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Introdução

A perspectivação e análise da unidade e da diversidade das instituições, das


organizações e dos processos sociais e culturais constituem um dos objectivos
fundamentais da ciência antropológica. Os fenómenos sociais estudados são fenómenos
observados em actores sociais com os quais se viveu. Se esta característica é ponto
comum adquirido entre todos os antropólogos as dificuldades e as divisões, porém,
surgem quanto aos modos de expressão e de transmissão desta unidade múltipla, dos
materiais de observação e da experiência vivida.

Uma primeira dificuldade reside ao nível dos conceitos. Tratando-se de uma


disciplina recente, e não de uma ciência constituída como as ciências naturais, a própria
designação de Antropologia é polissémica e polimorfa, situando-se em níveis lógicos
diferentes: Etnologia e ou Antropologia, Antropologia social, Antropologia cultural,
Antropologia cultural e social. A tradição terminológica francesa insiste na primeira
designação e, consequentemente, na pluralidade irredutível das etnias e das culturas. A
tradição anglo-saxónica acentua a segunda designação e, por isso, a unidade do género
humano. Mas, enquanto os antropólogos britânicos privilegiam a análise das instituições
(Antropologia social), os antropólogos americanos relevam o estudo dos
comportamentos (Antropologia cultural), utilizando o apoio da linguística e semiótica
na análise difuso-interpretativa das comunidades humanas. Não obstante estes atritos
com sabor a nacionalismos, a designação de Antropologia cultural e social entronca na
tradição terminológica francesa mais constante, onde a palavra etnologia oscila entre o
sentido restrito de classificação histórica dos povos, através dos seus traços culturais e
do estudo das semelhanças e diferenças entre sociedade e cultura, na base de dados
recolhidos etnograficamente, e o sentido mais amplo e compreensivo da definição das
propriedades gerais da vida social e cultural das sociedades humanas e da explicação da
sua diversidade.

Trata-se portanto, de três abordagens diferentes ou mesmo de três momentos


da mesma abordagem dentro da mesma disciplina: Etnografia, Etnologia e
Antropologia. A primeira consiste na recolha e descrição sistemática, directa e o mais
pormenorizada possível, dos fenómenos observados no trabalho de campo. A segunda
analisa, num primeiro nível de abstracção, os materais recolhidos pela Etnografia,
fazendo emergir a lógica específica da sociedade estudada. Por último, a Antropologia
explica, num segundo nível de inteligibilidade e numa abordagem generalizante, as
prioridades gerais da vida social e cultural, construindo modelos que permitam
comparar as sociedades entre si, e mais importante ainda privilegiar a interpretação dos
factos sociais e culturais como unidades integrativas do todo comunitário. Uma
dificuldade porém reside na disjunção e na classificação da investigação fundamental e
da chamada “antropologia aplicada”, à qual preferia apelidar de antropologia regional, e
na fixação dos respectivos objectivos. Esta questão está ligada ao problema das
especializações regionais, das especializações fundadas em níveis e em domínios de
estudo ou ainda em especializações que têm afinidades com outras disciplinas das
ciências humanas. Após a fase da antropologia arcaizante ou primitivista, assiste-se,
hoje e cada vez mais, a uma colaboração estreita e a uma cohabitação pacífica entre
historiadores, sociólogos, psicólogos e antropólogos no estudo das comunidades
tradicionais e das sociedades modernas industrializadas e tecnológicas.

As fronteiras entre as diversas ciências humanas são fluídas. variam segundo as


fases do desenvolvimento de cada uma delas e segundo as preocupações dominantes, a
partir das quais cada ciência se define num dado momento histórico. Cada disciplina
contribui para o desenvolvimento das outras, sob a forma de dados e de conceitos,
abrindo-lhes novas perspectivas. O saber científico sobre o homem, em comparação
com o saber científico sobre a natureza, encontra-se numa fase de desenvolvimento
progressivo, mas muito lento e por aproximações sucessivas. deste facto resulta a
importância da investigação fundamental em antropologia. Por outro lado, os
defensores da chamada antropologia aplicada são confrontados com a ambiguidade
deste conceito e com a diversidade de ideologias sucessivamente defendidas. Margaret
Mead, ao estudar a educação e o desenvolvimento da personalidade nas populações das
ilhas Samoa, pensava que os seus trabalhos deviam permitir estabelecer uma sociedade
melhor e aplicar uma pedagogia menos frustante à sociedade americana. Os
antropólogos estão directamente confrontados, actualmente, com um movimento de
homogeneização sem precedentes na história, ou seja, com o desenvolvimento de uma
forma de cultura aliada ao crescimento industrial e urbano e uma personificação do
pensamento do racionalismo social. A questão que se nos coloca, constantemente, é
saber como uma sociedade pode chegar ao estádio de desenvolvimento actual sem
choques dramáticos e sem riscos de despersonalização, de desestruturação e de negação
da sua identidade e unidade.

Um dos objectivos essenciais da Antropologia é ajudar os actores sociais a


compreenderem este desenvolvimento actual e permitir a uma determinada cultura a
explicitação da sua diferença. Não nos parece, no entanto, que ela deva ter,
fundamentalmente, um objectivo messiânico, ou o objectivo de organizar política,
económica e socialmente o desenvolvimento desta diferença, sem excluir, porém, que
esse objectivo se concretize subsidiariamente. Não se trata de demarcar posições mas de
as tentar conjugar num projecto interdisciplinar, para tentar uma Antropologia de
denvolvimento plural adaptado às realidades, aos recursos, aos saberes locais e
regionais.

A persistência no estudo das sociedades ditas primitivas, mantendo a tradição


metodológica da pesquisa monográfica sobre unidades étnicas-territoriais é a auto-
proclamada Antropologia genuína, que por muito diversificada que apareça na sua
aparelhagem teórica e analítica de acordo com as correntes e sub-correntes em que ela
se dobra e desdobra a funcionalista, a estruturalista, a dinamista, a neo-marxista, a
substantivista, etc., que serão abordadas e tratadas no primeiro capítulo deste trabalho,
tem como característica principal, reivindicar o estudo das sociedades primitivas, como
objecto único e exclusivo da Antropologia; esta, que muito tem contribuído e continua
a contribuir para o conhecimento dos povos e das culturas e para o próprio
desenvolvimento das ciências sociais em geral, não pode, ignorar o distanciamento
progressivo do seu objecto, e o consequente isolamento a que está sendo reduzida no
panorama das ciências sociais e o risco de um dia vir a ser confundida com a história ou
arqueologia ou paleontologia ou qualquer coisa que se pareça. A ciência antropológica
tem direcções, que por si não são necessariamente opostas, com detalhes que se podem
encaminhar no sentido da reafirmação das linhas orientadoras como disciplina
científica.

O retorno ao mesmo local onde tinha nascido, descobrindo que também o


“nós” é objecto antropológico, claudicando, contudo, duma posição de exclusividade no
tratamento e análise dos dados recolhidos; a exploração duma tradição de modernidade,
de progresso e civilização, a tentativa de rever os outros em nós próprios; um face to
face, por assim dizer, que permite discriminar o que nas sociedades ocidentais é
acomodação ao novo e sujeição ao passado; um desvio, apenas, como pretende
Balandier1, ou uma alternativa, como pretende o Prof. Dr. Yañez-Casal 2. Ao enveredar
por um processo de reconversão metodológica e teórica a Antropologia pode permitir
análises próprias e específicas dos problemas significativos e interpretações do mundo
de hoje. As atitudes, ou mudança de atitudes, face a um objecto de investigação, não o
tornam mais inteligível; torná-lo-ão mais manipulável, e abrirá novas linhas de
orientação para possíveis investigações de campo, o que também pode no entanto ser
uma apreensão científica caso existam limitações.

A hipótese de trabalho de Durkeim tratar os factos sociais como se fossem


coisas continua a ser regra de ouro na prática de investigação das ciênciais sociais. 3Não
se trata de discutir de que lado se deve colocar o antropólogo ou a Antropologia, na

1
Georges Balandier Le Détour, Fayard, Paris, 1985.
2
Adolfo Yañez-Casal Antropologia e Desenvolvimento, in Etnologia (revista semestral do
Departamento de Antropologia da FCSH, na UNL, Janeiro/Junho de 1991.
3
Emile Durkeim Les Règles de la Méthode Sociologique, P.U.F., Paris, 1947.
minha opinião a investigação deveria circunscrever-se a um código de valores éticos a
que o antropólogo estaria sujeito relativamente à sua prática a montante e a jusante da
investigação em si. Em qualquer caso, o posicionamento teórico do investigador
implica sempre uma deformação da realidade, seja qual for o seu ângulo de vista, mas
isto é outra questão que transcende as preocupações específicas da Antropologia e que
desde Max Weber se coloca ao nível da própria epistemologia das ciências sociais. O
que importa é saber se a Antropologia, na sua maior ou menor componente científica,
(que de uma forma geral lhe é reconhecida), tem ou não capacidade teórica e
metodológica para estudar e analisar a problemática das sociedades actuais e partir em
pé de igualdade com outras disciplinas sociais e conseguindo uma igualdade
interdisciplinar. Isto não é mais do que uma legitimação de uma disciplina que sendo a
última a chegar ao “festim”, tem o direito de reclamar para si uma fatia da enorme tarte
composta pela cultura e sociedade, que as restantes disciplinas sociais reclamam para si
e não digerem a intervenção da nossa disciplina antropológica.

O impacto da Antropologia dinamista de Balandier nos meios universitários


franceses dos anos 60, pôs a descoberto todas as possibilidades antropológicas que a
Escola de Marcel Griaule e o Estruturalismo de Lévi-Strauss negligenciavam,
reconciliando a Antropologia com o seu verdadeiro objecto: as sociedades históricas, no
seu processo de estruturação, destruturação e reestruturação. O projecto de Balandier,
no entanto, não teria sequência e continuidade que se previa ou que as suas obras
deixam prever. A dialéctica da tradição/modernidade, de que o seu pensamento
continuava a estar imbuído, aliada ao fervor marxista e neo-marxista da época pós-
estalinista, fez reagir alguns dos seus discípulos Claude Meillassoux, Edmund Terray,
Pierre-Philipe Rey, os quais vão promover uma Antropologia de perfil claramente
marxista, baseando-se, fundamentalmente nos conceitos de modos de produção e
articulação de modos de produção. A renovação teórica neo-marxista introduzida por
estes autores, provocou tensões e debates acesos entre os antropólogos, que se
revelaram extremamente importantes, quer do ponto de vista da renovação geral da
Antropologia, quer do ponto de vista metodológico e teórico circunscrito. Existiam
aspectos concretos das sociedades pré-industriais4 negligenciados pela Antropologia
clássica, o económico por exemplo, enquanto outros eram excessivamente valorizados
como por exemplo o parentesco.

Na área das relações económicas, a Antropologia acumulou conhecimentos e


testou hipóteses que podem contribuir de forma decisiva para a compreensão e
explicação de fenómenos ainda obscuros na prática social do desenvolvimento rural.
Coube sobretudo à Antropologia anglo-saxónica, particularmente a sua corrente
substantivista, o mérito de ter desenvolvido a maior parte dos conhecimentos relativos
aos sistemas económicos dessas sociedades “primitivas”. Karl Polanyi 5, ao estudar a
crise do liberalismo económico dos anos 30-45, foi conduzido ao contrário dos
(marxistas a provar que o liberalismo, quer como fenómeno histórico de inovação, quer
como doutrina, quer ainda como ideologia), é apenas um caso europeu surgido com a
Revolução Industrial, que consistiu essencialmente na separação entre o económico e as
restantes funções sociais, através do aparecimento de um mercado auto-regulador e
independente da sociedade.

A inserção do económico no social, constituindo uma totalidade integrada, é


característico das sociedades pré-mercantis estudadas pela Antropologia. Nelas, o
económico produção de subsistências, circulação e distribuição de bens, nas palavras de
Karl Polanyi, consiste num processo instituído de interacções entre o homem e o seu
meio físico, sujeito a vários princípios de integração social: reciprocidade,
redistribuição e troca directa, funcionando numa esfera horizontal ao nível do
4
O termo “pré-industriais”é utilizado por alguns autores para caracterizarem as comunidades
campesinas, próximas e propícias a um desenvolvimento industrial progressista. No entanto, este termo
aqui apenas se aplica numa forma de inteligibilidade adjacente a teorias antropológicas recentes ácerca
do desenvolvimento das sociedades ocidentais. É de salientar contudo que neste trabalho de campo
estamos muito longe de qualquer aproximação com este tipo de sociedades, uma vez que se trata de
uma comunidade em estudo, onde apenas e só os camponeses, jornaleiro/a (s) e patronos são objecto de
análise conreta, constituindo um todo comunitário. Se houvesse a necessidade de integrar esta micro-
comunidade em estudo num todo económico integralista chamar-lhe-ía comunidade autónoma.
5
Karl Polanyi La Grande Transformation, Gallimard, Paris, 1983.
parentesco e vizinhança e vertical no simbólico, isto é, entre os camponeses e suas
familias funciona em termos de igualdade e o nível simbólico das trocas equipara-se ou
está adjacente ao clientelismo e às dívidas para com os patronos e instituições locais
como a Igreja, o Grémio e a Junta de Freguesia, onde códigos de conduta moral estão
interligados com a honra e a vergonha. É um pouco na linha de pensamento de um
grande antropólogo francês muito referenciado, Marcel Mauss, ao sublinhar a natureza
de determinados fenómenos “económicos” das sociedades ameríndias, como “factos
sociais totais”6. Ao atingirmos esta base de teorização, procura-se interpretar e
compreender a autonomia latente no meio rural em estudo, facto que necessita de ser
analisado a partir de um conhecimento integrado do meio físico e humano que envolve
todo o espaço em estudo. É com o intuito de desenvolver a problemática da
antropologia do desenvovimento que o conceito de autonomia vai ser o objecto
económico em estudo com todas as suas linhas de orientação para o social e a vida
colectiva da comunidade em causa. Esta autonomia é um entrave e um estorvo ao
desenvovimento integrado, no entanto é esta a realidade da comunidade campesina que
se conhece e se procura interpretar e compreender, não apenas induzido na experiência,
mas como uma hipótese de um processo que permita á comunidade construir a sua
história de mudanças sem bloqueios, sem involução, sem perder as diferenças que nós
nela procuramos.

A Antroplogia procura estas diferenças, recorrendo ao estudo das estruturas e


das funções “pré-desenvolvidas”7. Não se pretende aqui enveredar pela problemática do
desenvolvimento, mas apenas servirmo-nos desta problemática para dar forma e
conteúdo à encruzilhada das dinâmicas internas e externas, horizontais e verticais,
6
Marcel Mauss Essai sur le don, in Sociologie et Anthropologie, P.U.F., Paris, 1950.
7
Convém à partida informar que se trata da comunidade na qual estou integrado e que me viu crescer
nas várias formas que este conceito possa ser interpretado, pelo que conheço o funcionamento das
instituições locais e modelos de integração no meio do campesinato, bem como as relações sociais
adjacentes. No entanto e para evitar os riscos do etnocentrismo, senso comum e empirismo excessivo;
os temas serão tratados numa perspectiva histórica que se reporta à época do Estado Novo onde as
informações mais importantes são recolhidas de fontes escritas e muito preferencialmente através da
oralidade e transmissão de conhecimento oral pelas pessoas mais idosas, informantes privilegiados.
subjacentes a qualquer modelo de desenvolvimento rural. É aqui onde se podem
compreender os diferentes princípios de estruturação e de organização social, política e
económica, e ainda onde se procede às principais clivagens entre as práticas sociais
concretas e as estratégias conflituais entre os individuos. Assim, os temas clássicos da
Antropologia, o parentesco, a organização política, o simbólico e a produção doméstica,
adquirem perfis e dimensões que não poderão ser postos de parte.

Relativamente ao mundo rural, a Antropologia parece estar bem situada para


formular hipóteses sérias que permitam avançar neste tipo de análise. Pode-se enunciar
logo à partida a tendência que têm as populações rurais, nomeadamente ao nível da
comunidade doméstica, para salvaguardar a sua autonomia, que, é tanto maior quanto as
ameaças exteriores de desintegração social são mais intensas. A partir de hipóteses deste
tipo, muitas outras podem ser facilmente deduzidas e pesquisadas, tentando descobrir
quais os objectivos políticos, económicos e ideológicos 8 que as comunidades rurais,
enquadradas num determinado processo de desenvolvimento, esperam ver respeitados e
tornados realidade.

A introdução da Antroplogia em Portugal, em termos de modernidade, pode


ser referenciada ao ano em que simultaneamente são publicados dois livros que
inauguram duas linhas de pesquisa que viriam a ter um desenvolvimento diferente. É
em 1948 que Jorge Dias, no âmbito do recém criado Centro de Estudos de Etnologia
8

As hipóteses de pesquisa que estão na base deste trabalho estão integradas neste objectivo sob a forma
de conceitos que melhor se adaptam à realidade concreta em estudo sendo, que ao aspecto político
corresponde o patrocinato (este vínculado à administração judicial e ao clientelismo); ao aspecto
económico já referenciado está vinculada a autonomia adjacente à produção doméstica e às relações de
troca na horizontal e também na vertical, sendo estas a nível simbólico; e no que diz respeito à
ideologia do campesinato, não irei entrar na problemática da abordagem materialista-histórica do
marxismo, mas sim compreender as linhas de orientação de que eles (camponeses), são conhecedores e
pelas quais regem os seus comportamentos, que nos transporta para um nível cultural enraízado em
valores centrais e muito conivente com o período histórico em estudo, isto é, o Estado Novo, a que se
deu o nome de “conservadorismo”, que irá ser tratado posteriormente como significação cultural.
Peninsular, publica Os Arados Portugueses e Vilarinho da Furna. A formação
académica do autor numa disciplina que em Portugal não tinha qualquer âmbito
institucional e o plano sistemático que havia esboçado para a actividade a desenvolver
pela equipa dos investigadores daquele Centro, definiram o facies da pesquisa e os
trabalhos publicados nas décadas seguintes. As duas linhas a que me referi foram: o
inquérito extensivo cobrindo a globalidade do território continental (também alargado
às ilhas atlânticas) visando o levantamento e análise dos elementos da cultura material;
e o estudo intensivo de pequenas comunidades, com trabalho de campo e com o
objectivo da restituição dos dados recolhidos e do seu tratamento sob a forma de
monografias9, das quais apenas duas foram publicadas. Apesar de jorge Dias ter tido a
intenção de proceder ao estudo outras aldeias, como por exemplo, Castro Laboreiro,
todavia não se concretizaria. De facto, foi o campo definido pela primeira linha antes
referida que veio a ser priveligiado em toda a actividade do Centro de Estudos de
Etnologia Peninsular - com algumas incursões mais limitadas cobrindo aspectos da
organização social no âmbito da família, do parentesco e da ritualidade levados a efeito
por Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira - num conjunto de trabalhos de grande vulto
que mobilizou os investigadores mais recentes e acima de tudo contribuiram para o
crescimento e despertar da Antropologia em Portugal e o interesse pelo conhecimento,
interpretação e explicitação dos comportamentos culturais e sociais das micro-
comunidades aldeãs. Podemos ainda destacar as investigações levadas a cabo por
Fernando Galhano, Benjamim Pereira e Margot Dias.

Considerando a inúmera produção de estudos realizados nos países do Sul da


Europa por antropólogos de formação disciplinar académica, sobretudo de matriz
anglo-saxónica, que Pitt-Rivers formalmente inaugurou em 1954 com a sua monografia
The People of the Sierra, Portugal permaneceu relativamente periférico como campo de
investigação antropológica. O estudo de Emílio Willems (1955) sobre a família em
Portugal, a monografia de Joyce Riegelhaup (tese de doutoramento de 1964 que
permanece inédita) sobre a aldeia estremenha de S. João das Lampas, e os trabalhos de
Colette Callier-Boisvert sobre Soajo (1966) e sobre o sistema de parentesco português
9
Vilarinho da Furna (1948) e Rio de Onor: Comunitarismo Agro-pastoril (1953).
(1968), são demonstrativos da importância que a sociedade portuguesa tem no contexto
antroplógico como fonte e objecto de análise e interpretação, isto é, conhecer o “outro”
vizinho e não distanciado. É todavia com a obra de Cutileiro - A Portuguese Rural
Society - que os “terrenos portugueses” passam a incorporar e a participar do debate
científico da antropologia em geral. Estas indicações não têm, evidentemente, qualquer
carácter de exaustividade, nem podem dar conta da variedade de temas, modelos de
abordagem e perspectivação teórica que caracterizam os autores ou os seus trabalhos.
Mas, com elas pretende-se indiciar a multiplicação de pesquisas concretas passíveis de
análise e investigação antropológica dentro dos “terrenos portugueses”.

Na base da formulação inicial deste trabalho de investigação a ser realizado no


âmbito do Seminário de Investigação do curso de Antropologia, está um tema
unificador: estudo de caso de uma micro-comunidade aldeã no Alto Trás-os-Montes. As
unidades de análise na sua referenciação ao espaço, as formas de apropriação social e os
sentidos produzidos pelo grupo, parecem de particular interesse para abrir o campo para
uma reflexão sobre o que podemos designar de dimensão corrente da pesquisa
etnográfica que, para facilitar, se desenvolve no quadro da comunidade local. Mas qual
a natureza e os contornos específicos dessas comunidades? Poderíamos por começar
esta resposta contornando toda a especificidade dos conceitos territorialidade e
espacialidade, no entanto esta tarefa segue mais adiante.

Introdução ao enúnciado da questão:

A gestação da matriz de comunicação do homem tradicional, que sucede ao


“antigo”, na Sociedade Rural Portuguesa é cada vez mais solidificada, assumindo
contornos diferentes na contextualização espaço-tempo, mais fragmentária e sobretudo
difusa e polimorfa. Projectos universalistas, compromissos comunitários , identidades
colectivas, cruzam-se com liberdades e identidades individuais, com afirmações de
diferença e alteridade no seio de uma realidade social e cultural sincrética.

Este trabalho constitui uma tentativa de análise das práticas culturais e


processos símbólicos associados à emergência de novas estruturas sociais e de
estratégias políticas conjuntas com o económico. Trata-se de um estudo de caso de uma
micro-comunidade camponesa onde se interrelacionam componentes culturais e sociais
associadas ao meio e à relação deste com o camponês e suas estratégias de
sobrevivência. Depois de alguns estudos concretos nesta comunidade constatou-se que é
nas práticas culturais mais elementares que se revelam as complexas fracturas sociais
resultante do conflito e da dinâmica dos comportamentos dos actores sociais. O
processo normativo de funções e integração do grupo e das instituições na comunidade
implica um conjunto de processos simbólicos que insistem na coerência de valores
subjectivos que circulam entre “homem/honra” e “violência/vingança” associadas à
diferença entre a identidade colectiva e a mentalidade colectiva.

