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1
Georges Balandier Le Détour, Fayard, Paris, 1985.
2
Adolfo Yañez-Casal Antropologia e Desenvolvimento, in Etnologia (revista semestral do
Departamento de Antropologia da FCSH, na UNL, Janeiro/Junho de 1991.
3
Emile Durkeim Les Règles de la Méthode Sociologique, P.U.F., Paris, 1947.
minha opinião a investigação deveria circunscrever-se a um código de valores éticos a
que o antropólogo estaria sujeito relativamente à sua prática a montante e a jusante da
investigação em si. Em qualquer caso, o posicionamento teórico do investigador
implica sempre uma deformação da realidade, seja qual for o seu ângulo de vista, mas
isto é outra questão que transcende as preocupações específicas da Antropologia e que
desde Max Weber se coloca ao nível da própria epistemologia das ciências sociais. O
que importa é saber se a Antropologia, na sua maior ou menor componente científica,
(que de uma forma geral lhe é reconhecida), tem ou não capacidade teórica e
metodológica para estudar e analisar a problemática das sociedades actuais e partir em
pé de igualdade com outras disciplinas sociais e conseguindo uma igualdade
interdisciplinar. Isto não é mais do que uma legitimação de uma disciplina que sendo a
última a chegar ao “festim”, tem o direito de reclamar para si uma fatia da enorme tarte
composta pela cultura e sociedade, que as restantes disciplinas sociais reclamam para si
e não digerem a intervenção da nossa disciplina antropológica.
As hipóteses de pesquisa que estão na base deste trabalho estão integradas neste objectivo sob a forma
de conceitos que melhor se adaptam à realidade concreta em estudo sendo, que ao aspecto político
corresponde o patrocinato (este vínculado à administração judicial e ao clientelismo); ao aspecto
económico já referenciado está vinculada a autonomia adjacente à produção doméstica e às relações de
troca na horizontal e também na vertical, sendo estas a nível simbólico; e no que diz respeito à
ideologia do campesinato, não irei entrar na problemática da abordagem materialista-histórica do
marxismo, mas sim compreender as linhas de orientação de que eles (camponeses), são conhecedores e
pelas quais regem os seus comportamentos, que nos transporta para um nível cultural enraízado em
valores centrais e muito conivente com o período histórico em estudo, isto é, o Estado Novo, a que se
deu o nome de “conservadorismo”, que irá ser tratado posteriormente como significação cultural.
Peninsular, publica Os Arados Portugueses e Vilarinho da Furna. A formação
académica do autor numa disciplina que em Portugal não tinha qualquer âmbito
institucional e o plano sistemático que havia esboçado para a actividade a desenvolver
pela equipa dos investigadores daquele Centro, definiram o facies da pesquisa e os
trabalhos publicados nas décadas seguintes. As duas linhas a que me referi foram: o
inquérito extensivo cobrindo a globalidade do território continental (também alargado
às ilhas atlânticas) visando o levantamento e análise dos elementos da cultura material;
e o estudo intensivo de pequenas comunidades, com trabalho de campo e com o
objectivo da restituição dos dados recolhidos e do seu tratamento sob a forma de
monografias9, das quais apenas duas foram publicadas. Apesar de jorge Dias ter tido a
intenção de proceder ao estudo outras aldeias, como por exemplo, Castro Laboreiro,
todavia não se concretizaria. De facto, foi o campo definido pela primeira linha antes
referida que veio a ser priveligiado em toda a actividade do Centro de Estudos de
Etnologia Peninsular - com algumas incursões mais limitadas cobrindo aspectos da
organização social no âmbito da família, do parentesco e da ritualidade levados a efeito
por Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira - num conjunto de trabalhos de grande vulto
que mobilizou os investigadores mais recentes e acima de tudo contribuiram para o
crescimento e despertar da Antropologia em Portugal e o interesse pelo conhecimento,
interpretação e explicitação dos comportamentos culturais e sociais das micro-
comunidades aldeãs. Podemos ainda destacar as investigações levadas a cabo por
Fernando Galhano, Benjamim Pereira e Margot Dias.
10
Achou-se conveniente a utilização da metodologia das “histórias de vida” para melhor acentuar o
carácter antropológico desta monografia. Tratando-se de um estudo de caso era inevitável o recurso ao
saber e conhecimento dos actores sociais. Sendo assim a melhor forma de se conhecerem as relações
sociais é o recurso à oralidade e por conseguinte à transmissão oral de realidades concretas vividas
pelos camponeses e as interpretações que daí podem resultar.
por conseguinte define o devir social, elemento estruturante na delimitação das zonas de
autonomia e constrangimento com as quais os actores sociais (camponeses, neste caso
concreto) foram confrontados num determinado período do contexto histórico recente
do Portugal salazarista.
