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HONRA E VERGONHA: VALORES DAS SOCIEDADES MEDITERRÂNICAS – J. G.

Peristiany,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1965

Prefácio de José Cutileiro.

A antropologia social de comunidades que, como as mediterrânicas, são parte de uma grande
civilização e de tradições nacionais estabelecidas de longa data, levanta ao antropólogo problemas
inéditos e modifica o âmbito das suas actividades.
A pequena comunidade isolada, uma vez dominada a língua, revela-se no seu quotidiano, por
observação directa, sem uso de questionários formais ou métodos estatísticos elaborados. As
características fundamentais da comunidade – a sua economia, a sua cultura material, os seus sistemas de
família e parentesco, a sua estrutura política, a sua religião e os seus valores morais – vão aparentando na
textura das relações sociais, até ser possível ao antropólogo construir um modelo coerente que integrava
todos estes aspectos. O estudo antropológico de comunidades mediterrânicas é diferente; não se podem
considerar “isoladas”; falam uma língua que não lhes é exclusiva, a religião ou é Islâmica ou Católica, os
seus sistemas de família e parentesco são casos particulares de sistemas vastos. O seu sistema legal e
jurídico é o do Estado moderno a que pertencem e a sua economia depende deste. Há comunidades que
conservam características que não se encontram no resto da sociedade: dialectos particulares, ou formas
de comunitarismo agro-pastoril (Vilarinho da Furna). Mas tais aspectos, importantes para a linguística e a
sociologia comparada, são raros e, portanto, pouco ilucidativos da sociedade mais larga a que essas
comunidades pertencem. Os antropólogos têm mais frequentemente estudado comunidades menos
atípicas. A contribuição específica do antropólogo ao deixar a sua aldeia mediterrânica é de dois tipos:
por um lado fornece uma análise detalhada do sistema de família e parentesco e do sistema de valores
morais que lhe está associado, enquadrando-os na estrutura social total, com base em observação empírica
que nenhum outro estudioso está preparado para fazer; por outro lado, ao considerar tópicos que são
aparentemente do domínio de outros especialistas, fá-lo a partir da maneira como esses tópicos se revelem
na prática quotidiana: ligados entre si, em incidentes únicos, produto da interacção de normas e
circunstancias, constituindo aquilo a que Mauss chamou “factos sociais totais”, os momentos das relações
sociais de que participam aspectos que outros especialistas consideram isoladamente – económicos,
legais, religiosos, morais, etc. – mas que o antropólogo, ao apreendê-los ao vivo, nas suas interrelações,
consegue revelar o significado sociológico.
A experiência das sociedades primitivas, obrigando o antropólogo a observação constante,
detalhada e sem benefício de estudos prévios, auxilia-o agora a observar com rigor e sem parti-pris as
cambiantes de emoção e comportamento que lhe permitam compreender e relatar a fábrica social das
pequenas comunidades “civilizadas” e, sobretudo, os sistemas de valores morais por que se regem. O
antropólogo é o único que considera a realidade in totto e está apto a lhe aperceber o nexo exterior.
Procura fornecer elementos que permitam uma análise científica da vida social. Os seus factos são
verdadeiros e não inventados ou transfigurados e a estrutura teórica contra a qual eles fazem sentido e em
função da qual foram recolhidos, é sociológica. A organização do seu material obedece a critérios
científicos. O produto final do seu trabalho é u ma interpretação da realidade social. O antropólogo
descreve um universo já criado. Na medida em que família, parentesco e afinidade têm relações directas
com o sistema de valores morais em discussão, esses factos são importantes para a contracção
matrimonial. Os valores de honra, como diz Campbell no seu ensaio, são egoístas e particularistas. A
protecção dos interesses do próprio e da sua família é fundamental e há poucas normas de comportamento
para com os outros que sejam de aplicabilidade geral.
a) a importância dos deveres familiares com a obrigação ideal de um homem, pôr o interesse da
sua família nuclear acima de quaisquer outros;
b) estratificação social bem marcada, com o poder político e económico nas mãos de uma
pequena minoria e com uma grande maioria competindo, na procura dos favores, muitas vezes
agudamente necessários, mas de que há sempre uma oferta reduzida, dessa minoria – são as
duas características da estrutura social que é necessário ter em conta para compreender o
sistema ideal de valores e as distorções que esse sistema sofre na sua aplicação prática.
O prestígio de um homem, a sua reputação, a sua honra – embora a palavra seja raramente usada –
o que faz dele “um homem de vergonha”, dependem tanto dele como da sua família e é considerando a
família e não apenas os seus membros, isoladamente, que podemos compreender cabalmente este sistema
de valores. O status de qualquer família depende de factores morais e de factores materiais. Cada família
real procura aproximar-se do modelo ideal, mas é evidente que a tarefa é mais fácil para as famílias mais
prósperas. Quanto mais rico é um homem maior é a base material do seu prestígio, quanto mais vistuosas
as mulheres da sua casa – e a prosperidade ajuda a manter os padrões de comportamento identificados,
nesta sociedade, com virtude – maior a base moral. O poder ligado à prosperidade é grande e acrescenta
também ao prestígio: poder político directo (por assento na Câmara, no Grémio de Lavoura, na
Assembleia Nacional ou indirecto (por influência junto dos representantes do poder político); ligado com
estes o poder importantíssimo de fazer e obter favores para terceiros.
Enquanto o sistema de valores ideal parece ser o mesmo para todos os grupos da sociedade, as
possibilidades de viver de acordo com ele variam substancialmente segundo a posição de cada família na
estratificação social. “Isso que eu peço não é favor – minha vergonha me custa.”
Enquanto os laços e posições relativas da família são formais, sagrados e imutáveis, os laços e
posições relativas da amizade são informais, profanos e mutáveis.