Numa primeira parte da abordagem do trabalho serão expostos os objectivos


fundamentais que tecem a abordagem da Antropologia social e cultural no tecido das
questões e preocupações conceptuais dos principais modelos teóricos com a perspectiva
complementar e de abordagem sistémica à contextualização temporal e espacial no
historicismo concreto das “estórias”10 que se irão utilizar. Por conseguinte procura-se
neste pensamento antropológico, em relação a um objecto empírico, uma abordagem
epistemológica constituinte e a emergência de novos paradigmas teóricos. A utilização
destes instrumentos de análise e informações teóricas são subordinados à observação
das situações na sua complexidade e às questões concretas daí decorrentes,
nomeadamente aos elementos sociais determinantes e reguladores da prática social. Esta

10
Achou-se conveniente a utilização da metodologia das “histórias de vida” para melhor acentuar o
carácter antropológico desta monografia. Tratando-se de um estudo de caso era inevitável o recurso ao
saber e conhecimento dos actores sociais. Sendo assim a melhor forma de se conhecerem as relações
sociais é o recurso à oralidade e por conseguinte à transmissão oral de realidades concretas vividas
pelos camponeses e as interpretações que daí podem resultar.
por conseguinte define o devir social, elemento estruturante na delimitação das zonas de
autonomia e constrangimento com as quais os actores sociais (camponeses, neste caso
concreto) foram confrontados num determinado período do contexto histórico recente
do Portugal salazarista.

A comunicação e o senso comum, são igualmente objectos de análise como


fundamentos da cultura e da própria vida. As suas diferentes linguagens, com destaque
particular para as diferenças implícitas e reformuladas de acordo com a estruturação da
memória social e da memória cultural. A percepção, produção e apropriação do tempo
social e cultural leva-nos à estruturação do espaço ligado à pluralidade dos actores
sociais, com práticas culturais iguais ou semelhantes e com capacidades desiguais de
estratégia no mesmo meio, o rural. A Antropologia do desenvolvimento orienta-nos
num sentido mais lato quando se serve do económico para comparar
desenvolvimento/subdesenvolvimento num âmbito universalista. No entanto é a partir
do conceito económico de autonomia no contexto da Antropologia do desenvolvimento
que neste trabalho se vai desenvolver a problemática do caciquismo e política local,
articulando as oposições e cooperação na comunidade de modo a existir uma evolução
em processos preferidos.

Quando se pretende interpretar os comportamentos dos camponeses11 perante o


exterior ou inovações impostas pelo mundo civilizado, a demonstração da importância
dos factores económicos são evidentes e o conceito de autonomia está circunscrito à
auto-subsistência e policultura intensiva integradas num ciclo isolado de relações de
troca e venda com os vizinhos, as aldeias e o lugar circundantes, que compõem o todo
da freguesia em estudo. Para concluir analisa-se a produção e reprodução dos bens
materiais (desde o “palmo de terra” até à melhor “junta de bois”), a estruturação

11
O termo camponeses (parcelares) / campesinato, subsumindo diversas camadas hierarquizadas,
engloba uma classe social, composta de homens e mulheres que, organizados em unidades domésticas e
baseados exclusivamente na força de trabalho familiar, dispondo do cultivo de um ou vários pedaços de
terra, próprios ou arrendados, vivendo, eventualmente em complementaridade com outras fontes de
rendimento, apenas pu sobretudo do produto do seu trabalho.
associada à cooperação e inter-ajuda, bem como a existência do potlach; a produção e
reprodução do poder local (a autoridade judicial-administrativa e os informadores -
bufos)12, reproduzindo um sistema de representações. Para finalizar procura-se
compreender a importância dos caciques e suas representações como forma de control
social e a importância destes (caciques / patronos) na investigação de elementos que nos
aproximem da cultura rural.

A justificação deste projecto de trabalho parte do interesse fundamental em


conhecer e interpretar uma realidade concreta do campesinato a partir do interior do
meio rural; decorrendo as razões teóricas das relações de produção no campo que nos
pode fornecer elementos essenciais para uma divisão teoricamente fundada do
campesinato em classes; a restituição da determinação estrutural destas jamais se
esgotará ao nível do económico. A correcta definição do lugar ocupado pelas várias
classes e facções de classe do campesinato no conjunto das relações ideológicas de uma
formação social é componente indispensável da referida determinação estrutural
composta de sistemas.

Se aceitarmos que a caracterização da “natureza” do ideológico é inseparável


da sua articulação com todos os níveis da sociedade, nomeadamentem com o
económico que em última instância, o determina, deveremos concluir à priori que só no
âmbito de um a problemática sociológica materialista é possível construir uma teoria
das ideologias. Faltam contudo construir operadores teóricos que articulem as instâncias
do material com o ideológico numa matriz de relações de causalidade estrutural, isto é,
perspectivar a reprodução das relações de produção na eficácia do ideológico não é
suficiente13. Ter em conta a especificidade do funcionamento do ideológico é outra das
12
O termo “bufo” reporta-se ao período histórico do salazarismo para referenciar individuos que eram
informantes oficiais ocultos do regime, causando a desconfiança entre a população de forma a controlar
os movimentos adversos ao regime.
13
Assumir em todos os momentos da investigação a intenção metodológica contida na cláusula da
“determinação em última instância”, será, pois, condição necessária para a definição das “razões de
ser” (Marx) das ideologias. Satisfazer esta condição impõe uma crítica ao obstáculo utilitarista ligado à
noção de interesses de classe.
condições necessárias ao processo de investigação em curso. A identificação das
ideologias (sistemas ideológicos) com o conjunto heterogéneo das manifestações
ideológicas observáveis numa formação social, conduz à confusão entre o que é do
plano da produção e o que é do plano da expressão.
Metodologia

Na segunda metade do século XX, operou-se uma autêntica e profunda


viragem teórica, conceptual e metodológica no domínio da Antropologia, sobretudo no
âmbito do estudo do dinamismo do sistema social e das suas transformações, numa
ruptura total com a tendência dita intelectualista e meta-antropológica da etnologia
francesa e com o funcionalismo nos seus pressupostos a-históricos das necessidades e
finalidades. Apresentaremos aqui as características fundamentais, teóricas e
metodológicas da análise sistémica, cultural e do interaccionismo simbólico.

Não é possível analisar aqui a grande riqueza e diversidade de investigações


que se desenvolveram e se desenvolvem, actualmente, no domínio da análise sistémica,
da análise cultural e da análise dinâmica, no âmbito da chamada “antropologia da
modernidade”. Georges Balandier, Roger Bastide, Claude Rivière, Edgar Morin, Joel de
Rosnay, entre outros da Escola francesa; Erving Goffman, Edward Hall, Paul
Watzlawick, entre outros, da Escola americana de Palo Alto, lançaram as bases das
teorias antropológicas da mudança social e do dinamismo da cultura e da comunicação.
Os primeiros autores acentuam a realidade conflitual de situações de dependencia
económica, tecnológica e política; estudam as relações sociais de dominação, ligadas à
“situação colonial”; e analisam as mudanças sociais ligadas à dinâmica própria duma
determinada cultura. Os segundos, numa bordagem pluridisciplinar e numa perspectiva
sistémica, que reúne antropólogos, semiólogos, geneticistas, biólogos, e outros
especialistas das ciências humanas e sociais, analisam as teorias modernas do
interaccionismo simbólico e da comunicação, á luz das noções de cultura, de grupo
social ou de valores sociais, no movimento constante onde emergem novas informações
e acentuadas diferenças.

A Antropologia clássica foi dominada pelo paradigma teórico, de tipo holístico


e sincrónico, característico da perspectiva funcionalista e durkheimiana. Transposto do
princípio de causalidade da física clássica e enxertado na tradição positivista
durkheimiana, este paradigma assentou no pressuposto do primado do social em relação
aos comportamentos individuais, que são resultado de constrangimentos impostos pelas
estruturas sociais, estruturadas num tempo diacrónico e relativamente estável, que lhes
dão sentido e significado. Trata-se de um modelo teórico de pensamento e de um
quadro conceptual globalizante, de tipo normativo que explica as práticas individuais
pelas estruturas sociais globais, de natureza diferente daquelas, por meio de
“representações” que traduzem a interiorização do social nas consciências e nos
comportamentos individuais. O seu objectivo consiste, assim, em descrever e explicar o
funcionamento específico das estruturas, produzidas pelas instituições e reproduzidas
pelos diversos grupos sociais.

Na Antropologia contemporânea predomina o paradigma teórico, de tipo


atomístico e diacrónico, consubstanciado na compreensão e na interpretação da
significação e do sentido produzido pelos individuos como actores sociais, em
interacção. Este modelo, que assenta na tradição do interaccionismo de G. Simmel e da
fenomenologia de A. Schultz, explica a produção do social pela acção dos individuos
que interagem entre si, através de formas e conteúdos constrangentes de relações
sociais, através da adopção colectiva de inovações ou da adaptação às modificações
operadas no meio ambiente. São priveligiados os conceitos de “comunicação”, a matriz
social da vida moderna, a relactividade das normas socio-culturais e o contexto do meio
ambiente ou espaço físico14.

14
Watzlawick, P. L’invention de la réalité, Paris, Seuil, 1988, pp. 19-43.
1. Análise sistémica

O paradigma sistémico afigura-se um instrumento pertinente e um modelo


adquado na análise das complexidades e propriedades dinâmicas do sistema
sociocultural, tais como conflitos, desvios, comportamentos colectivos, poder coercitivo
e mudança social. Assim, na área das ciências sociais e humanas, a partir dos anos 60, à
ideia de teoria geral ou específica dos sistemas, substituiu-se a ideia de um paradigma
sistémico, cujo fundamento já fora expresso por Pascal: “É tão impossível conhecer as
partes sem o todo, como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.” O
conceito de sistema, que exprime a unidade complexa e o carácter fenomenal do todo,
bem como o complexo de relações entre o todo e as partes é indissociável de outros
conceitos fundamentais, tais como a interdependência, a totalidade, a organização e a
complexidade. A “interdependência” é o princípio que indica que numa unidade
sistémica qualquer modificação numa das partes ou variáveis tem efeitos directos ou
indirectos, latentes ou manifestos, sobre todas as outras partes constitutivas. A
“totalidade” não é uma soma de elementos, segundo o paradigma racionalista
cartesiano; o sistema é um todo não redutível às suas partes: o todo é mais que uma
forma global, pois implica o aparecimento de qualidades emergentes que as partes
podem não possuir. A “organização” exprime o carácter constitutivo das interacções e
das interdependências e constitui a coluna vertebral do sistema – o colectivo.

O grau de “complexidade” de um sistema depende do número e do tipo de


relações que ligam entre si elementos que o compõem. Estes elementos são dotados de
características principais que se desdobram entre a organização no espaço (estrutural) e
no tempo (funcional), sendo ainda de acrescentar uma certa estabilidade adjacente a
qualquer sistema. No entanto a “complexidade” caracteriza a originalidade do sistema e
mede a riqueza de informação que contém. Joel de Rosnay propôs uma análise
macroscópica dos sistemas para se apreender esta complexidade. Todo o sistema está
confrontado com alguns problemas fundamentais: a sua relação com o meio ambiente, a
sua organização hierárquica, a sua conservação e a necessidade de variação. Cada
sistema tem o seu ambiente próprio, constituído pelo conjunto de sistemas com os quais
se relaciona. As interacções entre o sistema e o ambiente (ecossistema) são
representadas como “entradas” ou “saídas” que podem ser constituidas por matéria,
energia e informação. Os sistemas estão organizados internamente segundo uma certa
hierarquia, no entanto apartir de um sistema fechado (aquele que se pretende
apresentar), as inalterações entre unidade sistémica e unidade ambiental não
apresentam, em função do nível de investigação, qualquer significado importante.

No nosso entender a abordagem sistémica não é uma teoria, ou seja, um


conjunto logicamente coerente de proposições explicativas fundadas em alguns
postulados fundamentais e não falsificáveis ( no sentido popperiano do termo) pela
experiência metódica. Não é igualmente um paradigma teórico, ou seja, um conjunto de
proposições construídas para fundamentar um modelo de explicações, enxertado na
tradição positivista durkeimiana e transposto do princípio de causalidade da física
clássica.

Ela é, sobretudo, o que Raymond Boudon chama um paradigma conceptual 15,


não apenas como indica este autor, um vocabulário de enunciação de proposições
explicativas, mas também, um conjunto de instrumentos intelectuais operatórios para
analisar os dinamismos socioculturais de uma sociedade complexa, simplificando a
análise dos seus mecanismos sem reduzir os diferentes processos aleatórios.

Ao focar uma análise sistémica, no nosso campo de investigação, temos que a


enúnciar como parte metodológica e a partir deste princípio podemos considerar que
todo o conjunto social é constituído pelo relacionamento interaccional de três sistemas.

15
R. Boudon, Note sur la notion de theorie dans les sciences sociales, in archives europeénes de
sociologie, 11, 2, 1970 pp.203-219.
Por sistema entendemos “todo o objecto complexo, formado por elementos
componentes distintos ligados entre si por um determinado número de relações”16.

Estes três sistemas são - o sistema empírico, o sistema político e o sistema de


representações. O primeiro compreende a organização por parte do grupo local, do
ecossistema, dos recursos, da população, das necessidades para a sua sobrevivência;
abrangendo os processos pelos quais uma população se mantém em vida (modo de vida)
e se reproduz, os processos pelos quais habita, dispõe e ordena a terra conjuntamente
com outras populações e, os processos pelos quais produz a troca de bens. O segundo, o
sistema político define e coordena as oposições e a cooperação na comunidade,
controlando estes três processos de modo que evoluam segundo os estados preferidos17.

Na ligação, sempre problemática, entre estas duas ordens de realidade, ou entre


dois sistemas, é imaginado um terceiro sistema de representações, que compreende os
processos culturais (mais particularmente, e segundo os casos, os processos míticos,
misticos, religiosos, ideológicos,...), pelos quais a comunidade assume os outros dois
sistemas.

Estes três sistemas relactivamente autónomos no sentido de que são capazes de


auto-regulação, tendo as suas leis próprias; não são essências independentes 18 porque
estão sempre em interacção na totalidade concreta do grupo local global. Não se
estabelece à priori uma hierarquia entre estes três sistemas. Segundo os momentos
históricos ou segundo os momentos de análise, isto é, um sistema regula o
funcionamento dos outros e coordena as suas interacções complexas. É deste jogo de
interacções entre os sistemas constitutivos da comunidade em estudo (dinâmica
endógena) e entre estes e os da sociedade tradicional (dinâmica exógena integrante),
que resulta a inovação social19.

16
W. Bucley, A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, S. Paulo, Cultrix,1976, pp.75 e Seg.
17
Edgar Morin, Le paradigma perdu: la nature humaine, Paris, Seuil, 1973, p.50.
18
J. Freund, L’essence du politique, Paris, Sirey 1965.
Numa primeira etapa tentaremos reconstituir graças aos dados históricos sobre
a comunidade, esta dinâmica endógena, ou seja, as relações tradicionais dos três
sistemas apoiados em relações de clientelismos e patrocinato (relações na vertical).
Numa segunda etapa, examina-se a dinâmica exógena, as modificações ou estagnações
que afectaram estes sistemas nas relações da sociedade tradicional com expoente
máximo no conservadorismo. O paradigma conceptual do modelo sistémico,
instrumento que nos ajudará no decorrer desta abordagem, para ser operatório, deve
justificar os dinamismos socioculturais de uma comunidade activa (que funciona),
estruturada e evolutiva, e da sua inter-relação com o meio ambiente e as suas
finalidades.

Este modelo constitui um ponto de partida da investigação e não se recorrerá a


uma explicação para a ele adoptar uma realidade social. Este instrumento deve ser
dialecticamente confrontado com a realidade social para o questionamento desta mesma
realidade, a fim de se poder ter um conhecimento, pelo menos relactivo, cuja explicação
não seja mutilação e cuja a acção não seja manifestação.

O modelo da teoria geral dos sistemas de L. Von Bertalenffy 20; não se afasta do
formalismo e determinismo clássico aliado à complexidade de um sistema linear e
causal. Do mesmo modo, os modelos funcionalistas definem a função do sistema,
procurando detectar os princípios do seu funcionamento, o “como”, a explicação do
exterior ao nível institucional das formas directamente observáveis (os elementos só
assumem significado em razão de uma situação num conjunto real ou logicamente
constituído). No entanto, estes princípios são inadequados para o tratamento, análise e
interpretação da nossa problemática.

19
R. Bastide, La causalité externe et la causalité interne dans les explications sociologiques, in cahiers
internationaux de sociologie, 21, 1956, pp.77-99.
20
L. Von Bertalenffy, General sistem teory, Nova Iorque, Braziller, 1968.
I
PARTE

I – CONTINUIDADES SOCIOTERRITORIAIS

Abstraíndo-nos de eventuais fenómenos de sincretismo religioso que possam


ter estado na origem de característcas estruturais precisas da sociedade, as interacções
tanto no plano interno (endógeno/horizontal), como no plano externo (exógeno/vertical)
dos processos de morgenese social e cultural nos quais aparecem fenómenos
correspondentes ao fecho das sociedades locais sobre as suas respectivas identidades
particularistas.

O princípio estrutural de integração que elas subentendem é aquele que se pode


designar por princípio de identidade, por oposição ao princípio de correspondência que
predomina na estruturação das sociedades industriais modernas.

As interacções endógenas, interregionais, a complexificação do universo socio-


cultural envolvente e a incorporação de elementos culturais descontextualizados vem
contribuir para a diferenciação das micro-sociedades que compõem os diferentes
espaços regionais. O metabolismo social e cultural determina a centralidade das
relações sociais fundadas sobre o interconhecimento e o pessoalismo (relações em
situação de frente a frente), a que subjazem processos precisos de cognição e de
assimilação da complexidade do universo envolvente. Uma das manifestações mais
visíveis destes fenómenos de morfogénese cultural e social é a permanente reactivação
da cultura oral no espaço rural. A imbricação da prática e do conhecimento, vinculada
pela oralidade e pela apreensão visual traduz o tipo de mediações cognitivo-relacionais
que operam a internalização dos elementos exógenos nas diferentes culturas tradicionais
locais constitutivas da sociedade. Ou seja, a oralidade enquanto medium privilegiado de
cognição e de reconhecimento recíproco dos actores sociais, não constitui um fenómeno
de recessão cultural, antes pelo contrário. Vista pelo lado das funções interculturais que
ela preenche, pode ser considerada como um dos dispositivos comunicacionais
fundamentais dos processos de acomodação, de assimilação e de internalização às
alteridades que emergem dos próprios processos de diferenciação sócio-cultural, bem
como o género e a intensidade das trocas simbólicas que ela subentende.

A segmentação e heterogeneidade dos tecidos sociais territorializados,


identificados como unidades sócio-espaciais, indica uma constitucionalidade socio-
cultural específica, caracterizada pela autonomia relactiva que as sociedades locais
possuem em relação à sociedade envolvente, sendo esta definida pela interacção das
mesmas. Transpostos num outro plano, esses fenómenos subentendem também a
constitucionalidade socio-política de tipo unionista, dotada de uma capacidade
extraordinária de resistência histórica. Orientadas por este princípio estrutural de
identidade no qual predominam os tópicos de proximidade, de similariedade e de
analogia, as ordens institucionais tendem a imbricar-se umas nas outras à maneira da
imbricação do pensamento e da acção que ocorre nas culturas orais. Nas sociedades
tradicionais de espaços múltiplos das quais a sociedade portuguesa é um bom exemplo,
o princípio estrutural da correspondência, que subentendem a diferenciação das
instituições, aparece em posição de subordinação ao princípio de identidade.

A articulação dos dois princípios estabelecida por uma relação de ordem, faz
com que a integração social se processe diferenciação socio-territorial, a partir da qual
as instituições se diferenciam por produções de espaços socio-culturais distintos, cada
qual apresentando a sua própria configuração institucional relactivamente
indiferenciada e, por conseguinte, onde persistem tendências para a não diversificação
das actividades económicas.
Na medida em que este aspecto se prende directamente com a lógica de
evolução do sistema social, designadamente através das separações institucionalizadas
entre esferas de actividade económica e esferas de vida, importa explicitá-lo para fazer
aparecer aquilo que designo de modus vivendi do campesinato rural. Na sociedade
portuguesa tradicional, pluri-espacial e pluri-cultural, são os mecanismos de regulação
da vida social que estão na origem do facto social que nos interessa isolar – ao invés do
que acontece nas sociedades liberais, nas quais a lei do mais forte comanda a lógica de
evolução do sistema social, nas sociedades de espaços culturais múltiplos e
territorializados, representadas no nosso caso, essa lógica evolutiva, obdece à lei do
mais fraco, e é, às possibilidades afectivas de que dispõem os grupos sociais mais
desprovidos de recursos para penhorar os grupos mais poderosos e arquitectar
estratégias de defesa apoiadas em relacções simbólicas e de parentesco ou amizade.
Enquanto expressões desse poder que vem de baixo não excluem seguramente as
relacções de dominação e exploração.

Neste sentido, quanto mais importante for a componente oral da comunicação


intercultural mais a lei do mais fraco condiciona a estruturação e a evolução do sistema
social, dado que a oralidade implica para os membros das colectividades que a
subentendem um estar e um ir juntos ou, como se prefira, a participação de todos na
construção social do destino colectivo. Uma outra manifestação desses fenómenos de
morfogése social e cultural prende-se com as formas de aprendizagem e com as
modalidades de difusão do saber fazer e com as técnicas nas sociedades tradicionais. Os
espaços culturais delimitados e diferenciados por saberes transmitidos pela
expressividade oral e gestual constituem-se em simbiose com as tradicões das diversas
componentes socio-territoriais da sociedade de espaços multiplos, enquanto dispositivos
de defesa de identidades colectivas territorializadas, cujas respectivas coesões internas
são permanentemente reactivadas por reacção aos efeitos disruptores da proxidade da
sociedade envolvente. Na mobilização interna dos recursos cognitivo-relacionais
efectuada nessas crispações defensivas esses grupos de identidade adquirem uma
excepcional plasticidade adaptativa; só que a defesa constante das identidades colectivas
locais que constituem o mosaico sociocultural, representa também a esterilização de
importantes potencialidades de inovação e de desenvolvimento endógeno a qual reverte
em atraso e em subdesenvolvimento.