11
O termo camponeses (parcelares) / campesinato, subsumindo diversas camadas hierarquizadas,
engloba uma classe social, composta de homens e mulheres que, organizados em unidades domésticas e
baseados exclusivamente na força de trabalho familiar, dispondo do cultivo de um ou vários pedaços de
terra, próprios ou arrendados, vivendo, eventualmente em complementaridade com outras fontes de
rendimento, apenas pu sobretudo do produto do seu trabalho.
associada à cooperação e inter-ajuda, bem como a existência do potlach; a produção e
reprodução do poder local (a autoridade judicial-administrativa e os informadores -
bufos)12, reproduzindo um sistema de representações. Para finalizar procura-se
compreender a importância dos caciques e suas representações como forma de control
social e a importância destes (caciques / patronos) na investigação de elementos que nos
aproximem da cultura rural.
14
Watzlawick, P. L’invention de la réalité, Paris, Seuil, 1988, pp. 19-43.
1. Análise sistémica
15
R. Boudon, Note sur la notion de theorie dans les sciences sociales, in archives europeénes de
sociologie, 11, 2, 1970 pp.203-219.
Por sistema entendemos “todo o objecto complexo, formado por elementos
componentes distintos ligados entre si por um determinado número de relações”16.
16
W. Bucley, A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, S. Paulo, Cultrix,1976, pp.75 e Seg.
17
Edgar Morin, Le paradigma perdu: la nature humaine, Paris, Seuil, 1973, p.50.
18
J. Freund, L’essence du politique, Paris, Sirey 1965.
Numa primeira etapa tentaremos reconstituir graças aos dados históricos sobre
a comunidade, esta dinâmica endógena, ou seja, as relações tradicionais dos três
sistemas apoiados em relações de clientelismos e patrocinato (relações na vertical).
Numa segunda etapa, examina-se a dinâmica exógena, as modificações ou estagnações
que afectaram estes sistemas nas relações da sociedade tradicional com expoente
máximo no conservadorismo. O paradigma conceptual do modelo sistémico,
instrumento que nos ajudará no decorrer desta abordagem, para ser operatório, deve
justificar os dinamismos socioculturais de uma comunidade activa (que funciona),
estruturada e evolutiva, e da sua inter-relação com o meio ambiente e as suas
finalidades.
O modelo da teoria geral dos sistemas de L. Von Bertalenffy 20; não se afasta do
formalismo e determinismo clássico aliado à complexidade de um sistema linear e
causal. Do mesmo modo, os modelos funcionalistas definem a função do sistema,
procurando detectar os princípios do seu funcionamento, o “como”, a explicação do
exterior ao nível institucional das formas directamente observáveis (os elementos só
assumem significado em razão de uma situação num conjunto real ou logicamente
constituído). No entanto, estes princípios são inadequados para o tratamento, análise e
interpretação da nossa problemática.
19
R. Bastide, La causalité externe et la causalité interne dans les explications sociologiques, in cahiers
internationaux de sociologie, 21, 1956, pp.77-99.
20
L. Von Bertalenffy, General sistem teory, Nova Iorque, Braziller, 1968.
I
PARTE
I – CONTINUIDADES SOCIOTERRITORIAIS
A articulação dos dois princípios estabelecida por uma relação de ordem, faz
com que a integração social se processe diferenciação socio-territorial, a partir da qual
as instituições se diferenciam por produções de espaços socio-culturais distintos, cada
qual apresentando a sua própria configuração institucional relactivamente
indiferenciada e, por conseguinte, onde persistem tendências para a não diversificação
das actividades económicas.
Na medida em que este aspecto se prende directamente com a lógica de
evolução do sistema social, designadamente através das separações institucionalizadas
entre esferas de actividade económica e esferas de vida, importa explicitá-lo para fazer
aparecer aquilo que designo de modus vivendi do campesinato rural. Na sociedade
portuguesa tradicional, pluri-espacial e pluri-cultural, são os mecanismos de regulação
da vida social que estão na origem do facto social que nos interessa isolar – ao invés do
que acontece nas sociedades liberais, nas quais a lei do mais forte comanda a lógica de
evolução do sistema social, nas sociedades de espaços culturais múltiplos e
territorializados, representadas no nosso caso, essa lógica evolutiva, obdece à lei do
mais fraco, e é, às possibilidades afectivas de que dispõem os grupos sociais mais
desprovidos de recursos para penhorar os grupos mais poderosos e arquitectar
estratégias de defesa apoiadas em relacções simbólicas e de parentesco ou amizade.
Enquanto expressões desse poder que vem de baixo não excluem seguramente as
relacções de dominação e exploração.
Porventura em nenhum outro local esta influência centrípeda se faz sentir tão
vivamente. Os seus traços diferenciais a Norte e a Sul não conseguem obliterar de todo
um certo ar de parentesco. Se se descer porém, a uma análise mais delicada dos factos
geográficos e territoriais, desde logo se distinguem duas àreas, cada uma das quais
constituíndo uma unidade que, se por um lado resulta das condições do solo e clima
influênciado pela proximidade da Serra, é principalmente função das energias humanas
e do modo como se manifestam – culturas, exploração do solo, povoamento, relações
económicas. Resulta em grande parte destas condições essenciais do meio natural toda
uma série de factos da geografia humana. São eles que individualizam acima de tudo
este espaço territorial. É muito dificil delimitar um espaço geográfico e, nem é este o
fundamento a que dedicamos esta investigação. No entanto, temos que situar a
superfície em causa, se bem que a superfície não se fragmenta em compartimentos
fechados, isolados uns dos outros e justapostos; os contrástes na natureza como nos
factos geográficos derivados da actividade humana, esbatem-se na passagem por
qualquer região.
