Você está na página 1de 172

LE MONDE DIPLOMATIQUE,

UM JORNAL PARA PENSAR

Doutorado - ECO/UFRJ - 2002


ii

Le Monde diplomatique,
um jornal para pensar

Patrícia Cecília Burrowes

Escola de Comunicação - ECO


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Doutorado

Orientadora: Janice Caiafa


Ph.D. em Antropologia – Cornell University, EUA
Prof. Adjunto, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Rio de Janeiro
2002
iii

FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação da


Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do grau de Doutor.

Aprovada por:

Prof. Janice Caiafa (orientadora)


Ph.D. em Antropologia, Cornell University, EUA
Prof. Adjunto, ECO/UFRJ

Prof. Emmanuel Carneiro Leão


Ph.D. em Filosofia, Universidade de Roma, Itália
Prof. Titular, ECO/UFRJ

Prof. Maria Cristina Ferraz


Ph.D. em Filosofia, Université de Paris I, Sorbonne
Prof. Titular, UFF

Prof. Nízia Villaça


Ph.D. em Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Titular, ECO/UFRJ

Prof. Suely Rolnik


Ph.D. em Psicologia, Pontifícia Universidade de São Paulo
Prof. Titular, PUC/SP

Rio de Janeiro
2002
iv

Burrowes, Patricia Cecília

Le Monde diplomatique, um jornal para pensar/


Patricia Cecília Burrowes, Rio de Janeiro, 2002.

171 p.

Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) –


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós
Graduação em Comunicação e Cultura – ECO/ UFRJ,
2002.

Orientadora: Janice Caiafa

I- Caiafa, Janice (orient.). II- Universidade


Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura. III- Título.
v

À memória de minha querida Nana,


Vera Marjorie Burrowes, professora,
por ter atravessado oceanos.
vi

AGRADECIMENTOS
À Escola de Comunicação da UFRJ por ter acolhido esta pesquisa.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, agradeço
pela bolsa que viabilizou a pesquisa em Paris entre março e setembro de 2001.
A Janice Caiafa, por sua orientação cuidadosa, por suas observações precisas que
interviram em momentos importantes da escritura, por seu incentivo, por suas atitudes
que ensinam tanto quanto seu pensamento. E por sua amizade muito querida. Agradeço.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação da ECO/UFRJ, com atenção a
Emmanuel Carneiro Leão, Ieda Tucherman e Muniz Sodré, agradeço pelas discussões e
reflexões que brotaram em suas aulas e também pelas sugestões de leitura. O Prof.
Aluízio Trinta e o Prof. Carneiro Leão estiveram, além disso, presentes no Exame de
Qualificação deste projeto e agradeço-lhes pelas observações que então fizeram e que
contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho.
Sou grata, também, aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação pela ajuda com a
inevitável burocracia.
A todos meus colegas de curso, em especial: Carmem Gadelha, Fátima Régis, Fernanda
Bruno, Fernando Gonçalves, Márcio Gonçalves, Maria Inês Acciolly, William Dias
Braga agradeço pelo convívio e pelas “dicas de sobrevivência”.
Ao Prof. Michel Maffesoli, por ter-me recebido como pesquisadora visitante no Centre
d’Etudes sur L’Actuel et le Quotidien (CEAQ) durante minha estada em Paris, meu
agradecimento sincero.
Aos colegas brasileiros que lá encontrei e me ofereceram apoio: André Barreto, Cris
Freitas, Conceição Golobovante, Fábio Castro, Héris Arnt, Tânia Pitta agradeço.
Meu agradecimento aos jornalistas do Monde diplomatique e aos membros da
associação de leitores Les Amis du Monde diplomatique que me receberam com
generosidade, concederam entrevistas e dividiram comigo suas experiências do jornal.
A Céline Schwob, Eri e Mônica Perrusi, que fizeram de Paris uma cidade de amigos,
agradeço com saudades.
Ana Lúcia Madureira, Cristina Amaral e Jorge Mansur são amigos jornalistas cujas
conversas ajudaram a pensar ao longo deste trabalho e a eles agradeço de coração.
Outros amigos estiveram presentes em tantos momentos e gostaria de agradecer-lhes
carinhosamente: Guará, Joaquim Pinheiro, José Batista, Luciana Pessanha, Luísa Cid,
Luis Gustavo Matta, Rui Piranda, Seth Garfield e Vivian Flanzer — obrigada.
A Fernando Ferrão agradeço, com amor, por cada dia, pela inspiração em conversas
matinais e pelas muitas horas que passou em aviões.
vii

RESUMO

Os meios de comunicação de massa assumiram nas últimas décadas dimensão e


penetração impressionantes formando o que se convencionou chamar a Indústria da
Mídia. A concentração dos veículos tem produzido uma crescente homogeneidade de
conteúdos, onde o modo de vida baseado na lógica do lucro impera. O poder mais
insidioso e sutil dessa grande máquina mídia é o recorte do que merece ou não ser visto,
ouvido, experimentado — a construção de um ponto de vista sobre o mundo, o que
Guattari chamou de “produção de subjetividade”.
Dependente das verbas de publicidade e, em função destas, vendo atrelada sua
existência aos altos números de difusão, o jornalismo perde progressivamente sua
autonomia. Nesse contexto, a primeira vítima é a informação que passa a ser tratada
como mais um produto cultural de consumo. O discurso jornalístico assume o ponto de
vista do grande capital e trabalha como força legitimadora deste, embora mantenha, na
maioria das vezes, sobretudo no Brasil, uma capa de objetividade e neutralidade.
O caso do jornal Le Monde diplomatique se apresenta como alternativa a esse
cenário. Primeiro, porque foge ao discurso hegemônico do capital. Segundo, porque
forja com seus leitores uma conexão que não obedece à lógica do consumo e dessa
forma se livra da armadilha das verbas de publicidade. E terceiro porque instaura uma
prática associativa com o objetivo assumido de interferir no debate público, sugerindo
que não há neutralidade possível e sobretudo não desejável.
viii

ABSTRACT

The last decades have seen mass communications means assume impressive dimensions
and penetration, comprising what has been called the Media Industry. The process of
media concentration has produced a growing homogeneity of contents, where a way of
life based on the logic of profits prevails . The most insidious and subtle power of such
an immense media machine is to underscore what deserves (and does not deserve) to be
seen, heard, experienced — the construction of a point of view from which to
understand the world, that which Guattari deems “production of subjectivity”.

Journalism, dependent on advertising funds and subject to a mass market, progressively


looses its autonomy. In such a context information is the first victim, for it is treated as
one consumer good among others. Journalistic discourse takes up big capital’s point of
view and works as a force that legitimates it, although it may maintain most of the time,
specially in Brazil, a cloak of objectivity and neutrality.

Le Monde diplomatique’s case appears as an alternative to this case. First, because it


escapes from the capital’s hegemonic discourse. Second, because it forges a connection
with its readers that does not obey the logic of consumption and so frees itself from the
advertising trap. And third, because it establishes an associative practice with the
affirmed intention of intervening in public debate, suggesting that objectivity and
neutrality are neither possible nor desirable.
ix

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------- 1

1- O QUE SE DIZ POR DENTRO


DO QUE SE ESCREVE --------------------------------------------------------------- 4
1.1- Porto Alegre, 2001 --------------------------------------------------------------------- 4
1.2- Eu li no jornal...-------------------------------------------------------------------------- 6
1.3- Como maquiar os fatos ---------------------------------------------------------- 19
1.4- La pensée unique ou “a nova vulgata planetária” --------------- 22
1.5- A noção de campo jornalístico ---------------------------------------------- 25

2- A ORDEM É CIRCULAR------------------------------------------------------- 39
2.1- A partícula e a trajetória --------------------------------------------------------- 39
2.2- Uma subjetividade em escala planetária------------------------------- 42
2.3- O burburinho de fundo ----------------------------------------------------------- 50
2.4- Dito e feito, ou a interferência linguagem-mundo ---------------- 52
2.5- O que faz um agenciamento --------------------------------------------------- 55
2.6- Como se forma uma tempestade ------------------------------------------- 64
2.7- Variar variando ------------------------------------------------------------------------ 72

3- ONDE SE INSERE, E POR ONDE ESCAPA,


LE MONDE DIPLOMATIQUE --------------------------------------------------- 75
3.1- Onde começa uma fuga?-------------------------------------------------------- 75
3.1.1- Primeiro movimento
3.1.2- Segundo movimento
3.2- Um território independente ---------------------------------------------------- 85
3.2.1- Uma resposta d’além mar
3.2.2- Vozes de toda parte
3.2.3- A minoria de cada um
3.3 – Uma linha da história ------------------------------------------------------------ 99
3.3.1- O aprendizado da Ocupação
3.3.2- O Cahier Bleu
3.4 – Um deslocamento-----------------------------------------------------------------114
3.4.1- Beco sem saída
3.4.2- Terceiro Movimento
x

3.5 – Multiplicidades----------------------------------------------------------------------122
3.5.1- Canteiros da cidadania
3.5.2- Outro tipo de interatividade
4- CONCLUSÕES – RAMIFICAÇÕES ----------------------------------147
4.1 - Em busca da multidão. ---------------------------------------------------------152
4.2- P.S. ------------------------------------------------------------------------------------------155
5- REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------------157
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado.
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

INTRODUÇÃO

Les noms qui designent les choses répondent toujours à une notion de l’ intelligence, étrangère à nos
impressions véritables et qui nous force à éliminer d’elles tout ce qui ne se rapporte pas à cette notion.

Marcel Proust: À la récherche du temps perdu ( À l’ombre des jeunes filles en fleurs)

Um trabalho sobre a imprensa. Sobre produção de subjetividade. Sobre a

participação da imprensa na produção de subjetividade.

Mas a imprensa não é uma realidade isolada, insere-se no contexto da mídia, que é

um campo de forças; é um meio que sofre e impõe pressões; um lugar de embate e

exercício de poderes.

Pois a mídia exerce também poder: o poder de controlar o acesso à tribuna pública;

poder sobre os discursos que circulam ou deixam de circular. Mas também um poder de

legitimação — a autoridade que a imprensa confere ao que nela se expõe: as pessoas

dizem: está escrito no jornal, passou na televisão, deu no rádio... E isso convive com a

crise de credibilidade: por mais que as pessoas afirmem não acreditar nos meios de

comunicação, quando contam uma história, quando fazem suas as palavras do

burburinho de fundo — e querem provar ser verdade —, lá vem a afirmação: mas eu vi

na tevê etc. É uma referência densa que mais se avoluma quando todos os meios se

repetem uns aos outros: o que se ouve no rádio, vê-se na tevê, lê-se nos jornais e nas

revistas, até na internet. Um processo infinito de redundância.

Então: poderes que se exercem sobre a imprensa e na imprensa e tudo o que isso

produz.

Mapear essas forças não é fácil, são muitas e imbricadas. É um arranjo complexo e

acaba envolvendo a organização toda inteira da sociedade. Pensar sobre os meios de


2

comunicação é pensar sobre o estado avançado de capitalismo mundial. É isso, este

trabalho: por um lado ver um uso que se faz, na maior parte dos casos, dos meios de

comunicação. Por outro lado, ver um outro uso que deles se pode fazer, um uso que não

respeita as leis do mercado e transgride algumas regras sagradas do jornalismo pós-

moderno, como a velocidade, a simplificação da linguagem, a simplificação dos fatos

mesmo.

E a partir desse contexto, espero puxar um pensamento sobre a situação particular

do Brasil, de quase monopólio dos meios de comunicação.

Partimos, no primeiro capítulo da cobertura dada por alguns dos principais órgãos

da imprensa brasileira a um fato que ocorreu no início do ano 2001. Este já é um

exercício interessante: nadar contra o esquecimento que está na base da produção

massiva e da circulação veloz de informações. A leitura crítica procura destacar

algumas estratégias utilizadas por jornalistas (intencionalmente ou não) para construir

os fatos. Apoiamo-nos em seguida no conceito de campo social, de Bourdieu,

principalmente, para delinear as forças em jogo no campo jornalístico e entender como

tais estratégias são, em grande parte, efeitos produzidos pelo próprio campo.

Mas há elementos que não aparecem no jogo de forças do campo. O segundo

capítulo apresenta, então, um ponto de vista que vem complementar o primeiro. Estudos

sobre o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação justapõem-se a teorias

de produção de subjetividade para apontar a dimensão e a penetração dos meios de

comunicação em todas as esferas da vida atual. As variáveis da linguagem (ou regime

de signos) são aqui consideradas em sua relação com os corpos (naturais e artificiais),

onde uns interferem constantemente nos outros, donde se destaca que os meios de
3

comunicação de massa só podem ser compreendidos em termos de agenciamentos

coletivos de enunciação.

O terceiro capítulo apresenta uma experiência: conta o caso de um jornal — Le

Monde diplomatique — que aparece como uma maneira singular de fazer jornalismo. É

um jornal imerso no campo jornalístico, como não poderia deixar de ser, portanto está

exposto à pressões que o atravessam. Mas de alguma forma ( não estragarei a surpresa

contando aqui como) se desvia dessas pressões. Além disso, é um jornal que assume

abertamente o desejo de intervir no debate público, e não só pela publicação de textos

que podem acrescentar variáveis às discussões sobre a sociedade contemporânea, mas

também por uma prática que procura multiplicar os lugares de encontro e pensamento.

O trabalho de campo se desenvolveu em duas pontas: junto aos jornalistas, através

de entrevistas, assistindo a suas palestras e pela leitura dos jornais; e junto aos leitores,

acompanhando os encontros de grupos de estudo, ouvindo suas participações nas

palestras e também em entrevistas individuais.

São, portanto, muitas as vozes presentes nesta tese e o que eu gostaria realmente é

que outras viessem se acrescentar ao processo de pensamento.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 4
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

1- O QUE SE DIZ POR DENTRO DO QUE SE ESCREVE


C’est le fondement anthropologique de la critique marxiste de l’idéologie
comme universalisation de l’intérêt particulier: l´idéologue est celui qui donne pour universel,
pour désinteressé, ce qui est conforme à son intérêt particulier.
Pierre Bourdieu: Raisons pratiques.

1.1 - Porto Alegre, 2001


De 25 a 30 de janeiro de 2001, realizou-se em Porto Alegre, o primeiro Fórum Social

Mundial. A proposta era reunir num encontro internacional as organizações que vinham

questionando os rumos da economia mundial e que haviam promovido e participado de

manifestações populares como a de Seattle em 1999, durante a reunião da Organização

Mundial do Comércio (OMC). De acordo com a página do Fórum na internet, buscava-se

dar um passo adiante das manifestações, no sentido de promover, com esse grande encontro,

uma reflexão em torno de problemas mundiais. A data escolhida, última semana de janeiro;

assim como a cidade, Porto Alegre, marcavam o desejo de estabelecer um contraponto ao

Fórum Econômico Mundial, que há 30 anos reunia, nessa época, em Davos, na Suíça,

representantes de grandes empresas transnacionais, ministros e chefes de governos,

economistas e acadêmicos de renome para discutir as tendências – e influir na direção – da

economia mundial, a partir do ponto de vista dos negócios e do lucro. O Fórum Social

Mundial, em contraste, debateria os efeitos negativos desse modelo econômico, sofridos

pela maior parte da população do planeta, e buscaria formas alternativas de vida em

sociedade, privilegiando o ponto de vista do bem estar coletivo.

“Mais além das manifestações de massa e protestos, pareceria possível passar-se a


uma etapa propositiva, de busca concreta de respostas aos desafios de construção
de "um outro mundo", em que a economia estivesse a serviço do ser humano e
não o inverso. Economistas e outros universitários contrários ao neo-liberalismo
já vinham realizando, na Europa, encontros que chamavam de Anti-Davos. O que
se pretendia no entanto era mais do que isso. Propunha-se realizar um outro
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 5
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

encontro, de dimensão mundial e com a participação de todas as organizações que


vinham se articulando nos protestos de massa, voltado para o social – o Fórum
Social Mundial. Esse encontro teria lugar, para se dar uma dimensão simbólica ao
início dessa nova etapa, nos mesmos dias do encontro de Davos em 2001,
podendo a partir daí se repetir todos os anos, sempre nos mesmos dias em que os
grandes do mundo se encontrassem em Davos.”1

Organizaram-se as discussões em quatro temas básicos, chamados de eixos: “A

Produção de Riquezas; O Acesso às Riquezas e a Sustentabilidade; A Afirmação da

Sociedade Civil e dos Espaços Públicos; Poder Político e Ética na Nova Sociedade.”

Cada um desses eixos abriu-se em quatro perguntas-chaves, que forneceram o tema de

palestras proferidas por convidados durante as manhãs dos cinco dias de encontro. As

tardes foram reservadas às discussões em grupo, nomeadas “oficinas”, propostas pelas

associações inscritas. Calcula-se que o I Fórum Social Mundial tenha levado a Porto

Alegre cerca de dez mil pessoas, das quais quatro mil delegados inscritos de ONGs,

associações e sindicatos e, os demais, participantes independentes.

Vejamos qual espaço alguns jornais brasileiros dedicaram ao tema e como abordaram o

acontecimento. Escolhemos para esta breve amostragem inicial, Jornal do Brasil, O Dia, O

Globo e Folha de S. Paulo: os três primeiros por terem públicos e linhas editoriais distintos

no Rio de Janeiro; o quarto, por ser um jornal considerado mais intelectual, de outro estado,

mas também com boa distribuição nesta cidade. Não se fará aqui uma análise exaustiva,

abrangendo todos os jornais, durante todos os dias do Fórum Social Mundial, embora esse

pudesse ser um trabalho rico e interessante, pois consistiria em si uma tese e ultrapassaria

em muito o espaço e a intenção deste capítulo; assim, optamos por uma seleção aleatória dos

dias de publicação.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 6
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

1.2 - Eu li no jornal...

Quinta-feira, 25 de janeiro, dia da abertura do Fórum Social Mundial.

Jornal do Brasil

Na primeira página, nenhuma informação sobre o assunto. Na página 4, Editoria

de Política, ao lado de matérias sobre o caso dos prefeitos do PT que indicaram parentes

para cargos de confiança, surge um box com uma foto de Olívio Dutra e a legenda:

“Olívio Dutra apóia a realização do Fórum em Porto Alegre.” Logo abaixo, título e

subtítulo: “Troca de farpas. Fórum Social provoca atrito entre FH e Olívio.” O texto

informa em um parágrafo da realização do Fórum em Porto Alegre, em seguida,

reproduz a crítica do Presidente Fernando Henrique Cardoso aos gastos do governo

(petista) do Rio Grande do Sul com a organização do encontro e apresenta a réplica de

Olívio Dutra, justificando os gastos de 970 mil reais. Uma chamada final remete à

página 10, onde há “mais sobre o Fórum Social Mundial”.

Será casual essa localização do box, junto às denúncias de nepotismo por parte de

prefeitos recém-eleitos do Partido dos Trabalhadores?

Na página dez, Editoria Internacional: “Alimento será tema do Fórum”. A curta

matéria menciona uma entrevista coletiva com os organizadores do congresso, define

resumidamente a natureza deste como um “encontro internacional das esquerdas” e

informa seu objetivo: a “busca de alternativas mais socialmente justas do que o

neoliberalismo”. Sob o intertítulo “Dumping”, expõe-se a fala de um dos coordenadores

da ONG Via Campesina (organização de associações de camponeses de todo o mundo),

que alerta para o desequilíbrio no comércio internacional, em especial no que diz

respeito à agricultura. As demais propostas do Fórum são apresentadas em cinco linhas,

no meio do texto: “a luta contra os transgênicos, a transformação das sementes em


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 7
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

patrimônio da humanidade e a proteção dos mercados municipais e regionais antes dos

mercados globais.” Os dois últimos parágrafos são dedicados a um questionamento feito

pela imprensa quanto aos efetivos poderes e influências do encontro de Porto Alegre e

às respostas de Bernard Cassen, um dos organizadores do Fórum, diretor do jornal Le

Monde diplomatique e presidente da ATTAC (Associação pela Tributação das

Transações Financeiras em Apoio à Cidadania) e Emir Sader, sociólogo, que afirmam

seu efetivo “poder de pressão” e “sucesso moral”.

A pergunta aqui é: por que essa reportagem sobre Fórum Social Mundial, realizado

em Porto Alegre, entra na editoria Internacional? Pela localização geográfica, não se

encaixaria melhor em Brasil? Ou, pelo assunto, em Economia? E por que o Fórum

Econômico Mundial, em Davos, entra na editoria de Economia (pág. 17: “Davos reúne

hoje líderes mundiais.”) e não Internacional?

O Globo

Traz na primeira página uma pequena chamada sobre o Fórum: “FH e Brizola

criticam Fórum Social”. O texto versa sobre a crítica do Presidente Cardoso aos gastos

do Partido dos Trabalhadores com o Fórum e acrescenta a esta a crítica de Leonel

Brizola ao encontro que teria “como objetivo fortalecer o PT e promover a democracia

cristã européia”. A continuação da matéria aparece na seção de Economia: “FH Critica

gasto de Olívio com fórum antiglobalização”, com o subtítulo “Governador Gaúcho

rebate acusações sobre verba de R$ 970 mil. Brizola também faz críticas ao evento e ao

PT.” Mais uma vez, o texto começa pela reprodução das críticas de Fernando Henrique

Cardoso, em seguida, relata a resposta do governo gaúcho e passa às críticas feitas por

Brizola. Só no último parágrafo informa-se, com a inserção de uma fala de Bernard

Cassen, algo sobre o objetivo do encontro: “reunir (...) representantes dos movimentos
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 8
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

e organizações sociais de 22 países”. Aqui ocorre um erro: no lugar de 122 países, como

era de fato, publica-se “22 países”. Teria Bernard Cassen se enganado? Na mesma

página há uma matéria sobre o Fórum Econômico Mundial: “Órgão Sindical leva

propostas a Davos.” Subtítulo: “Segurança foi reforçada devido à ameaça de

manifestações no sábado” Por que de Davos salientam-se as propostas e de Porto

Alegre, as críticas? Por que as manifestações são apresentadas como uma ameaça?

Nesta mesma seção, Economia, Joelmir Betting, em sua coluna, não poupa ataques

a um e outro Fórum. A epígrafe escolhida, citação de J. K. Galbraith, é inspiradora:

“Neoliberalismo? Não sei o que isso significa. Globalização? É sempre mais do que eu

sei.” Segundo o articulista, os dois simpósios visam principalmente a cobertura da

mídia. Em Porto Alegre estariam os “maniqueístas (...) em sua maioria ongueiros

raivosos – para os quais a globalização nada mais é que a forma superior do

imperialismo americano, agora mascarado de neoliberalismo. Sim, usinado pelo tal

Consenso de Washington”. O encontro de Davos é descrito como “lavagem cerebral”; o

de Porto Alegre como “masturbação”. E segundo a coluna, o único cujas afirmações

importam é Alan Greenspan que permanece na “sala de controle da locomotiva global”,

e cujas declarações teriam mais peso “na vida de seis bilhões de terráqueos que os sete

dias corridos do brain storm de Davos. Ou Porto Alegre.” Curiosa contradição: os

“ongueiros raivosos” são ironizados por (na versão de Betting) acreditarem numa

“forma superior do imperialismo americano mascarado de neoliberalismo”. No entanto,

as afirmações de Allan Greenspan – presidente do Federal Reserve, o Banco Central

americano – para Betting, são as únicas que podem afetar a vida da população do

planeta.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 9
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

E há ainda a coluna Panorama Econômico de Flávia Oliveira, com o título

“Perdemos Menos” para falar que, considerando os últimos cinqüenta anos, a década de

1991-2000 só não foi pior em termos de crescimento do que a década de 80. Ou seja, os

anos 90 foram a segunda pior década desde 1951 em termos de crescimento para o

Brasil, ficando na frente apenas da década chamada perdida de 1980. “Que é isso,

companheiro?” acusa o Fórum Social Mundial por não convidar “importantes

estudiosos da pobreza e desigualdade no Brasil”. Nem uma palavra sobre os que foram

convidados.

Sexta-feira, 26 de janeiro

Jornal do Brasil

Mais uma vez, nenhuma menção ao Fórum Social Mundial na primeira página. Por

outro lado, há uma grande foto do Monte Bolgenhang, em Davos, com um letreiro na

neve dizendo “mantenha o diálogo”, em inglês. O encontro de Porto Alegre aparece,

como no dia anterior, na editoria Internacional: “Encontro busca modelo econômico

alternativo”, com o subtítulo “Fórum Social transforma Porto Alegre no centro mundial

antiglobalização” (grifo meu). O texto relata a cerimônia de abertura do Fórum,

reproduz um pequeno trecho do discurso do governador Olívio Dutra, fala da passeata

que se seguiu à solenidade e apresenta, no terceiro parágrafo, a orientação política dos

participantes “maior mobilização das esquerdas no mundo, buscando de forma

organizada estratégias para contrapor-se ao neoliberalismo e também à reunião de

Davos na Suiça.” Outra matéria nessa mesma página narra, sob a foto de Jose Bové, a

ocupação de plantações de soja transgênica da multinacional Monsanto por militantes

do Movimento dos Sem Terra: “MST ocupa área da Monsanto.”


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 10
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Nas páginas de Economia, merecem destaque afirmações de Alan Greenspan sobre

a economia norte-americana e o Fórum Econômico Mundial : “Pratini critica ricos em

Davos.” Salientam-se, no texto, o “tom conciliatório convocando os participantes ao

diálogo para tentar superar as diferenças entre países ricos e pobres; entre governos

empresas e sociedade civil” e as críticas dos países em desenvolvimento aos ricos, com

ênfase para a reclamação do Ministro da Agricultura do Brasil, Pratini de Moraes.

Folha de S.Paulo

No alto da primeira página, a manchete “Investimento estrangeiro é recorde”

chama atenção para a soma sem precedentes de investimentos no país em 2000: US$

30,6 bilhões. A previsão de queda nos investimentos para o ano seguinte vem em corpo

menor, no complemento do título. Dá-se, no texto, destaque para um decréscimo da taxa

de desemprego no mês de dezembro em relação a novembro, e para a diminuição da

taxa média de 2000 em relação à de 1999.

Logo abaixo, há uma chamada para a matéria do enviado especial a Davos:

“Davos inicia reunião com críticas à globalização”. No texto, aponta-se a semelhança

das afirmações do gerente do Fórum Econômico Mundial com os “discursos

antiglobalização” do Fórum Social Mundial. Em seguida, então, temos a notícia sobre o

Fórum de Porto Alegre: “Cuba é estrela da abertura do Fórum Social”.

A leitura é linear: o Brasil vai bem e Davos reconhece os problemas da

globalização. Nesse caso, qual é o sentido do FSM, cuja estrela é Cuba “único governo

nominalmente socialista das Américas”?

Na página de opinião, Clóvis Rossi contrapõe o espírito de Davos (“cálido e

instigante”), ao espírito de Seattle [“ânimo combativo, (destrutivo, até)”].


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 11
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

A Folha de S. Paulo dedica ainda uma seção especial aos dois Fóruns, chamada

“Folha Globalização Especial”. A página frontal do caderno, página ímpar, espaço

nobre, traz foto de um jovem negro que a legenda indica ser um cantor de música afro a

se apresentar na cerimônia de abertura do Fórum Social Mundial (FSM). Todos os

textos ao redor da foto, porém, referem-se ao Fórum Econômico Mundial (FEM):

“Pouso dos EUA deve ser duro, diz economista”; “Opacidade custa caro ao Brasil, diz

estudo” e “Boa notícia é que Brasil não é notícia”. No terço inferior da página, sob o

título “Panorâmica” o FSM é mencionado: há uma foto de Jose Bové, em cuja legenda

lê-se “Jose Bove que saqueou McDonalds na França, em Porto Alegre”; e três notinhas:

“Ídolo”, sobre Ahmed Ben Bella; “Imprensa”, sobre as matérias em espanhol e inglês

do jornal Zero Hora, e “Música”, sobre um show de Lobão.

Fecha a página um esquema que apresenta, em poucas palavras, lado a lado, os

dois Fóruns: “O que é” (o FEM é “uma conferência”, o FSM, “uma reunião de

entidades”); “Desde quando, Quem organiza” (o FEM, “Fundação suíça”, o FSM “a

conta será paga pelo governo do RS”), “Quando e onde, Quem vai, Números”.

Temos, portanto, no conjunto da página, as fotos do cantor afro e do militante

francês sobre o Fórum Social Mundial além de três notinhas, das quais duas são sobre

fatos irrelevantes (“Música” e “Imprensa”); todo o resto do espaço é ocupado pelas

previsões e análises do Fórum Econômico Mundial. Esta distribuição dirige a leitura,

causando impressão de que o debate sério está em Davos enquanto o encontro de Porto

Alegre seria uma grande festa.

As 2a e 3a páginas do caderno vêm reforçar a crítica ao FSM. Do lado par, à

esquerda estão as matérias sobre o Fórum Social Mundial: “Cuba é ícone de encontro de

Porto Alegre” com subtítulo “Ilha é aplaudida em uníssono na abertura do Fórum Social
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 12
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Mundial, em que Benedita da Silva (PT) foi vaiada”. O texto aponta a “politização” da

abertura do Fórum: “Idealizado para se desvincular de partidos e governos, o evento

acabou abrigando uma série de manifestações político-partidárias.” Salientam-se as

diferentes reações dos presentes: “sobraram aplausos” para Cuba, revolucionários

zapatistas e MST; “sobraram vaias” para “o liberalismo e políticos não muito bem

aceitos no PT gaúcho”. Também as diferenças nas reações do público à leitura da lista

de países de origem das delegações é sublinhada: “Quando o nome de Cuba foi lido,

houve um quase uníssono de apoio à ilha (...) Pouco depois foi citado o nome dos

Estados Unidos, cujos representantes viajaram 10 horas para participar do fórum anti-

Davos e contra as privatizações. As vaias foram intensas.” A seguir: sob foto de um

senhor de barba branca, lenço verde na cabeça e bandeira de Cuba no ombro, com a

legenda “Camponeses simpatizantes de Cuba assistem à abertura do Fórum Social

Mundial; que deve atrair cerca de 10 mil pessoas” está uma “análise” cujo título é

“MST encabula esquerda anti-Davos”. Esse artigo tenta mostrar a existência de duas

vertentes no Fórum, uma “moderada, propositiva”, corresponderia ao “comitê

organizador” e ONGs “formadas e dominadas por intelectuais e setores afins das classes

médias”, outra “encampada quase apenas pelo MST” seria a favor de “criar focos de

tensão e manifestações de protesto”. Os favoráveis ao “radicadicalismo” teriam querido

fazer da marcha de abertura do Fórum um protesto, enquanto os partidários da

“moderação” teriam temido uma “repercussão negativa”. E esta divergência é que

justificaria a “vergonha” apontada pela palavra “encabula” no título dado ao artigo. Da

diferença de posições o autor conclui: “protesto de estudante em Seattle é mais chique e

palatável do que protesto de pobre brasileiro em Porto Alegre”. Contardo Calligardis

fecha a página, escrevendo de Porto Alegre: “Um cheirinho de naftalina”.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 13
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Enfim, a página da direita é dedicada, em sua maior parte, aos discursos de Davos.

“Davos abre com ataques à globalização. Em suas falas, participantes apontaram

problemas advindos da integração econômica do planeta”; “Presidente Suíço faz elogio

e crítica a ONGs”; “Para executivos, brecha digital não diminuiu”. Os textos das três

matérias afirmam, de diferentes maneiras, que as questões que mobilizaram o encontro

de Porto Alegre estão presentes também em Davos. O texto da primeira abre com a

pergunta: “A frase ‘a globalização não está produzindo benefícios, pelo menos não de

maneira equitativa’ foi ouvida ontem em Porto Alegre (...) ou em Davos? Errou quem

respondeu Porto Alegre.” A segunda matéria, sobre a fala do Presidente suíço, se inicia

com: “A presença de Porto Alegre em Davos não se limitou a uma relativa semelhança

de discursos.” E a terceira, sobre a brecha digital: “Pode haver um abismo imenso entre

o que pensa (...) Porto Alegre e (...) Davos, mas num ponto pelo menos eles coincidem:

não há sinal de que esteja diminuindo (...) a ‘brecha digital’.”

O enviado especial a Porto Alegre, Ricardo Grinbaum, marca uma diferença entre

os freqüentadores dos manifestos de Seattle, Washington e Praga e os de Porto Alegre:

“Em Porto Alegre, saem hippies e jovens e entram bigodudo e camponês” e no texto:

“...o encontro que chegou a ser tratado como uma reunião mundial da nova esquerda

teve, no seu primeiro dia, um jeito latino-americano.”

O conjunto de matérias é coerente com a organização da primeira página do jornal:

continua-se esvaziando o Fórum de Porto Alegre ao mostrar que as questões que

levaram à sua organização já estão sendo tratadas no Fórum Econômico. Como se não

fosse o inverso: diante da evolução das manifestações e diante da realização do Fórum

Social no Sul do Brasil, os “ricos” de Davos não podiam mais ignorar os problemas

sociais.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 14
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Sábado, 27 de janeiro de 2001

Pela primeira vez na semana, o Fórum Social Mundial ganha a primeira página em

três dos quatro jornais pesquisados: trata-se de uma ação do Movimento dos Sem Terra.

Centenas de agricultores, liderados por João Pedro Stédile, haviam no dia anterior

ocupado e arrancado os pés de soja de uma lavoura transgênica da empresa Monsanto.

A participação no protesto de Jose Bové, o líder da Fédération Campesine, da França,

recebe destaque em todos os diários.

Jornal do Brasil

1a página: foto da France Press, que se repetirá (embora não na capa) na Folha de

S. Paulo, mostrando em primeiro plano, Jose Bové, que parece jogar para o alto pés de

soja arrancados ao solo. A legenda relata: “O francês Jose Bové joga mudas de soja

transgênica, em protesto contra a multinacional Monsanto. O ativista participa do

Fórum Social Mundial.”

Dora Kramer, em sua coluna na página 2, sob o título “Fogo às velhas vestes”,

destaca a crítica de Roberto Freire ao Fórum Social Mundial. De acordo com a

colunista, Roberto Freire teria citado Marx para (transcrevo diretamente): “defender a

tese de que no lugar de promover um ‘frenesi antiglobalização’, o Fórum Social

Mundial que está ocorrendo em Porto Alegre aprofunde o debate sobre a integração do

mundo, retirando o processo ‘da bitola do mercado e da lógica financeira’ e dando a ele

uma visão humanista de gente e nações.’” Mais adiante a jornalista prossegue citando

Freire: “... a esquerda, ‘pelo menos aquela de formação democrática e continuidade

histórica’ é internacionalista, não xenófoba, ‘e se recusa a instituir a integração mundial

como um fantasma a ser exorcizado.’” Para afirmar logo abaixo: “A proposta de

Roberto Freire é que o Fórum Social Mundial aproveite a oportunidade da discussão


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 15
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

para privilegiar os valores socialistas em detrimento do “espernear vazio, mesmo que

contundente”.

Podem-se imaginar algumas hipóteses sobre a intenção da jornalista com esse

artigo. Sugiro duas, para pensar:

1- Dora Kramer sabe que a proposta do FSM coincide exatamente com a sugestão

de Roberto Freire — debater a integração do mundo fora da ‘bitola do mercado e

da lógica financeira’. Nesse caso, como jornalista, se desejasse comentar o fato

ou esclarecê-lo teria duas saídas: poderia apontar o engano de Roberto Freire ou

simplesmente não dar destaque a essa declaração. A outra possibilidade, dentro

desta primeira hipótese (ela sabe qual é a proposta do FSM, portanto, sabe que

as afirmações do senador Roberto Freire são enganosas), é que a jornalista faz

um uso ardiloso das afirmações de Freire, utilizando o discurso indireto para

construir uma crítica ao FSM, enquanto se mantém numa pretensa posição de

neutralidade. Por esta via indireta, a crítica se torna mais virulenta, pois embora

Freire seja membro do PPS, durante longo tempo foi do PCB (citado inclusive

no artigo) tradicionalmente identificado com a esquerda; dessa forma a jornalista

põe esquerda (do PCB) contra esquerdas. Tudo isso em nome da “informação”.

2- A jornalista, de fato, não sabe que a proposta do FSM coincide com a do

Senador, nesse caso deveria ter-se informado mais antes de escrever sobre o

assunto, o que não apresentaria grandes dificuldades, bastava uma visita ao sítio

do Fórum na Internet, ou ler com atenção a matéria que saiu no caderno Idéias

do jornal onde trabalha.

Encontramos na página sete, Editoria Internacional (como nos outros dias), ao lado

de notícia sobre terremoto na Índia, informação sobre o fórum: “Fórum faz críticas às
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 16
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

privatizações”. A matéria correspondente à foto da capa está na metade inferior desta

página, no meio dos anúncios. O título é: “Bové se une a MST”. O texto fala sobre a

invasão da área da Monsanto e destruição de “dois hectares de plantações com

experimentações de soja e milho transgênicos”. São mencionados “quase mil sem-

terra”.

Um Editorial da página oito dedica-se ao Fórum Econômico Mundial: “Ecos de

Davos”. O texto afirma que o fórum começou “Com a globalização ao fundo, os temas

em debate são todos cruciais e pairam acima das ideologias, credos ou raças.” (...) “com

líderes dos países em desenvolvimento cobrando distribuição mais justa dos benefícios

da globalização. Ouviram e foram ouvidos. E o eco de Davos certamente vai repercutir

nas próximas reuniões dos organismos multilaterais que disciplinam o comércio

internacional, como a OMC e o Gatt.”

A contra-capa do Caderno Idéias é dedicada ao fórum. “Uma alternativa ao

neoliberalismo. Fórum Social Mundial reúne esquerdas do mundo inteiro para criar

‘contrapoder planetário e enfrentar globalização.” José Mitchel fala dos convidados, da

presença da mídia internacional, do número de participantes, enfim, dá informações

sobre o que acontece em Porto Alegre.

O Globo

Na capa, uma foto de Jose Bové em primeiro plano, com uma plantação ao fundo,

onde se vêem, também, diversas pessoas. Título: “Bové e MST invadem fazenda”.