Do lado da agricultura, a especulação sobre os solos provoca pela extensão da


àrea geográfica, o recurso estratégico da agricultura tradicional familiar, coloca
insolúveis problemas de gestão às explorações agrícolas, os quais obstam à
modernização das mesmas. A região que se designa aqui por Alto Trás-os-Montes,
compreende apenas uma pequena parte, restringe-se a uma freguesia do concelho de
Vila Pouca de Aguiar, onde encontramos este microcosmos que é o nosso campo de
acção. Com características geográficas próprias, insere-se num todo maior que é a
província transmontana. Quem diz província diz unidade histórica.

Mergulhada no isolamento da Serra da Padrela, num vale profundo, privada de


bons acessos, à margem da grande circulação, encontramos a primeira aldeia da
freguesia – Valoura, de natureza rude, clima excessivo, solo bastante fértil, habitada por
uma grei rural que, mantendo a tradição comunalista vivaz, pratica uma agricultura de
técnicas rudimentares e cria os seus gados, bastando-se a si própria, oferece desde logo
uma fisionomia peculiar que a distingue. Os seus limites variam pouco. Se a Norte
encontramos a saída para a aldeia mais próxima também pertencente à freguesia – Vila
do Conde; e a Oeste o terceiro aglomerado que encerra a freguesia – o lugar de Cubas, a
Sul e a Este, vemo-nos confrontados com as formações montanhosas que fazem parte
da Serra. A sua riqueza em água, proporciona o nascimento de alguns riachos que
aparecem aqui como eixos da actividade económica e social, tratando-se de uma àrea
ribeirinha, estes condutos levam a vida a toda a extensão do seu vale.

Porventura em nenhum outro local esta influência centrípeda se faz sentir tão
vivamente. Os seus traços diferenciais a Norte e a Sul não conseguem obliterar de todo
um certo ar de parentesco. Se se descer porém, a uma análise mais delicada dos factos
geográficos e territoriais, desde logo se distinguem duas àreas, cada uma das quais
constituíndo uma unidade que, se por um lado resulta das condições do solo e clima
influênciado pela proximidade da Serra, é principalmente função das energias humanas
e do modo como se manifestam – culturas, exploração do solo, povoamento, relações
económicas. Resulta em grande parte destas condições essenciais do meio natural toda
uma série de factos da geografia humana. São eles que individualizam acima de tudo
este espaço territorial. É muito dificil delimitar um espaço geográfico e, nem é este o
fundamento a que dedicamos esta investigação. No entanto, temos que situar a
superfície em causa, se bem que a superfície não se fragmenta em compartimentos
fechados, isolados uns dos outros e justapostos; os contrástes na natureza como nos
factos geográficos derivados da actividade humana, esbatem-se na passagem por
qualquer região.

Díficil, mesmo impossível, é também querer conciliar perfeitamente a


geologia, o clima e outros factos de ordem natural com os factos da geografia humana e
traçar deste modo um limite territorial que seja o geográfico em toda a extensão da
palavra. Definir uma região implica duas séries de operações: a avaliação de conexões
de factos da geografia física que caracterizam um determinado território e o
diferenciam dos territórios vizinhos por um lado, por outro a análise dos factos da
geografia humana que caracterizam uma certa população e lhe dão uma individualidade
própria. Sem esquecer as interdependências destas duas categorias de factos, desde logo
se vê que a uma região natural se não sobrepõe exactamente uma região humana.
Admitir o contrário, seria postular um estreito e ridículo determinismo geográfico. Não
é, portanto por considerações de pormenor tomando um ou outro facto geográfico, uma
ou outra série de factos isoladamente, que iremos delimitar a freguesia na sua exactidão.

È mister elevarmo-nos a uma vista de conjunto que abrange os factos naturais


da ordem da geografia física, e os factos de humanidade – dando preferência aos
últimos, aliás até certo ponto dependentes dos primeiros.
II – A AVENTURA ETNOGRÁFICA DE NATUREZA
21
INTERPRETATIVA

A aventura etnográfica consiste essencialmente na “ampliação do universo do


discurso humano”. Na investigação etnográfica o antropólogo mergulha num contexto
cultural, num sistema de signos já interpretados pelos próprios observados, mas ainda
reinterpretáveis pelo observador. O objecto de estudo antropológico é uma determinada
cultura, mas o estudo desse objecto é uma outra coisa bem distinta, é uma interpretação
de interpretações. O ponto central da análise antropológica localiza-se na acção social
onde se articula a “lógica informal da vida real” perspassada pelas várias formas
culturais e as diferentes significações dos factos observados.

A coerência de uma acção ou de uma narrativa é uma coisa e o significado


contido nessa acção ou narrativa é outro. Quando a interpretação de uma história, de um
acontecimento, de um texto, de um ritual, etc., nos conduz a qualquer outro lugar que
não seja a sua significação, o trabalho de interpretação falha o seu alvo. O que
realmente interessa ao etnógrafo é fixar ou inscrever o discurso social relatado em
factos ou em palavras, o dito, o enúnciado.

21
Abordagem à natureza interpretativa da Antropologia feita pelo Prof. Dr. Yañez Casal em Para Uma
Questão Epistemológica do Discurso e da Prática Antropológica, Ed. Cosmos, Antropologia, Lisboa
1996.
A descrição etnográfica interpretativa é microscópica, circunscrita, particular,
mas está aberta a interpretações mais amplas e a questões mais abstratas. Geertz admite
que a passagem de um contexto doméstico, de um concreto espacio-temporal, para
áreas, épocas e questões de dimensão superior, constitui sempre um importante
problema metodológico-científico da Antropologia.

A solução que o modelo microcósmico sustenta, baseia-se na ideia de que a


essência das grandes questões, das grandes coisas, sociedades ou culturas nacionais,
civilizações, religiões ou identidades, se encontra em tamanho reduzido nas pequenas
aldeias. O equívoco deste pressuposto, segundo Geertz, reside na confusão que se
estabeleceu entre “o local de estudo e o objecto de estudo”.

Os antropólogos não estudam locais, aldeias ou tribos, os antropólogos


estudam em locais, aldeias e tribos, a vida sociocultural que decorre nesses locais,
aldeias e tribos. Não se pretende extrapolar os conhecimentos obtidos numa aldeia para
o resto de um país ou para um continente, ou tão pouco generalizá-lo para a
humanidade. O antropólogo pode abordar os mesmos temas que a história, a economia
ou a sociologia, mas fá-lo de ópticas diferentes, fá-lo a partir de conhecimentos
extraordinariamente abundantes sobre questões extremamente pequenas, embora de
essência semelhante. Questões relactivas ao poder, à violência, ao prestígio, ao trabalho,
ou à sexualidade, são abordadas pelo antropólogo de forma particularizada, existêncial,
concreta e localizada. No entanto a apologia do concreto, do micro, não elimina,
contudo – sublinha Geertz – o problema metodológico do universal.

O universal, o geral, o global continua a ser objecto da Antropologia, como o é


de qualquer ciência.

A vocação essencial da Antropologia interpretativa não é a de dar respostas às


nossas questões mais profundas, mas a de registar densamente o que os outros dizem
sobre si mesmos e o que nós antropólogos queremos dizer sobre eles. A perspectiva
interpretativa é complexa, embora admita formulações aparentemente simples. Trata-se
de ter acesso ao mundo conceptual dos homens com a finalidade de poder conversar
com eles. Os chamados relatos de vida que designam as histórias de uma vida, tal como
são contadas pelos sujeitos que as vivem, apresentam-se como relatos de práticas
limitadas no tempo, sequências de momentos inseridos na cronologia pessoal;
entrevistas biográficas que implicam uma visão geral da vida do narrador; mini-
histórias de vida, auto-apresentações, reconstruções biográficas com composição das
informações por parte do analista, autobiografias desprovidas da ritualização da
transmissão oral, exigida pelo ouvinte; histórias de vida social cujo relato comporta a
comparação e hierarquização das instituições e a avaliação dos acontecimentos, feita
por narradores que assumem este papel em função de determinados valores sociais e
culturais. Uma das características fundamentais dos relatos ou histórias de vida social
consiste na tomada de conciência do devir do narrador a partir de uma experiência que
se julga decisiva e provocou uma mudança sentida. Esta experiência decisiva permite ao
narrador comparar e avaliar os momentos da sua vida à luz da sua realização pessoal,
bem como ordenar os elementos que ao analista podem parecer díspares e multiformes.
Uma outra característica refere-se à ritualização da transmissão do relato, que permite a
afirmação do devir individual e a possibilidade de o exprimir socialmente. O relato é
introduzido por uma auto-apresentação das linhas directivas a ser desenvolvidas nas
entrevistas subsequêntes, e é dirigido pelo próprio narrador, sem intervenção importante
por parte do analista.

Este tipo de relato caracteriza-se ainda pela forma de participação colectiva de


familiares, ascendentes e descendentes e ainda dos amigos, que são a expressão da
concretização das relações que estão a ser relatadas. Assim, o aspecto mais interessante
da análise biográfica é a “possibilidade que os narradores têm de reflectir, e de fazer o
auto-exame das suas próprias práticas”22. Ainda na sequência deste tipo de análise,
podemos referir a etnobiografia, cujo objectivo consiste na investigação de modelos
culturais colectivos, e não apenas das aventuras individuais, por meio da visão crítica
das relações entre membros do grupo e da relativização das informações, através de
22
D. Desmarais e P.Grell, Les récits de Vie, Méthode et Trajectoires Types, Montreal, Les Editions
Saint-Martin, 1986, p.178.
entrevistas paralelas. A perspectiva etnobiográfica implica a restituição da memória
social e dos modelos culturais a partir dos testemunhos recolhidos; assim, pretende-se,
por meio dos informadores, chegar ao conhecimento dos modos de vida e de
pensamento que caracterizam um determinado grupo.

O analista assume uma atitude o mais apagada possível, a fim de permitir a


narração dos factos por parte do informador, que não se relata apenas a si próprio, mas
relata e retrata os outros, na medida em que estes fazem parte da própria existência do
informador. Nesta perspectiva, a análise etnobiográfica visa a utilização dos relatos de
vida como instrumento e meio de conhecimento e também apreensão dos modelos do
grupo, por meio de testemunhos circunstanciados dos seus membros.

A forma privilegiada da etnobiografia consiste nos relatos de vida acumulados,


em que a temática, escolhida à partida, restringe os relatos a uma escolha estratégica de
determinados fenómenos. Esta técnica implica a necessidade absoluta do controlo da
informação, por meio da análise crítica dos testemunhos e da investigação documental e
por meio da análise de conteúdo. Quer nas autobiografias, quer nos relatos de vida
etnográficos, as questões de interpretação dos dados obtidos são de âmbito psicológico
e de âmbito social. É através da duração das entrevistas e da recorrência das
informações concretas e multiformes que se constroi a estrutura implícita do relato
indicada pelos factos constantes.

A abundancia e recorrência de informações reenvia as escolhas sociais, porque


as numerosas referencias à vida quotidiana permitem evidenciar não apenas as
características pessoais, como também os modos de vida e os valores sociais e culturais,
transmitidos pelos pais e contemporâneos e avalizados pela vida quotidiana. A primeira
forma de verificação da unidade ideológica dos relatos de vida opera-se no interior dos
próprios relatos, por meio da coerência renovada das escolhas, cujas condições são
especificadas pelo narrador e a partir da coerência da memória que reproduz, de
multiplas e diferentes formas, os mesmos critérios de escolha. A segunda forma de
verificação é realizada pelas entrevistas com os contemporâneos do narrador, que
permitem uma convergência que reenvia directamente ao sistema de valores, sempre
que surgem as mesmas escolhas em situações diferentes mas igualmente especificadas:
os relatos ilustram as linhas de força do referente social que é o mesmo. A observação
participante constutui uma terceira forma de verificação.

A técnica da análise biográfica, como instrumento privilegiado da recolha de


dados no trabalho de campo, é muito antiga e diversificada em Antropologia, sendo de
salientar a longa tradição da sua utilização na escola de Chicago, sobretudo na
interpretação de fenómenos de desvio sociocultural e a escola francesa com Marcel
Mauss. No seu manual de etnografia, refere que este método deu excelentes resultados.
Foi seguido por Lévi-Strauss, que refere que o principal mérito dos trabalhos baseados
nas autobiografias consiste na “função de catarse”, porque permitem resolver, pela
eliminação, numerosos problemas resultantes da aparência da realidade inerente à
artificialidade do observador externo. Roger Bastide inclusive vai mais longe ao afirmar
as vantagens fundamentais deste método para uma melhor compreensão do
funcionamento da organização social e dos seus aspectos subjectivos; a interacção dos
sistemas, evitando um recorte arbitrário da realidade; a minimização dos efeitos da
subjectividade do observador que tem acesso aos significantes do observado.

De firmes e profundas tradições, muito limitadas, foi a vida desta comunidade


que estanciavam pelas terras dos montes da Serra da Padrela, dadas as circunstâncias do
isolamento em que se acharam durante séculos, quebrado apenas quando se verificaram
os primeiros movimentos de emigração. Em sistema de vivência patriarcal,
conservando-se os filhos na companhia dos pais e dos avós, para além da constituição
normal de novos casais, que se sucediam no encadeamento das novas gerações do
agregado familiar, que se desdobrava e desenvolvia em crescimento tão propício como
necessário ao amanho das terras que, trabalhadas com tanto interesse e carinho, foram
produzindo para o sustento de todos.
Verificava-se o verdadeiro sentido de que a casa dos pais era a verdadeira
escola dos filhos, no prosseguimento de modelos e práticas de vida moral e religiosa,
económica e social, que, durante muito tempo não sofreu mutações no essencial. O
povo mais sóbrio e persistente nos seus hábitos e costumes, assim como moderado nas
suas exigências de conforto e de habitação, até de alimentação que submeteu à máxima
frugalidade, donde alguns fenómenos, senão todos, de longevidade que lhes foi
proverbial. Poderá arguir-se que é assunto assás comezinho, este de sectores da
sociedade em que se passou a vida despretenciosamente ignorada. Em contrapartida,
defende-se que chegou o momento de considerar a falta que fazem forças de trabalho, a
provocar desequilibrios no complexo social, quando tudo volta as costas à vida dos
campos. Vivia no lugar de Cubas, um ansião que já tinha perdido a conta dos carros de
anos que lhe pesavam sobre os ombros, se é que alguma vez soube ou ligou alguma
importância aos que tinha de sua idade, ou para viver. Havia bastante tempo que não
trabalhava. Sentava-se pelo terreiro, nos degraus da base do artístico cruzeiro à espera
de que algum visitante, fidalgo ou brasileiro lhe desse dois dedos de conversa, mais
alguma coisa para molhar a palavra. Certo dia apareceu um fidalgo, bem vestido e bem
falante, de ares senhoris, transportando-se no seu automóvel, o qual, trocadas algumas
palavras, perguntou-lhe, entre outras coisas, se já tinha ido à Póvoa do Mar.
- Não, meu senhor, respondeu. Eu nunca saí daqui. Aqui nasci entre estes
montes, à sombra destas árvores e penedos tenho vivido e trabalhado e aqui
hei-de morrer. Nunca fui a nenhuma cidade. Daqui só sairei aos ombros de
quatro para o cemitério da freguesia.
- Não pense nisso, disse o fidalgo, pois ainda vai ver todas essas coisas que
nunca viu antes de morrer. Vai dar um passeio comigo. Vai ver a cidade, o
mar, damos uma volta pelo Porto e venho trazê-lo aqui. Vai ver o que é
uma cidade. Vá dizer à sua filha (com quem vivia) que vai dar um passeio
com uma pessoa amiga e volta amanhã. Arranje-se e vamos por aí fora.

Adquirida a confiança de quanto era bem intencionada a disposição daquele


homem de dinheiro, que se sentia feliz de dar-lhe a consolação única da vida, partiu
dali, levado pelo encanto de um sonho em que mal acreditava e viu que um pequeno
bocado do mundo, que ia conhecendo, era extraordinariamente diferente do pequeno
mundo que habitava na encosta daquele apertado vale. Respirou novos ares, contemplou
mais largos horizontes através de um mundo novo muito diferente e foi tão intenso o
abalo sentido pela emoção da novidade, principalmente do mar, de que ouvia contar
tantas maravilhas da sua grandeza, das ondas que constantemente avançam com
montanhas de água para a terra, que se lhe pasmaram os sentidos e poucos dias depois
do regresso ao seu pequeno mundo, fechou os olhos para sempre, sobre o peso de uma
visão que lhe impressionara o mais profundo do ser.

O canastro ou espigueiro, a adega e a salgadeira foram principal ponto de


apoio dos recursos vitais destas aldeias, com bastantes espaçadas voltas aos mercados
ou feiras periódicas, quando até há bem pouco tempo eram ainda muito precários os
meios de transporte e difíceis as caminhadas. É certo que esta comunidade dita
ribeirinha, porque este é o seu meio característico, o seu habitat, como já foi dos seus
antepassados, é incansável no que respeita a jornadear de sol a sol. Com a robustez e
perfeita saúde de que, regra geral, gozavam os que se dedicavam ao trabalho do campo,
apesar da sua rudeza, actividade de sol a sol, as refeições servidas muitas vezes a meio
da lavragem, sentados sobre o temão do arado ou na cabeçalha do carro de bois, que
também mastigavam, no conjunto familiar, umas bem merecidas copas de palha, o
lavrador ancestral soube rodear-se e à sua vida campestre de muita poesia, de muita
alegria de duradoiras recordações, até que sobretudo a emigração lhe fez perder a cor
dessa tonalidade de bem estar e alegria, ao arrancar-lhe o braço vigoroso da mocidade.

“A terra dá-o cru e come-o cozido”, diz o lavrador, por isso lhe sabia melhor o
bruto de um trabalho que era amargado no dia a dia de uma tarefa sempre aberta, mas
com sucesso garantido, isento de aventuras. As principais tarefas da vida campestre,
desde as sementeiras, que transformavam os campos em jardins, em que a terra era
remexida de fresco substituindo a da cor das ervas, a recordar um ar de frescura, até às
colheitas, que faziam a esperança do lavrador, eram animadas de muita movimentação
que alegrava o seu labor e fazia pairar no céu das aldeias um arruído de festa no chilrear
estridente dos carros de bois que desciam dos montes às povoações, carregados de mato
ou lenha nos famosos “carretos”, onde se disputavam as melhores juntas de bois, por
caminhos improvisados e íngremes, transportando também moreias de tojo em
movimento desde os montes aos quinteiros para reforço das energias vegetativas dos
campos debilitados pelas repetidas culturas.Era ainda a quadra do ano de um esforço
hercúleo para o bom lavrador, faina que em grande parte já passouà história, donde o
decréscimo das produções por falta dos adubos naturais da terra. É que, por essa altura,
os carros de bois “cantavam” sob a pressão das “cantadeiras” que lhes serviam de
travões. Esse “cantar” característico, estridente, dos carros de bois, a descer dos montes
à povoação e desta às veigas e campos, dava o máximo sentido da movimentação do
trabalho onde toda a gente se empenhava, propocionando assim uma dinâmica de acção
a todos os elementos do grupo, pela comoção e sacrificio combinado e espontâneo dos
homens e dos animais.

Multiforme e variado, o calendário do lavrador, principalmente das


sementeiras às colheitas, ou de Maio-Junho a Outubro. Entregava-se nos bons tempos,
com a mesma alegria e boa disposição, quer a umas quer a outras. Auxiliando-se de
material muito rudimentar, que não dava o necessário rendimento; são de recordar os
primitivos arados de madeira, de rodinhas, uma caranguejola muito complicada de que
já existem pouquíssimos exemplares, arrumados por cabanais e palheiros, à espera de
melhor sorte, pois são bastante apetecidos pelos modernos museus regionais, se é que
não irão ser metidos no forno de cozer o pão, à falta de outra lenha, pois a maior parte,
desde que caíram em desuso os arados de madeira, aqueceram com eles o forno e
fizeram das relhas, única peça de metal que possuíam, levando-as para tal efeito ao
ferreiro da localidade, pás para tirar as brasas e também as boroas, pás iguais à da
célebre padeira de Aljubarrota.

Lavraram muita terra esses velhos arados históricos23, enquadrados no antigo


sistema do longo temão de madeira e as rodinhas, o que constituía uma complicada
23
Referência ao trabalho de Jorge Dias, sobre os Arados Portugueses, as técnicas de transformação do
meio, seu levantamento e estudo seria um bom projecto de investigação no campo da etnologia e dentro
dos terrenos portugueses.
engrenagem, que dos actuais viventes apenas um ououtro ansião o viu lavrar ou usou
nos campos destas terras. Fundava-se no andar pausado e lento do passo do boi, porque,
se fosse com pressa, tudo se desconjuntaria. E aplicava-se-lhe, porque é desse tempo, o
cantar das “boieiras”, mulheres ou moças que tinham um condão especial para a canção
doce e suave ao gado, como que o fazia andar a dormir ao longo do rego ou sulco que ia
rasgando.

Sucederam-se os arados de aiveca de ferro e seguidamente as charruas, até às


actuais máquinas agrícolas, com que as novas técnicas têm dotado a lavoura, mas apesar
dos progressos palpáveis, os resultados não correspondem inteiramente. Toda a gente
tem saudades desses velhos sistemas. Os trabalhos do campo não têm, pese embora a
moderna maquinaria para os agricultores que a podem adquirir, é o sabor e a poesia de
outrora, porque lhe falta o indispensável elemento humano que lhe imprimia calor,
movimento e vida. A pobreza dos valores humanos é que a empobrece sob todos os
aspectos – diz um lavrador letrado. Ainda não se fazem vindimadas ou vindimas à custa
de máquinas, mas é ver a quase indiferença com que decorrem, o mesmo que acontece
com as podadas, muitas vezes nem se fazem, vendo-se ao longo dos caminhos e das
estradas as vide dos beirais a envelhecerem precocemente por falta de tratamento. Era
o tempo em que os amigos se lembravam de servir e auxiliar os seus compadres,
levando-lhes, mesmo de longe, um grupo de podadores e na altura própria de
vindimadores, prevenidos de escadas e cestos, para todo o serviço, assim como não
faltava o instrumental para animar a tocata que seguia a comitiva.

Belo tempo em que havia muita gente para trabalhar! – Afirma um


proprietário. Agora também há mesmo muita gente no nosso mundo, mas é para
consumir o pouco que se produz, esquecendo-se de que cada um consome desde que
aparece até desaparecer da face deste mundo – continua.