21
Abordagem à natureza interpretativa da Antropologia feita pelo Prof. Dr. Yañez Casal em Para Uma
Questão Epistemológica do Discurso e da Prática Antropológica, Ed. Cosmos, Antropologia, Lisboa
1996.
A descrição etnográfica interpretativa é microscópica, circunscrita, particular,
mas está aberta a interpretações mais amplas e a questões mais abstratas. Geertz admite
que a passagem de um contexto doméstico, de um concreto espacio-temporal, para
áreas, épocas e questões de dimensão superior, constitui sempre um importante
problema metodológico-científico da Antropologia.
“A terra dá-o cru e come-o cozido”, diz o lavrador, por isso lhe sabia melhor o
bruto de um trabalho que era amargado no dia a dia de uma tarefa sempre aberta, mas
com sucesso garantido, isento de aventuras. As principais tarefas da vida campestre,
desde as sementeiras, que transformavam os campos em jardins, em que a terra era
remexida de fresco substituindo a da cor das ervas, a recordar um ar de frescura, até às
colheitas, que faziam a esperança do lavrador, eram animadas de muita movimentação
que alegrava o seu labor e fazia pairar no céu das aldeias um arruído de festa no chilrear
estridente dos carros de bois que desciam dos montes às povoações, carregados de mato
ou lenha nos famosos “carretos”, onde se disputavam as melhores juntas de bois, por
caminhos improvisados e íngremes, transportando também moreias de tojo em
movimento desde os montes aos quinteiros para reforço das energias vegetativas dos
campos debilitados pelas repetidas culturas.Era ainda a quadra do ano de um esforço
hercúleo para o bom lavrador, faina que em grande parte já passouà história, donde o
decréscimo das produções por falta dos adubos naturais da terra. É que, por essa altura,
os carros de bois “cantavam” sob a pressão das “cantadeiras” que lhes serviam de
travões. Esse “cantar” característico, estridente, dos carros de bois, a descer dos montes
à povoação e desta às veigas e campos, dava o máximo sentido da movimentação do
trabalho onde toda a gente se empenhava, propocionando assim uma dinâmica de acção
a todos os elementos do grupo, pela comoção e sacrificio combinado e espontâneo dos
homens e dos animais.
Depois, quando o linho já estava bem saído da terra, eram as regas de tantos
em tantos dias, feitas a rigor, até ao dia em da “arrancada” do linho, que reunia muitos
braços, não só da casa como dos vizinhos que se auxiliavam mutuamente, o que
emprestava àquela canseira uma nota de especial contentamento.
Tirado da água, o linho era estendido por encosta soalheira, a secar, antes de
ser levado ao engenho do ribeiro, ou pisão, onde era triturado entre cilindros de
madeira, rolantes uns sobre os outros em espécie de tambor, geralmente de rija madeira
de freixo, afim de o sacudir e separar das escórias, ficando numa grande pasta a que
chamavam a “massa” do linho. Também em na aldeia de Vila do Conde, em vez do
engenho do ribeiro, existia uma grande mesa de pedra junto da eira, a qual servia de
“massadoiro” para quase todos ao habitantes e propriedade de um senhor abastado, no
entanto a operação nunca era tão perfeita como executada pelo engenho do riacho.
Neste caso, o linho era batido e triturado com maços de madeira, semelhantes aos que
se empregavam na debulha das espigas de milho.
É lamentável que a mulher do meio rural vá pondo de parte uma vocação que
muito enobrecia e valorizava, além do muito que contribuía para a riqueza e fama da
economia regional.
24
Este intrumento segundo a crença popular, composto de dentes acerados, servia de meio de agressão
às feiticeiras. Assunto que seria interessante tratar em investigação – as crenças populares àcerca da
magia e superstições.
III – A FAMÍLIA NA HISTÓRIA ORAL
25
Moisés Espírito Santo, Comunidade Rural ao Norte do Tejo, Instituto de Estudos e Desenvolvimento,
1980.
26
Léon Poinsard, Le Portugal Inconnu, Paris, 1910.
27
Massimo Livi Bacci, A Century of Portuguese Fertility, Princeton, 1971.
tardio e num nível elevado de celibato definitivo, é reflexo de tentativas para evitar uma
maior fragmentação da propriedade.
33
Este conceito corresponde ao equivalente a rendeiro ou feitor, com a particularidade de se tratar de
um agricultor que faz usufruto de um casal que não lhe pertence, mas do qual tira proveito para si e
seus descendentes. Diz a história oral que pertencia ao “cadastro do pobres” inscrito na Junta de
Freguesia e originário do Lugar de Cubas, foi recolhido pelo proprietário José Martins, ainda em
criança, o qual começou por servir até à tomada do casal.
castanhas, etc.; os proprietários vendiam ao Grémio ou a pequenos comerciantes e
muitas vezes aos próprios caseiros que demonstravam um comportamento a que se
ajusta o princípio da reciprocidade negativa, ou seja, compravam com as suas pequenas
economias os géneros com os quais pagavam aos proprietários, e estes para que fosse
mantido o silêncio àcerca das muitas ou poucas posses, correspondiam com favores de
ordem vertical, isto é, prestígio e acima de tudo – a casa.
