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ADORMECIDA?
Luzia Pereira1
INTRODUÇAO
1
Advogada. Graduada em Teologia pela PUC-PR e Direito pela Universidade do Vale do Itajaí-
Univali. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito
Damásio de Jesus. Endereço eletrônico: pereira12luli@gmail.com
Frente a isso opta-se por não virar a página no sentido de revisitar a
história, abordando a Doutrina Social da Igreja Católica, notadamente a primeira
Encíclica, que é a Rerum Novarum de Leão XIII escrita em 1891, a qual dá impulso
a uma série de encíclicas no campo social e, a última, chamada Fratelli Tutti, escrita
em 2020 pelo Papa Francisco, cujo pontificado é marcado pelas questões sociais.
A Fraternidade tem grande força para a correta aplicação do Direito, pois
toca nas questões que envolvem relações recíprocas e é capaz de nortear o
ordenamento jurídico, incluindo as relações laborais. Como direito fundamental
clama por maior efetividade, antes, pelo despertar do sono profundo.
Há um constante clamor por uma intervenção e um dever de salvaguardar
os direitos sociais e individuais num contexto de exploração e, consequente
preocupação humanitária, carecendo de um novo modo de vida, reflexo de uma
sociedade fraternal.
Busca-se um diálogo aproximado das fontes que poderá jorrar em novas
soluções jurídicas a uma mesma questão, porém com novo olhar.
O Papa Francisco tem testemunhado um diálogo aberto, contribuindo para
a reflexão do cenário atual, no qual lembra que “não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes” (Laudato Si, n. 123).
Se não é possível obrigar ninguém a viver a Fraternidade, ela poderá ser
invocada e testemunhada na aplicação criativa da norma, como força viva geradora
de equilíbrio na arte de aprender a conviver com o outro, que é o outro eu, com
quem compartilho temporariamente o espaço na mesma casa comum.
2
O patrimônio histórico da Doutrina Social da Igreja é composto de doze Encíclicas Sociais, a saber:
Rerum Novarum – a condição dos operários – Leão XIII, de 1891; Quadragesimo Anno – a
restauração e aperfeiçoamento da ordem social – Pio XI, de 1931; Mater et Magistra – a recente
evolução da questão social – João XXIII, de 1961; Pacem in Terris – paz na terra – João XXIII, de
1963; Populorum Progressio – o desenvolvimento dos povos – Paulo VI, de 1967; Octogésima
A Igreja Católica não deixou de se pronunciar sobre questões da vida
social. Hoje se fala de um “corpo de doutrina” que, a partir da Encíclica Rerum
Novarum3 de Leão XIII escrita em 1891, vai tomando forma, sistematizando assim
um conjunto de princípios, critérios de juízo e diretrizes de ação que o Magistério
da Igreja Católica4 vem estabelecendo.
A doutrina social da Igreja é parte integrante da fé e experiência acumulada
pelos cristãos através dos séculos.
A Igreja assume posições históricas diante da problemática de cada época.
Significa que responde a perguntas que surgem naquele determinado contexto
histórico e que, para cada época, a novas questões e novas respostas.
Há várias formas de abordar esse patrimônio.5 Brighenti aponta quatro
chaves de leitura: 1ª Chave- Nas origens da Doutrina Social da Igreja: a passagem
de uma sociedade antiga à moderna; 2ª Chave- A Doutrina Social da Igreja diante
do Liberalismo, do Socialismo e dos Totalitarismos; 3ª Chave- O novo lugar da
Igreja na sociedade; 4ª Chave- A Doutrina Social da Igreja diante do pluralismo e
do empobrecimento. Dois são os grandes desafios apresentados: o pluralismo e a
secularidade; a pobreza e a marginalização (BRIGHENTI, 2002, p. 69-104).
Encontramos várias definições para o ensino social da Igreja tiradas de seu
próprio corpo doutrinal, porém priorizamos algumas, entre elas, a da Encíclica de
João Paulo II ao falar da Solicitude Social da Igreja, que diz que “a Doutrina Social
da Igreja é um conjunto de princípios de reflexão, critérios de juízo e diretrizes de
ação, orientados à conduta moral”. (JOÃO PAULO II, 1993, p. 391).
