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Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais –
Departamento de Sociologia
Pós-Graduação em Sociologia
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2018/02
334189 – METODOLOGIA
(Curso de Doutorado)
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Parte I
Controvérsias Epistemológicas
no Debate do sobre a Natureza do Conhecimento Sociológico
Nas páginas iniciais dos seus Elementos de Filosofia, outro francês, este do
século XVIII, D´Alembert como que oferece um quadro do amplo conjunto de
fatores que ora “revolucionava” a existência humana. Conjunto baseado no
desempenho das ciências da natureza. O trecho abaixo é especialmente
elucidativo a respeito:
(...) aos meados do século em que vivemos, aos acontecimentos que nos
agitam ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes, às nossas
obras e até às nossas conversas, é muito difícil passar despercebida à
extraordinária mudança que, sob múltiplos aspectos, ocorreu em nossas
idéias; mudança essa que, por sua rapidez parece-me prometer-nos uma
ainda maior. Cabe ao tempo fixar o objeto, a natureza e os limites dessa
revolução, cujos inconvenientes e cujas vantagens a nossa posterioridade
conhecerá melhor do que nós. O nosso século é chamado o século da
filosofia por excelência. Se examinarmos sem prevenção o estado atual
dos nossos conhecimentos, não se pode deixar de convir que a filosofia
registrou grandes progressos entre nós. A ciência da natureza adquire a
cada dia novas riquezas; a geometria, ao ampliar os seus limites,
transportou seu facho para as regiões da física que se encontravam mais
perto dela; o verdadeiro sistema do mundo ficou conhecido, foi
desenvolvido e aperfeiçoado. Desde a terra até Saturno, desde a história
dos céus à dos insetos a ciência da natureza mudou de feições. Com ela,
quase todas as outras ciências adquirem novas formas e, com efeito, é
imprescindível que o fizessem. O estudo da natureza parece ser por si
mesmo frio e tranqüilo, porque a satisfação que ele ocasiona é um
sentimento uniforme, contínuo e sem dados, e por que os prazeres, para
serem vivos, devem ser separados por e marcados por acessos. Não
obstante a invenção e o uso de um novo método de filosofar, a espécie
de entusiasmo que acompanha as descobertas, uma certa elevação de
idéias quem nós suscita o espetáculo do universo, todas essas causas
tiveram que excitar nos espíritos uma viva fermentação. Essa
fermentação, agindo em todos os sentidos por sua natureza, envolveu
como uma espécie de violência tudo o que lhe deparou, como um rio
que tivesse rompido seus diques. Assim (...) tudo foi discutido, analisado
e, no mínimo, agitado. Uma nova luz sobre alguns objetos, uma nova
obscuridade sobre vários, foi o outro ou a conseqüência dessa
efervescência geral dos espíritos: tal como um feito do fluxo e do refluxo
do oceano é carregar para as praias alguns materiais e delas afastar outros
(D´ALEMBERT, 1758, IV, p. 01).
a tal rigor na relação entre método e teoria. Voltamos a Newton. Partindo dos
vestígios deixados por Kleper e Galileu, num trabalho paciente de artífice,
Newton demonstra as leis coordenadoras do percurso regular dos planetas; em
seu esquema, matemática e observação se fazem cúmplices (KOIRÉ, 2001, p.195-
220). O resultado da empreita mecânica de Newton cala em profundidade na
ciência, porque desde agora se trata de iluminar os fundamentos universais da
natureza. Ou melhor, deixar demonstrável a universalidade desta, na totalidade
indivisível dos seus fenômenos. Quer dizer, na observação dos fatos, a forma
geral ganha visibilidade. Isto requer ater-se às condições particulares
possibilitadoras do fenômeno e desvelar quais são as relações que este estabelece
com as condições de outros fenômenos. Daí, então, a decomposição (análise)
impõe-se à síntese. A razão analítica decompõe para demonstrar as
determinações dos fatores; natural e determinação são agora análogos e a
natureza é, desde já, o reino da determinação – da obrigatoriedade! Pelo
manejo com o material empírico, eu epistêmico adentraria a estrutura cósmica,
tornando-a inteligível, até administrando, controlando seus movimentos.