Introdução

Os ensaios reunidos neste volume revelam, a continuidade e a persistência das formas de pensar
mediterrânicas. Todas as sociedades têm regras de conduta: na realidade, os termos “sociedade” e
“regulamentos sociais” são coextensivos. Todas as sociedades sancionam as suas regras de conduta,
recompensando os que lhes obedecem e punindo os que delas se afastam. A honra e a vergonha são
valorizações sociais e partilham da natureza de sanções sociais: quanto mais monolítico é o júri, mais
severo é o julgamento. Honra e vergonha são dois pólos de valorização. São a reflexão da personalidade
social no espelho dos ideais sociais.
A honra é o vértice da pirâmide dos valores sociais temporais e condiciona os seres humanos em
duas categorias fundamentais: os que possuem honra e os que a não possuem. Excelência nestas
qualidades faz parte da imagem do homem ideal, falta delas abre o caminho ao ostracismo social. O
homem ideal e o homem respeitado estão a níveis diferentes da mesma escala de valores. Todas as
sociedades valorizam condutas comparando-as com padrões ideais de acção, todas as sociedades têm as
suas formas de honra e vergonha. Se a honra e vergonha são aspectos universais de valorizações sociais, a
polaridade do sagrado e do profano é igualmente comum; no entanto a maior preocupação não é com a
lógica destes fenómenos mas com a sua relevância num sistema social dado, procurando correlações que
possam fornecer um índice de classificação desses sistemas sociais. Honra e vergonha são preocupações
constantes de indivíduos em sociedades pequenas e fechadas onde as relações pessoais face-to-face, por
oposição a relações anónimas, são de extrema importância e em que a personalidade social do actor é tão
significante como o papel que tem a desempenhar.
Julian Pitt-Rivers fez um estudo sobre a estrutura e valorizações sociais do pueblo andaluz. Este
destaca que estes valores têm pouca importância para a classe média e nenhuma para a classe alta, isto
porque estão livres de sanções sociais. Caro Baraja, examina as questões políticas, económicas e
religiosas que levaram a mudanças na concepção de honra. Associou honra colectiva com
patrilinearidade. Examina as relações entre contexto social e ideais ligados a prestígio. A honra está só
implicada em relações particularizadas em que cada actor está bem definido como persona social. Há uma
hierarquia de prestígio mas esta hierarquia não corresponde às classes sociais. O prestígio, difícil de
conseguir, perde-se facilmente e um homem tem que estar constantemente alerta, sempre preparado para
ser posto à prova, preparando metaforicamente e realmente, para arriscar tudo quanto tem num lance de
dados.
John Cmpbell estudou os Sarakatsani, pastores transumantes gregos, formam um mundo fechado
dentro do qual a família é a unidade mais importante. Os aspectos naturais e sociais do mundo são hostis:
nesse mundo, corpo e alma, bem-estar material e honra, podem perder-se facilmente. Tal como o homem
luta para sobreviver fisicamente e na sua personalidade social, Deus luta com o demónio para salvar as
almas dos homens. É interessante notar que não é a luta pela honra, mas a luta pelos bens materiais que
gera inveja e tentações que põem em perigo a alma de um homem. A faceta agonística da honra aparece
ainda mais claramente na análise da honra na sociedade cabília feita por Bourdieu. O parentesco impõe o
padrão de relações pessoais no clã e na aldeia, no sentido de todas essas relações serem concebidas num
padrão de parentesco. É por esta razão que os valores de honra constituem a base da organização política
da Cabília. Na Grécia Antiga, o crime de hubris consistia em dar tanta ênfase à virtude própria que um
homem acabava por tentar obter, devido a esse exagero, honras que estão para lá do alcance humano.
Hubris, noutro contexto, é a negação da própria condição social. Ir longe demais, mesmo no exercício da
virtude, envergonha o próximo e estabelece padrões que não podem ser mantidos sem prejuízo para a
ordem social. “... o saber conservar a sua importância como elemento na determinação de posições
sociais. As ambiguidades que daqui resultam em termos de orientação de valores e estratificação social
bem determinada são elementos importantes na avaliação das nossas características culturais.” O termo
temporal demonstra o reconhecimento da existência, em todas as sociedades, de um ou outro ideal de
santidade, que transcende o da honra. O caminho que leva a qualquer ideal é o mesmo, no sentido que se
sacrificam coisas baixas por coisas mais elevadas. A definição de santidade poderia dizer que a santidade
está acima da honra e que não há nada acima da santidade.