Davam os agricultores do esforço do seu trabalho e do muito que


superabundava da própria subsistência e de seus familiares, de produtos disponíveis que
a terra lhes facultava, muito de que viviam os grandes agregados populacionais de
cidades e vilas que se multiplicam e alastram no âmbito das mais variadas e complexas
profissões, menos a da cultura da terra que a todos mantém.

Eram animadas as pisadas nos velhos lagares de pedra, de prensa de fuso, ou


nos grandes dornões, ao ritmo da música de hamónica ou concertina e os mais
instrumentos indispensáveis, enquanto na cozinha se movimentava o grupo das filhas e
mulher do lavrador, as quais não se poupavam a canseiras para apresentar na mesa, por
volta da meia noite, uma suculenta arrosada, acompanhada de frango da capoeira, com
os demais condimentos do fumeiro e da salgadeira. Histórias que ao menos se vai
fazendo por que o tempo as não consiga apagar tão depressa.

As esfolhadas ou desfolhadas, tinham extraordinária concorrência e


movimento, desde os carros de bois que andavam constantemente nos caminhos entre
os campos e as povoações,no transporte do milho para as eiras, puxados a duas juntas
de gado, de modo a cobrirem-se de montanhas de milho que entorrnavam pelos eidos,
para à noite tudo se desembaraçar em animadas tarefas de descamizar as espigas e com
elas encher ao cestos, a despejar em montes de “massarocas” escorreitas nos celeiros e
sequeiros, enquanro a palha era atada em copas, predispostas a secar, até levantá-las em
medas muito altas, com o auxilio da vara ou galheira. A quantidade de medas à volta do
casal agrícola, como os quartéis de canastros, repletos de espigas, falavam uma
linguagem de maior ou menor abastança do lavrador. Quando se ouvia rumor, mesmo
em certo segredo, de qualquer casmento entre famílias de lavradores, os interessados
casamenteiros não se esqueciam de passar disfarçadamente pelos respectivos casais,
para observarem e fazerem juízos a respeito de conveniências e incoveniências no ajuste
dos esponsais. Não era só casar. Era preciso prever o futuro. “Casa onde não há pão,
todos ralham e ninguém tem razão”.

Fosse qual fosse a altura do sete-estrelo no céu, que servia de indicativo do


adiantado da noite, a azáfama continuava até dar-se o trabalho por concluído. Com voz
esganiçada, e às vezes a coxear e fazer trejeitos de deficientes físicos, para não se
deixarem reconhecer pelos componentes da desfolhada, principalmente da gente moça
que vibrava de contentamento e espalhava o sono, apareciam os mascarados,
embrulhados nos lençóis da cama, ou vestidos de mulher, aos quais as raparigas
desafiavam para irem esfolhar junto delas, com o sentido de os identificar, o que quase
sempre acontecia, menos com alguns que tinham brio de nunca se deixarem reconhecer.
Animava-se a esfolhada, distraía-se para longe o sono até ao fim, quando aparecia a
dona da casa com os canjeirões de vinho, naquela hora sacado da pipa, a boroa e o
bacalhau frito ou as sardinhas trazidas expressamente da feira para aquele fim e saídas
de cima das brasas, sempre acessas na lareira do casal rústico. E então o tempo ainda
chegava para largar mais algumas cantigas e dar umas voltas de dança sobre os
palhuscos da eira.

Antes de recolher para o merecido descanso de um dia bem aproveitado, o


lavrador observava ainda o céu e consultava os seus familiares se estava ou não limpo
de núvens, caso fosse conveniente resguardar da humidade as palhas, abrigando-as sob
os alpendres do casal. Havia que assegurar com mais esmero a garantia do sustento de
animais e gados, considerados uma das melhores riquezas do bom lavrador, cuja
competência e brio se avaliava pelo modo como apresentava o seu gado.

Outra ruidosa serviçada era a malhada do centeio, quando nem sequer se


sonhava com o aparecimento das debulhadoras mecânicas. O centeio, então, podia
malhar-se “a mascoto”, como se dizia, isto é, batido com uma espécie de fueiro contra
uma prancha de tábuas, improvisada, inclinada sobre o apoio de qualquer suporte, de
modo que o gão de centeio ali ia formando monte, trabalho quase exclusivo das pessoas
do casal agrícola.

Tomava então outro aspecto solene, mais tradicional e movimentado, quando


se fazia a malho ou mangual, entrando por conseguinte os malhadores, alguns dos quais
tinham basófia do seu ofício. O centeio era disposto, estendido no eira, quase de pé,
formando uma espécie de tapete muito espesso e com vários metros de extensão, assim
se mantinha sob o aperto do calor do sol, para melhor dar o cereal. Homens a par, ou a
três e frente a frente, batiam alternada e compassadamente a camada de centeio, em
uma cadência ritmada, que estrondeava sobre o lageado da eira. O bater compassado
dos malhos, accionados ao despique por braços e pulsos fortes, sob o sol escaldante de
Julho, ecoava ao longe, levantando no ar farripas de palhas em que se transformavam os
caules, triturados pelas muitas pancadas dos manguais contra o empedrado da eira. Os
malhadores, de briosos, davam quanto podiam e lhes permitiam os pulsos fortes e
robustos. O suor escorria da testa e todo o corpo se alagava em suor que trespassava as
roupas, excitados naquele frenesi que os tornava como que insensíveis à violência que
se lhes exigia. Parte da força encontravam-na nas infusas do vinho que, mal caía no
estomago, logo aflorava à superfície da pele em bagas de suor impertinente.

Para compensação de muitas calorias dispendidas, estas malhdas davam


ocasião a fartas e bem merecidas comesainas, organizadas com antecedência pelas
mulheres da casa, enquanto ao lavrador competia arranjar um cabrito e arrancar-lhe a
vida e a pele. Quanto ao resto, as filhas e mulher punham todo o seu cuidado em
cozinhar as regionalíssimas cabidelas, os bazulaques e as chanfanas, com as fressuras ou
miudezas; ao passo que as carnes propriamente ditas iam ao forno de cozer o pão, em
camadas dos tubérculos da região, vinho de permeio e o que fosse conveniente da
salgadeira, tudo bem arrumado em alguidares de bordos irregulares, próprios para
assaduras no forno, um banquete de se lhe tirar o chapéu, quando todos à volta da mesa
da cozinha do lavrador, iam então bater-se com magníficas peças de carneiro do forno
para refazerem-se do esforço dispendido.

Outra tarefa importante na vida agrícola da época era o linhar. Punha-se


especial cuidado e contentamento na sementeira do linho já com os olhos postos no
bragal que as moças desde muito novas começavam a formar para encher a arca ou
caixa do enxoval que havia de acompanhá-las quando um dia chegasse a sua vez de,
levadas à igreja, era o momento de constituírem novos lares, conforme o seu destino,
em outras convivências familiares de sogros, e às vezes cunhados, cujas simpatias e
respeito desde logo trabalhavam por merecer e conquistar, para viverem todos em paz
doméstica.
A cultura do linho, que infelizmente desapareceu das lides campesinas, era dos
mais complexos trabalhos da nossa lavoura regional. Já para hoje saber destas coisas,
das voltas que o linho dava antes de ser tecido, é preciso puxar pela língua e pela
memória às pessoas de mais idade, as quais contam, então com saudade e a suspirar
pela vida que lá vai, pelas recordações do seu tempo, que não volta mais. De uns anos
para os outros, era geralmente sempre o mesmo campo de linho, no qual lavrada,
semeada e gradada a terra, distribuída por leiras para facilitar as regas periódicas e
engaçada, de maneira tão cuidada que até parecia destinar-se antes a um vasto jardim de
canteiros regulares, colocava-se no fim, ao centro, uma singela mas vistosa cruz de pau,
para o efeito ali mesmo construída, pé e braços ornamentados de festões de ervas e
flores do campo, ficando assim bem demarcada, entre as demais aquela sementeira, à
vista de quem passava pelos caminhos das aldeias e podia fazer juízos de valor sobre o
cuidado e competência como cada lavrador cultivava as suas terras de modo especial
como as raparigas pensavam no seu futuro.

Depois, quando o linho já estava bem saído da terra, eram as regas de tantos
em tantos dias, feitas a rigor, até ao dia em da “arrancada” do linho, que reunia muitos
braços, não só da casa como dos vizinhos que se auxiliavam mutuamente, o que
emprestava àquela canseira uma nota de especial contentamento.

Enquanto às mulheres de todas as idades, competia arrancar e enfeixar o linho,


os homens tratavam, a pequena distância, para onde eram transportados os molhos, de
ripar-lhes a baganha nos dentes do ripanço, enfeixando-o de novo, para ser mergulhado
em uma poça ou regato durante uns quinze dias, afim de apodrecerem as revestiduras
dos caules lenhosos e serem libertados delas, para só ficarem as fibras, que são a base
do linho. Era neste serviço de arrancadas que algumas vezes rapazes e raparigas se
desafiavam para “talhar a camisa”, brincadeira um tanto depravada para o meio e o
tempo, pois consistia em que eles e elas abraçavam-se e agarravam-se, deitavam-se
sobre o linho verde, rolando sobre aquele tapete de verdura, com gáudio e algazarra dos
circundantes, mas não sem a crítica acerva das velhas, que decerto se mordiam de
inveja. No assunto ou contexto das homilias ou práticas dominicais, lá vinha depois a
censura destas brincadeiras, de que não resultava qualquer estrago moral ou material.

Tirado da água, o linho era estendido por encosta soalheira, a secar, antes de
ser levado ao engenho do ribeiro, ou pisão, onde era triturado entre cilindros de
madeira, rolantes uns sobre os outros em espécie de tambor, geralmente de rija madeira
de freixo, afim de o sacudir e separar das escórias, ficando numa grande pasta a que
chamavam a “massa” do linho. Também em na aldeia de Vila do Conde, em vez do
engenho do ribeiro, existia uma grande mesa de pedra junto da eira, a qual servia de
“massadoiro” para quase todos ao habitantes e propriedade de um senhor abastado, no
entanto a operação nunca era tão perfeita como executada pelo engenho do riacho.
Neste caso, o linho era batido e triturado com maços de madeira, semelhantes aos que
se empregavam na debulha das espigas de milho.

Depois, estes grandes tufos de linho, em massa, eram amancheados, isto é,


distribuídos por mãos-cheias e atadas com fibras do mesmo linho, andando nas eiras a
apanhar quanto mais sol possível, e até bem coberto com mantas de lã, para estar bem
aquecido para a primeira espadelada. Quanto mais quente melhor se dá, dizem as
espadeladeiras, mais se afeiçoa à espadela, que o vai transformando em fios sedosos
para o fim em vista.

A Segunda espadelada era mais solene. Geralmente realizava-se em noites


quentes e de luar de Agosto. Reuniam-se as mulheres do lugar, de todas as idades, na
eira, na sequeira, dispostas em círculo, e era bater com toda a energia a espadela afiada
no linho, ouvindo-se ao longe, a cortar o sossego da noite o ritmo compassado das
espadelas sobre os espadeladeiros, ou nos cortiços improvisados que os substituíam,
acompanhados de descantes que emprestavam ao acto, por entre o silêncio da noite, que
avançava, uma tonalidade original e romântica, a que não faltavam os mascarados, com
os seus apupos e vozes disfarçadas, a completar o cenário nocturno.
As tarefas que se seguiam, na evolução do fabrico caseiro do linho, passavam-
se na intimidade da vida doméstica. Era passado pelo sedeiro e pelo restelo 24 e assim se
formavam as estrigas do linho, destinadas à roca, com as fibras já depuradas de todas as
escórias ou impurezas. É que o fio, que daí sairia, ia ser quase todo passado pelos
beiços da fiadeira, e, se não fosse assedado, ela ficaria certamente com os lábios a
escorrer sangue. É certo que elas também fiavam a estopa e os tomentos para tecer pano
da natureza do linho, mas mais grosseiro. Os traços de pano, desta última espécie, eram
destinados ao fundo da tal arca das noivas.

Era do tear caseiro e da combinação de fio de linho com o da lã dos rebanhos


das povoações circundantes e que povoavam os montes, que aparecia a uma outra
riqueza do lavrador, pois daí saía toda a matéria prima da rouparia e da indumentária da
família agrícola, desde as composições para os leitos a roupas interiores e exteriores ao
vestuário. Hoje o linho quase somente se aplica em artísticas peças de artesanato, para
que se criaram algumas indústrias especializadas, na confecção de artigos regionais
muito apreciados no mercado turístico.

É lamentável que a mulher do meio rural vá pondo de parte uma vocação que
muito enobrecia e valorizava, além do muito que contribuía para a riqueza e fama da
economia regional.

24
Este intrumento segundo a crença popular, composto de dentes acerados, servia de meio de agressão
às feiticeiras. Assunto que seria interessante tratar em investigação – as crenças populares àcerca da
magia e superstições.
III – A FAMÍLIA NA HISTÓRIA ORAL

O recurso padronizado da história oral é utilizado pelos pais para reforçar a


disciplina familiar, isto é, usam os tempos de antigos como uma ameaça.
Ocasionalmente surgia a feguesia como a segunda mais importante unidade de
experiência histórica. A incidencia não implica necessariamente que a família seja a
célula básica a partir da qual se formam todas as outras organizações sociais – a Igreja,
o Estado, a comunidade local, etc. . Por outro lado é significativo que as pessoas
interpretem as suas experências no longo prazo histórico em termos de família. As
famílias parecem ter funcionado como unidades económicas fundamentais, funcionando
como unidade básica de consumo, tal como de produção. Os filhos entregavam as suas
eventuais economias aos chefes de família até se tornarem eles próprios chefes de
família com orçamentos e carreiras familiares independentes, quer ramificando-se da
sua família natal, quer herdando o agregado por morte do anterior chefe. Um casal sem
filhos e sem terra era considerado condenado à estagnação económica, se não mesmo à
pobreza, por muito que trabalhasse e poupasse. Segundo alguns historiadores, entre os
quais Marx, este tipo de economia doméstica é uma característica das sociedades
camponesas.

A utilização de antigamente como ameaça tácita aponta para outra


característica importante desses relatos da história oral, na medida em que o enredo de
praticamente todos eles gira à volta da mobilidade ascendente ou melhoramento social.

O interesse popular pelas festividades religiosas tinha como principal razão


uma espécie de “redistribuição” em que os ricos faziam alarde da sua generosidade
oferencendo comida à comunidade. “Quem pode dar dá uma vez, mas quem precisa,
sempre precisa”. Ao mesmo tempo os jornaleiros concordam que mesmo os mais ricos,
eram mais pobres antigamente. Em muitos casos associam esta verificação à afirmação
de que o trabalho agrícola era mais pesado, mais sujo, com mais horas de exposição aos
elementos naturais e com menos segurança de retribuição. Trabalhava-se o mesmo nos
anos bons e nos maus, mas nos maus acabava-se por não ter nada para comer nem poder
pagar a renda ao senhorio.

Ambas as categorias de jornaleiros e caseiros estavam dependentes dos


proprietários que podiam contratar jornaleiros ou tinham terras para arrendar aos
caseiros. A imagem dominante leva muitas vezes a supor que pequenos proprietários
são, e sempre foram economicamente independentes uns dos outros e de qualquer
senhor. As histórias orais recolhidas não corroboram esta suposição. É verdade que ao
caseiros desfrutavam de maior segurança economicamente do que a maioria dos
jornaleiros. Por outro lado, nem todos os caseiros eram iguais e alguns dos relatos orais
dão a impressão de que uma percentagem significativa deste grupo ou era expulsa das
terras sem aviso prévio se aparecia alguém a oferecer uma renda melhor ao senhorio, ou
não podia viver exclusivamente do quinhão da colheita, mesmo que não houvesse o
perigo de ser o arrendamento interrompido. Estes caseiros íam engrossar a classe dos
jornaleiros em anos em que não conseguiam tomar terras de renda ou em épocas em que
havia maior procura de mão de obra agrícola (sementeiras, colheitas, tempo de podar,
vindimas, etc.).
Tanto jornaleiros como proprietários e patrões, recordam com saudade certos
acontecimentos sociais da agricultura – a desfolhada do milho, ou a espadelada do linho
– e alguns descreviam o trabalho agrícola como sendo mais saudável e os tempos
antigos como mais alegres. Esta afirmação de que a vida agrícola era mais alegre
levanta a questão da nostalgia do campo não obstante a interpretação da mobilidade
geral ascendente. Dum modo geral, quando instados a específicar em que aspectos era a
vida agrícola mais alegre, os entrevistados referiam-se às ocasiões do trabalho colectivo
e ao “espírito de celebração”. Esta mesma explicação propõe Moisés Espírito Santo ao
referir-se ao trabalho colectivo25.

Tendo a monografia familiar como fonte básica de informação e as formas


tradicionais da família e sistemas de herança igualitários, afirma Poinsard “... la forme
de la propriété détermine dans une grande mesure l’organization familiale – le mode de
transmission de la propriété la rend stable ou instable, la conserve ou la divise...” 26.

O ponto de partida levava-nos a pressupor que em circunstâncias “normais” os


sistemas familiares, as formas de posse da terra e as práticas de herança estariam
intimamente ligados. Se as formas da família não reflectissem uma preocupação
relactiva à manutenção e à transmissão da propriedade, isso constituiria uma prova da
sua dissolução; e, obviamente, a organização familiar dos não proprietários seria um
reflexo da sua forma desenraízada de existência social.

Mais recentemnte, Massimo Livi Bacci27, invocou a propriedade da terra e as


práticas de herança como factores que podem explicar as variações regionais da
nupcialidade. Argumenta que a baixa nupcialidade no Norte, manifesta no casamento

25
Moisés Espírito Santo, Comunidade Rural ao Norte do Tejo, Instituto de Estudos e Desenvolvimento,
1980.
26
Léon Poinsard, Le Portugal Inconnu, Paris, 1910.
27
Massimo Livi Bacci, A Century of Portuguese Fertility, Princeton, 1971.
tardio e num nível elevado de celibato definitivo, é reflexo de tentativas para evitar uma
maior fragmentação da propriedade.

Num trabalho realizado sobre a família portuguesa, o sociólogo brasileiro


Emílio Willens28, argumenta que no Norte “... na maior parte dos seus aspectos, a
estrutura familiar encontra-se subordinada ao modo como se conserva ou se expande a
propriedade familiar. Se isto poderá ser conseguido retendo na exploração agrícola os
filhos solteiros, a expansão da propriedade familiar (com suas recompensas em termos
de prestígio e de melhoramento do estatuto social), passa a ser reconhecida como o
objectivo supremo a atingir em detrimento de objectivos individuais. O casamento
tardio é mais a regra do que excepção entre os camponeses”.

Ainda de acordo com Livi Bacci e Willems, a organização familiar é


determinada pela forma que revestem as relações de propriedade. O princípio em si não
é original, e está implícito em grande parte da bibliografia dedicada à famille souche –
Bourdieu29.

Existe uma relação clara entre a economia camponesa e a estrutura dos


agregados domésticos. Quanto maior é a proporção de camponeses na população activa,
tanto maior é a proporção de agregados familiares múltiplos, e menor a dos agregados
familiares simples, ou famílias nucleares. Seria obviamente ilegítimo concluir, a partir
destes dados, que os camponeses tendem a viver em agregados domésticos de estrutura
mais complexa que os dos não-camponeses.

As correlações indicam apenas que os agregados de estrutura complexa são um


traço característico de áreas em que predomina a economia camponesa, mas não
permitem qualquer conclusão a respeito da estrutura dos agregados domésticos de
camponeses e não-camponeses no meio rural. Estas dificuldades só poderiam ser
28
Emílio Willems, On Portuguese Family Structure, International Journal of Comparative Sociology
III, 1, 1962.
29
Pierre Bourdieu, Célibat et Condition Paysanne, Études Rurales, 5-6, 1962.
evitadas se se dispusesse de informação a respeito da estrutura dos agregados
domésticos por categorias profissionais. Mas os eventuais efeitos de diferenças entre
sistemas culturais regionais, pelo menos, podem ser controlados através de uma análise
da estrutura dos agregados domésticos no interior de diferentes regiões culturalmente
homogéneas.

À medida que o número de observações é maior, é possível recorrer a


correlações parciais para isolar aspectos particulares desse tipo de economia agrária.
Foram isolados os seguintes aspectos: a) o efeito específico da proporção relactiva de
“possuídores de terra” (proprietários, rendeiros e parceiros) e de outros trabalhadores
agrícolas (assalariados e familiares não remunerados) na população activa agrícola; b) o
efeito específico da proporção de proprietários no conjunto dos “possuídores de terra”;
c) o efeito específico da agricultura familiar (proporção de isolados no conjunto dos
proprietários).

A posse de terra em si (independentemente do título de posse: propriedade,


arrendamento, etc.) tem efeitos limitados sobre a estrutura dos agregados domésticos.
As correlações parecem confirmar que um sistema de famille souche está associado à
propriedade da terra e a uma peocupação com problemas de herança. Estes dados e os
que se seguem resultam de estudos de âmbito local efectuados a partir de matrizes das
finanças locais e registos paroquiais, róis de confessados e fontes análogas.

O tratamento das relações familiares, no que concerne à casa30 ou assumindo


esta como centro, é um assunto algo embrionário e nada pacífico. Abordada por
30
O termo grego “oikos” ou romano “domus” abrangia, nas sociedades grega e romana, não só o
conjunto de bens, assim como o grupo de domésticos submetidos à autoridade patriarcal do
paterfamilias: a mulher, os servos e os escravos. Sobre a evolução e institucionalização da “oikos”, ver:
Max Weber,Economy and Society, editado por G. Roth e C. Wittich, Berkeley, Los Angeles: University
of California Press 1978, pag.358 e segs; e , Piergiorgio Solinas, “A Família” in F. Braudel e G. Duby
(org.) O Mediterrâneo: os Homens e a Herança, pp.59-84, Lisboa, Teorema. Todavia a casa ou família
camponesa e seus eventuais traços patriarcais não se confunde com a aristocrática e, muito menos, com
a burguesa designadamente até 1960.
diversos ângulos por historiadores, sociólogos e antropólogos, estes divergem
efectivamente não só no prisma de análise como, inclusivamente, refere Pina Cabral,
nos diferentes termos utilizados: linhagem, família, lar, casa. Se Radcliff-Brown 31
analisa a família e o parentesco em termos da sua função no todo da estrutura social ou
Fortes acentua o seu aspecto corporativo-jurídico, enquanto fonte de direitos reais e
pessoais virtualmente transmissíveis, outros como Lévi-Strauss sem excluir a noção de
casa, assinalam a importância dos padrões de residência e das relações sociais
estabelecidas através das trocas matrimoniais. Outros ainda entre ao quais destaco
Frield, Goody e Bourdieu assumindo o carácter colectivo do património da família,
salientam mais a sua capacidade de controlo e gestão da propriedade fundiária e demais
recursos domésticos. Esta linha explicativa, explorada em termos mais globais por
Bader e Benchop, remete-nos para a concepção weberiana centrada na análise das
relações de autoridade e poder no seio dos grupos domésticos. Nesta óptica, a
Antropologia ou a Sociologia da família, se constitui um específico campo de estudo,
surge todavia interdependente face à sociologia do poder, abordagem esta posta
igualmente em relevo por Bourdieu, segundo o qual as relações de autoridade e poder
no interior das famílias pressupõem a existência de concorrência geradora de tensões e
conflitos que ameaçam a unidade e coesão domésticas.

