Você está na página 1de 15

FRATERNIDADE: ATÉ QUANDO A DEIXAREMOS NA PENUMBRA,

ADORMECIDA?

UMA VOLTA ÀS FONTES

Luzia Pereira1

“ A vida é a arte do encontro,


embora haja tanto desencontro na vida”
(Vinícius de Moraes, “Samba da Bênção”).

Resumo. O tema da Fraternidade carece de um despertar, principalmente nesse contexto de pós


pandemia da Covid-19, quando parecia que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e
fracassos, mas ao contrário, a história dá sinais de regressão. As promessas da modernidade não
se cumpriram e os direitos fundamentais decorrentes da Fraternidade carecem de novas soluções
jurídicas para a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais. O cenário atual clama por uma
nova forma de vida. Daí a urgência de voltar às fontes, reavivar a memória que estimula a construção
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. É possível dialogar com outras fontes. A
Doutrina Social da Igreja Católica, por meio de suas encíclicas, apela para que a Fraternidade seja
empregada na reconstrução da sociedade, cada vez mais globalizada, que dissolve a consciência
histórica e não nos faz irmãos, apenas vizinhos. Há uma evolução tanto no pensamento social da
Igreja Católica quanto na Constituição Federal de 1988, colocando em evidência um ponto
emergente: a dignidade humana. Os programas políticos e a força da lei, por si, não são capazes
de garantir as promessas feitas. A Fraternidade tem como perspectiva de fundo as relações e, diante
do cenário atual, aponta como uma proposta de vida. A Fraternidade não pode ser imposta, mas
testemunhada, incluindo novas soluções jurídicas quando adotada como critério interpretativo do
nosso ordenamento jurídico, conciliando os extremos da liberdade e da igualdade e resultando numa
maior efetividade na garantia dos direitos fundamentais.

Palavras-chave. Fraternidade. Doutrina Social da Igreja. Constituição Federal.


Forma de Vida.

INTRODUÇAO

Na visita às fontes celebra-se no dia 15 de maio de 2023 132 anos da


Encíclica Rerum Novarum, documento que impulsionou uma série de outros na
chamada Doutrina Social da Igreja Católica e considerado um dos marcos na
história do Direito do Trabalho.
Memória essa necessária, pois o presente artigo busca aproximar o diálogo
da Teologia com o Direito colhendo as contribuições no tocante à FRATERNIDADE,
palavra essa tão cara à Doutrina Social da Igreja e à Constituição Federal de 1988.
O contexto atual favorece uma perda do sentido da história, ou seja,
esvazia de sentido ou manipula as “grandes” palavras como, por exemplo,
democracia, trabalho, liberdade, justiça, fraternidade, unidade.
Reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros, como proclamou o
Papa Francisco, e precisamos de uma constante retomada a fim de construirmos
pontes ao invés de muros.

1
Advogada. Graduada em Teologia pela PUC-PR e Direito pela Universidade do Vale do Itajaí-
Univali. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito
Damásio de Jesus. Endereço eletrônico: pereira12luli@gmail.com
Frente a isso opta-se por não virar a página no sentido de revisitar a
história, abordando a Doutrina Social da Igreja Católica, notadamente a primeira
Encíclica, que é a Rerum Novarum de Leão XIII escrita em 1891, a qual dá impulso
a uma série de encíclicas no campo social e, a última, chamada Fratelli Tutti, escrita
em 2020 pelo Papa Francisco, cujo pontificado é marcado pelas questões sociais.
A Fraternidade tem grande força para a correta aplicação do Direito, pois
toca nas questões que envolvem relações recíprocas e é capaz de nortear o
ordenamento jurídico, incluindo as relações laborais. Como direito fundamental
clama por maior efetividade, antes, pelo despertar do sono profundo.
Há um constante clamor por uma intervenção e um dever de salvaguardar
os direitos sociais e individuais num contexto de exploração e, consequente
preocupação humanitária, carecendo de um novo modo de vida, reflexo de uma
sociedade fraternal.
Busca-se um diálogo aproximado das fontes que poderá jorrar em novas
soluções jurídicas a uma mesma questão, porém com novo olhar.
O Papa Francisco tem testemunhado um diálogo aberto, contribuindo para
a reflexão do cenário atual, no qual lembra que “não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes” (Laudato Si, n. 123).
Se não é possível obrigar ninguém a viver a Fraternidade, ela poderá ser
invocada e testemunhada na aplicação criativa da norma, como força viva geradora
de equilíbrio na arte de aprender a conviver com o outro, que é o outro eu, com
quem compartilho temporariamente o espaço na mesma casa comum.

VOLTAR ÀS FONTES – SUPERAR A TENTAÇÃO DE VIRAR A PÁGINA PARA


NÃO ESQUECER AS LIÇÕES DA HISTÓRIA

As promessas da modernidade na tríade Liberdade, Igualdade e


Fraternidade não se cumpriram.
Há clamores na história que são muito difíceis de suportar. Como gritos em
dores de parto, pois são geradores de novas conquistas. Por isso a importância em
revisitar a história, fazer memória.
Opta-se pela memória de um dos marcos na seara trabalhista, que é a
encíclica Rerum Novarum escrita em 1891. Não de forma exaustiva, pois não é o
objetivo, mas trazendo elementos que demonstram a valoração à humanização e
o anseio por uma convivência e sobrevivência minimamente digna, dando à
Fraternidade o valor de direito fundamental.
A Rerum Novarum é o documento basilar da Doutrina Social da Igreja
Católica, um compilado de encíclicas publicadas ao longo dos anos, sendo as duas
últimas pelo Papa Francisco, cujo pontificado é marcado pelo social. 2

2
O patrimônio histórico da Doutrina Social da Igreja é composto de doze Encíclicas Sociais, a saber:
Rerum Novarum – a condição dos operários – Leão XIII, de 1891; Quadragesimo Anno – a
restauração e aperfeiçoamento da ordem social – Pio XI, de 1931; Mater et Magistra – a recente
evolução da questão social – João XXIII, de 1961; Pacem in Terris – paz na terra – João XXIII, de
1963; Populorum Progressio – o desenvolvimento dos povos – Paulo VI, de 1967; Octogésima
A Igreja Católica não deixou de se pronunciar sobre questões da vida
social. Hoje se fala de um “corpo de doutrina” que, a partir da Encíclica Rerum
Novarum3 de Leão XIII escrita em 1891, vai tomando forma, sistematizando assim
um conjunto de princípios, critérios de juízo e diretrizes de ação que o Magistério
da Igreja Católica4 vem estabelecendo.
A doutrina social da Igreja é parte integrante da fé e experiência acumulada
pelos cristãos através dos séculos.
A Igreja assume posições históricas diante da problemática de cada época.
Significa que responde a perguntas que surgem naquele determinado contexto
histórico e que, para cada época, a novas questões e novas respostas.
Há várias formas de abordar esse patrimônio.5 Brighenti aponta quatro
chaves de leitura: 1ª Chave- Nas origens da Doutrina Social da Igreja: a passagem
de uma sociedade antiga à moderna; 2ª Chave- A Doutrina Social da Igreja diante
do Liberalismo, do Socialismo e dos Totalitarismos; 3ª Chave- O novo lugar da
Igreja na sociedade; 4ª Chave- A Doutrina Social da Igreja diante do pluralismo e
do empobrecimento. Dois são os grandes desafios apresentados: o pluralismo e a
secularidade; a pobreza e a marginalização (BRIGHENTI, 2002, p. 69-104).
Encontramos várias definições para o ensino social da Igreja tiradas de seu
próprio corpo doutrinal, porém priorizamos algumas, entre elas, a da Encíclica de
João Paulo II ao falar da Solicitude Social da Igreja, que diz que “a Doutrina Social
da Igreja é um conjunto de princípios de reflexão, critérios de juízo e diretrizes de
ação, orientados à conduta moral”. (JOÃO PAULO II, 1993, p. 391).
Outra definição nessa mesma linha, colocada à disposição também
daqueles que não são católicos, encontra-se no documento da Congregação para
a Educação Católica6 (1993, p. 523) quando diz ser:
Um conjunto de ensinamentos oferecidos pelo Magistério da Igreja, não
somente aos fiéis, mas também a todos os homens de boa vontade, para
iluminar com o Evangelho o caminho comum para o desenvolvimento e a
libertação integral do homem.
Para Brighenti, definição essa que assumimos:
A Doutrina Social da Igreja é o conjunto sistemático de princípios de
reflexão, critérios de juízo e diretrizes de ação, que o Magistério da Igreja

Adveniens – necessidades de um mundo em transformação – Paulo VI, de 1971; Laborem Exercens


– o trabalho humano – João Paulo II, de 1981; Sollicitudo Rei Socialis – solicitude social da Igreja –
João Paulo II, de 1987; Centesimus Annus – centenário da Rerum Novarum – João Paulo II, de
1991; Caritas in Veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade –
Bento XVI, de 2009; Laudato Si, 2015, sobre o cuidado da casa comum e Fratelli Tutti, de 2020,
sobre a Fraternidade, ambas do Papa Francisco.
3
De ora em diante utilizar-se-á a sigla RN toda vez que fizer referência à encíclica Rerum Novarum.
4
Refere-se à autoridade da Igreja - Papa e Bispos -, que tem a função de interpretar autenticamente
a Palavra de Deus escrita ou transmitida.
5
O teólogo Agenor Brighenti utiliza chaves ou referencial histórico ou temático, pois permite
perceber a evolução de uma encíclica para outra. In BRIGHENTI, Agenor. A identidade e o
patrimônio da doutrina social da igreja. Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.
6
CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações para o Estudo e o Ensino da
Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal, n. 65. In: Encíclicas e Documentos Sociais. Vol.
2. São Paulo: LTr, 1993.
Católica estabelece, fundando-se no Evangelho e na reta razão, a partir
da análise dos problemas sociais de cada época, a fim de ajudar as
pessoas, comunidades e governantes a construir uma sociedade mais
conforme a manifestação do Reino de Deus e, portanto, mais
autenticamente humana. (BRIGHENTI, 2002, p. 10).
Esse mesmo autor vai desenvolver seus elementos constitutivos, ou seja,
os princípios de reflexão, os critérios de juízo e as diretrizes de ação.7
Os princípios de reflexão são aqueles que não devem faltar na Doutrina
Social, ou seja, a pessoa humana é fundamento, causa e fim de todas as
instituições sociais; tem uma dignidade, pois é ser inteligente e livre, que faz dela
sempre um fim e nunca um meio; tem direitos fundamentais que emanam de sua
própria natureza e que são universais, invioláveis e inalienáveis; tem necessidade
de vida social; o bem comum deve ser considerado como a própria razão de existir
dos poderes públicos; a solidariedade e a subsidiariedade são princípios que
devem regular a vida social; a participação de todos assegura a realização das
exigências éticas da justiça social; todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos fundamentais; e o destino universal dos bens.
Os critérios de juízo são formulados a partir do conhecimento da realidade
e da contribuição das ciências e, como essas não são neutras, há sempre o risco
da influência ideológica. Além disso, leva em conta os valores fundamentais tais
como a caridade e o amor cristão, a verdade, a liberdade, a justiça, a solidariedade
e a paz. O QUE É AMOR CRISTÃO?

Enquanto saber teórico-prático, a Doutrina Social trata de uma ação de


presença, diálogo e serviço, como o respeito à dignidade da pessoa humana, a
ação em colaboração com todas as forças vivas, a luta em favor da justiça e da
solidariedade e a formação de pessoas para o compromisso social (BRIGHENTI,
2002, p. 17-20).
Ao tratar da questão social, a Igreja sente sua tarefa de dizer algo, imposto
pela própria consciência do cargo assumido, chegando à conclusão de que
“calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever” (RN, n. 10).
Para GUIMARÃES e GÖRGEN:
Fazer uma opção de fé cristã sem assumir um compromisso social na linha
da busca da justiça, da solidariedade, da supressão das situações de
miséria, da justa distribuição dos bens, da defesa da vida, da opção pelos
pobres, da organização dos trabalhadores em defesa de seus direitos

7
No conceito de Brighenti temos a categoria ‘Reino de Deus’ que é a mensagem de Jesus de
Nazaré. Esse conceito e, mesmo, a recuperação do Jesus histórico devem-se muito aos teólogos
da Teologia da Libertação, situando Jesus num contexto profundamente marcado pela exclusão e
diferenças sociais, onde a própria religião, através de seus representantes, ajudava a legitimar as
desigualdades e opressões passando uma imagem distorcida, irreal de Deus. O teólogo José
Comblin vai dizer que os dominadores inventaram uma teologia cínica em que os sofrimentos dos
pobres são positivos porque por meio dos sofrimentos dos pobres merecem uma eternidade feliz no
céu depois da morte. O sofrimento na vida presente seria um privilégio porque, graças a ele, os
pobres teriam um lugar privilegiado no céu. Foi uma teologia blasfematória que ainda é invocada
pelos dominadores para justificar os sofrimentos que infligem aos pobres. Outros são mais bondosos
e entendem que os pobres existem para que possamos ajudá-los com as nossas esmolas. No fundo,
esta explicação é tão cínica como a outra apesar de uma aparência mais humana (cf. COMBLIN,
José. O pobre: critério para a profecia. In: Pedro A. Ribeiro de Oliveira (org). Opção pelos pobres no
século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 181-201).
fundamentais, é uma opção de fé incompleta, capenga, insuficiente.
(GUIMARÃES e GÖRGEN, 1992, p. 26-27).8
Faz parte da própria história do Povo de Deus o compromisso social
assumido em consequência da fé. A raiz está na Palavra de Deus, que tem sua
marca histórica no êxodo, quando um grupo de trabalhadores forçados se liberta
da opressão no Egito e segue rumo à terra prometida, ou seja, à construção de
uma sociedade baseada na partilha e não na acumulação, na descentralização do
poder e na religião a serviço do povo.
Em 1891, frente à situação de miséria dos trabalhadores causada pelo
rápido desenvolvimento industrial, o Papa Leão XIII lança a encíclica RN. 9 A
intenção não é um estudo aprofundado desta encíclica, mas relembrar alguns
pontos.
A Revolução Industrial ocasiona a chamada questão social, uma vez que
surge uma série de problemas sociais impactados pelos novos modos de produção
trazidos pela indústria e, com ela, as novas formas de produção, exigindo a divisão
do trabalho e a especialização. Somada ao surgimento do proletariado levam a
Igreja a tomar uma posição em matéria social. Ao falar das causas do conflito, a
RN cita “o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram um
quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que se impõem assim um
jugo quase servil à imensa multidão de proletários” (n.2).
Existe uma abundância de mão de obra à disposição do capital industrial.
Grandes massas da população saem em busca de condições de vida mais digna,
porém, os salários e as condições de trabalho são degradantes, enquanto o ritmo
de produção e de acumulação dispara.
Quanto às classes, proletária e capitalista, assim são descritas:
A primeira, mais numerosa, não dispunha de poder, mesmo porque, no
regime em que o Estado apenas assegurava, no plano teórico, a Igualdade
e a Liberdade, a classe capitalista, pela força do dinheiro, pela submissão,
pela fome, impunha ao proletariado a orientação que tinha de ser seguida
[...] as relações entre patrões e trabalhadores se constituíam dentro dos
muros de cada fábrica. Fora desta precinta estreita, deste pequeno
território comum, as duas classes – a rica e a trabalhadora – viviam tão
separadas, tão distantes, tão indiferentes, como se habitassem países
distintos ou se achassem divididas por barreiras intransponíveis. Criava-

8
GUIMARÃES, Marcelo Rezende; GÖRGEN, Sérgio (Orgs.). Ensino Social da Igreja. Desafio às
comunidades. Petrópolis: Vozes, 1992.
9
Nas encíclicas sociais encontramos vários direitos na seara trabalhista como, por exemplo: o direito
a uma justa remuneração (Laborem Exercens, 19); o direito ao repouso (Laborem Exercens, 19); o
direito “a dispor de ambientes de trabalho e de processos de laboração que não causem dano à
saúde física dos trabalhadores nem lesem a sua integridade moral” (Laborem Exercens, 19); o
direito a ver salvaguardada a própria personalidade no lugar do trabalho, “sem serem violados seja
de que modo for na própria consciência ou dignidade” (Centesimus Annus, 15); o direito a
convenientes subvenções indispensáveis para a subsistência dos trabalhadores desempregados e
das suas famílias (Laborem Exercens, 18); o direito à pensão, bem como ao seguro para a velhice,
para a doença e para o caso de acidentes de trabalho (Laborem Exercens, 19); o direito a
disposições sociais referentes à maternidade (Laborem Exercens, 19); o direito de reunir-se e de
associar-se (RN, 11, Quadragesimo Anno 23, Gaudium et Spes, 68, Laborem Exercens 20,
Centesimus Annus 7).
se o contraste flagrante e violento entre o supermundo dos ricos e o
inframundo dos pobres. (VIANA, 2005, p. 34).
Constata-se nesse período grande mobilidade do trabalhador, visto que a
maior quantidade de mão de obra procedia do campo para a cidade. Nesse sentido,
assim descreve Nascimento:
As estimativas são de que, até o ano de 1900, cinco milhões de homens
trabalhavam para conquistar as riquezas ocultas da terra, assim
distribuídos: 900.000 na Grã-Bretanha, 500.000 na Alemanha, quase
outro tanto nos Estados Unidos, 300.000 na França, 230.000 na Rússia e
Áustria-Hungria, 160.000 na Bélgica e Índia, 120.000 no Japão e 100.000
no sul da África. (NASCIMENTO, 2012, p. 40).
Portanto, tem-se com a fábrica um aglomerado de operários cuja situação
é flagrante no que diz respeito às condições mínimas de segurança, saúde, higiene,
moradia, salário, etc. Ademais, para o empregador o momento é propício para
impor excessivas horas de trabalho e explorar mão de obra de mulheres e crianças.
José Jobson de Andrade Arruda (1994, p. 69) também aborda que muitas
crianças eram contratadas em algumas paróquias e entregues para reduzir suas
despesas e ainda para pagamento de impostos. Além disso, “sua debilidade física
era garantia de docilidade, recebendo apenas entre 1/3 e 1/6 do pagamento
dispensado a um homem adulto e, muitas vezes, recebiam apenas alojamento e
alimentação” (ARRUDA, 1994, p. 69).
Além dos menores, as mulheres serviam como mão de obra barata,
bastante utilizada nas minas, fábricas de cerâmica, tecelagem, fábricas
metalúrgicas, sendo exploradas nas longas horas de trabalho e vivendo em
situação degradante.
A Encíclica RN traz à tona a real situação dos trabalhadores, principalmente
no tocante à sua dignidade. Por isso, revela-se como um avanço na área
trabalhista.
Um fator importante que desafia a Igreja a se pronunciar, refere-se às
condições criadas pela, então, recente revolução industrial e pela gravidade
crescente da chamada “questão social”.10 A ideologia liberal capitalista e o sistema
de mercado haviam provocado a exploração e o empobrecimento radical de
grandes massas da população. Verifica-se um extraordinário crescimento
econômico, provocando uma verdadeira revolução moderna, mas nas mãos das
classes altas da nova sociedade, à custa de condições cada vez mais infra-
humanas, gerando miséria e marginalização da grande maioria da classe operária
nascente.

10
Poderíamos evocar outros fatores que levaram a Igreja se pronunciar, porém, não é o caso da presente
pesquisa. Como exemplo o teólogo Agenor Brighenti vai dizer que é preciso evocar um segundo fator que vai
desafiar o pronunciamento da Igreja. É o fato de que a Igreja encontra mais perspectivas de ação no campo
social do que no campo político. Os católicos do século XIX abominam o novo modelo político nascido da
Revolução Francesa. A ideia é voltar à ordem antiga (cf. BRIGHENTI, Agenor. A identidade e o patrimônio
histórico da doutrina social da Igreja. ITESC: Florianópolis, 2002, p. 70-71). Embora a cristandade já tivesse
sido rompida internamente em seus princípios sociais pelo Humanismo e pela Renascença, em suas bases
religiosas pela Reforma Protestante e em seus fundamentos científicos pelo aparecimento das novas ciências,
externamente ela só será rompida pela Revolução Francesa. O “cristão” deixa de ser sinônimo de “cidadão”.
Mesmo que a Igreja continue a reivindicar para si o direito de dirigir a construção da sociedade civil, o mundo
moderno, que nascia fora da Igreja e contra ela, não podia mais aceitar essa visão (Idem, p. 34).
Percebe-se que o pensamento social católico é sintetizado na RN, pois a
partir dela há uma motivação paulatina constituída para preservar a dignidade da
pessoa humana do trabalhador, conforme defende Costa (1995, p. 591-594).
O pano de fundo da encíclica é constituído por graves distorções sociais.
O lucro é o motor da economia. Como forças desiguais, patrões e operários lutam
por seus interesses e, em tais condições assimétricas, instala-se a lei do mais forte.
Olhando o conteúdo da encíclica, o Papa, já na introdução, parte do
reconhecimento de que os avanços modernos levaram os operários a uma
profunda miséria (n.1). Tenta demonstrar de forma apologética, que o socialismo
não é a solução mais adequada para o problema social (n.2), pois prejudica os
próprios operários (n.3), é uma injustiça, pois o direito de propriedade provém da
lei natural (n.4-9), é contrário aos deveres do Estado (n.10) e perturba a paz social
(n.11).
Feito isso, expõe algumas soluções para o problema social, onde a Igreja
oferece (n.12) sua doutrina (n.13), sua orientação sobre a vida e os costumes (n.
14-19), sua ação direta em favor dos proletários (n. 20-22). O Estado também
contribui partindo de uma correta concepção de Estado (n. 23-26), se enumeram
os principais campos de atuação do mesmo e se propicia sua intervenção na
economia (n. 26-33). Quanto à contribuição dos operários, expõe-se o fundamento
do direito de associação (n.34-35) e se descrevem as associações operárias
católicas (n. 36-40).
Em síntese, diante da crescente miséria dos operários, a Igreja propõe a
“manutenção da ordem social vigente, mediante uma estreita colaboração entre
Igreja/Estado e as classes em conflito” (BRIGHENTI, 2002, p. 74).
Percebe-se que o ponto central da polêmica da Igreja com o socialismo é
a propriedade. Também se opõe ao liberalismo, sendo um dos pontos divergentes
o papel do Estado, sendo que este deve defender a propriedade e os mais
necessitados. Uma das formas de defesa é velar para que os salários não sejam
estabelecidos somente de acordo com o livre mercado (n.32).
Outro fator que reforça a ideia de intervir na questão social, citado por
Brighenti (2002, p. 58), é a posição do cardeal Gibbons, que leva a efeito uma série
de gestões para evitar uma condenação dos Knights of Labour, a primeira
organização operária americana que, em 1886, contava com 2.500.000
associados. Este sindicato foi fundado em 1869, sendo pluralista de trabalhadores,
não confessional e independente dos patrões. Exigia jornada de oito horas e a
trabalho igual, salário igual. Após alguns embates no interno da Igreja, “em 1888,
Roma declara que tolera essa associação não católica, uma posição inédita na
época e que aparecerá no texto final da RN” (BRIGHENTI, 2002, p. 59).
Encontra-se uma variedade de temas na encíclica, como: o salário, o valor
do trabalho, as obrigações dos operários e dos patrões, o descanso, a greve, a
proteção do trabalho da mulher e da infância, o papel do Estado, as associações,
etc.
Poderia discorrer sobre a variedade desses temas, porém, como já
observado, esse não é o objetivo do presente artigo.
Importa ressaltar que aparece uma preocupação humanitária e dá-se início
à fase do Constitucionalismo Social, onde as leis trabalhistas foram incluídas nas
Constituições de vários países marcados pelo fim da Primeira Guerra Mundial.
A constatação da degradação histórica vivenciada por muitos
trabalhadores ao longo dos anos, submetidos a condições sub-humanas, põe em
destaque a dignidade humana enquanto princípio fundamental no ordenamento
jurídico.
Com a RN, o Papa Leão XIII “conferiu à Igreja quase um ‘estatuto de
cidadania’ no meio das variáveis realidades da vida pública” (cf. Centesimus annus,
n.5). Ainda, afirmou que os graves problemas sociais “só podiam ser resolvidos
pela colaboração entre todas as forças intervenientes” (cf. CA, 60) e acrescentou:
“quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte” (cf, RN 11
e CA 56).

O PREAMBULO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A QUOTA PARTE DO PAPA


FRANCISCO

A ditadura militar no Brasil durou até 1985 e, na esteira da


redemocratização, temos a Constituição de 1988.
Colhe-se de seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL.

Os autores Ildete Regina Vale da Silva e Paulo de Tarso Brandão, na obra


Constituição e Fraternidade, buscam no jurista alemão Peter Häberle luzes para
uma teoria da Constituição Brasileira. Ao abordarem o preâmbulo e com base
nesse jurista, mencionam que é o que “se olha por primeiro, como uma vitrine”
(p.81).
Esses autores abordam aspectos históricos do esquecimento da
fraternidade. Na história da Revolução Francesa, o confronto entre a interpretação
da Fraternidade como uma conquista e Fraternidade recebida pela dádiva das
origens resultou na divisão e no enfraquecimento desse ideal. Assim descrevem:
Ainda que um dos motivos de a Fraternidade não ter
permanecido no cenário político tenha sido justamente suas
raízes cristãs, é oportuno lembrar que não só a Fraternidade
teve raízes no cristianismo, mas todos os princípios da
trilogia foram inseridos no circuito europeu pelos cristãos.
Inobstante, ela foi a única a “pagar a conta” quando os
iluministas buscaram fundamentar os três princípios na
cultura pagã pré-cristã (p.97).11
Nas palavras de Baggio (2008, p.9):
Liberdade e igualdade conhecem, assim, uma evolução que
as levou a se tornarem autênticas categorias políticas,
capazes de se manifestarem tanto como princípios
constitucionais quanto como ideias-força de movimentos
políticos. A ideia de fraternidade não teve a mesma sorte.12
Continuou o mesmo autor (2008, p.53):
O pensamento moderno desenvolveu a liberdade e a
igualdade como categorias políticas, mas não fez mesmo
com a fraternidade - embora esta seja o alicerce das outras
duas -, seja por fraqueza, por medo das implicações, seja
pela eclosão do conflito entre religião e modernidade, que
tornou particularmente cheio de obstáculos o terreno da
fraternidade. No entanto, a fraternidade é o princípio
regulador dos outros dois princípios: se vivida fraternalmente,
a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a igualdade
não degenera em igualitarismo opressor.

Atrelada à dificuldade em conceituar a fraternidade há uma tentativa de


substituí-la pela solidariedade, notadamente para afastar qualquer sentimento e
elemento religioso. Ademais, viu-se a solidariedade mais adequada à
jurisdicionalização e com aparência científica.
No entanto, a Fraternidade é mais ampla que a solidariedade. Segundo
Ildete e Paulo,
Os limites da palavra solidariedade podem ser facilmente
identificados no momento da ação. A ação na solidariedade
pressupõe, sempre, a ideia de necessidade e,
consequentemente, a sua verticalidade, própria de uma
Sociedade de classes. A verticalidade da necessidade –
sujeição de quem está abaixo para com quem está acima –
não contém a ideia da reciprocidade, tornando possível agir
com solidariedade sem que a ideia de intercâmbio se
estabeleça.
É justamente na ação que se percebe a mais relevante
distinção entre solidariedade e Fraternidade: a Fraternidade
estabelece uma dinâmica de reciprocidade na ação entre

11
SILVA, Ildete Regina Vale da; BRANDÃO Paulo de Tarso. Constituição e Fraternidade. O valor
Normativo do Preâmbulo da Constituição. Curitiba: Juruá, 2015.
12
BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O Princípio Esquecido/1. Tradução de Durval Cordas, Iolanda
Gaspar e José Maria de Almeida. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008.
pessoas humanas. O pertencimento à espécie Humana é o
primeiro vínculo que se estabelece entre pessoas humanas,
motivo que faz (e deve fazer) gerar a ação recíproca. E, é
através desse primeiro vínculo comum que as pessoas
humanas se reconhecem iguais nas suas diferenças, na
organização da convivência Política e da vida em Sociedade,
fazendo nascer a responsabilidade de uns para com os
outros, independentemente de identidades e pertencimentos
a classes ou nacionalidades (p. 111).

Dessa forma é possível re (propor) a tríade tendo a Fraternidade como


princípio, categoria, perspectiva e vivência.
O Ministro do STF, Gilmar Mendes, no julgamento da ADPF 186 MC/DF,
para manter o sistema de cotas para ingressar na Universidade de Brasília-UnB,
ressignifica a liberdade e a igualdade em conformidade a um direito fraterno. Nas
suas palavras inspira-se em Peter Häberle, e assim descreve:
No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser
(re)pensados segundo o valor fundamental da fraternidade.
Com isso quero dizer que a fraternidade pode constituir a
chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a
solução dos principais problemas hoje vividos pela
humanidade em tema de liberdade e igualdade.13
Trata-se de pensar em novas soluções jurídicas, novas possibilidade, uma
vez que a Fraternidade concilia os extremos da liberdade e da igualdade.
Ayres Britto14 menciona a importância da fraternidade na Constituição de
1988. Ensina que
A fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela
conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um
lado, e, de outro, da Igualdade. A comprovação de que,
também nos domínios do Direito e da Política, a virtude está
sempre no meio (medius in virtus). Com a plena
compreensão, todavia, de que não se chega à unidade sem
antes passar pelas dualidades.
O Papa Francisco retoma com força o tema da Fraternidade. Seu
pontificado, como já mencionado, é marcado pelo social e assim dá continuidade
no ensinamento social da Igreja, colocando-se sempre em diálogo com o mundo.
Quando a desigualdade tem avançado, escreve a Laudato Si, em 2015,
uma crítica ao consumismo e o cuidado da casa comum. Em 2020 escreveu a

13
STF. Supremo Tribunal Federal. ADPF: 186 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Data
de Julgamento: 26/04/2012. Data de Publicação: DJe 20/10/2014. Outros julgados significativos do
Ministro Gilmar Mendes são da ADPF 811 e o HC 82.424.
14
BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum,
2007, p.98. No julgamento da ADI 4277 Ayres Britto fala de “constitucionalismo fraternal”.
encíclica Fratelli Tutti,15 sobre a fraternidade e a amizade social, tendo como
inspiração São Francisco de Assis16, o irmão de todas as criaturas.
Com o mundo desnorteado pela pandemia de Covid-19, Francisco pede
uma nova economia e uma nova política para esse mundo doente. Critica o
neoliberalismo como mortal e desumano.
É uma carta aberta, contribuindo para reflexão e convidando-nos para a
vivência da fraternidade. Faz uma retomada dizendo que durante décadas pareceu
que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos, caminhando para
várias formas de integração, mas, do contrário, a história dá sinais de regressão.
Vai lembrar que “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas
não nos faz irmãos” (Caritas in Veritate, n. 19).
O Papa menciona que “encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste
mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e fragiliza a dimensão
comunitária da existência” (FT n. 12). Ao mesmo tempo, favorece uma perda do
sentido da história, onde denomina “o fim da consciência história” (n. 13) onde a
liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero, deixando de pé somente
a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de
individualismo sem conteúdo.
Fala de um contexto de jovens vazios, desenraizados e desconfiados de
tudo, ou seja, uma nova forma de colonização cultural. Vencer se torna sinônimo
de destruir. Precisamos construir um “nós” nessa cultura vazia, fixada no imediato
e sem um projeto comum. Reaparece a tentação de fazer uma cultura dos muros
(n. 27) e “reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha de uma
profunda desilusão que se esconde por trás dessa ilusão enganadora: considerar
que podemos ser onipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo
barco” (n. 30).
Vive-se uma obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade. O Papa chega
a dizer que “entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma”
(n.31).
Com todos os acontecimentos na passagem da pandemia diz Francisco
que
a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a
descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que
construímos os nossos programas, os nossos projetos, os
nossos hábitos e prioridade (n. 32). Alimentamo-nos com
sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer
distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de
conexões e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o
resultado rápido e seguro, e nos encontramos oprimidos pela

15
Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Papa Francisco. São
Paulo: Paulus, 2020.
16
São Francisco de Assis (1182-1226). De família rica de comerciante e de uma vida boêmia sente-
se chamado por Deus e vai viver fora dos muros da cidade, junto aos leprosos. A Fraternidade foi
seu projeto de vida. Uma fraternidade aberta, estendida a todas as criaturas.
impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade,
perdemos o gosto e o sabor da realidade (n. 33).
Lembra o Papa na sua reflexão de que é difícil pensar que esse desastre
não tenha a ver com nossa maneira de encarar a realidade. Esquecemos as lições
da história, que o outro tem a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer
pessoa. Assim vai expressar:
As relações digitais, que dispensam o empenho de cultivar
uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso
que amadurece com o tempo, têm aparência de
sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um
“nós”; na verdade, habitualmente dissimulam a ampliam o
mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no
desprezo às pessoas mais fragilizadas” (n. 43).
Ao relatar desafios atuais, coloca que o desafio das relações é a
perspectiva de fundo – Caim elimina o seu irmão Abel, e ressoa a pergunta de
Deus: Onde está Abel, teu irmão? A resposta “Acaso sou guarda do meu irmão?
(n. 57).
Fraterno significa irmão e, como constatamos, a Constituição busca
construir uma sociedade fraterna.
Ao abordar a expressão Sociedade fraterna, Ildete e Paulo sugerem que a
palavra irmão vai além das relações privadas. Assim descrevem:
1 – ninguém, nenhuma pessoa humana é irmão de si próprio;
se irmão, é sempre irmão de outra(o), isso se constitui um
fato, uma realidade social reconhecida e uma relação
estabelecida;
2 – naturalmente, os irmãos não podem ser escolhidos, mas
podem ser reconhecidos: isso se constitui um fato, uma
realidade social que pode ser reconhecida e uma relação de
reciprocidade que pode ser estabelecida;
3 – outro(s) irmão(s) existe(m), independentemente de
ser(em) meu(s) irmão(s), ou seja, independentemente de que
eu o(s) reconheça como irmão(s): isso também é um fato,
uma realidade social que deve ser reconhecida e uma
relação de sociabilidade que deve ser estabelecida (p.130).

Isso para dizer que ser irmão é preciso de dois, ou seja, da existência do
outro.
Diz Francisco que é preciso “reconhecer a tentação que nos cerca de nos
desinteressar pelos outros, especialmente pelos mais frágeis” (n. 64). Como
estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está
mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos
problemas alheios. São sintomas de uma sociedade enferma, pois procura
construir-se de costas para o sofrimento” (n. 65)
Nesse sentido, propõe como reflexão a parábola do Bom Samaritano (em
Lucas, capítulo 10, versículos 25-37), parábola essa que qualquer um de nós pode
se deixar interpelar. É um ícone iluminador, uma opção fundamental para
reconstruir nosso mundo ferido.
Ao propor essa parábola, o Papa lembra a atual tendência de reivindicar
direitos individuais “que esconde uma concepção de pessoa humana separada de
todo o contexto social e antropológico, quase como uma “mônada” (monás) cada
vez mais insensível” (n. 111).
Retoma a importância de querer o bem do outro, pois
Descartamos a ética, a honestidade, a bondade. Precisamos
garantir a transmissão de valores. Invocar a solidez –
solidariedade. O serviço nunca é ideológico, dado que não
servimos ideias, mas pessoas (n. 115). Relativismo, vai
lembrar que “não podemos pensar que os programas
políticos ou a força da lei sejam suficientes (...) quando é a
cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer
verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente
válidos, as leis só se poderão entender como imposições
arbitrárias e obstáculos a evitar (LS, n. 123).
Essa encíclica social retoma a palavra “cultura” como um modo de viver
que caracteriza aquele grupo humano (216). Faz um apelo de que “não podemos
permitir que a geração atual e as novas gerações percam a memória do que
aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais
justo e fraterno” (n. 248).
A raiz da palavra cultura está nas raízes da língua semítica “kelt” = ato de
revolver a terra com o instrumento do trabalho. Lembra cultivar, transformar,
fecundar, plantar, colher. É tudo aquilo que um grupo desenvolve para viver,
sobreviver, conviver, interpretar e dar sentido.
Eis o desafio da construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos.

CONCLUSÃO – um clamor em tempos sombrios


No decorrer de sua história a Igreja Católica não deixou de se pronunciar
sobre questões da vida social. Hoje se fala de um “corpo de doutrina” que, a partir
da Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII escrita em 1891, vai tomando forma,
sistematizando assim um conjunto de princípios, critérios de juízo e diretrizes de
ação que o Magistério da Igreja Católica vem estabelecendo.
As promessas da modernidade não se cumpriram e o cenário atual
demonstra que a história dá sinais de regressão. Os programas políticos e a força
da lei por si não são capazes de garantir as promessas feitas.
As tendências do mundo atual são desfavoráveis ao desenvolvimento da
fraternidade universal. Parece não termos outra alternativa senão consultar o que
há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum.
Faz-se urgente despertar a Fraternidade do sono profundo e apostar na
construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, pois “se a
sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da
eficiência, não há lugar para as pessoas, e a fraternidade não passará duma
palavra romântica” (FT n.109)
É possível re(propor) a tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Entre a
pessoa e a comunidade, o individual e o coletivo, há um meio termo que a
fraternidade pode conciliar, evitando os extremos.
Da mesma forma é possível um diálogo aproximado com outras fontes,
construindo pontes e ampliando a reflexão, pois em termos de Fraternidade, urge
um debate forte, exigente e necessário.
Da Fraternidade, quando avocada e despertada do sono, irrompe uma
força capaz de novas interpretações na regulação das relações entre os membros
da sociedade e na efetivação dos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

ANTONCICH, Ricardo; SANS, José M. Ensino Social da Igreja: trabalho,


capitalismo, socialismo, reforma social, discernimento, insurreição e não violência.
Petrópolis: Vozes, 1986.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. A revolução industrial. 3 ed, São Paulo:
Ática, 1994.
BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O Princípio Esquecido/1. Tradução de Durval
Cordas, Iolanda Gaspar e José Maria de Almeida. Vargem Grande Paulista: Cidade
Nova, 2008.
BRIGHENTI, Agenor. A identidade e o patrimônio da doutrina social da igreja.
Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.
BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo
Horizonte: Fórum, 2007.
Carta Encíclica Laborem Exercens. João Paulo II, 1981. In: Documentos
Pontifícios, n. 196. Petrópolis: Vozes, 1981.
Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Papa
Francisco. São Paulo: Paulus, 2020.
Carta encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas,
2015.
COMBLIN, José. O pobre: critério para a profecia. In: Pedro A. Ribeiro de Oliveira
(org). Opção pelos pobres no século XXI. São Paulo: Paulinas, 2011.
CNBB. Temas da Doutrina Social da Igreja. In: Coleção Queremos ver Jesus.
Caminho, Verdade e Vida. Caderno 1. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2004.
CONGREGAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações para o Estudo e o
Ensino da Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal, n. 65. In: Encíclicas e
Documentos Sociais. Vol. 2. São Paulo: LTr, 1993.
FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives Gandra
da Silva. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.
São Paulo: LTr, 1998.
GUIMARÃES, Marcelo Rezende; GÖRGEN, Sérgio (Orgs.). Ensino Social da
Igreja. Desafio às comunidades. Petrópolis: Vozes, 1992.
GUTIÉRREZ, E. De Leão XIII a João Paulo II. Cem anos de Doutrina Social da
Igreja. São Paulo: Paulinas, 1990.
LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum. Sobre a condição dos operários.
Acta Leonis, 1891.
MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 4ª ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Iniciação ao
Direito do Trabalho. 39ªed. São Paulo: LTr, 2014.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 27ªed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da doutrina social da
Igreja. 2ªed. São Paulo: Paulinas, 2005.
SILVA, Ildete Regina Vale da; BRANDÃO Paulo de Tarso. Constituição e
Fraternidade. O valor Normativo do Preâmbulo da Constituição. Curitiba: Juruá,
2015.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Livraria dos Advogados: Porto
Alegre, 1998.
Sollicitudo Rei Socialis, João Paulo II, 1987. In: Encíclicas e Documentos Sociais.
São Paulo: LTr, 1993.

Você também pode gostar