Honra e Posição Social – Julian Pitt-Rivers

Os moralistas são mais atraídos pelo tema da honra que os cientistas sociais. A noção de honra é
algo mais do que uma forma de mostrar aprovação ou reprovação. Possui uma estrutura geral que se
revela nas instituições e juízos de valor tradicionais de cada cultura. Podemos ligá-la ao conceito da
magia no sentido em que os seus princípios, embora universais, estão revestidos por concepções que não
são exactamente equivalentes de sitio para sitio. Como a magia, ratifica-se por um apelo aos factos, aos
quais impõe a sua própria interpretação e envolve-se em contradições que se reflectem nos conflitos da
estrutura social.
Honra, diz Pitt-Rivers, é o valor que uma pessoa tem aos seus próprios olhos mas também aos
olhos da sociedade. É a sua apreciação de quanto vale, da sua pretensão a orgulho, mas é também o
reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito a orgulho.
Os estudiosos dos pormenores das relações pessoais fazem notar um dos tópicos de mais interesse com
que lidam consiste nas maneiras como as pessoas tentam obter doutras a ratificação da imagem que
acalentam de si próprias e os dois aspectos de honra podem conciliar-se nesses temos. Fornece um nexo
entre os ideais da sociedade e a reprodução destes no indivíduo através da sua aspiração de os
personificar. O direito ao orgulho é o direito à posição social e a posição social estabelece-se pelo
reconhecimento de uma certa identidade social. Os cientistas sociais ocupam-se de factos e processos de
identificação: Como, com que fundamento e por quem é a honra identificada?
Todas as autoridades políticas têm a pretensão de encarnar os valores morais da sociedade que
governam, de “impor o que está certo e proibir o que está errado” – reivindicam o direito de conferir
“honras”, decorrendo daí que os que essas honras recebem são “honrados”. As qualidades necessárias
para exercer o mando numa comunidade rural não são as qualidades exigidas para agradar a corte. A
honra, como sentimento e modo de conduta, separa-se da honra que pode levar a títulos concedidos pelo
Rei. Assim, fidelidade ao código da honra não coincide nestes casos com a posse de “honras”. Se a honra
garante posição social a inversa é também verdadeira, e quando essa posição é obtida por nascimentos, a
honra não resulta apenas da conduta individual mas também da procedência. No entanto o conceito de
honra enfrenta uma ambiguidade que pode apenas ser resolvida apelando para um tribunal, uma “fonte de
honra”, seja ela a opinião pública, o monarca, o ordálio do combate judicial que implicava um apelo
directo a Deus. Quando a monarquia deixou de permitir acesso directo a Deus nestas matérias e passou
ela própria a tomar toda a responsabilidade na arbitragem de reivindicações de honra, a corte foi
submetida a críticas resultantes do conflito inerente à noção, como as de opinião popular que considerava
a honra dos rústicos mais valiosa que a dos cortesãos. A excelência das qualidades pessoais é relativa.
Está nela implícita a superioridade sobre outros. Hobbes, ignorando resolutamente os pontos de vista de
todos os moralistas desde Aristóteles, defende honra nestes termos e formula aquela a que eu chamaria “a
terra hierárquica da honra”. Numa sociedade de iguais, como uma comunidade de camponeses, a honra
máxima pode ser ter obtido o respeito dos outros membros da comunidade, mas quando nos aproximamos
do pólo em que a honra é obtida através de “honras” recebidas, há necessariamente competição para a
sua obtenção. Quando existe uma hierarquia de honra, quem se submete à precedência de outros
reconhece a sua posição social inferior: Podemos ver a hierarquia da honra, estendendo-se a partir da sua
origem divina, através de um Rei cuja legitimidade depende da aprovação de Deus, pelos degraus da
estrutura social até chegar aos que não tinham nenhuma honra: os heréticos e os infames. Em qualquer
competição por honra a reputação do vencedor é acrescentada pela humilhação do vencido.