Outra definição nessa mesma linha, colocada à disposição também
daqueles que não são católicos, encontra-se no documento da Congregação para
a Educação Católica6 (1993, p. 523) quando diz ser:
Um conjunto de ensinamentos oferecidos pelo Magistério da Igreja, não
somente aos fiéis, mas também a todos os homens de boa vontade, para
iluminar com o Evangelho o caminho comum para o desenvolvimento e a
libertação integral do homem.
Para Brighenti, definição essa que assumimos:
A Doutrina Social da Igreja é o conjunto sistemático de princípios de
reflexão, critérios de juízo e diretrizes de ação, que o Magistério da Igreja
7
No conceito de Brighenti temos a categoria ‘Reino de Deus’ que é a mensagem de Jesus de
Nazaré. Esse conceito e, mesmo, a recuperação do Jesus histórico devem-se muito aos teólogos
da Teologia da Libertação, situando Jesus num contexto profundamente marcado pela exclusão e
diferenças sociais, onde a própria religião, através de seus representantes, ajudava a legitimar as
desigualdades e opressões passando uma imagem distorcida, irreal de Deus. O teólogo José
Comblin vai dizer que os dominadores inventaram uma teologia cínica em que os sofrimentos dos
pobres são positivos porque por meio dos sofrimentos dos pobres merecem uma eternidade feliz no
céu depois da morte. O sofrimento na vida presente seria um privilégio porque, graças a ele, os
pobres teriam um lugar privilegiado no céu. Foi uma teologia blasfematória que ainda é invocada
pelos dominadores para justificar os sofrimentos que infligem aos pobres. Outros são mais bondosos
e entendem que os pobres existem para que possamos ajudá-los com as nossas esmolas. No fundo,
esta explicação é tão cínica como a outra apesar de uma aparência mais humana (cf. COMBLIN,
José. O pobre: critério para a profecia. In: Pedro A. Ribeiro de Oliveira (org). Opção pelos pobres no
século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 181-201).
fundamentais, é uma opção de fé incompleta, capenga, insuficiente.
(GUIMARÃES e GÖRGEN, 1992, p. 26-27).8
Faz parte da própria história do Povo de Deus o compromisso social
assumido em consequência da fé. A raiz está na Palavra de Deus, que tem sua
marca histórica no êxodo, quando um grupo de trabalhadores forçados se liberta
da opressão no Egito e segue rumo à terra prometida, ou seja, à construção de
uma sociedade baseada na partilha e não na acumulação, na descentralização do
poder e na religião a serviço do povo.
Em 1891, frente à situação de miséria dos trabalhadores causada pelo
rápido desenvolvimento industrial, o Papa Leão XIII lança a encíclica RN. 9 A
intenção não é um estudo aprofundado desta encíclica, mas relembrar alguns
pontos.
A Revolução Industrial ocasiona a chamada questão social, uma vez que
surge uma série de problemas sociais impactados pelos novos modos de produção
trazidos pela indústria e, com ela, as novas formas de produção, exigindo a divisão
do trabalho e a especialização. Somada ao surgimento do proletariado levam a
Igreja a tomar uma posição em matéria social. Ao falar das causas do conflito, a
RN cita “o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram um
quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que se impõem assim um
jugo quase servil à imensa multidão de proletários” (n.2).
Existe uma abundância de mão de obra à disposição do capital industrial.
Grandes massas da população saem em busca de condições de vida mais digna,
porém, os salários e as condições de trabalho são degradantes, enquanto o ritmo
de produção e de acumulação dispara.
Quanto às classes, proletária e capitalista, assim são descritas:
A primeira, mais numerosa, não dispunha de poder, mesmo porque, no
regime em que o Estado apenas assegurava, no plano teórico, a Igualdade
e a Liberdade, a classe capitalista, pela força do dinheiro, pela submissão,
pela fome, impunha ao proletariado a orientação que tinha de ser seguida
[...] as relações entre patrões e trabalhadores se constituíam dentro dos
muros de cada fábrica. Fora desta precinta estreita, deste pequeno
território comum, as duas classes – a rica e a trabalhadora – viviam tão
separadas, tão distantes, tão indiferentes, como se habitassem países
distintos ou se achassem divididas por barreiras intransponíveis. Criava-
8
GUIMARÃES, Marcelo Rezende; GÖRGEN, Sérgio (Orgs.). Ensino Social da Igreja. Desafio às
comunidades. Petrópolis: Vozes, 1992.