Uma das vertentes da conflituosidade doméstica centra-se na polarização


marido-esposa, à qual se associam determinadas dicotomias, tais como domínio da
esfera pública ou formal pelo homem face ao reduto privado ou resguardado decisório
informal por parte da mulher ou, ainda, emotividade espontânea e natural feminina face
à componente racionalizante e cultivada masculina. Sem anular ou subavaliar a
relevante polaridade homem/mulher, a começar pelo fenótipo sexual biológico, a partir
daí são todavia acentuados ou construídos arquétipos que, culturalmente incorporados,
necessitam de ser reequacionados, na medida em que são susceptíveis de reforçar ou
legitimar um enviesamento patricêntrico que tende a compartimentar o formal e o
informal e a sobrevalorizar a esfera pública em detrimento da doméstica, tida por
31
Radcliffe-Brown e Darryl Forde (orgs.) Sistemas Políticos Africanos de parentesco e casamento,
Lisboa, 1974, Fundação Calouste Gulbenkian.
periférica e banal. Sobre o poder doméstico no espaço rural galego, o espanho Iturra,
aduzindo respectivamente a tónica androcêntrica nas prescrições legais e sobretudo nas
práticas sociais, designadamente o comportamento submisso, respeitoso e por vezes,
deferente da mulher face ao marido (tratando-o, por exemplo, “você” ou “senhor”),
salientou como traço dominante a autoridade masculina, ou mesmo patriarcal, em casas
camponesas na Galiza. Num pólo oposto, autores como Willens (1962, p. 67 e segs.),
com base em observações etnográficas de tipo monográfico e, mais recentemente,
Espírito Santo32 apelando aos argumentos de tipo psicanalítico na variante do
“inconsciente colectivo” de Jung, reconhecem o poder patriarcal mas salientam ou
sublimam a telúrica matricentralidade das relações sociais das comunidades
camponesas. Por fim, Pina Cabral, baseando-se em argumentos de tipo simbólico-
valorativo e linguístico-interaccional (por exemplo, designação de “patroa” pelo
marido), mantém sobre o poder conjugal uma problemática de ambiguidade.

Se práticas tais como o local de residência, a transmissão do nome e dos bens,


as interacções conjugais devem ser tidas em conta, mais importante se torna,
articulando-as, incidindo o foco de análise no modo como a composição dos grupos
domésticos e sobretudo a redistribuição do poder doméstico e eventuais conflitos daí
resultantes são afectados e condicionados pelo grau e tipo de recursos materiais e
simbólicos que cada nubente (pessoa que está para casar) traz consigo e/ou adquire na
dependência do empreendimento doméstico: bens patrimoniais, atributos estéticos ou
eróticos, experiência e força física, habilidades, saberes e qualificações, honra, prestígio
ou poder local. Neste quadro, importa distinguir até que ponto a ideologia da
subordinação sexual vai ou não de par com o efectivo controlo sobre recursos e a
capacidade de decisão, o que inclui, além do domínio sobre a força de trabalho familiar
e alheia – quando presente ou convocada - , a planificação e a execução de actividades e
repercurtindo-se em assuntos tais como a procriação e a educação dos filhos, as opções
matrimoniais e profissionais destes ou a devolução de bens. Por outro lado, o facto de
as dinâmicas dos actores domésticos, não constituirem o objecto central deste trabalho,
não se pode obnubilar que nos grupos domésticos se articulam e co-estruturam impactos
32
Moisés Espírito Santo, A Religião Popular Portuguesa, 1980, Lisboa, Regra do Jogo.
nacionais e internacionais designadamente efeitos de vectores económmicos da
sociedade global e determinações estatais na esfera político-jurídica. No entanto, os
ciclos de formação, recomposição, desenvolvimeno e fissão das casas, enquanto locais e
núcleos de reprodução social, assim como a imbricação dos interesses e das emoções
com as respectivas interacções estratégicas no seio das famílias, formam a matriz
dinâmica e contraditória de conservação, diferenciação e transformação dos grupos
sociais, bem como das suas respectivas práticas e valores.

Desçamos, porém à freguesia em estudo, a fim de continuar-mos com a


pertinência do enfoque na família e na casa.

Embora as características dos grupos domésticos exijam um tratamento


diferenciado do grupo social, o facto de a maioria dos grupos domésticos possuirem
casa própria e deterem o mínimo de recursos próprios, permitem sublinhar um núcleo
de elementos comuns à realidade institucional da família centrada na casa: uma
construção física formando uma unidade económica e sexual sob uma autoridade
doméstica capaz de coordenar as pessoas aí co-residentes e gerir a totalidade de bens:
casa e, eventualmente, terra e gado. Enquanto unidade básica da produção, ela constitui
o espaço onde se organizam e distribuem as tarefas pelos diversos membros e, enquanto
suporte de subsistência e reprodução da família, nela se centram as condições e os
resultados da produção, não obstante as trocas complementares com outras casas. Por
sua vez, aos deveres de contribuição proporcional na reprodução passada, presente ou
futura da casa, corresponde o direito de inclusão real e simbolicamente expresso da
comensalidade. Por fim, além de local de residência e sede de representatividade face às
demais casas, a casa constitui o quadro de referência não só económico-assistencial
como cultural-afectivo dos seus membros.

Se a definição ideal-típica de casa e/ou a sua representação implicam um


mínimo de autonomia doméstica, dadas todavia as lógicas diferenciadas de reprodução
e propriedade e/ou força de trabalho, poder-se-ão, para efeitos classificatórios, ditinguir
três tipos de casas: patrimonial, remediada, não-corpórea (pobre). Enquanto a casa
patrimonial, sendo apanágio de lavradores e proprietários é hierarquizada e fortemente
condicionada pelo imperativo de (re)produção, expansão e transmissão de propriedade,
a casa “não-corpórea” e a remediada, englobando respectivamente os jornaleiros e o
grosso dos pequenos camponeses-artesãos ou operários, tendem a reconstituir-se como
unidades pluriactivas e predominantemente voltadas para a reprodução simples e
satisfação das necessidades quotidianas. Nesta óptica, não só o exterior como o interior
de cada tipo de casa exibem marcas sociais distintas como o substrato das regras do
poder doméstico, assim como o carácter deste, as vias de solução de eventuais
oposições também se diferenciam por tipo de casa ou grupo social. Assim, se na casa
remediada e sobretudo patrimonial há bens a gerir que exigem uma definição clara de
quem detém o quê, já na casa simples “pobre” a preocupação básica consiste não tanto
em gerir eventuais magros recursos como em decidir sobre a repartição de encargos, a
fim de obter os meios de subsistência familiar. Na casa remediada designadamente
camponesa, a coordenação e execução de tarefas, quando a luta pela sobrevivência e
pela melhoria das condições de vida o impõe, exigem, em regra, a interdependência e a
unidade dos membros da família, o que é frequente ocorrer até que surjam ou se
procurem alternativas.

Tendo como suporte empírico dados recolhidos do rol de casmentos e


baptizados, onde se encontra discriminado o estatuto social e poder de ordem
económico e de prestígio, encontramos alguns dados curiosos àcerca de conjuntos
familiares e de linhagens da freguesia. Por categoria de possuidores, encontramos três
(3) proprietários em Valoura; a Família Costa com um caseiro 33, já este um lavrador
abastado, uma vez que explorava um casal de grande dimensão que se chamava Mário
da Eira e era casado com Rosa de Jesus, com seis filhos, os quais trabalhavam no
respectivo casal. O pagamento era feito em géneros, alqueires de milho, centeio, azeite,

33
Este conceito corresponde ao equivalente a rendeiro ou feitor, com a particularidade de se tratar de
um agricultor que faz usufruto de um casal que não lhe pertence, mas do qual tira proveito para si e
seus descendentes. Diz a história oral que pertencia ao “cadastro do pobres” inscrito na Junta de
Freguesia e originário do Lugar de Cubas, foi recolhido pelo proprietário José Martins, ainda em
criança, o qual começou por servir até à tomada do casal.
castanhas, etc.; os proprietários vendiam ao Grémio ou a pequenos comerciantes e
muitas vezes aos próprios caseiros que demonstravam um comportamento a que se
ajusta o princípio da reciprocidade negativa, ou seja, compravam com as suas pequenas
economias os géneros com os quais pagavam aos proprietários, e estes para que fosse
mantido o silêncio àcerca das muitas ou poucas posses, correspondiam com favores de
ordem vertical, isto é, prestígio e acima de tudo – a casa.

José Costa era um dos novos ricos que no fim do séc. XIX regressou do Brasil
onde adquiriu uma substancial fortuna, investindo na compra de terras e património
entre o qual consta uma casa brasonada, juntamente com a mulher D. Maria Emília
Machado (pertencente à Família Machado e herdeira de uma fortuna deixada pelo seu
padrinho o Sr. Joaquim Gonçalves que conheceremos mais adiante), e dois filhos – Dr.
Afonso Martins e D. Maria Augusta Martins).

A segunda casa mais abastada na aldeia de Valoura pertence à Família


Machado. O Dr. Joaquim de Sousa Machado era filho de pai icógnito, herdou tal como
a sua irmã parte da fortuna de Joaquim José Rodrigues Gonçalves seu padrinho, que
também o mandou estudar para a Universidade de Coímbra, onde se licenciou,
acabando por vir a pertencer aos serviços do Estado, colaborando com a pessoa de
Salazar, sendo seu ministro. Casou em Coímbra e teve três filhos; José Machado, Victor
Machado e Tita Machado. O caseiro destes era José Leonardo dos Santos, também ele
lavrador abastado, uma vez que se tratava de um casal muito grande. Era casado com
Ana Anastácia Passos e seis filhos (quatro rapazes e quatro raparigas), trabalhando
todos no casal onde também foram criados. Neste casal colhia-se castanhas, batatas,
feijão, azeite (inclusivé eram possuidores de uma azenha para o tratamento do mesmo),
resina, cortiça e madeira com muita abundância. Chegaram a colher 20 pipas de azeite
que posteriormente, levado com carros de bois para o apeadeiro do comboio mais
próximo que se encontra a seis kilómetros, sendo necessárias 3 a 4 juntas de bois para
transportar 600/700 kilos, demorando duas horas a chegar ao referido destino. Dizem as
pessoas que em casa do Dr. existiam catorze criadas apenas para cuidar de sete netos
todos filhos de Tita Machado, para além de cozinheiras e outras criadas domésticas.
A terceira casa mais abastada desta aldeia, já não pertencia a um proprietário,
mas sim a um lavrador que para além do património que possuia, pois trabalhava as
suas propriedades, tinha ainda dezassete filhos, todos trabalhando em casa mesmo
depois de casados, à excepção de um que se formou padre em 1908, vindo a adquirir
em proveito próprio património eclesiástico na época do Estado Novo. Era a Família
Martins; ele de nome José Bernardino e casado com Filomena Martins. A sua produção
incidia sobretudo em milho e feijão, ou seja, era possuidor de terras de lavradio e
também muito centeio que colocava ele próprio no mercado da região. Não dependia de
ninguém, e tinha por vezes a trabalhar nas suas terras alguns jornaleiros.

Na aldeia de Vila do Conde, podemos definir duas casas de grandes


proprietários; a Família Gonçalves, possuindo grandes extensões de propriedades,
tinham durante o ano um ou dois feitores consoante as tarefas anuais e a quantidade de
jornaleiros. Benedito José Rodrigues Gonçalves casado com Teresa Monteiro, com
quatro filhos era o patrono. Não trabalhava a terra, tinha os respectivos feitores que se
encarregavam de contratar jornaleiros para a execução das tarefas agrícolas ao longo do
ano pagando um salário mensal ao feitor e este pagava a jorna aos trabalhadores que
rondava os 5$ por dia.

A segunda casa desta aldeia é possivelmente a mais importante em vários


aspectos, não só pela sua dimensão, prestígio e poder, mas também por se tratar da
família à qual pertencia o homem que está por detrás da descoberta das águas minerais
de Vidago. Falamos do Dr. António de Carvalho e Sousa que nasceu em Vila do Conde
no ano de 1790. É a Família Carvalho e Sousa, proprietária desde longo período
histórico, com casa brasonada nesta mesma aldeia. Diz a história que o Doutor era filho
de José António de Carvalho e Sousa e de D. Mariana da aldeia de Valoura, em jovem
viajou em expedições por terras africanas onde perdeu os orgãos genitais, era partidário
do Rei D. Miguel I, sendo representante na Corte após o seu regresso de África. No
entanto durante o período das guerras liberais, passou a fazer parte da lista negra entre
os liberais, para ultrapassar esta situação e aconselhado por alguns amigos ilustres,
casou com a D. Rosa Gomes de Moura, que tinha ligações próximas com o partido
constitucional de D. Pedro IV e residente no lugar de Redial, concelho de Chaves. Diz
ainda o povo que nas suas constantes viagens a cavalo juntamente com o seu criado de
confiança que o acompanhava para Lisboa, Adelino Sousa – os animais paravam
sempre na mesma nascente para beber água. Despertando-lhe tal facto curiosidade,
provou a água, achando-a com um gosto a sal. O seu criado que sofria de problemas
intestinais indetectáveis à altura, começou por beber constantemente desta água
ultrapassando os seus problemas de saúde. No ano de 1863, levou uma amostra da água
a laboratórios do Porto e Lisboa, para ser testada – hoje é a conhecida água mineral.
Faleceu no ano de 1878, não deixando herdeiros, sendo os afortunados o fiel criado e
sua governanta de nome Teresa.

No lugar de Cubas, existiam apenas refúgios de pobres que sazonalmente


ocupavam aquelas terras. Durante as invasões napoleónicas, dois irmãos vindos das
batalhas, e fugindo possivelmente às guerras, pois um era alferes e outro capitão,
ocuparam as terras colocando os pobres a trabalhar para eles. Oriundos não se sabe de
onde, eram os irmãos Alves, que imediatamente dividiram o espaço físico do lugar em
dois, metado para cada um; o Chão-de-Baixo e Cimo-do-Povo. O capitão apenas teve
uma filha ( Teresa Alves) e o alferes teve três duas raparigas (Dulcina e Carlota Alves)
e um filho (Manuel Alves), ao que informaram as mulheres dos graduados foram eleitas
entre a plebe dos pobres que aí habitava. Produziam em grande escala e pagavam o
serviço prestado apenas com a alimentação; comes, bebes e trabalhas.

Ainda numa classificação por categorias, e, de acordo com os manuscritos de


registos paroquiais, onde o padre, registava esta classificação, encontramos:
Proprietários, Artistas de alfaiate (existindo apenas dois na freguesia – um em Vila do
Conde, outro em Valoura), Lavradores, Caseiros, Rendeiros e Feitores (formando todos
uma espécie de camada social ou dentro da mesma estratificação), os Jornaleiros e ainda
os Pobres (estes eram individuos que arrastavam as suas famílias de terra em terra, à
procura de trabalho sazonal, fixando-se em casas de lavradores durante a época de
trabalho e pediam esmolas em períodos maus).
II
PARTE

I – COMUNIDADE, ESPAÇO E LOCALIDADE

A sociedade rural tem sido um referente por excelência dos conceitos de


comunidade. Os pequenos conjuntos sociais unidos por solidariedades em que mesmo a
existência de uma hierarquia social implicaria reciprocidades entre os mais poderosos e
os que não tinham poder. Trata-se de universos sociais marcados pelo conhecimento
mútuo e pela importância dos laços de parentesco, pela afinidade em termos de modo
de vida da maioria – é um mundo de uma autoridade legitimada pela tradição.
O conceito de comunidade desenvolveu-se num contexto dicotómico em que o
mundo rural é visto como um símbolo fundamental de comunidade, perante um tipo de
sociedade – produzido pela transformação política iniciada com a mudança
revolucionária e o liberalismo, a industrialização e o capitalismo, etc. – que aparece
como o seu contrário.

Podemos detectar a presença de um contráste, que não coíncide obviamente


com a generalização simplificadora que acabámos de fazer, mas que remete para alguns
dos seus traços.

Tonnies terá sido, de todos os clássicos da Sociologia, aquele que mais terá
influenciado os estudos de comunidades e a dicotomia que estabeleceu entre
gemeinschaft (comunidade) e gesellschaft (associação), frequentemente abordada em
outros estudos de terreno. Na comunidade de que cita como exemplos os agregados
familiares e os engendrados pela vizinhança, vê-se um grupo a que se pertence
naturalmente34. Para este sociólogo “a possibilidade da comunidade apoia-se, em
primeiro lugar, na estreiteza da relação consanguínea e na mistura de sangue; em
segundo lugar, na proximidade física e, por último – para os seres humanos – na
proximidade intelectual.”

Aravés de caracterizações como as mencionadas e por intermédio de uma


representação mais vaga da sociedade rural tradicional a que se aludiu de início, veio a
delinear-se uma imagem do mundo rural como universo de comunidades, sendo estas
definidas, por exemplo, pela pequena dimensão, homogeneidade, auto-suficiência em
termos de satisfação das necessidades básicas reprodutivas dos que as compõem,
consciência de uma identidade própria.35 Esta imagem foi questionada em tempos mais

34
Ferdinand Tonnies (trad. Castelhana), “Comunidad y Asociación”, Barcelona, Ediciones Península,
1979.
35
É a caracterização de Robert Redfield, produzida em “The Little Community”, University of Chicago
Press, 1973, pag.4.
recentes no sentido de que as comunidades não eram propriamente estruturas sociais
concretas, antes construções simbólicas de identidade, definidoras de um “nós”.36

A classe é a base da comunidade. Este conceito permite o estabelecimento de


uma distinção entre localidade e comunidade. Com efeito, se estas podem em certos
contextos Ter um certo grau de coincidência, - sempre que haja um determinado grau
de homogeneidade social – muitas vezes tal está longe de ocorrer. A contiguidade
espacial não implica relacionamento social. Pelo contrário, no território de uma
qualquer povoação podemos encontrar limites e forte segregação em termos sociais ou
sócio-espaciais. Neste entendimento de comunidade figura o espaço. Simplesmente, não
se trata do mesmo espaço para todos os que habitam uma determinada localidade.
Enquanto para alguns o essencial do seu relacionamento pode decorrer na localidade e
localidades vizinhas, para outros, emigrantes, e sobretudo membros de classes
dominantes, o espaço da sua prática social pode ser o do estado-nação ou ir para além
das fronteiras nacionais.

O espaço e o tempo são elementos constitutivos da acção social. Qualquer tipo


de relacionamento tem um carácter espacio-temporal. Um lugar não é apenas um meio,
um suporte da vida humana, uma entidade separada do que existe nela. O espaço, não
sendo um determinante absoluto, coloca pelas suas características físicas ou naturais,
constrangimentos, ao mesmo tempo que oferece determinadas possibilidades à
actividade humana. É parte da sua vida. Uma vida estruturada por ritmos temporais,
associados à distribuição espacial das diversas actividades sociais.

Espaço e tempo, são constitutivos das estruturas e práticas sociais, do passado


que se revelam na memória e nos hábitos, existem sob forma incorporada. 37Espaço e

36
A. P. Cohen, “The Symbólic Constrution of Community”, Chichester e Londres, Ellis Horwood e
Tavistock, 1985.
37
Sobre o carácter temporal da vida social – incluindo a cronologia (ciclos ou ritmos do corpo) – ver a
obra de Michael Young The Metronomic Society – Natural Rhythms and Human Timetables, Londres,
Thames and Hudson, 1988;
tempo têm sido, trabalhados na pesquisa das sociedades ao longo do século actual. Não
se pode esquecer que o impacte da geografia humana, com a sua atenção sobre
paisagens e/ou territórios moldados pela acção humana no tempo, nem uma
historiografia contruída em íntimo convivio com a mesma – em particular, a chamada
Escola dos Annales-, que insistiu no carácter histórico e construído dos espaços e no
modo como estes se relacionavam com a actividade humana. Na Antropologia e na
Sociologia, também é discernível alguma atenção a estas dimensões da vida social.38

Porém mais recentemente tem vindo a conferir-se uma atenção específica à


articulação entre espacialidade e temporalidade e o seu papel constitutivo e regulador da
vida social.39Vamos fazer este enquadramento no nosso campo específico de análise.

Na zona do vale que divide as duas aldeias de Valoura e Vila do Conde,


encontram-se os solos mais aptos a culturas irrigadas, sobretudo localizadas junto à
ribeira, enquanto os situados a cotas mais elevadas e com boa exposição solar são
particularmente adequados à vinha e à oliveira. As maiores explorações agrícolas da
freguesia situam-se nesta zona central, convergindo para as residências dos seus
proprietários. A história das mesmas revela-nos a lógica da produção do espaço da
freguesia.40 Em particular, a principal destas pertencente à Família Machado, delimitada

para ver igualmente como o tempo e o espaço se incorporam na rotina diária, nos hábitos, na mesma
obra, cap.4 “Habit, The Flywheel of Society” pp.75-128.
38
Estas considerações não assentam propriamente numa leitura exaustiva destas ciências sociais.
Baseiam-se fundamentalmente na ponderação de obras como as dos historiadores Lucien Fébvre, La
Terre et L’Évolution Humaine, Paris, Editions Albin Michel, 1970 e Marc Bloch, Les Caractères
Originaux de L’Histoire Rurale Francaise, Paris, Armand Colin, 1968.
39
Anthony Giddens, tem sido uma figura saliente nesta teorização, envolvendo nomeadamente na sua
reflexão os contributos da geografia no tempo. Ver: A Contemporary Critique of Historical
Materialism, Londres, The Macmillan Press, 1981; Time, Space and Regionalization, in The
Constitution of Society, Cambridge, Polity Press, 1984, pp.110-161; Time and Social Organization, in
Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press, 1987, pp.140-165.
40
A expressão produção do espaço, pertence a Henri Lefebvre, que parte do uso do conceito de
produção em Marx para analisar o espaço. Não se irá aqui desenvolver o tratamento complexo que o
autor dá à noção de produção, mas uma citação permitirá destornar-lhe o seu sentido genérico (...estes
por muralhas durante a Iª República. Durante algumas décadas foi explorada por
intermédio de um caseiro como já foi exposto, sucedendo a este o filho mais novo. Os
dados são elucidativos quanto ao papel central neste domínio, mostrando-nos os
vínculos de subordinação tecidos em torno familiar. Assalariados e enfiteutas41- estes
últimos incluíam membros da pequena nobreza local e da burguesia agrária, desta aldeia
e das outras (aldeia e lugar) dependiam em maior ou menor medida da mesma.

