes de reformular profundamente

a compreensão do meio digital e que evitem a improvisação de sites (com reutilização dos

conteúdos feitos para o impresso).

Novos produtos em novos meios trazem novos problemas. A busca por um Portal

do Almanaque Abril é uma idéia interessante, mas se o foco agora é o serviço, ele teria de ser

percebido imediatamente como vantajoso para os leitores, se ele pretende ser pago. A solução

122 apresentada foi a enormidade de conteúdos disponíveis na editora. Mas como se dará a

interatividade dos leitores com essas informações? Os conteúdos multimídia serão garantidos

e distribuídos em igual medida e atualização? Já que a maior parte do acervo da editora são

textos e imagens, como será captado o recurso audiovisual: os leitores poderão colaborar? Se

sim, quem irá selecionar os relevantes: o público ou o editor? Percebe-se, então, que o papel

do editor, de selecionar a informação e disponibilizá-la da melhor forma, tem seu valor, mas

na internet ele deve ir além. Isso signiica trabalhar com hipertextos e multimídia do modo

mais integrado possível, mas também buscar preencher o cotidiano do leitor nos múltiplos

canais disponíveis, ampliando a sua percepção do mundo.

A história do gênero almanaque revela a colagem editorial do novo e do velho,

sedimentando os conhecimentos “perenes”, ele revisita o passado recente e é a manifestação

viva do espírito do tempo. Sem estrutura ixa, unindo conteúdos tão diversiicados, ele tem

de ser, a cada edição, sempre renovado e se relacionar com as curiosidades e os dilemas da

sociedade contemporânea. Portanto, como livro-do-ano o almanaque busca incorporar

a atualidade ao seu conteúdo e formato, revelando sua capacidade de interação com o

momento informativo-comunicacional no qual se insere.


Por esse motivo, a transformação do Almanaque Abril em uma obra multimídia

foi um momento feliz na história da evolução das mídias digitais no Brasil. Ele era,

então, o próprio zeitgeist: um CD-ROM que, por unir e sintetizar a linguagem televisiva,

informática e editorial, foi um produto absolutamente diferente do Almanaque em papel,

que vem da tradição tipográica. Logo, o CD-ROM é a primeira experiência massiva em

mídias eletrônicas da pós-modernidade, com sua percepção fragmentada e que não tenta

buscar verdades absolutas. Sobre essa nova fase na história dos meios de comunicação, Lev

Manovich (2005:46) argumenta que

a nova mídia é pós-mídia ou metamídia, já que usa antigas mídias

como seu material primário. Meu conceito de “metamídia” relaciona-se

com uma noção mais familiar de “pós-modernismo” - o reconhecimento

de que, na década de 1980, a cultura passou a se interessar mais em

retrabalhar conteúdo, idiomas e estilo já existentes do que em criar outros

revigorantemente novos.

Devido à complexidade desse tipo de projeto, a fase de produção de um meio

eletrônico deve atentar não apenas na pertinência social do título (por quê? O que?), mas

também nas suas características de fruição e leitura, que se aliam aos estudos das ciências 123
cognitivas e design de interação: o como será lido e por quem, de onde o produto multimídia

não pode se destacar e de onde será possível obter subsídios para a atividade decisional.

Dentro desse processo, a capacidade, os recursos materiais e humanos, econômicos e

temporais são fatores que determinarão a qualidade inovadora do projeto.

Dada a diferença qualitativa e quantitativa do projeto editorial digital, é possível

airmar que um novo tipo de editor surge, com uma formação mais abrangente, que inclui

conhecimentos sólidos em editoração, tecnologia e marketing, além de boas noções das

ciências que estudam a relação homem-máquina, a im de entender o novo mercado

comunicativo e suas possibilidades dentro da multiplicidade de canais. Czeslaw Jan Grycz

(1995: 129), resume a visão desse novo proissional:

Os editores de publicações eletrônicas têm um ofício comum aos

seus precursores com base nos impressos. As diferenças, no entanto, são

radicais: os editores digitais devem lidar com textos, gráicos, animações,

áudio e dinâmicas interativas. Eles também têm uma variedade de canais

de comunicação e meios de distribuição. As estruturas econômicas


crescerão de forma cada vez mais complexa do que elas são hoje, tendendo

a envolver parcerias com um grande número de prestadores de serviço

descentralizados. As questões jurídicas e de direito serão labirínticas. Os

editores digitais certamente serão vistos como uma evolução dos editores

tradicionais dos impressos. Eles também serão tão diferentes em suas

atividades operacionais e funções a ponto de serem irreconhecíveis como

membros do mesmo “limbo evolutivo”. O que vai revelar seu passado

comum, porém, serão os valores que ambos dividem: selecionar o material

mais útil e interessante e disseminá-los a um público que os aguarda, a um

preço que seja consistente ao valor percebido de seus esforços.

Analisando a trajetória do CD-ROM, é possível notar uma queda em venda e em

preços, que culminou em sua descontinuidade. Além dessa constatação a partir de dados

mercadológicos, nota-se que a pertinência social do CD-ROM decresce por três fatores

principais:

• A concorrência com a internet e a obsolescência da informática (que fez a

mídia se tornar cada vez menos prática e perder seu hábito de uso em pesquisas);

124 • A queda da quantidade em conteúdo multimídia (devido aos direitos autorais,

em 2005, o CD tinha um número de informações equivalentes à versão impressa:

sem o espessante cultural do conteúdo, foi empobrecendo como mídia);

• A queda na qualidade do conteúdo multimídia (que demanda um ritmo

de atualização diferente do impresso, além de ativos especíicos para a mídia,

como o conteúdo audiovisual. Além disso, a estrutura hipertextual era

reutilizada constantemente: mudava-se a máscara da interface, evitando trocar a

hierarquização e a programação da obra).

Com esses pontos, é possível notar que a editora, ao longo do desenvolvimento do

título não priorizou a linguagem hipertextual e multimídia do suporte CD-ROM. Ela viu esse

novo meio como um repositório mais prático e eiciente de acessar o conteúdo que já estava

presente no impresso. Talvez essa percepção tenha se estabilizado pela tradição editorial

impressa tanto do título quanto de seus produtores. Ela talvez fosse outra, caso se criasse um

pensamento sobre as naturezas de linguagem dos meios editoriais digitais, como ilustra Paola

Carbone (2004:151, grifo nosso):


Hoje o editor que trabalha também com a multimídia

tem de ter consciência da tendência cultural rumo ao digital e suas

potencialidades (...), deve prever a necessidade dos fruidores dos seus

produtos em relação à evolução dos instrumentos e dos sistemas de

comunicação, e não por último, deve sugerir exigências de fruição mais

do que de conteúdos.

O acesso aos bens culturais passa por paradigmas tecnológicos, de produção e

distribuição. Além disso, os mercados saturados se tornam cada vez mais marketing oriented,

isso signiica mudança de foco de produto para serviços e maior investimento nos bens

intangíveis da empresa, como sua própria imagem, a im de idelizar o cliente. Um exemplo

da mudança em curso é a vontade das editoras em oferecer um serviço de recuperação

(busca) eiciente para melhorar a performance do leitor na realização de suas tarefas, além da

produção de conteúdos de qualidade.

É importante ressaltar que a tecnologia, no entanto, não é impositiva. Os livros

impressos, por exemplo, têm um mercado cada vez mais sólido e uma tradição que ainda

inspira status social. O conhecimento impresso ainda transmite uma sensação canônica ou

pelo menos estável e duradoura. Para Umberto Eco, por exemplo, ele é o melhor modo de se 125
conservar a produção intelectual, pois as novas mídias se mostraram todas instáveis e ainda

não se sabe se elas resistirão por séculos, como os livros.