Para isso, a filosofia do século XVIII vai incorporar o paradigma físico-
matemático para fins bem mais ambiciosos que o conhecimento em disciplinas
específicas. De Voltaire a Kant, passando por Helvetius e D´ Alembert, entre
outros, todos estão empolgados pela confiança na primazia deste paradigma, o
que o torna a base do projeto Iluminista ora em desenho. Eles se mostram os
baluartes do esclarecimento crédulos que a análise capacitará o homem até então
cego a trafegar na multidão do engano e penetrar na aparência, atingido assim o
âmago dos ordenamentos e, portanto, desvelar a fonte dos efeitos. A função
intelectual do explicar tem agora um parâmetro científico, ao contar com o
método empírico-positivo. Não quer dizer que se poderá chegar às últimas
causas, intangíveis, pois são em-si não demonstráveis. Por outro lado, contudo –
e isto o que os interessava – seria possível, porque viável, à própria natureza
conhecer a legalidade empírica da ordem. Absoluto e conhecimento estão
doravante cindidos, devido à prerrogativa segundo a qual ciência e metafísica
ocuparem postos distintos até antagônicos.
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1 Utilizo aqui a ideia de Michel Foucault (2000), que toma a história das ciências pela
descontinuidade entre os espaços das correlações discursivas internas entre elementos cujo
conjunto asseguraria uma função de saber específica.
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que nos interessa, de fato é em Auguste Comte que a sociologia ganha nome e
delimitação como uma disciplina do saber científico, logo laica e universalista.
Não obstante, os ingredientes positivos básicos da disciplina estão prefigurados
no século das luzes. Em vista disso, antes de nos determos na empreita
comteana, vejamos o caminho intelectual e sócio-histórico que conduz a ela.
O retorno à natureza mesma do método naturalista e o ímpeto dos
iluministas em deflagrá-los, impactando o conjunto existencial humano, nos
servem de canal de acesso. A ênfase na causalidade se fazia desde já imperativa a
qualquer conhecimento com pretensão científica, afinal a causa é a razão do
fenômeno, atingi-la seria ir ao recôndito da natureza, da lei que a rege.
Algo assim leva o método analítico cedo aos fenômenos sociais e
políticos: Estado e sociedade são chamados diante do juízo da razão natural.
Ainda que se admita, vale lembrar, tratar-se de uma realidade cuja fonte última
escapa ao homem, e este deve frente a ela se adaptar. Porém já agora a
submissão resignada é posta em causa e a energia motora da razão deve indagar
esta realidade; àquela cabe confessar suas intenções e atestar a validade das suas
prerrogativas. O social agora é uma realidade física de cuja empiricidade o
conhecimento deve cuidar de apreender.
O primeiro a definir os termos do estudo da sociedade nessas condições
fora Hobbes (1988). Interessa-lhe decompor o estado como a um “corpo”, ao
submetê-lo ao crivo do método perscrutador de uma razão universalista, sensível
ao percurso das leis da matéria. Na teoria política do autor britânico, sendo o
pensamento um cálculo (realizado por operações de soma e subtração), o
imperioso está em desfazer a síntese das vontades possibilitadoras do Estado,
para ser possível apresentar as modificações do por que é possível a civilidade.
Ou seja, como se parte da situação de guerra do “todos contra todos” para o
estado de direito? Enfim, contrato e sociedade estão na raiz do problema. Ora
para Hobbes, sabemos, o Estado é plena negação da natureza negativa egoísta
do homem, portanto, fundamento do próprio estado. E este age por dominação
em relação aos indivíduos. A causa seja escutada no efeito do contrato é a
subordinação de vontade impetuosa.