Porém, deixou marcas profundas no espaço e nas relações sociais, incluindo as


dimensões de poder, nas rotinas quotidianas em que se tem assentado a vida deste
universo agrário. A Quinta propriamente dita, a que nos temos estado a referir, tem um
lugar central no espaço local, que lhe é conferido não apenas pela sua dimensão, mas
também pela localização. O cruzeiro a sul, ladeia a imponente moradia dos actuais
proprietários e outra Quinta que contorna a residência solarenga que foi de uma família
de fidalgos locais e as traseiras da matriz, antes de se perder nos campos de cultivo a
noroeste. Quem a percorre não pode deixar de se sentir impressionado com a feição
natural e a dimensão do vale. Quem contempla os campos a norte, onde se avista a
imensidão da Serra da Padrela, nos limites da superfície planaltica à qual serve de sopé
o respectivo vale. Tão diferente no tamanho e na disposição de culturas, dominadas
num horizonte de onde se manifesta a presença da policultura.

As razões da concentração neste local de uma importante elite de base


fundiária – grande e pequena aristocracia, burguesia rural – devem procurar-se nas
próprias aptidões agrícolas do território da freguesia.

espaços são produtos. A partir de uma matéria-prima, a natureza. São produtos de uma actividade que
implica o económico, o técnico, mas vai bem além deles...). Relação social? Sim, por certo, mas
inerente às relações de propriedade (a propriedade do solo e da terra em particular), e por outro lado
ligado às forças produtivas (que moldam esta terra e este solo), o espaço social (o espaço produzido
pela acção humana) manifesta a sua polivalência, a sua realidade simultaneamente formal e material.
41
Enfiteuse, contrato pelo qual o proprietário de um prédio transfere o seu domínio útil para outra
pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente determinada pensão chamada foro ou cânon.
Com superfícies planas relactivamente importantes em termos regionais, e
sujeito a um clima ameno, revela-se apto, nas suas superfícies mais enxutas bem como
nas mais húmidas e/ou passíveis de irrigação, a um amplo leque de culturas. Nas mais
secas dão-se a vinha e a oliveira. Nas outras, o milho, pomares, a batata e outros
produtos de horticultura local. Os dois principais núcleos de povoamento – que
designamos de Valoura (sede da freguesia) e a aldeia de Vila do Conde (a povoação
contígua a esta) estão delimitadas espacialmente pelas explorações de pradaria. Em Vila
do Conde, um outro largo, outrora a zona central da povoação, é residência temporária
das lavadeiras, é delimitado a norte pela vasta fronteira do antigo paço senhorial da
Família Carvalho e Sousa, um edifício imponente e de grande dimensão. Também este
foi adquirido com o seu vasto quintal por uma família de proprietários, proveniente da
burguesia agrária, que o anexou a uma também vasta Quinta com a qual fazia fronteira.
É essa presença de propriedades urbanas e rústicas, com jardins e terrenos de cultivo no
próprio centro do aglomerado, que constrange a habitação local. As casa dispersam-se,
na sua maioria, por um tecido de ruas e ruelas, as mais antigas e pobres sem qualquer
quintal. Ainda em Vila do Conde, podemos concluir que o aglomerado antigo estava na
prática inteiramente localizado no interior de um polígono delimitado pela grande e
média propriedade, com as respectivas residências. Nos velhos centros das povoações
os lugares de culto e os largos principais, o pequeno comercio e as residências dos
maiores proprietários. Observa-se que desses centros partem ruelas com casas
frequentemente sem quintal, os novos bairros ficam para lá dos limites dos núcleos
antigos.

Os grandes proprietários locais habitam vastas residências rodeadas sempre por


um espaço ajardinado e por terrenos de cultivo, sendo o conjunto murado – os médios
de raíz antiga são também detentores de residências amplas com jardim e quintal, mas
tudo de menor dimensão. Marcam assim no espaço a sua presença, associada aos sinais
distintivos da sua posição social. São predominantemente aqueles que têm terra
suficiente para poder destinar uma parte da mesma a culturas improdutivas – jardins e,
no caso de maior, uma mata de dimensão apreciável. São quem dispõe de àreas de lazer.
As suas explorações quase monopolizam as designações prestigiantes de Quinta e de
Casa. Se a primeira evoca primordialmente um terreno agrícola de razoável dimensão, a
Casa designa aqui a unidade formada pela terra e pela família proprietária –
transportando-nos no sentido do campesinato do Norte do país. Casa é ainda uma
exploração que possui um encarregado – ou feitor – que é quem superintende os
trabalhos agrícolas. Estas Casas, pólos de recrutamento de mão-de-obra, lugar de
residência dos poderosos, constituiram autênticos pontos de rotação no espaço local –
hoje o seu papel começa a ressentir-se claramente dos efeitos da perda de importância
relactiva da actividade agrícola.42

Os médios proprietários cujas famílias já ocupavam esta posição há algumas


gerações também têm ou tiveram casas e quintas, sempre de menor dimensão que as dos
anteriores, mas hoje já abandonaram praticamente a exploração económica da sua
propriedade. De qualquer modo, a sua marca no território foi sempre diminuta em
relação aos primeiros.

As diferenças sociais inscritas na estruturação do território, são correlactivas de


uma distribuição espacio-temporal dos grupos sociais, daquilo a que se poderá chamar a
sua “regionalização”, que contempla distinções entre zonas de trabalho e zonas de lazer
ou de repouso, zonas públicas e zonas privadas, com as quais os diferentes grupos locais
mantêm relações desiguais.43Em contráste absoluto com este mundo, em que se vive na
casa ou nos seus espaços adjacentes, em completa segregação face aos restantes, os
grandes proprietários, não frequentam os lugares, largos e raramente a via pública,
encontra-se a dos outros habitantes, em particular o dos mais pobres. A sua vida, está
estruturada temporal e espacialmente entre o lugar de trabalho, nomeadamente os
campos, e a casa. Esta é, para muitos, mais um lugar de repouso, onde se dorme e
come, do que de lazer.

42
Por “ponto de rotação”, Simmel entende um objecto de interesse fixo no espaço (bens, imóveis,
património, igreja, etc.), que produz determinadas formas de relação agrupadas em seu torno.
43
Sobre o conceito de “regionalização espacio-temporal”, ver Anthony Giddens, The Constitution of
Society, Cambridge, Polity Press, 1986, pp.110-161.
Enquanto os pequenos proprietários, consoante a época do ano e as condições
climáticas, passarão nos seus campos a maior parte de tempo em que existe luz e sol, os
jornaleiros agrícolas transitam a partir das cinco da tarde das propriedades em que
trabalham como assalariados para as fazendas (pequenas explorações) que cultivam,
num labor ininterrupto, de manhã ao pôr-do-sol, em especial durante o Verão, quando o
trabalho surge e as aldeias parecem esvaziar-se até ao cair da noite. Muitos tomam no
campo as suas refeições, excluíndo a primeira e a última do dia.

As zonas públicas continuam, contudo, a ter um papel essencial na


sociabilidade popular. Aí se encontram, cruzando os seus itinerários particulares. A
soleira das portas e dos largos, que permitem aproveitar a luz e o calor do sol, são
lugares de descanso dos reformados e zona de trabalho de mulheres ocupadas a falar das
graças e desgraças das suas vidas, bem como das vidas dos vizinhos, postos de
observação do quotidiano. Zonas públicas são igualmente as tabernas, que têm uma
frequência diferenciada por sexo. As tabernas são frequentadas ao fim da tarde e à
noite, algumas mantêm-se encerradas durante a maior parte do dia, quando os
proprietários, que têm outras ocupações, e os clientes se encontram a trabalhar. São
espaços masculinos, onde as mulheres e as crianças apenas entram para fazer compras,
pois trata-se de estabelecimentos mistos de mercearia e tasca. A maioria dos seus
frequentadores está em pé, não abundam cadeiras ou bancos, a conversação e a bebida
acontecem encostados ao balcão. Joga-se a sueca. Os consumos partem de um leque
bastante limitado de bebidas – vinho, traçadinho (vinho com gasosa), cerveja de
garrafa, aguardente; para acompanhar a bebida algum amendoim ou azeitonas. Os
preços não levam ninguém à ruína, pois são quase simbólicos e insignificantes até para
as bolsas mais limitadas. No entanto é no consumo em grupo que as coisas se
complicam. Embora haja consumo individual, bebe-se sobretudo em grupo, sendo que
este se alarga frequentemente a todos os presentes. As próprias características da
dimensão espacial – as tascas são muito pequenas – contribuem para este tipo de
consumo, sendo frequentes as rodadas, tomam-se várias bebidas, vinho e raramente
cerveja para os mais novos, pagas à vez pelos intervenientes. A conversa na tasca é
necessáriamente pública, em voz alta, acabando por nela participarem todos, quando
alguém deseja confidencialidade afasta-se para o exterior ou para uma situação de
exterioridade, como a zona junto à porta.

A taberna permite uma maior distensão corporal e da palavra o que não


significa ausência de normas e controlos. Na tasca a conversa torna-se pública e é
mesmo abertamente licenciosa. A interacção envolve os próprios corpos. São constantes
os comentários à potência dos mais velhos, como ao comportamento sexual das
mulheres, havendo, no entanto, o cuidado de evitar alusões que possam ser ofensivas
para os presentes e seus familiares ou próximos. É igualmente, como sítio de uso
essencialmente colectivo, um lugar em que se troca informação, se evoca o quotidiano e
um dos lugares de construção da memória social pela rememoração de pessoas e
eventos passados aí ocorridos. A taberna é um espaço distinto da casa, e marcado com
uma tensão virtual como os interesses da mesma, um espaço de crítica social e de
contestação. Face à casa, afirma-se como território masculino e adulto, cenário de
comportamentos que podem envolver a ruptura com o universo da família. É o caso de
situações como a embriaguês, que, no caso de se transformar em hábito, poderá pôr em
causa a capacidade de força de trabalho de quem é usualmente o principal ganha-pão da
família, ao mesmo tempo que faz descer um certo opróbrio sobre o envolvido que acaba
por implicar os que com ele vivem. Mesmo sem se atingir um caso tão extremo, a
taberna está ligada a consumos como a bebida e o tabaco que, num contexto de forte
controlo de gastos, aparecem como supérfulos às esposas, excluídas da taberna, mas
permanentemente preocupadas com o orçamento familiar.

Na taberna, espaço fortemente segregado e por isso protegido, escuta-se um


discurso habitualmente escondido, o qual, no entanto, não se restringe a este local. Mas
este possui características muito favoráveis. Este discurso crítico, moralista, incide
sobre os vizinhos, a forretice ou ganância de um, os roubos de outro, as pretensões de
um terceiro, ou as mulheres. Há misogenia nas apreciações destas, que podem incidir
sobre comportamentos específicos, mas que revelam sempre de um estereótipo de
género em que a licenciosidade e o engano aparecem como elementos de natureza
feminina. Repassam-se das novidades locais. Discute-se eventualmente política ou
futebol. Criticam-se os grandes proprietários ou outros personagens locais ausentes
deste espaço, tal como os anteriores, tidos por indiferentes, hóstis ou exploradores. O
tipo específico de interacções que têm lugar na taberna ressalta ainda mais se a
comparar-mos com um espaço com o qual existe um forte contráste: o da Igreja. Face a
este a tasca aparece como um lugar masculino e tendencialmente igualitária – pelo
menos não existe a hierarquia sócio-espacial desta. A família, um modelo de relações
sociais para os cristãos, está ausente, nesta zona de perigo e transgressão potenciais,
basta lembrarmo-nos da importância do tópico da sexualidade, de paródia e de riso, em
relação a múltiplos aspectos do ideal humano proposto pela Igreja, que procura inculcar
uma forte disciplina, contenção e repressão da própria expressão corporal. Em suma, a
taberna é um lugar de escárnio, que abrange todos, “grandes”e “pequenos”, sem poupar
o padre e mesmo a crença religiosa. A luta contra a taberna é, aliás, um lugar comum
dos sermões dos eclesiásticos.

Os contactos entre os diversos sectores da população local são restritos no


tempo e no lugar. Grandes proprietários e população trabalhadora contactam apenas uns
com os outros no local de trabalho e na Igreja.44

Ambas as Igrejas das aldeias são um espaço dividido. Em zonas de homens,


situadas junto ao altar-mor ou no coro ao fundo, integrado num andar superor; e zonas
de mulheres e crianças no espaço restante .
Em zonas destinadas ao “comum” e espaços destinados a pequenos e grandes
“notáveis”. Estes últimos concentram-se na fila e galerias situadas na zona do altar-mor.
Existe outro exemplo de correspondencia entre a espacialidade dos corpos – as
procissões – e a dos lugares em que se inserem.

Os “notáveis” adoptam uma posição de quem se sabe observado, por vezes


mesmo de parada (ostentação), como a observação atenta de algumas faces (o queixo
44
Esta separação espacial é típica de sistemas sociais assentes na desigualdade. Ver de um modo geral
sobre a articulação entre espaço, estrutura social e interacção, Edward T. Hall, La Dimension Cachée,
Paris, Editions S.E.U.I.L.
elevado e o olhar que percorre os outros sem se deter) deixa perceber. Por sua vez são
quem está melhor vestido.45 A divisão sócio-espacial faz-se sentir no cemitério actual,
que data do início do século, cuja disposição espelha a sociedade local. Jazigos ou
campas familiares de pedra pertencentes à mesma família e cuja imponência e/ou
singularidade atraem o olhar, e que são monumentos da própria história familiar,
contrastando comcampas mais modestas cobertas de mármore dos menos poderosos, e
com as sepulturas de terra, depósitos anónimos ou quase, de que por vezes restam
apenas uma cruz de madeira e uma inscrição tosca, sem nome e cuja desagregação
acompanha o desvanecer da memória dos mais humildes – as crianças – que nem direito
têm a flores.

Os contactos entre as outras classes são mais variados e frequentes. Uma


fracção do médios proprietários “antigos” com títulos académicos, pela sua ausência da
localidade, pelo próprio facto de as suas famílias estarem distantes do grosso da
população, tem tão poucoa contactos locais quanto os grandes proprietários. É obvio
que o padre pertence a todos e lida com todos; mas no contexto espacio-temporal da sua
actividade. Um velho casal de professores primários, médios proprietários por cujas
aulas passou uma boa parte da população local, mantém com esta uma proximidade sem
paralelo no grupo. Os restantes pequenos proprietários que se encontram próximos, em
termos de proveniência social, das classes mais humildes, mantêm multiplos contactos
no quotidiano com indivíduos pertencentes às mesmas. Alguns têm um papel activo nos
orgãos do poder político local, algo de que os mais poderosos se encontram afastados há
muitas décadas ou na vida associativa de instituições.

As casas, tabernas, ruas, largos e igreja, constituem territórios marcados por


interacções de carácter distinto e por vezes até mesmo oposto. A Igreja, por exemplo, é
um espaço extremo de apresentação de uma face “pública”, enquanto as casas são um

45
Goffman lembra que existia a expectativa de que nas nossas interacções haja consciência entre
cenário (setting), aparência (appearance) e desempenho (manner) uma observação que se ajusta ao
observado. Ver Erving Goofman, The Representation of Self in Everyday Life, Nova Iorque, Doubleday,
1959.
espaço privativo da família. As zonas “públicas” obrigam a um esforço de
representação destinado a manter ou consolidar uma imagem determinada; a casa,
espaço privado da família, embora também seja um espaço de representação, permite a
distensão em segurança. A casa, a família são o refúgio da intimidade, a retaguarda do
desabafo, o lugar de ditos e procedimentos ocultos ao público.46

Os trabalhadores e pequenos proprietários, ou quem quer que se ressinta das


assimetrias locais, reservam para sítios onde é possível construir zonas de alguma
intimidade e as suas verdadeiras opiniões sobre os patronos. Estes espaços são assim
zonas de expressão de conflito, de uma luta de classes no quotidiano, feita de críticas e
contestação aos poderosos, zonas de “registo escondido” face ao “registo público” da
igreja ou da praça – nesta última, é óbvio, podem construir-se espaços privados, onde
prevalece uma representação polida dominada pela condescendência de uns e pela
deferência dos outros.47 As características incritas no território da freguesia pela
história, nos campos, na tessitura dos aglomerados, nas casas, em todo o plano espacial,
constituem referentes discursivos a vários níveis.

A disposição dos campos e o tipo de agricultura praticado são sujeitos a


apreciações de crítica e desconsideração, bem como as técnicas – não existem símbolos
de modernidade e de racionalidade produtiva. A esta imagem associam-se outras que
enfatizam a antiguidade, a tradição e um património oral digno de preservação e de
manter por gerações sucessivas. O património no sentido de propriedade é objecto de
preservação – que os seus possuidores se esforçam por manter ao longo de gerações – e
como tal já fizemos referência ao realce da existência das Casas da freguesia, que
ostentam uma fachada nobre.
46
A contraposição entre zonas de registo público e escondido, foi elaborado por James C. Scott, que
colheu alguma inspiração em Goffman. Ver desse autor; Domination and the Arts of Resistance, Hidden
Transcripts, New Haven, Yale University Press, 1990.
47
Estas observações apoiam-se na análise desenvolvida por Erving Goffman e nomeadamente na sua
caracterização do que é uma região – qualquer lugar limitado até certo ponto por barreiras à percepção.
A caracterização de Goffman não se identifica com a divisão entre zonas públicas e privadas, no
entanto é importante ter em conta o tipo de interacção e a posição dos actores.
As casas dos mais importantes proprietários e respectiva composição ou
recheio lembram aos moradores um passado que é presente nos múltiplos objectos
antigos; desde móveis, livros, cartas, armas ou papeis de família, bens como retratos de
antepassados, construindo elementos cruciais da definição da sua própria identidade
social. Este património particular é tido no contexto local e até regional como parte
integrante de uma reinvindicação de Identidade local. Às casas dos “médios” do sector
antigo faltam alguns atributos como a maior dimensão, comum aos grandes, e qualquer
pendor aristocratizante. No entanto as suas residências, pelos materiais utilizados, pela
idade e a sua aparência própria ou genuína, acabam por se inserir no património. 48 A
espacialidade específica das outras classes, incluindo os que alcançaram na geração
actual uma posição média em termos de propriedade, começa nos seus campos, que a
maioria cultiva à base de uma tecnologia assente no esforço físico e tracção animal.
Este mundo da agricultura de subsistência com a sua racionalidade específica enquanto
provimento de sustento familiar e aproveitamento das capacidades de trabalho, aparece
como um modelo negativo e inverso do ponto de vista da opinião dominante sobre a
actividade agrícola. Simplificando, a pequena agricultura é símbolo de atraso. Um
atraso que se atribui estereotipado a uma mentalidade, tida como uma essência, mas que
na minha opinião se trata de um conjunto de valores enraízados num hieroglifo
indecifrável, que não lhes permitiria proceder de outra maneira e não aos
constrangimentos que rodeiam a sua actividade. Outras habitações contituem outro
território que lhes é próprio no espaço local. É no entanto de salientar que o tipo de
habitação rural, tem um conjunto diversificado que se têm sucedido no tempo, muito
marcado pelos efeitos da emigração. Pode-se de uma forma muito elementar distinguir
dois conjuntos, particularmente na aldeia de Vila do Conde; o das que constituem um
tecido habitacional mais antigo e as que foram construídas em épocas mais recentes. As

48
Por cânones dominantes de definição de património entendo aqueles que privilegiam edifícios, ou o
reduzem aos mesmos; aos quais se imputa antiguidade, genuinidade, tidos como paradigmáticos de uma
especificidade ou identidade. Outras definições de património, que podem incluir a globalidade da
paisagem rural, ou manifestações das técnicas tradicionais ou da cultura oral – o que se pode chamar
“património etnológico”.
mais antigas são mais pequenas, construídas de granito, sendo constituídas geralmente
por rés do chão e primeiro andar, com uma escadaria exterior ou interior, que nos
conduz do nível do solo ao primeiro andar. Os interiores possuem divisórias de taipa ou
tijolo. Algumas não têm janelas de vidro ou casa de banho, e as mais humildes
comportam apenas duas divisões: cozinha/sala e quarto de dormir. No rés do chão, que
dispõe de uma porta, fica a dispensa, o tamanho da qual é conforme as posses, terá ou
não lagar ou acomodação para animais de tracção, e onde se guardam alfaias, adubos,
vinho e outros produtos agrícolas. No conjunto das moradias antigas destaca-se um
número reduzido de residências algo mais amplas, com uma estrutura similar, nas
contruídas em pedra aparelhada de boa factura e não com os blocos informes mais
comuns.

No seio das casas mais antigas, onde se nota também uma certa variedade de
construções e de fachadas e onde há algumas modestíssimas, como, certas construções
térreas, distingue-se um conjunto que é valorizado – precisamente as casas de granito de
boa ou razoável qualidade e pouco retocadas. Estas casas são actualmente objecto de
intervenções – como colocar a “pedra à mostra”, retirando o reboco, que visam
implantar uma imagem de rusticidade e genuinidade. Essa imagem, em que os traços de
uma ruralidade idealizada – porque silencia a dimensão social e os enormes custos
humanos da vida agrícola da maioria – ocupa alguma utopia arquitectónica do país rural
promovida pelo Estado Novo.

A presença espacial dos proprietários mais pequenos, rendeiros e assalariados,


é completamente distinta da da elite. Enquanto no caso desta se verifica uma ligação ao
longo de várias gerações e mesmo por mais de um ou dois séculos, entre terra, casa e
família, nada disto se verifica no caso dos primeiros. A elite procurou ao longo do
tempo evitar o esboroamento do seu património, através da combinação de processos de
herança com casamentos e da aquisição de posições e rendimentos fora do sector
agrícola. A história não foi a mesma para todas as famílias. A vínculação da
propriedade é responsável pelo facto de os morgadios locais se encontrarem no topo dos
proprietários em começos da segunda metade do século passado. Mantiveram-se aí
posteriormente, pela escassez de herdeiros, pelo celibato, ou porque a fragmentação
ligada à herança foi compensada com a entrada de recursos provenientes de
matrimónios.