Subtítulo: “Cerca de 600 colonos destroem soja da Monsanto”. Legenda: “ José Bové,

líder rural francês, convidado do Fórum Social Mundial, arranca soja em terreno da

Monsanto, na cidade gaúcha de Não-me-Toque”. O texto não deixa claro que a invasão

fora em área plantada com vegetais transgênicos.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 17
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

No caderno de Economia, sob a rubrica Davos/Porto Alegre, a primeira cidade

merece três páginas, enquanto Porto Alegre recebe uma, que se detém sobre a invasão

da fazenda da Monsanto e destruição de lavouras de soja transgênica: “MST e Bové

invadem fazenda da Monsanto no Sul. Ativista francês e sem-terra brasileiros destroem

dois hectares de plantação de soja transgênica da multinacional”. Uma pequena notícia

aborda a censura a um dos convidados do fórum, Olivério Medina, ex-porta voz das

FARC; outra fala da presença de Lula: “Lula diz que não é anti-globalização. Presidente

de honra do PT quer prioridade para questões sociais.”

Folha de S. Paulo

A foto de capa mostra João Pedro Stédile, no meio da plantação, segurando pés de

soja arrancados; ao fundo vêem-se outras pessoas. Legenda: “João Pedro Stedile lidera

grupo de sem-terra que destrói lavoura de soja transgênica”. À esquerda da foto, sob a

rubrica “Globalização”, vemos o título: “Anti-Davos se torna palco para a Oposição”. O

texto aborda a participação no fórum de líderes do PT, que, segundo o jornal, estariam

se aproveitando da presença do público e da mídia. Sob a mesma rubrica encontram-se

ainda duas pequenas chamadas: “Anistia acusa governo suíço de repressão” e “MST

destrói no RS lavoura transgênica”, cujo texto calcula “cerca de 800 sem-terra” e afirma

que o líder do MST disse que seriam destruídas “todas as lavouras comerciais com

sementes transgênicas”.

O caderno Folha Globalização repete a mesma fórmula do dia anterior: a primeira

página (A8) é ocupada por matérias sobre o encontro de Davos. Faz-se aqui uma

“cronologia dos protestos antiglobalização” na qual não se inclui o fórum (nem os

acontecimentos) de Porto alegre. As duas páginas seguintes (A9 e A10) versam sobre o

Fórum Social Mundial. Título na página A9: “Enxame político toma vitrine de Anti-
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 18
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Davos”. Antetítulo: “Evento fica sem Intelectuais como Chomsky, Bourdieu ou

Saramago; políticos são atraídos pela mídia em Porto Alegre”. Segunda matéria da

página: “Debate é usado para lançar candidatura de Lula.” Um pouco abaixo, ao lado de

uma foto de Marta Suplicy, está o artigo de Contardo Calligaris que critica, novamente,

o governo do PT no Rio Grande do Sul e a “esquerda-caviar”. Na página A10

encontramos a continuação da matéria de capa. A foto usada é a mesma que aparece na

capa do Jornal do Brasil, da Agência France Press. Título: “MST queima soja

transgênica da Monsanto” e antetítulo: “Fórum Social. Cerca de 800 agricultores do

movimento destruíram dois hectares do produto em Não-Me-Toque, no RS”.

O Dia

A invasão não recebe destaque na primeira página; aparece na editoria de

Economia, como um box inserido numa matéria sobre a participação do Governador do

Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, no Fórum. Título: “Garotinho quer ação contra

paraísos fiscais” e subtítulo: “Governador chega ao Fórum de Porto Alegre pedindo

ética na economia.” Abaixo vemos uma foto de duas pessoas: um senhor, lenço verde

no pescoço, curvado para diante e alguém de pé, semioculto por plantas arrancadas. Na

legenda lê-se: “Indigesto. Manifestante ataca uma plantação de transgênicos.” Abaixo

da foto, colocou-se

o box: “Fórum ataca cultivo de transgênicos”.

Duas páginas adiante, Marcelo Auler (que assina também a matéria anterior)

indaga em sua coluna: “Que esquerda é essa?” e fala sobre uma “preocupação” de

setores da esquerda com incidentes que “comprometeriam” o Fórum Social Mundial;

assim como no Jornal do Brasil, Roberto Freire é citado, com uma crítica a Jose Bové e

à invasão da fazenda da Monsanto. Aqui, no entanto, “Freire não está entre aqueles que
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 19
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

criticam o Fórum, nem se diz enciumado com o evento.” Mas...(Porto Alegre) “não

pode servir de palco para propostas atrasadas”.

Imaginemos um leitor apressado, que houvesse, nesses dias, passado os olhos em

algum ou mais de um desses jornais. Que informação teria ele adquirido sobre o Fórum

Social Mundial? Será realmente “neutra”, desinteressada, a urdidura dos textos que

compõem a narrativa? Como se constrói, a partir de informação incompleta, um “fato”

compreensível e homogêneo, como exige a velocidade da informação?

Na verdade, incompletude, homogeneidade e facilidade de compreensão trabalham

de mãos dadas: o Fórum Social Mundial foi tratado de modo muito semelhante no

conjunto dos jornais. Salvo José Mitchel, em matérias publicadas na Editoria

Internacional do Jornal do Brasil, ninguém descreveu as discussões e propostas que

efetivamente ocorriam em Porto Alegre. Críticas, no entanto, não faltaram ao FSM e

insistiam sobre os mesmos pontos: a “apropriação” pelo PT, os gastos com a

organização do encontro, a “destruição” de soja da Monsanto pelo MST e a inutilidade

de ser “antiglobalização”. Enquanto isso, as análises feitas no Fórum Econômico

Mundial, merecem amplo espaço e destaque. A crítica, nesse caso, versa sobre a

repressão a manifestações. A justaposição de informações parciais é que leva a uma

compreensão simplificada: um Fórum Social Mundial com “cheiro de naftalina”,

“politizado”, “ideológico”, “raivoso” e onde não se sabe o que se discute fica esvaziado

diante de um Fórum Econômico Social cheio de propostas que reúne “líderes

mundiais”, é “conciliatório” e disposto ao “diálogo”.

1.3 - Primeira lição de jornalismo: como maquiar os fatos.

Talvez os tempos tenham mudado. Talvez não se ensine mais redação para jornal

desta maneira. Mas lembro-me perfeitamente de uma aula – lá pelos fins da década de
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 20
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

80 – durante o curso de jornalismo na Faculdade de Comunicação Hélio Alonso em que

o professor pedia aos alunos que escrevêssemos uma mesma matéria sob dois pontos de

vista diferentes: “a favor” e “contra”. Não se tratava de uma crítica a certas práticas

jornalísticas, tampouco se tratava de um treinamento para formar articulistas que

escrevessem nas páginas de opinião do jornal. Não, o pedido era claro: a matéria deveria

abordar um acontecimento objetivo. O “a favor” ou “contra” eram simplesmente uma

adequação à linha editorial do veículo, nada que se devesse questionar, apenas um dado

que se devia incorporar ao texto, uma técnica, que o pretendente a jornalista precisava

dominar.

Mais recentemente, Aloysio Biondi, jornalista e professor, denunciava, num ensaio

escrito para o Anuário de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero e

reproduzido em agosto de 2000 na revista Caros Amigos, as principais estratégias

empregadas pela imprensa (em todos os veículos, indistintamente, segundo o autor) para

trabalhar a matéria bruta dos fatos dando-lhes a forma apropriada aos interesses do

governo Fernando Henrique Cardoso.

Os truques expostos por Biondi são oito: “manchete às avessas”, onde a

informação é invertida e um problema apresentado como uma boa notícia; “manchetes

encomendadas”, quando o governo fornece dados enganosos a serem noticiados com

destaque com um objetivo específico, como desmoralizar a oposição, conseguir apoio

da opinião pública, aprovar ou justificar medidas governamentais, entre outros; “cifras

enganosas”, dá-se destaque para números da ordem do milhão ou bilhão, de modo

indiferenciado, sem fornecer padrões claros de comparação; “lide às avessas”, quando

se oculta a informação mais relevante no meio ou no fim do texto da matéria;

“prometendo o futuro”, quando se omitem os dados atuais ou se os escondem no corpo


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 21
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

da matéria e o destaque é dado para previsões as mais otimistas possíveis; “o sujeito

errado”, quando se põe a responsabilidade por uma crise verdadeira num acidente ou

fenômeno da natureza também verdadeiro, mas cuja relação de causa e conseqüência é

falsa; “o boi pelo bife”, dar destaque a um dado positivo (muitas vezes o único) de um

contexto negativo; “o bife pelo boi”, esconder no contexto (o mundo, a América Latina)

um dado negativo específico e “omissão escandalosa”, a simples atitude de não abordar

um assunto2.

Pensemos na cobertura dada ao Fórum Social Mundial. Quantos desses

malabarismos podemos detectar? A localização, ou ocultação, das matérias, no Jornal

do Brasil? A ênfase para as críticas, oferecida pelo O Globo? A criação de um contexto

mundial favorável na primeira página da Folha de S. Paulo ou ainda, nesse jornal, a

comparação do FSM com o FEM em Davos? A propensão, nos três jornais, a salientar

as ausências e não mencionar as presenças no Fórum de Porto Alegre? Um silêncio

geral quanto aos temas e número de palestras e oficinas realizadas?

O corajoso artigo de Aloysio Biondi põe a nu alguns dos truques e traquinagens

empregados consciente e intencionalmente por um grupo de profissionais para atingir

um objetivo específico. O próprio Biondi alerta que a sua não é uma lista exaustiva, pois

inúmeros são os artifícios utilizados quotidianamente. De fato, mesmo em nossa curta

amostragem já é possível identificar outras estratégias dos jornais para vender ao leitor a

ilusão de uma informação completa e neutra: o uso do discurso indireto para fazer

críticas; a diagramação que ilustra com fotos de um evento, textos relativos ao outro; a

distribuição de matérias por editorias que não lhes dizem respeito. Entretanto, esse jogo

de manipulação, posto em prática por este ou aquele personagem da mídia para servir a

certos interesses, é apenas a face mais explícita de uma influência que se exerce de
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 22
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

forma mais sutil e silenciosa. Estamos diante de um processo amplo que produz, como

um de seus efeitos, o profissional pronto a manipular e para além dele, o ambiente

mesmo em que prolifera3. Para dar conta desse processo é preciso (tentar) seguir os

múltiplos e complexos mecanismos que a cada momento o constituem, em grande parte

como reprodução de um modelo político e econômico que o ultrapassa, mas onde vez

por outra algo criativo também pode despontar.

1.4 - La pensée unique ou a “nova vulgata planetária”

Em janeiro de 1995, o Monde diplomatique lançou, num editorial assinado por

Ignacio Ramonet, a expressão “pensée unique” para delimitar um fluxo de discurso que

ganhava corpo e se impunha como realidade natural a uma toda uma série de campos.

Era a voz das grandes instituições econômicas e monetárias internacionais (Banco

Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento Econômico, etc.) que passava pelas faculdades de economia e

institutos de pesquisa, ganhava o ambiente da política e escoava, primeiro através da

imprensa especializada em economia e, em segundo grau, através dos meios de

informação geral, para o quotidiano das grandes cidades. “A tradução, em termos

ideológicos com pretensão universal, de interesses de um conjunto de forças

econômicas, em particular, aquelas do capital internacional.”4

Segundo Ramonet, na base deste pensamento está a separação entre política e

economia. A partir daí é possível tomar, dentro do âmbito da segunda, decisões que

respeitam unicamente as leis do mercado e do mercado financeiro — que ganham status

de leis naturais —, desembaraçando-se do obstáculo das preocupações sociais.

Competitividade e concorrência; liberalização, desregulamentação, privatização e


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 23
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Estado mínimo são alguns dos conceitos que norteiam a nova “política econômica”, que

passa a ser o principal projeto dos governos.

Os sociólogos Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant caminham na mesma direção que

Ramonet, ao apontar uma “nova vulgata planetária”; todo um novo vocabulário que

parecendo surgir do nada se impõe a diversas áreas do conhecimento, a diferentes

tendências políticas, ao discurso do senso comum, bem como ao discurso oficial.

“A difusão dessa nova vulgata planetária – da qual estão notavelmente ausentes


capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, tantos vocábulos
peremptoriamente revogados sob pretexto de obsolescência ou de impertinência
presumidas – é o produto de um imperialismo propriamente simbólico.”5

O fato de parecer surgir do nada, prosseguem os autores, faz parte da estratégia de

circulação desse vocabulário que se pretende padrão. Sua origem em condições

históricas determinadas, localizadas no tempo e no espaço, bem como as críticas e

polêmicas que as acompanharam na época de seu surgimento, são obscurecidas em

favor de uma universalidade forjada na repetição. Dessa forma problemas e temáticas

particulares, ligados ao universo específico da sociedade americana pós-fordista,

passam a circular por todo o mundo, em sua versão mais simplificada, servindo como

modelo e medida padrão para realidades totalmente diversas.

“Globalização” é uma dessas palavras que, incorporando um modo de vida e uma

organização social particulares, os faz circular como realidades acabadas e

inquestionáveis, apresentadas dentro de um quadro de fatalismo em face do qual a única

opção de sobrevivência seria adaptar-se, ou de preferência, engajar-se. Trata-se do senso

comum no sentido aristotélico: um tipo de conceito do qual se fala incessantemente, e

que se utiliza como argumento, mas cuja essência não se debate.6


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 24
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Em nome das pressões inescapáveis da globalização, governos de países como o

Brasil, por exemplo, se dispõem a acabar com os sistemas de proteção social (reforma

da previdência); promover o mercado de empregos mais flexíveis (fim da CLT);

oferecer vantagens ao capital internacional (isenção da CPMF para investidores

estrangeiros; benefícios fiscais para a implantação de empresas no país), entre outras

medidas justificadas pelo âmbito da economia. No entanto, jamais se dá visibilidade a

análises como a de Neil Fligstein7, que aponta como há mais de um século a maior

parte das trocas mundiais se dá entre países membros da Organização pelo Comércio e

Desenvolvimento Econômico (OCDE), e que só na década de 1990 ultrapassaram o

volume de 1913. Ou ainda que 83% da economia mundial não participam das trocas

mundiais; que EUA e Inglaterra foram os países onde mais cresceram as desigualdades

sociais, devido a transformações internas, como a perda de força dos sindicatos e o

aumento das diferenças salariais dentro de uma mesmo profissão (vedetização) e não à

desindustrialização. Enfim, que a globalização é uma retórica que invade a linguagem

da comunidade de economistas, justificando medidas que, na realidade, não provêm do

aumento do intercâmbio internacional, mas de alterações da economia americana na

década de 1980 face à concorrência específica das empresas japonesas.

Pode ser entendido a partir desse quadro o recente surgimento de uma nova

expressão – militantes antiglobalização –, repetida à exaustão na imprensa escrita,

radiofônica e televisionada, no Brasil e fora, para designar o grupo crescente e

heterogêneo de pessoas descontentes com a opção política de seus governantes de aderir

ao modelo econômico chamado neoliberal. Num passe de mágica o termo anexa as

vozes dissidentes e procura minimizar sua potência, ao referi-las a um universo de

significação previamente estabelecido e impregnado de valores, porém visto como dado


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 25
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

da natureza. E ao mesmo tempo obscurece não só o espírito da reflexão proposta, mas

também o caráter prático das manifestações. O que esses movimentos põem em questão

não é a globalização (até porque, no sentido de alcançar além das fronteiras dos países,

os manifestantes se globalizaram); mas, como já disse antes, a opção política de dar

mais importância à necessidade de lucro constante produzida por um determinado

modelo econômico, do que às necessidades de sobrevivência e bem estar social.

1.5 – A noção de campo jornalístico

O campo jornalístico como descrito por Bourdieu8 apresenta características

peculiares que o tornam território estratégico no confronto de interesses de diferentes

grupos sociais. Porque está diretamente implicado e cada vez mais submetido à lógica

comercial, que modifica as relações de força internas ao campo; porque esta lógica pesa

sobre seus profissionais, afetando seu grau de autonomia; porque através da veiculação,

tais pressões e modificações de forças, transbordam para outros campos de produção

cultural, afetando suas distribuições internas de forças. Bourdieu localiza no século

dezenove as bases da configuração atual desse campo social.

Vejamos brevemente o que se passava. Em 1814 a máquina a vapor é empregada

pela primeira vez na impressão, pelo Times de Londres. Na França, embora o primeiro

jornal diário date de 1777 (Le Journal de Paris), foi durante a primeira metade do séc.

XIX que ocorreram os desenvolvimentos que levaram à “idade de ouro” da imprensa:

surge a máquina que usa papel contínuo; a prensa cilíndrica, que imprime de 12 a 18 mil

exemplares por hora; reduz-se pela metade o preço das assinaturas anuais ( La Presse

cai de 80 para 40 francos); inaugura-se a imprensa popular, com Le Petit Journal que

custava apenas um “sou” (a menor unidade de dinheiro, na época); as ferrovias facilitam

a distribuição (a primeira rede ferroviária é de 1842) ; o telégrafo (1845) permite


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 26
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

transmissões velozes de notícias a distância.9 É o universo retratado por Edgar Allan

Poe em seu famoso conto “O homem das multidões”10, aliás, publicado pela primeira

vez numa revista: Burton’s Gentlemans Magazine, de dezembro de 1840.

O crescimento acelerado da produção e a concentração da população nas cidades

fazem surgir novos mercados e, concomitantemente, a disputa por eles. Os jornais se

oferecem como excelentes vitrines, vendendo seu espaço para reclames de

estabelecimentos comerciais, e mais tarde, para anúncios de produtos. Segundo

Bourdieu, já nessa época surge uma clivagem entre dois tipos de diários: os

“sensacionalistas”, que publicam notícias ligadas às misérias do cotidiano das cidades e

cujo objetivo é atingir o maior número possível de leitores, atraindo, dessa forma, mais

anunciantes; e os “objetivos”, que buscam se diferenciar dos primeiros, voltando-se para

a publicação de comentários e de análises.11 As primeiras décadas do século XX trazem

a já mencionada “idade do ouro”. Em 1910, a França ocupava o 1o lugar mundial em

tiragens, atingindo cinco milhões de exemplares. Em 1939, às vésperas da ocupação

nazista, tiravam-se no país 12 milhões de exemplares de jornais diários, somados os

parisiense e os das províncias.12

É preciso lembrar que na teoria de Bourdieu o espaço social é constituído por um

conjunto de posições distintas, exteriores umas às outras e correlacionadas, no sentido

que se definem umas em relação às outras, segundo critérios como proximidade ou

distância, mas também princípios de ordenação como acima, abaixo, entre. Tal espaço

social é atravessado por duas linhas de diferenciação: o “capital econômico” e o “capital

simbólico”. É de acordo com a quantidade de capitais acumulados que detêm (de cada

espécie ou de ambos), e com as porcentagens de um e de outro que entram na formação

de seu “capital global”, que os agentes ou grupos sociais se distribuem nele. Dessa
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 27
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

forma se originam pólos dominantes e dominados e posições intermediárias. O espaço

social é o palco dos afrontamentos entre grupos e/ou pessoas que procuram modificar

ou conservar as relações de forças existentes. Suas escolhas, ou melhor, “tomadas de

posição” são feitas sempre de acordo com as posições disponíveis e diferenças

relativas.13

Os campos sociais são “microcosmos com leis próprias”14 que compartilham um

mesmo espaço social e, portanto, também se definem uns em relação aos demais. Da

mesma forma que os outros campos de produção cultural, o campo jornalístico se

estrutura em torno de dois fluxos de pressões e sansões: as externas e as internas. Dentre

as pressões e sansões externas estão os anunciantes, os leitores, as autoridades públicas

(e privadas). As pressões e sansões internas são aquelas exercidas por outros jornalistas

e por características do próprio campo, como o estado de concentração da mídia e a

concorrência. O grau de autonomia de um jornal varia segundo sua maior ou menor

sujeição às pressões: quanto mais resistir, mais autônomo há de se manter. Essa tensão

constitui dois pólos do campo: o comercial, atravessado pela lógica do mercado, e o

intelectual, regido pela lógica profissional15; pólos que se relacionam com dois

princípios de legitimação diferentes -- pela maioria ou pelos pares.

O aparecimento da televisão e sua ascensão a uma posição dominante afetam o

conjunto do campo. Sua enorme capacidade de difusão ultrapassa em muito os números

atingidos pelo jornal, mesmo em sua época de ouro. E com a introdução (e

consolidação) da publicidade como principal modo de financiamento, a TV se aproxima

progressivamente do pólo comercial tornando-se dependente da legitimação pela

maioria, medida pelo índice de audiência. A vocação para atingir simultaneamente um

grande número de pessoas das mais diversas origens torna-se uma necessidade e passa a
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 28
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

afetar a escolha do que se vai mostrar: é preciso evitar tudo o que possa causar

desconforto e dificultar ou interromper a circulação; para isso, o melhor é manter-se no

âmbito dos consensos fáceis ou dissensos inócuos. Como fazê-lo? simplificando-se as

questões, aparando-se as arestas, oferecendo-se informações digeridas. Uma vez que o

desconhecido sempre corre o risco de não ser bem aceito (risco este alto demais para

quem depende da aprovação da maioria), resta como estratégia confirmar o já visto, já

sabido, já ouvido, ainda que em roupagens que façam crer no seu ineditismo.

Uma outra característica do campo jornalístico – a concorrência pelo público – faz

com que o sucesso de números da TV contagie os demais meios. Bourdieu demonstra

como, ao contrário do que se afirma correntemente, o ambiente de concorrência nos

meios de comunicação produz mais homogeneidade do que diferenciação.16 Jornalistas

são obrigados pela profissão a estar cientes ‘do que acontece no mundo’: por um lado

para buscar furos, por outro, para evitar levá-los. Isso significa que jornalistas assistem-

se, ouvem-se e lêem-se uns aos outros diariamente. E se ninguém pode permitir que o

outro mostre nada sozinho, então todos terminam mostrando a mesma coisa.

Acrescente-se a isso o treinamento para reconhecer o ‘fato jornalístico’: a distinção

entre o que ‘interessa’ e o que ‘não interessa’ obedece a certas categorias perceptivas

que, longe de serem inatas ou evidentes, são construídas pelo próprio campo. O

resultado é que sob diferenças superficiais se estende uma assombrosa similitude.

Situação essa chamada por Bourdieu de “circulação circular da informação” e por

Ramonet de “mimetismo mediático”.17

Essa questão é também abordada por Alain Accardo, sociólogo, professor da

universidade de Bordeaux, sob o ponto de vista do mercado e das (precárias) condições

de trabalho dos jornalistas. Um complexo mecanismo de coação e cooptação age dentro


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 29
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

do campo, conformando os profissionais a um comportamento adequado aos interesses

da empresa, sem no entanto retirar-lhes a boa-fé.

“O campo jornalístico, assim como muitos outros, só pode funcionar ao preço do


que devemos chamar de uma forma objetiva de impostura, no sentido que não
pode fazer o que faz, a saber, contribuir para a manutenção da ordem simbólica, a
não ser fingindo não o fazer, como se não tivesse outro princípio senão a utilidade
pública e o bem comum, a verdade e a justiça.” 18

E não se trata de hipocrisia, salienta o autor. A maior parte dos jornalistas acredita,

de fato, no que faz e se esforça para fazê-lo da melhor forma possível. Acontece que

essas pessoas (e não é exclusividade da profissão) estão também imersas em e são

formadas em grande parte por uma ideologia socialmente aceita. Instalar esse

mecanismo não exige a presença do poderoso dono do capital dentro das redações :

basta confiar no processo de seleção que há de instalar nas posições de chefia

profissionais que ao longo de sua carreira já tenham dado provas suficientes de sua

adequação ao estado vigente de coisas. A contratação dos demais profissionais seguirá

naturalmente os mesmos critérios e garantirá a homogeneidade de pontos de vista.

A adesão não se faz objetivamente em nome do capitalismo como sistema que se

baseia na acumulação crescente do capital, mas sim sob o aspecto bem mais digestivo

de “sinal dos tempos”, que se poderia traduzir por expressões como “modernidade”,

“democracia de mercado” ou “fim das ideologias”. Visão crítica e indignação com as

diversas mostras de sofrimento humano, como a miséria, a fome, o desemprego, a

violência, a mortalidade infantil são assimiladas e até valorizadas nessa perspectiva,

apenas não se faz a ligação interna das realidades chocantes com a própria ordem do

capitalismo. Ao contrário, tais males são vistos como desvios da organização desejável,

o lugar onde o sistema ainda não alcançou o seu desenvolvimento pleno; não são
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 30
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

percebidos como sintomas, mas como a doença em si. Ou seja, embora circule um

debate incessante, a análise dos problemas não se estende o suficiente para alcançar os

problemas essenciais, o modelo não é posto em questão.

Voltando a Bourdieu, seu projeto era esboçar um diagrama da distribuição de

forças e tensões presentes em cada campo que poderia ser aplicado a manifestações de

um mesmo fato em momentos e locais distintos, com o objetivo de encontrar as

particularidades históricas geradoras das diferenças e os mecanismos de reprodução do

espaço social. Podemos, por um instante, buscar pistas neste caminho para tentar

compreender o estado da imprensa no Brasil.

O jornal, segundo Nelson Werneck Sodré19, nunca chegou a ser um veículo de

massa em nosso país. As máquinas rotativas que imprimiam 15 mil exemplares por hora

e, em meados do século XIX, ajudaram a revolucionar a imprensa na Europa e nos

Estados Unidos chegaram ao Brasil no início do século vinte (1902). O diário com

melhor equipamento gráfico na época era o Jornal do Brasil, tirando a extraordinária

quantia de sessenta e dois mil exemplares. Cerca de 80% da população não era então

alfabetizada (o índice de analfabetismo chegava a 84% em 1890). Tampouco existia

uma malha de transportes desenvolvida, que permitisse o escoamento rápido dos jornais

para diversos pontos do país. Por isso, embora aponte uma transição da imprensa

artesanal para a industrial já no início do séc. XX, Nelson Werneck Sodré marca uma

diferença entre as pequenas e médias empresas jornalísticas daquela época e as grandes

empresas de hoje.

Outros pesquisadores, como Renato Ortiz e Fernando Lattman-Weltman20,

localizam na década de 1950 o verdadeiro estabelecimento do jornal como empresa no

Brasil, pois só então, com a industrialização, surgiu o contexto econômico –


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 31
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

constituição do público, modos de distribuição, integração do mercado – que permitiu o

seu desenvolvimento. A década de 50, no entanto, viu também o aparecimento da

televisão: novo e celebrado veículo de comunicação recebido como avatar da

modernidade, que era vivida no Brasil como projeto, uma utopia da modernização — e

isso, segundo Ortiz, pelas mais diversas correntes de pensamento. O autor menciona,

como exemplos dessa mentalidade do “Modernismo-meta”, a Semana de 1922 (por

antecipação), a arquitetura de Niemeyer, a receptividade aos projetos de Le Corbusier e

a construção de Brasília. Mesmo a análise gerada no seio do movimento comunista

considerava necessária uma passagem do pré-capitalismo ao capitalismo onde

“modernização e desenvolvimento se identificam como elementos de uma identidade

que se pretende construir.”21 Além disso, não havia o desenvolvimento econômico que

permitisse o funcionamento da tevê como meio de massa, a implantação das primeiras

tevês foi local, por iniciativa de famílias de industriais, e o alto custo dos aparelhos

limitava o acesso: era um meio “de massa” para um público restrito. Esse contexto

explica a recepção acrítica da nova tecnologia, mesmo nos meios intelectuais.22

Mais tarde, na década de 60/70, a televisão foi essencial no projeto de integração

nacional, tanto do ponto de vista político quanto de mercado (graças, não custa lembrar,

aos investimentos do Estado militar no desenvolvimento das telecomunicações). Ou,

como afirma Werneck Sodré, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil “concorreu

para o aparecimento, a função e a hegemonia dos meios de massa.”23

Esta coincidência histórica entre a consolidação da imprensa empresarial, o

surgimento da televisão e expansão do capitalismo em nosso país fez com que o pólo

comercial do campo jornalístico se desenvolvesse, em detrimento do pólo intelectual. A

imprensa não tinha ainda conquistado sua autonomia quando foi deslocada pelo peso
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 32
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

crescente do meio de comunicação de massa por excelência. Na corrida pela audiência,

movida pela disputa pelas verbas da publicidade, a imprensa necessariamente ficou para

trás. Mas, curiosamente (ou talvez devido à formação de conglomerados), no lugar de

forjar seu próprio espaço de singularização, colou-se ao modelo TV perseguindo

público segundo a lógica comercial dos grandes números. O desequilíbrio de forças, no

entanto, apenas se intensificou com o tempo: todos os jornais filiados ao Instituto

Verificador de Circulação (IVC), juntos, tiraram no ano de 2000 (de segunda a sexta

feira), quatro milhões e doze mil exemplares, sendo que o de maior tiragem, A Folha de

S. Paulo, tirou em média 425 mil; enquanto isso, a TV está hoje presente em 40 milhões

e 600 mil lares, ou seja, 98% dos domicílios brasileiros, sendo a que a rede mais

potente, a Globo, chega a 99,86% dos lares -- atingindo 5.444 do total de 5.507

municípios.24 Veremos adiante que ser tragado por esta concorrência não seria (nem é) a

única possibilidade de sobrevivência, embora se apresente como tal.

Os números da indústria mundial da comunicação, são aliás uma pista interessante

para se compreender melhor a associação cada vez mais estreita entre capital e

comunicação de massa. Em 1997 contavam-se no mundo cerca de 1,26 bilhões de

aparelhos de televisão; 690 milhões de assinantes de telefones ( aproximadamente 80

milhões de celulares) e cerca de 200 milhões de computadores (dos quais cerca de 30

milhões ligados na internet). Esse mercado rendeu para as indústrias de comunicação

um trilhão de dólares em 1995 e a projeção de então para 2001 seria da ordem de dois

trilhões de dólares, nada menos do que 10% de toda a economia mundial.25 Tal volume

de negócios, e a promessa de lucros que encerra, despertam o interesse de grandes

grupos empresariais, que se tornam os principais acionistas de jornais, revistas,

emissoras de televisão e rádio, produtoras de filmes, provedoras de internet, editoras,


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 33
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

empresas de telefonia etc. formando (ou tentando formar) gigantescos conglomerados

de mídia internacionais.26

O ritmo da concentração é notável e funciona em duas direções: horizontal (que

busca reunir setores diversos, do audiovisual às telecomunicações) e vertical (que

procura dominar programação, produção e distribuição em um setor). São inúmeros os

exemplos desse movimento e podemos citar as duas bilionárias fusões que marcaram o

ano de 2000: AOL-Time Warner (110 bilhões de dólares) e Vivendi-Universal. Para se

ter uma idéia do tipo de concentração em jogo, basta saber que esta, a segunda no

ranking mundial, ao longo dos dois últimos anos concluiu acordos com Sony e Yahoo

(para explorar mercados on-line), Dreamworks (distribuição de filmes); comprou o

formato de distribuição de música digital MP3.com; a editora americana de livros

escolares Houghton Mifflin; assumiu o controle da 1a operadora de telefonia móvel na

Polônia, Elektrim Telekomunikacja; assumiu 11% da Echostar, 2a rede de satélites dos

Estados Unidos, e comprou a USA Networks (tv e cinema) – e esta não é uma lista

exaustiva de operações.27

O objetivo empresarial da estratégia chamada de “convergência” é aproveitar as

monumentais listas de assinantes e oferecer-lhes a maior quantidade possível de

conteúdos, incluídos aí desde jogos, filmes e notícias até serviços de educação e saúde.

Os serviços de comunicação funcionam também como suporte de vendas de outros

produtos e serviços. Nesse cenário não é difícil compreender o motivo da urgência da

“desregulamentação” e “liberalização” dos mercados de comunicação. É certo que

fornecer entretenimento, notícias, informação, espetáculos, tornou-se, acima de tudo,

um grande negócio — e ainda melhor se for um oligopólio — cuja prosperidade se

baseia na circulação cada vez mais veloz, em superprodução e superconsumo de


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 34
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

imagens e textos, na fabricação de uma ansiedade infinita pelo máximo de informação

extremamente perecível: 200 canais de televisão, 24 horas de notícias ao vivo no ar,

todas as bibliotecas do mundo no seu computador, informações a cada minuto no seu

telefone celular...

Que os grandes grupos empresariais busquem o lucro não é surpresa nem novidade

alguma, porém sua entrada massiva no campo das comunicações leva ao

superdesenvolvimento da dimensão comercial e ameaça a autonomia dos diversos

setores de produção cultural. De fato, quando a grande mídia serve aos interesses das

grandes corporações, são seus próprios interesses que está defendendo. Quando difunde

um modo de vida baseado no superconsumo e no endividamento nada mais faz do que

cevar o público para seu próprio mercado. O lucro como objetivo subordina a

diversidade de valores existentes nos diferentes campos sociais; a audiência como

critério se sobrepõe a uma multiplicidade de princípios específicos de avaliação .

Mas não é apenas a grande economia que exerce sua pressão na mídia. O campo

jornalístico, por suas características internas – desde a necessidade constante e crescente

de notícias, até seu monopólio sobre o acesso à tribuna pública dos meios de

comunicação – torna-se também palco (e alvo) de manipulações por parte dos diversos

setores retratados. O fato é que as regras do campo, ou pelo menos as mais básicas

dentre elas (a percepção do que constitui notícia e a necessidade de consegui-las em

número crescente), tornam-se claras para diversos grupos que são seu objeto contumaz,

de tal forma que tais grupos passam a ajustar o seu comportamento e a elaborar suas

declarações com o objetivo de tirar melhor proveito da exposição. A intensa e próspera

atividade de assessoria de imprensa é apenas a face mais institucionalizada desse

processo (que daria em si um interessante assunto para estudo); podemos lembrar


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 35
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

também a espécie de simbiose entre personalidades da indústria cultural (atores de tv,

pop-stars, modelos) e mídia; e também a relação entre esta e personalidades da política,

que há muito ultrapassou o estágio do flerte.

Essa questão não passa desapercebida do próprio jornalismo, que em diferentes

ocasiões procurou expor o assunto, sobretudo diante de casos extremos como a morte de

Lady Diana e o affair entre William Clinton e Monica Lewinski. Um exemplo: em 9 de

agosto de 1998 o Jornal do Brasil dedicava ao tema duas páginas de seu Caderno B, sob

o título “Mídia, o coração da ética em jogo.” A abordagem, no entanto, não vai adiante,

não redunda em discussões coletivas, em que se poderia refletir sobre os mecanismos

em ação e esboçar propostas de mudança. Produz-se um efeito de expiação instantânea,

como se o simples fato de expor o problema já fosse por si a solução. E depois age o

esquecimento.

Ainda não é tudo. Nem só políticos e pop-stars aprendem a “lidar com a mídia”. O

número 101/102 da revista Actes de la Récherche en Sciences Sociales, de março de

1994, reúne uma dezena de artigos, na verdade estudos de caso, que destrincham e

analisam os mecanismos implicados na relação entre jornalismo e grupos retratados, ou,

nas palavras de Bourdieu,

“a influência que os mecanismos de um campo jornalístico cada vez mais


submetido às exigências do mercado (de leitores e de anunciantes) exercem em
primeiro lugar sobre os jornalistas (e os intelectuais-jornalistas) e em seguida, em
parte através deles, sobre os diferentes campos de produção cultural.”28

Patrick Champagne e Dominique Marcheti examinam, neste número de Actes de la

Récherche, as transformações no tratamento da informação médica relativas à epidemia

de aids desde o seu surgimento e, em especial, a cobertura dada (em fins da déc. 80,

inicio de 90) ao caso da contaminação de hemofílicos pelo vírus HIV através dos
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 36
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

compostos sanguíneos dos quais não poderiam prescindir para viver. Os autores

mostram como, na França, o “escândalo do sangue contaminado” foi construído na

mídia, num embate de forças, que durou meses, entre um grupo de contaminados, o

Estado, a Justiça, o meio médico e o meio jornalístico, cada qual procurando impor seu

ponto de vista dos acontecimentos, cada qual sofrendo e exercendo pressões do e no

campo jornalístico. No seu caminho, este embate construiu uma opinião pública,

distribuiu culpas e culminou num processo jurídico que condenou três altos funcionários

da saúde. No entanto, na opinião de muitos especialistas, as responsabilidades nunca

foram efetivamente apuradas, nem os fatos satisfatoriamente esclarecidos.29

Menciono esse artigo a título de ilustração, embora outros haja que caberia citar,

como Les Gangs et la Presse, de Martín Sanches-Jankowski, que estuda as estratégias

desenvolvidas por algumas gangues de Nova York, Boston e Los Angeles para se

relacionar com os jornalistas e se utilizar da exposição na imprensa para fins próprios,

tais como recrutamento de novos membros, delimitação de território, demonstração de

força, conquista de clientes e mesmo “páginas amarelas”. Ou a análise de Jacques

Andrieu sobre a interferência dos meios de comunicação ocidentais no movimento dos

estudantes chineses, que culminou com entrada do exército na praça Tian’anmen, em

junho de 1989.

Encontramo-nos aqui numa tessitura complexa em que já não se pode mais falar

apenas em “manipulação pela mídia” de fatos e notícias; há que se considerar também a

“manipulação da mídia”, em diferentes graus, por aqueles que são notícia ou fontes de

notícia. Como na física atômica, tornou-se impossível sustentar uma separação entre o

instrumento e o objeto observado, pois a observação é desde o início, interferência.

Desse modo, como pode qualquer meio de comunicação pretender objetividade ou


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 37
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

alegar neutralidade? Todo lance de discurso é fundamentalmente tomada de posição –

ainda que indiretamente, sob a alegação de certa necessidade de “acompanhar os

tempos”, “não perder o bonde da história”, “responder às demandas do público”.

A insistência em pretensas neutralidade e objetividade, comum à maioria dos

meios de comunicação, sem dúvida faz parte de um esforço de apagamento de sua

poderosa influência e de fato é um elemento importante na construção e manutenção de

tal força – como já nos mostrou a História em mais de uma ocasião. Mas o

esquecimento trabalha também dia a dia e a proliferação de notícias contribui para

aumentar sua velocidade, as lições da história sendo rapidamente tragadas para o buraco

negro da indiferença. É onde nos deparamos, talvez, com o mais profundo e sutil

aspecto da interferência: uma influência na forma como as pessoas percebem o mundo e

nele se inserem, a divulgação de costumes e comportamentos, o próprio recorte do que

merece ou não atenção, que Guattari chamou de produção de subjetividade. No próximo

capítulo aprofundaremos essa questão.