Todavia, se os soberanos estiveram longe de conferir honras apenas a gente virtuosa, o mesmo se
pode dizer da vox populi. Da mesma forma que se diz que a possessão constitui nove décimos da
propriedade legal, ter honra de facto depende da capacidade de calar aqueles que possam pôr em causa
essa honra. No campo de honra a força faz o direito. Começaremos por notar a íntima relação que existe
entre a honra e a pessoa física. Os rituais pelos quais a honra é formalmente conferida incluem uma
cerimónia usualmente centrada sobre a cabeça do protagonista, seja aquela coroação de um monarca ou o
toque na cabeça com um livro ao serem conferidos, em Oxford, títulos universitários. O mesmo acontece
em muitos ritos de passagem e, na realidade, deveríamos considerar os rituais honoríficos como ritos de
passagem. Mesmo depois de a boa sociedade ter poscrito a violência física, a bofetada ritual na cara
permaneceu a forma de desafio em matérias de honras e admitia-se correntemente que as ofensas á honra
só podiam ser redimidas pelo sangue. “La lessive de l’honneur ne se coule qu’au sang”. Qualquer forma
de afronta física implica uma afronta à honra uma vez que a “esfera ideal” à volta da honra de uma
pessoa, de que falou Simmel, foi profanada. Aquilo que é uma afronta dito na cara pode não desonrar dito
pelas costas. Esta satisfação pode ser obtida com uma desculpa que é o acto verbal de auto-humilhação ou
pode exigir, e, se as desculpas não são rapidamente apresentadas, deve exigir vingança. Deixar uma
afronta por vingar é deixar a própria honra num estado de profanação e equivale a cobardia.
A opinião pública forma um tribunal perante o qual são trazidas reivindicações de honra; chamou-
se-lhe “o tribunal da reputação” e não há apelo contra as suas decisões. Diz-se por essa razão que o
ridículo público mata. Certas acções têm significado ritual, convencionalmente reconhecido, outras
dependem, para sua interpretação, de nuances de maneiras. Se um homem compreende que foi insultado
(e outras pessoas normalmente ajudam-no a compreender) e nada faz, perde honra. Um homem só tem
que responder pela sua honra entre os que socialmente lhe são iguais, entre aqueles com quem pode,
conceptualmente competir. O “eu” verdadeiro de um homem é inseparável do sagrado. Os antropólogos
do começo do século poderiam ter traduzido a palavra mana por honra, pelo menos nos contextos em que
se referia a pessoas, e notado que o vencedor polinésio que adquire o mana do inimigo morto tomando o
seu nome, se comportava como os reis conquistadores do hino religioso.
Tratou-se o conceito de honra como um atributo puramente individual. Ao nível colectivo, alguns
grupos sociais cujo chefe é um representante eleito e cuja pessoa, por oposição ao posto que ocupa, não
possui nada desta qualidade sagrada. Esta observação deu a Montesquieu a virtude cívica, algo
semelhante ao que entendemos hoje por “cidadania”. O significado político do sagrado é que arbitra
questões de valor, estabelece os limites do que pode ser feito ou sustentado sem sacrilégio e define as
lealdades incondicionais dos membros da sociedade. A honra da parte ofendida podia mesmo
acrescentar-se se sofria a ofensa com magnanimidade. Ao nível da acção política o conceito de
autoridade participa da mesma natureza. A natureza arbitrária do poder sagrado estende-se para além das
fronteiras da religião. A honra e a vergonha são os componentes da virtude. Honra é a aspiração à posição
social (status) e a validação dessa posição social, enquanto vergonha, quando oposta a honra, é a
limitação dessa aspiração (timidez) e, também, o reconhecimento de perda de posição. A honra tem
origem no foro íntimo de cada um e acaba por triunfar no mundo social; vergonha neste sentido, tem
origem nas acções dos outros, com a recusa da honra, e acaba por ser sentida pelo indivíduo. Os
conceitos de honra e vergonha são portanto, segundo o contexto, ou sinónimos de virtude, ou antónimos
um do outro como humilhação e precedência.