Por im, a percepção do que seja a tecnologia na construção do conhecimento e da

sociedade é um dos principais fundamentos dentro da evolução dos meios de comunicação

(não apenas como modismos tecnológicos, mas como opções conscientes de oferecimento de

bens culturais), percebendo que cada suporte tem sua especiicidade, seu tempo e espaço de

fruição. Kevin Kelly (2007, grifo nosso), fundador da revista Wired, sintetiza a discussão:

Mas qual é a contribuição que a tecnologia realmente nos dá? O

avanço proporcionado por ela nem sempre é evidente e perceptível. Todo

pensamento pode ser subvertido. Nesse sentido, toda tecnologia pode

ser vítima de abusos. Além do mais, todas as soluções que a tecnologia

oferece trazem também novos problemas. Mas é preciso observar que,

em última instância, a tecnologia amplia as nossas possibilidades de

escolha. Em geral, uma tecnologia apresenta aos seres humanos outra

maneira de pensar sobre algo. Cada invenção permite outra forma de ver
a vida. Cada ferramenta, material ou mídia adicional que inventamos

oferece à humanidade uma nova maneira de expressar nossos sentimentos

e outra forma de testar a verdade. À medida que novas maneiras de

expressar a condição humana são criadas, amplia-se o conjunto de

pessoas que podem encontrar seu lugar único no mundo. (...). Assim, sua

principal contribuição [da tecnologia] está expressa nas possibilidades,

nas oportunidades e na diversidade de idéias. Sem ela, temos muito pouco

disso. Nosso trabalho coletivo é substituir tecnologias que limitam

nosso poder de escolha por aquelas que o ampliam.

Os editores aproveitaram as inovações, mas só a desenvolveram enquanto a

comunidade progredia. Com a internet, porém, a comunidade já lê de outra forma, e

desconstrói o que os editores produzem no papel: copiando, colando e editando ela mesma,

propagando assim os conteúdos. Tanta difusão transformou-se em um aglomerado não-

organizado e não-hierarquizado de informações, que em muitos casos não é coniável. Assim,

perde-se muito tempo conferindo se as informações são “verdadeiras”. Nesse sentido, o

Almanaque Abril, independente do suporte, faria esse trabalho, de modo acessível e pronto

para ser usado. Além disso, seu valor está em sua tradição de gênero editorial: cheia de
126 curiosidades, com uma estrutura divertida e atual acima de tudo. É preciso saber, então,

como manter ou ampliar essas características lúdicas na plataforma on-line.

Portanto, a partir dessas observações, é possível compreender a necessidade de um

estudo maior sobre as características e potencialidades de uma publicação eletrônica, na

rede, que deve procurar não apenas oferecer um conteúdo de qualidade ao leitor, mas uma

experiência que permita aproveitar as capacidades do meio, especialmente na criação de um

elo identitário entre o leitor e a imagem da marca Almanaque Abril, que hoje é feito apenas

pela comunidade do Orkut, pois a publicação continua sem um site/lugar na internet.


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6. APÊNDICE 1 – BRICOLAGEM DIGITAL

O conceito de Bricolagem vem da Sociologia, e é largamente utilizado no contexto

da intertextualidade. Foi inicialmente apresentado na obra O pensamento selvagem (1962), de

Claude Lévi-Strauss, quando o autor observou e descreveu o método da bricolagem, capaz

de criar estruturas improvisadas ao se apropriar de materiais pré-existentes, reduzindo-se

sempre a um novo arranjo de elementos, já que novos universos nascem de seus fragmentos.

Massimo Canevacci (no livro Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais, de

1996), amplia o conceito associando-o aos procedimentos lúdicos da composição. Já De

Certeau, que, conforme observa Silviano Santiago (em A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos,

de 2000), ao falar de bricolagem, “desloca o eixo da produção de mercadorias”, para o da sua

recepção, o consumo, evidenciando sobretudo “maneiras de lidar com”. Deleuze e Guattari,

no livro Anti-Oedipus, de 1972, identiicam a bricolagem como a característica de produção

de um produtor esquizofrênico.

Já Sherry Turkle, no livro On the life screen, de 1995, airma que um modo de

produção que use a bricolagem é mais consoante com as tecnologias de programação do

que aqueles que usam o planejamento excessivo: “O bricoleur seria como o pintor que dá um

passo para trás a cada pincelada, olha a tela, e apenas depois dessa contemplação, decide o 135
que fazer em seguida.”

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