9
Nas encíclicas sociais encontramos vários direitos na seara trabalhista como, por exemplo: o direito
a uma justa remuneração (Laborem Exercens, 19); o direito ao repouso (Laborem Exercens, 19); o
direito “a dispor de ambientes de trabalho e de processos de laboração que não causem dano à
saúde física dos trabalhadores nem lesem a sua integridade moral” (Laborem Exercens, 19); o
direito a ver salvaguardada a própria personalidade no lugar do trabalho, “sem serem violados seja
de que modo for na própria consciência ou dignidade” (Centesimus Annus, 15); o direito a
convenientes subvenções indispensáveis para a subsistência dos trabalhadores desempregados e
das suas famílias (Laborem Exercens, 18); o direito à pensão, bem como ao seguro para a velhice,
para a doença e para o caso de acidentes de trabalho (Laborem Exercens, 19); o direito a
disposições sociais referentes à maternidade (Laborem Exercens, 19); o direito de reunir-se e de
associar-se (RN, 11, Quadragesimo Anno 23, Gaudium et Spes, 68, Laborem Exercens 20,
Centesimus Annus 7).
se o contraste flagrante e violento entre o supermundo dos ricos e o
inframundo dos pobres. (VIANA, 2005, p. 34).
Constata-se nesse período grande mobilidade do trabalhador, visto que a
maior quantidade de mão de obra procedia do campo para a cidade. Nesse sentido,
assim descreve Nascimento:
As estimativas são de que, até o ano de 1900, cinco milhões de homens
trabalhavam para conquistar as riquezas ocultas da terra, assim
distribuídos: 900.000 na Grã-Bretanha, 500.000 na Alemanha, quase
outro tanto nos Estados Unidos, 300.000 na França, 230.000 na Rússia e
Áustria-Hungria, 160.000 na Bélgica e Índia, 120.000 no Japão e 100.000
no sul da África. (NASCIMENTO, 2012, p. 40).
Portanto, tem-se com a fábrica um aglomerado de operários cuja situação
é flagrante no que diz respeito às condições mínimas de segurança, saúde, higiene,
moradia, salário, etc. Ademais, para o empregador o momento é propício para
impor excessivas horas de trabalho e explorar mão de obra de mulheres e crianças.
José Jobson de Andrade Arruda (1994, p. 69) também aborda que muitas
crianças eram contratadas em algumas paróquias e entregues para reduzir suas
despesas e ainda para pagamento de impostos. Além disso, “sua debilidade física
era garantia de docilidade, recebendo apenas entre 1/3 e 1/6 do pagamento
dispensado a um homem adulto e, muitas vezes, recebiam apenas alojamento e
alimentação” (ARRUDA, 1994, p. 69).
Além dos menores, as mulheres serviam como mão de obra barata,
bastante utilizada nas minas, fábricas de cerâmica, tecelagem, fábricas
metalúrgicas, sendo exploradas nas longas horas de trabalho e vivendo em
situação degradante.
A Encíclica RN traz à tona a real situação dos trabalhadores, principalmente
no tocante à sua dignidade. Por isso, revela-se como um avanço na área
trabalhista.
Um fator importante que desafia a Igreja a se pronunciar, refere-se às
condições criadas pela, então, recente revolução industrial e pela gravidade
crescente da chamada “questão social”.10 A ideologia liberal capitalista e o sistema
de mercado haviam provocado a exploração e o empobrecimento radical de
grandes massas da população. Verifica-se um extraordinário crescimento
econômico, provocando uma verdadeira revolução moderna, mas nas mãos das
classes altas da nova sociedade, à custa de condições cada vez mais infra-
humanas, gerando miséria e marginalização da grande maioria da classe operária
nascente.