Em matéria sucessória utilizam por vezes a quota disponível dos seus bens –
consoante a legislação, o terço ou a metade dos seus bens que cabiam a cada progenitor
– para beneficiar um dos filhos. Tal benefício visava claramente perpectuar a sua
presença espacial, pois a esse filho cabia a residência, que não era dividida, e as terras
que confinavam com a mesma. Há uma consciência reconhecida mesmo em
documentos de valor simbólico da presença das casas no espaço local. Até quase aos
nossos dias as casas locais mantiveram-se por dividir, procurando dotar-se outros filhos
com casas, habitação e terra, na região. A presença espacial dos médios “antigos”, com
práticas similares à sua escala, também perdurou até aos nossos dias.

Com uma propriedade escassa, os pequenos proprietários partilhavam as suas


terras à morte – ou através de doação intervivos – pelos filhos, apenas beneficiando
alguma compensação dos cuidados com os pais envelhecidos. As habitações eram
divididas por vários, o que terá levado a alterações na traça original de muitas. A
estreiteza do seu património e a sua dispersão periódica, seguida em muitos casos de
reagrupamento, mas não de acordo com a lógica de salvaguarda de uma linha de
descendência familiar, explicam a débil presença do seu passado no presente
objectivado dos campos e das casas. Sabe-se que um campo ou uma casa veio de algum
avô ou avó ou que estarão há muito na família, mas não mais. Deve-se acrescentar
igualmente que a memória familiar não é cultivada, precisamente porque não é tida
como um bem, ao contrário do que sucede com a elite. Esta dispõe de tudo aquilo que a
estes falta, e investe no prolongamento de uma memória familiar, que é um capital
económico e simbólico que representa no espaço presente a sua história. 49

49
Ver a este propósito das várias dimensões da memória familiar local, José Manuel Sobral, Memória e
Identidades Sociais – dados de um estudo de caso num espaço rural, in Análise Social, vol.XXX, nº
131-132, 1995, pp.289-313.
II – O CONCEITO DE COMUNIDADE
A pertinência de um conceito relacional de comunidade poderá servir para
denotar o relacionamento específico entre os membros de uma dada colectividade
social, ligada por laços múltiplos de importância crucial para os que nela se inserem, de
grande intensidade e que se sobrepõem – o vizinho pode ser ao mesmo tempo o parente,
o amigo, o companheiro de trabalho; estas redes de relações são formadas pelos que têm
a mesma posição de classe ou posições próximas no espaço social. Comunidade neste
sentido distingue-se da noção de local, bem como da realidade concreta da localidade,
pois só de aplica a componentes essenciais do sistema social local, como as classes
dominantes. Embora o conceito de comunidade pressuponha relações dotadas de uma
dada instabilidade socio-temporal e um determinado território – o da aldeia – procura
designar uma realidade com a história própria, sujeita a dinâmicas de sentido oposto,
centrípetas e centrífugas.

Entre as primeiras estarão a afinidade ou proximidade em termos socio-


espaciais, propiciadas por posições sociais identicas ou não muito afastadas por hábitos
partilhados, actos de solidariedade, serviços prestados, ajudar no ataque aos incendios,
apoiar os outros em momentos dolorosos; participar das alegrias e tristezas quotidianas.
Estes são apenas alguns exemplos de gestos e atitudes que se podem observar e que
implicam uma reciprocidade diária que sustenta um relacionamento de longa duração.
Mas, devem inserir-se entre esses factores o peso da opinião pública local – com uma
força particular conferida, pela proximidade espacial; tão frequente no discurso crítico
da taberna ou café, que constitui um factor de conformismo, constrangendo a um
determinado tipo de atitudes, e que é sentido como opressor por todos os que se sentem
atingidos pela mesma. Entre as segundas dinâmicas encontra-se o acentuar de clivagens
ao nível das tragetórias sociais, por vezes entre os descendentes de um mesmo casal, as
divergencias de opiniões, as desigualdades de classe, as diferenças entre estilos de vida,
as assimetrias em termos de poder – as clivagens ligadas à dominação social e simbólica
inscrita no espaço e nos discursos sobre o mesmo, ou seja, o agudizar de conflitos
inerentes a qualquer colectivo.
Este sentido de comunidade tem em conta alguns dados da tradição
sociológica, cuja validade heurística permanece, mesmo que se esteja em desacordo
com muitas das suas propostas. Apenas a título de exemplo da pertinência de
formulações dos “clássicos” recordem-se as reflexões do autor que exerce
provavelmente a maior influência na teorização da comunidade, Tonnies. As suas
observações sobre o papel da memória, do hábito e do costume como características das
comunidades afiguram-se ainda hoje fecundas. O que permite falar em comunidade são
as relações sustentadas pelos que cresceram, se formaram e se conheceram num mesmo
espaço. Aqueles que aprenderam a trabalhar os campos juntos, que frequentaram a
mesma escola, a mesma igreja, as mesmas tabernas, bailes e festas. Aqui, encontraram
as suas parceiras conjugais e aqui decorreram as suas vidas. Estas relações reproduzem-
se nos contactos repetidos do quotidiano, na taberna, nas festas, na memória. Nos seus
espaços da sociedade e no apego a um discurso identitário e que a condição social se
liga a uma situação local como sucede na representação que a maioria constroi de si
como “pobre”.

III
PARTE
I – RECALCAMENTO TEÓRICO DO CONSERVADORISMO

A pouca atenção prestada ao conservadorismo dos camponeses, nomeadamente


em Portugal (pois encontramos algumas pesquisas efectuadas na Europa Mediterrânica
nomeadamente na Itália e Espanha), assim como o seu recalcamento teórico levou a
dedicarmos uma terceira parte deste tabalho – que apelida-mos de sistema político – não
só sobre a economia campesina como também sobre a acção socio-política dos seus
agentes sociais no campo. Fixando-nos agora apenas no processo do pós 25 de Abril,
poder-se-ía dizer que o movimento das forças armadas não fora contrariada pelos
camponeses, sendo até recebida com certo alívio, logo que se aperceberam que os seus
filhos, forçados a ir para a guerra colonial ou desterrados na Europa como refugiados,
voltariam. Porém, contrariamente à dinâmica vivida nas sedes urbanas e nos campos do
sul, particularmente no Alentejo, reinava nas aldeias do Norte certa “apatia”.

Mas, foi neste contexto que teve lugar particularmente nas regiões do Norte e
Centro uma avalanche de levantamentos locais. Atendendo a que, quer os
levantamentos locais quer, mais tarde, os resultados eleitorais contribuiram para fazer
inclinar para a direita o peso instável das relações de força, trata-se, porém, agora já não
tanto de constatar como de explicar este fenómeno, aliás não específico da situação
portuguesa, mas igualmente presente, por exemplo, em Espanha, Grécia, Itália. Tal
obrigar-nos-ía a recorrer e a avaliar os modelos teóricos correntes que pretendem
explicar a acção campesina. No entanto e em nosso entender, o comportamento
campesino reside na conjugação de dois factores estreitamente inter-relacionados; por
um lado, a predominância da economia agrário-campesina e, por outro, as relações de
dependência pela maior parte dos moradores não só face à sociedade dita envolvente
(classes dominantes e particularmente Estado) como no seio da própria colectividade
face aos patronos e caciques locais.

As relações patrocinais, mais ocorrentes em formações predominantemente


agrárias, se bem que possuindo dinâmica própria, não estão desligadas do tipo de
economia local artesanal-campesina, ainda relactivamente autónoma e fechada,
particularmente até 1960. A desigualdade no controlo de recursos ora directos (terra,
gado, alfaias), ora indirectos (prestígio, poder) subjaz às relações de patrocinato e
caciquismo, as quais, por sua vez, sendo ainda hoje uma realidade no nosso
microcosmos, como freguesia-tipo, tem condicionado fortemente o comportamento dos
jornaleiros e camponeses dependentes. Estas relações verticais, individualizadas, entre
patrono e camponês tem contribuido para evitar que latentes situações de conflito se
polarizem e manifestem. Contrariamente a concepções funcionalistas que, esbatendo as
relações de desigualdade e desequilibrio socio-político analisam as relações patrocinais
em termos de relactiva simetria e reciprocidade, quanto a nós na esteira de autores
como Bailey, Huizer, Wolf, Boissevain, M. Bloch, entre outros, patrocinato implica
relação de poder, de dominação e, por vezes de exploração em que, embora o patrono
conceda favores e preste alguns serviços, retira do cliente, além do seu assentimento
socio-político personalizado, maiores vantagens já directamente económicas já outras
indirectas como o prestígio, influência e poder.

Esta última modalidade é conhecida entre nós sobe a designação de


caciquismo, o qual, enquanto forma específica de patrocinato, pressupõe que certos
chefes e notáveis locais exerçam poder através de contactos mantidos com o aparelho
camarário burocrático ou com os líderes partidários concelhios, distritais ou até
nacionais.

Se há um certo consenso sobre a constatação do clientelismo sob a I República,


já porém quanto ao Estado Novo tem sido afirmado amiúde, nomeadamente pela elite
salazarista, que o clientelismo ter sido varrido ou suspenso. Se bem que o caciquismo
de base partidária desaparecera, permaneceram os mecanismos de patrocinato local, os
quais sendo quase monopolizados pelos servidores locais do regime tornaram-se mais
eficazes para a manutenção do status quo que os próprios aparelhos de repressão do
Estado central. Com o surgir do Estado Novo, a Igreja, contribuindo para alimentar o
regime com a base social de apoio campesino-artesanal, foi adquirindo como
contrapartida cada vez mais poder nos aparelhos de Estado, gozando, em consequência,
de determinados privilégios: isenção de censura, de pagamento de impostos, de
prestação do serviço militar, e, através da concordata, poder de incursão no direito
família civil, nomeadamente no impedimento do divórcio.

Desprovidos de recursos suficientes, os camponeses pobres e jornaleiros eram


forçados a emigrar, se bem que elementos de pequenos e até médios lavradores tenham
igualmente emigrado para os sectores de indústria e serviços quer nos arredores, quer
nas grandes cidades de Lisboa e Porto, quer ainda e sobretudo no estrangeiro. Se
ausência e/ou a deficiência de infra-estruturas (electricidade, caminhos, estradas,
transportes) assim como a inacessibilidade de meios de comunicação, contribuiram para
o relactivo isolamento geo-social dos moradores, mesmo que precária e desigualmente,
no perímetro da aldeia e no seio da família as suas necessidades materiais e culturais:
alimentação e habitação, sexo e reprodução, auto-afirmação, comunicação e segurança.
A socialização das crianças era orientada para uma forte dependência da família.

De modo geral, poder-se-ia dizer que, quanto mais pobres eram os moradores,
mais dependentes e subservientes teriam que apresenta-se face aos seus “benfeitores”.
Fosse para conseguir trabalho ou terra arrendada, fosse para pedir emprestados gado e
alfaias agrícolas (arado, carro, prensa), os jornaleiros e camponeses mais pobres
encontravam-se dependentes e entregues à “boa vontade” ou “confiança” dos
camponeses médios e abastrados. Por vezes sucedia criadas e/ou jornaleiras acederem
aos desejos sexuais dos seus “patrões/patronos” a fim de lhes cair nas boas graças e,
senão compromete-los numa estratégia matrimonial, pelo menos, garantir o trabalho e,
consequentemente, a subsistência para si e suas famílias. A dádiva era contudo uma
forma de controlo social e político, sendo o preço de tais favores bastante elevado.
Sucedia frequentemente que as famílias de jornaleiros executavam “trabalho por favor”
para os padrinhos “ricos”, em troca de uma ou duas refeições para si e eventualmente
para os seus filhos. Mesmo neste caso teriam que ficar agradecidos, pois o facto de
poder trabalhar na casa de um bom lavrador ou proprietário constituia um sinal de
preferência e protecção, significando que este estaria pronto a ajudar a família
necessitada. Deste modo, enquanto aos pequenos lavradores lhes era dificil obter
jornaleiros nas épocas das colheitas, médios e abastados lavradores, sobretudo o
presidente da Junta, dispunham de voluntários entusiastas que, particularmente nas
lavradas e malhadas, esfolhadas e vindimas, ofereciam gratuitamente a sua força de
trabalho num ambiente competitivo e festivo. Esta atitude não era contudo uma simples
expressão de “falsa consciência”, mas uma estratégia calculada, realista, suportadora do
mal menor, cujo objectivo central era a sua sobrevivência. Só no fim da década de 60,
com o aumento do movimento migratório é que diminuiu um pouco a dependencia dos
jornaleiros e dos camponeses pobres. Ou seja, a emigração constituindo válvula de
escape para um ambiente cada vez mais tenso a nível local, veio aliviar um tanto não só
os moradores pobres que partiram como os que ficaram, o que os leva a desafar: “se não
fosse a emigração, comíamo-nos uns aos outros”.

A sobranceria e, por vezes, a arrogância de alguns lavradores mais ricos foi


diminuindo pouco a pouco sendo obrigados a pagar os salários pedidos ou exigidos
pelos jornaleiros e/ou camponeses muito pobres e a dár-lhes trabalho no Inverno ou
arrendar-lhes um pedaço de terra, fosse por falta de mão de obra, fosse por estarem
impossibilitados de pagá-la.
II – IGREJA E COMPORTAMENTO POLÍTICO/IDEOLÓGICO

A bem dizer, nas explicações de carácter ideologizante e moralizante, não só é


ignorado ou substimado o funcionamento da economia campesina, como também os
próprios camponeses são vistos como seres amorfos, sem cultura e história próprias e
como instrumentos passivos de forças cegas e pérfidas.

O campesinato parcelar é, assim, frequentemente analisado a partir de fora,


como «classe objecto», e não a partir de dentro, da sua posição. Neste sentido, é de
importância recorrer-se ao método weberiano da compreensão (verstehen) como
instrumento para poder compreender e explicar a acção teleológica, empaticamente
inteligível e racional do campesinato.
Procurar compreender e explicar o comportamento socio-político dos
camponeses nortenhos a partir de dentro implica não só a sua compreensão, mas
também o seu conhecimento e a reinterpretação da interpretação que eles têm desse
conhecimento, explicar e explicitar a sua racionalidade e estratégias de sobrevivência e
comportamento, bem como de melhoria da sua posição – eis o que, à luz dos resultados
em elaboração do trabalho de campo neste microcosmos se conseguiu recolher como
elementos de investigação histórico-socio-políticos teóricos. A referência política dos
camponeses em relação aos seus patronos e caciques locais e, perspectivando as normas
e valores campesinos no quadro das relações de poder, sem dar especial relevo ao papel
parapolítico e ideológico da Igreja, era esquecermo-nos de algo adjacente e inevitável
no estudo da Antropologia rural. Embora com desigual intensidade, os modelos de
explicação através de conceitos como cultura, sentimento e poder respectivamente, são
regeitados e criticados, pois ultrapassam os seus limites empíricos e são elevados a
categorias explicativas de carácter universal, constitutivo – o que se revela incompleto e
insuficiente para a perspectivação teórica que abordamos.

Políticos e ideólogos conservadores portugueses há que têm considerado os


camponeses parcelares portadores de virtudes conservadoras, tais como discrição,
prudência e equílibrio. Esta maneira de pensar tem sido desenvolvida pela corrente
funcionalista, que tenta explicar as formas de acção campesina, agrupando-as na
concepção clássica de cultura. Como tal, elas devem ser explicadas organicamente em si
próprias e exclusiva ou predominantemente a partir de si próprias, na sua totalidade
cultural integradora (laços de parentesco, língua, religião, folclore), sem qualquer
referência à polarização de grupos e/ou classes sociais ou relação com o Estado. Numa
breve retrospectiva histórica das inúmeras revoltas campesinas é, por si só, suficiente
para desfazer esta abordagem a-histórica, idealista, e mostrar os seus aspectos políticos-
ideológicos tendenciosos, em proveito da manutenção da desigualdade social/estrutural.
A passividade ou a explosão colectiva não podem ser deduzidas da soma dos
individuos satisfeitos ou insatisfeitos, nem tão pouco do estatuto que se possui na ordem
social. Isto implica que não há necessariamente relação directa causa-efeito entre a
pobreza e a revolta. O conservadorismo campesino não é, de modo algum, resultante
nem da abundância de terra nem dum nível de vida confortável. Porém para os
camponeses nortenhos contavam as diferenças internas no seio da aldeia, e sobretudo as
extorções do excedente através de impostos, rendas e por vezes juros.
A orientação sociológico-política, que parte das relações para explicar a acção
dos camponeses, tem uma base mais realista que as explicações anteriores. Não obstante
o conceito de poder ser entendido num sentido demasiado lato, o modelo estratégico de
poder oferece certamente elementos válidos para interpretar e explicar a acção dos
camponeses. O patrocinato50, enquanto expressão de poder e de controlo sobre os
recursos, é, sem dúvida, uma base que permite aos seus detentores não só dispor das
fontes de riqueza, entre as quais a força de trabalho, mas também organizar a
distribuição dos bens de consumo, o que, consequentemente, reforça a sua própria
posição económica. Nas primeiras tentativas de emancipação campesina da servidão
durante os levantamentos no século XIX (Maria da Fonte) e nas relações políticas sob a
I República jogou um papel decisivo nas estratégias de sobrevivência e de resistência
dos camponeses parcelares o equilibrio instável, causado pelas contradições entre as
fracções políticas dominantes e subdominantes. Há, contudo, a notar que o modelo de
poder parte implicitamente do pressuposto de que cada classe e seus membros sabem,
em sentidos estratégico e táctico, o que melhor lhes convém, como se na base estivesse
sempre subjacente uma espécie de sabedoria política ou astúcia calculada. De modo
geral, os camponeses sabem bem, empiricamente, quais são os seus próprios interesses.
No entanto, por interferência de factores normativos, ideológicos (por exemplo,
religião oficial estabelecida), podem também equivocar-se quanto ao carácter político
dos seus protectores locais e salvadores nacionais, bem como quanto à força dos seus
adversários.

50
Patrocinato: mecanismo de vinculação pessoal e/ou dependência do cliente em relação a pessoa
socialmente influente denominada patrono. Sobre o modelo explicativo da desigualdade social tendo
por base o conceito de controlo sobre recursos directos ou indirectos.
O conservadorismo dos camponeses parcelares é determinado socialmente e,
neste sentido, coincidem a abordagem histórico-materialista e a weberiana. Porém
metodologicamente considerada, a acção conservadora não é redutível á acção social
compreensível de Weber, tal como notam Bader e outros acerca dos limites da teoria da
acção weberiana: «... neste conceito de acção racional, ‘compreensível’, encontram-se
irrevogalmente inseridas relações sociais estruturais, que, por seu lado, não se deixam
reduzir à acção ‘compreensível’.» Com efeito, verificam-se no chamado
conservadorismo camponês actos não intencionados que, provindo de e sendo
determinados por factores endógenos e estruturais, não são redutíveis á acção
«compreensível». Desde que os camponeses parcelares se encontrem relativamente
libertos do domínio feudal, mas sem estarem integrados no modo de produção
capitalista – ou se estiverem em grau muito reduzido -, será verosímil verificar uma
atitude política passiva e esquiva. A existência duma relação entre as caracteristicas
básicas da sociedade camponesa e a sua resistência passiva parece evidente. Quer os
resultados obtidos no trabalho de campo, quer elementos recolhidos da historiografia
portuguesa, apontam para seguinte hipotese: os camponeses, sendo hostis ao risco,
esforçam-se por: a) Sobreviver como camponeses e obter um mínimo de segurança
existencial através do controlo dos recursos disponíveis, nomeadamente conquistando
ou preservando pelos meios ao seu alcance o(s) seu (s) pedaços(s) de terra próprio(s)
ou arrendado(s) e, eventualmente, as terras comunais; b) Deitar mão de todas as
oportunidades palpáveis, a fim de melhorar as suas condições de vida e consolidar a sua
posição,bem como a do(s) seu(s) filho(s) herdeiro(s)/a(s). Não obstante as limitações
que implica oferecer uma esquematização da economia ou do modo de produção
camponês em relação ao seu funcionamento concreto em determinado tempo e lugar,
torna-se pertinente referir algumas características típicas da economia campesina
tradicional, proporcionando assim um instrumento analítico importante para conhecer
compreender, interpretar e explicar a acção campesina.
Contudo, e contrariamente à concepção evolucionista linear partilhada pelas
teorias da modernização e que pressupõe a existência dum continuum entre a «aldeia»
atrasada e a cidade «civilizada», o agir dos camponeses apresenta uma racionalidade
específica que nem totalmente é dominada por um qualquer poderoso sistema exterior.
A negação ou a subestimação da economia, da racionalidade campesina, bem como dos
seus estratagemas de resistência por parte de muitos cientistas sociais, políticos e
historiadores, conduziu a que se sobrevalorizasse a racionalidade formal moderna,
inerente à origem e ao desenvolvimento do capitalismo, considerando os camponeses
«atrasados» e «ignorantes», «parolos» e «selvagens», remetendo as suas normas e
valores para o campo do irracional e do mágico, do supersticioso e do religioso. As
múltiplas estratégias destes entrecruzam-se numa variada gama de comportamentos e de
formas de acção que de modo algum são redutíveis à lógica da economia de mercado,
cujos os elementos, embora presentes, nem sempre são dominantes ao nível
microcósmico da aldeia. È nesta linha que o campesino é considerado, por um lado, um
«estrato intermédio» «uma fracção da pequena burguesia tradicional», ou então é
equiparado substancialmente ao proletariado, não obstante o manto jurídico, entendido
como puramente formal, da propriedade familiar. Nada de admirar que, em
consequência da atribuição de categorias derivadas dos sistemas feudal e capitalista, o
camponês permaneça efectivamente, na expressão de Marx, um «hieróglifo indecifrável
para a razão do homem civilizado».
A título ilustrativo, na formação social portuguesa de 1930-60\70 não se
verifica a proletarização, para a qual teriam contribuído as estratégias de sobrevivência
e resistência do campesinato, reforçadas aliás pela linha político-ideológico do
nacionalismo salazarista, rurarista, adeverso ao processo de industralização moderna.
Em princípio, é plausivel a tese que quanto mais independentes são os camponeses,
maiores são as suas possibilidades de resistência e maior a sua força de negociação
perante outros parceiros socio-políticos. E, quanto menores forem as suas capacidades
de se organizarem e a sua inflência no jogo eleitoral parlamentar, tanto mais forte será
a tendência para esperar a sua «salvação» de instituições como a Igreja, o Exército ou
individualidades na área do poder, favorecendo soluções bonapartistas, reflexo, por sua
vez, das relações patriarcais presentes em grande parte das economias domésticas
campesinas. Oliveira Martins e António Sérgio designaram este arrivismo liberal de
devorismo ou de regabofe, em que «o barão sucede ao monje e o conde come o
fidalgo».
No seguimento, e em paralelo com revoltas anteriores no princípio do século,
nomeadamente a de1808-09, a revolta campesina conhecida por Maria da Fonte (1846-
51), que se iniciou nas regiões nortenhas mais montanhosas e menos comercializadas, é
explicável não tanto pela penetração do capital, mas pelas extorsões fiscais, pela
coerção física militar, pelo desrespeito perante a organização interna das colectividades
campesina e seus valores, nomeadamente religiosos, e pela intromissão policial-
burocrática (regedor e funcionários camarários) na vida da aldeia por parte dum Estado
que se pretendia cada vez mais centralista. Princípios e dogmas da economia liberal,
proclamados pelos citadinos republicanos, esbarravam com as tradições imersas na
sociedade rural. A política dos republicanos, assim como os seus interesses e valores,
afrontavam directamente os camponeses. Por outro lado, se o envio de camponeses-
soldados para os campos de batalha da primeira guerra mundial fazia aumentar o
descontentamento entre as populações rurais, a racionalidade dos «iluminados»
republicanos, inclusive dos radicais da Seara Nova, induzia-os não só a não
compreender, mas também a estigmatizar a dita «irracionalidade das crenças e das
«supertições» religiosas dos camponeses, levando o regime a reprimir, pela mão dos
carbonários, moral e fisicamente os padres, o que impedia a expressão livre das práticas
religiosas.
O corporativismo e o ruralismo salazarista revogoraram assim o bloco agrário-
comercial, reforçando deste modo a hierarquia e a desigualdade estruturais já existentes.
Inspirando-se na «filosofia» escolástico-tomista, assim como nas encíclicas papais anti-
racionalistas e antimodernistas do século XIX (Diuturnum, Syllabus e sobretudo
Rerum Novarum), o salazarismo jogou com os sentimentos de descontentamento e de
angústia dos produtores artesãos e camponeses envolvidos num quadro não capitalista,
transpondo para um cenário mistificador determinados valores da realidade campesina,
como a família e dever, pátria e crença, poupança e glorificação do trabalho rural da sua
história e tradições. Estes elementos não eram, contudo, apenas imaginários nem faziam
unicamente parte da retórica salazarista, mas reflectiam traços da realidade do Portugal
agrário, designadamente das chamadas camadas médias e, particularmente dos
camponeses. E isto arrastaria consigo um efeito de reconhecimento junto das famílias
campesinas, de modo que, aos seus olhos, o regime surgia e agia como legítimo. Este
aspecto sintetizou-o Eduardo Lourenço do seguinte modo: “Para os camponeses,
Salazar era o legítimo representante da nação”.

