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E n t r e v i s ta : P a u l H e n ry

Contra a evidência
das oposições
Foto: Antonio Scarpinetti/SEC/Unicamp

Em tempos de crise, a utilidade do


conhecimento em geral é posta em
questão. Assim, a relação entre a fi-
losofia e a ciência torna-se uma dis-
cussão necessária. Para falar sobre o
tema, a revista Ciência&Cultura traz
uma entrevista com Paul Henry,
81, pesquisador do Centre Natio-
nal de La Recherce Scientifique
(CNRS) e ex-presidente do Colégio
Internacional de Filosofia. Bastante
conhecido no campo de estudos de
linguagem, Henry é um dos funda-
dores da análise do discurso francesa Para Henry é fundamental questionar a oposição entre ciência e filosofia
– juntamente com Michel Pêcheux e
Michel Plon – trazida pela linguista configuração da linguagem ordi- Ciência&Cultura: Em um mundo em
Eni Orlandi às universidades brasi- nária como sendo o impossível que crise orçamentária, a redução de
leiras nos anos 1980. Licenciado em lhe escapa. Sobre ele e essa obra, o recursos para as ciências humanas,
ciências da matemática em Paris, psicanalista Jacques Lacan chegou a as primeiras a serem alvo de cortes,
com certificado de estudos superio- afirmar, em janeiro de 1978, que não inclusive no Japão, supõe a exis-
res em linguística geral, etnologia podia dizer melhor o que Paul Henry tência da separação entre a filoso-
e história das religiões, Paul Henry dissera sobre a linguagem: “un mau- fia, as ciências sociais e as ciências
encarna a modernidade caracteri- vais outil”(ou seja, uma ferramenta “duras”, como a matemática, física,
zada, por ele, pelo questionamento imperfeita, remetendo ao título da engenharia. Para o senhor, existe se-
das oposições, inclusive à suposta obra). Em passagem mais recente paração entre ciência e filosofia?
entre ciências “duras” e “moles”. pelo Brasil, em 2017, deu palestras P. Henry: É necessário questionar a
Ao transitar, de modo rigoroso, en- em diversas cidades e ministrou se- distinção entre ciência e filosofia.
tre áreas diversas do conhecimento, minários no curso de Mestrado em Não é óbvio. É só pensar em Des-
com o livro A ferramenta imperfei- Divulgação Científica e Cultural, no cartes, Leibniz ou Pascal, entre ou-
ta, de 1977, traduzido pela Editora Laboratório de Estudos Avançados tros, para lembrar que essa distinção
da Unicamp, o autor parte de uma em Jornalismo, Labjor/Unicamp nem sempre foi feita, que ela tem
indagação da lógica e chega a uma (com financiamento da Fapesp). uma história. Essa distinção foi es-

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ND tabelecida durante o século XIX no
âmbito da instituição universitária
como era então estruturada. Essa
separação tem um caráter funda-
mentalmente acadêmico. Todos os
oposições não foram pura e sim-
plesmente abandonadas, mas dei-
xaram de parecer óbvias. Isso, para
mim, é a característica do que nós
podemos chamar de modernidade.
Notícias
do
Mundo

as ciências humanas e sociais que


foram formadas no escopo da mo-
dernidade e que lhe são solidárias.
Tomemos o caso da física cósmica
com este universo que ela nos diz es-
grandes avanços científicos se deram Devemos a Jacques Derrida por ter tar infinitamente em expansão sem
junto com as reconfigurações do la- formulado da maneira mais acaba- ter nenhum exterior. Isso não supõe
do da filosofia. Mas não podemos da essa transformação. que estamos questionando uma
apenas dizer que esses grandes avan- oposição tão fundamental quanto a
ços científicos forçaram retrabalhos C&C: Quais são as consequências do do interior e do exterior, a do dentro
na filosofia ou, inversamente, que questionamento dessas oposições? e do fora? O que poderia estar den-
esta última, por meio de sua trans- P. Henry: A dimensão ética e políti- tro que não estaria do lado de fora?
formação, preparou o caminho para ca dessa mutação põe em embaraço O que torna possível conceber isso,
as transformações da ciência. os dogmatismos e os fanatismos sob de pensá-lo?
todas as suas formas. E, claro, provo-
C&C: Por quê? cou a reação de todos os reacionários C&C: Sua formação primeira é em
P. Henry: Porque a segmentação dos diversos conservadorismos e fa- matemática, mas o senhor foi levado
acadêmica não poderia deixar de natismos. Essas reações atualmente
Foto: Divulgação
ser posta em questão. Essa evolu- assumem formas extremas em to-
ção se fez dentro do contexto de um dos os lugares. Entre muitas outras
questionamento geral das grandes coisas, as manifestações contrárias
oposições metafísicas que estrutu- massivas suscitadas pelo estabele-
ram tanto a metafísica envolvida no cimento do casamento para todos
trabalho científico quanto o discur- na França é o resultado de tal movi-
so filosófico em si. A consequência mento, ao apresentar uma oposição
foi que começamos a falar de inter- intangível, de essência, do masculi-
disciplinaridade, de multidiscipli- no e do feminino.
naridade, mas essa era apenas uma
maneira superficial de designar as C&C: E a filosofia questiona a
transformações fundamentais do essência...
campo do conhecimento que esta- P. Henry: A oposição caracteriza a
vam em andamento. maioria dos fanatismos e conser-
vadorismos presentes, tanto do
C&C: Quais transformações? Daech [Estado Islâmico] quanto
P. Henry: As oposições como natu- do movimento contra o aborto, es-
reza e cultura, consciente e incons- pecialmente nos Estados Unidos.
ciente, masculino e feminino etc., Portanto, não é surpreendente que, O autor francês é um dos fundadores da
passam a ser questionadas. Essas nessas condições, estamos atacando análise do discurso