10
Poderíamos evocar outros fatores que levaram a Igreja se pronunciar, porém, não é o caso da presente
pesquisa. Como exemplo o teólogo Agenor Brighenti vai dizer que é preciso evocar um segundo fator que vai
desafiar o pronunciamento da Igreja. É o fato de que a Igreja encontra mais perspectivas de ação no campo
social do que no campo político. Os católicos do século XIX abominam o novo modelo político nascido da
Revolução Francesa. A ideia é voltar à ordem antiga (cf. BRIGHENTI, Agenor. A identidade e o patrimônio
histórico da doutrina social da Igreja. ITESC: Florianópolis, 2002, p. 70-71). Embora a cristandade já tivesse
sido rompida internamente em seus princípios sociais pelo Humanismo e pela Renascença, em suas bases
religiosas pela Reforma Protestante e em seus fundamentos científicos pelo aparecimento das novas ciências,
externamente ela só será rompida pela Revolução Francesa. O “cristão” deixa de ser sinônimo de “cidadão”.
Mesmo que a Igreja continue a reivindicar para si o direito de dirigir a construção da sociedade civil, o mundo
moderno, que nascia fora da Igreja e contra ela, não podia mais aceitar essa visão (Idem, p. 34).
Percebe-se que o pensamento social católico é sintetizado na RN, pois a
partir dela há uma motivação paulatina constituída para preservar a dignidade da
pessoa humana do trabalhador, conforme defende Costa (1995, p. 591-594).
O pano de fundo da encíclica é constituído por graves distorções sociais.
O lucro é o motor da economia. Como forças desiguais, patrões e operários lutam
por seus interesses e, em tais condições assimétricas, instala-se a lei do mais forte.
Olhando o conteúdo da encíclica, o Papa, já na introdução, parte do
reconhecimento de que os avanços modernos levaram os operários a uma
profunda miséria (n.1). Tenta demonstrar de forma apologética, que o socialismo
não é a solução mais adequada para o problema social (n.2), pois prejudica os
próprios operários (n.3), é uma injustiça, pois o direito de propriedade provém da
lei natural (n.4-9), é contrário aos deveres do Estado (n.10) e perturba a paz social
(n.11).
Feito isso, expõe algumas soluções para o problema social, onde a Igreja
oferece (n.12) sua doutrina (n.13), sua orientação sobre a vida e os costumes (n.
14-19), sua ação direta em favor dos proletários (n. 20-22). O Estado também
contribui partindo de uma correta concepção de Estado (n. 23-26), se enumeram
os principais campos de atuação do mesmo e se propicia sua intervenção na
economia (n. 26-33). Quanto à contribuição dos operários, expõe-se o fundamento
do direito de associação (n.34-35) e se descrevem as associações operárias
católicas (n. 36-40).
Em síntese, diante da crescente miséria dos operários, a Igreja propõe a
“manutenção da ordem social vigente, mediante uma estreita colaboração entre
Igreja/Estado e as classes em conflito” (BRIGHENTI, 2002, p. 74).
Percebe-se que o ponto central da polêmica da Igreja com o socialismo é
a propriedade. Também se opõe ao liberalismo, sendo um dos pontos divergentes
o papel do Estado, sendo que este deve defender a propriedade e os mais
necessitados. Uma das formas de defesa é velar para que os salários não sejam
estabelecidos somente de acordo com o livre mercado (n.32).
Outro fator que reforça a ideia de intervir na questão social, citado por
Brighenti (2002, p. 58), é a posição do cardeal Gibbons, que leva a efeito uma série
de gestões para evitar uma condenação dos Knights of Labour, a primeira
organização operária americana que, em 1886, contava com 2.500.000
associados. Este sindicato foi fundado em 1869, sendo pluralista de trabalhadores,
não confessional e independente dos patrões. Exigia jornada de oito horas e a
trabalho igual, salário igual. Após alguns embates no interno da Igreja, “em 1888,
Roma declara que tolera essa associação não católica, uma posição inédita na
época e que aparecerá no texto final da RN” (BRIGHENTI, 2002, p. 59).
Encontra-se uma variedade de temas na encíclica, como: o salário, o valor
do trabalho, as obrigações dos operários e dos patrões, o descanso, a greve, a
proteção do trabalho da mulher e da infância, o papel do Estado, as associações,
etc.
Poderia discorrer sobre a variedade desses temas, porém, como já
observado, esse não é o objetivo do presente artigo.