José Costa era um dos novos ricos que no fim do séc. XIX regressou do Brasil
onde adquiriu uma substancial fortuna, investindo na compra de terras e património
entre o qual consta uma casa brasonada, juntamente com a mulher D. Maria Emília
Machado (pertencente à Família Machado e herdeira de uma fortuna deixada pelo seu
padrinho o Sr. Joaquim Gonçalves que conheceremos mais adiante), e dois filhos – Dr.
Afonso Martins e D. Maria Augusta Martins).
Tonnies terá sido, de todos os clássicos da Sociologia, aquele que mais terá
influenciado os estudos de comunidades e a dicotomia que estabeleceu entre
gemeinschaft (comunidade) e gesellschaft (associação), frequentemente abordada em
outros estudos de terreno. Na comunidade de que cita como exemplos os agregados
familiares e os engendrados pela vizinhança, vê-se um grupo a que se pertence
naturalmente34. Para este sociólogo “a possibilidade da comunidade apoia-se, em
primeiro lugar, na estreiteza da relação consanguínea e na mistura de sangue; em
segundo lugar, na proximidade física e, por último – para os seres humanos – na
proximidade intelectual.”
34
Ferdinand Tonnies (trad. Castelhana), “Comunidad y Asociación”, Barcelona, Ediciones Península,
1979.
35
É a caracterização de Robert Redfield, produzida em “The Little Community”, University of Chicago
Press, 1973, pag.4.
recentes no sentido de que as comunidades não eram propriamente estruturas sociais
concretas, antes construções simbólicas de identidade, definidoras de um “nós”.36
36
A. P. Cohen, “The Symbólic Constrution of Community”, Chichester e Londres, Ellis Horwood e
Tavistock, 1985.
37
Sobre o carácter temporal da vida social – incluindo a cronologia (ciclos ou ritmos do corpo) – ver a
obra de Michael Young The Metronomic Society – Natural Rhythms and Human Timetables, Londres,
Thames and Hudson, 1988;
tempo têm sido, trabalhados na pesquisa das sociedades ao longo do século actual. Não
se pode esquecer que o impacte da geografia humana, com a sua atenção sobre
paisagens e/ou territórios moldados pela acção humana no tempo, nem uma
historiografia contruída em íntimo convivio com a mesma – em particular, a chamada
Escola dos Annales-, que insistiu no carácter histórico e construído dos espaços e no
modo como estes se relacionavam com a actividade humana. Na Antropologia e na
Sociologia, também é discernível alguma atenção a estas dimensões da vida social.38
para ver igualmente como o tempo e o espaço se incorporam na rotina diária, nos hábitos, na mesma
obra, cap.4 “Habit, The Flywheel of Society” pp.75-128.
38
Estas considerações não assentam propriamente numa leitura exaustiva destas ciências sociais.
Baseiam-se fundamentalmente na ponderação de obras como as dos historiadores Lucien Fébvre, La
Terre et L’Évolution Humaine, Paris, Editions Albin Michel, 1970 e Marc Bloch, Les Caractères
Originaux de L’Histoire Rurale Francaise, Paris, Armand Colin, 1968.
39
Anthony Giddens, tem sido uma figura saliente nesta teorização, envolvendo nomeadamente na sua
reflexão os contributos da geografia no tempo. Ver: A Contemporary Critique of Historical
Materialism, Londres, The Macmillan Press, 1981; Time, Space and Regionalization, in The
Constitution of Society, Cambridge, Polity Press, 1984, pp.110-161; Time and Social Organization, in
Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1987, pp.140-165.
40
A expressão produção do espaço, pertence a Henri Lefebvre, que parte do uso do conceito de
produção em Marx para analisar o espaço. Não se irá aqui desenvolver o tratamento complexo que o
autor dá à noção de produção, mas uma citação permitirá destornar-lhe o seu sentido genérico (...estes
por muralhas durante a Iª República. Durante algumas décadas foi explorada por
intermédio de um caseiro como já foi exposto, sucedendo a este o filho mais novo. Os
dados são elucidativos quanto ao papel central neste domínio, mostrando-nos os
vínculos de subordinação tecidos em torno familiar. Assalariados e enfiteutas41- estes
últimos incluíam membros da pequena nobreza local e da burguesia agrária, desta aldeia
e das outras (aldeia e lugar) dependiam em maior ou menor medida da mesma.
espaços são produtos. A partir de uma matéria-prima, a natureza. São produtos de uma actividade que
implica o económico, o técnico, mas vai bem além deles...). Relação social? Sim, por certo, mas
inerente às relações de propriedade (a propriedade do solo e da terra em particular), e por outro lado
ligado às forças produtivas (que moldam esta terra e este solo), o espaço social (o espaço produzido
pela acção humana) manifesta a sua polivalência, a sua realidade simultaneamente formal e material.