Honra e Vergonha – Exame Histórico de Vários Conflitos – Júlio Caro Baroja

Honra e desonra gravitam sobre a consciência do indivíduo; fama e infâmia sobre a da sociedade.
E, no indivíduo e, na sociedade, actuam as ideias de vida e morte civil e moral assim como as de bem e
mal. Mas as razões pelas quais um homem ou uma mulher são honrados ou não, têm boa ou má fama,
além de serem complexas, são mais variadas segundo o direito e a moral medievais e segundo o direito e
a moral dos nossos dias. As noções morais e políticas que hoje existem e actuam na vida social com
carácter autónomo formam, num código medieval típico, um todo indivisível. No entanto não saímos de
uma ordem de ideias coerente com os fundamentos da moral cristã e com a ética dos filósofos da
Antiguidade Clássica. O individualismo feroz parece ter dominado os humanos do fim da Idade Média e
ter levado á destruição do sistema de linhagens das bases da moral fundada na sua existência. Os
personagens imaginários actuam guiados por uma “moral de senhores” como diria certo pensador alemão,
ou por um ideal que se aproxima do ideal nietzchiano do “super-homem” e que, evidentemente, é no
fundo, muito pouco cristão. Com os novos empregos, as honras vinham acompanhadas de grandes e
muitas vezes rápidos proveitos. A vida imediatamente anterior pareceu a muitos rústica e provinciana. Os
teólogos moralistas do séc. XVII consideravam a memória colectiva como um elemento saudável da
manutenção da fé. Huarte de San Juan, um penetrante psicólogo espanhol do séc.XVI define um homem
verdadeiramente honrado em sociedade a partir da seguinte ordem de coisas:
1)Valor da própria pessoa [a) prudência, b) justiça, c) ânimo, d) valentia];
2) Fazenda;
3) Nobreza e antiguidade dos antepassados;
4) Dignidade ou emprego honroso;
5) Bom apelido e nome gracioso;
6) Boa apresentação pessoal.
Pode dizer-se, todavia, que quer se tenha em conta o sistema medieval de linhagens que se atenda
a critérios de limpeza e pureza impostos pelo regime monárquico, o conceito de “bem” ou “mal nascido”
está intimamente ligado à honra pessoal. No entanto, começou a divulgar-se a ideia que era justamente na
classe social que sempre tivera menos pretensões, naquela que vivera sempre afastada da honrarias por
um lado e dos negócios que dão dinheiro por outro, que talvez se pudesse encontrar melhor a honra ou o
honor acrisolados do “cristão velho”. Aludo à classe dos vilões, dos trabalhadores rurais, súbditos do rei
ou senhores particulares.
São muitos os textos que põem em relevo o desprezo que os nobres e a gente da cidade sempre
tinham dedicado a esta classe: basta recordar, para demonstração, as acepções pejorativas das palavras
vilão e vilania. Mas homens da Igreja, de origem vilã chegados a altas dignidades, soldados, letrados, etc.,
que também o eram, fizeram campanhas de reabilitação mais ou menos deliberadas. Deixando de lado
reivindicações como problema político e atendendo ao estudo dos valores sociais e éticos pode dizer-se
que em torno da posse de dinheiro em relação com honra e verguenza se criou uma série de tópicos,
segundo os quais aquele que tem dinheiro deve ser quase sempre um malvado, explorador das classes
populares. No entanto, vivem obcecados pela ideia da omnipotência do dinheiro. Aquele que não tem está
exposto a tudo, incluindo desonra. Vive em tensão permanente por causa de uma série de histórias em que
o abuso é patente. Por seu lado o rico cuida pouco de evitar que se repitam casos de irritação e até
histórias populares e o que passa de pobre a rico crê mais do que ninguém na omnipotência do dinheiro.
À noção de valer más fundada na força da linhagem, na coragem pessoal, no ser homem de bem, etc.,
sucedem-se o valer más económico. Deixando de lado a relação em que a honra está com as virtudes dos
cristãos tal com as considera o catecismo ( três teológicas, Deus como objecto, e são Fé, Esperança e
Caridade, e quatro cardeais Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança) ou a moral de filósofos fundada
nas quatro virtudes cardeais, vemos também que a honra se relaciona com questões de nascimentos de
estado, para não dizer de classe social. A honra ou honor referida a linhagens e a um sistema de honores e
verguenzas, agravos e vinganças tal como se concebia no fim da Idade Média, é a melhor ilustração do
que afirmamos.
A tendência é sempre, a de considerar os problemas de honra e vergonha como problemas sociais,
problemas com uma grande quantidade de elementos contingentes e variáveis. E, não é menos curioso e
significativo que, constantemente tenham sido argumentos de tipo económico os que mais impressão
fizeram, na consciência pública ao levar-se a cabo a crítica de cada sistema.