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conhecimento parou na sua última investida. Por outro lado, o social é incluído
como uma materialidade a ser observada para além de sua aparente mobilidade
plural; sua multifacialidade apenas esconde a intervenção da forma: as ciências
sociais, como método, estão já aí delineadas.
Não obstante, neste plano da realidade, a perspectiva empírico-
mecanicista conhece cedo algumas objeções e resistências. Por enquanto,
interessa-nos a maneira como o problema da dinâmica aparece, no
entendimento da regularidade dos fenômenos. Retenho o tema da harmonia, já
que ela nos leva diretamente ao nexo entre dinâmica e organicidade. Façamos
uma breve lembrança do domínio da razão à maneira como o cartesianismo o
define. Basta recordar que, em Descartes (1973, p.46-49), conhecer implica,
antes, apreender as relações de reciprocidades entre elementos de uma
multiplicidade, elegendo um ponto prioritário: esta é a regra que atravessa toda
a totalidade, demarcando-a. Para circunscrever a especificidade desse
pensamento “discursivo”, Descartes repousa na matemática toda a aposta na
proporcionalidade. Trata-se assim de uma redução numérica, pelo enunciado de
que um quantum de desconhecido teria sua contrapartida em algo já conhecido
– no coeficiente de acumulados.
A chamada “Era das luzes” eleva a redução cartesiana e a faz percorrer o
reino da qualidade, guiada pela lei geral da razão universal. O cálculo impõe-se
na determinação das relações fundamentais. Nesse sentido, o pensamento
Iluminista faz evanescer a dualidade espírito e corpo. Nesse instante, no século
XVIII, a divisibilidade entre a unicidade do Espírito e a extensão do corpo é
incluída em um mesmo plano. Embora se concordasse ser equívoco reduzir o
psíquico, decompondo-o; por outro lado, havia a concordância de que o
psicológico se dividiria em momentos. Logo, a razão natural aplicada vai
percorrer esta diversidade e nela encontrar o desenvolvimento progressivo de
um mesmo fenômeno fundante. Ora, esta é a totalidade psíquica, que se divide e
transforma, manifesta as sensações, o corpóreo. Sintetiza Cassirer:
Contudo esta identidade lógica de uma ciência geral, no século XVIII, teve
de enfrentar outra herança do racionalismo do século XVII: a questão da
continuidade tal qual Leibniz (1998) colocou na sua teoria monológica, ou seja,
o enigma em torno da unidade da multiplicidade, ser no devir, constância da
mudança. Isto leva à pergunta: como operações são possíveis diante das
determinações? Particular e geral ganharam, então, outro estatuto. Não irei
perseguir os meandros da intrincada cosmovisão leibniztiana; quero tão-somente
assinalar como, ao tratar da mônada, o pensador insiste na exigência de inserir a
visão orgânico-funcional. Isto em razão de que a mônada não se reduz a uma
unidade simples ou à multiplicidade, mas é a multiplicidade expressa na unidade
e se desenvolve permanentemente de acordo com múltiplas determinações (algo
semelhante à noção de “concreto” em Karl Marx). A particularidade realiza-se na
associação dos seus movimentos, logo não se dilui frente a cada determinação:
ao contrário, aí se realiza. A mônada é então cultura, uma força realizando-se e
não os efeitos inúmeros da continuidade na dinâmica, na qual aquela se altera
mantendo-se a mesma. Enfim, a atividade é o conceito-chave. Por outro lado, o
individual não é um dado, mas contém e expressa o essencial na sua
particularidade móvel. A totalidade é justamente este comum em que as
mônadas se harmonizam por empatia.