41
Enfiteuse, contrato pelo qual o proprietário de um prédio transfere o seu domínio útil para outra
pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente determinada pensão chamada foro ou cânon.
Com superfícies planas relactivamente importantes em termos regionais, e
sujeito a um clima ameno, revela-se apto, nas suas superfícies mais enxutas bem como
nas mais húmidas e/ou passíveis de irrigação, a um amplo leque de culturas. Nas mais
secas dão-se a vinha e a oliveira. Nas outras, o milho, pomares, a batata e outros
produtos de horticultura local. Os dois principais núcleos de povoamento – que
designamos de Valoura (sede da freguesia) e a aldeia de Vila do Conde (a povoação
contígua a esta) estão delimitadas espacialmente pelas explorações de pradaria. Em Vila
do Conde, um outro largo, outrora a zona central da povoação, é residência temporária
das lavadeiras, é delimitado a norte pela vasta fronteira do antigo paço senhorial da
Família Carvalho e Sousa, um edifício imponente e de grande dimensão. Também este
foi adquirido com o seu vasto quintal por uma família de proprietários, proveniente da
burguesia agrária, que o anexou a uma também vasta Quinta com a qual fazia fronteira.
É essa presença de propriedades urbanas e rústicas, com jardins e terrenos de cultivo no
próprio centro do aglomerado, que constrange a habitação local. As casa dispersam-se,
na sua maioria, por um tecido de ruas e ruelas, as mais antigas e pobres sem qualquer
quintal. Ainda em Vila do Conde, podemos concluir que o aglomerado antigo estava na
prática inteiramente localizado no interior de um polígono delimitado pela grande e
média propriedade, com as respectivas residências. Nos velhos centros das povoações
os lugares de culto e os largos principais, o pequeno comercio e as residências dos
maiores proprietários. Observa-se que desses centros partem ruelas com casas
frequentemente sem quintal, os novos bairros ficam para lá dos limites dos núcleos
antigos.
42
Por “ponto de rotação”, Simmel entende um objecto de interesse fixo no espaço (bens, imóveis,
património, igreja, etc.), que produz determinadas formas de relação agrupadas em seu torno.
43
Sobre o conceito de “regionalização espacio-temporal”, ver Anthony Giddens, The Constitution of
Society, Cambridge, Polity Press, 1986, pp.110-161.
Enquanto os pequenos proprietários, consoante a época do ano e as condições
climáticas, passarão nos seus campos a maior parte de tempo em que existe luz e sol, os
jornaleiros agrícolas transitam a partir das cinco da tarde das propriedades em que
trabalham como assalariados para as fazendas (pequenas explorações) que cultivam,
num labor ininterrupto, de manhã ao pôr-do-sol, em especial durante o Verão, quando o
trabalho surge e as aldeias parecem esvaziar-se até ao cair da noite. Muitos tomam no
campo as suas refeições, excluíndo a primeira e a última do dia.
45
Goffman lembra que existia a expectativa de que nas nossas interacções haja consciência entre
cenário (setting), aparência (appearance) e desempenho (manner) uma observação que se ajusta ao
observado. Ver Erving Goofman, The Representation of Self in Everyday Life, Nova Iorque, Doubleday,
1959.
espaço privativo da família. As zonas “públicas” obrigam a um esforço de
representação destinado a manter ou consolidar uma imagem determinada; a casa,
espaço privado da família, embora também seja um espaço de representação, permite a
distensão em segurança. A casa, a família são o refúgio da intimidade, a retaguarda do
desabafo, o lugar de ditos e procedimentos ocultos ao público.46
48
Por cânones dominantes de definição de património entendo aqueles que privilegiam edifícios, ou o
reduzem aos mesmos; aos quais se imputa antiguidade, genuinidade, tidos como paradigmáticos de uma
especificidade ou identidade. Outras definições de património, que podem incluir a globalidade da
paisagem rural, ou manifestações das técnicas tradicionais ou da cultura oral – o que se pode chamar
“património etnológico”.
mais antigas são mais pequenas, construídas de granito, sendo constituídas geralmente
por rés do chão e primeiro andar, com uma escadaria exterior ou interior, que nos
conduz do nível do solo ao primeiro andar. Os interiores possuem divisórias de taipa ou
tijolo. Algumas não têm janelas de vidro ou casa de banho, e as mais humildes
comportam apenas duas divisões: cozinha/sala e quarto de dormir. No rés do chão, que
dispõe de uma porta, fica a dispensa, o tamanho da qual é conforme as posses, terá ou
não lagar ou acomodação para animais de tracção, e onde se guardam alfaias, adubos,
vinho e outros produtos agrícolas. No conjunto das moradias antigas destaca-se um
número reduzido de residências algo mais amplas, com uma estrutura similar, nas
contruídas em pedra aparelhada de boa factura e não com os blocos informes mais
comuns.