A Honra e o Diabo - J. K. Campbell

A honra como reconhecida integridade e valor de personalidade individual, é profundamente


importante para os gregos, sejam eles ministros ou camponeses. A base da reputação social da família
reside no reconhecimento de que tem honra (time), palavra que também se utiliza em grego para
descrever o preço monetário, ou valor, de um objecto ou de um serviço. Time exprime a noção de valor
quer se trate de um valor económico no mercado, quer de valor social avaliado num complexo de grupos
de indivíduos em competição. Todos nascem com honra, em famílias de honra, mas é uma qualidade que
pode facilmente perder-se, numa família, em certas situações típicas em que é violado ou traído, como
homicídio, derramamento de sangue numa luta, insulto verbal, sedução, violação ou rompimento de
noivado. A honra é, um estado de integridade, é não ser atingido por este tipo de ataque, insulto ou
traição. Quer a honra quer a noção de homem de honra, são, de certa maneira, sancionadas pelos
sentimentos de consideração por si próprio (egoísmo) e vergonha (drope). A consideração por si próprio,
é a necessidade interior e a obrigação de conseguir uma identificação com a imagem ideal de si próprio.
Esta imagem é, um estereotipo fornecido pela sociedade, há pouca margem para especulação individual e
nem ocorreria à maioria dos sarakatsani pôr em dúvida o seu conteúdo tradicional. Torna-se bem claro
que os valores da honra, cularísticos, egocêntricos ligados a um ideal de força de disciplina e não a um
ideal ético de bem, contradizem de muitas maneiras os princípios da fraternidade cristã.