As premissas de Leibniz soarão hesitantes e indiretamente sobre o
pensamento das luzes, sobretudo em razão mediação de Wolf. As concepções
estéticas como as de Baumgarten foram as mais receptivas ao modelo
leibniztiano. Porém a concepção de desenvolvimento será colhida, mesmo que
pulverizada, por espectros vários da imaginação filosófico-científica daquele
século europeu. Com finalidade de entender tal acolhida não cabe estabelecer
uma relação de espelhamento entre pensamento e a infraestrutura social de uma
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época; sei das variáveis com incidência sobre o diálogo. Por isso tentarei, desde
aqui, comentar como as condições mais amplas daquele período, sobretudo na
França, contribuíram ao intercruzamento da perspectiva dinâmico-organicista
com a relação natural, mecânico-empírica.
Vou tomar o texto do capítulo do livro a Imagem Crítica da Sociologia,
de Carlos Moya, como referência. Ali, o autor descreve o que havia de muito
particular na experiência francesa daquele momento na seminação da sociologia.
O peso adquirido pela nobreza na igreja tornará a religião o inimigo-mor de
uma elite ilustrada, laica e laicizante. Seus intérpretes penetram na Assembleia
Nacional Francesa e farão dela o solo propício para fermentar um culto da razão
natural, cuja meta seria a instauração do estado da razão, calçado nas leis da
natureza pura. O esclarecimento se torna um imperativo:
justamente essa qualidade que inspira o tipo de raciocínio do qual Comte se faz
apóstolo sacerdote.
As duas categorias centrais do seu esquema explicativo são reveladoras
deste raciocínio sócio-histórico, no qual a tônica está depositada na objetividade
coletiva, mas deitaram profundas raízes no imaginário intelectual das ciências
sociais. A ideia de estática consiste essencialmente no estudo do que Comte
chama de “consenso social”. Uma sociedade se assemelha a um organismo vivo.
Assim como é possível estudar o funcionamento de um órgão sem situá-lo no
conjunto do ser vivo, é impossível estudar a político e o Estado sem
contextualizá-los no conjunto da sociedade, em um dado momento. A estática
social comporta, de um lado, análise do conjunto de indivíduos e famílias de
uma coletividade e uma pluralidade de instituições que determinam o consenso,
isto é, que fazem do conjunto dos indivíduos ou famílias uma coletividade e de
uma pluralidade de instituições uma unidade societária. Mas, se a estática é o
estudo do consenso, ela nos leva a procurar saber quais são os órgãos essenciais
de toda sociedade, por conseguinte, a ultrapassar a diversidade das sociedades
históricas pra descobrir os princípios que regem toda ordem social. Já a dinâmica
social parte da descrição das etapas sucessivas percorridas pelas sociedades
humanas. A partir do conjunto, advoga o autor, saberíamos que o devir das
sociedades humanas e do espírito humano é comandado por leis gerais. Como o
conjunto do passado se constitui em uma unidade, deixando entrever as etapas
necessárias do vir a ser histórico, a dinâmica social não se parece com a história
dos historiadores, notabilizada por colecionar fatos ou observar a sucessão das
instituições.
As contribuições de Comte não apenas foram decisivas à circunscrição
da sociologia como um saber científico com pretensões lógico-empíricas, mas
também serviram ao projeto de entendimento das reciprocidades sociohumanas
pelo viés das funções ordenadas dentro de uma sistemática dotada de um
padrão específico de relacionalidade. Ainda que Durkheim e Comte estivessem
de acordo sobre o postulado da necessidade de integração, porém, diante da
crescente complexidade gerada com a diferenciação funcional inscrita na divisão
do trabalho nos sistemas sociais modernos, de saída, a concepção durkheimiana
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fenômenos. Estas são “formas de fazer, de pensar e de sentir”, sem com isto seja
preciso reduzi-los a meros fatos psíquicos restritos aos indivíduos, mas compõem
a “consciência coletiva”. As representações coletivas são, na apropriação
durkheimiana, os estados da consciência do sujeito coletivo – a sociedade – e são
os fatos sociais por excelência, desse modo, constituem um plano heurístico à
observação empírica dos sociólogos.