No seio das casas mais antigas, onde se nota também uma certa variedade de
construções e de fachadas e onde há algumas modestíssimas, como, certas construções
térreas, distingue-se um conjunto que é valorizado – precisamente as casas de granito de
boa ou razoável qualidade e pouco retocadas. Estas casas são actualmente objecto de
intervenções – como colocar a “pedra à mostra”, retirando o reboco, que visam
implantar uma imagem de rusticidade e genuinidade. Essa imagem, em que os traços de
uma ruralidade idealizada – porque silencia a dimensão social e os enormes custos
humanos da vida agrícola da maioria – ocupa alguma utopia arquitectónica do país rural
promovida pelo Estado Novo.
Em matéria sucessória utilizam por vezes a quota disponível dos seus bens –
consoante a legislação, o terço ou a metade dos seus bens que cabiam a cada progenitor
– para beneficiar um dos filhos. Tal benefício visava claramente perpectuar a sua
presença espacial, pois a esse filho cabia a residência, que não era dividida, e as terras
que confinavam com a mesma. Há uma consciência reconhecida mesmo em
documentos de valor simbólico da presença das casas no espaço local. Até quase aos
nossos dias as casas locais mantiveram-se por dividir, procurando dotar-se outros filhos
com casas, habitação e terra, na região. A presença espacial dos médios “antigos”, com
práticas similares à sua escala, também perdurou até aos nossos dias.
49
Ver a este propósito das várias dimensões da memória familiar local, José Manuel Sobral, Memória e
Identidades Sociais – dados de um estudo de caso num espaço rural, in Análise Social, vol.XXX, nº
131-132, 1995, pp.289-313.
II – O CONCEITO DE COMUNIDADE
A pertinência de um conceito relacional de comunidade poderá servir para
denotar o relacionamento específico entre os membros de uma dada colectividade
social, ligada por laços múltiplos de importância crucial para os que nela se inserem, de
grande intensidade e que se sobrepõem – o vizinho pode ser ao mesmo tempo o parente,
o amigo, o companheiro de trabalho; estas redes de relações são formadas pelos que têm
a mesma posição de classe ou posições próximas no espaço social. Comunidade neste
sentido distingue-se da noção de local, bem como da realidade concreta da localidade,
pois só de aplica a componentes essenciais do sistema social local, como as classes
dominantes. Embora o conceito de comunidade pressuponha relações dotadas de uma
dada instabilidade socio-temporal e um determinado território – o da aldeia – procura
designar uma realidade com a história própria, sujeita a dinâmicas de sentido oposto,
centrípetas e centrífugas.
III
PARTE
I – RECALCAMENTO TEÓRICO DO CONSERVADORISMO
Mas, foi neste contexto que teve lugar particularmente nas regiões do Norte e
Centro uma avalanche de levantamentos locais. Atendendo a que, quer os
levantamentos locais quer, mais tarde, os resultados eleitorais contribuiram para fazer
inclinar para a direita o peso instável das relações de força, trata-se, porém, agora já não
tanto de constatar como de explicar este fenómeno, aliás não específico da situação
portuguesa, mas igualmente presente, por exemplo, em Espanha, Grécia, Itália. Tal
obrigar-nos-ía a recorrer e a avaliar os modelos teóricos correntes que pretendem
explicar a acção campesina. No entanto e em nosso entender, o comportamento
campesino reside na conjugação de dois factores estreitamente inter-relacionados; por
um lado, a predominância da economia agrário-campesina e, por outro, as relações de
dependência pela maior parte dos moradores não só face à sociedade dita envolvente
(classes dominantes e particularmente Estado) como no seio da própria colectividade
face aos patronos e caciques locais.
De modo geral, poder-se-ia dizer que, quanto mais pobres eram os moradores,
mais dependentes e subservientes teriam que apresenta-se face aos seus “benfeitores”.
Fosse para conseguir trabalho ou terra arrendada, fosse para pedir emprestados gado e
alfaias agrícolas (arado, carro, prensa), os jornaleiros e camponeses mais pobres
encontravam-se dependentes e entregues à “boa vontade” ou “confiança” dos
camponeses médios e abastrados. Por vezes sucedia criadas e/ou jornaleiras acederem
aos desejos sexuais dos seus “patrões/patronos” a fim de lhes cair nas boas graças e,
senão compromete-los numa estratégia matrimonial, pelo menos, garantir o trabalho e,
consequentemente, a subsistência para si e suas famílias. A dádiva era contudo uma
forma de controlo social e político, sendo o preço de tais favores bastante elevado.