Oposição de Valores

O problema da oposição de dois sistemas de valores, um social e um religioso, tem que ser
explicitamente considerado: por um lado temos valores sociais de honra, prestígio, força e orgulho, com
as suas referências, exclusivos e particularistas, ao indivíduo e à sua família; por outro, temos o facto de a
comunidade pertencer a uma cultura cristã. Existem evidentemente, contradições e inconsistências nos
valores e crenças de muitas sociedades.
Os pobres não são bem-aventurados. E, todavia, o amor, a confiança mútua, a verdade e o
altruísmo são virtudes cristãs importantes que são os valores ideais da vida de família e parentesco. Um
homem, se pudesse levaria mais longe a sua aplicação, mas as condições de vida neste mundo decaído
impedem que tal aconteça, particularmente os recursos limitados, a honra e os interesses da própria
família, divinamente sancionados, a inveja.

Honra e Vergonha: Numa Aldeia Cipriota de Montanha – J. G. Peristiany

Honra e vergonha são dois aspectos de uma valorização. Uma valorização implica a possibilidade
de escolha dentro de uma hierarquia aceite de valores controlados por ideais que os classificam. Um ideal,
possuído em comum por dois agentes, fornece uma base para valorização , comunicação e predição.
Fornece uma linguagem comum em matéria de valores. Qual a escala de valores em que a honra e a
vergonha se reflectem, em que contextos são evocadas e que grupos são afectados por estas valorizações.
As três categorias sociais com as quais um grupo grego imediatamente se identifica são a família, a
comunidade de origem e a nação. Estes fornecem, em muitos contextos, a dualidade necessária à
diferenciação, à clivagem – e oposição – entre Nós e Eles.
A autoridade e o poder de influenciar a opinião pública do chefe da aldeia, do padre e do
professor, cada um na sua esfera de acção, é inexpugnável quando cooperam entre si ou quando, pelo
menos, se não opõem publicamente uns aos outros. O chefe da aldeia ideal é, para os aldeãos, aquele que
menos usa a autoridade e as prerrogativas que lhe são conferidas pelo Governo pois só esta contenção
pode levar o povo a esquecer o estigma da origem estrangeira da sua autoridade. Economicamente, a
família é quase auto-suficiente. A pastorícia, a rega, o tratamento de vinhas e árvores e a cura do presunto
não requerem auxílio externo. De todas as instituições locais a Igreja é a mais próxima do coração do
povo e o padre é escolhido pelos aldeãos, mas a propriedade da Igreja é controlada por uma diocese
distante em termos sociais e espaciais. Pode-se dizer que dentro da comunidade da aldeia, a família é a
unidade básica que actua para conservação dos seus interesses económicos e da sua integridade moral, e
que a avaliação dessas acções pela opinião da aldeia fundamenta a colocação da família na hierarquia da
honra. As relações familiares obedecem a um padrão de superordenação-subordinação entre gerações
consecutivas, entre o irmão mais velho e o mais novo e, na mesma geração, entre varões e fêmeas. É
“vergonhoso” mostrar falta de respeito pelo pai, desafiando ou ignorando a sua autoridade em público. O
principal dever de uma mulher para consigo própria e para com a sua família, é o de se salvaguardar
contra quaisquer alusões críticas ao seu pudor sexual.
O que é específico nesta situação social – ou antes na moralidade reflectida nas relações sociais em
sociedade deste tipo – é o não reconhecimento de obrigações morais impessoais em termos de cidadania
ou pertença à espécie humana. As únicas obrigações realmente significativas são as obrigações para com
a família, a aldeia e a nação, e para com o próprio em situações em que a honra pessoal está em risco. Os
deveres estão bem definidos e uma pessoa sabe qual é a sua posição em relações de parentesco e, em
menos grau, em relações do tipo: amizade, hospitalidade, comunidade e nação.