Importa ressaltar que aparece uma preocupação humanitária e dá-se início
à fase do Constitucionalismo Social, onde as leis trabalhistas foram incluídas nas
Constituições de vários países marcados pelo fim da Primeira Guerra Mundial.
A constatação da degradação histórica vivenciada por muitos
trabalhadores ao longo dos anos, submetidos a condições sub-humanas, põe em
destaque a dignidade humana enquanto princípio fundamental no ordenamento
jurídico.
Com a RN, o Papa Leão XIII “conferiu à Igreja quase um ‘estatuto de
cidadania’ no meio das variáveis realidades da vida pública” (cf. Centesimus annus,
n.5). Ainda, afirmou que os graves problemas sociais “só podiam ser resolvidos
pela colaboração entre todas as forças intervenientes” (cf. CA, 60) e acrescentou:
“quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte” (cf, RN 11
e CA 56).
11
SILVA, Ildete Regina Vale da; BRANDÃO Paulo de Tarso. Constituição e Fraternidade. O valor
Normativo do Preâmbulo da Constituição. Curitiba: Juruá, 2015.
12
BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O Princípio Esquecido/1. Tradução de Durval Cordas, Iolanda
Gaspar e José Maria de Almeida. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008.
pessoas humanas. O pertencimento à espécie Humana é o
primeiro vínculo que se estabelece entre pessoas humanas,
motivo que faz (e deve fazer) gerar a ação recíproca. E, é
através desse primeiro vínculo comum que as pessoas
humanas se reconhecem iguais nas suas diferenças, na
organização da convivência Política e da vida em Sociedade,
fazendo nascer a responsabilidade de uns para com os
outros, independentemente de identidades e pertencimentos
a classes ou nacionalidades (p. 111).
13
STF. Supremo Tribunal Federal. ADPF: 186 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Data
de Julgamento: 26/04/2012. Data de Publicação: DJe 20/10/2014. Outros julgados significativos do
Ministro Gilmar Mendes são da ADPF 811 e o HC 82.424.
14
BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum,
2007, p.98. No julgamento da ADI 4277 Ayres Britto fala de “constitucionalismo fraternal”.
encíclica Fratelli Tutti,15 sobre a fraternidade e a amizade social, tendo como
inspiração São Francisco de Assis16, o irmão de todas as criaturas.
Com o mundo desnorteado pela pandemia de Covid-19, Francisco pede
uma nova economia e uma nova política para esse mundo doente. Critica o
neoliberalismo como mortal e desumano.
É uma carta aberta, contribuindo para reflexão e convidando-nos para a
vivência da fraternidade. Faz uma retomada dizendo que durante décadas pareceu
que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos, caminhando para
várias formas de integração, mas, do contrário, a história dá sinais de regressão.
Vai lembrar que “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas
não nos faz irmãos” (Caritas in Veritate, n. 19).
O Papa menciona que “encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste
mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e fragiliza a dimensão
comunitária da existência” (FT n. 12). Ao mesmo tempo, favorece uma perda do
sentido da história, onde denomina “o fim da consciência história” (n. 13) onde a
liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero, deixando de pé somente
a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de
individualismo sem conteúdo.
Fala de um contexto de jovens vazios, desenraizados e desconfiados de
tudo, ou seja, uma nova forma de colonização cultural. Vencer se torna sinônimo
de destruir. Precisamos construir um “nós” nessa cultura vazia, fixada no imediato
e sem um projeto comum. Reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros
(n. 27) e “reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha de uma
profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar
que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo
barco” (n. 30).
Vive-se uma obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade. O Papa chega
a dizer que “entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma”
(n.31).
Com todos os acontecimentos na passagem da pandemia diz Francisco
que
a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a
descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que
construímos os nossos programas, os nossos projetos, os
nossos hábitos e prioridade (n. 32). Alimentamo-nos com
sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer
distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de
conexões e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o
resultado rápido e seguro, e nos encontramos oprimidos pela
15
Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Papa Francisco. São
Paulo: Paulus, 2020.