Por outro lado vimos que, pelo menos em parte, o objeto (os retratados, aqueles

que são notícia) adquiriu consciência sobre a presença e o funcionamento do

instrumento (a máquina da mídia), o que significa que pode, também, em algum ponto,

interferir. É preciso admitir, no entanto, que se a interferência pode ser recíproca, os

poderes estão longe de ser equilibrados, situação que se agrava em nosso país, onde a

distribuição de forças na mídia reproduz a distribuição de riquezas: a minoria concentra

em suas mãos a maior parte dos recursos.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 38
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

1
WHITAKER, 2000.
2
BIONDI, 2000.
3
Podemos mencionar sobre esse tema o trabalho de José Arbex Junior, que em sua tese de doutoramento
pela USP, baseado em sua experiência pessoal como jornalista, investiga a relação entre jornalismo e
história; a experiência direta e a experiência mediatizada; a construção e/ou difusão pela mídia de
metáforas que conformam o mundo; a interferência dos meios de comunicação nos rumos da história.
ARBEX JUNIOR,2001.
4
RAMONET, 1995 “La pensée unique”.
5
“La diffusion de cette nouvelle vulgate planétaire – dont sont remarquablement absents capitalisme,
classe, exploitation, domination, inégalité, autant de vocables péremptoirement révoqués sous prétexte
d’obsolescence ou d’ impertinence présumées – est le produit d’un imperialisme proprement
symbolique.” Bourdieu, P. e Wacquant L. La nouvelle vulgate planétaire, em: Le Monde diplomatique,
maio de 2000.
6
Idem.
7
FLIGSTEIN, 1997.
8
BOURDIEU, 1997.
9
GUILLAUMA, 1990.
10
POE, 1965.
11
BOURDIEU, 1997 (op. cit.)
12
GUILLAUMA, 1990 (op. cit.)
13
BOURDIEU, 1994 (a).
14
BOURDIEU, 1997 (op. cit.)
15
Id.
16
Ibid.
17
RAMONET, 1999 (p.20) e BOURDIEU, 1997 (op. cit. p.30)
18
ACCARDO, 2000
19
SODRÉ, N.W. 1999
20
LATTMAN-WELTMAN, 1996 e ORTIZ, 2001.
21
ORTIZ, 2001 (op. cit pp. 35-36). O autor observa que o ideal de modernização continua ativo em
nosso país, porém, não mais como projeto, uma vez que se realizou ainda que imperfeitamente, mas como
ideologia, no sentido de reforçar a ordem estabelecida.
22
Id.
23
SODRÉ, N.W. 1999 (op. cit. p. X).
24
GRUPO DE MÍDIA, 2001
25
RAMONET, 1999
26
A imbricação entre poderes econômicos e políticos nos meios de comunicação na França foi apontada e
criticada por Serge Halimi em Les nouveaux chiens de garde, Paris: Raisons d’Agir, 1997.
27
MUSSO, 2000; VULSER, 2001; LE MONDE 22 mai 2001, 21 juin 2001 e 13 set. 2001.
28
BOURDIEU, 1994 (b). Traduzido em BOURDIEU, 1997 (op.cit.)
29
Gostaria de salientar que em momento nenhum os autores põem em questão o drama dos hemofílicos,
simplesmente apontam as forças em ação, mostrando inclusive a diferença no desenrolar deste drama em
comparação com outro tão grave quanto, o dos contaminados em transfusões de sangue.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 39
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

2- A ORDEM É CIRCULAR

Non pas prédire, mais être attentif à l’ inconnu qui frappe à la porte.

Deleuze: Qu’est-ce qu’un dispositif?

2.1 – A partícula e a trajetória

O modelo de campo social desenvolvido por Bourdieu opera com uma noção de

diferença relacional ou “traço distintivo”. Ou seja, cada elemento (grupo ou pessoa) só

se define e delimita, só se diferencia, dentro do sistema e através da comparação com os

outros elementos. É como na lingüística, onde cada termo se define pela proximidade de

outros; Bourdieu inclusive lança mão de uma afirmação de Benveniste para explicar sua

concepção da diferença: “ser distintivo, ser significativo, é a mesma coisa”1. O modelo

de campo traça o diagrama do conjunto de posições distintas e coexistentes no espaço,

privilegia as aproximações, as distâncias, as tensões e as pressões entre elas. Os agentes

se portariam de acordo com um

“senso prático (...) sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de


divisão (o que chamamos comumente de gosto), de estruturas cognitivas duráveis
(que são essencialmente o produto da incorporação de estruturas objetivas) e
esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adaptada.”2

Ou seja, os gostos, os bens, as práticas dos agentes ou grupos, o que Bourdieu chama de

“habitus”, obedecem também ao sistema de diferenças que estrutura todo o campo

social, são “produzidos por condicionamentos sociais”3 secretados por sua posição no

sistema.

Delinear a configuração do campo permite que observemos o estado das forças em

ação num determinado momento, numa sociedade determinada e a aplicação desse

modelo busca compreender o princípio de construção do espaço social em questão e


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 40
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

apreender os mecanismos de sua reprodução. É como fazer um retrato de uma situação

de jogo: as forças aparecem congeladas naquele instante e pode-se, a partir da

distribuição flagrada, prever, ou melhor, inferir movimentos passíveis de ocorrência.

Esse esquema, no entanto, dá impressão de tal equilíbrio que nada foge. Mesmo as

transformações são vistas como efeitos das contradições e disfuncionamentos, estes

também gerados pela distribuição de forças do campo.

Se as estratégias individuais se baseiam em avaliações de situações objetivas de

acordo com coordenadas perceptivas dadas no campo; se elas se desenvolvem num

determinado sentido graças a ações e escolhas, pensadas ou não, mas limitadas também

a um número de possibilidades, geradas pela posição relativa do “agente” dentro do

campo; cabe perguntar: como se instalam e mantêm instaladas tais coordenadas

perceptivas? Por que e como são limitadas as escolhas? Ou: como se escapa do “senso

prático”? E, sobretudo, qual é o lugar do ruído, do mal-entendido, ou da invenção?

Todas essas indagações ecoam a questão que Foucault põe ao estruturalismo, ou seja,

como se pode pensar o acontecimento na estrutura?4

São encruzilhadas a cada passo que constituem a vida: a qualquer momento pode

incidir uma fagulha de inesperado, há forças que fogem ao controle e mesmo aos

interesses objetivos que as geraram. Quando observamos um campo onde os

movimentos acontecem precisamente nos lugares esperados, repetindo padrões que lhes

são anteriores, ou seja, quando a reprodução é a constante, não será também esta uma

produção do campo? Quero dizer, não haverá nisso um trabalho efetivo, uma produção

de reprodução? (A reprodução, a que se refere Bourdieu, não deveria a meu ver,

portanto, ser entendida como força inercial, mas como força ativa.)
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 41
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Gostaria, nesse ponto, de tomar de empréstimo à física atômica a noção de

complementaridade, segundo a qual métodos de observação mutuamente excludentes

iluminam aspectos diferentes do fenômeno observado gerando, não contradições, mas

visões complementares da realidade. Essa noção é utilizada, por exemplo, nos estudos

do fenômeno da luz. Do ponto de vista da teoria eletromagnética a luz sempre foi

descrita como onda de alta freqüência e diminuto comprimento, sendo portanto

entendida como transferência contínua de energia numa trajetória praticamente

retilínea, e nessa teoria se baseiam tanto a localização dos corpos pela visão direta e

através de instrumentos óticos, como as descrições dos fenômenos de cor. No entanto,

experiências posteriores observaram um caráter de atomicidade no mecanismo de

transmissão de energia: a transferência de energia pela luz poderia ser decupada em

micro-fenômenos individuais, em cada um dos quais seriam trocados um quantum de

luz; a partir desse método de observação, no entanto, não se pode atribuir aos quanta de

luz uma trajetória bem definida. “Na verdade, nossa imagem de propagação

espacialmente contínua da luz e a atomicidade dos efeitos luminosos são aspectos

complementares, no sentido de descreverem características igualmente importantes dos

fenômenos luminosos.”5

Como vimos, o diagrama de Bourdieu mostra um estado do campo social num

momento determinado de sua história; congela esse momento e observa as relações de

força que o configuram como tal, mas parece não deixar espaço para o inesperado.

Talvez seja possível lhe justapor um pensamento do processo; um pensamento que

permita acompanhar a velocidade das fugas e descobrir onde, no campo, irrompem as

fagulhas que podem desencadear transformações, ou como se desprendem de um

sistema organizado fragmentos que escapam à organização original, rompem com a


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 42
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

reprodução e inauguram novos mundos. Ou, para usar o termo empregado por Guattari,

onde vigora a possibilidade de singularização. Muito temos a ganhar se conseguirmos

observar simultaneamente as formações de campo e o movimento dos fluxos (ou as

partículas e as trajetórias). Seria para isso necessário se aventurar num pensamento que

oscilasse entre os dois modos de construção e vivesse na vertigem dessa oscilação entre

velocidade e distância: o que chamo aqui de pensamento vertiginoso.

Porque cada partícula é, desde sempre, trajetória, o pensamento vertiginoso se

encontra incessantemente no cruzamento de inúmeros caminhos, reais e virtuais, e

precisa mapear tantos quantos puder; mas o próprio pensamento é também trajetória,

dessa forma, além de carregar a poeira de tudo que o produz, está constantemente

exposto a choques e rupturas, desvios e impasses. Mas então, tudo é movimento — a

vertigem é a da velocidade. E faz-se necessário interferir com uma pausa, tentar um

afastamento das transformações que nos arrastam, para observar da distância as linhas

que formam o processo, como de um satélite se pode obter um mapa aéreo. A outra

vertigem se insinua — vertigem da distância, ou da altura — e nos obriga a novamente

pôr os pés na pista veloz das trajetórias.

Esboçado, com Bourdieu, o diagrama do campo jornalístico no primeiro capítulo

(e voltaremos a ele, adiante), é o momento agora de mergulhar nos fluxos.

2.2 - Uma subjetividade em escala planetária

A ordem é circular. Tanto no sentido de organização em círculos, como no sentido

imperativo: entre na circulação geral! Participe! Os grandes riscos são ficar de fora e ser

ultrapassado. Portanto, a circulação deve ser rápida. Cada vez mais rápida. Estudantes

nas universidades querem, no menor tempo possível, ser preparados para o mercado. Os

jovens executivos concluem que não é bom para a carreira ficar mais do que quatro anos
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 43
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

no mesmo emprego. E todo mundo sabe que a informação é imprescindível para o

sucesso, cujo modelo se poderia resumir em fama&fortuna. De onde vêm esses saberes

comuns?

Vimos com Accardo, como jornalistas são preparados no campo jornalístico para

obedecer as regras do jogo da informação, de modo que ( na maioria das vezes) é

cumprindo seu trabalho dentro da melhor consciência profissional que reproduzem e

reforçam a organização existente de forças.6 Da mesma forma, para que o circuito se

cumpra, é preciso que exista um leitor-auditor-telespectador preparado para o consumo

da informação. O que explica (ou produz) a voracidade por notícias? Por que preciso

saber, 24 horas, ao vivo, “o que se passa no mundo”? E qual é o critério a determinar

que são precisamente aquelas informações que mais circulam nos jornais, revistas, TV e

grandes portais da internet as que me servem? A profusão de imagens e textos garante

uma compreensão mais completa da atualidade?

O duo disponibilidade e saciedade é apontado por Janice Caiafa em “Nosso Séc.

XXI. Notas sobre arte, técnica e poderes”7 como um dos mecanismos de alimentação da

indústria da mídia. O consumo de mercadorias culturais fornece uma sensação de

saciedade instantânea. A vida do produto se esgota no próprio ato do consumo, afinal

ele foi mesmo feito para isso: aplacar de um só golpe a fome ou sede de informação,

emoção, explicação, sensação (e cada vez mais todos esses anseios confundidos). A

saciedade, porém, não dura nem prolifera. Nada se guarda do produto senão a

lembrança vaga do apaziguamento trazido pelo próprio momento do consumo – a

intensidade é simultaneamente liberada e capturada. Em pouco tempo volta, agravada, a

necessidade que motivou a busca e inicia-se novo curto ciclo: desejo-consumo-

saciedade.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 44
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Dessa forma é o próprio desejo que está acoplado à ordenação circular. Seu lugar

de realização está bem centrado no consumo. Cada nova busca será direcionada a certos

produtos de absorção imediata, que não trazem dificuldade, não oferecem resistência,

não demandam esforço. Mas é preciso que se creia em todo um universo para manter o

desejo fixamente atraído pela força centrípeta do movimento, ou isto se romperia.

Deleuze e Guattari mostraram no Anti-Édipo que o desejo é produtivo, “princípio

imanente”, o motor de uma “máquina desejante” cujo produto é o próprio real. Nesse

sentido, o desejo é uma força vital: livre, sempre encontra brechas, sempre pode

escapar. Por isso, atar o desejo é uma empreitada que exige trabalho constante. “O

problema do socius sempre foi este: codificar os fluxos do desejo, inscrevê-los, registrá-

los, fazer com que nenhum fluxo escorra sem ser tampado, canalizado regulado.”8

Em Micropolítica: cartografias do desejo, Felix Guattari aponta a “produção de

uma subjetividade em escala planetária”. Uma “subjetividade capitalística” que se

engendra dentro do mesmo processo de produção de sabão, eletrodomésticos, carros,

hambúrgueres e filmes enlatados.9 A noção de subjetividade em processo proposta por

Guattari se opõe às noções de um sujeito fundamental, ou de um indivíduo centrado no

ego, ou de uma subjetividade recipiente, um vazio a ser preenchido. É a noção de uma

subjetividade dinâmica, coletiva, imersa no cotidiano e que supõe a articulação de

múltiplos elementos heterogêneos. Participam dessa produção materiais semióticos

(linguagem, escolas, artes, ciência, religião etc.) e também corpos (natureza, arquitetura,

ferramentas, máquinas, equipamentos etc) — o que Guattari chamou, no conjunto, de

“ambiente maquínico”.10 Sendo que tal processo é duplamente descentrado em relação

ao nível pessoal, pois inclui instâncias que o ultrapassam, por um lado, na direção dos

grandes sistemas sociais e, por outro lado, na direção de percepções e afetos, sistemas
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 45
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

biológicos e orgânicos. A conexão entre a diversidade dos elementos tanto se pode

realizar de forma reprodutiva de modelos, como de forma criativa, singular e, como

veremos adiante, será largamente ditada pelos agenciamentos coletivos de enunciação.

A subjetividade capitalística aparece como efeito do investimento em um tipo de

conexão — centrada no consumo, submetida à lógica do lucro —, entre os elementos

tão heterogêneos. Nos braços dos negócios, ou nas asas dos meios de comunicação (mas

sobretudo na união de ambos), a subjetividade capitalística vai cada vez mais longe,

atravessando países, regiões, cidades, aldeias, e se impõe, por sua redundância, como

uma subjetividade referencial, um modelo ou padrão de desejo e comportamento.

O primeiro impacto é de desterritorialização. O modo de vida capitalístico, seu

sistema de equivalência geral de valores, sua aposta na velocidade de circulação, sua

fascinação pelos avanços tecnológicos tiram do lugar os códigos tradicionais das

comunidades onde chegam, liberando uma formidável quantidade de fluxos de desejo

que até então se concentravam em territórios diversos e bem demarcados, como as

relações de parentesco, as segmentações de idade e gênero, os trabalhos, as crenças,

festas e rituais. O segundo momento é de recaptura: os fluxos recém liberados são

atraídos para a circulação geral, centrados no valor do capital. Assim é a lógica do

sistema capitalista: é preciso liberar para se apropriar e acumular (ainda que hoje a

acumulação se realize na circulação).

A grande mídia, que, como vimos no primeiro capítulo, passa por um processo de

intensa concentração, formando conglomerados gigantes em que a lógica comercial,

com seu objetivo de obter o maior lucro possível, se sobrepõe à lógica profissional, é

um elemento importante na produção da subjetividade capitalística. As informações que

circulam ao redor do mundo nos circuitos dominantes da comunicação são como que
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 46
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

filtradas por uma lente, que não distorce propriamente a realidade, mas através de um

jogo de luz e sombras brinca de esconde-esconde com os fatos. Insisto: a mídia não é a

própria lente, à qual poderíamos chamar, como faz Guattari, por seu nome próprio:

Capitalismo Mundial Integrado. A mídia é, no entanto, um dos lugares privilegiados de

amplificação e reprodução desse ponto de vista sobre a vida que se desenvolve num

ambiente mais amplo, incluindo elementos tão heterogêneos como meios de

transporte11, modos de habitação, modelos de lazer e métodos de educação, para

mencionar apenas alguns.

É verdade que a relação entre meios de comunicação e capitalismo mundial

integrado se tornou tão próxima que Muniz Sodré identificou na aliança entre novas

tecnologias, comunicação e economia de mercado com pretensões universais o

surgimento de uma “tecnocultura”12. Nesse novo contexto, mercadorias culturais, — de

filmes a notícias, de best-sellers à publicidade, da moda à música — funcionam como

cavalos-de-tróia pós-modernos, destilando no cotidiano os valores do consumo e

permitindo a expansão do mercado. Segundo o autor, é duplo o interesse das empresas

capitalistas nesse nicho: abre-se espaço para a distribuição dos produtos “duros” da

tecnologia (vivemos atualmente a fase dos equipamentos que reúnem vídeo e áudio,

informática e telefonia); que por sua vez constituem-se em canais de distribuição de

conteúdos, que podem ser filmes, novelas, notícias, documentários, música, videoclipes,

desenhos animados etc. Estes, por sua vez, são espaços de exibição dos novos

equipamentos, seja diretamente, pela publicidade, seja indiretamente, pelo estilo de vida

— e reiniciamos o ciclo. Podemos acrescentar que num primeiro momento os esforços

de venda visam a minoria economicamente privilegiada, depois, com a obsolescência da


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 47
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

tecnologia, voltam-se para as classes populares (movimento baseado nas vendas a

crédito).

Sodré aponta, no Brasil, a televisão como o meio de comunicação que faz o nexo

entre a vida cotidiana e a lógica do consumo: o discurso televisivo se cola, por um lado

ao movimento aparente da atualidade e por outro, à vida privada do espectador,

funcionando como um fio organizador, mas por ser financiado e pontuado pelo fluxo

publicitário, estabelece uma continuidade entre atualidade, vida privada e consumo. No

caso da novela, as fronteiras entre discursos se tornam mais tênues:

“A idéia de um cotidiano já definido pela lógica do consumo incorpora-se ao


teledrama, donde a facilidade de integração entre conteúdos comerciais e
conteúdos especificamente dramáticos. Em muitos casos o enredo é mero apoio
para a simulação de relações pessoais mediadas pela visão publicitária ou
mercadológica do mundo.”13

O processo de integração de uma cidade rural do interior de São Paulo à sociedade

capitalista de consumo e a participação sucessiva dos meios de comunicação nesse

processo, com ênfase para a televisão, é o tema de “O paraíso via Embratel” de Luiz

Augusto Milanesi.14 Embora se detenha no período que vai do início do séc. XX à

década de 1970, essa pesquisa aponta aspectos de interesse para os estudos atuais.

Gostaria de destacar o crescimento no grau de aceitabilidade das novidades,

proporcional ao aumento da velocidade de circulação das informações e de seu alcance.

Por exemplo, se a moda dos cabelos curtos para mulheres, trazida pelo cinema na

década de 1920, foi assunto de uma polêmica que durou quatro anos nos jornais locais

da cidade, a moda do rock’n roll (em 1957) produziu uma pequena discussão e

mudanças posteriores foram incorporadas sem discussão alguma. O autor identifica a


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 48
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

cotidianidade do rádio e da televisão como um elemento dessa transformação e, como

outro, a redundância das mensagens em todos os meios.

Outro aspecto que importa ao nosso raciocínio reter desse livro refere-se à difusão

das mercadorias culturais. Segundo Milanesi, no que diz respeito às modificações de

hábitos trazidas especificamente pela televisão, a mais notável se refere à maneira de

viver o lazer e sua relação com o trabalho. As duas esferas eram tradicionalmente

vividas, na comunidade predominantemente agrícola, em conjunto, sem separações

entre o tempo de festejar, caçar, pescar, fazer produtos caseiros e trabalhar a roça. A

urbanização e a chegada dos meios de comunicação, sobretudo a TV na década de 60

(em Ibitinga), introduziram os hábitos da grande cidade e alteraram esse quadro. Não só

lazer e trabalho passaram a formar pólos opostos, como o costume de fazer foi

substituído pelo hábito de comprar pronto — do sabão ao entretenimento. “Para uma

cidade pequena como Ibitinga, a compra de divertimento tornou-se mais cômodo, da

mesma forma que os produtos industrializados foram substituindo o produto artesanal.

O oferecimento de determinados produtos prontos acabou rotinizando determinados

tipos de lazer, ou seja, o público tornou-se dependente do prático.”15

A interferência da televisão incidiu sobre os costumes e sobre os horários.

Diminuiu, quase desapareceu, o hábito de fazer visitas e quando elas ainda ocorriam era

em torno do novo equipamento doméstico. O assunto das conversas também se

transformou: deixou de ser o cotidiano da cidade e passou a versar sobre os programas

de televisão, não no sentido de se discutir o tipo ou a qualidade das produções, mas sim

a trama de suas narrativas, a vida e as atitudes de seus personagens. Quanto aos

horários, o tempo de vigília se alongou noite a dentro, graças à atração pelas novelas
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 49
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

transmitidas desde a hora de jantar, o que significa que a conversa familiar ao redor da

mesa foi também substituída pelo silêncio familiar ao redor da televisão.16

Lá se vão trinta anos desde a realização da pesquisa em Ibitinga e muita coisa

certamente mudou. Pode-se por exemplo mencionar o surgimento da informática, o

desenvolvimento das redes e a febre de interatividade que atingiu toda a mídia desde

então. A idéia geral é que a interatividade tiraria o espectador de seu silêncio,

reintroduziria o diálogo na comunicação de massa. As condições técnicas desse diálogo

são dadas pelas tecnologias de digitalização da informação (som e imagem) e pelas

novas vias de transmissão de dados. E também é certo que diferentes usos se podem

fazer dessas possibilidades. Mas quanto à relação de grandes empresas de comunicação

com o público, a celebrada interatividade merece um olhar mais demorado. É o que

encontramos na análise de Cebrian: “Regreso al futuro”.17

Trata-se de um texto denso que levanta diversos problemas sobre nosso estado de

envolvimento com os meios de comunicação, onde a hiper-conectividade convive com o

hiper-isolamento; onde a disponibilidade de um volume sobre-humano de informação

convive com o mais completo alheamento; onde a tecnologia mais avançada age sobre

nossos mais primários condicionamentos biológicos. O trecho sobre a interatividade na

internet dá a pensar. Uma das principais características da rede mundial de

computadores, e seu principal encanto, é ter um crescimento horizontal: os discursos

provêm de todos os lados e se cruzam sem nenhuma hierarquia, sem nenhuma ordem

aparente, no que se desconsidere o poder de filtro exercido pelos portais, servidores e

mecanismos de busca. É possível participar de salas de diálogo sobre qualquer assunto

imaginável, ou mesmo iniciar uma nova, que não se tivesse ainda imaginado, sendo que

não é absolutamente necessário conhecer o assunto para discuti-lo (o que de resto já


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 50
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

acontecia em qualquer mesa de bar). Junte-se a esse descomprometimento, o fato que

qualquer pesquisa lançada em sítios de busca resulta numa quantidade monumental de

informação com a qual é impossível se lidar. E na qual é impossível se distinguir a

procedência, a pertinência e a confiabilidade. Ou seja, o excesso de informação produz

sobretudo, confusão. E na confusão torna-se difícil exercer a capacidade de escolha, o

que leva a uma tendência a delegar esta capacidade a outrem, ou seja, a escolha é tão

farta que se tende a não escolher; o que significa um duplo fortalecimento das “marcas”

mais reconhecidas (na seleção e na autoridade).18 Mais reconhecidas nesse caso, são as

mais vistas e aqui entramos no âmbito do marketing, conseqüentemente do poder

econômico. Daí as grande empresas de comunicação se verem investidas de grandes

poderes de seleção (do que é ou não importante) e de aval (em que discursos se deve ou

não confiar).

2.3 – O burburinho de fundo

Impossível, a essa altura, não recorrer a Bakhtine: por toda parte ouvimos vozes:

as vozes do tempo, que fazem com que toda enunciação seja, desde o princípio, diálogo,

ainda que interior. Nunca estamos diante da página em branco (já uma voz que retorna:

qual foi mesmo o artista que disse isso?); é ao contrário, um palimpsesto que guarda

sempre os vestígios de suas múltiplas, infinitas utilizações.

O problema para Bakhtine era explicar os fenômenos ideológicos de um outro

ponto de vista, que não o da consciência individual, ou seja, fugindo ao âmbito da

psicologia. Não a consciência produzindo ideologia, mas um amplo ambiente ideológico

produzindo consciência. Convém rememorar o raciocínio: segundo o autor, o lugar da

ideologia, por definição é o signo: este é o que representa e refrata a realidade, podendo

ser-lhe fiel, ou deturpá-la, ou ainda observá-la de um ponto de vista determinado. Os


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 51
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

signos brotam no terreno interindividual, o terreno das relações sociais, sendo portanto

condicionados pelas condições de interação. É na língua que os aspectos fundamentais

da comunicação social ficam mais claros, por dois motivos: a realidade da palavra é

toda absorvida por seu valor de signo; e a palavra é um elemento comum a domínios

diversos — arte, ciência, religião, estando presente também nas ações ordinárias da

vida cotidiana.

Em suma, se palavra é o signo por excelência e, como tal, ideológico; se a

consciência é estruturada pela palavra, então, a consciência é constituída com a

ideologia. Esse raciocínio propõe um processo ininterrupto de comunicação, toda uma

corrente histórica de enunciados que antecede, atravessa — e forma — as consciências

em cada momento histórico, sempre em contato com o contexto social. Fabulosa

inversão pois exatamente aqui caem as barreiras erguidas por Saussure, em sua

preocupação de delimitar a lingüística como nova ciência, e que protegiam a língua de

todas as impurezas das circunstâncias, relegando-as à fala (parole), excluída dos

domínios da disciplina.

Bakhtine, em sua releitura crítica, abre a língua para o social. A idéia de um

continuum de comunicação que se estende no tempo, antecedendo o indivíduo,

compreende as condições de produção dos enunciados, dentro dos quais se dobram as

inflexões de classe, o ambiente técnico e as situações culturais. Como toda enunciação

se baseia no discurso indireto — falamos e escrevemos sempre de ouvido, de ouvir

dizer — a enunciação deixa de ter caráter individual, para se tornar fato social; e todo

enunciado é desde o início réplica. A linguagem não tem origem na concretude das

coisas, os enunciados afloram do burburinho de fundo, constituindo em sua passagem as


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 52
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

consciências e atualizando-se no contexto social, onde há de se dar uma renovada

compreensão.

As teses de Bakhtine sobre o discurso indireto são retomadas, mas também

deslocadas, levadas mais adiante, por Deleuze e Guattari.19 Sim, pensar que nos

movemos de um a outro dizer. Mas escapar da ideologia como forma do contato entre

linguagem e mundo, ou entre enunciados e corpos. A mediação pelo signo nos aprisiona

ao âmbito da representação, que traz em seu bojo o problema da fidelidade ou falsidade

em relação a um mundo concreto que seria primeiro. Para Deleuze e Guattari, a questão

é toda outra: duas ordens independentes e heterogêneas, a dos signos e a das coisas,

convivem e se articulam de um certo modo, sem que haja de uma a outra subordinação,

mas interferência mútua.

2.4- Dito e feito, ou a interferência linguagem-mundo.

Não é apenas o imperativo que ordena. Na base da linguagem, dizem Deleuze e

Guattari em “Postulados da Lingüística”, está sempre uma ordem, mesmo que não seja

explícita. Não se trata, porém, de uma origem, mas de “uma função co-extensiva da

linguagem”. Serão as determinações de número, gênero, grau etc, a ordenação, a

classificação, a segmentação do mundo de acordo com as hierarquias da língua; mas

também, além ou aquém disso, um uso instrumental primeiro, a distribuição de

comandos, a determinação do que deve e do que não deve ser feito e observado. Nesse

caso, o ensino, mais do que da aprendizagem, se ocuparia do condicionamento:

transmitir e recompensar as respostas corretas para cada estímulo. Dessa forma, impor

desde muito cedo todo um sistema de mundo, estabelecer as “coordenadas semióticas”

que funcionarão pela vida afora. “A linguagem não é mesmo feita para que se acredite

nela, mas para obedecer e fazer obedecer.”20


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 53
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Pensemos na pergunta que assombra, nesse tempo em que vivemos, a arte, a

poesia, a ciência, o pensamento: para que serve? Ordens proliferam e se retorcem como

vermes dentro desse enunciado-sentença. Por “servir” entende-se ter aplicação imediata

e retorno quantificável. Deverás servir aos sistema geral de produção de riquezas e

reprodução do valor central do capital; deverás entrar em circulação; deverás ser

reconhecido, consumido e esgotado. No entanto, outras indagações não se formulam,

por exemplo: de onde brota essa pergunta? Para que, ou a que, serve a própria pergunta?

Está talvez no discurso indireto a resposta. Ou antes, nas palavras de ordem de que

é cevado. É o que apontam Deleuze e Guattari no texto citado acima: que o discurso

indireto é de fato atravessado por palavras de ordem a que todos os enunciados

obedecem. Parecem misteriosas tais ordens silenciosas, mas os autores estão se

referindo às investigações de Austin a propósito de certos enunciados que não se

encaixam nas tradicionais classificações da lingüística. Esses enunciados não afirmam,

nem descrevem um estado de coisas, também não dão ordens ou transmitem

informações, mas realizam a ação mesma que pronunciam; frases como: — Eu te batizo

Antônio. Austin nomeou-os “performativos”. Ao aprofundar sua pesquisa, no entanto, o

autor verifica que todos os enunciados podem ser encarados como performativos, pois

guardam uma relação intrínseca com ações que se dão na, pela ou com a fala. Da mesma

forma como se faz uma promessa dizendo ‘Eu prometo’, pode-se considerar que uma

afirmação simples — ‘Está um lindo dia’ — oculta o performativo ‘Eu afirmo que (está

um lindo dia)’ que efetua a afirmação. Esta relação interna entre enunciado e uma ação

que nele se realiza, Austin chamou de força ilocutória.21

Eis o que Deleuze e Guattari chamam de palavras de ordem: tal relação interior

entre todos e quaisquer palavras e enunciados com os atos ilocutórios, ou pressupostos


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 54
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

não discursivos, ou pressupostos implícitos. Seria portanto necessário ficar atento ao

que se diz por dentro do que se diz. Quando cada enunciado é ato, não existe pura

transmissão de informação, a língua não tem essa faculdade. O mais importante, porém,

é que por sua ligação com os pressupostos implícitos, os enunciados ficam ancorados

nas circunstâncias de enunciação. “‘Eu juro’ não é o mesmo se for dito em família, na

escola, em um amor, no interior de uma sociedade secreta, no tribunal: não é a mesma

coisa mas tampouco é o mesmo enunciado.”22 O que permite afirmar que é impossível

separar a língua de sua realização. Estamos, portanto, em plena pragmática: sujar a

língua de social, de política, de variáveis; devolver a língua aos agenciamentos. Não

existe a Língua como campo separado, isolado; a língua está desde sempre atravessada

das matérias orgânicas e inorgânicas que constituem a sociedade.

A natureza dos atos imanentes à linguagem fica mais clara quando os autores

exemplificam que tipo de ações são efetuadas. O veredicto do juiz não é uma ação que

se exerça diretamente sobre o corpo do acusado, mas uma atribuição que muda

instantaneamente o seu estatuto. A sentença transforma o acusado em condenado.

Nenhuma mudança ocorreu concretamente na pessoa do réu, a transformação é

incorpórea: dá-se na expressão e é atribuída ao corpo, que a partir de então estará

inserido em um outro agenciamento, ficando exposto a novas ações e paixões que (essas

sim) afetarão concretamente o corpo: um novo regime alimentar, uma nova disciplina

de exercícios. Podemos também recorrer a um exemplo bastante fresco na memória dos

brasileiros maiores de 15 anos: quando se decretou em 1994 a mudança de moeda para

o Real. Toda uma situação de corpos, toda uma história de contingências valida o

enunciado. Novamente é Bakhtine quem aponta o caminho: a palavra sozinha, o

parágrafo sozinho são apenas possibilidades da língua, mas não formam uma
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 55
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

enunciação completa: são os pressupostos não discursivos – essa âncora da situação

social – que fazem deles uma enunciação completa.23

Ou seja, só o agenciamento coletivo dá conta da enunciação: um enunciado não

parte de uma consciência individual, um sujeito primeiro ou mesmo uma subjetividade

isolada; é, ao contrário, um efeito, uma linha que se destaca de toda a trama que forma

uma sociedade a cada momento. E o agenciamento inclui componentes heterogêneos,

elementos de expressão (sopas de signos) e segmentos maquínicos (as misturas de

corpos). Um e outro não são fechados em si mesmo, não estão apartados, mas se

implicam mutuamente, se ativam, atritam, atiçam. É por isso que Deleuze e Guattari

afirmam que a linguagem de modo algum reflete o real, até porque ela tem sua realidade

própria; a relação é de interferência. A maneira como os expressos se atribuem aos

corpos é dada pela palavra de ordem — essa variável que determina o pertencimento a

um regime de signos.

2.5 - O que faz um agenciamento

De um lado, mistura de corpos, de outro lado, trama de signos: isso parece ainda

bastante estanque. Não há, na verdade, um lado e outro lado, mas multiplicidades que se

conectam. Uma espécie de continuum (como o de Bakhtine), porém expandido para

acolher elementos heterogêneos: variáveis de expressão e de conteúdo. “Há nisso como

que duas multiplicidades que não cessam de se entrecruzar, ‘multiplicidades

discursivas’ de expressões e ‘multiplicidades não discursivas de conteúdo’.”24

São signos e corpos desterritorializados que entram em contato. Desterritorializar:

sair de seu território; bulir com os limites; esfumaçar o contorno; fazer uma área de

transição, onde as formas são indiscerníveis e algo diferente pode se conformar. E em


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 56
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

seguida já ocorrerá uma reterritorialização, mas não será no mesmo lugar, a mudança é

irreversível.

A base desse raciocínio se encontra na teoria de Hjelmslev, que propõe terem o

plano da expressão e o plano do conteúdo cada qual sua forma e sua substância: uma

forma de expressão e uma substância de expressão; uma forma de conteúdo e uma

substância de conteúdo. Deleuze e Guattari levam mais longe as especificidades

propostas por Hjelmslev: se cada plano (expressão/ conteúdo) tem sua formalização

própria, introduz-se no par uma efetiva heterogeneidade, “não há correspondência nem

conformidade”. A forma de expressão ganha independência em relação ao conteúdo; ela

não mais se cola a ele, não mais o representa. Assim, em Deleuze e Guattari, o termo,

continuum, é utilizado no sentido de uma linha de variação contínua que atravessa os

estratos e põe para variar todos os elementos do agenciamento.

Uma historinha ajuda a acompanhar esse movimento. Li-a pela primeira vez no

Grain de Sable no 212, correio de notícias de ATTAC (Ação pela Taxação das

Transações financeiras em ajuda aos cidadãos – falarei sobre essa organização mais

adiante), e pouco tempo depois a reli na coluna de Elio Gaspari (em O Globo de 4 de

março de 2001, ou em A Folha de S. Paulo – o mesmo material é normalmente

publicado nos dois jornais). É possível que o leitor já a conheça, portanto.

A indústria de materiais esportivos Nike, cuja frase emblemática é “just do it”,

mantém em sua página na rede mundial de computadores um setor, “Nike ID”, em que

um consumidor pode “personalizar” o calçado que deseja comprar, escolhendo o

modelo (dentre os disponíveis), a combinação de cores (dentre as oferecidas) e

acrescentando-lhe uma assinatura (respeitadas algumas restrições). O calçado assim

produzido, desde que devidamente pago, é entregue em três semanas em qualquer ponto
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 57
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

dos Estados Unidos da América do Norte. Essa é a típica operação a que o marketing dá

o nome de interatividade com o público consumidor.

Um estudante americano, Jonah Peretti, decidiu adquirir um tênis por esse canal.

Definidos modelo, tamanho e cores, conta Peretti que tomou especial cuidado na

escolha da assinatura, para que não se encaixasse nos impedimentos descritos na

“política de personalização” da empresa. Solicitou que lhe apusessem a palavra

“sweatshop”. Pagou US$ 50,00 pela encomenda. Pouco tempo depois recebeu por

correio eletrônico uma carta da Nike dizendo que a personalização pedida não fora

aceita, provavelmente por corresponder a alguma das exceções discriminadas pela

indústria: ser uma marca concorrente; mencionar um atleta ou equipe cujo nome a

empresa não tem autorização para utilizar; conter termos chulos ou gírias inapropriadas;

ou por ter sido deixado em branco o espaço de assinatura.

Peretti retrucou que a personalização solicitada não infringia as regras

mencionadas e que de fato desejava ver escrito em seu tênis “sweatshop” como

homenagem “ao trabalho das crianças que o fabricaram.”25 A troca de mensagens

eletrônicas prosseguiu, Peretti insistindo de um lado, a Nike recusando de outro, até que

o estudante desistiu de comprar seu tênis.

Um calçado esportivo é corpo, um instrumento, e como tal remete a uma mistura

de corpos: pé-calçado-chão. Mas um tênis Nike é um corpo desterritorializado, corpo-

signo, pois remete ao enunciado “Just do it” e a toda uma cadeia de enunciações

cuidadosamente construída pela publicidade e pelo marketing em torno de ação, força,

vitória, vencer, vencedor, superar-se etc. A palavra “sweatshop” é expressão: surgiu no

século dezenove, atribuída a certas misturas de corpos (humanos), com ferramentas,

num sistema de trabalho duro e longo, em condições insalubres. Ao ser atribuída ao


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 58
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

calçado Nike produz uma interferência no regime de signos do consumo; põe para

variar a palavra de ordem, desfazendo o encanto (não é a toa que foi recusada), e passa a

ligar esse corpo a toda uma trama de expressos em que se podem incluir exploração,

terceiro mundo, desigualdade, trabalho infantil etc. Mas a forma de expressão também

recorta, do lado dos corpos, uma certa organização de conteúdos, pessoas e máquinas, e

uma distribuição destes sobre a Terra. É um movimento que arrasta o conjunto e produz

seus efeitos. Pude verificar que atualmente o sítio da Nike divulga “programas de

monitoramento” implantados nos últimos três anos para acompanhar as condições de

trabalho nas fábricas subcontratadas para a produção de seu material. (Não que o

episódio da compra de um tênis tenha produzido diretamente essa modificação, ao

contrário, ele emerge de uma corrente de enunciação que lhe é anterior e que atingiu um

limiar de densidade suficiente para interferir).

A produção de subjetividade se dá com os agenciamentos, não é anterior a eles. E

os agenciamentos coletivos de enunciação não são eles mesmos fixos, estão ao contrário

em constante variação, pois estão sujeitos às circunstâncias – exteriores (de conteúdo),

bem como interiores (de expressão) – que o validam.

Se os agenciamentos aglomeram elementos heterogêneos e se a produção de

subjetividade se dá com os agenciamentos, devemos considerar que a subjetividade é

também atravessada e produzida por essa heterogeneidade. Não só diversas vozes,

portanto aspectos lingüísticos significantes, participam da produção de subjetividade,

mas também ferramentas, máquinas, matérias diversas — o que Guattari chamou de

elementos a-significantes — têm uma participação direta nesse processo.26 Mas por que

tantas variáveis haveriam de se articular em um modelo único de subjetividade, a

subjetividade referencial capitalística, como vimos acima?


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 59
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Pensemos com Guattari em termos de “vetores de subjetivação” — elementos que

disseminam “germes de produção de subjetividade”27, sugerindo a direção, ou direções,

em que se vão desenvolver as linhas de subjetivação. Note-se que vetores de

subjetivação trabalham no nível anterior à separação entre sujeito e objeto. Desse modo,

não se pode separar, por exemplo, o leitor do texto que lê, o observador da imagem que

observa, o ouvinte da música ou história que ouve, pois ambos são arrastados pelo

mesmo movimento de constituição.

“A função existencial dos agenciamentos de enunciação consiste na utilização de


cadeias de discursividade para estabelecer um sistema de repetição, de insistência
intensiva, polarizado entre um Território existencial territorializado e Universos
incorporais desterritorializados – duas funções metapsicológicas que podemos
qualificar de ontogenéticas.”28

É verdade que Guattari distingue duas tendências de produção de subjetividade

simultaneamente presentes em nossa época: uma heterogenética, que aposta na variação,

favorecendo as singularidades e outra homogeneizante, redutora dos universos de

possíveis. Somente através de uma tomada de poder é que certos territórios existenciais

são ativados em detrimento de outros: reduzindo-se as variáveis a uma constante.

Relacionando-se as coisas todas a uma significância central, de modo a não deixar

nenhum espaço para medrar o mistério, a dúvida e o insignificante.

Essa é a tarefa da redundância: aprisionar os sentidos. Tentar deter ou dirigir as

variações, pois elas são perigosas: interferem na substância das coisas. O agenciamento

capitalístico, após a desterritorialização inicial dos elementos, reata-os à significância

central do valor do capital e apresenta como constante esta variável, que atrai sobre si as

demais. Impor a subjetividade capitalística como modelo dominante é uma necessidade

vital do capitalismo que não prescinde da expansão para se reproduzir. O objetivo é


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 60
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

sempre o mesmo: ampliar mercado, vender mais, ter mais lucro; é apenas isso; mas isso

é a própria tomada de poder.

O conjunto de enunciação da grande mídia, ao difundir vetores de subjetivação

capitalística, engrossa com seu coro o agenciamento do capital de tal forma que ele

passa a parecer o único possível. O fundo de consistência sobre o qual se apóia a maior

parte da informação circulante é o das relações capitalísticas. Eis uma das funções que a

grande mídia cumpre: construir e organizar o mundo dentro de um sistema apreensível,

fornecer coordenadas de entendimento, facilitar uma ordenação dos fluxos numa

narrativa que, embora fragmentária, se amarra cada vez mais fortemente ao nó central,

formando uma rede de malhas finas de onde a fuga é difícil (mas não impossível) e pode

ser parcial, momentânea, para em seguida recair na captura.

Retenhamo-nos um pouco no problema do fundo de consistência: os universos de

referência a que cada máquina de expressão se remete. É evidente que todas as

expressões não se equivalem. Se pensarmos, por exemplo, nos diferentes estados de

subjetivação que experimentamos ao assistirmos a um filme de padrão americano, de

ação policial, ou a um filme de modelo europeu, reflexivo, ou ainda a um filme do árido

e poético cinema iraniano, isso fica bastante claro. Não é com a mesma disposição que

deixamos a sala de projeção num ou noutro caso.

Da mesma forma, na leitura de poesia, com seu teor de inutilidade, suas áreas de

obscuridade, os universos referenciais e territórios ativados são diferentes daqueles

produzidos na leitura, sempre utilitária, informativa, dos jornais. Sendo que estes estão

cada vez mais dentro do fundo de consistência evocado pela tevê (um dos efeitos da

posição dominante ocupada por esta no campo jornalístico); aliás, toda a indústria da

comunicação parece se contagiar por essa consistência.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 61
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Em uma análise sobre o paradigma do consumo, François Brune29 relata uma

experiência feita na França com 40 crianças de idade entre quatro e cinco anos. Foi-lhes

apresentado na tevê um comercial contra o fumo, onde a mensagem era bastante óbvia:

um rapaz oferecia a uma moça um cigarro. Ela tomava o cigarro e o esmagava dizendo

“ganhei um pouco de liberdade”. Perguntadas sobre o sentido do comercial, 38 das 40

crianças responderam que o cigarro era algo bom, portanto deviam fumar. O

entendimento se dá da seguinte forma: um filmete aparece entre programas de TV

falando de alguma coisa, é portanto um comercial; todo comercial diz respeito a um

produto; o produto é bom para se consumir; portanto devemos fumar. Aqui a questão do

fundo de consistência é evidenciada: este se sobrepôs à própria mensagem. No universo

de referência ao qual a tevê se amarra, o consumo é ordenador, tudo o que aí se insere

tem um valor quantificável, é simplificado e imediatamente compreendido dentro da

lógica ambiente.

A função reprodutora dos meios de comunicação de massa, em grande parte dos

produtos de comunicação, reside mesmo no cerne, na espinha dorsal, da mensagem.

Pensemos nos atuais “reality shows” que fazem a volta ao mundo deixando um rastro de

sucesso de audiência — programas como Big Brother Brasil, Casa dos Artistas, No

Limite e seus equivalentes Loft Story, Les Aventuriers de Koala Lampa, Survivor, Big

Brother etc. São inúmeras as questões levantadas por emissões do gênero (merecem um

estudo à parte) a começar pela possibilidade de se considerar “reality” o comportamento

de pessoas escolhidas entre milhares de candidatos e que sabem estar sendo filmadas 24

horas por dia; mas vou mencionar apenas a situação: companheiros precisam conviver

no jogo, conquistar a simpatia do público e, ao mesmo tempo, se eliminar mutuamente a

fim de ganhar o prêmio em dinheiro.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 62
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Sempre se pode retrucar que é apenas um jogo e esta é a principal armadilha. Pois

são os pressupostos do jogo (ou as palavras de ordem) que ficam intactos: a competição

como modelo de relação com o outro, o dinheiro como valor central, o maior número de

aprovação anônima como medida de julgamento. A ocultação do jogo e de suas regras

está presente também no próprio comportamento dos jogadores. Embora eles tenham,

necessariamente, conhecido e aceitado as regras como condição para participar do

programa, e embora tenham todos e cada um o objetivo de chegar ao fim, ou seja,

ganhar o jogo e o dinheiro (jogando), é constante a preocupação em se mostrar um “não

jogador”, um “autêntico”, pois a afirmação de uma pretensa ingenuidade é uma maneira

de ganhar a simpatia do público, e ao mesmo tempo, manter-se a salvo de uma possível

eliminação pelos colegas. Dessa forma, fica claro que o apagamento do jogo, e mesmo

sua negação, é uma estratégia para ganhá-lo (qualquer semelhança com o

funcionamento da mídia não é mera coincidência).

Seria possível imaginar outras saídas para o impasse de um participante que não se

quisesse restringir às regras, como dividir igualmente o prêmio, ou tomar a decisão

coletiva de doá-lo; poder-se-ia também utilizar a exposição pública para outros fins,

como fazer um protesto, ou mesmo criticar a fórmula do programa, porém a “reality”

está bastante controlada para reduzir tais riscos; no mínimo pela seleção prévia dos

candidatos, cujos critérios permanecem opacos.

As delimitações não são assim tão precisas, há certamente rupturas e conexões

transversais entre máquinas de expressão, universos referenciais e territórios

existenciais; não é propriamente o meio ou o estilo que determina a produção deste ou

daquele estado, mas o que Deleuze, numa comparação entre TV e cinema, chamou de

função: enquanto a TV estaria colada a uma “função social”, fascinada pela perfeição
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 63
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

técnica, o cinema estaria na “função estético-poética” onde há espaço para

experimentação e invenção.30 Ou seja: não é o bastante constatar a heterogeneidade dos

elementos em ação, é necessário fazer com que ela funcione (heterogênese). Uma certa

prática é que faz com que os componentes tomem sua própria consistência,

desenvolvam suas virtualidades.

Talvez aconteça, até mesmo na TV, que um elemento se desprenda produzindo

atrito e estranheza, mas não é o que presenciamos com mais freqüência. O efeito de

repetição e redundância, resultante da coexistência de todos os meios de comunicação,

uma tremenda balbúrdia, congestiona o espaço e tende a sufocar as pequenas vozes que

se poderiam infiltrar nesse ambiente e abrir uma linha de fuga, estabelecer uma ponte

para universos e territórios distantes, inabitados. Seria necessário para isso que se

fizesse um pouquinho de silêncio; um pequeno silêncio a partir de onde algo se poderia

fazer ouvir.

As afirmações quanto aos poderes da imprensa parecem oscilar entre a

onipotência — a imprensa é o 4o poder, o que não está na mídia não existe, a imprensa

ergue e destrói mitos —, e a impotência: a imprensa não inventa nada, a mídia apenas

acompanha tendências, a imprensa retrata somente a realidade. Como fugir a esses dois

pólos? Nem uma coisa, nem outra. A imprensa, e os meios de comunicação como um

todo, estão inseridos num agenciamento maior, no qual, entretanto exercem um papel

importante: como atratores, repetidores e aceleradores de fluxos de desejo.

Já Guattari apontava:

“O capitalismo pós-industrial que, de minha parte, prefiro qualificar como


Capitalismo Mundial Integrado (CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus
focos de poder das estruturas de produção de bens e serviços para as estruturas
produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, por intermédio,
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 64
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens


etc.”31

Torna-se necessário, então, entender como se exerce um tal controle, mas também,

como funciona essa produção.

2.6- Como se forma uma tempestade

As relações entre formas de poder e formas de saber são centrais às análises de

Foucault. Formas de poder fazem germinar e florescer formas de saber que lhes servem

de suporte. Mas não se trata de um poder que emane de um foco central. O poder é, em

Foucault, entendido como a correlação entre forças presentes, múltiplas, locais, internas

que percorrem a sociedade — famílias, grupos, instituições, aparelhos de produção — e

se ligam por uma linha de força geral que as atravessa, formando uma estratégia ampla e

anônima.

Uma certa ocultação de mecanismos faz parte do funcionamento das relações de

poder. O segredo lhes é mesmo vital e isso explica, segundo Foucault, a preponderância,

nas análises de poder, de um modelo jurídico, baseado no esquema legislação-

interdição-obediência. Pois esta é a forma sob a qual se torna tolerável. Mas o poder,

propõe Foucault, é mais criativo, mais sutil, mais produtivo. A face da justiça seria

apenas a máscara mais aceitável sob a qual se apresentam as relações de poder — que se

limitem os espaços, que se regulem os limites, que se intermedeiem os interesses, que se

faça a justiça. O segredo que não se revela, porém, é que o novo embate de forças se dá

no domínio da técnica, do controle, fora dos aparelhos de Estado (embora também

dentro deles).32 O saber, por sua vez, se articula com o poder nos discursos de um modo

que é melhor compreendido através da seguinte pergunta: quais enunciados se aceitam

como verdadeiros?33
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 65
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

“É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao


mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto
de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e
produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, delimita e permite barrá-
lo.”34

Discursos múltiplos e descontínuos se encaixam de diferentes modos em

estratégias de poder diferentes, das quais fazem parte não só o que se diz, segmentos de

discursos, mas também o que se cala, as zonas de silêncio. O problema seria descobrir

quais são as relações de poder presentes dentro de um tipo historicamente localizado de

discurso — “em tal forma de extorsão de verdade que aparece historicamente.”35

“Ce sont des machines à faire voir et à faire parler”, aponta Deleuze em “Qu’est-

ce q’un Dispositif?”36 Máquinas de dar a ver e fazer falar. Trata-se não de uma luz que

se lança sobre todas as coisas revelando-as, mas de um “regime de iluminação”, que

produz as próprias figuras, o visível e o invisível, como parte de si. Regime, reger,

regência. Mas também, um regime é a maneira como se produzem certos movimentos e

fenômenos — meteorológicos, hidráulicos — um conjunto de variações na forma de

escoamento de um líquido. Estamos então diante de um regime de enunciação, um certo

modo de formação, escoamento, distribuição de enunciados: como nuvens no céu, como

se forma uma tempestade.

Tendo em mente que um enunciado se relaciona com pressupostos implícitos,

exprime transformações incorpóreas que se atribuem aos corpos e que produzirão “um

novo recorte”, voltemos à noção de “globalização”. Notemos que essa simples palavra é

já um agenciamento de enunciação que põe em marcha toda uma trama de discursos e

corpos. “Globalização” pronunciada na mídia evoca um mundo sem fronteiras, onde as

distâncias do espaço foram vencidas pela velocidade da tecnologia e submetidas ao


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 66
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

tempo, onde a atuação ininterrupta dos meios de comunicação aproxima grupos

distantes. No entanto, quando rompemos o encantamento da palavra e olhamos a trama

dos corpos (o agenciamento maquínico) percebemos que existem imensas distâncias:

sob a capa da homogeneização pelo consumo se ocultam diferenças crescentes entre

aceitos e excluídos; atrás do efeito técnico de comunicação mundial e instantânea se

escondem a incomunicabilidade, a incompreensão e o desconhecimento.

No que diz respeito à produção, “globalização” significa uma fragmentação sem

precedentes: antes de tudo a possibilidade de uma empresa dispersar suas unidades

produtivas, explorando as melhores condições de extração de lucro que se oferecem em

diversos pontos do planeta. A regra é exportar custos, seja pagando mal ao trabalhador

em Taiwan, degradando o meio-ambiente no Brasil, se aproveitando do abrigo oferecido

ao capital nos paraísos fiscais, ou as três coisas ao mesmo tempo. Chegamos ao que

circula de fato por toda parte, indiferente a fronteiras e aos corpos: é o capital financeiro

e o seu discurso legitimador, a economia de mercado.

A palavra de ordem oculta dentro dessa “globalização”, seus pressupostos

implícitos, são as ordens dos mercados financeiros: circular, atravessar fronteiras,

enfraquecer Estados, submeter a política à economia, fazer recuar leis sociais,

desterritorializar para melhor acumular. É uma circulação restrita aos ricos e à riqueza;

barreiras apenas para o que “não serve” (critério de todo questionável: o fast-food está

por toda parte, desnutre e mata do coração, mas é ascético, não tem impurezas, mata por

acúmulo, por excesso, doença aceitável no capitalismo); as barreiras são mecanismos de

poder, para dobrar os que não se submetem, conter os pobres, ou filtrá-los apenas na

dose necessária para anexarem-se à máquina.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 67
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Vemos ao que serve, portanto, o enunciado “globalização”: como as diversas

delimitações estabelecidas ao longo de muitos anos de confrontos (ou seja, os limites

impostos aos mercados, tanto no que se refere a ramos de atividades, como à relação

com trabalhadores) barram a voracidade do capital, então começa no discurso — modo

de ver, agenciamento de enunciação – uma nova maneira de dizer as coisas que

empurra, bole, mexe com a trama de corpos. Os agenciamentos maquínicos e os

agenciamentos de enunciação se reorganizam em função da circulação. Flexibilizar,

otimizar, reformar, reengenharia, produtividade, empregabilidade, todo um vocabulário

a recortar, antecipar o mundo que aponta.

Bourdieu, dentro do horizonte teórico que é o seu, ao comentar o surgimento e a

difusão do discurso neoliberal, fala também em pressupostos:

“um trabalho constante foi feito, associando intelectuais, jornalistas, homens de


negócios, para impor como óbvia uma visão neoliberal que, no essencial, reveste
com racionalizações econômicas os pressupostos mais clássicos do pensamento
conservador de todos os tempos e de todos os países.”37

Bourdieu localiza a constante, “o pensamento conservador de todos os tempos”, mas

não se detém em seu poder de variar para conservar, que é onde se exerce o controle.

É na variação que Deleuze detecta uma “mutação do capitalismo”38, da qual as

máquinas de informática são o indício. Assim como a sociedade disciplinar inventou

máquinas de transformação de energia em trabalho (produção), a sociedade de controle

inventou máquinas de tradução do trabalho em dados (circulação). Se na primeira o

poder se realiza em espaços fechados, na segunda o controle age em movimento, sobre

o movimento. É o tempo da senha, que regula os acessos. A empresa é a figura básica,

com sua organização gerencial, suas políticas de incentivo, seus bancos de dados. “O
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 68
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos

senhores.”39

Marketing ou mercadologia é nada mais nada menos do que a técnica de colocar

(ou se manter) no mercado. Inclui estratégias de produção, embalagem, preço,

distribuição, promoção, publicidade. Mas não são produtos que se vendem no mercado,

nesses dias. São sobretudo “estilos de vida” que se resumem a um único estilo de vida.

Share of mind, diz o jargão. O cliente é visto em seu life time value, que significa: o

quanto ele pode gastar em diversas atividades ao longo da vida (não só no consumo de

bens, mas na educação, saúde, turismo, investimentos, seguros etc.). Não é apenas o

consumo que se produz e reproduz, salientam Hardt e Negri em seu “Império”, mas toda

a “esfera biopolítica”. Produção de subjetividade. E apontam, mais uma vez, o papel

estratégico das indústrias de comunicação na legitimação dessa organização do

mundo.40

Mas se a subjetividade capitalística é um ambiente no qual nos vemos submersos,

submersos não significa imediatamente anexados. Seria possível pensar em uma

“máquina de guerra”, no sentido deleuziano/guattariano, capaz de desarticular o

agenciamento dominante? Esse conceito chega a Deleuze e Guattari a partir de trabalhos

sobre mitologia indo-européia de Georges Dumézil. O Estado teria dois pólos

complementares, ou duas “cabeças”: a do jurista e a do sacerdote; a ordem do direito e a

ordem da magia. O guerreiro é o elemento que se insinua entre os dois, exterior e

irredutível a eles. Uma fulguração, um movimento. Diferente do exército, obedecendo a

uma outra justiça, a máquina de guerra surge no agenciamento e age pela estratégia.

“Pura forma de exterioridade” — altamente instável, sempre a ponto de se transformar,

correndo o risco de se confundir, ou dissolver-se.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 69
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Se o Estado, com seus dois pólos, é o que quadricula, sobredetermina, anexa,

torna homogêneo; a máquina de guerra é o que não se reduz, não se anexa, não se

enquadra; uma diferença em si mesmo, ponto de variação que põe em questão os dois

pólos do Estado.

“Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a
máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em
máquinas de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vivas ou
revolucionárias, suscetíveis de recolocar em questão o Estado triunfante?”41

Estaríamos diante de uma multiplicidade de forças exteriores ao domínio do

Estado. Mas, se vivemos justamente a sua derrocada? Precisamos entendê-lo como o

poder de sobre-determinação, uma forma que pode ou não ser assumida pelo Estado-

governo propriamente dito e que estaria atualmente, cada vez mais, migrando para as

mãos de desmesuradas empresas transnacionais.

É certo que, ao propor uma relação de dentro e fora entre Estado e máquina de

guerra (no lugar de com ou contra), Deleuze e Guattari associam as grandes companhias

à exterioridade da segunda forma. No entanto, chegamos ao ponto de repensar essa

relação, pois se a forma-Estado se define por sua distância e separação do corpo social,

se seu interesse maior é sua própria conservação e a perpetuação dos organismos de

poder, se sua vocação é clonar-se (reproduzir-se sempre idêntica), sua busca a de

reconhecimento e se seu desejo é apropriar-se, interiorizar, sobrepor-se, então havemos

de concluir que o “mercado” faz hoje esse papel. Os Estados já não são mais os espaços

da interioridade por excelência, mas, anexados, tornaram-se pontos de passagem,

lugares de aceleração ou desaceleração da circulação. Nessa inversão de posições, as

novas leis, os tratados, os acordos são elaborados por órgãos centralizadores como

Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização para a Cooperação e o


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 70
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial do Comércio (OMC),

Banco Mundial e que tais — o fracassado AMI (Acordo Multilateral de Investimentos)

seria talvez a “constituição” de um mundo regido pelo mercado.

Exterior nessa situação é o que não se dobra aos seus imperativos: circulação cada

vez mais veloz e acumulação crescente de lucros. A máquina de guerra será o que

escape e ataque esse enorme espaço estriado. Talvez brote no coletivo, o lugar das

ligações gratuitas e momentâneas, mas como constituí-lo? É onde a função Estado pode

se afirmar como resistência à nova interioridade viscosa do mercado, recusando sua

lógica que contabiliza apenas o ganho em dinheiro, e assumindo uma posição ao lado,

não acima, da coletividade. O trabalho de Caiafa sobre transportes públicos urbanos

mostra como isso de fato ocorreu em Nova York: em determinado momento, no início

do século XX, o Estado assumiu o fornecimento do serviço que empresas privadas

abandonavam, por não obter ali o lucro que as move. Ao se colocar ao lado da

população naquele momento chave, o Estado garantiu a realização do próprio espaço

público como espaço comum a todos, lugar de heterogeneidade e mistura. O que

favoreceu o fortalecimento de um “vínculo desejante” dos habitantes com a cidade e

permitiu que Nova York escapasse à suburbanização característica das cidades

americanas, intensificada a partir de meados da década de 1940.42

Com Bakhtine e seu conceito de continuum de comunicação descobrimos a força e

a amplitude do discurso indireto; vimos que um enunciado não tem sentido

isoladamente, mas está irremediavelmente ligada ao seu contexto de enunciação e que,

finalmente, este participa da compreensão. Com Deleuze e Guattari percebemos que o

discurso indireto é totalmente permeado por palavras de ordem e que estas formam os

regimes de signos presentes a cada momento em uma dada sociedade; além disso,
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 71
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

ampliamos a noção de continuum para incluir tanto elementos de expressão como de

conteúdo, em constante variação. Com Guattari (principalmente) pensamos uma

subjetividade em processo de constituição, da qual participam elementos heterogêneos,

e que tanto pode se abrir para a invenção de novas possibilidades de vida, como tomar

um caminho de abolição, prendendo-se em formas (no limite) auto-destrutivas. E com

Sodré, Milanesi, Cebrian, e Hardt e Negri vimos o peso que a mídia assumiu nesse

processo.

A hipótese com que trabalhamos é que os meios de comunicação de massa, hoje,

formam uma espessa nuvem de discurso indireto que se difunde de tal forma pela

sociedade que tende a se sobrepor a outras vozes, moldando com sua pregnância o

próprio contexto de compreensão — que está amarrado aos pressupostos implícitos do

agenciamento dominante da atualidade: circulação/consumo/lucro. Ou seja, são vetores

de subjetivação que trabalham na redundância. O diálogo se dá sobretudo a partir de e

com os meios de comunicação de massa, este é o ambiente da enunciação. Até mesmo

questionar a influência da mídia é de alguma forma sofrer sua interferência.

Nossa pergunta é: como agregar partículas num fluxo que ganhe densidade a ponto

de invadir o campo com uma força de transformação? Um dos problemas é estarmos

presos nas malhas do tempo: somos filhos da nossa própria época e é difícil

compreender como configuração momentânea de forças, historicamente localizada, o

que é mais longo do que nossas vidas; somos nós mesmos produzidos aí dentro; nossas

crenças, nossos pontos de vista, até mesmo naquilo ao que nos opomos. Seria preciso

ativar outros universos incorporais, outros valores referenciais — são estes que dão

consistência às máquinas de expressão; mas é reversível essa relação, portanto máquinas

de expressão singulares podem pôr em movimento universos desterritorializantes,


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 72
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

apontando para configurações de territórios existenciais e valores referenciais que

escapam ao padrão capitalístico. As linhas de fuga, diz Deleuze, são produzidas dentro

do próprio agenciamento.

2.7- Variar variando

O segredo seria fazer variar, variando. Diz-se: “fulano está variando” quando

alguém entra em processo de devaneio ou delírio, uma escapada temporária à norma.

Mas o que faz a norma senão a redução das variáveis a uma constante? Um padrão é

sempre a média entre múltiplas diferenças e que, finalmente, não corresponde a

ninguém. O mundo tem mesmo uma tendência a variar (são multiplicidades por toda

parte) e é preciso um esforço humano para domesticá-lo.

Agenciamentos coletivos são feixes de variáveis de expressão e de conteúdo

amarrados por palavras de ordem em uma relação constante. Daí dizerem Deleuze e

Guattari que a palavra de ordem carrega uma sentença de morte: decreta-se o fim da

variação, é a amputação de possíveis. Mas ela dá também a deixa para a fuga, ao

apontar o perigo. A saída para a morte é não aceitar sua determinação, ir mais longe na

variação.43 Ainda que pequeno, um deslocamento pode catalisar transformações

tremendas. E qualquer ponto é bom o suficiente para começar a variar, seja no regime

de corpos, seja no regime de signos, e se isso funcionar é possível romper com as

constantes, e é possível até, se isso for longe o bastante, arriscar uma nova relação com

a vida.

Um dia, um jornal entrou numa linha de variação. Um veículo de comunicação,

inserido no campo jornalístico, sujeito às pressões que delineamos, entrou numa linha

de variação. Não é um jornal novo, lançado para variar, ao contrário, é um mensal já

bem estabelecido. Não é exatamente o que se poderia chamar de imprensa alternativa,


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 73
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

clandestina, subterrânea, ou precária; não: estaria mesmo, de certa forma, mais próximo

da grande imprensa. Um jornal mensal francês, considerado, por alguns, “de elite”: Le

Monde diplomatique. Apesar disso, parece que entrou em variação. Por que caminhos

isso pôde acontecer? Até onde isso funcionou-funciona? Quais conexões se produziram-

produzem?

Aprendi com as abelhas, através de Benveniste44, a ir verificar.

1
Apud BOURDIEU, 1994 (a)
2
BOURDIEU, 1994 (a)
3
Id.
4
FOUCAULT, 1979
5
BOHR, 1995.
6
ACCARDO, 2000 (op. cit.).
7
CAIAFA, 2000.
8
DELEUZE; GUATTARI, 1976 (p. 50-51)
9
GUATTARI; ROLNIK, 1986
10
Id. p. 27.
11
Ver a esse respeito os trabalhos de CAIAFA, 1991 e 1996
12
SODRÉ, M., 1996
13
Id. p. 156
14
MILANESI, 1978
15
Id. p. 125
16
Ibid.
17
CEBRIAN, 1998
18
Id.
19
DELEUZE; GUATTARI, 1995 vol. 2
20
Id. p. 12
21
AUSTIN, 2000
22
DELEUZE; GUATTARI, 1995, vol.2, p. 21
23
BAKHTINE, 1977, p. 157
24
DELEUZE; GUATTARI, 1995, vol. 1, p.84
25
Apud JÉSOVER, 2001
26
GUATTARI, 1992, p. 14
27
Id. p. 38
28
Ibid. p.39
29
BRUNE, 2000
30
DELEUZE, 1992
31
GUATTARI, 1993, p. 31
32
FOUCAULT, 1988.
33
FOUCAULT, 1979 (op. cit.)
34
FOUCAULT, Michel, 1988 (op. cit.)
35
Idem.
36
DELEUZE, 1989
37
BOURDIEU, 1998 p.44
38
DELEUZE, G, 1992, p. 223
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 74
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

39
Id.
40
HARDT; NEGRI, A. 2001, p. 50-53 e nota 22 do capítulo “Produção biopolítica”
41
DELEUZE; GUATTARI, 1997
42
CAIAFA, 2001
43
DELEUZE; GUATTARI, 1995, vol. 2
44
BENVENISTE, 1991. De acordo com este lingüista não se pode considerar que as abelhas tenham uma
verdadeira linguagem, pois embora consigam comunicar um fato que presenciaram (a existência de uma
fonte e alimento nas redondezas da colméia), não têm a faculdade de passar a informação adiante após
receber a mensagem. Cada abelha precisa necessariamente ir ao ponto onde está o alimento para depois
voltar à colméia e transmitir a informação.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 75
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

3- ONDE SE INSERE, E POR ONDE ESCAPA,


LE MONDE DIPLOMATIQUE
Os dispositivos de produção de subjetividade podem existir em escala de megalópoles, assim como em
escala dos jogos de linguagem de um indivíduo.

Guattari: Caosmose.

3.1 - Onde começa uma fuga?

Mas mapear a variação não é fácil. Onde começa? Ora, o mapa da variação é um

rizoma, onde as conexões se dão em muitas direções. Um rizoma, diferentemente do

modelo arborescente, não tem um começo fixo, não se desenvolve num único e certeiro

sentido, não opera por bifurcações e oposições, não se fecha num sistema homogêneo;

ele se espalha para todos os lados, acolhe segmentos heterogêneos, pode desenvolver

linhas rígidas e linhas de fuga. Quando percorrem a obra de Kafka, Deleuze e Guattari

superam esse problema do começo: é um falso problema; qualquer lugar é bom o

suficiente para se começar um mapa. Porque é um processo que está sendo mapeado e o

processo sempre se pega pelo meio.1

3.1.1-Primeiro movimento

O dia 16 de março de 2001 amanhecia ensolarado em Paris; na verdade, éramos

nós que amanhecíamos: passava de uma hora da tarde na cidade luz, quando a avião

sobrevoou a Torre Eiffel e preparou-se para a aterrissagem. Atravessar o Atlântico para

ver de perto como funciona um jornal já é um movimento considerável. Não qualquer

jornal, mas aquele em cujas páginas surgiu a expressão “pensée unique”, contra a

uniformização da mídia mundial; aquele do qual leitores são proprietários, ao lado dos

funcionários, garantindo a independência em relação aos poderes do dito mercado;

aquele que mobilizou através de um editorial, alguns milhares de pessoas para fundar
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 76
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

uma associação pela taxação das movimentações financeiras internacionais (ATTAC,

hoje presente em mais de 20 países, inclusive o Brasil).

Na edição de janeiro de 2001, mês de realização do primeiro Fórum Social

Mundial, o Monde diplomatique dedicava seu editorial de primeira página a Porto

Alegre (o nome da cidade era o título do texto). As frases de abertura afirmavam: “O

novo século começa em Porto Alegre. Todos os que de uma maneira ou de outra

contestam ou criticam a globalização neo-liberal vão se reunir de 25 a 30 de janeiro de

2001, nessa cidade do sul do Brasil, onde acontece o primeiro Fórum Social Mundial.”2

O Fórum era inserido no contexto das manifestações mundiais (Seattle, Washington,

Praga), porém como um passo adiante: uma nova fase de reflexão conjunta e proposição

de caminhos para “um novo tipo de globalização”. Com relação aos poderes

representados no Fórum Econômico Mundial, em Davos, o autor apontava Porto Alegre

como o lugar onde se tentaria “lançar as bases de um verdadeiro contra-poder.” E a

escolha daquela cidade para sediar o encontro, questionada ou ignorada por nossos

jornais, era ao contrário fundamentada por ter Porto Alegre se tornado “uma espécie de

laboratório social que observadores internacionais olham com uma certa fascinação.3”

Uma marcante diferença em relação à abordagem do acontecimento pela mídia

brasileira, que analisamos no primeiro capítulo.

O Monde diplomatique se mostrava, portanto, sob vários aspectos, um caso

singular de jornal. Sobretudo, oferecia um interessante contraponto à paisagem da mídia

em nosso país, onde a concorrência pelo público é agravada pela situação de

concentração que beira o monopólio e provoca uma crescente homogeneização dos

discursos, diminuindo cada vez mais as dissonâncias.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 77
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Na realidade, e um tanto paradoxalmente, a fagulha da pesquisa fora acesa pela

presença de Bernard Cassen, diretor do jornal Le Monde diplomatique, como

entrevistado num programa Roda Viva, da TV Educativa. As perguntas que respondia,

no entanto, não diziam respeito à atuação do jornal, mas ligavam-se ao seu outro cargo:

presidente da associação Association pour la Taxation des Transactions Financières

pour l’Aide aux Citoyens (ATTAC), cuja proposta era “globalizar a resistência” contra o

poder exagerado que assumia o mercado financeiro internacional na determinação de

políticas públicas em diversos países. Teria sido este o tema de meu trabalho se não

tivesse descoberto que tal associação nascera de um editorial do Monde diplomatique.

O problema que emergiu então foi o da força e da responsabilidade da mídia, e de

seu papel político na sociedade. Parecia óbvio: a mídia não sendo exterior à sociedade,

não poderia deslizar sobre a realidade cotidiana, produzindo simplesmente uma

narrativa a respeito de fatos. A mídia, como parte constitutiva da realidade, havia de

nela interferir. E uma de suas interferências mais sutis e profundas, (pensava, a partir

das leituras de Deleuze e Guattari), não seria a influência na forma como as pessoas

percebem o mundo e nele se inserem, a divulgação de costumes e comportamentos, o

próprio “recorte” do que merece ou não atenção?

A experiência do Monde diplomatique mostrava-se duplamente interessante: por

um lado era um caso de interferência explícita, e por outro, apontava para a

possibilidade de existência de um veículo impresso que, longe de cair na

homogeneidade ditada pelo mercado, difundindo coordenadas de semiotização

(informações de como convém ser e pensar), iluminava aspectos lançados à sombra pela

grande máquina mediática mundial, propondo um outro ponto de vista para os

problemas sociais desse fim de século, começo de outro. Essas foram as considerações
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 78
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

que me levaram a entrar em contato, via correio eletrônico, com Sr. Cassen, indagando

sobre a possibilidade de me receberem no jornal durante cinco ou seis meses, para que

eu acompanhasse a sua produção.

Uma resposta acolhedora chegava poucos dias depois: “seu tema de tese parece

apaixonante (...) Nenhum problema em observar o Diplo em ação (...) Basta me

procurar em janeiro. Talvez nos vejamos em São Paulo, onde irei 2 ou 3 vezes nos

próximos meses.” O lançamento no Rio de Janeiro do I Fórum Social Mundial ofereceu-

me a oportunidade de encontrar Cassen pessoalmente. Após o evento, apresentei-me e a

resposta afirmativa foi reiterada. Depois disso, contatar o Prof. Maffesoli que

gentilmente aceitou me receber como pesquisadora visitante no CEAQ (Centre d’Etudes

sur l’Actuel e le Quotidien), obter o financiamento para a viagem e pouco tempo depois

aterrissava em Paris.

O sol era apenas uma trégua. A cidade estava submersa, o rio Sena transbordado

tomara a pista dos carros e o passeio dos pedestres. Os plátanos suportavam a força da

água contra seus troncos; do salgueiro chorão na ponta da Ile de la Cité via-se somente a

copa descabelada pela correnteza marrom. O movimento característico de barcos de

turismo cessara, pois não passariam sob as pontes.

A enchente era o principal tema dos telejornais da tarde e da noite, inundando

também as casas com imagens da catástrofe, sobretudo a do valée de la Somme, onde

uma cidade inteira precisou ser evacuada devido à ascensão diária do nível do rio, que já

alcançara até o segundo andar de muitas residências. O drama de senhoras deixando

seus lares, as lágrimas de senhores diante das câmeras, os feitos heróicos das forças

públicas a salvar os moradores que se viam ilhados, tudo isso me parecia curiosamente

familiar, tantas vezes havia visto, nas telinhas brasileiras, a mesmíssima abordagem de
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 79
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

outras cheias em outros lugares. O modo TV de encarar a vida como uma sucessão de

eventos catastróficos faz a volta ao mundo, aproximando uma cidade do interior da

França e qualquer cidade no Brasil, desde que submersa; somos todos igualados na

tragédia, embora continue enorme a diferença entre os problemas e as soluções

encontrados lá e cá.

O cotidiano em Paris, no entanto, não se mostrava muito alterado. Os transportes

públicos funcionavam normalmente, com uma ou outra estação do metrô fechada (como

St. Michel, à beira do rio), e alguma modificação no trajeto dos ônibus. Só os turistas

paravam para admirar a violência do Sena a cortar a cidade; os parisienses com ar

acostumado prosseguiam em sua pressa, e a julgar pelos fragmentos de conversas

ouvidos no ônibus e no metrô, indiscrição inevitável, lamentavam apenas que a

primavera este ano demorasse tanto a chegar trazendo um pouco mais de sol e calor.

No sexto dia, instalada e tendo encaminhado as burocracias necessárias para minha

estada, telefonei para Bernard Cassen. Foi uma surpresa e uma decepção ouvir a

secretária me dizendo que ligasse dali a três semanas. Não são nada, diante da vida, três

semanas, mas para quem tem seis meses para dar conta de uma pesquisa, três semanas

soam como a eternidade. Teria talvez viajado? Isso explicaria também a falta de réplica

aos meus e-mails enviados quando da resposta positiva da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ao meu pedido de bolsa, no

fim de fevereiro.

3.1.2- Segundo movimento

Tomar um caminho secundário. O Monde diplomatique traz sempre meia página

informando os debates e encontros promovidos em toda a França, por sua associação de

leitores, Les Amis du Monde diplomatique. As discussões dialogam com temas


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 80
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

abordados no jornal, seja na edição do mês ou anteriores. Em março de 2001, dia 27, às

sete e meia da noite, haveria em Paris uma mesa redonda cujo tema seria “La Culture,

facteur de réintegration sociale.” [A cultura: fator de reintegração social.] O Monde

diplomatique de abril reunira diversos artigos sobre a “Obssessão securitária”,

analisando o problema da insegurança nas grandes cidades e apontando o uso

estratégico que se faz do sentimento de insegurança da população, sobretudo em época

eleitoral (no caso francês, segundo o jornal, pelo presidente Chirac). “Dos bairros em

perigo aos ‘bairros perigosos’” de Laurent Bonelli, pesquisador da Universidade Paris-

X, mostrava o funcionamento das políticas locais de segurança e os preconceitos aí

embutidos. “Patrulhas conviviais em Chicago”, de Eric Klinenberg, professor de

sociologia, levantava os problemas do “sistema de polícia de comunidade” em Chicago,

que se tornou modelo para outras cidades, e envolve os moradores no policiamento de

seus bairros. E “A invasão dos experts da tolerância zero”, de Pierre Rimbert, falava do

surgimento dessa nova figura, o expert em segurança, que, deixando de lado as causas

da violência, detém-se unicamente no controle do crime.4

Plena terça-feira. Fazia noite fechada e a chuva era constante na data marcada para

o debate. A caminho da rue de l’Avre, com o vento do norte atravessando os casacos e

tornando a sombrinha inútil, era difícil acreditar que haveria quorum. Mas no número

dezessete desta ruazinha estreita, o endereço marcado, havia luz e uma certa

movimentação de pessoas. Foyer Evangélique de Grenelle, lia-se no portão. Era uma

espécie de espaço comunitário, onde um salão estava reservado para a reunião de

ATTAC. (ATTAC? Mas não era Les Amis?)

À entrada da sala, sobre uma mesa, encontravam-se expostos e à venda uma

pequena quantidade de livros em formato de bolso, das edições Mille et Une Nuits. O
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 81
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

nome da coleção é Les Petits Libres/ATTAC. Os títulos disponíveis ao preço de dez

francos, um valor bastante acessível, eram “Agir local, penser global. Les citoyens face

à la mondialisation”, “Tout sur ATTAC”, “Les Paradis Fiscaux ou la finance sans

lois” e “Avenue du plein emploi”.5 Havia também, mas não como parte da coleção, uma

tradução do livro de Tarso Genro sobre a experiência do orçamento participativo em

Porto Alegre (não me lembro de ter ouvido falar deste livro, no Brasil). Na porta de

entrada do salão vê-se a fotocópia de um artigo de jornal em inglês (no alto da página,

vemos apenas um FT. seria talvez o Financial Times? não há referência), onde se fala

do Fórum Social Mundial como uma idéia de Cassen. Nenhuma menção ao grupo de

brasileiros que teria participado da concepção do projeto — esquecimento, ignorância, a

verdadeira versão da história? De toda forma fica a lacuna.

Quem chegava era recebido à francesa por um senhor nos seus quarenta-e-tantos a

cinqüenta anos. Ou seja, ele estava ali, arrumando os livros, parecendo ocupado, mas se

alguém lhe dirigisse a palavra, abria um sorriso, respondia às perguntas, retribuía os

cumprimentos. Diante de minha dúvida quanto a ser aquela uma reunião de ATTAC ou

de Les Amis, explicou: “On se partage.” Nós nos compartilhamos. “São mais ou menos

as mesmas pessoas, não exatamente as mesmas, mas mais ou menos as mesmas.”

Assegurou-me que o responsável pelo sub-grupo da associação de leitores que reúne as

quinta, sexta, sétima, décima terceira, décima quarta e décima quinta regiões de Paris

estaria aqui e poderia me apresentar a algumas pessoas.

O salão tinha noventa cadeiras. As pessoas iam entrando e notava-se que alguns já

se conheciam, chegavam por vezes aos pares e conversavam entre si. Outros chegavam

calados e sós e assim permaneciam. A atmosfera era descontraída, mas não exatamente

de confraternização. Às sete e trinta e cinco, éramos cerca de trinta ouvintes à espera


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 82
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

dos palestrantes. Começaram os avisos sobre a próxima reunião de ATTAC e a

conferência de abril, sobre edição de livros. Os convidados chegam: Marc Le Glatin e

Ahmed Madani

O primeiro é diretor de teatro, o segundo, diretor e dramaturgo. Ambos

desenvolvem, separadamente, projetos de expressão teatral para jovens da periferia de

Paris — são áreas pobres, que convivem com problemas como o tráfico de drogas e a

violência, típicos das regiões negligenciadas pelo poder público. Nesses bairros de Paris

habitam sobretudo imigrantes legais ou ilegais, geralmente trabalhadores mal

remunerados em trabalhos precários.

O horizonte da discussão é a cultura como forma de resistência e território

existencial, a importância de se reapropriar do discurso, a possibilidade de criar novas

formas de pensamento. Na visão de Marc Le Glatin o problema não é a globalização,

mas sua forma financeira, neo-liberal, que caminha no sentido de uma uniformização

dos modos de vida. Ele se detém na questão do processo atual de liberalização do

comércio e, mais recentemente, dos serviços, dentre os quais se inclui a cultura. Le

Glatin salienta que os Estados Unidos da América do Norte respondem pela 2a maior

dívida externa mundial e apresentam um grande déficit comercial. Dois pontos seriam

fundamentais em sua tentativa de compensar um tal déficit: agricultura e serviços.

A maior fonte de exportação daquele país, segundo o palestrante, seria os

copyrights. Por enquanto, diz Le Glatin, a cultura estaria sendo considerada uma

exceção nos entendimentos sobre a liberalização geral dos serviços, mas até quando,

pergunta-se. Segundo o diretor teatral, a indústria do “entertainement” é uma poderosa

fábrica de produtos culturais com vasta divulgação, inclusive via internet, que, com suas

promessas de disponibilidade imediata e quase infinita de informação, exerce uma


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 83
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

sedução intensa, especialmente sobre países do terceiro mundo, cuja rotina é muito mais

pontuada pela escassez.

Le Glatin sugere que um modo de resistir a essa “cultura do instante, sem nenhuma

perspectiva histórica” é insistir numa estratégia de proximidade; desenvolver espaços de

criatividade em bairros populares; retomar da palavra e de outros meios de expressão,

favorecer a sensibilização ético-estético-política num retorno da cultura em direção à

população, para tentar reencontrar o elo entre a sociedade e cultura.

Ahmed Madani faz o contraponto. “Ce n’est que nous mêmes”. Tudo isso, o

capitalismo, o dinheiro, a banalização somos nós mesmos, está dentro de cada um. O

poder do cinema americano é ser diversão, dar prazer. Ele diz que, como artista, tem a

pretensão de ser Shakespeare, quer fazer vibrarem as almas, e vê essa emoção aflorar

em suas oficinas, nos trabalhos dos jovens da periferia que ao falar de suas próprias

vidas, tangem os problemas do mundo.

Já passavam das dez da noite quando foi aberto o debate. Havia entre os

participantes gente do meio teatral e cultural, atores, escritores, técnicos, mas também

pessoas de outras áreas, estudantes, donas de casa. A “exceção francesa” — princípio

defendido há dez anos pela França no GATT e na OMC, segundo o qual cada país tem

o direito de proteger sua produção artística, especialmente o cinema —, era discutida no

que oferecia de singular, mas também em seus preconceitos. O dissenso era rico, as

posições tomadas claramente, cada qual defendia seu ponto de vista e o debate se

tornava às vezes bastante acalorado. A meia hora de discussão livre se estendeu e eram

quase onze quando as pessoas deixaram o Foyer de Grenelle, encontrando a rua

deserta, silenciosa, fria. Mas o metrô funcionava, havia uma estação bem perto e a volta

para casa foi rica em reflexões.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 84
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

E pensar que essa gente se reuniu em torno de um jornal. Pensar que saíram

naquela noite para discutir uma questão atual, embora raramente, ou nunca, abordada

pela grande mídia. Pensar que, como esses trinta e poucos, há mais sete ou oito mil

dispostos a contribuir, de uma forma ou de outra, para que não cesse o debate. Para este

pequeno público, nem todo o conforto do sofá e do controle remoto, nem toda a sedução

dos trezentos canais de televisão a cabo, nem a promessa de ver o mundo sem sair da

frente do computador, nem o frio, nem a chuva, nem o dia da semana são mais fortes do

que o desejo de ouvir, refletir, somar idéias sobre a marcha do mundo e, se possível,

participar das decisões a respeito do seu caminho.

Eventos, conferências, palestras e debates promovidos e divulgados por jornais,

com distribuição de senha na entrada, em que leitores e não leitores vão, como ouvintes,

existem em muitos lugares, inclusive no Brasil. Mas havia uma diferença nesse encontro

do Foyer de Grenelle, uma diferença irredutível, difícil de capturar, embora clara.

Talvez estivesse na participação dos leitores em sua organização, ou talvez se devesse à

gratuidade com que as pessoas estavam ali (a conferência não dá certificado ou diploma,

os palestrantes não são “estrelas”, o debate é um fim em si mesmo). Dever-se-ia, talvez,

ao despojamento do espaço, à proximidade física entre palestrantes e ouvintes? Ou esta

diferença seria o efeito de uma produção menos visível, de um processo mais amplo,

que incluiria todas essas coisas e ainda outras, e se poderia chamar de formação do

coletivo6?

Nesse momento, a associação de leitores se oferece como variável ao pensamento.

Antes de seguir este fluxo é preciso desacelerar um pouco, tirar o olho do processo

presente, tentar um ligeiro afastamento para delinear a situação em que se constituiu a

associação Les Amis du Monde diplomatique.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 85
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

3.2- Um território independente

Independência é o conceito que embasa todo o discurso do Monde diplomatique

sobre sua própria atuação. Este é mesmo o cerne de seu posicionamento editorial, que se

quer distante tanto dos imperativos do mercado, com a incansável luta pelo público

consumidor e pelas verbas publicitárias, quanto de qualquer influência estatal. Mas se

tal independência é possível, não se trata de uma característica dada a priori, mas um

território forjado palmo a palmo e que se depara com todos os riscos imanentes ao

campo jornalístico.

Quando surge, em 1954, como uma publicação mensal do cotidiano Le Monde, o

Monde diplomatique se destinava sobretudo ao meio diplomático. Pretendia oferecer ao

pessoal de consulados, embaixadas e organismos internacionais, informações

aprofundadas sobre política, economia e relações internacionais7. Lê-se no editorial, na

primeira página do primeiro número: “deve ter caráter internacional, ser rigorosamente

objetivo e se abster de tomar posição a respeito de interesses internos de diversos

países.” 8

Notemos, porém, que o fundador do Monde diplomatique, Hubert Beuve-Méry, à

época diretor do jornal Le Monde, tinha um interesse pessoal em relações internacionais,

pois, doutor em Direito, fora funcionário da embaixada francesa em Praga entre 1928 e

1939, e tornara-se nesta época, correspondente do jornal Le Temps. Seu rompimento

com este jornal, em 1938, devera-se à sua firme discordância da posição do cotidiano

que não só acreditava que Hitler desejava de fato a paz, como pregava o

descompromisso da França em relação à Tchecoslováquia.9 Em 1939 as forças nazistas

invadem Praga e todos conhecem o desenrolar dessa história.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 86
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

O episódio do rompimento entre Beuve-Méry e o jornal Le Temps, no entanto, nos

oferece uma pista para compreender melhor a proposta de “abster-se de tomar posição”

impressa anos mais tarde no primeiro número da nova publicação mensal. Na década de

1950, com o mundo dividido em dois blocos, o anti-comunismo a pleno vapor, assumir

uma posição neutra era de fato, fortemente político. Outro dado interessante: em 1951,

Beuve-Méry passara por um grave desentendimento com os proprietários do diário Le

Monde e fora demitido, mas, por pressão da equipe de jornalistas, voltara, fortalecido, à

direção do jornal. Uma reforma na estrutura do capital da editora da publicação permitiu

ainda que o conjunto da redação do Le Monde adquirisse uma parte de sua propriedade,

dando início ao movimento de sociedades de redatores.10

O jornal mensal Monde diplomatique foi progressivamente conquistando espaço.

A tiragem cresceu dos 5 mil exemplares iniciais, para cinqüenta mil em 1973. Sob a

direção de Claude Julien, o jornal ampliou sua equipe e seu horizonte editorial,

desenvolvendo uma postura analítica diante de questões mundiais11. Mas a década de

1970 foi difícil para a imprensa francesa. Em 1972, o fechamento de Paris-Jour trouxe

à luz a dimensão dos problemas financeiros enfrentados pelos jornais; proliferaram os

relatórios oficiais, mas não se encontraram soluções. O cotidiano nacional Le Figaro foi

o primeiro a recorrer à fórmula dos suplementos, com o objetivo de atrair mais

publicidade, oferecendo quase diariamente cadernos gratuitos ou a baixo preço

(Dimanche, Madame, TV – este dura pouco, mas volta em 87), e conseguindo dessa

forma aumentar sua difusão.12

O Le Monde, por sua vez, apesar de também ter lançado, a partir de 1979,

suplementos temáticos semanais, ia mal. De 1981 a 1984, o jornal acumulara dívidas de

110 milhões de francos e sofria uma distribuição decrescente. Em 1985 André Fontaine
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 87
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

tornou-se diretor da publicação, propondo um duro plano de recuperação que envolvia

aumento do preço na bancas (de 4 para 4,5 francos em quatro meses), um acordo com o

sindicato do livro para a supressão de postos de trabalho, um acordo com a associação

de redatores para reduzir as despesas, a transformação de setores como a publicidade em

filiais, e a abertura do capital (para uma sociedade de leitores e uma sociedade de

investidores).13

É importante contextualizar: nesses vinte anos, do fim dos anos sessenta ao fim

dos anos oitenta, ocorreram consideráveis transformações no modelo de financiamento

das televisões francesas, com a entrada no campo das forças comerciais. Em 1968, foi

admitida a publicidade no primeiro canal público; as pesquisas começaram a ser

empregadas na medição da taxa de audiência e os resultados utilizados no julgamento

da qualidade dos programas. Três anos depois, o segundo canal de TV passou também a

aceitar publicidade, paralelamente, ocorreu uma mudança na forma das pesquisas, já

não se perguntava mais o que o público gostaria de ver na TV, mas se ele tinha ou não

gostado de algo que já vira no ar. Em 1983, a publicidade entrava no terceiro canal

público e em 1986 terminava o monopólio de estado sobre a radiodifusão e televisão

francesas, surgindo as primeiras emissoras comerciais.14

Foi talvez sob o impacto das novas tensões do campo jornalístico que, em 1989,

André Fontaine promoveu ainda uma grande reforma editorial, modificando o formato

do jornal Le Monde, introduzindo a separação em cadernos e utilizando cores na

impressão. Nessa época de mudanças, Claude Julien, diretor do Monde diplomatique,

assinou, com a publicação matriz, um acordo que resguardava ao primeiro sua

autonomia. Ficou estabelecido que a partir de então a única responsável pela linha
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 88
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

editorial do Monde diplomatique seria sua equipe de redação, que elaboraria também o

orçamento do ano vindouro e asseguraria o seu cumprimento15.

Nos anos que se seguiram à assinatura do acordo, a equipe do Monde

diplomatique afirmou cada vez mais a independência de sua linha editorial, colocando-

se na contra-corrente do discurso mediático16 mundial em momentos críticos como a

guerra do Golfo, publicando artigos longos e detalhados (sempre com referências às

fontes de informação), em sua maioria escritos por estudiosos do assunto abordado,

reduzindo o uso de fotografias, fugindo ao sensacionalismo e procurando ativar o

pensamento dos leitores; enfim, rasgando uma por uma as tábuas de lei do jornalismo de

audiência, inclusive a que dita que um jornal só se torna viável economicamente pela

venda de espaço publicitário —, uma vez que o volume de publicidade no Monde

diplomatique é restrito a 5% do total de seus negócios.

Enquanto isso, o cenário da imprensa e do audiovisual franceses de um modo

geral, no início da década de 1990 era preocupante. Televisão, rádio e jornais perdiam

credibilidade junto à população: de 1989 a 1993, o índice de credibilidade da tv caíra de

33 pontos para zero, o do rádio de 34 para 23 e o da imprensa, de 16 para menos quatro.

A imprensa sofria de uma queda geral nos números de difusão e via o dinheiro da

publicidade migrar para a TV. Paralelamente, uma alta nos preços de produção e

difusão dos jornais pressionara para cima o preço de venda unitária17.

No entanto, graças às suas escolhas, o Monde diplomatique apresentava resultados

que contrastavam com a situação ambiente: em seis anos a difusão aumentou 50% (de

cerca de 110 mil em 1989, para mais de 165 mil exemplares em fevereiro de 1996) e o

lucro da publicação foi multiplicado por quatro.18

3.2.1- Uma resposta d’além mar


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 89
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Algo inesperado sempre pode acontecer e o inesperado não é forçosamente mau.

Em 1994 um homem, octogenário, alemão, judeu não sionista, que vira a fermentação

do nazismo, previra o desastre, militara contra, caíra na clandestinidade e partira, em

1936, com 20 dólares no bolso, num navio cargueiro para a Bolívia, sem sequer saber

em que lugar da América do Sul ficava, simplesmente porque aquele era um dos poucos

países no mundo que não fazia restrições na concessão de vistos; esse homem singular,

Gunter Holzmann, escreveu uma carta para o diretor do Monde diplomatique (já, nesta

época, Ignacio Ramonet) pois gostaria de ver uma edição em alemão do jornal e

oferecia “apoio sem reservas” para o projeto.19

Em março de 1995, Ignacio Ramonet e Bernard Cassen viajaram para Santa Cruz

para se encontrar com Holzmann, que, aos 82 anos, decidira doar ao Monde

diplomatique a maior parte de suas economias de vida inteira: cerca de 5 milhões de

francos, que equivaliam, na época, a cerca de um milhão de dólares. Esse gesto

generoso desencadeou uma série de ações que engajariam jornalistas e leitores na

conquista da independência de direito do jornal e na busca de novos espaços para um

fluxo de discurso na contra-corrente da informação.

Não seria o suficiente debitar à sorte o acontecimento. Não foi por acaso que

Holzmann resolveu destinar o dinheiro, não a alguma instituição de caridade, não a uma

fundação cultural, mas a esta publicação em particular. De fato, a relação com o Monde

diplomatique começara a se construir muitos anos antes:

“A partir dos anos 60 encontrei no Monde diplomatique uma informação mais


verídica, mais bem documentada que em qualquer outra publicação de meu
conhecimento. Percebia a objetividade das pesquisas, a profundidade das
reflexões, o rigor das conclusões. Apreciava a serenidade, o ponto de vista
elevado no tratamento dos temas mais candentes da atualidade. (...) As
informações contidas no Diplo pareciam cada vez mais indispensáveis a qualquer
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 90
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

pessoa desejosa de compreender um mundo que caminhava, a grandes passos,


rumo a uma nova Idade Média.”20

O aporte inesperado de dinheiro permitiu que se realizasse um projeto que ficara

adormecido desde 1989: o de transformar o Monde diplomatique numa editora

independente, filial do Le Monde S.A., que concordara em vender até 49% das ações da

nova empresa, detendo por sua vez, 51% do capital.

O objetivo da equipe do Monde diplomatique era se proteger do avanço das

concentrações em curso nas empresas de comunicação e garantir a continuidade da linha

editorial do jornal. Para começar, seria preciso adquirir ações à empresa matriz até

atingir a parcela de 33,34% — na lei francesa esse número corresponde à “minorité de

blocage”, ou seja quem detém tal porcentagem de ações de uma empresa tem o direito

de impedir, bloquear, decisões dos acionistas majoritários.

Assim, a equipe do jornal se reuniu numa associação sem fins lucrativos, nomeada

Associação Günter Holzmann, e com os cinco milhões de francos recebidos adquiriu,

em nome da organização, 12,19% das ações da Le Monde diplomatique S.A.. No

entanto, faltava ainda comprar pouco mais de 21%, para atingir a minorité de blocage,

um volume que equivalia, grosso modo, a dez milhões de francos. A solução encontrada

foi fundar outra associação sem fins lucrativos, reunindo cerca de cinqüenta amigos,

leitores e colaboradores mais próximos e dar início a uma sociedade de leitores, que

recebeu o nome de Les Amis du Monde diplomatique.21

O próximo passo foi a publicação de um “apelo aos leitores” ocupando duas

páginas duplas na edição de fevereiro de 1996, no qual Ignacio Ramonet e Claude

Julien (respectivamente diretor e ex-diretor do mensal) falavam sobre a doação de

Günter Holzmann, apresentavam o projeto de tornar o Monde diplomatique uma filial

da empresa Le Monde como um passo importante na manutenção da linha editorial


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 91
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

independente, sobretudo diante do contexto da mídia francesa e mundial, e convocavam

os leitores a se tornar co-proprietários do jornal.

3.2.2- Vozes de toda parte

Uma proposta rara: cada leitor interessado deveria fazer um aporte mínimo de 600

francos a título de adesão (ou 200 francos para estudantes, convocados do serviço

militar e desempregados) mais 100 francos como anuidade. O texto do apelo deixava

bem claro que, por ser uma associação sem fins lucrativos, Les Amis não distribuiria

dividendos, não daria contrapartida financeira, jurídica ou fiscal alguma, sequer incluía

uma assinatura do jornal. O objetivo era simplesmente: apoiar o Monde diplomatique,

contribuir para a difusão de idéias, tentando enriquecer a reflexão sobre os problemas

atuais e o debate democrático. Aos associados se oferecia a possibilidade de promover

“vida associativa”: participar encontros, palestras e conferências sobre temas atuais,

com jornalistas ou colaboradores do jornal.22

Em menos de um mês, 2.100 leitores responderam, associando-se ao Les Amis du

Monde diplomatique e somando mais de dois milhões de francos que foram

transformados em ações. Até o fim de 1997, o objetivo inicial, conquistar a minorité de

blocage, foi atingido: Les Amis detinham 20,27% do capital e a Associação Günter

Holzmann, outros 13,13%, somando 33,40%. O segundo objetivo traçado seria alcançar

o máximo de ações colocadas a disposição pela empresa mãe (49%), para facilitar o

acesso a um número maior de leitores, o valor do aporte mínimo de adesão foi baixado

de 600 francos (ou 200 nos casos especiais descritos acima) para 150 francos.23

Mas o que mobilizara tantas pessoas a responder, desde o primeiro apelo? Nada de

prêmios em dinheiro, casas, automóveis, viagens, aparelhos eletrônicos como oferecem

dezenas de promoções para vender assinaturas de jornais. Nenhuma promessa de lucros,


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 92
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

nenhuma vantagem, nenhum privilégio exclusivo, argumentos tão explorados na

publicidade. Talvez possamos entender melhor a resposta se nos detivermos um pouco

no texto do convite.

O título do editorial da edição de fevereiro de 1996, na qual foi publicado o apelo

aos leitores, era: “Médias en Danger.” Ignacio Ramonet alertava para a situação crítica

em que se encontrava a mídia, descrevendo o panorama francês: a queda vertiginosa da

confiança do público nos meios de comunicação, o desaparecimento de um jornal diário

(Infomatin), a passagem do Liberation, outro cotidiano, para o controle de um grupo

industrial, a concentração acelerada, a competição desenfreada pelas verbas de

publicidade, a influência do dinheiro e do poder político no foco das informações

difundidas, o poder que a própria mídia passava a deter. Relembrava, em seguida, o

papel de contra-poder que, historicamente, estivera na base da imprensa. E concluía que

era tempo de “se mobilizar para defender a liberdade de expressão e a independência da

imprensa”24, solicitando aos seus leitores que se detivessem no apelo lançado no interior

do jornal.

As páginas interiores expunham o projeto de transformar o Monde diplomatique

numa filial da editora Le Monde e apresentavam os motivos de tal mudança. Para isso,

retomavam a descrição do cenário da mídia francesa (e mundial) delineado no Editorial

e citavam, como exemplo dos interesses econômicos e políticos que se abatiam sobre a

imprensa, o caso recente da cobertura das greves que haviam paralisado o país.

“As intenções econômicas e ideológicas desses predadores são, e é o mínimo


que se pode dizer, contrárias aos interesses dos leitores-cidadãos, como mostrou,
recentemente, a cobertura mediática do formidável movimento social que agitou a
França.”25
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 93
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Outro artigo relembrava o quanto é importante munir-se de informação completa,

ainda que fatigante possa ser este exercício, para ter meios de refletir sobre a atualidade:

“Quando todas as mídias parecem ser levadas pela velocidade, pela aceleração,

pela fascinação da instantaneidade, nós dizemos que o importante é desacelerar,

frear, se dar o tempo de analisar, de pôr em dúvida, de refletir.”26

O texto do convite ata a formação da associação de leitores a todo um contexto de

lutas sociais, configurando-se portanto, desde o começo, como uma tomada de posição

política em relação ao que acontecia não só na mídia, mas também nas ruas francesas.

De fato o processo que transformau o Monde diplomatique numa filial, desde o evento

da doação até a criação das duas associações, coincidiu com um momento importante de

confronto entre forças sociais e as do capital na França. Em 1995, o governo fazia

avançar um projeto de “reforma” do modelo de seguridade social: o Plan Juppé (de

Alain Juppé, então primeiro ministro). Em fins de novembro iniciou-se uma greve,

capitaneada pelo setor de transportes públicos, em defesa do direito adquirido ao seguro

social e da aposentadoria. Com a recusa do governo a negociar, a greve ganhou corpo,

se alastrou para outros setores e se transformou num movimento de defesa da

solidariedade, da fraternidade e dos serviços públicos contra o avanço das políticas neo-

liberais em todo o mundo. A maior parte da mídia sustentou, enquanto pode, uma

cobertura pró-governo, procurando minimizar o alcance da recusa da sociedade quanto

ao plano.

Tudo indica que ao se engajar numa ação de defesa do Monde diplomatique, os

leitores estavam se engajando e engrossando um outro fluxo de vozes, mais amplo, em

parte ainda virtual, que no entanto encontrava densidade, visibilidade (deveria dizer

audibilidade), força no encontro com o fluxo do jornal. Esta possibilidade se reforça ao


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 94
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

verificarmos que em janeiro de 1996, o Monde diplomatique dedicou-se inteiro à

resposta dos franceses ao plano de reforma da previdência, publicando análises das

questões em jogo no confronto entre o governo Juppé e a maior parte da sociedade. O

tema básico da edição era apresentado na primeira página: “La grande revolte française

contre l’Europe liberale.” No corpo do jornal, dez páginas desenvolviam e

contextualizavam o assunto.

Além disso, em março de 1996, foi publicada uma versão reduzida do apelo aos

leitores de fevereiro. Numa área de texto destacada, onde se fala das respostas recebidas

no curto período e calcula-se quanto falta ainda arrecadar, deparamo-nos com uma

referência clara: “Todos juntos, mostremos que se os cidadãos sabem dizer ‘não’ a

projetos inaceitáveis de sociedade, sabem também dizer ‘sim’ com entusiasmo aos

valores democráticos, em primeiro lugar a liberdade de informar.”27

Esta breve, brevíssima, incursão pela história do Le Monde diplomatique,

naturalmente, tem um objetivo. Vemos que o seu desenvolvimento não foi suave, o

campo jornalístico na França, como em todo mundo, é um ponto de entrecruzamento de

interesses profissionais, comerciais, políticos, pessoais. A tensão é constante. Porém, em

momentos determinantes, incidiram ações pontuais e efetivas para manter a

independência da redação: primeiro a recusa em tomar posição no conflito Leste-Oeste;

em seguida, o aprofundamento de um viés crítico-analítico das questões mundiais; a

assinatura do acordo resguardando a autonomia do jornal; a formação da Associação

Gunter Holzmann e a criação da associação de leitores.

No entanto, e ainda que individualidades apareçam no processo, não são escolhas

individuais que determinam tal movimento: é o agenciamento coletivo que permite o

desenvolvimento de linhas de subjetivação que fogem às formalizações endurecidas do


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 95
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

capital/mercado e trabalham na direção de uma independência. Vimos como a criação

da associação Les Amis du Monde diplomatique emerge do encontro das variáveis da

atualidade e da história — o contexto de concentração da mídia mundial, a situação

política e econômica francesa, a doação de Holzmann; e como esta doação mesmo

aflora de uma situação complexa, com variáveis que vão desde a perseguição nazista

aos judeus, até a realidade política e social na Bolívia. Veremos ao longo deste capítulo

que o próprio Monde diplomatique é ponto de entrecruzamento de discursos e práticas,

linha que se destaca num agenciamento coletivo que o antecede e o ultrapassa.

3.2.3- A minoria em cada um

Uma das mais freqüentes críticas formuladas sobre o Monde diplomatique é que

seria um jornalismo “elitista”. Isso porque publica textos mais longos do que o padrão

jornalístico, porque desenvolve raciocínios que tentam abordar cada questão em sua

complexidade (sem “facilitar”, sem “mastigar” o sentido) e porque emprega uma

linguagem que, embora clara, não se cola ao vocabulário utilizado pelas pessoas no seu

dia-a-dia. Seria, então, um jornal “difícil” que só fala com uma minoria privilegiada,

detentora de largo capital cultural. Em outras palavras, essa corrente considera que a

maioria das pessoas não têm capacidade para acompanhar as questões como são

abordadas no jornal.

Pensemos a respeito. Esse raciocínio usa a noção numérica de maioria para

aprovar ou desaprovar o jornal. No entanto, o critério numérico de julgamento é

característico do ponto de vista dos medidores de audiência (não custa lembrar,

trabalham por amostragem), que por sua vez servem para definir o valor de venda do

espaço físico do jornal, com o objetivo de comercializá-lo como espaço publicitário. Por

outro lado, existe uma minoria, também numérica, a dos detentores de capital
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 96
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

econômico, à qual se destina um número razoável de veículos de comunicação, sem que

sejam criticados por se dirigirem a ela. Vamos adiante com a reflexão, mas guardemos

esse dado curioso: a minoria capaz de ler e pensar é vista com desconfiança; a minoria

que detém riqueza, não, ao contrário é alçada a modelo de realização.

Há outras maneiras de se considerar as noções de maioria e minoria. Deleuze e

Guattari trabalham com o conceito de maioria referencial (ou modelo). Neste caso, a

maioria é um padrão extraído da diversidade. Os autores mostram que se o homem,

branco, ocidental se impõe como figura dominante não é porque tenha uma

superioridade numérica, mas porque essas marcas foram extraídas da variação geral e

apresentadas como padrão. Nesse sentido, a maioria é a marca da dominação. “Minoria

e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma

constante, de expressão, ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela

é avaliada.”28

A maioria, continuam os autores, é uma abstração e, embora queira se impor como

referencial para todo mundo, não corresponde finalmente a ninguém. Pois a única coisa

constante, como vimos no segundo capítulo, é a variação. O que significa que em algum

ponto, todo mundo tende a variar; ou seja, tende a entrar num “devir-minoritário”.29

Voltemos pois à crítica que se tece ao Monde diplomatique, o “jornal elitista”. O

raciocínio em linhas gerais é: o povo não é capaz de entendê-lo, o povo é a maioria, o

jornal não fala com a maioria. Essa é porém uma construção bastante redutora do povo,

pois toma de um dado circunstancial — uma variável de despreparo — e transforma-o

numa constante — a incapacidade —, que se sobrepõe a todas as outras variáveis, como

um possível desejo de compreender mais. Forma-se assim uma maioria referencial, “o


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 97
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

povo”, que se soma a uma maioria numérica (a audiência), que passa a constituir a

régua de medida para todas as produções, não apenas as “de mercado”.

Ora, o jornalismo do Monde diplomatique faz um caminho diferente: privilegia o

pensamento. E o privilegia de diferentes maneiras: não só os temas abordados propõem

reflexões, mas a própria tessitura do texto, a maneira como é escrito faz pensar (sem

reduzir, por exemplo, o vocabulário em nome de uma pretensa simplicidade). Além

disso, as imagens, que às vezes são fotos mas em sua maior parte são reproduções de

trabalhos de artistas plásticos, constituem em si um comentário que não se cola ao texto,

mas se desenrola ao lado, abrindo espaço para a passagem de ainda outras questões e

reflexões. Um movimento que se faz apesar das pressões atuais em favor da velocidade,

da facilidade e do mercado. Ou melhor, contra elas, pois pôr para pensar com as

variáveis é fomentar a própria variação, ou ativar uma “consciência universal

minoritária”30, que pode ocorrer a qualquer um em sua diferença, democraticamente.

Da mesma forma como recusamos o conceito de sujeito primeiro, como instância

fundadora, devemos também questionar a idéia que se propõe de “povo” como um dado

da natureza, uma entidade pronta e acabada. Povo é processo, constitui-se nos

agenciamentos, com os agenciamentos, para o melhor e para o pior. O povo que aparece

em certos programas ditos populares da TV é uma construção da TV: como recorte e

como agenciamento (no contato com a câmera, com as luzes, com o palco, com o

apresentador, com a edição, com o tema escolhido, com todos os outros programas que

o antecederam servindo de modelo, com o mercado, com os medidores de audiência

etc). Seria um erro reduzir toda a multiplicidade, a riqueza de nuances de um povo

àquela imagem recortada que dele se apresenta na telinha.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 98
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Deleuze e Guattari afirmam que uma literatura menor é a invenção de uma

pequena língua dentro de uma língua maior; é um certo uso que se faz da língua maior e

que a põe inteira em tensão; é um trabalho fértil das pobrezas da língua, uma exploração

dos seus limites. E com essa língua menor, se fala a um povo que não existe, uma gente

futura, que está para ser inventada, e o será, com o texto.31 Não diremos que o Monde

diplomatique faça literatura, mas sim que faz variar o jornalismo, lançando mão de

elementos que lhe são estranhos: é escrito principalmente por colaboradores (ensaístas,

filósofos, professores, escritores, panfletários e jornalistas) do mundo inteiro; publica

textos longos, densos, que pedem uma lentidão tanto da escrita e quanto da leitura; não

se prende ao presente, imediato, mas avança pelo passado e pelo futuro, sendo, nesse

sentido, inatual, contrário às tendências atuais. Um uso variante do jornalismo que

falaria a um povo potencial, em estado de vir a ser, produzindo-se na conexão com essas

estranhezas.

Maurice Lemoine, redator-chefe adjunto do Monde diplomatique, falaria mais

tarde, em entrevista, sobre o modo como encarava essa questão:

“Temos muitas pessoas que gostam muito de nós e temos também muitas
pessoas que nos detestam muito, portanto, temos muitas críticas. Grosso modo,
sejamos claros, o Monde diplomatique não é um jornal popular, é verdade, nós
sabemos, fizemos uma pesquisa há dois ou três anos, e sabemos que nossos
leitores são pessoas que têm bac +3, bac +4, bac +5 (baccalauréat mais três, ou
quatro, ou cinco anos de estudos). Mas também é verdade, e isso faz parte da
reflexão que fazemos aqui, em particular, Ignacio Ramonet, é que se informar é
cansativo. E, bem, nossa tese é que é preciso fazer artigos de fundo, que são
talvez de acesso um pouco difícil, mas cabe também ao leitor fazer o esforço para
se informar e não esperar que nós façamos uma pasta onde a informação seria
reduzida ao mínimo. Então, há realmente uma vontade deliberada, não de fazer
complicado, não de fazer chato, mas de fazer verdadeira informação. E a
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 99
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

verdadeira informação efetivamente, por definição, não é necessariamente


atraente, embora possamos fazer informação sem sermos chatos.”

3.3 – Uma linha da história

Um mapa começa a se delinear. Pudemos percorrer breves caminhos que se

entrecruzam, no entanto, o agenciamento aponta ainda para além deles. Sim, porque se

esse jornalismo é de um tipo variante em relação ao modelo dominante do mercado,

seria interessante investigar o que o põe, por sua vez, a variar. O próprio jornal não é

origem de variação, mas ponto de passagem de um processo.

A pergunta insiste: por que surge na França essa variação do jornalismo? Se

praticamente o mundo ocidental inteiro está em maior ou menor grau engajado nessa

fase financeira do capitalismo; se a concentração dos meios de comunicação atravessa

continentes; se diversos países passam pelo processo de privatizações e desmontes das

leis sociais; se os movimentos de resistência também surgem por toda parte; que outros

elementos podem estar se conectando para permitir que aconteça um Monde

diplomatique? Um passeio pela história da imprensa naquele país talvez ilumine

aspectos singulares que enriqueçam nossa cartografia.

Duas bibliotecas públicas de Paris guardam as mais completas bibliografias sobre

a imprensa francesa: a do Centre National George Pompidour, o famoso Beaubourg, e a

Bibliotèque National de France (BNF), em sua unidade mais moderna, o site François

Miterrand. O acesso à primeira é irrestrito: qualquer pessoa pode consultar

gratuitamente o seu acervo, utilizar os computadores para pesquisas na internet, ler

jornais recentes de diversas partes do mundo, assistir a programas e noticiários de tevê

de diferentes países ou simplesmente ocupar uma mesa de trabalho. Para freqüentar a

segunda é preciso cadastrar-se como estudante, visitante ou pesquisador e pagar uma


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 100
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

taxa anual (ou diária). De acordo com a categoria tem-se acesso a parte da coleção

(estudantes e visitantes) ou a toda ela (pesquisadores).

A afluência ao Beaubourg é assombrosa: a biblioteca abre às onze horas da manhã,

mas quem chega às dez já encontra fila na porta. Uma fila alegre, multilíngüe e

multicolor, onde se aglomeram pessoas de todas as idades, dos mais variados estilos.

Lá dentro se espalham pelas grandes mesas, formando grupos, ou sozinhas. Os livros

ficam expostos e é possível percorrer as estantes em busca do que se precisa. Mas há

também funcionários prontos a ajudar na pesquisa bibliográfica, indicar seções, autores

e mesmo referir para outras bibliotecas. Às duas da tarde, lá fora, a fila é de espera de

que vaguem lugares, — muito embora o espaço tenha sido previsto para centenas de

pessoas. Também a BNF é muito procurada, mas oferece aos pesquisadores alguns

confortos extras, como o acesso exclusivo ao Rez de Jardin, com o seu pé-direito

altíssimo e suas amplas paredes de vidro para o jardim interno; a possibilidade de

reservar lugar (e material de pesquisa) com antecedência; acervo riquíssimo de livros,

periódicos, documentos, gravações e filmes; postos informatizados de consulta

bibliográfica; longas mesas divididas em segmentos individuais, tomada para ligar

microcomputadores; pensando bem, é a biblioteca dos sonhos, faço dessa meu território.

A quantidade de trabalhos, teses, artigos, enciclopédias, ensaios, histórias,

relatórios sobre a imprensa francesa não deixa dúvidas: este é um tema muito

problematizado. Um período histórico em particular chama atenção, pela concentração

de estudos que suscita: os anos da ocupação nazista até pouco depois da libertação de

Paris. Foi uma época de graves acontecimentos, com os invasores exercendo um rígido

controle da imprensa, não só através da censura e da violência, mas também pela

detenção dos insumos e meios de produção. Mas foi também um tempo de bravura, em
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 101
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

que surgiram inúmeros folhetins e jornais clandestinos, e que foram importantes na

organização da resistência. A tal ponto crítica foi a experiência que considera-se 1944-

45 como uma espécie de marco zero da imprensa francesa: o desejo era de realmente

refundar, sobre outras bases, o jornalismo.

3.3.1- O aprendizado da Ocupação

Em 22 de junho de 1940, o Marechal Pétain assinava um armistício com Hitler. O

Norte da França havia sido tomado por tropas nazistas em quatro semanas, sem que o

exército francês conseguisse detê-los; o governo francês refugiou-se em Tours; Paris foi

ocupada em 14 de junho, sem luta, e em 17 de junho Marechal Pétain determinou que

parasse a resistência. Uma das primeiras medidas das autoridades alemãs após entrar na

cidade foi regularizar a circulação de jornais e revistas tais quais existiam antes da

ocupação (ou, pelo menos, aparentemente tais quais) de modo a reconfortar a

população, construindo no cotidiano uma impressão de continuidade e normalidade. 32

Publicações já conhecidas reapareciam, com o mesmo título, a mesma

diagramação e, parte importante da estratégia, simulando a mesma diversidade de

posições que existia antes da ocupação. Utilizando-se dos formatos habituais, seria mais

fácil passar as novas orientações políticas e conformar a “opinião pública”. A imprensa

de generalidades — moda, esportes, cinema —, que à primeira vista não abordava o

tema da guerra, veiculava, indiretamente, através de fotos e reportagens especiais, os

valores da Alemanha nazista, “constatando” a invencibilidade do exército alemão e a

nova e inelutável ordem que se impunha à Europa.33

Jornais “de esquerda”, “de direita”, “socialistas” mantinham a polêmica em torno

de questões supérfluas, mas concordavam na defesa do colaboracionismo. A submissão

era apresentada como fatalidade, os inimigos do nazismo (Inglaterra, Estados Unidos,


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 102
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Resistência), atacados, e a colaboração vista como a única via possível para a

reconstrução de uma França próspera.

Na zona Norte, ocupada, entre 1940 e 1943 a ação da censura era direta: havia

temas e títulos obrigatórios impostos diariamente; todos os textos, sem exceção, das

críticas teatrais aos folhetins, deviam ser submetidos aos censores alemães, que corriam

por sua vez o risco de ser enviados para o front, caso deixassem passar alguma

informação considerada prejudicial ao Reich. A partir de 43, no entanto, essa

responsabilidade era transferida aos chefes de redação, que deviam responder pelas suas

publicações.34 A esse respeito, Jean Texcier, funcionário público francês e militante

socialista escreveria, num folheto clandestino:

“Naturalmente alardeiam sua independência ‘cem por cento franceses!’ afixam,

como comerciantes de meias. Mas seu ardor e seu zelo hitleriano surpreendem até

mesmo os ocupantes nazistas, que afirmam: ‘nós não pedíamos tanto!’”35

Mas a zona dita livre, sob o governo de Pétain, também devia obediência aos

ditames dos invasores — uma interferência mais discreta até 1942 e, depois disso,

ostensiva, com a presença de supervisores nazistas nos departamentos regionais de

censura. O Serviço de Informação determinava dois tipos de orientação a serem

seguidos pelos jornais: as “notas de orientação de princípio”, que definiam os grandes

temas a serem abordados, e as “notas de orientação de atualidade”, em maior número,

cujo objetivo era influenciar a opinião favoravelmente ao governo. A imprensa assumia

um tom familiar e pedagógico, onde se pregava o rompimento com o passado,

celebravam-se os feitos de Pétain e clamava-se pela a construção de uma nova França,

através de um “diálogo com o vencedor”. Uma dessas notas de orientação de princípio,

datada de 1941, sugeria:


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 103
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

“Repetir os mesmos argumentos, relembrar os mesmos fatos, pois é pela


repetição obstinada que a propaganda em favor de uma nova ordem dará frutos. A
unanimidade da imprensa em torno dos grandes problemas aos quais estão ligados
nosso destino contribuem em larga medida para a criação da unanimidade
francesa tão necessária à saúde do país.”36

O cerco nazista à imprensa não se exercia, no entanto, somente através da censura.

Era também arma poderosa nessa guerra de informação a pressão econômica, realizada

tanto através da detenção dos suprimentos (racionamento de tinta e papel), quanto pela

distribuição de auxílios financeiros aos jornais e agências de notícias mais dóceis (300

milhões de francos até 1943). Na zona ocupada, empregava-se ainda uma espécie de

assessoria de imprensa orquestrada pela Propaganda-Abteilung (ligada ao ministério da

propaganda) e aplicada pela embaixada alemã em Paris, cujo responsável era Otto

Abetz. Este, admirador da cultura francesa, desde 1930 já realizava encontros e debates,

tendo ampla circulação nos meios formadores de opinião. Sua missão era influenciá-los

em favor da Alemanha. No fim de 1940, com esse objetivo, iniciou uma série de

jantares e recepções onde reunia “a fina flor dos colaboracionistas parisienses.”37

Finalmente, ou talvez, antes de tudo, os nazistas contavam com a atuação de Gérhard

Hibellen, ou Gérard, para os franceses. Hibellen apresentando-se como homem de

negócios, se aproximava de jornalistas, se insinuava em editoras e jornais e adquiria-

lhes a maioria das ações. Ao fim da ocupação, seu trust agrupava 22 empresas, três

editoras e controlava 50 periódicos diversos, dentre jornais diários, revistas semanais de

informação geral e política, revistas literárias e de economia e boletins informativos,

que representavam por sua tiragem e penetração, cerca de 50% da imprensa parisiense.38

O aparelho estava muito bem montado. No entanto, desde o início da ocupação,

vozes começaram a se fazer ouvir. Primeiro eram solos, como o de Edmond Michelet,
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 104
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

que escrevia, três dias depois da tomada de Paris “Aquele que não se rende tem razão

sobre aquele que se rende.”39 Aos poucos foram-se agrupando: três ou quatro pessoas

escreviam, datilografavam, copiavam e distribuíam secretamente seus textos, de porta

em porta. Logo formou-se uma rede: quem recebia os escritos tratava de copiá-los como

possível e passá-los adiante. O destemido Cochet, general da aeronáutica, desde 6 de

setembro de 1940, assinava de seu próprio nome os apelos à resistência que difundia.40

(A força dessa assinatura, a recusa de se manter anônimo, diante da situação de

dominação, diante da morte, reforça o apelo do texto: o nome aqui não é título de

autoria, não encerra uma autoridade, mas é uma singularidade, um ponto de conexão

com as vozes diversas e dispersas que encontrarão aí também sua coragem.)41

O primeiro jornal apareceu em outubro de 1940: chamava-se “Pantagruel” e

divulgava notícias das rádios inglesas, seu fundador, Raymond Deiss, um editor de

música, foi preso em 1941 e executado dois anos depois. Em diversas cidades os grupos

iam-se formando: surgiram “L’Homme libre”, em Lille, fundado por dois ex-ministros;

“L’Alsace”, em Strasbourg, escrito por um professor-escritor; “Liberté”, em Marseille,

por dois professores de direito e um jornalista; “Libération”, em Paris, fundado por

sindicalistas (este durou de julho de 1941 a janeiro de 1944 e chegou a tirar 50 mil

exemplares); e outros como “Résistence”, “La France continue”, “Les Petites Ailes du

Nort”, etc. Alguns jornais se reuniam e davam origem a movimentos de combate

armado, foi o caso dos “Libération”, “Franc-tireur” e “Combat” que formaram o

M.U.R (Mouvements Unis de Resistence).

Professores, diplomatas, estudantes, historiadores, oficiais, funcionários públicos,

ministros, escritores, editores, bancários, corretores, jornalistas — pessoas das mais

diversas profissões, iam aos poucos organizando uma verdadeira malha de informação-
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 105
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

ação, apesar das inúmeras dificuldades. Os jornais se ramificavam, se multiplicavam,

davam crias ou se agrupavam para aumentar a difusão e ter mais chances romper o

cerco. Tipógrafos, impressores, operadores de impressoras, pessoal da composição,

muitas vezes trabalhavam durante o dia num jornal oficial (autorizado pelos invasores) e

à noite imprimiam, em casa, ou mesmo nos próprios locais de trabalho, os jornais

clandestinos. O material, escasso e fortemente controlado, era obtido por roubo dos

jornais oficiais, desvio de cargas, fraude de documentos ou, às vezes, atirado de pára-

quedas por aviões vindos de Londres.42 A distribuição, à vezes, contava com o acaso:

pacotes de jornais eram colocados, sem indicação de destinatário, em vagões de carga

de trens da região parisiense, na esperança de que, quando chegassem, fossem

descarregados por alguém que se envolvesse, ainda que momentaneamente, e fizesse os

jornais chegarem às mãos de possíveis leitores. Havia contribuições impensadas, como

o caso do editor Marcel Combe, que imprimia folhetos em alemão para os soldados do

campo de Perjaut e, na distribuição, contava com a ajuda de soldados alemães que eram

também militantes comunistas (foram descobertos, presos e, dezessete, fuzilados).43

À noite, nos subterrâneos, utilizando materiais impróprios, o agenciamento se

ampliava, acolhendo participações calculadas ou fortuitas, esperadas ou surpreendentes.

Muitas publicações foram descobertas; as pessoas que as faziam deportadas, presas ou

mortas, mas o processo continuava. A tal ponto que antes do fim da guerra, os jornais se

haviam reunido numa federação clandestina (Federation Nationale de la Presse

Clandestine) e juntos redigiram o esboço das leis que regeriam a imprensa francesa após

a libertação.

3.3.2- O Cahier Bleu


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 106
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Com a tomada geral da imprensa pelas forças nazistas ou colaboracionistas, um

problema se tornou evidente à Resistência francesa, especialmente aos envolvidos com

a produção dos órgãos de informação clandestinos: como proteger, doravante, esse

domínio estratégico da vida social da corrupção por poderes, não só estatais, mas

também econômicos? A lei de 29 de julho de 1881, considerada a mais liberal do

mundo, em sua época, ocupara-se de defender a imprensa de qualquer interferência ou

censura dos poderes de estado; mas ela se provara insuficiente.

Já no período entre guerras, surgira a preocupação de controlar a penetração do

poder econômico na imprensa, bem como de limitar a sua concentração e impedir os

monopólios. Foram apresentados alguns projetos de lei nesse sentido, como o do

deputado Réné Coty, em 1932, que pretendia impedir a tomada de diversos jornais por

um mesmo indivíduo ou empresa; e o de Leon Blum, líder socialista e chefe de governo,

em 1936, que tentava definir o estatuto das empresas de informação e garantir-lhes a

transparência, com uma série de exigências (publicação do nome dos administradores e

dos acionistas com mais de 1/10 das ações, publicação do balanço, controle público das

finanças). Tais iniciativas foram, no entanto, duramente criticadas pela imprensa

(largamente liberal) e derrotadas no Senado.44

Os acontecimentos da ocupação vieram provar que as preocupações não eram

infundadas e reativaram o projeto de tentar garantir uma imprensa independente. Esse

era o principal objetivo das disposições do Cahier Bleu, que reunia as diretivas

elaboradas pela Resistência e serviu de base para as instruções oficiais do governo

provisório de Alger em matéria de informação.

As medidas eram rígidas. A Agência Havas de notícias e publicidade, então um

monopólio, seria fechada e, em suas dependências, criado um Serviço Provisório de


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 107
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Informação, garantido pelo Estado (gratuito). Todo jornalista suspeito de colaboração

seria afastado; no prazo de um mês após a Libertação, a carteira de jornalista tornar-se-

ia obrigatória para exercer a profissão. Todos os jornais comprometidos, de acordo com

critérios a seguir, seriam suprimidos: os que tivessem surgido depois de 25 de junho de

1940; os que, existindo já naquela data, continuassem funcionando 15 dias após o

armistício na Zona Norte ou 15 dias após 11 de novembro de 1942, na Zona Sul. Seriam

igualmente suprimidos todos os periódicos que, mesmo não se enquadrando nessas

categorias, tivessem os dirigentes processados por colaboração com o inimigo. (Caso

nenhum processo fosse pronunciado em três meses, a interdição cairia.)

Os jornais obrigados a fechar sofreriam ainda conseqüências: ficaria de todo

proibido o uso do seu título; seus dirigentes (proprietários, gerentes, administradores,

diretores, membros do conselho) não poderiam usar instalações, equipamentos ou

quaisquer meios da empresa, exceto se tivessem se afastado durante a ocupação

(afastamento este cujas condições seriam investigadas); os envolvidos seriam

interditados de participar de qualquer outra publicação. Por outro lado, aos jornais que

houvessem voluntariamente parado de imprimir antes das datas previstas, bem como aos

jornais clandestinos, ficava garantido o direito de publicação; seus jornalistas e

colaboradores receberiam a carteira profissional; sendo que as instalações e

equipamentos dos jornais fechados seriam postos à disposição desses novos jornais.45

O Cahier bleu discorria também sobre futuro do rádio e do cinema, além de propor

soluções para o vazio de informações que necessariamente se formaria no intervalo de

tempo entre a suspensão dos órgãos de imprensa antigos e a organização dos novos.

Dois decretos do governo provisório da Libertação, um de Alger em 22 de junho

de 1944, outro de Paris em 30 de setembro de 1944, validavam e codificavam o


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 108
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

essencial do Cahier Bleu. Desejava-se, com essas medidas, promover uma espécie de

purificação da imprensa francesa, libertando-a dos poderes que a haviam sitiado.

“os legisladores da Libertação e seus sucessores imediatos, abandonando a regra

do laisser-faire que a lei de 1881 impusera à matéria como conseqüência natural

do laisser-dire, procuraram proteger as empresas editoras das pressões que

poderiam pesar contra sua independência.”46

Para isso, era necessário criar as condições econômicas que resguardassem a

imprensa e permitissem o florescimento da pluralidade de opiniões, oferecendo aos

leitores o maior espectro possível de informações. Por um lado, introduziram-se

exigências que visavam garantir a transparência das empresas diante do público: forma

nominativa das ações, cuja transferência só poderia ser feita com a concordância do

conselho de administração; proibição de tomadas de participação por acionistas

estrangeiros; nomeação do proprietário, do acionista majoritário, ou do representante

legal da associação (ou empresa) proprietária como diretor da publicação (responsável

legal); proibição de que uma pessoa fosse diretor de mais de uma publicação, entre

outras.47 Por outro lado, foram implantadas, nos anos que se seguiram ao decreto,

medidas para regular o funcionamento do mercado, tais como: a fixação de um preço

único de venda para os jornais diários; organização do mercado de papel; organização

cooperativa da distribuiçâo; estatização da Agência de notícias e criação de subsídios de

Estado para a imprensa.48

O impacto, num primeiro momento, foi evidente. Dos 206 jornais diários

existentes na França em 1939, apenas 28 ressurgiram após a Libertação. E embora nem

todas as medidas tenham sido regulamentadas e concretamente aplicadas, é fato que se


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 109
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

conseguiu frear por algum tempo o processo de concentração dos meios de

comunicação.

Como dissemos anteriormente, o objetivo da nova legislação era garantir a

existência de uma imprensa plural e independente. Plural, no sentido de fornecer

diversos pontos de apreciação sobre os temas da atualidade; independente, por não se

dobrar aos mandos e desmandos fossem do capital, fossem dos governos. Acreditava-se

que uma imprensa economicamente saudável teria mais forças para resistir às pressões.

Mas logo os problemas começaram a aparecer. Já em maio de 1947, Hubert Beuve-

Méry49 relançava num artigo na revista Esprit, a questão de como manter a longo prazo

as generosas promessas da Resistência. A repartição política dos jornais não se poderia

sustentar por muito tempo. Segundo o jornalista, expulso o inimigo, reapareciam antigas

divergências quanto aos caminhos a se desenhar para a imprensa. E o próprio público já

não se mostrava tão interessado pela informação política. O fato é que em janeiro de 47

fora revogada a exigência de autorização prévia para publicação, além disso, na época

em que Beuve-Méry escrevia, as Messageries nationales de la Presse (cooperativa de

distribuição) entravam em falência e corria-se o risco de ver surgir um novo monopólio

na área, com o crescimento da Hachette.

Ao mesmo tempo, a publicidade assumia uma importância crescente na

manutenção dos jornais, o aumento dos custos e a inflação faziam com que alguns

órgãos falissem e outros se aliassem. A abordagem analítica perdia espaço para a

tendência informativa e, apesar dos esforços, as potências financeiras voltavam a

investir na imprensa. O rádio e a tevê também ganhavam força e, embora tenham, por

algum tempo, permanecido como monopólio de Estado, como vimos acima, não
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 110
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

deixaram de introduzir um dado novo no campo jornalístico, provocando um

deslocamento na posição da imprensa.

Aos poucos, as medidas de 1944 foram sendo modificadas por legislações

sucessivas. Bem mais tarde, na década de 1980, com a chegada do partido socialista ao

poder, fez-se uma tentativa de retomar aquelas disposições da Resistência. Em 1984, foi

aprovada uma lei que voltava a incidir sobre o movimento de concentração (uma mesma

empresa não poderia deter mais de 15% da tiragem de cotidianos nacionais, ou 15% dos

regionais, ou 10% da tiragem total de jornais diários do país) e insistir na transparência

das empresas. Em 1986, porém, a maioria no legislativo mudava de mãos, outra lei era

votada e, dessa vez, revogava-se a ordenação de 1944, aliviavam-se as normas de

transparência dos capitais, mas impunham-se ainda restrições à concentração (que

passavam a levar em conta, além da imprensa, o rádio e as televisões aberta, a cabo e

por satélite).

Sobreviveram, no entanto, como sobrevivem até hoje, diversas categorias de

auxílios estatais à imprensa, que incluem incentivos fiscais, tais como a redução da taxa

de TVA (taxe a la valeur ajoutée) a 2,1% para os cotidianos e a 4% para as demais

publicações, renúncia fiscal para investimentos em modernização e subvenções a

pequenas publicações de interesse geral; e tarifas preferenciais, como o preço reduzido

de postagem e transporte por trem, ou subsídios de até 50% para tarifas telefônicas e

transmissões de fax.

Segundo um artigo de Henri Pigeat, publicado no ano 2001 em um número da

Revue des sciences morales et politiques que se dedicava à discussão sobre papel do

Estado no início do Século XXI, o volume total de ajudas estatais à imprensa escrita

atingiria o volume de 5,2 bilhões de francos, representando cerca de 10% do volume de


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 111
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

negócios do setor.50 Estudioso da mídia, diretor da agência France Press durante dez

anos, professor de Ética e Direito Internacional da Comunicação, Editor e membro de

diversos organismos internacionais de imprensa, Pigeat problematiza, nesse texto,

alguns aspectos da presença no Estado francês na garantia de uma imprensa plural, não

só em sua especificidade, mas também, e sobretudo, diante do novo contexto de

regulamentação imposto pela Comunidade Européia.

O autor aponta um momento em que a França, cuja tradição alia fortemente

imprensa plural e Estado como dois pilares da democracia, e onde esta ligação é vista

positivamente, como garantia da liberdade de expressão e pluralismo de opiniões, esta

França entra em choque com a tradição anglo-saxã do jornalismo, que vê como função

da imprensa o controle do poder político, aceitando, portanto, apenas um mínimo de

regulamentação. As harmonizações européias colocariam em cheque o sistema de

auxílios francês (o mais complexo e generoso da Comunidade, segundo Pigeat, embora

outros países da Europa, como Portugal, Itália, Bélgica, Inglaterra, Dinamarca ofereçam

também benefícios fiscais), quando determinam, por exemplo, que os mesmos

benefícios sejam concedidos a grupos europeus que passam a atuar no país (condição

aceita pela França).

Os auxílios, embora sejam questionados em sua eficácia, não o são em sua

pertinência. Ou seja, a necessidade de se reverem as ajudas que o Estado fornece à

imprensa se baseia no fato de não estarem cumprindo suficientemente seu papel: não

garantiram ainda a contento o pluralismo de opiniões, não impediram que houvesse

concentração e desaparecimento de títulos, não puderam evitar uma queda generalizada

na difusão da imprensa diária (embora os periódicos especializados sejam prósperos). O

principal motivo pelo qual se põe em discussão as ajudas estatais é precisamente a


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 112
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

consciência de sua importância e é para evitar que sejam extintas que se propõem o

estudo aprofundado dos critérios segundo os quais são distribuídos e o controle dos seus

resultados.51

Voltemos pois à indagação que deu origem a esse passeio através do tempo: o que

permite que surja, na França, uma variação do jornalismo? Vemos que o desenrolar da

história desse país levou, num momento crítico, o Estado francês a se posicionar ao lado

da imprensa. Esse posicionamento lateral é radicalmente diferente de uma sobre-

determinação estatal (ou mercadológica) que, no lugar de fomentar, sufocaria a

liberdade de imprensa. Para compreender a profundidade dessa diferença, basta

lembrarmos do que aconteceu nos meios de comunicação no Brasil durante os anos de

ditadura militar e cujas conseqüências sofremos até hoje.

Em contraste, o posicionamento lateral é uma configuração em que o Estado faz

rede com a população, no sentido que vem adensar um agenciamento que se baseia na

importância estratégica da imprensa para a manutenção da democracia como espaço de

debate, onde deixar fluir a expressão de idéias o mais livremente possível torna-se vital.

Nesse caso, a liberdade de imprensa tem um duplo aspecto: por um lado o direito

fundamental de se expressarem livremente as opiniões e, por outro lado, o direito

também fundamental da população de se informar livremente, ou seja, de contar com

fontes confiáveis e múltiplas de informação, para que cada um possa elaborar o seu

juízo sobre questões que lhe dizem respeito diretamente. É assim que os auxílios

dedicados à imprensa são na realidade vistos como auxílios aos leitores e passam a ser

questionados quando deixam de se agenciar com estes, tendendo a ser cooptados pelas

forças do capital.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 113
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Voltemos aqui à teoria de Guattari, que considera, na produção do “coquetel

subjetivo contemporâneo”, a articulação de múltiplos elementos heterogêneos.

Lembremo-nos de que os arranjos tanto podem funcionar de modo fértil, fazendo

proliferar os universos de referência, quanto no sentido contrário, retraindo-se sobre

territórios endurecidos — movimentos que serão definidos essencialmente pelos

agenciamentos coletivos de enunciação (e por suas palavras de ordem) preponderantes

em dado momento. E detenhamo-nos no fato que diferentes grupos produzirão

diferentes mapas de subjetividade e que poderão mudar ao longo do tempo.52

Ora um mapa de subjetividade, ou cartografia, no sentido em que Guattari

emprega essas noções, é o conjunto de marcações que permitem a um grupo ou

indivíduo se posicionar com relação aos seus afetos e percepções, sentimentos e

sensações.53 Uma vez que um elemento ganhe consistência ele renovará toda a

configuração do mapa até então existente e, mesmo que volte a submergir (perca

definição), continuará existindo como universo potencial de referência, podendo aflorar

a qualquer instante. Seguindo esse raciocínio, podemos pensar que, embora tenham sido

modificadas as leis elaboradas a partir do período de ocupação, aquela experiência

singular da Resistência durante a segunda guerra mundial continua agindo como

universo referencial na subjetividade francesa (não propriamente pela nacionalidade,

mas pela participação em um conjunto de circunstâncias) e que se atualiza em pelo

menos um grupo de pessoas, que por sua vez se reúnem na forma de um jornal. Mas, já

o dissemos, o processo é ininterrupto e novas circunstâncias podem pôr tudo novamente

a variar, com todos os riscos que isso possa incluir.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 114
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

3.4- Um deslocamento

Em dezembro de 1997, o Monde diplomatique publicou um artigo-manifesto

assinado por Ignacio Ramonet, diretor do jornal. Desde o título “Désarmer les marchés”

ficava claro o assunto de que se tratava e qual ponto de vista se defendia. Os mercados

estariam armados e seriam uma ameaça os povos. Seria preciso, portanto, desarmá-los.

Logo na abertura, antes mesmo de começar a desenvolver o tema, apresentava-se a

proposta: criar uma organização não governamental, em escala planetária, em favor da

cobrança de um imposto sobre a movimentação financeira internacional. A sigla é

reveladora: ATTAC (Action pour une Tax Tobin d’Aide aux Citoyens, ou, em

português, Ação pela Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos).

Ramonet contextualizava sua proposta: o mundo se encontrava sob o efeito do

susto provocado pela instabilidade das bolsas na Ásia, que por sua vez, fora causada

pela volatibilidade do capital financeiro. Segundo o autor, a globalização financeira

desenvolvera seus próprios “organismos supra-nacionais de controle” – Fundo

Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização para a Cooperação e o

Desenvolvimento Econômico e Organização Mundial do Comércio – cujo discurso

domina a mídia internacional e cujo poder submete governos aos seus ditames, ameaça

democracias, condena povos inteiros à pobreza extrema, tudo em nome das “virtudes do

mercado”. Esse “Estado mundial”, um “poder sem sociedade”, representa

exclusivamente os interesses das organizações que os mantêm: as grandes empresas

transnacionais e o próprio mercado financeiro. Um poder com força para questionar, em

nome da “liberdade do comércio”, as legislações nacionais, exigir sua anulação e

(acrescento) até obter de governos indenizações milionárias – como ocorreu com o

Canadá.54
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 115
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

“O desarmamento do poder financeiro precisa tornar-se um objetivo cívico maior,

se queremos evitar que o mundo do próximo século se transforme numa selva onde os

predadores farão a lei” 55 — alertava o Ramonet. O volume de dólares a circular

diariamente pelo mundo, em busca de lucro com as diferenças de valores das moedas,

chegava então a US$1,5 trilhão e o autor apontava os efeitos dessa ciranda vertiginosa:

alta de juros reais, redução de investimento de empresas, redução poder de compra de

famílias, aprofundamento dos déficits públicos, incitação dos fundos de pensão,

exigências de dividendos cada vez mais elevados, demissões em massa e etc.

“As sociedades podem tolerar por muito tempo o intolerável? É urgente atirar

alguns grãos de areia nos movimentos de capitais devastadores. De três maneiras:

supressão dos ‘paraísos fiscais’, aumento da taxação dos ganhos de capital; e taxação

das transações financeiras.”56 O artigo explicava a importância da ação sobre esses três

pontos e falava da Taxa Tobin, proposta em 1972 por um economista americano,

prêmio Nobel de Economia. “Trata-se de tributar, de maneira módica, todas as

transações feitas nos mercados financeiros, para estabilizá-los e, ao mesmo tempo,

proporcionar receitas à comunidade internacional. Com uma alíquota de 0,1%, a Taxa

Tobin arrecadaria, a cada ano, cerca de 166 bilhões de dólares, duas vezes mais do que a

soma anual necessária para erradicar a pobreza extrema até o início do próximo

século.”57

Mais uma vez os leitores do jornal demonstraram seu envolvimento, respondendo,

às centenas, a este novo apelo da redação. Em sua edição de janeiro de 1998, o jornal

publicava uma nota sobre o volume de respostas recebidas e pedia às pessoas que

desejassem se unir em torno desse objetivo que continuassem a escrever. Paralelamente,

estudava-se junto a diversos parceiros a maneira mais eficaz de concretizar essa


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 116
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

associação. Em 3 de junho do mesmo ano foi fundado ATTAC – Action pour une

Taxation des Transactions Financières pour L’Aide aux Citoyens. Dele faziam parte

pessoas físicas; associações educativas, organizações do movimento sindical e social e

órgãos de imprensa.

Nos primeiros seis meses, o número de associados diretos chegava a seis mil

pessoas. A arquitetura da organização se fez em torno de uma direção nacional,

composta sobretudo por “pessoas morais” (dentre as quais o Monde diplomatique) e

estruturas locais, chamadas núcleos locais, em grande medida autônomos, compostos

sobretudo de membros individuais, onde se realizariam reuniões semanais para discutir

problemas da atualidade e planejar ações de “tomada das ruas”. Além disso criou-se um

Conselho Científico, formado por grupos de pesquisa que se debruçam sobre temas

mundiais e/ou locais, como os paraísos fiscais ou o desemprego, e propõem alternativas

divulgam sua produção.

Em junho de 1999, ATTAC promoveu um encontro internacional em Paris, ao

qual compareceram representantes de oitenta países. Estabeleceu-se que o modo de

comunicação privilegiado seria a internet. Um sítio internacional já estava no ar, foi

criado um jornal eletrônico chamado “Grain de Sable” (que ganharia posteriormente

versões em várias línguas) e abertas listas de discussões. Porém mais do que uma rede

de computadores, tratava-se de formar uma rede humana, onde os que tinham acesso

aos equipamentos fizessem a ponte com os que não o tinham, difundindo assim as

informações. Optou-se um uso instrumental dos meios eletrônicos de comunicação,

escapando-se portanto da armadilha do fascínio pela técnica. Nada de malabarismos

espetaculares: os sítios e os jornais eletrônicos usariam o mínimo necessário da

tecnologia, de modo que as informações estivessem disponíveis sem entraves (como a


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 117
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

exigência de programas ou equipamentos de última geração) em qualquer computador

com acesso a internet.

Em novembro de 1999, durante o encontro da organização Mundial do Comércio

(OMC) nos Estados Unidos, ATTAC convocava manifestações simultâneas “contra a

ditadura dos mercados” em toda a França, além de participar da organização dos

próprios protestos de Seattle.58 A Associação ganhou, então, espaço na mídia impressa e

audiovisual, tornando-se visível a um público muito mais vasto.

É preciso lembrar que paralelamente ao desenvolvimento de ATTAC a partir do

editorial no Monde diplomatique, prosseguia a batalha dos leitores e equipe do jornal

para sedimentar a independência deste, através da compra de ações ao acionista

majoritário, primeiro até conquistar os 33,34% referentes à minorité de blocage, depois,

para crescer até o limite máximo acordado de 49%. Como vimos acima, em pouco

menos de dois anos (de fevereiro de 1996 a dezembro de 1997) o primeiro objetivo da

associação de leitores fora atingido, restava pois alcançar o segundo objetivo, o que

deveria ser feito até dezembro de 1999. Um ano antes dessa data, em dezembro de 1998,

o presidente da Associação Les Amis, Riccardo Petrella, publicava nas páginas do

Monde diplomatique um artigo propondo aos membros da associação “se engajar mais

firmemente em favor da (re)construção da cidadania” e sugerindo que o melhor modo

de fazê-lo seria pelo exercício do debate e da reflexão, ao lado de outras associações e

movimentos, em busca de soluções alternativas, de novos princípios de ação e de “uma

outra narração do mundo.”59

Notamos, neste apelo aos associados e leitores, um pequeno deslocamento com

relação aos objetivos iniciais da Associação. Se, quando foi lançada em fevereiro de

1996, a sua principal finalidade, definida no estatuto, era “contribuir, por todos os meios
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 118
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

materiais e intelectuais, para o desenvolvimento e para a independência da publicação

Le Monde dilomatique”, em 98 o horizonte de ação e interferência se ampliava. E, de

fato, ao longo dos anos de 1999 e 2000, esse novo caminho seria privilegiado, embora

prosseguisse ainda a aquisição de ações (em março de 99 chegava-se a 41,7%).

Durante a pesquisa de campo, em 2001, em entrevistas com o Secretário Geral da

Associação Les Amis, com membros do seu Conselho Administrativo, com associados e

ex-associados e com membros de ATTAC, ouvi diferentes pontos de vista sobre a

relação entre as duas associações nascidas nas páginas do Monde diplomatique: alguns

falavam em crise de identidade de Les Amis, outros afirmavam que esta concorria com

ATTAC e outros, ainda, acreditavam que as duas associações eram complementares.

Voltarei à questão adiante, mas de toda forma ficou claro que o surgimento de ATTAC,

seu rápido crescimento dentro e fora da França e suas ações incisivas (que passaram a

ser foco da mídia) não foram sem efeitos sobre a associação de leitores Les Amis du

Monde diplomatique.

A assembléia constitutiva de Les Amis (22 setembro de 1995) que reuniu os

membros fundadores da associação, elegera um conselho administrativo temporário e

definira que no ano seguinte realizar-se-ia uma assembléia geral na qual novos membros

para o conselho seriam eleitos, além de se decidirem, pelo voto, as atividades do grupo.

Anualmente, o encontro se repetiria, de forma que os programas de atividades seriam

sempre votados e as decisões da Associação tomadas em conjunto.

Na convocação para a assembléia geral de 1999, um novo motivo era apresentado

para que os leitores se tornassem membros de Les Amis du Monde diplomatique:

“assumir um papel ativo na reconstrução da cidadania, na França e na Europa,

inscrevendo-se de maneira ativa em um campo associativo em que se multiplicam


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 119
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

iniciativas, das quais ATTAC é a mais recente.”60 E o programa de atividades proposto

na assembléia incluía a criação de “douze chantiers de la citoyenneté”, ou seja, a

formação de grupos de trabalho que se dedicariam a “reinvestir os espaços democráticos

abandonados pelos dirigentes políticos.”61

Os doze “canteiros” foram finalmente lançados em dezembro de 1999, agrupados

três a três, formando quatro oficinas, ou grupos de trabalho, em Paris: “Reformar as

instituições”, refletiria sobre os problemas da concentração urbana, o mal

funcionamento das instituições políticas, e o contexto europeu com a criação da

Comunidade Européia; “Refundar a cultura” se deteria sobre a cultura como lugar de

cidadania, a influência da lógica de mercado e a generalização do espetáculo;

“Repensar a economia” questionaria o liberalismo, analisaria as conseqüências do

capitalismo financeiro e pensaria em modalidades de resistência; e “Renovar as formas

de luta” procuraria estabelecer elos entre os diversos movimentos sociais existentes,

fomentar o debate e a troca de experiências entre eles e formar um novo

internacionalismo dos movimentos sociais.62

No plano acionário, a batalha ganhava, pouco a pouco, terreno. Em novembro de

1999, a associação de leitores junto com a associação dos jornalistas e funcionários

detinham já 45% das ações. A porcentagem máxima seria atingida ao longo do ano

seguinte de forma que, em 2001, a taxa de adesão dos novos membros deixaria de ser

cobrada.

3.4.1- Beco sem saída

Era o momento de insistir novamente junto à secretária para conseguir uma

entrevista com Cassen. Não me animava muito pois o telefone parecia ampliar cada vez

mais a distância, no lugar de diminuí-la, talvez porque o aparelho sublinhe a aspereza do


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 120
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

estrangeiro ao apresentar a voz destituída de corpo, onde o sotaque (esta variação

involuntária) chega primeiro e com toda força. Na última tentativa, passadas as três

semanas de intervalo que me haviam sido inicialmente solicitadas, não conseguira mais

do que um novo adiamento: que ligasse em duas semanas, dizia a voz do outro lado.

Agora, como das outras vezes, atendia-me a secretária, atenciosa e formal. Percebi,

no entanto, que ela também começava a se perturbar com a situação; prometeu que faria

o possível para agendar um encontro na próxima semana, perguntou se eu tinha

preferência por algum dia, respondi que não, estaria disponível qualquer dia exceto na

segunda-feira quando teria uma aula às seis da tarde. Retrucou que marcaria o encontro

para um dia qualquer da semana seguinte, às duas ou três da tarde. Perfeito, agradeci.

No dia seguinte recebia uma confirmação: a entrevista fora marcada, estava tudo certo,

seria na segunda-feira, às seis da tarde.

Naquele dia, faltei à aula. Dirigi-me ao 58 B, rue Dessous-des-Berges, no 13o

arrondissement. Fica perto da Biblioteca Nacional, num bairro que vem sendo

enormemente modificado, onde se vêem canteiros de construção e velhos imóveis

condenados à demolição por toda parte. Faltavam alguns minutos para as seis, quando

cheguei ao prédio relativamente novo que abrigava, há poucos meses, no segundo

andar, a sede do Monde diplomatique. Um escritório moderno; seriam umas seis ou sete

salas, onde não se via nenhum movimento que lembrasse sequer uma redação de jornal.

Era véspera do feriado de primeiro de maio, o lugar parecia vazio.

Quando Cassen apareceu, fazia algum tempo que aguardava na recepção. Veio

acompanhando um outro senhor que se despedia. Convidou-me a entrar e, antes que

pudesse levantar-me recolhendo bolsa, papéis e casaco, desaparecera em uma das salas.

A secretária indicou o caminho. Cassen falava ao telefone celular, atrás de uma grande
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 121
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

mesa, coberta de papéis, livros e revistas; indicou-me a cadeira em frente; antes que

terminasse sua conversa, o telefone fixo soou; desfez-se apressadamente da ligação

anterior e atendeu a nova. Era uma entrevista sobre ATTAC, do qual Cassen é

presidente: afirma e reafirma a distinção entre a associação e o jornal, responde a

diversas perguntas, finalmente desliga o telefone e saúda-me com um tradicional e

distante “Je vous écoute.” Compreendi que ele não sabia quem eu era e nem o que fazia

ali. Recapitular: a brasileira, a tese de doutorado, o e-mail, a pesquisa, a bolsa da

CAPES... Resposta surpreendente: não, não há nada que se ver aqui, são pessoas ao

telefone todo o tempo. — Mas e assistir às reuniões de pauta? A princípio parece

possível, veremos. — E gravar uma entrevista? Não de modo algum, não tenho tempo,

falarei com a equipe, marcarei entrevistas. — Quando devo telefonar? Não telefone, não

me procure, aguarde, eu entrarei em contato, adeus.

O que parecia uma entrada era um beco sem saída.

3.4.2- Terceiro movimento

Nesse intervalo entre a chegada ao campo e a primeira e última entrevista com

Cassen (de fato não houve telefonema algum posterior ao encontro), a pesquisa

avançava em outras frentes. Encontrara, na página da associação Les Amis du Monde

diplomatique, na internet, nomes, telefones e endereços eletrônicos dos responsáveis

pelos quatro grupos de trabalho referentes aos canteiros da cidadania em Paris. Além de

dedicar-me à leitura na Biblioteca Nacional, acompanhava as reuniões do Foyer de

Grenelle, que ora eram organizadas por ATTAC, ora por Les Amis, tendo conhecido,

em uma delas, um dos membros do conselho administrativo da associação de leitores,

alto funcionário da securité sociale (que, por isso mesmo, pediu-me depois, em
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 122
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

entrevista, que não mencionasse seu nome, chamemo-lo M.X), com quem obtive o

telefone do secretário geral, Gilbert Haffner.

Algumas mensagens eletrônicas e telefonemas foram suficientes para organizar

uma agenda de entrevistas, o que me animou a usar a mesma via (internet) para entrar

em contato com a equipe de redatores do jornal. Foi curioso observar como todos,

exceto Philippe Rivière, o mais jovem, que tem um interesse particular na informática,

respondiam ao correio eletrônico mas solicitavam que eu telefonasse para combinarmos

o encontro.

3.5 – Multiplicidades
Segundo o relatório da Assembléia Geral de 2001 de Les Amis du Monde

diplomatique, disponível em seu sítio na internet, a associação teria realizado cerca de

480 palestras/debates em toda a França e no exterior, entre junho de 2000 e junho de

2001. O número me parece exagerado, pois em Paris, normalmente ocorrem apenas

duas reuniões por mês (sem contar as dos Canteiros da Cidadania). Mas basta conferir

a agenda das edições do ano do jornal para verificar que em diversas cidades ao redor da

França se fizeram, ao todo, entre 35 e 40 reuniões por mês, além de duas a quatro

(também mensais) no Canadá, Suíça e Luxemburgo.

O tema da reunião de abril do setor 2 da associação Les Amis du Monde

diplomatique de Paris, seria “Amanhã: quais editores para quais livros” e o local do

debate, novamente, o Foyer de Grenelle. Dessa vez, a conexão com o conteúdo do

jornal não ficava tão clara; talvez uma ligação lateral com as matérias sobre a lógica da

empresa invadindo as universidades americanas (“A universidade americana

vampirisada pelos mercados”) e francesa (“Na França, a doce traição dos letrados”), na

edição de março.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 123
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

O mesmo homem da reunião anterior estava à porta da sala e parecia encarregado

da organização do debate. Chamava-se Bernard Blavette, era líder do ATTAC XV, ou

seja do grupo de ATTAC da 15o região de Paris. Mais uma vez procurei saber se, afinal,

aquela era uma reunião de ATTAC ou de Les amis. Veio a resposta já conhecida: “On

se partage”, nós nos compartilhamos. Mas meu interlocutor procurou se explicar:

poderíamos pensar numa organização que se divide em três campos: o jornal

propriamente dito; a associação de leitores e ATTAC. Les Amis irrigariam a reflexão

sobre temas levantados no jornal, promovendo encontros, debates, discussões. ATTAC

estaria mais voltado para a ação, organizando manifestações, liderando boicotes,

funcionando como grupo de pressão política. E Le Monde diplomatique seria a base e a

face externa de tudo isso. (No entanto, uma semana depois, eu ouviria Bernard Cassen

negar categoricamente ao telefone, a um jornalista de outra publicação, qualquer ligação

de ATTAC com o Diplomatique, frisando ser coincidência o fato de ele próprio estar

presidente da organização naquele momento.)

Exceto por um ou outro rosto conhecido, as pessoas presentes ao debate sobre

livros e editores não eram as mesmas que estavam no anterior. Havia cerca de 35

participantes, dentre eles, pelo menos duas proprietárias de livrarias de bairro (pequenas

livrarias locais, onde o dono está habitualmente presente e tem uma relação próxima

com os livros que oferece e com seus compradores; muitas vezes são sebos). Os

convidados: Michel Reynaud, diretor da Thyresias, uma pequena editora; Raphaël

Sorin, um dos diretores da Flammarion e um representante da livraria Tschann, pequena

e tradicional livraria do bairro de Montparnasse.

A discussão logo se inflamou. M. Reynaud e M. Sorin entraram e confronto

aberto. O motivo da indignação de M. Reynaud era claro: as pequenas editoras, dizia


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 124
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

ele, correm todos os riscos, garimpando talentos, dando oportunidades para escritores

desconhecidos, bancando edições que dificilmente se pagariam, enquanto isso, as

grandes editoras agem como predadores, espreitando qualquer sinal de sucesso de um

desses nomes e apressando-se em atraí-lo e contando, para tanto, com poderes

econômicos aos quais os pequenos não podem fazer face. O livreiro via-se numa

situação delicada, pois vendia livros dos dois editores, mas acrescentou ao debate,

chamando atenção sobre a enorme pressão que os grandes editores (e distribuidores)

exercem sobre livrarias.

Na conversa com a platéia, muitos outros problemas foram destacados: a

concorrência das mega-lojas de produtos culturais, o fechamento de muitas livrarias de

quarteirão, a quantidade de títulos “para o mercado” produzidos por mês, e, ao mesmo

tempo, a escassez de inventividade, o número de títulos esgotados que não encontram

reedições etc. E eram discutidos não como problemas distantes e abstratos, mas como

questões práticas, com as quais cada um se deparava no seu cotidiano. Falavam de suas

experiências, de suas estratégias para resistir dentro do contexto de competitividade

feroz. A dona de uma das livrarias do bairro fez de sua loja um lugar de encontro para a

vizinhança, oferecendo um ambiente de leitura e discussão de poesia e romances,

convidando escritores das redondezas para conversar com os leitores, promovendo

oficinas de leitura para crianças e jovens. E com sua pequena e silenciosa atuação

mantinha-se, há anos, fora dos padrões do mercado.

Aparece, nesses encontros, um fio de voz que se distingue do rumor envolvente

dos meios de comunicação. Não só é diferente o contorno dos problemas, mas também

o âmbito no qual se inscrevem. Por exemplo, nessa discussão sobre livros, livrarias e

editoras, embora elementos do contexto sejam mundiais – a concentração das editoras, o


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 125
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

avanço da indústria de produtos culturais, o modelo de mercado –, o que se discute é a

sua realização local, a maneira como interferem diretamente na vida cotidiana das

pessoas ali reunidas, como deformam a face dos bairros e da cidade; e contorno do

problema não é feito de indagações sobre como crescer, como lucrar mais, como se

adequar à nova realidade (o que se leria em qualquer revista de business), mas: como

existir de outra forma, como somar forças e opor resistências a esse contexto.

Mas essa não é uma regra, os encontros de Les Amis não são todos iguais. Também

em maio de 2001, dia 28, a palestra de Immanuel Wallerstein, num dos anfiteatros do

Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencesPo), atraiu uma grande quantidade de

pessoas, muito além do número que freqüentava o Foyer de Grenelle. O tema em

discussão era: “Após o liberalismo, quais perspectivas políticas para o séc. 21?”.

Wallerstein sobrevoou o sistema-mundo do passado, desde o séc. XIX chegando até os

dias atuais, propondo, a partir da história, um pensamento sobre que estratégias a

esquerda deveria adotar para o futuro. O debate que se produziu, de atualidade candente,

privilegiou a perspectiva histórico-mundial, sendo menos ancorado nas experiências

cotidianas.

Do outro lado da cidade, no Centre Arts Lebaudy onde se dão os encontros do

setor 5 (reunindo 11a,12a e 20a regiões de Paris), uma das reuniões do mês de maio

tratava das “epidemias animais e suas conseqüências.” O ponto de partida era a ESB

(encefalite espongiforme bovina) ou doença da vaca louca, que atingiu bovinos na

Inglaterra e na França na segunda metade da década de 1990, tendo sido transmitida

para seres humanos, provocando uma crise de pânico na população e a matança de

rebanhos inteiros nos dois países, numa tentativa de controlar a epidemia.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 126
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Éramos não mais do que dez participantes reunidos numa pequena sala do que

parecia uma escolinha de artes, todos se conheciam e, ao contrário das reuniões do

15eme, onde teria passado despercebida, minha chegada causou curiosidade. Os

convidados a falar eram dois cientistas e um pecuarista leiteiro (este, François Dufour,

vice-presidente de ATTAC e membro da Confederation Paysane, aguardado com

ansiedade).

Primeiro falaram os cientistas, sobre o estado das pesquisas (o que se sabia e,

sobretudo, o que se ignorava) a respeito da ESB, sua causa, sua transmissão e sua

manifestação em seres humanos. Em seguida, o representante da Confédération

Paysane estabeleceu relações entre o surgimento das epidemias animais e o modelo

industrial de agricultura (agro-business), que privilegia o mercado internacional, com

sua alta competitividade e exigências da maior produtividade pelo mais baixo custo. O

assunto em questão fora tratado na edição de janeiro do Monde diplomatique, num

artigo sobre a atuação da Federation nationale des syndicats exploitants agricoles

(FNSEA) e na de abril, num editorial sobre a evolução da crise na agropecuária na

Inglaterra nos últimos 20 anos e numa matéria sobre o modelo de agricultura a se adotar

na Europa.

Diferentemente das reuniões do setor 2, onde a experiência cotidiana e o

engajamento dão o tom, e da palestra de Wallerstein, onde a discussão deu-se sobretudo

entre estudiosos, no encontro do setor 5, os participantes pareciam, por um lado, buscar

informação confiável sobre um assunto específico que os assustava e, por outro lado,

pedir uma resposta às suas inquietudes. Houve, nesse dia, mais escuta do que debate;

mais perguntas do que sugestões.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 127
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Percebem-se as variáveis em funcionamento, produzindo variações. As

enunciações que emergem em cada situação de encontro não são as mesmas, embora

participem dos mesmos pressupostos implícitos e ofereçam um deslocamento em

relação às palavras de ordem dominantes do capitalismo (do pólo capital-lucro-

circulação, movemo-nos em direção ao pólo coletividade-solidariedade-distribuição).

Vemos que elementos diversos participam das enunciações: o local do encontro, os

convidados, os freqüentadores, seus agenciamentos com alguma organização ou

instituição (sindicatos, ATTAC, Instituto de ensino); também as matérias publicadas no

Monde diplomatique, e, por contraste, as publicadas em jornais, revistas ou exibidas na

tevê; também os contextos mundiais a que se referem etc. Como são diversas, as

enunciações produzem efeitos diversos. Por exemplo, as reuniões no setor 2 de Les

Amis, que são organizadas no Foyer de Grenelle em conjunto com um dos grupos de

ATTAC, assumem algo do caráter mais ativo deste. Assim, os agenciamentos podem

desencadear manifestações públicas, dar início a reflexões e estudos, servir de ponto de

partida a novas associações, que por sua vez poderão se abrir para novos universos de

possíveis, mas não deixam de correr o risco de se fechar em territórios inférteis.

E pode-se supor que a associação de leitores Les Amis du Monde diplomatique,

quando se propôs a promover encontros e discussões públicas, apostava nessa variedade

de efeitos. Um dos intuitos declarados em sua página de apresentação na internet é

“intervir no debate público”; intenção esta que se inscreve no movimento do próprio

jornal de recusa e denunciação do “pensamento único.” Mas foi, de fato, no desenrolar

do processo, ou seja, com o crescimento acionário, com a prática das conferências e

com o surgimento transversal de ATTAC, que este objetivo, inicialmente secundário em

relação à compra de ações, passou para o primeiro plano. As entrevistas com o


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 128
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

secretário geral da associação, Gilbert Haffner, e com uma das pessoas do conselho

administrativo (o M. X) reforçaram essa percepção.

Após ter a Associação alcançado 49% de ações, em 2000, diz Haffner:

“Nós nos vimos com muitos associados, ano passado, tínhamos 8 mil associados
na França, mas também um pouco em outros países — temos grupos na Bélgica,
na Itália, na Inglaterra, em Istambul, na Suíça, no Canadá também —; então,
naquele momento, nos perguntávamos como poderíamos ainda ajudar, não mais
financeiramente, dessa vez, mas de maneira mais ativa, o que faz o Monde
diplomatique, todas essas idéias que são produzidas no Monde diplomatique.
Como poderíamos nos inscrever aí, defender o jornal, defender a imprensa de
opinião livre e, além disso, participar do movimento mundial de contestação da
sociedade liberal e, mais ainda, chegar a participar da elaboração de propostas
alternativas.”

Quando lhe perguntei sobre a relação entre a associação Les Amis e ATTAC,

afirmou que as duas associações são muito próximas, embora ATTAC seja mais

independente do jornal.

“Eles, ATTAC, trabalham mais no plano da ação. Nós somos muito ligados ao
Monde diplomatique. E o Monde diplomatique é um jornal, tem uma linha
editorial, tem uma deontologia, que o impedem, por exemplo, de manifestar nas
ruas, dizer suas opiniões precisas... Não é um partido político, é um jornal. E nós,
nós temos o nome Monde diplomatique em nossa associação, daí que não
podemos ser muito ativos sobre o campo; mas podemos ser estimuladores de
idéias e, mesmo, de ação.”

M. X, além de ser membro eleito do conselho administrativo de Les Amis é

também presidente de uma das seções de ATTAC em Paris. Na verdade, ele ingressou

nas duas associações ao mesmo tempo, por considerá-las, desde o início,

complementares.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 129
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

“Estando nas duas associações, é possível desenvolver trabalhos complementares.


Por um lado se dirigir a muitas pessoas, para coordenar as conferências, por outro,
poder anunciá-las no Monde diplomatique e despertar o interesse das pessoas de
ATTAC. Há uma grande complementaridade entre as pessoas do Monde
diplomatique as pessoas de ATTAC, mas ATTAC tem muito mais capacidade de
desenvolvimento, e se desenvolve sozinha, muito mais rápido. Todavia, dentro de
Les Amis du Monde diplomatique há um trabalho muito interessante que se faz em
contato com os jornalistas e considero uma necessidade agir para promover o
Monde diplomatique.”

A articulação mais imediata, entre o jornal Monde diplomatique, sua associação de

leitores e ATTAC prolifera em diversas direções pois cada elemento da trinca já é o

encontro de multiplicidades. E, como afirmam Deleuze e Guattari, o “princípio de

multiplicidade” é uma das características do rizoma: multiplicidades que se conectam a

multiplicidades, sempre no plural (quando a unidade sobrevêm, é por uma operação

tomada de poder)63. Multiplicidades não se fecham num conjunto homogêneo, ao

contrário, desdobram-se na heterogeneidade que as constitui e se ramifica para fora

delas. Nesse sentido, os “Canteiros da cidadania” se transformaram num importante

lugar de produção de diferenças.

É interessante observar, também, que associações de leitores não são uma

novidade na imprensa Francesa, são mesmo, nas palavras de Haffner, “uma fórmula

bastante difundida”. Revistas como Marianne, Témoignage Chrétien, Politis, o próprio

cotidiano Le Monde têm suas associações de leitores, e algumas rádios também fazem

associações de ouvintes, mas o engajamento ativo na produção de debate e reflexão a

partir dos temas levantados no jornal é uma característica específica da associação Les

Amis du Monde diplomatique.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 130
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

3.5.1- Canteiros da cidadania

Lançados, pois, em 1999, como disse acima, já no contexto do questionamento

sobre que novos caminhos deveria seguir Les Amis com o despontar no horizonte da

conquista de seu objetivo inaugural (a aquisição da máxima porcentagem de ações do

jornal acordada com a empresa-mãe), os Canteiros da cidadania eram uma proposta de

ampliação e aprofundamento do debate iniciado com as conferências. Diferentemente

dessas, no entanto, que se baseiam na divulgação das idéias expostas nos artigos

publicados no jornal — escritos, em sua maior parte, por pesquisadores ligados a

centros universitários —, os Canteiros desejavam constituir-se eles mesmos em pólos de

reflexão e produção de idéias, reunindo, para isso, pessoas das mais diversas áreas de

atuação, que se deteriam em determinados problemas da atualidade, ao longo de tempo

indeterminado. Desde meu primeiro contato com uma representante de um desses

grupos, ficou claro que os Canteiros da cidadania haviam, no entanto, voltado a sua

reflexão para o próprio jornal e para a associação de leitores.

Seu nome constava como responsável pela oficina “Repensar a Economia” no

setor do sítio da Associação na internet dedicado aos Canteiros da cidadania — Valerie.

Havia um endereço eletrônico, que descobri desatualizado, e um telefone para contato.

Sua surpresa quando me apresentei como estudante fazendo uma tese em torno do

Monde diplomatique foi enorme: ela mesma planejava desenvolver esse tema quando

fizesse seu doutorado. Inflamava-se ao falar sobre o jornal: “Quando você falar com os

jornalistas, pergunte-lhes se a associação de leitores não se sobrepõe a ATTAC...

pergunte-lhes isso. A Taxa Tobin é apenas um paliativo, uma forma de organizar o

capitalismo, não muda nada. Eu sou neta de um anarco-sindicalista que participou da

Revolução Espanhola, a solução tem de ser mais radical... O Monde diplomatique não
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 131
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

é um jornal revolucionário. Onde é que está escrito isso? Onde? Quem escreveu essa

palavra, revolucionário??” Interessara-se, inicialmente, pelo atelier “Repensar a

Economia”, mas o trabalho não fora adiante. Deixara, havia um ano, a associação de

leitores do Monde diplomatique por não concordar com a publicidade que vinha

aparecendo no jornal. Ainda assim, interessava-me ouvi-la numa entrevista, era

novidade alguém considerar o Diplo um jornal moderado, o senso comum o colocava

até aqui na extrema esquerda. Perguntei: podemos nos encontrar? Ela: “claro, daqui a

duas semanas, venha à minha casa.” Poucos dias depois telefonava-me para antecipar a

data. Mas ligava-me em seguida, novamente para desmarcar. “Agora está impossível,

minha mãe doente. Procure-me daqui a dois meses.” Infelizmente voltei ao Brasil sem

que nosso encontro se concretizasse, mas a longa conversa ao telefone já me dera boas

pistas. Sobretudo quanto ao espírito crítico de pelo menos alguns leitores em relação ao

jornal e à associação Les amis. Desconfiava ter encontrado mais uma linha de variação.

Entrei em contato, depois disso, com o representante da oficina “Repensar as

formas de luta”. Emmanuel era bombeiro (sapeur-pompier) e seu grupo reunia cerca de

15 pessoas. Em 2000, haviam traçado o plano de levar as discussões para escolas, para

fomentar o debate entre jovens de 16-18 anos, pois ali o acesso a palestras e

conferências era bem mais restrito do que nas universidades. Verificaram que o nome

“Monde diplomatique” despertava interesse e abria as portas. A estratégia era que os

próprios componentes do grupo (e não palestrantes ou pesquisadores convidados)

falassem sobre a tomada de consciência, a nova militância que surge no mundo, a sua

importância, as possibilidades de articulação entre movimentos. Mas os participantes

chegaram à conclusão de que era momento de fazer “trabalho de casa”, pesquisar os


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 132
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

temas, preparar estudos, para em seguida partir para a exposição nas escolas. Assim,

estavam as reuniões suspensas por tempo indeterminado.

Era como se os Canteiros da cidadania estivessem um tanto endurecidos. Mas as

outras duas oficinas, “Reformar as instituições” e “Reformar a cultura”, mostraram que

de fato um movimento se fazia ali. Os grupos eram pequenos: cinco pessoas no

primeiro, doze no segundo; agiam em completa distância um do outro, e foi também

diverso meu encontro com cada um. Ambos haviam desenvolvido uma postura

extremamente crítica em relação ao Monde diplomatique e à Associação de leitores,

mas cada qual inventou uma maneira de lidar com as diferenças.

Francis, o responsável pela oficina Instituições, era engenheiro aeronáutico

aposentado e associara-se a Les Amis em 1998, envolvendo-se em 99 com o processo de

constituição dos Canteiros da cidadania. Encontramo-nos, após o primeiro contato já

habitual por correio eletrônico, numa tarde de pequeno sol, numa sexta-feira de maio,

num café da movimentada Place 18 Juin, em Montparnasse, numa situação que não

poderia ser mais parisiense: estudantes de veterinária que haviam tomado a rua em

passeata protestavam, naquela mesma hora, bem em frente ao café, contra a situação de

sua universidade.

O material de convocação para a Assembléia Geral de 1999, disse Francis,

esboçava em quatro páginas a idéia de construir os Canteiros da cidadania e foi esse

texto que o fez se deslocar para Lille a fim de participar da reunião anual de Les Amis

du Monde diplomatique.

“Fiquei surpreso, pensei, aí está, é formidável, estou com sorte... Não sei muito o
que você já sabe, mas vou talvez resumir um pouco: descobri então que essa
Associação estava em busca de qualquer coisa. Que, por um lado, ela existia há
mais ou menos cinco anos, que tinha sido concebida como uma associação de
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 133
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

leitores para financiar o Monde diplomatique e, portanto, era essencialmente isso,


conseguir dinheiro, que os fundadores esperavam; mas eis que em 99 estavam
próximos de alcançar o máximo de dinheiro que poderiam pôr no capital do
Monde diplomatique, o objetivo tinha sido, portanto, atingido, e em suma,
estavam-se perguntando o que vamos nos tornar agora.”

Até aqui, a mesma história que já se repetira em outras vozes. No entanto, a

experiência de Francis após essa Assembléia Geral, de um lado junto à direção da

Associação e de outro, junto a um dos grupos de Paris, o exasperou bastante e mostra

que nem tudo é suave no processo. Basicamente, sua proposta inicial, repensar de modo

radical a associação, não encontrou terreno para vingar, nem entre a maioria dos

associados nem entre os líderes (“fiz uma proposta muito aberta; aberta demais, ficou

claro, e nesse sentido a direção do Diplo e dos Amigos teve razão de me dizer, através

de Gilbert, ‘ah, não é aberta demais, nós não podemos...’”).

Mas, além disso, ele próprio não concordava com a principal atividade

desenvolvida até então por Les Amis, ou seja, a difusão de idéias do jornal em palestras

e debates, e que respondia largamente às aspirações de boa parte dos associados (“uma

boa parte da associação que encontrou nessa forma de atividade algo que a satisfaz, que

lhe é suficiente.”). Sobretudo, incomodava-o um pequeno grupo de membros que,

segundo ele, era feito

“de um incondicional do Monde diplomatique, pessoas para quem o que diz o


Monde diplomatique é sagrado. Ora isso não era, absolutamente, o que eu pensava
(...) Esses dois componentes eram para mim intoleráveis, de uma parte o Monde
diplomatique me parece bastante criticável, são muito simpáticos, mas isso não
me impede de criticá-los e, bom, eu não estou aqui para fazer a publicidade do
Monde diplomatique, estou aqui para aproveitar essa atmosfera distraída-abstraída
entre as pessoas e para fazer, eu mesmo, coisas e fazer coisas não é organizar
conferências com o Sr. Ramonet, de quem eu gosto muito, mas se a conferência
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 134
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

consiste em adorar o Sr. Ramonet, ah, o que ele disse, o que ele acaba de falar,
isso não me interessa.”

Dessa forma, tendo encontrado obstáculos que freavam suas iniciativas num

âmbito mais amplo da associação, e vendo-se diante da possibilidade de constituir um

grupo de reflexão dentro do contexto dos Canteiros da cidadania, Francis achou que

essa poderia ser uma estratégia, começar de baixo “para sair um grupo, sobretudo que

não fosse absorvido por Les Amis e que pudéssemos discutir calmamente sem ser

submersos por outras considerações.” O grupo se formou em dezembro de 1999 e

definiu como tema as novas formas de participação na democracia (isso a partir do

trabalho de um de seus componentes, professora de urbanismo, sobre o orçamento

participativo de Porto Alegre). Começou a se reunir em janeiro de 2000 e desde então

mantinha reuniões mensais, as quais passei a freqüentar em maio de 2001.

Naquele momento encaravam mais um impasse. Vinham pensando as

possibilidades que a informática, em particular as redes de computadores, poderiam

abrir para a participação democrática dos cidadãos nas decisões concernentes ao

governo da cidade. Haviam decidido usar a internet como ferramenta de trabalho do

grupo, não para substituir as reuniões mensais pelo encontro virtual, mas para ampliar o

âmbito da discussão, possibilitando a participação de associados e não-associados de

todo o país e de fora dele — o que funcionaria também como uma espécie de

laboratório de pesquisa. (De resto, esse uso da internet como suporte para as discussões

da Associação fora uma das propostas apresentadas por Francis à direção em 1999, sem

que fosse levada adiante.)

O fato é que finalmente a idéia fora aceita e abriu-se um espaço no site de Les

Amis para a iniciativa do grupo Instituições. Ali se explicava o tema em discussão,

como se fariam as contribuições, o papel do organizador, enfim, a proposta e o seu


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 135
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

funcionamento. Paralelamente, e com apoio da direção de Les Amis, enviara-se uma

carta a cada responsável dos grupos locais falando sobre a novidade e convidando à

participação. Mas eis que o espaço de debate virtual completava um mês no ar e apenas

uma pessoa — exterior à associação — enviara um artigo sobre o tema. O grupo estava

francamente desapontado e se perguntava por que não conseguia despertar interesse.

Seria o perfil dos associados, não se interessam por internet, só querem ouvir os

especialistas, ir a conferências? Seria uma questão cultural, os franceses não têm tempo,

não se interessam muito pela internet? Seria um problema de falta de divulgação?

A reunião de junho foi semelhante à de maio: tinham enviado aos diversos grupos

locais mais um convite à participação, dessa vez por correio eletrônico, e dois

representantes haviam respondido: um para dizer que deixara de sê-lo; outro para dizer

que o funcionamento do espaço virtual era técnico demais (trôp technique).

Aproximava-se a data da Assembléia Geral de 2001 e as questões que começavam a

despontar então eram: o que fazer? Desistir da internet? Propor outro projeto? Outra

associação? Iriam ou não iriam à Assembléia?

Paralelamente, entrara eu em contato com a oficina “Repensar a cultura”.

Haveria, em junho, uma reunião do grupo para a qual fora convidada Anne-Cecile

Robert, jornalista do Monde diplomatique. Discutir-se-ia um número recém lançado (no

57) da revista bimensal, publicada pelo jornal, Manière de Voir, cujo tema era La

culture, les élites et le peuple. Jean, o representante do grupo, sugeriu que eu

participasse, mas preferia não me apresentar como pesquisadora a não ser no fim do

encontro.

Éramos cinco pessoas diante dos portões fechados do Espace Marx, onde

aconteceria a reunião. Logo chegaram os outros e formávamos uma dezena de atônitos


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 136
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

(dentre os quais um professor de comunicação, um diretor de teatro, uma psicanalista,

uma artista plástica), pois o espaço fora reservado com antecedência e deveria estar

disponível. (A Associação Les Amis du Monde diplomatique paga o aluguel dos locais

que os Canteiros da cidadania usam para seus encontros). Com a chegada de Anne-

Cécile Robert, decidimos nos transferir para um café próximo, onde formamos uma

mesa comprida e barulhenta perto da janela.

Jean falou primeiro, resumindo as observações discutidas anteriormente pelo

grupo:

“Um certo número dentre nós vinha colocando a questão da fraqueza do Diplo no
que se refere à cultura e agora saiu esta revista, uma revista que completa o Diplo,
mas não tem a mesma constância. Fizemos um levantamento de todos os artigos
do jornal desde junho do ano passado e verificamos que se publicaram apenas
duas matérias sobre teatro, duas sobre música, nenhuma sobre pintura, desenho,
gravura, nenhuma sobre arquitetura... Notamos um desequilíbrio, embora esse
número de Manière de Voir preencha um pouco o problema. Alguns artigos
consideramos pertinentes, outros, como o de Ramonet, na página 6, parecem
esquecer dos artistas que existem e se dedicam à criação e à cultura fora do
sistema do mercado e o grupo se ressente dessa cegueira do jornal.”

Anne-Cécile Robert tomou da palavra, explicando que o Monde diplomatique é

feito por uma pequena equipe, “são apenas oito jornalistas e há muito trabalho”. De

fato, diz ela, há uma divisão por centros de interesse, que segue mais ou menos uma

distribuição por setor geográfico e temático; os interesses de cada um acabam por

determinar a presença no jornal e ninguém se ocupa permanentemente da questão

cultural. Ela fala do grande volume de artigos que se acumulam a espera de ser

publicados, e que o espaço do jornal é restrito, que há pressões para escolher o que

entra, questões da atualidade... mas isso não significa que não haja uma preocupação

com a cultura, está presente nas ilustrações, pelas relações com o teatro. Além disso
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 137
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

afirma, uma vez por ano a equipe faz um seminário de balanço do jornal, no último

seminário a lacuna da cultura foi levantada, sendo essa edição de Manière de voir uma

tentativa de abordar assuntos que não chegam a entrar nas páginas.

O diálogo se desenvolveu, com cada pessoa do grupo fazendo suas observações.

Questionava-se desde o título da revista, até o dogmatismo de certos artigos, os autores

presentes e as lacunas. Se falta espaço no jornal, diz um, por que se dedicaram, em

junho, tantas páginas a um assunto como Loft Story (reality-show da tevê francesa)?

Argumentam que isso reenvia à uma certa concepção da cultura, do ponto de vista da

indústria cultural, necessariamente vendida, mas que cultura não se resume a isso. Se o

Diplo se tornou um ponto de discussão e debate, por que não levar isso mais adiante,

perguntam. Propõe-se a criação de grupos de leitura do jornal (como o deles) onde a

troca seria rica entre jornalistas e leitores. Alertam para o perigo do jornal se ver

dominado pelo discurso dominante, tecnicista, e ignorar o que se passa à margem.

Sentem falta de debate nas próprias páginas do jornal. “Não falamos de escrever

matérias, mas nós conhecemos os lugares de criação atuais, nas ruas, nós vemos isso em

nossos trabalhos, vocês poderiam usar nossos conhecimentos.”

A situação da jornalista do Monde diplomatique não era confortável, mas ela ouvia

e respondia com sinceridade. Disse que não se podia exigir uma política cultural do

jornal, “não é um partido, não tem uma política, procura exprimir uma diversidade de

pontos de vista, não ser monolítico... não há consenso.” Mostrou o exemplo dos textos

de Sfez e Ramonet na revista, como se contrapunham, e que essa é a proposta do Diplo,

ser um lugar de cruzamento de informações. Quanto a Ramonet, explicou ser ele

especialista em comunicação, daí falar sobre indústria cultural. Ele recebe poucas cartas,

disse, escrevam para ele. Loft Story foi uma matéria que deu muita discussão na equipe,
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 138
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

nem todos estavam de acordo: “É um jornal de debate, discute-se muito na equipe,

também, há essa liberdade.” Afirmou que deixam o debate surgir no confronto dos

textos, na leitura, não querem fazer matérias do tipo pró-contra; “não queremos levar os

leitores pela mão”.

Também a relação jornalistas-leitores-associação de leitores foi abordada. De um

lado, um desejo de participar mais, participar ativamente do debate, “desetratificar” o

jornal, “saber o que os jornalistas querem e o que os leitores podem trazer”; de outro a

necessidade de manter a autonomia da equipe, trabalhar com independência inclusive

com relação aos leitores-acionistas. Uma conversa densa e longa: durante quase quatro

horas todos expuseram suas questões, ouviram e foram ouvidos, concordaram,

discordaram, fizeram propostas, críticas e sugestões, num diálogo que começara antes

daquele dia e continuaria depois dele.

3.5.2- Um outro tipo de interatividade

Vivemos tempos de interatividade. Ou, pelo menos, é isso o que dizem os

planejamentos de comunicação, as pesquisas, mas sobretudo, a disputa pela audiência.

O espectador, ou leitor, ou ouvinte, ou finalmente, o consumidor quer sair da

passividade, quer participar. É preciso portanto delimitar um espaço onde ele possa se

encaixar. Agora, dizem, você será livre para escolher. Quem será eliminado do

programa? Qual será o tema da próxima reportagem? Serão as baleias, ou os

golfinhos? Pense, decida, nós queremos que você participe. Será isso, ou aquilo?

Dentre as opções apresentadas, somos chamados a exercer a nossa “liberdade de

escolha”. Que fique bem claro: dentre as opções apresentadas, apenas onde e quando se

é chamado a escolher. Interagir, nesse contexto, é nada mais do que responder aos

estímulos; estar na rede ou desaparecer.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 139
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Mas a passividade, aponta Caiafa, não é uma figura produzida pelo silêncio da

escuta, ela é uma prostração que resulta da saciedade. E a multiplicação de respostas aos

estímulos não garante o surgimento de multiplicidades como lugar de criação. “Fazer

criar é impulsionar no processo de duração e ressonâncias.”64 Também os estudos de

Cebrian apontam como o excesso de informação pode produzir confusão e resultar

numa não-escolha (ver acima, segundo capítulo). Haverá talvez um outro tipo de

interação possível entre o público e um veículo de comunicação? É o que apostamos e

parece acontecer entre grupos de leitores da Associação e o Monde diplomatique. Aqui

o confronto é direto e o debate efetivo: não se pode prever o que acontecerá, pois o

processo não é controlado, o jornal não é feito para a resposta. Quando os leitores

intervêm, não é num lugar delimitado, mas no ilimitado processo de pensamento do

qual o jornal participa.

O Monde diplomatique, com seus artigos e as discussões que provoca, deu

partida tanto na Associação de leitores, quanto em ATTAC e as fertiliza de idéias, além

disso as faz proliferar dando-lhes visibilidade e agregando mais associados. Ao mesmo

tempo, a proximidade de ATTAC abre a Associação Les Amis, provocando atritos,

fazendo com que ela prolifere internamente em grupos heterogêneos e se desenvolva em

várias direções simultâneas. E as conferências e Canteiros da cidadania, em seu contato

com os jornalistas, abrem espaços de pensamento sobre o próprio jornal, que por ser

feito em grande parte por colaboradores externos recebe também deles o ar fresco.

Há uma tensão nessas relações, uma tensão produtiva, como a corda de um

instrumento precisa estar tensa para vibrar e produzir som, e produzir ressonâncias. É

uma tensão que aparece na fala dos jornalistas sobre a proximidade entre o Monde

diplomatique e sua Associação de leitores.


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 140
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Alain Gresh, redator chefe:

“Esta é uma coisa que deixamos bem claro desde o começo da Associação: nós
não podemos... O jornal é feito pela redação, não é feito pelos leitores. Não é
porque há um certo número de leitores que querem que nós façamos isso e outros
que nós façamos aquilo... Nós fazemos escolhas, elas são boas, ou talvez não, mas
é impossível que nós estejamos numa situação em que submetamos nossas
escolhas aos leitores e à Associação ela mesma. Ainda que nós ouçamos o que
eles têm a nos dizer, suas sugestões, suas críticas.”

Maurice Lemoine, redator-chefe adjunto:

“As relações são as mais ricas possíveis, inclusive Les Amis organizam dezenas e
dezenas de debates na França que animam a vida associativa francesa, a vida
cidadã, tudo isso é ótimo, nós comparecemos a muitas conferências. Então são
essas as relações; bem entendido que de tempos em tempos temos que explicar
que o jornal, mesmo assim, somos nós os profissionais. É parecido com o que eu
lhe explicava, um minuto atrás, que uma equipe não é um soviete, tem um redator
chefe para tomar decisões e tem um diretor, da mesma maneira com Les Amis,
podemos trocar idéias, mas as decisões concernentes à redação, é aqui que as
tomamos, não em outra parte.”

Serge Halimi, redator:

“Isso me toca muito diretamente, na medida em que faço conferências em torno


dos temas dos quais me ocupo, pode ser a mídia, pode ser os Estados Unidos,
pode ser o discurso ideológico. Eu chego a fazer uma por semana, até mesmo duas
por semana, uma implicação constante, de resto um pouco pesada, que me permite
a cada vez ver os leitores, debater com eles; em todo caso, com aqueles que estão
mais implicados na difusão do Monde diplomatique. E uma ou duas vezes por
semana vejo muitas dezenas de leitores, vejo as questões que eles se colocam, e as
questões que eles me colocam, e depois, naturalmente, tem aquela reunião anual
da Associação de leitores do Monde diplomatique que permite, de certa forma, ter
uma visão ainda mais ampla das preocupações dos leitores que para nós são
importantes, uma vez que fazem o papel de difusores de nossas idéias, tão mais
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 141
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

decisivo na medida que na maior parte das grandes mídias os jornalistas não nos
lêem, ou se nos lêem, não fazem referência aos nossos artigos.”

Anne-Cécile Robert, redatora:

“Não poderíamos funcionar senão com uma redação independente, até mesmo,
sobretudo, dos Amis. Mas o que pensamos que é, as vezes, difícil, porque eles
gostam do jornal, porque têm a impressão de que faz parte de suas vidas, é
importante em suas vidas. Então, às vezes, eles gostariam de influenciar, ou influir
no conteúdo do jornal e, bem, é preciso mantê-los um pouquinho à distância, no
papel... Por outro lado, apreciamos muito dialogar com eles, porque nos dão
idéias. Mas não é a mesma coisa. Conversar com eles nos faz pensar em temas de
artigos em que não teríamos pensado. Então, é verdade, é importante, porque eles
criam uma vida em torno de nós, eles fazem agitação intelectual e social, é
importante para nós porque nos mantém dentro da sociedade em movimento.”

Philippe Rivière, responsável pela internet/multimídia:

“Os outros têm um contato maior com Les Amis porque eles fazem conferências,
eu faço pouquíssimas conferencias... Mas acredito que é uma sorte extraordinária
que este jornal tenha conseguido conquistar sua independência no momento certo,
acredito que alguns anos depois não teria mais sido possível. E é verdade que as
discordâncias que podemos ter, por exemplo, tivemos uma muito forte com Le
Monde sobre Kosovo, e é possível que se não fosse a transformação (do Monde
diplomatique) em filial, com essa estrutura jurídica que nos garante que a edição
só pode ser modificada com a concordância das duas Associações (de leitores e da
equipe), acredito que o jornal não teria ficado do mesmo jeito.”

Vemos que todo o tempo a independência da redação é colocada em primeiro

plano, como condição da própria existência do jornal, o que faz sentido, pois foi em

defesa dessa mesma independência que o Monde diplomatique fez, um dia, apelo aos

seus leitores e estes, por sua vez, responderam. No entanto, esse é um exemplo do tipo

de diálogo que pode se estabelecer, notamos que as edições que se seguiram ao encontro

de Anne-Cecile Robert com o grupo “Repensar a Cultura” incluem, de fato, artigos que
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 142
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

de alguma forma preenchem as lacunas apontadas por aqueles leitores: em agosto, “Les

mystère de Van Gogh” (pintura), “Le bonheure est dans le centre comercial”

(urbanismo), entrevista com Jorge Luis Borges; em setembro, “Cuba, entre lassitude et

fierté” (cultura como resistência, em Cuba), “Entre Disneyland et les ayatollahs”

(globalização e culturas locais), “Art et argent, histoire d’une soumission” (arte e

mercado); em outubro, “Baremboïm brise le tabou Wagner” (música), “Espaces en

triche, culture vivante” (grupos europeus de artistas que fogem ao mercado), “L’extrème

droite investit la science fiction” (literatura); em novembro, “Johan Van der Keuken,

cinéaste solidaire” (cinema e transformação social), “La culture, facteur de la

Realpolitik” (culturas e globalização); em dezembro, “L’inquiétude des rappeurs

americains” (música), “Résister par la creation culturelle” (criação e resistência), “Le

prix du reniement” (literatura), “Harry Potter expliqué aux parents” (cinema/literatura).

Abrir o diálogo sem abrir mão da independência; ouvir os leitores sem produzir

um jornal que responda a pesquisas ou ao mercado, eis o equilíbrio que o Monde

diplomatique tenta manter. Do ponto de vista dos medidores de audiência, essa é uma

posição de risco; mas do ponto de vista da produção de pensamento, essa é a única

posição possível.

Importante também é observar que se a independência da redação é um princípio

básico defendido por toda a equipe e encarado como um território a ser constantemente

constituído, em momento algum o jornal pretende ocupar o lugar de um observador

neutro daquilo que se passa pelo mundo (exceto no tempo de sua fundação por Béuve-

Méry e, como vimos acima, a neutralidade era então uma tomada de posição diante da

divisão do mundo em dois pólos). Independência e neutralidade não se confundem, não

se equivalem, ao contrário, é por ser independente que o jornal pode assumir


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 143
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

francamente suas posições diante da ação de diversos poderes: o poder do mercado, o

poder da publicidade, o poder de alguns sindicatos, o poder financeiro, o poder político,

o poder da mídia, etc.

Tal independência se traduz na liberdade de apresentar pontos de vista que não

encontram freqüentemente espaços na maior parte dos meios de comunicação, com o

objetivo de estimular o debate, pontos de vista esses que variam em torno algumas

idéias mestras, como a visão crítica do neoliberalismo e da globalização neoliberal; um

interesse pelos problemas do dito terceiro mundo; um posicionamento que se poderia

definir como de esquerda, mas tão cheio de nuances quanto a própria esquerda. Isso

explica também a menção em diversos documentos da Associação Les Amis de uma

linha editorial a ser defendida, embora dentre a equipe do jornal a existência de uma

linha editorial rígida seja negada.

Alain Gresh:

“Bom, existe uma linha editorial no sentido que somos um jornal crítico, um
jornal crítico da globalização neoliberal, um jornal que foi contra o neoliberalismo
dos tempos de Reagan, um jornal muito crítico da política america, um jornal que
sempre foi muito sensível aos problemas do terceiro mundo, à questão das lutas de
libertação, questão palestina, então há um certo número de coisas que são linhas
editoriais, mas não no sentido de um partido político, há sensibilidades diferentes
que podem se exprimir, há posições diferentes que podem se expressar.”

Maurice Lemoine:

“Eu não diria que há uma linha editorial do Monde diplomatique, diria que há
um campo editorial. Quando dizemos que não há uma linha editorial, queremos
dizer que não é como um partido. Podemos olhar para o Monde diplomatique e
veremos que estamos num campo, vemos em que campo político nos situamos,
mas isso posto, há uma diversidade de autores e de abordagens. Não é único,
inclusive se tivéssemos uma linha, não teríamos os debates que temos sobre
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 144
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

alguns assuntos, uma parte da equipe concorda e outra é contra... É verdade que
nos interessamos muito pelos problemas do terceiro mundo, que somos contra a
globalização tal qual se desenvolve atualmente, não somos anti-europeus, mas a
construção da união européia tal como se desenvolve apresenta problemas.”

Serge Halimi:

“O essencial é que estamos de acordo sobre o essencial, a concepção geral que


vai na mesma direção e que é, bem, progressista, orientada à esquerda,
racionalista... tudo isso que você pode imaginar... terceiro-mundistas, sobre isso
não há divergências entre nós. Quanto a saber como essa visão geral se exprime
no detalhe, aí existem divergências.”

Anne-Cecile Robert:

“O Monde diplo é um jornal de contra-informação, tentamos fazer uma


informação que não se encontra em outra parte. Então nós nos impomos o dever
de estar particularmente atentos ao que se passa além das aparências. Tentamos
ser um lugar em que se publica uma informação diferente da informação
dominante. E ao mesmo tempo muito aberta, não dogmática; bem, não vamos
publicar artigos fachistas... Tentamos abrir espaços de reflexão sobre assuntos
difíceis. Finalmente, não temos uma linha editorial, temos diversas linhas
editoriais, segundo o assunto.”

O debate, portanto, e o pensamento, não surgem apenas no contato com os leitores,

mas está presente no próprio cerne do jornal: vigora entre os textos publicados, existe

entre os membros da equipe, é talvez o modo de conexão privilegiado no todo desse

agenciamento que envolve leitores, jornalistas, colaboradores numa relação dinâmica.

Maurice Lemoine é quem melhor exprime o que se passa, ao responder minha

pergunta sobre como se formou a equipe do jornal:

“Bem, nós não nos encontramos por acaso, essa é a alquimia da coisa. é um
jornal que chamam terceiro-mundista, mas essa é uma palavra complicada... seria
mais formado em torno dos valores do socialismo, não o socialismo real, mas um
socialismo a se construir. E a partir daí, o fenômeno é que, se posicionando dessa
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 145
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

maneira, o jornal atraiu colaboradores que se encontravam nessas posições. E


todos nós que aqui estamos somos ao mesmo tempo produtores do Monde
diplomatique mas somos também seu produto. Quer dizer, primeiro fomos
leitores, depois colaboradores e agora... tudo isso se constrói conforme se
avança.”

1
DELEUZE;GUATTARI, 1995, v. I.
2
RAMONET, 2001.
3
Id.
4
Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001.
5
Agir local, pensar global. Os cidadãos face à globalização; Tudo sobre ATTAC; Paraísos Fiscais, ou as
finanças sem lei; e O futuro do pleno emprego.
6
Emprego aqui a noção de uma subjetividade que se faz coletiva como definida por Guattari:
“multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa,
junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de
conjuntos bem circunscritos.” GUATTARI, 1992, p.20.
7
NOTRE HISTOIRE, 1999.
8
A NOS lecteurs, Le Monde diplomatique, 1954. “il doit avoir un caractère international, être
rigoureusement objectif, et s’ábstenir de prendre position à l’égard des affaires intérieures de divers
pays.”
9
THIBAU, 1978.
10
BELLANGER et al., 1975-1976.
11
NOTRE HISTOIRE, 1999 (op. cit.)
12
GUILLAUMA, 1990.
13
Id.
14
CHAMPAGNE, 1994.
15
JULIEN ; RAMONET, 1996. A singularidade do acordo é salientada neste informe: “acun autre titre
du groupe Le Monde n’en possède de semblable”. [“nenhum outro título do grupo Le Monde conta com
estatuto similar.”]
16
Veremos adiante que fazer “contra-informação” é um dos objetivos assinalados em entrevista pelos
jornalistas da equipe.
17
LES RAPPORTS du Sénat,, s/ data.
18
JULIEN ; RAMONET, 1996 (op.cit.)
19
HOLZMANN, 2000. Neste livro de memórias, o autor explica que, após ver fracassarem algumas
tentativas de edição do jornal em espanhol, pensa que pode obter sucesso junto ao público germânico. (p.
283)
20
Id.
21
JULIEN ; RAMONET, 1996 (op.cit.)
22
Id.
23
HAFFNER, 1998.
24
RAMONET, 1996. “se mobiliser pour défendre la liberté d’expression et l’independence de la presse”
25
Id. “Les intentions économiques et idéologiques de ces predateurs sont, c’est le moins qu’on puisse
dire, en contradiction avec les interêts des lecteurs-citoyens, comme l’a récemment montré la couverture
médiatique du formidable mouvement social qui a secué la France.”
26
Ibid.“Quand tous les médias semblent emportés par la vitesse, l’acceleration, la fascination de
l’instantanéité, nous disons que l’important c’est de ralentir, de freiner, de se donner le temps d’analyser,
de douter, de réfléchir”
27
JULIEN; RAMONET, 1996.
28
DELEUZE ; GUATTARI, 1995, v. 2.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 146
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

29
Id.
30
Ibid.
31
DELEUZE ; GUATTARI, 1977.
32
BELLANGER et al., 1975-1976 (op. cit.)
33
DIOUDONNAT, 1981.
34
BELLANGER et al., 1975-1976 (op. cit.)
35
TEXCIER, 1945. “Naturellement ils protestent de leur indépendence. ‘Cent pour cent Français!’
affichent-ils comme les marchand de chaussettes. Mais l’ardeur de leur zèle hitlérien surprend jusqu’aux
autorités occupantes. ‘Nous ne leur en demandons pas tant’, afirment-elles!”
36
BELLANGER et al., 1975-1976 (op. cit. p.20.)
37
Id.
38
DIOUDONNAT, 1981.
39
Apud BELLANGER et al., 1975-1976 (op. cit.) “Celui qui ne se rends pas a raison contre celui qui se
rends.”
40
Id.
41
O contraste entre anonimato e singularidade e a força de contágio criativo desta, na literatura, é
analisado em CAIAFA, 2000 (p. 34 -36)
42
BELLANGER et al., 1975-1976 (op. cit.)
43
LA PRESSE clandestine, 1986.
44
ALBERT, 1998.
45
CAHIER Bleu, 1967.
46
ALBERT, 1998. (op. cit.)
47
BILGEN; LEBEDEL, 1991.
48
ALBERT, 1998. (op. cit.)
49
BEUVE-MERY, 1947.
50
PIGEAT, 2001.
51
Id.
52
GUATTARI, 1992.
53
Id.
54
Processado pela empresa Virginia, do Grupo Ethyl Corporation, sob a alegação de ferir um acordo do
NAFTA, por ter proibido a importação e o trasporte de MMT, um derivado de gasolina extremamente
tóxico, o Canadá foi obrigado a receber o produto tóxico e a pagar uma indenização à empresa. ATTAC,
2000.
55
RAMONET, 1997.
56
Id.
57
Ibid.
58
ATTAC, 2001.
59
PETRELLA, 1998.
60
PETRELLA, 1999.
61
Id.
62
LES AMIS du Monde diplomatique, 2000.
63
DELEUZE ; GUATTARI, 1995, v.1 (op. cit).
64
CAIAFA, 2000.
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 147
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

4- Conclusões – ramificações

Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica
complexa numa sociedade determinada.

Foucault: A vontade de saber

É preciso pensar, com Foucault, o poder em termos de correlações de forças

imanentes ao campo social, poderes localizados que compartilham de um mesmo

objetivo e cujas táticas se acrescentam, avolumando-se de acordo com a lógica de uma

estratégia global, que não tem cabeça, mas “toma corpo nos aparelhos estatais, na

formulação da lei, nas hegemonias sociais.”1

A grande lógica global da atual fase do capitalismo financeiro é a do maior lucro

em menor tempo. Este é o objetivo que rege as táticas locais, e cujos atores

compartilham, muito embora sejam concorrentes e precisem como tal eliminar-se uns

aos outros. Aliás, é precisamente por compartilhar do mesmo objetivo que os atores se

tornam concorrentes e ao mesmo tempo parceiros, formando, reforçando e propagando

o pólo de forças do capital, que se realiza em termos de circulação-consumo. A

acumulação dessa táticas locais forma linhas de força que se cristalizam nas mega-

corporações (pensar nas aquisições e fusões de empresas que atravessa o planeta); nos

governos (neo)liberais; instituições internacionais etc.

Ainda segundo Foucault, as relações de poder tornam possíveis certos discursos

que em contrapartida lhes servem de suporte.2 No caso de nosso estado avançado de

capitalismo, é o discurso econômico que emerge e serve de base às relações de poder

estabelecidas na concorrência pela busca do lucro: o discurso neoliberal, que significa


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 148
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

colocar a economia acima da política, as garantias individuais acima do bem estar

coletivo e o mercado como instância máxima de regulação social.

Como vimos com Bourdieu3, o objetivo das mega empresas de comunicações (a

indústria da mídia) é produzir lucro, seja diretamente, seja indiretamente, e dentro desse

objetivo elas participam do pólo de forças do capital. Ao ser absorvida pelas forças do

mercado, a grande mídia passa a reproduzir suas palavras de ordem, difundindo um

estilo de vida baseado na velocidade de circulação e na voracidade do consumo, que é

nada mais, nada menos do que condição de sua própria existência como indústria. Ou

seja, é por necessidade de autopreservação que as indústrias de comunicação fazem

circular o modo de vida capitalístico junto com o seu discurso legitimador.

O jornalismo comercial está inserido nessa grande mídia, portanto, compartilha do

objetivo geral do lucro e está sujeito às leis da concorrência. Sendo assim, trabalha com

o mínimo de informação e o máximo de redundância. Como boneco do ventríloquo,

divulga o discurso legitimador do mercado — as teorias neoliberais da economia —

vulgarizando-o, ocultando suas origens históricas e geográficas localizadas, e

apresentando-o com valor de fato, como leis naturais tão evidentes e inquestionáveis

quanto a da gravidade. Ao se infiltrar dessa forma pelas malhas da comunicação de

massa, os axiomas do capitalismo ganham em pregnância e formam uma densa camada

de consenso, o burburinho de fundo (para lembrar Bakhtine), que se constituirá

também no contexto de recepção (é a partir de onde se faz o diálogo), condicionando

toda a compreensão aos seus ditames básicos e sufocando ou absorvendo por sua

viscosidade os discursos menores, divergentes, que poderiam causar rupturas.

Mas, novamente de acordo com Foucault, as resistências (no plural, múltiplas)

agem todo o tempo dentro do campo de forças: “por definição não podem existir a não
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 149
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

ser no campo estratégico das relações de poder.”4 É claro: se o poder está por toda parte,

se o poder é relação de forças, as resistências são também expressões de força entre as

forças e só poderão existir aí. Não significa, porém, que sejam reativas, ou respostas,

“não quer dizer que sejam apenas subproduto”5, como diz Foucault. Não, elas são,

antes, “o outro termo, o interlocutor irredutível.”6 Não são exteriores ao campo de

forças, mas exteriores aos conjuntos de forças dominantes; são resistências justamente

porque não se deixam atrair ou determinar pelo peso das forças maiores. Deleuze mostra

em Qu’est-ce qu’un dispositif7 como as linhas de subjetivação que podem ser

produzidas pelo próprio dispositivo (mas nem sempre o são), funcionam como linhas de

fratura.

Neste sentido cabe falar como Deleuze de “máquinas de guerra” como posições de

exterioridade, cultivando constantemente sua própria posição de exterioridade — não ao

campo —, mas aos pólos de forças dominantes.8 Na análise de Deleuze e Guattari, a

interioridade é dada pelo Estado, porém compreendemos esse aparelho de Estado como

uma forma que não se cola necessariamente ao Estado-governo e que nos dias atuais é

melhor traduzida por Mercado — isso que é todo-inclusivo (ver acima, o 2o capítulo). A

máquina de guerra é aquela força excêntrica e mutante que pode balançar a distribuição

existente de forças, com as quais ela coexiste “num campo perpétuo de interação.”9

O Monde diplomatique, ao escapar da lógica comercial que submete o campo

jornalístico, forjando com seus leitores uma conexão que foge aos padrões estreitos do

consumo, estabelece uma posição de exterioridade com relação ao poder do capital.

Simultaneamente, por manter a forma de jornal, por alcançar uma difusão que ultrapassa

os 200 mil exemplares (mais de um milhão se considerarmos os artigos que, traduzidos

dele, são difundidos por jornais de ampla circulação em diversos países), ainda que
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 150
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

fugindo das características básicas do que se convencionou chamar jornalismo,

permanece dentro do campo de embate de forças da grande mídia.

A posição de exterioridade (quanto ao poder do capital) se reforça também em

termos do conteúdo das matérias e pode ser resumida pela orientação editorial do jornal,

frouxamente definida como “fazer contra-informação”. Através de seus colaboradores,

o Monde diplomatique se conecta com lugares de produção de pensamento divergentes

dos saberes veiculados no corpo do discurso dominante do capital. Em sua situação

singular, o Monde diplomatique se torna um fator de aglutinação de fluxos de discursos

dissidentes, que tenderiam a se dissolver caso ficassem dispersos pelo campo social.

A partir desse território, tais discursos se agenciam com práticas de difusão, como

as conferências e palestras organizadas pela associação de leitores, e com práticas de

ocupação, como as manifestações de rua organizadas por ATTAC, e podem ganhar

densidade suficiente para, irrompendo no burburinho de fundo, se constituir em ponto

de variação do agenciamento dominante do capital. Pois, como mostrou Guattari10, uma

das maneiras de fazer variar é acrescentar dados, mostrar o que não estava sendo visto,

permitir que instâncias referenciais novas componham a subjetividade coletiva.

Se observarmos atentamente veremos que a linha de variação atravessa todo o

agenciamento. A própria forma dos textos publicados, essa dificuldade facilmente

apontada, oferece uma alteridade ao padrão da nossa época. São linhas lentas que

pedem uma atenção concentrada e lentidão na leitura. Entra aqui uma variável de

esforço, uma diferença com a sociedade de consumo, cujo emblema bem poderia ser, e

por diversos motivos, o controle remoto. O ideal da época é que tudo se faça à distância

e com o mínimo empenho: é o que nos dizem as mensagens, da publicidade ao

jornalismo, dos best-sellers às novas tecnologias, ao recorrerem ao lugar comum do


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 151
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

fácil, digerível, prático, descartável, divertido, tudo para evitar estranhezas,

desconfortos; para evitar o que não seja conhecido, para permanecer no âmbito das

redundâncias. É o que nos dizem também os equipamentos, telefones celulares,

computadores (e a rede mundial deles), automóveis e até mesmo os novos aparelhos de

ginástica passiva.

Uma expectativa de facilidade se produz, a complexidade causa repulsa, o

primeiro impulso é sempre simplificar: as respostas se reduzem a pró ou contra, o que

significa largar de lado muitos elementos, justamente as variáveis. Talvez porque todo

esforço esteja concentrado no território da produção de lucro e consumo, exigindo

objetivos bem precisos: treinamento para o mercado. Tudo isso nos remete à pergunta-

sentença: “para que serve?” À qual podemos contrapor: que lugar cabe nesse esquema à

aprendizagem, cujo caminho é longo e o destino, incerto (completamente distinta do

treinamento)?

Ao propor uma pausa e abrir espaço para a reflexão, o Monde diplomatique se

constitui em diferença. Ao se constituir em diferença, tensiona todo o campo

jornalístico, e faz vibrar, para além dele, diversos pontos dispersos de resistências.

Assim, os leitores não são assimilados, mas existem também em suas diferenças, daí

surgirem as críticas, as discussões e as rupturas. Em alguns lugares isso funciona e

prolifera: nas conferências, quando há debate, quando há troca de experiências locais;

nos grupos dissidentes que se formam a partir dos encontros catalisados pelo jornal; no

crescimento de ATTAC, como organização independente; na afluência de textos de

colaboradores de diversas partes do mundo. Em outros lugares, isso retorna sobre

territórios endurecidos e se prende, como no desprezo de Cassen por esta pesquisa, ou

na atitude de alguns leitores ao engessar o discurso do Monde diplomatique como voz


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 152
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

da verdade, — uma contradição com o princípio de debate, pois encerra-o ao invés de

fertilizá-lo.

4.1 - Em busca da multidão.

Em Império, Hardt e Negri mencionam, celebram e clamam repetidamente por

uma multidão que seria a derrocada do poder imperial. Este é apontado pelos autores

como a nova forma assumida pela soberania global na fase atual do capitalismo. Ao

contrário da fase imperialista que o antecede, o Império não estabelece um centro

territorial de irradiação de poder, pois não é o domínio de um país sobre outros (embora

os Estados Unidos tenham uma privilegiada posição no sistema mundial), mas a

articulação de “organismos nacionais e supranacionais unidos por uma lógica ou regra

única.”11 Não fica claro, no entanto, como a multidão há de se constituir numa força

política contra o Império. Aliás, delimitá-la de cima para baixo é a primeira opção que

os autores recusam por completo: não há poder central que se derrame sobre todos os

súditos unificando-os numa forma coesa, “não existe um imperador Caracalla que dê

cidadania a todos os seus súditos”.12 O contrário é o que propõem: a história das lutas

do século vinte teria, ela, atraído o Império como resposta.

Misteriosa multidão. Mesmo que as “condições de uma nova subjetividade

política” tenham emergido daquelas lutas, não se compreende como, no mundo inteiro,

pessoas absorvidas por suas batalhas cotidianas e largamente produzidas pela

biopolítica, poderão, a partir de seu isolamento, erguer-se contra o modo de vida que se

impõe como global. Nem mesmo a revelação de um “telos” (como destino) a partir do

encontro entre “passado revolucionário” e “capacidades cooperativas de produção

contemporânea” esclarece como há de se concretizar a multidão. “A teleologia da

multidão é teúrgica; ela consiste na possibilidade de dirigir tecnologias e produção para


Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 153
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

sua alegria e para o crescimento de seu próprio poder.”13 Abstrata multidão, que não é

apresentada senão como possibilidade, potencial, potência. Apontá-la já é decerto uma

forma de torná-la real, mas contra o Império, não será suficiente.

Muito embora as migrações massivas do Sul para o Norte (de todos os sul para

todos os norte referenciais) falem de um desejo de liberdade e embora seja certo que

esse movimento faz furos no corpo mole do capitalismo, corre-se um grande risco em

tomar o movimento ele mesmo como transformação. Um triste cenário se delineia

quando o caminho da liberdade passa por ocupar os piores postos nas indústrias da

agricultura, dos serviços ou do petróleo em não importa qual pólo de riqueza do globo

terrestre. Como dizem os autores, o capitalismo não pode funcionar sem as levas de

imigrantes clandestinos. Não é, portanto, tão certo se o poder imperial não consegue

reprimir os movimentos ou se os reprime apenas na medida necessária para produzir

exclusão e facilitar a captura.

É a armadilha do século confundir o virtual com o atual, o possível com o concreto

( e aí está a bolha das bolsas de valores da nova economia para confirmar o perigo).

Imaginar a terra prometida é apenas o começo da viagem, Negri e Hardt sabem disso,

sabem que a multidão precisa “organizar e concentrar suas energias contra a repressão”

e perguntam: “Que práticas específicas e concretas estimularão este projeto político? A

essa altura, não saberíamos dizer.”14 No entanto pelo menos uma resposta já foi dada,

no começo do livro, quando afirmam que as lutas do últimos anos do séc. XX

“não se comunicaram com outros contextos e sequer mereceram divulgação local;


e por isso tiveram, com freqüência, duração muito breve onde nasceram
consumindo-se como num clarão. Este é certamente um dos absurdos políticos
centrais e mais urgentes da presente época: em nossa muito celebrada era da
comunicação, as lutas se tornaram quase incomunicáveis.”15
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 154
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Lá onde as lutas se apagam há um trabalho a ser feito e, acredito, o Monde

diplomatique, apenas como exemplo, está fazendo: acionar as máquinas da

comunicação contra o paradoxo do isolamento, mostrar o que há em comum —

comunicar. E aí começa a despontar uma linha de força, no sentido de Foucault,

“codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma

revolução.”16 Produzir a multidão é ao mesmo tempo uma questão de foco e de

linguagem, mas de uma pragmática da língua, onde o problema não é, finalmente, de

produção de sentido, mas de produção da vida; dos modos de vida; dos nexos de vida.

Primeiro: dar a ver que os problemas contra os quais se luta são parte da

configuração atual do capitalismo. Segundo: mostrar que os materiais já existem, que a

riqueza já é suficiente para todos. Terceiro: tomá-las para si, reapropriar-se e para isso é

preciso se afastar da lógica do lucro, recusá-la, inventar outra lógica que nos sirva

coletivamente. Ou seja, forjar um novo agenciamento coletivo de enunciação, um novo

regime de signos, em que as palavras de ordem sejam outras, ligadas à coletividade

(sempre no sentido que Guattari cria para essa palavra: uma multiplicidade que se

estende para além do indivíduo e inclui instâncias pré-humanas e pós-humanas) à

solidariedade, ao bem comum. É quando a palavra de ordem vira senha, dizem Deleuze

e Guattari. Ou seja, a palavra de ordem, nesse momento, não assinala mais a morte, mas

ativa sua segunda qualidade: ser um ponto de passagem para a variação contínua.17

Talvez, se o fluxo de vozes e desejos que se ouviu em Seattle, em Porto Alegre,

em Gênova continuar se adensando, contra e apesar de todas as capturas, talvez então se

abra uma saída dos estratos endurecidos da subjetividade capitalística (as dimensões

sedimentadas, pré-existentes) que, favorecendo o processo de uma “heterogênese18”,

nos ajude a entrar num movimento de criação. Seria possível ver aí, como sugere
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 155
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Caiafa, um lugar “onde algo já seria um pouco diferente do que é, onde uma mudança

imperceptível sob certa óptica já estaria se dando.”19

4.2- P.S.

1- Não é tanto a questão de se concordar com ou discordar do campo editorial do

Monde diplomatique, considerar correta ou inoportuna sua interferência, mas de

observar um modo de ação que, por ser explícito, evidencia as forças em jogo no campo

jornalístico, além de mostrar o funcionamento e a participação de toda a indústria da

mídia nos mecanismos de produção de subjetividade capitalística contemporânea.

2- Certo é que o Monde diplomatique é um caso francês. Serve e funciona na

França, mas, mantidas as especificidades, pode servir de ponto de inflexão para pensar a

mídia em nosso país e, quiçá, servir-nos de inspiração (se algo há desejável que se

globalize, são as soluções coletivas, por que não?) Pode abrir uma janela no ambiente

abafado da mídia brasileira, funcionar como variável, fazer variar aqui também. Pode

ser uma saída para a armadilha da publicidade, que conhecemos bem, pois guardamos a

memória da ditadura militar que mostrou como o poder econômico aliado ao político

pode fechar jornais, cortando as suas verbas de publicidade.

Circulou a notícia em 2000, no jornal O Globo, de que a TVE aceitaria os

telespectadores como associados: pagando uma contribuição anual, o espectador se

tornaria sócio de carteirinha e obteria descontos nos “produtos da TVE.”20 Vê-se que a

proposta era bem diferente de uma associação do tipo de Les Amis du Monde

diplomatique, pois tratava, a princípio, o espectador como consumidor. De resto, a

notícia se provou vazia: hoje, no sítio da emissora na internet, nenhuma menção é feita a

uma tal iniciativa. Outro exemplo: o Jornal do Brasil passou recentemente por uma

reestruturação, foi comprado, junto com o JB Online e a Agência JB, pela Companhia
Burrowes, Patrícia: Le Monde Diplomatique: um jornal para pensar. Tese de Doutorado. 156
Escola de Comunicação – UFRJ, 2002.

Brasileira de Multimídia, dirigida por Nelson Tanure. Essa reestruturação consistiu

numa redução dos custos em 30%, que incluiu uma redução de 40% no “contingente”21

(grupo de pessoas que, dentro de uma coletividade, cumprem determinado fim, segundo

o dicionário Huaiss). A visão de Tanure é resumida em um parágrafo do artigo:

“‘A verdadeira independência de um jornal é fruto da viabilidade econômica da


empresa. O objetivo da companhia é o resultado financeiro positivo.’ Ele
acrescenta que, como Graham, acredita que tal conquista torna possível a um
veículo interferir positivamente nos rumos da vida nacional. ‘O JB vai ajudar a
modernização de um país que ainda tem hábitos e posturas de colônia’,
vaticina.”22

Não resta dúvida de que, aí também, a lógica comercial está em ação. No entanto, o

caso do Monde diplomatique indica fortemente que esta não é a única direção possível.

1
FOUCAULT, 1988, p. 88-89
2
Id. p.95-97
3
BOURDIEU, 1997, op. cit.
4
FOUCAULT, 1988, op.cit., p. 91
5
Id.
6
Ibid.
7
DELEUZE, 1989.
8
DELEUZE; GUATTARI, 1997, op. cit.
9
Id.
10
GUATTARI, 2000, op.cit.
11
HARDT ; NEGRI, 2001 p. 12
12
Id. p. 418
13
Ibid. p. 420
14
Ibid. p. 423
15
Ibid. p. 73
16
FOUCAULT, 1988, op. cit. p.92
17
DELEUZE; GUATTARI, 1995, v. 2, p. 56-57
18
GUATTARI, 2000, op. cit.
19
CAIAFA, 2000, op. cit. p. 72
20
ANTUNES, 2000
21
RIBEIRO, 2002
22
Id.
157

REFERÊNCIAS

ACCARDO, A. Derrièrre la subjectivité des journalistes. Le Monde diplomatique,


Paris, mai 2000, p.4. Disponível em: http://monde-diplomatique.fr.
Acesso em: 2 ago. 2000.

ALBERT, P. La Presse française. Paris: La Documentation Française, 1998.

A NOS LECTEURS. Le Monde diplomatique, Paris, no 1, p.1, mai 1954.

ANTUNES, E. TVE quer público como associado. O Globo, Rio de Janeiro, 16 junho
2000. Disponível em: http://oglobo.globo.com/oglobo/suplementos/segundo caderno/.
Acessado em 16 junho 2000.

ARBEX JUNIOR, J. Showrnalismo, a notícia como espetáculo. São Paulo: Ed. Casa
Amarela, 2001.

ATTAC. O que é o Acordo Multilateral de Investimentos – AMI. Disponível em:


www.attac.org/brasil/textos/ami.rtf. Acesso em: julho de 2000.

ATTAC. Tout sur ATTAC. Paris: Éditions Mille et Une Nuits, 2001.

AUSTIN, J. L. How to do things with words. Massachussets: Harvard University


Press, 2000.

BAKHTINE, M. Le Marxisme et la philosofie du langage. Paris: Les Éditions de


Minuit,1977.

BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Ed. Cultrix, 1977.

BAUMAN, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,


1998.

BELLANGER, C; GODECHOT, J et al. Histoire Generale de la presse française,


vol. 4. Vendôme: Presses Universitaires de France, 1975-1976.

BENVENISTE, E. Comunicação Animal e linguagem humana. In: —— Problemas de


Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 1991. Cap. 5, p. 60-67.

BEUVE-MÉRY, H. Presse d’argent ou presse partisane. In: La Liberté de la presse.


Esprit no 133, mai 1947.

BILGEN, P.; LEBEDEL, P. Abrégé du droit de la presse. Paris: Centre de formation


et de perfectionement des journalistes (CFPJ), 1991.

BIONDI, A. Mentira e cara-durismo (ou a imprensa no reinado FHC). Caros Amigos,


São Paulo, ano IV, no 41, p. 8-9, agosto 2000.
158

BOHR, N. Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957. Rio de


Janeiro: Ed. Contraponto, 1995.

BOURDIEU, P. Raisons pratiques, sur la théorie de l’action. Paris: Ed. Seuil,


1994.(a)

———. L’emprise du journalisme, In: Actes de la récherche en sciences sociales,


Paris, no 101/102, p. 3-9, mars 1994. (b)

———. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

———. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1998.

———. Contre-feux 2. Pour un mouvement social européen. Paris: Raisons d’agir,


2001.

BOURDIEU, G. ; WACQUANT, L. La nouvelle vulgate planétaire. Le Monde


diplomatique, Paris, mai 2000, p. 6-7.

BRUNE, F. De la soumission dans les têtes. Le Monde diplomatique, Paris, avril,


2000, p. 26.

CAHIER Bleu. Echo de la Presse et la Publicité, no hors série, 1967.

CAIAFA, J. Fast Trips and Foreignnesses: an anthropological study of hispanic


women as other in american society. Tese de Doutorado. Anthropology Department.
Cornell University, EUA, 1991.

———. Jornadas Urbanas: alguns aspectos da produção de subjetividade no transporte


por ônibus no Rio de Janeiro. Revista do Departamento de Psicologia – UFF, v. 8, no
1 e 2, p. 4-22, 1996.

———. Nosso Século XXI. Notas sobre arte técnica e poderes.Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 2000.

———. Transporte coletivo nos Estados Unidos e a aventura própria de Nova York. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, no 27, 2001, p. 188-205.

CEBRIÁN, J. l. Regreso al futuro. In: ———, La red. Buenos Aires: Ed. Taurus, 1998.

CHAMPAGNE, P. La loi des grands nombres.In: In: Actes de la récherche en sciences


sociales, Paris, no 101/102, p. 10-22, mars 1994.

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.


159

———. Qu’est-ce q’un dispositif? In: ———. Michel Foucault Philosophe. Paris:
Seuil, 1989, p. 85-95.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

———— . Kafka, por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1977.

———— . Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia, v. 1,Rio de Janeiro: Ed. 34,


1995.(a)

———— . ————. v. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.(b)

———— . ————. v. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DIOUDONNAT, P.M. L’Argent Nazi à la conquête de la presse française (1940-


1944). Paris: Ed. Jean Picollec, 1981.

FLIGSTEIN, N. Rhétorique et réalités de la mondialisation. Actes de la Récherche en


Sciences Sociales, Paris, no 119, Sept. 1997.

FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: ———. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:


Ed. Graal, 1979. Cap.I, p. 1-14.

————. Os Intelectuais e o poder. In: ———. Cap.IV, p.69-78.

————. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal,


1988.

————. A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.

GRUPO DE MÍDIA. MidiaDados 2001. Disponível em: www.gm.org.br. Acesso em:


24 jan. 2002.

GUATTARI, F. Revolução Molecular. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

————. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

————. As três ecologias. Campinas: Ed. Papirus, 1993.

GUATTARI, F ; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Ed.


Vozes, 1986.

GUILLAUMA, Y. La Presse en France. Paris: La Décuverte, 1990.

HAFFNER, G. Avec les Amis du “Monde diplomatique”. Le Monde diplomatique,


Paris, décembre 1998, p.29.

HALIMI, S. Les nouveaux chiens de garde. Paris: Raisons d’Agir, 1997.


160

HARDT, M. ; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

HOLZMANN, G. Dizem que sobrevivi em algum lugar além dos mares... São Paulo:
Ed. Casa Amarela, 2000.

JULIEN, C. ; RAMONET, I. Aidez-nous à réussir la filialisation du Monde


diplomatique. Le Monde diplomatique, Paris, février, 1996. Appel a nos lecteurs, p. I
– IV.

————. Devenez copropriétaires du Monde diplomatique. Le Monde diplomatique,


Paris, mars 1996. Appel aux lecteurs, p. 23.

LA MONDIALISATION de l’édition scolaire en marche. Le Monde, Paris, 13 sept.


2001.

LA PRESSE clandestine, 1940-1944. Colloque d’Avignon les 20-21 juin 1985.


Conseil Général de Vaucluse, 1986.

LATTMAN-WELTMAN, F. Imprensa carioca nos anos 50: os “anos dourados”. In:


Alves de Abreu, Alzira (org.) A Imprensa em transição. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996.

LES AMIS du Monde diplomatique. Les Chantiers de la citoyenneté. Disponível em:


http://www.amis.monde-diplomatique.fr/Chantiers_citoyennete/chantierparis.htm
Acesso em: 13 nov. 2000.

LES RAPPORTS du Sénat, no 514, 1993-1994. Paris: Société Nouvelle des Librairies
Imprimeries Réunies. (s/ data)

MAFFESOLI, M. A descoberta do presente. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1984.

————. No fundo das aparências. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

MILANESI, L. A. O Paraíso via Embratel: o processo de integração de uma cidade do


interior paulista na sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MUSSO, P. Vivendi-Universal:l’Amérique gagnante. Le Monde, Paris, 8 dec. 2000.

NOVAES, Adauto (org.). Rede Imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Cia.
das Letras, 1991.

NOTRE HISTOIRE. Le Monde diplomatique, 1999 (brochura).

ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2001.


161

JESOVER, L. Petite histoire neoliberal. In: Grain de Sable, no 212, de 20 fev. 2001
Disponível em: www.attac.org.

PETRELLA, R. Un Projet autre. Le Monde diplomatique, Paris, decembre 1998,


p. 28.

——— . Au côté du ‘Diplo’: les Amis. Le Monde diplomatique, Paris, mai, 1999,
p.28.

PIGEAT, H. L’Etat et la presse. Revue de sciences morales et politiques, Paris, no 4,


2000. (Presses Universitaires de France, 2001.)

POE, E. A. O homem das multidões. In: ——. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio
de Janeiro: Cia Aguilar Editora, 1965.

RAMONET, I. La pensée unique. Le Monde diplomatique, Paris, janvier 1995, p.1.

———. Médias en Danger. Le Monde diplomatique, Paris, février1996, p.1.

———. Désarmer les marchés. Le Monde diplomatique, decembre 1997, p.1.

———. Apocalipse das Mídias. Le Monde diplomatique, edição brasileira na


internet, ano 1- número 0, dezembro de 1999. Disponível em: www.diplo.com.br

———. A tirania da Comunicação. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999.

———. Porto Alegre. Le Monde diplomatique, Paris, janvier 2001, p.1.

RIBEIRO, B. JB está de volta à sede eterna. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 fev.
2002. Disponível em http://www.jb.com.br. Acesso em: 4 fev. 2002.

ROCHA, E. G. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São


Paulo: Brasiliense, 1995.

SODRÉ, M. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis:


Vozes, 1996.

SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

TEXCIER, J. Propos de l’ocupé. In: ——. Ecrits dans la nuit. Paris: La Nouvelle
edition, 1945.

THIBAU, J. Le Monde. Histoire d’un journal, un journal dans l’histoire. Paris:


J.C.Simoen, 1978.

VIVENDI-UNIVERSAL acquiert MP3.com. Le Monde, Paris, 22 mai 2001.


162

VIVENDI-UNIVERSAL se lance a l’assault d’AOL-Time Warner, son modèle. Le


Monde, Paris, 21 juin 2001.

VULSER, N. Communication: les nouveaux maîtres du monde. Le Monde, Paris, 28


déc. 2001.

WHITAKER, F. Fórum Social Mundial: origens e objetivos. Correio da Cidadania.


Rio de Janeiro, 22 jan. 2000. Disponível em: http://www.forumsocialmundial.org.br/
por/qorigem.asp. Acesso em: 4 março 2001.

Você também pode gostar