Algumas Conclusões

a) Em sociedades deste tipo, isto é, em sociedades sem esferas de competência exactamente


delimitadas, cada varão tem necessidade constante de afirmar quer a sua superioridade quer a
sua isotimia, isto é, o seu direito a ser tratado como uma pessoa merecedora de consideração e
estima. As relações de hierarquia produzem ressentimento e tentam evitar-se; sempre que o
superior sublinha a sua posição, o inferior sublinha a sua virilidade. A insegurança é una das
boas razões de auto-afirmação.
b) A estrutura conceptual do campo de obrigações da honra é a da família e de famílias ligadas
por obrigações de honras comuns – por uma honra comum a defender. A humanidade, a
cidadania têm que ser redefinidas em termos de relações identificáveis. Os deveres e a posição
relativa de cada um são claros nas relações de parentesco e naquelas que se lhe podem
assimilar: amizade, anfitrião-hóspede e em certos contextos, comunidade e nação.
c) Philotime que intervém em dois contextos: 1) características ligadas ao sexo – num homem:
virilidade/afirmação de masculinidade; numa mulher feminilidade/pudor passivo. Um homem
pouco viril, uma mulher impudica traem a sua natureza.
d) Centralização excessiva vai contra a índole de concepção de valores morais. O Estado é pouco
significativo com catalizador de valores e lealdades. A família é extremamente importante.
Neste contexto social o nepotismo não é considerado um acto anti-social, mas um dever
moral.
Qual a relação entre honra e honestidade?
A susceptibilidade da honra deve ser referida ao código de valores de uma microssociedade, aberta
e igualitária. No primeiro caso têm-se deveres para com aquele com quem se partilha a honra. No
segundo, na microssociedade, os deveres são para com os outros cidadãos, ou para com a humanidade
inteira. A honra é activa. A insegurança e a revalorização diária da posição social de cada um levam a
uma constante necessidade de afirmação e até a actos de heroísmo. Os ideais de honestidade e igualdade
levam a conflitos passivos e adaptam-se melhor a uma concepção de dever larga na sua aplicação mas
mais modesta nas suas expectativas.

O Sentimento da Honra na Sociedade Cabília – Pierre Bourdieu

O princípio do reconhecimento mútuo da igualdade na honra decorre de um primeiro corolário: o


desafio e mesmo a ofensa, embora esta difira essencialmente do desafio conferem honra: “um homem que
não tem inimigos, é um burrico”, dando ênfase não à estupidez do burro, mas à sua passividade. Nada há
de pior que passar despercebido. Assim, não falar a um homem é tratá-lo como uma coisa, um animal ou
uma mulher. O desafio é, pelo contrário, “um momento alto na vida daquele que o recebe.” Segundo
corolário: aquele que desafia um homem incapaz de responder ao desafio, isto é, de prosseguir a troca
iniciada, desonra-se a si próprio. Terceiro corolário: só um desafio vindo de um homem igual em honra,
merece resposta, isto é, para que haja desafio é preciso que aquele que o recebe considere o que o lança
digno de o lançar.
As regras da honra regulavam também os combates. A solidariedade impunha “qualquer
indivíduo proteger um parente de outro “partido”, um habitante da sua aldeia, mesmo de partido adverso,
contra um estranho à aldeia, um membro da tribo contra um membro de outra tribo. Mas a honra proíbe,
sob pena da infâmia, que vários combatam contra um.

A Casuística da Dádiva e do Desafio

O desafio, e também a ofensa, pressupõem como a dádiva, a escolha de jogar um jogo


determinado, em conformidade com certas regras: a dádiva é um desafio que honra aquele a quem se
dirige, pondo ao mesmo tempo à prova o seu orgulho. Aquele que faz uma dádiva excessiva que não
permite a contra-dádiva também se desonra. O respeito pelo outro exige nos dois casos que lhe seja
deixada uma possibilidade de resposta, que o desafio seja razoável.

CONSTATAÇÃO E CONTROL PELA OPINIÃO PRESÃO PELA OPINIÃO

AUSÊNCIA DE RESPOSTA (negativo)


DESONRA
DESAFIO ATENTADO AO AMOR PRÓPRIO RESPOSTA COMO DESAFIO A TROCA
(produz honra) DESONRA VIRTUAL (momento activo) continua
(momento passivo) RECUSA DE RIPOSTAR (positivo)
DESPREZO

AUSÊNCIA DE CONTRA-DÁDIVA (negativo)


DESONRA
DÁDIVA AMOR PRÓPRIO (posto em questão) CONTRA-DÁDIVA A TROCA
DESONRA VITUAL (momento activo) continua
(momento passivo) RECUSA DA DÁDIVA (positivo)
DESPREZO

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