A ideologia e política do salazarismo contribuiram de maneira astuta para


ultrapassar as contradições internas no seio das classes dominantes, permitindo uma
transição controlada, sem abalos abruptos, da sociedade agrária para a industrial (onde
tal passagem aconteceu!), que desde a década de 1950-60, despontava.

Relactivamente ao desenvolvimento das formações sociais mercantilistas em


Portugal, resulta mais adequada a tese geral de Max Weber, compartilhada e
adequadamente expressa por Mendras: “A ruptura entre a feudalidade e o capitalismo
comercial parece secundária, contrariamente à continuidade da senhoriagem, entendida
como sistema de exercício do poder e de exploração da terra.” A maior parte dos
autores portugueses, sobretudo economistas, obcecados pelas análises macro-
económicas, perdem de vista não só a economia campesina, como também as
estratégias familiares, em vista tanto da sobrevivência como da melhoria das suas
condições de vida. Mais, podemos afirmar que, até meados do século XX, Portugal se
configura ainda como uma sociedade quase proto-industrial e agrária.
Enquanto instituição, a Igreja através da acção pastoral, tem desempenhado,
não só uma função de inculcação ideológica, mas também um papel de liderança já
religioso, já parapolítico, que, na trajectória histórica portuguesa tem servido desde a
Idade Média de legitimação da autoridade tradicional. Tais relações de domínio são
reforçadas pelos laços hierocráticos, inerentes a agrupamentos de tipo corporativo-
religioso como a Igreja, que Weber denomina de anstalt, bem como pela origem e
ligação socio-cultural que os padres têm possuido com os moradores crentes,
funcionando frequentemente como seus patronos visíveis, conselheiros e líderes
naturais saídos do seu meio campesino.

O facto de a crença e a simbologia religiosas dominarem e absorverem uma


parte não neglegenciável do quotidiano dos camponeses, assim como o de a Igreja, nas
suas esforçadas elaborações doutrinárias, persistir em transpor para o quadro teológico
da vontade divina, da origem e do desenvolvimento sobrenaturais os ritos de passagem
do ciclo de desenvolvimento das unidades campesinas, tendo levado alguns autores,
sobretudo funcionalistas, a considerar a religião como factor explicativo da conduta dos
camponeses. Porém, afigura-se-me que a metodologia de Maurice Bloch oferece uma
abordagem mais ajustada: “Convém que reparemos primeiramente na política e depois
na religião, vendo esta como exercício duma forma particular de poder, em vez de nos
fixar-mos na religião fora do contexto político e a considerarmos como forma de
explicação.
O controlo institucional eclesiástico, pela mão do padre, tem sido patente na
medida em que sanciona ainda hoje, se bem que em menor medida, as acções dos
camponeses, tais como condenando os casos de ilegitimidade e de divórcio, proibindo
ou travando o namoro, obrigando à compra de bulas nas quaresma para poder comer
carne, exigindo a «desobriga» pela prática da confissão e da comunhão anual,
considerada por alguns padres como uma «vergastada colectiva». Se bem que nestas
duas aldeias, onde o normativismo católico é mais lasso, haja um maior espírito de
aceitação de casos, aliás mais frequentes, de ilegitimidade e de uniões não
matrimoniais, as mulheres de comportamento desviante, inseridas nas relações de
reprodução da desigualdade social local, têm carregado ao longo das sucessivas
gerações estigmas sociais marcantes. As autoridades eclesiásticas, nomeadamente o
padre e o bispo na sua visita pastoral, tentam afastar da mente dos moradores as suas
superstições sobre o poder da bruxa e do Diabo, sobre as deslocações dos lobisomens e
as aparições dos espíritos dos antepassados, cuja presença operatória no quotidiano da
maioria crentes faz contudo parte do seu mundo vivencial, afectivo.

Dado que as crenças e as acções dos camponeses se afastam, por vezes


consideravelmente, da moral e da religião oficiais, alguns autores têm justamente
distinguido entre a religião católica e a religião popular. Por outro, o catolicismo,
contrariamente ao calvinismo, por exemplo, tem evidenciado uma enorme capacidade
de adaptação e transigencia em relação a desvios doutrinais, retomando e integrando
elementos animistas e antropomórficos da chamada religião pagã-popular-campesina,
tais como a atribuição de valor e eficácia aos ritos e preces, amuletos e água benta,
numa palavra, às formas de religiosidade popular. Cada uma das facções, reunidas à
volta das famílias mais influentes da aldeia, procura disputar em seu favor a anuência, a
colaboração ou até a cumplicidade do pároco para os seus próprios objectivos
estratégicos.
Enquanto dominadores políticos locais monopolizavam, particularmente
durante o Estado Novo, toda a espécie de transacções, distribuição de sinecuras e
obtenção de arranjos no labirinto administrativo e policial, entre os quais cabe salientar
a anulação de multas, a dispensa do serviço militar, a consecução de empregos, a
representação legal de emigrantes, a aposição de assinatura e de carimbo da Junta para
declarações de pobreza, a fim de os pobres obterem os magros benefícios de abonos de
família, o preenchimento de boletins para subsídios de invalidez de velhice, a pestação
de informações favoráveis em processos burocráticos de emigração, bem como à
consecução de créditos, quer junto a credores particulares, quer junto a instituições
bancárias, o suborno a guardas da GNR, de funcionários e até magistrados em litígios
administrativos e judiciais.

III – OS CACIQUES/MEDIADORES E CLIENTES

Entre os obstáculos mais viscosos e duradouros que, de modo corrente, se têm


verificado em diversas sociedades, designadamente na portuguesa, sobressai o
clientelismo.51

51
A respeito da evolução política contemporânea em Espanha, Romero-Maura, afirma que o
caciquismo enquanto forma de exercício de poder, situar-se-ia no reino da discricionaridade, ou seja,
nos antípodas da democracia e da liberdade.
Não tendo em conta este sistema de vínculação e dependência do cliente face a
uma pessoa influente, denominada patrono, a acção doa camponeses e demais actores
locais, designadamente a sua posição de alinhamento socio-político tradicional e, em
regra, conservador no Portugal contemporâneo, não poderia ser compreendida e
explicada. Embora em contextos e sob formas diferentes, o sistema patrocinal, sem
constituir um fenómeno ubíquo e universal, tem sido co-presente a diferentes tipos de
sociedades, desde os patrimonialistas de ordenação patrícia, passando pelas feudais-
aristocraticas e colonizadas, até às actuais formas, com diversos graus de dependência:
mais acentuados nos sistemas de latifundio, menos visiveis e marcantes nas sociedades
agrário-camponesas de minifúndio.

Seriam à priori os elementos da elite local, enquanto possuidores de recursos


materiais, educacionais e simbólicos que se tornariam os inovadores e os difusores de
processos de modernização socio-económica e política de colectividades impregnadas
dos valores de “pequena tradição”. Podemos fazer uma abordagem histórica da
evolução do papel dos subordinadores na tradição oral:
1) A defesa da autonomia aldeã, em que os patronos e mediadores locais,
embora conjunturalmente possam servir de elos de contacto com as
instituições camarárias e centrais, funcionando basicamente como
contrapontos catalisadores da resistência por parte das colectividades
relactivamente isoladas;
2) Algumas famílias mais influentes, designadamente os representantes do
poder local, amortecendo as reinvindicações ou protestos locais, mas sem
eliminar tensões que justificassem a sua acção, assumindo o papel relevante
de mediar, regular e controlar comunidades socialmente segmentadas;
3) A relactiva incorporação, em que os pequenos mediadores, degladiando-se
pelo controlo da gestão dos recursos públicos, funcionam mais como
simples agentes de entidades eclesiásticas, camarárias e partidárias que os
recrutam ou reconhecem (um exemplo concreto de agente mediador é o
padre).
Diversos estudos empíricos e respectivas elaborações teóricas, nomeadamente
referentes à área mediterrânica, têm mostrado que os fortemente enraizados sistemas de
patrocinato são co-determinantes do agir submisso e resignado dos camponeses.

Se numa perspectiva estrutural-funcionalista, essencialmente com uma ênfase


psicossociológica, autores como Parsons (1964) e Write (1961), caracterizam as
relações patrocinais como difusas e particularistas, não contratuais e perspassadas de
relactiva simetria e reciprocidade, outros, como Mauss, Pitt-Rivers e sobretudo
Eisenstadt e Roniger, reformulando as premissas estruturo-funcionais, incorporam
elementos provindos de outras correntes teóricas (instrumentalidade, coersão e
assimetria), mas enxertam-no num fundo moral de confiança e solidariedade, aliás
basicamente voluntárias, entre patrono e cliente.

A análise das relações patrocinais tem sido envolvida e particularmente


reinvindicada pelas correntes configuracionista, transaccionalista e simbólico-
interaccionista, as quais, perante a rigidez, a estaticidade e opacidade do modelo
estruturalista, destacam a função (re)estruturadora e dinâmica dos sujeitos-actores na
vida social. Numerosos são os autores para quem a diádica ou poliádica transacção
patrocinal se encontra imbuída de relações, ora latentes, ora manifestas, da assimetria,
de dominação e, por vezes, de exploração. Embora o patrono conceda protecção e
preste alguns favores e serviços, retira normalmente do cliente, além do seu
assentimento sócio-político personalizado, maiores vantagens. É justamente este saldo
positivo em favor do patrono entre os serviços prestados por este e os benefícios
materiais ou simbólicos colhidos do cliente que imprime a esta relação o carácter de
negócio e pode eventualmente traduzir um determinado grau de exploração e/ou
opressão deste por aquele.
Nas sociedades rurais tradicionais as relações de desigualdade e de
dependencia são contidas por laços diádicos e personalizados de vinculação parental,
compadria ou hierocrática. Na medida em que patrono e cliente partilham de
orientações cognitivas, valores e regras comuns, as relações verticais e individualizadas
entre ambos são percebidas como legítimas e por vezes acompanhadas de um
determinado grau de afectividade. Neste sentido, as acções dos clientes legitimam
processos dirigidos à obtenção de estigma social e, como tal, distinguir-se-iam, segundo
Weber, de outras baseadas em motivações de classe. Por seu lado os patronos em
determinadas sociedades como a portuguesa, o modo de operar é aparentemente,
pacífico, subtil, travestindo-se como diz Bourdieu, sob a forma de “violência simbólica,
doce e invisível”. Tais relações têm contribuido para o conformismo clientelar, evitando
que latentes situações de conflito se polarizem, impedindo uma organização de classe
em base horizontal.

O patrocinato não constitui um atributo inerente à natureza humana nem tão


pouco um traço que não se pode apagar de determinada cultura nacional ou regional. É
antes historicamente condicionado e, como tal, é susceptível de modificações,
readaptações e até desaparecer devido a novas situações ocorridas na sociedade
moderna.

No contexto agrário, com recursos limitados, rigidez estatutária e uma


mobilidade (geo) social inexistente ou restrita, as aparentes ou reais atitudes de apoio ou
lealdade sócio-política e religiosa dos clientes face a patronos e também mediadores,
obedeciam a imperativos racionais de sobrevivência, segurança ou melhoria de posição.
É justamente na função mediática mais personalizada com a sociedade envolvente que
as relações patrocinais, prolongando, ainda de modo diferente, as demais relações
sociais de parentesco e vizinhança, possuem dinâmica própria – frequentemente envolta
sob um manto moral, religioso e cada vez mais partidário - , mas contudo, não estão
desligadas das economias locais e correlativas diferenciações sociais.
O comportamento mutável de actores-clientes, assim como os reajustamentos
político-ideológicos dos seus patronos, dever-se-ão articular com as reestruturações e
mudanças no tecido sócio-económico e com a dinâmica da micropolítica local,
nomeadamente o facto de surgirem novos canais alternativos de poder e de proteccção.
Se a implementação do regime pluripartidário enfraqueceu o patrocinato tradicional, tal
não envolveu necessáriamente o seu desaparecimento, mas antes a sua transformação e
diluição nos arranjos institucionais, de modo a coexistir com solidariedades de tipo
horizontal. De qualquer modo verifica-se uma diminuição do papel dos tradicionais
patronos nos meios rurais e na sociedade rural transmontana. À medida que se realiza o
processo de incorporação das economias artesanal, campesina e pastoril na economia e
sociedade englobantes, as entidades institucionais de modo subtil e mediado não
interferindo vão exercendo as suas funções de integração e controlo sobre as
comunidades locais.

CONCLUSÃO

As ciências sociais ou ideográficas, tentam conhecer aqueles aspectos da


realidade que, em razão do ideal lógico generalizante das ciências nomotéticas, não
podem ser captados pelo seu método positivo. Trata-se de acontecimentos e fenómenos
concretos e singulares cujo conhecimento necessita de meios lógicos específicos, isto é,
conceitos de pequena extensão e de grande conteúdo. Ao optar-mos pela tentativa de
uma análise sistémica, visava-mos precisamente dar uma imensidão de respostas a
conhecimentos concretos de uma realidade social, interpretando e reinterpretando
conhecimentos, analisando comportamentos, observando o quotidiano e prestando
particular atenção à história oral e linguagem. A partir do terreno, o laboratório por
excelência, procura-se compreender quase tudo – a sociedade, não só envolvente, mas
uma espécie teórica de partir do singular, do micro, da comunidade, para o plural, o
macro, a sociedade. “Todo o objecto social de estudo é, entre muitos possíveis, um
fragmento da realidade, escolhido em função da sua significação, do interesse e do
valor que os individuos lhe atribuem.”52

A acção tradicional determinada pelos hábitos e costumes dos individuos de


um mesmo grupo local. “O processo de experiências e vivências fundamenta a
compreensão dos diferentes mundos constitutivos num espaço e num período
determinados: o mundo dos contemporâneos, o mundo dos antepassados, o mundo dos
pares, o mundo dos outros; um todo que constitui o mundo da vida ou da vivência, raiz
de todas as situações societárias.”53Blumer afirma que a investigação empírica é de
carácter indutivo e contém duas etapas: a da exploração e a da inspecção. Pela
exploração o cientista levanta o véu que cobre a realidade particular que quer investigar,
permitindo-lhe identificar problemas, formular questões e seleccionar dados. Pela
inspecção desenvolve relações e correlações, elabora conceitos e interpreta os
resultados. A abordagem metodológica exposta por Blumer privilegia determinados
dispositivos tecnicos de pesquisa, tais como a observação directa, o trabalho de campo,
os estudos de caso, as histórias de vida, etc., isto é, com os que o mundo da vida pode
ser captado na sua própria expressão, representatividade e realidade, isto é, no vivido
dos individuos.

Os objectos, valores, saberes – contém o sentido que o processo de interacção


social lhes atribui, possibilitando a interpretação dessa realidade contruída e
reconstruida por cada actor social. As práticas sociais são o que os actores sobre elas
52
Adolfo Yañez-Casal, Para uma Epistemologia do Discurso e da Prática Antropológica, Edições
Cosmos, Lisboa, 1996.
53
Idem;
sabem, compreendem e relatam. Ao cientista social resta-lhe descrever e reinterpretar,
tornando inteligivel o que os actores sociais sabem fazer, dizem saber e sabem dizer.

Ao perspectivarmos uma Antropologia rural associada a uma Antropologia do


económico a partir de uma análise tripartida de três sistemas, procurou-se não apenas
fazer uma divisão relactiva do trabalho e abordagens teóricas em si, mas também uma
tentativa de aplicação de um estudo do desenvolvimento das comunidades campesinas
no contexto regional particularmente em Trás os Montes. Várias questões podem ser
colocadas mesmo dentro de cada sistema individualizado, uma vez que na primeira
parte se privilegiou uma abordagem de representações, a partir do conhecimento
transmitido pela tradição oral com algumas intervenções simbólicas de interacção;
seguindo-se o sistema empírico onde se privilegiou o quotidiano da aldeia juntamente
com o história da família e na terceira parte o sistema político, indissociável do
ideológico. No entanto é de salientar que na interrelação entre os três sistemas, o
económico e desenvolvimento, são elementos manifestos e que lhes prorporcionam
dinâmica na acção e interpretação teóricas, estando presentes ao longo de todo o
trabalho de investigação e realização.

“... c’est sur la logique de l’economique que nous devons agir, en l’integrant
dans le fait social-culturel total, d’aprés differents modèles, selon les differents cultures
chaque ensemble formant un modèle intégré: modèle de développement qui sera aussi
modèle de démocratisation économique, politique, des activités locales, régionales et
universelles, du travail en tant que valeur à égalité avec le loisir-créateur.”54

A Antropologia das sociedades camponesas da Europa pode ser considerada


como um desafio para a várias teorias sobretudo a do parentesco e da organização social
por exemplo, porque é muito difícil definir a realidade dos grupos de parentesco nos
termos usuais da teoria da filiação e porque as particularidades das formas de
casamento, na hipótese de uma identificação clara, não parecem permitir uma análise
54
Vitorino Magalhães Godinho, Les Finalités Culturelles du Developpement, in Revista de História
Económica e Social, 8, 1981, p.10.
estrutural clássica. A teoria da filiação e a teoria da aliança devem ter em consideração
observações que nunca foram encaradas como pertinentes por essas teorias. O
desenvolvimento das pesquisas sobre as sociedades camponesas europeias durante os
últimos vinte anos oferece informações de primeira importância que, todavia,
contribuem para criar novos problemas, muito mais do que resolvê-los. Talvez por isso
possa ser considerada como uma riqueza potencial.

Parece-me que uma possibilidade de tratar estes factos consiste numa análise
das transmissões entre gerações, transmissões de património como das coisas imateriais
(autoridade e prestígio, principalmente).

O camponês é frequentemente muito feroz na defesa da sua própria casa. A


comunidade da freguesia é restrita, sendo a competição com fins económicos e de
prestígio muito intensa. A existência de uma tendencia desagregadora é reconhecida e
deplorada, pois é considerada como um poderoso obstáculo à realização dos ideais de
vida do lugar de freguesia. Assim, os residentes da freguesia recorrem a um conjunto de
instituições, prescrições e proibições, cujo propósito é controlar a experiência de
comunidade, uma componente muito estimada e importante da visão do mundo
camponesa. O significado do termo comunidade tanto pode referir um complexo de
relações sociais, como um complexo de ideias e sentimentos.

O quotidiano da economia rural, condicionado que é por factores que


transcendem o querer e as possibilidades das pessoas e das famílias, potenciou as
virtualidades da cooperação, entreajuda e permuta de serviços. Estas circunstancias
tornam emergente a realização de actividades agrícolas em comum, o aproveitamento
colectivo de curtos bens e o uso comunitário de certos bens, infraestruturas e
utensilagens. Estas práticas são características das pequenas freguesias. O primado das
iniciativas decorre quase em absoluto dos próprios moradores, que através da auto-
organização consubstanciam não só os seus direitos tradicionais, como afastam o
intervencionismo de autoridades e pessoas alheias ao seu microcosmo, o que constitui
uma clara afirmação de paroquialidade, contraposta aos protagonismos das instituições
formais que os pudessem substituir ou enquadrar. As actividades comunitárias
envolviam comínios diversos como já referenciamos, no entanto é ainda de dar
particular relevo a moinhos, fornos, eiras, lagares, irrigação, etc. O arroteamento, a
apropriação e a alienação através dos tempos, por parte de particulares e entidades
privadas e públicas, incluindo instituições administrativas (até a Igreja), que em muitos
casos obtiveram a sua gerência, explicam a sucessiva redução de amplitude
comunitária.

Atendendo aos valores centrais, implicita ou explicitamente, pelo seu quadro


cultural, as classes camponesas sempre desenvolveram, pelo menos ao nível da
sociedade tradicional, uma concepção nitidamente económica ou tecnocrata. Os outros
sectores da vida, tais como a família (nuclear ou extensa) e os fenómenos simbólico-
religiosos, revelam-se no domínio individual, não passando de epifenómenos
secundários ou periféricos, cujas formas de evolução são determinadas pela realidade
mais tangível e identificável do sistema económico.

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