16
São Francisco de Assis (1182-1226). De família rica de comerciante e de uma vida boêmia sente-
se chamado por Deus e vai viver fora dos muros da cidade, junto aos leprosos. A Fraternidade foi
seu projeto de vida. Uma fraternidade aberta, estendida a todas as criaturas.
impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade,
perdemos o gosto e o sabor da realidade (n. 33).
Lembra o Papa na sua reflexão de que é difícil pensar que esse desastre
não tenha a ver com nossa maneira de encarar a realidade. Esquecemos as lições
da história, que o outro tem a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer
pessoa. Assim vai expressar:
As relações digitais, que dispensam o empenho de cultivar
uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso
que amadurece com o tempo, têm aparência de
sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um
“nós”; na verdade, habitualmente dissimulam a ampliam o
mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no
desprezo às pessoas mais fragilizadas” (n. 43).
Ao relatar desafios atuais, coloca que o desafio das relações é a
perspectiva de fundo – Caim elimina o seu irmão Abel, e ressoa a pergunta de
Deus: Onde está Abel, teu irmão? A resposta “Acaso sou guarda do meu irmão?
(n. 57).
Fraterno significa irmão e, como constatamos, a Constituição busca
construir uma sociedade fraterna.
Ao abordar a expressão Sociedade fraterna, Ildete e Paulo sugerem que a
palavra irmão vai além das relações privadas. Assim descrevem:
1 – ninguém, nenhuma pessoa humana é irmão de si próprio;
se irmão, é sempre irmão de outra(o), isso se constitui um
fato, uma realidade social reconhecida e uma relação
estabelecida;
2 – naturalmente, os irmãos não podem ser escolhidos, mas
podem ser reconhecidos: isso se constitui um fato, uma
realidade social que pode ser reconhecida e uma relação de
reciprocidade que pode ser estabelecida;
3 – outro(s) irmão(s) existe(m), independentemente de
ser(em) meu(s) irmão(s), ou seja, independentemente de que
eu o(s) reconheça como irmão(s): isso também é um fato,
uma realidade social que deve ser reconhecida e uma
relação de sociabilidade que deve ser estabelecida (p.130).
Isso para dizer que ser irmão é preciso de dois, ou seja, da existência do
outro.
Diz Francisco que é preciso “reconhecer a tentação que nos cerca de nos
desinteressar pelos outros, especialmente pelos mais frágeis” (n. 64). Como
estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está
mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos
problemas alheios. São sintomas de uma sociedade enferma, pois procura
construir-se de costas para o sofrimento” (n. 65)
Nesse sentido, propõe como reflexão a parábola do Bom Samaritano (em
Lucas, capítulo 10, versículos 25-37), parábola essa que qualquer um de nós pode
se deixar interpelar. É um ícone iluminador, uma opção fundamental para
reconstruir nosso mundo ferido.
Ao propor essa parábola, o Papa lembra a atual tendência de reivindicar
direitos individuais “que esconde uma concepção de pessoa humana separada de
todo o contexto social e antropológico, quase como uma “mônada” (monás) cada
vez mais insensível” (n. 111).
Retoma a importância de querer o bem do outro, pois
Descartamos a ética, a honestidade, a bondade. Precisamos
garantir a transmissão de valores. Invocar a solidez –
solidariedade. O serviço nunca é ideológico, dado que não
servimos ideias, mas pessoas (n. 115). Relativismo, vai
lembrar que “não podemos pensar que os programas
políticos ou a força da lei sejam suficientes (...) quando é a
cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer
verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente
válidos, as leis só se poderão entender como imposições
arbitrárias e obstáculos a evitar (LS, n. 123).
Essa encíclica social retoma a palavra “cultura” como um modo de viver
que caracteriza aquele grupo humano (216). Faz um apelo de que “não podemos
permitir que a geração atual e as novas gerações percam a memória do que
aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais
justo e fraterno” (n. 248).
A raiz da palavra cultura está nas raízes da língua semítica “kelt” = ato de
revolver a terra com o instrumento do trabalho. Lembra cultivar, transformar,
fecundar, plantar, colher. É tudo aquilo que um grupo desenvolve para viver,
sobreviver, conviver, interpretar e dar sentido.
Eis o desafio da construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos.
REFERÊNCIAS