Sucedia frequentemente que as famílias de jornaleiros executavam “trabalho por favor”
para os padrinhos “ricos”, em troca de uma ou duas refeições para si e eventualmente
para os seus filhos. Mesmo neste caso teriam que ficar agradecidos, pois o facto de
poder trabalhar na casa de um bom lavrador ou proprietário constituia um sinal de
preferência e protecção, significando que este estaria pronto a ajudar a família
necessitada. Deste modo, enquanto aos pequenos lavradores lhes era dificil obter
jornaleiros nas épocas das colheitas, médios e abastados lavradores, sobretudo o
presidente da Junta, dispunham de voluntários entusiastas que, particularmente nas
lavradas e malhadas, esfolhadas e vindimas, ofereciam gratuitamente a sua força de
trabalho num ambiente competitivo e festivo. Esta atitude não era contudo uma simples
expressão de “falsa consciência”, mas uma estratégia calculada, realista, suportadora do
mal menor, cujo objectivo central era a sua sobrevivência. Só no fim da década de 60,
com o aumento do movimento migratório é que diminuiu um pouco a dependencia dos
jornaleiros e dos camponeses pobres. Ou seja, a emigração constituindo válvula de
escape para um ambiente cada vez mais tenso a nível local, veio aliviar um tanto não só
os moradores pobres que partiram como os que ficaram, o que os leva a desafar: “se não
fosse a emigração, comíamo-nos uns aos outros”.
50
Patrocinato: mecanismo de vinculação pessoal e/ou dependência do cliente em relação a pessoa
socialmente influente denominada patrono. Sobre o modelo explicativo da desigualdade social tendo
por base o conceito de controlo sobre recursos directos ou indirectos.
O conservadorismo dos camponeses parcelares é determinado socialmente e,
neste sentido, coincidem a abordagem histórico-materialista e a weberiana. Porém
metodologicamente considerada, a acção conservadora não é redutível á acção social
compreensível de Weber, tal como notam Bader e outros acerca dos limites da teoria da
acção weberiana: «... neste conceito de acção racional, ‘compreensível’, encontram-se
irrevogalmente inseridas relações sociais estruturais, que, por seu lado, não se deixam
reduzir à acção ‘compreensível’.» Com efeito, verificam-se no chamado
conservadorismo camponês actos não intencionados que, provindo de e sendo
determinados por factores endógenos e estruturais, não são redutíveis á acção
«compreensível». Desde que os camponeses parcelares se encontrem relativamente
libertos do domínio feudal, mas sem estarem integrados no modo de produção
capitalista – ou se estiverem em grau muito reduzido -, será verosímil verificar uma
atitude política passiva e esquiva. A existência duma relação entre as caracteristicas
básicas da sociedade camponesa e a sua resistência passiva parece evidente. Quer os
resultados obtidos no trabalho de campo, quer elementos recolhidos da historiografia
portuguesa, apontam para seguinte hipotese: os camponeses, sendo hostis ao risco,
esforçam-se por: a) Sobreviver como camponeses e obter um mínimo de segurança
existencial através do controlo dos recursos disponíveis, nomeadamente conquistando
ou preservando pelos meios ao seu alcance o(s) seu (s) pedaços(s) de terra próprio(s)
ou arrendado(s) e, eventualmente, as terras comunais; b) Deitar mão de todas as
oportunidades palpáveis, a fim de melhorar as suas condições de vida e consolidar a sua
posição,bem como a do(s) seu(s) filho(s) herdeiro(s)/a(s). Não obstante as limitações
que implica oferecer uma esquematização da economia ou do modo de produção
camponês em relação ao seu funcionamento concreto em determinado tempo e lugar,
torna-se pertinente referir algumas características típicas da economia campesina
tradicional, proporcionando assim um instrumento analítico importante para conhecer
compreender, interpretar e explicar a acção campesina.
Contudo, e contrariamente à concepção evolucionista linear partilhada pelas
teorias da modernização e que pressupõe a existência dum continuum entre a «aldeia»
atrasada e a cidade «civilizada», o agir dos camponeses apresenta uma racionalidade
específica que nem totalmente é dominada por um qualquer poderoso sistema exterior.
A negação ou a subestimação da economia, da racionalidade campesina, bem como dos
seus estratagemas de resistência por parte de muitos cientistas sociais, políticos e
historiadores, conduziu a que se sobrevalorizasse a racionalidade formal moderna,
inerente à origem e ao desenvolvimento do capitalismo, considerando os camponeses
«atrasados» e «ignorantes», «parolos» e «selvagens», remetendo as suas normas e
valores para o campo do irracional e do mágico, do supersticioso e do religioso. As
múltiplas estratégias destes entrecruzam-se numa variada gama de comportamentos e de
formas de acção que de modo algum são redutíveis à lógica da economia de mercado,
cujos os elementos, embora presentes, nem sempre são dominantes ao nível
microcósmico da aldeia. È nesta linha que o campesino é considerado, por um lado, um
«estrato intermédio» «uma fracção da pequena burguesia tradicional», ou então é
equiparado substancialmente ao proletariado, não obstante o manto jurídico, entendido
como puramente formal, da propriedade familiar. Nada de admirar que, em
consequência da atribuição de categorias derivadas dos sistemas feudal e capitalista, o
camponês permaneça efectivamente, na expressão de Marx, um «hieróglifo indecifrável
para a razão do homem civilizado».
A título ilustrativo, na formação social portuguesa de 1930-60\70 não se
verifica a proletarização, para a qual teriam contribuído as estratégias de sobrevivência
e resistência do campesinato, reforçadas aliás pela linha político-ideológico do
nacionalismo salazarista, rurarista, adeverso ao processo de industralização moderna.