Há aqui um deslocamento epistemológico com sensível rebatimento
sobre a dimensão filosófica. Pois, ao situar na sociedade a fonte do
conhecimento, Durkheim vira as costas a todo centramento no homem. Ao
mesmo tempo, a sua postura positivista procura uma proporção simétrica no
controle da razão mediante a experiência sensível, sem tripudia-la como mero
traço material da vida do indivíduo. A religião e a moral são reconhecidas como
expressões deste equilíbrio. E o entendimento destas revelaria o percurso que nos
conduziu ao estágio positivo do conhecimento. A sociologia do conhecimento
encontra em Durkheim. Vejamos amiúde o deslocamento sugerido, afinal ele nos
ajuda a entender melhor a natureza do objeto sociológico como pensar do por
Durkheim. Antes, é preciso considerar o fato de que, para Durkheim, as
representações coletivas são definidas enquanto “estados da consciência
coletiva”, logo “diferentes em natureza dos estados da consciência individual”. Já
que elas exprimem “o modo pelo qual o grupo se concebe a si mesmo em suas
relações com os objetos que o afetam”. Vale colocar em evidência o modo
mesmo como o autor concebe os fenômenos sociológicos e a maneira que lança
mão para os classificar.
Contudo, com a finalidade de melhor esclarecer a natureza das
categorias do entendimento como o social, tornando-se espécie de a priori, no
esquema de Durkheim, volto seletiva e resumidamente à maneira como o
próprio Kant elaborou o tema dos a priori do entendimento. Nesse sentido é
justo reconhecer qual foi o projeto filosófico do autor alemão. Indisposto com
os eixos dicotômicos marcantes da sua época, imprensada entre o racionalismo e
o empiricismo, Kant traz a alternativa do método transcendental. Este deveria
cumprir por tarefa o aclaramento da razão como juiz da razão. Duas metas
compõem o núcleo do projeto da crítica (juízo): a) Determinar a natureza dos
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3Como argumenta Geoffrey Hawthorn, ao longo deste período a França conheceu a retomada
permanente das mesmas questões, as quais deixaram em cheque a estabilidade institucional do
país, na medida em que as batalhas entre monarquistas e republicanos ativam rancores mútuos
(HAWTHORN, 1982, p.118-119).
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4 Sob esse aspecto, é possível destacar dois expoentes notáveis na polarização descrita e
elementar à sociedade industrial no mundo europeu da primeira metade do século XIX, cujas
propostas obtiveram repercussão na montagem da ciência social. De um lado, August Comte e
o projeto de reorganizar a sociedade adequando as mentalidades ao estágio positivo-científico
da evolução da humanidade, em que a impessoalidade engata primado republicano e
coletivismo moral. De outro, o empenho revolucionário de Marx e Engels, embora igualmente
científico-historicista, mas compromissado com a utopia comunista da sociedade sem classes,
embutindo tons proféticos e milenaristas nos postulados da filosofia natural.
5 As informações biográfico-intelectuais arroladas são extraídas de LUKES (1973).
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6 Poderíamos a esse respeito especular sobre a proximidade entre Durkheim e Hegel, na medida
em que para ambos o sujeito não consiste na consciência isolada, mas na antecedência do
“nós”. Ainda assim, certo cuidado deve presidir a aproximação, porque na visão hegeliana
sobressai o espírito como a consciência que se sabe consciência, capaz de se autodeterminar;
posicionamento jamais acatado no projeto sociológico de Durkheim de uma objetividade
societária como fonte lógica e moral do agir pessoal.