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a outros campos como a linguística e
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Foto: Antonio Scarpinetti/SEC/Unicamp


sentadas neste caso pela matemática
a filosofia. Nos anos 1960, enquanto e pela filosofia ou ciências humanas.
Althusser propunha que todos fos- Isso não significa que não haja dife-
sem filósofos e depois entrassem renças. Eu não “apliquei” o conceito
em áreas específicas, Desanti, por de sequência numérica ao problema
outro lado, propunha ir direto para da distinção entre sentido e significa-
as ciências positivas. Como se deu ção. O que falta reconhecer, segundo
esse trânsito no seu caso? penso, é que não se pode sair de uma
P. Henry: Eu fui formado nesse con- disciplina, qualquer que seja ela, para
texto que acabei de mencionar. Eu ser capaz de conceber uma série de
achei natural, para não dizer neces- questões que nela se enquadram.
sário, depois de ter recebido uma
formação em matemática (que in- C&C: É lícito pedir utilidade “científi-
cluía uma parte importante da fí- ca” para a filosofia?
sica) complementar esses estudos P. Henry: Não penso que tudo o que
com linguística, etnologia, histó- se chama filosofia tenha alguma
ria das religiões, história e filosofia utilidade para as ciências, embora
das ciências, psicologia.... Conheci eu não goste de falar em termos de
os modelos formais das estruturas A filosofia útil para a ciência é aquela utilidade. Não é um argumento de
elementares do parentesco, bem co- que questiona oposições fundamentais utilidade que hoje é apresentado
mo o status igualmente formal das para questionar o interesse das ci-
gramáticas gerativas. Tive a sorte de descontinuidade entre filosofia e ências humanas e da filosofia? Do
poder estar com os dois pés neste ciência, como se dá a relação entre meu ponto de vista, as ciências,
campo do saber da modernidade. disciplinas? quaisquer sejam elas, implicam a
Sobre a diferença entre Althusser e P. Henry: Mais recentemente, tenho filosofia particularmente em suas
Desanti, acho que deve ser levado estado particularmente interessado dimensões teóricas. Mas há filoso-
em conta que Desanti estava inte- na distinção entre sentido e significa- fia e filosofia. Lembremo-nos de
ressado em matemática inclusive a ção. Essa distinção interessa notada- que a ciência se tornou moderna
partir de um ponto de vista filosó- mente à filosofia, à linguística e mais essencialmente só com Galileu,
fico (ele é o autor de um trabalho amplamente às ciências da lingua- ao se apoiar sobre as matemáticas.
fundamental sobre “As idealidades gem ou à psicanálise. O que eu quero Mas isso supunha que fôssemos, ao
matemáticas duras”). Althusser não dizer a você hoje é que, de repente, menos em parte, libertos da filoso-
teve, parece-me, qualquer prática tive a intuição de que, apelando para fia e da metafísica escolástica inspi-
em matemática. Tudo o que posso o conceito matemático da sequência rada em Aristóteles. A filosofia que
dizer hoje é que a relação entre ma- numérica, eu poderia iluminar essa pode ser «útil» para a ciência hoje
temática e filosofia parece-me bas- distinção que se mostrou promissora é aquela que vem da modernida-
tante singular. e convincente para aqueles aos quais de, uma filosofia que questiona as
pude apresentar meu trabalho. Não oposições fundamentais.
C&C: Como a matemática se refle- vejo qualquer descontinuidade entre
te no seu trabalho hoje? Se não há as ciências chamadas “duras”, repre- Mariana Garcia de Castro Alves

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