Em princípio, é plausivel a tese que quanto mais independentes são os camponeses,
maiores são as suas possibilidades de resistência e maior a sua força de negociação
perante outros parceiros socio-políticos. E, quanto menores forem as suas capacidades
de se organizarem e a sua inflência no jogo eleitoral parlamentar, tanto mais forte será
a tendência para esperar a sua «salvação» de instituições como a Igreja, o Exército ou
individualidades na área do poder, favorecendo soluções bonapartistas, reflexo, por sua
vez, das relações patriarcais presentes em grande parte das economias domésticas
campesinas. Oliveira Martins e António Sérgio designaram este arrivismo liberal de
devorismo ou de regabofe, em que «o barão sucede ao monje e o conde come o
fidalgo».
No seguimento, e em paralelo com revoltas anteriores no princípio do século,
nomeadamente a de1808-09, a revolta campesina conhecida por Maria da Fonte (1846-
51), que se iniciou nas regiões nortenhas mais montanhosas e menos comercializadas, é
explicável não tanto pela penetração do capital, mas pelas extorsões fiscais, pela
coerção física militar, pelo desrespeito perante a organização interna das colectividades
campesina e seus valores, nomeadamente religiosos, e pela intromissão policial-
burocrática (regedor e funcionários camarários) na vida da aldeia por parte dum Estado
que se pretendia cada vez mais centralista. Princípios e dogmas da economia liberal,
proclamados pelos citadinos republicanos, esbarravam com as tradições imersas na
sociedade rural. A política dos republicanos, assim como os seus interesses e valores,
afrontavam directamente os camponeses. Por outro lado, se o envio de camponeses-
soldados para os campos de batalha da primeira guerra mundial fazia aumentar o
descontentamento entre as populações rurais, a racionalidade dos «iluminados»
republicanos, inclusive dos radicais da Seara Nova, induzia-os não só a não
compreender, mas também a estigmatizar a dita «irracionalidade das crenças e das
«supertições» religiosas dos camponeses, levando o regime a reprimir, pela mão dos
carbonários, moral e fisicamente os padres, o que impedia a expressão livre das práticas
religiosas.
O corporativismo e o ruralismo salazarista revogoraram assim o bloco agrário-
comercial, reforçando deste modo a hierarquia e a desigualdade estruturais já existentes.
Inspirando-se na «filosofia» escolástico-tomista, assim como nas encíclicas papais anti-
racionalistas e antimodernistas do século XIX (Diuturnum, Syllabus e sobretudo
Rerum Novarum), o salazarismo jogou com os sentimentos de descontentamento e de
angústia dos produtores artesãos e camponeses envolvidos num quadro não capitalista,
transpondo para um cenário mistificador determinados valores da realidade campesina,
como a família e dever, pátria e crença, poupança e glorificação do trabalho rural da sua
história e tradições. Estes elementos não eram, contudo, apenas imaginários nem faziam
unicamente parte da retórica salazarista, mas reflectiam traços da realidade do Portugal
agrário, designadamente das chamadas camadas médias e, particularmente dos
camponeses. E isto arrastaria consigo um efeito de reconhecimento junto das famílias
campesinas, de modo que, aos seus olhos, o regime surgia e agia como legítimo. Este
aspecto sintetizou-o Eduardo Lourenço do seguinte modo: “Para os camponeses,
Salazar era o legítimo representante da nação”.
51
A respeito da evolução política contemporânea em Espanha, Romero-Maura, afirma que o
caciquismo enquanto forma de exercício de poder, situar-se-ia no reino da discricionaridade, ou seja,
nos antípodas da democracia e da liberdade.
Não tendo em conta este sistema de vínculação e dependência do cliente face a
uma pessoa influente, denominada patrono, a acção doa camponeses e demais actores
locais, designadamente a sua posição de alinhamento socio-político tradicional e, em
regra, conservador no Portugal contemporâneo, não poderia ser compreendida e
explicada. Embora em contextos e sob formas diferentes, o sistema patrocinal, sem
constituir um fenómeno ubíquo e universal, tem sido co-presente a diferentes tipos de
sociedades, desde os patrimonialistas de ordenação patrícia, passando pelas feudais-
aristocraticas e colonizadas, até às actuais formas, com diversos graus de dependência:
mais acentuados nos sistemas de latifundio, menos visiveis e marcantes nas sociedades
agrário-camponesas de minifúndio.
CONCLUSÃO
“... c’est sur la logique de l’economique que nous devons agir, en l’integrant
dans le fait social-culturel total, d’aprés differents modèles, selon les differents cultures
chaque ensemble formant un modèle intégré: modèle de développement qui sera aussi
modèle de démocratisation économique, politique, des activités locales, régionales et
universelles, du travail en tant que valeur à égalité avec le loisir-créateur.”54
Parece-me que uma possibilidade de tratar estes factos consiste numa análise
das transmissões entre gerações, transmissões de património como das coisas imateriais
(autoridade e prestígio, principalmente).