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7 Foucault chama atenção ao fato de que, no curso do século XIX, os empréstimos de modelos
das ciências da vida feitos pelas ciências do homem teriam derivado principalmente da estrutura
disjuntiva da polaridade entre o sadio e o mórbido: “Quando se falar da vida dos grupos e das
sociedades, da vida da raça, ou mesma da “vida psicológica”, não se pensará apenas na
estrutura interna do ser organizado, mas bipolaridade médica do normal e do patológico. A
consciência vive, na medida em que pode ser alterada, amputada, afastada de seu curso,
paralisada; as sociedades vivem, na medida em que existem algumas, doentes, que se estiolam,
e outras, sadias, em plena expansão; a raça é um ser vivo que degenera; como também as
civilizações, de que tantas vezes se pôde constatar a morte. Se as ciências do homem
apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam biologicamente
fundadas, mas é também porque o estavam medicamente; sem dúvida por transferência,
importação e, muitas vezes, metáfora, as ciências do homem utilizaram conceitos formados
pelos biólogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizações
individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e
do patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da
negatividade em que apareceram, mas também ligadas à positividade que situam,
implicitamente, como norma.” (FOUCAULT, 1988, p.40).
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consciência que o homem tem de si mesmo. Através do objeto se conhece o homem; nele a sua
essência aparece; o objeto é a sua essência revelada, o seu Eu verdadeiro, objetivo. E isto não é
válido somente para os objetos espirituais, mais também para os sensoriais. Também os objetos
mais distantes do homem são revelações da essência humana, e isto porque e enquanto eles são
objetos para ele. Também a lua, o sol e as estrelas gritam para o homem o gnôthi sautón, o
conheça-te a ti mesmo. Pelo fato dele os ver e os ver da forma que ele os vê, tudo já é um
testemunho da sua própria essência. O animal só é atingido pelo raio de luz necessário para a
sua vida, mas também o homem pelo brilho indiferente da mais distante estrela. Só o homem
possui alegrias e sentimentos puros, intelectuais desinteressados - só o homem promove os
espetáculos teoréticos dos olhos. O olho que contempla o céu estrelado, que distingue aquela
luz que nem ajuda, nem prejudica e que quase nada tem em comum com a terra e suas
necessidades, este olho vê nesta luz sua própria essência, a sua própria origem. O olho é de
natureza celestial. Por isso eleva-se o homem acima da terra somente através do olho; por isso
inicia-se a teoria com a contemplação do céu. Os primeiros filósofos foram astrônomos. O céu
lembra ao homem o seu desígnio, lembra-o de que ele não nasceu para agir, mas também para
contemplar.” (FEUERBACH, 1997, p46-47 – itálicos no original).
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Nas palavras do autor: “O engendrar de um mundo objetivo, a elaboração da natureza
inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se
relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou se [se relaciona] consigo enquanto ser
genérico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações,
como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz lateral[mente], enquanto o homem
produz universal[mente]; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata,
enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e
verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo,
enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu produto pertence
imediatamente ao seu corpo físico. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da
espécie a qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer
espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objetivo; o homem também
forma, por isso, segundo as leis da beleza.” (MARX, 2004, p.85).
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12Para esses sábios da Atenas ao tempo de Péricles, os sofistas, o logos (pensar e discurso sobre as
coisas) estava em relação não com a demonstração, mas com o que denominavam de
pharmakon, ou seja, um remédio indicado na melhoria das “almas e da cidade” e que subtendia
a prioridade posta na eloquência como propriedade da dinâmica da sociabilidade
eminentemente política, marcada pelas disputas argumentativas e estas se medem pelo senso de
oportunidade para persuadir o ouvinte (CASSIN, 2005, p.67).
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Sociologia Geometria
As formas sociológicas só podem ser Pode dispor de modelos simples que
aproximadamente definidas. podem contar com as mais diversas
figuras.
A mais límpida consciência que uma sociedade toma da sua unidade, pelo
efeito da luta, reforça essa unidade e vice-versa. Diz-se que: para nós outros,
homens, cuja faculdade essencial é perceber diferenças, o sentimento do que
é único e harmônico não possa tomar forças de outro modo senão por
contraste com o sentimento contrário. (Op. Cit., p.55)
Referências Bibliográficas: