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Não podemos apreender a lógica mais profunda do mundo social a não ser mergulhando na
particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada e dotada, mas para a construir como
“caso particular do possível”, segundo as palavras de Gaston Bachelard, i é, como um caso de figura num
universo finito de configurações possíveis. Concretamente isto significa que uma análise do espaço social
é a história comparada ao que se aplica ao presente ou antropologia comparativa que se refere a uma área
cultural particular, tendo por fim apreender o invariante, a estrutura, na variante observada. Estou
convencido de que, embora tenha todas as aparências do etnocentrismo, a operação que consiste em
aplicar a um outro mundo social um modelo construído segundo esta lógica é, sem dúvida mais
respeitadora das realidades históricas (e das pessoas) e sobretudo mais profunda fecunda cientificamente
do que o interesse pelas particularidades aparentes do amador de exotismo que se apega em termos
prioritários às diferenças pitorescas (estou a pensar, por exemplo no que se escreve e diz sobre a cultura o
prazer). O investigador, ao mesmo tempo mais modesto e mais ambicioso do que o amador de
curiosidades, visa apreender estruturas e mecanismos que escapam em igual medida, embora por razões
diferentes, quer ao olhar estrangeiro, tais como os princípios de construção do espaço social ou os
mecanismos de reprodução desse espaço, e que ele visa representar num modelo que se pretende de
validade universal. Pode assim detectar sa diferenças reais que separam tanto as estruturas como as
disposições (os habitus) e cujo princípio deve ser procurado não nas singularidades das naturezas – ou
das “almas”, mas nas particularidades de histórias colectivas diferentes.
2. O Real é Relacional.
Comecemos por fazer uma distinção entre conceitos substanciais e conceitos funcionais ou
relacionais (Ernest Cassirer). Para me explicar melhor, direi que a leitura substancialista e ingenuamente
realista considera cada uma das práticas (ex: a prática do golfe) ou dos consumos (ex: a cozinha chinesa)
em si mesma e por si mesma, independentemente do universo das práticas substituíveis, que concebe a
correspondência entre as posições sociais (ou as classes pensadas como conjuntos substanciais) e os
gostos ou as práticas como uma relação mecânica e directa: nesta lógica, poderíamos ver uma refutação
do modelo proposto no facto de, para pegarmos num exemplo decerto bastante fácil, no Japão são as
mulheres menos instruídas das comunas rurais que detêm a taxa mais elevada de participação nas
consultas eleitorais, ao passo que em França a indiferença perante a política – é particularmente elevada
entre as mulheres, entre os menos instruídos e entre os mais desprovidos em termos sociais e económicos.
Temos aqui uma falsa diferença que esconde a verdadeira diferença: o “apoliticismo” ligado ao
desapossamento dos instrumentos de produção das opiniões políticas, que se exprime num caso como
simples absentismo e no outro como uma espécie de participação apolítica. E devemos perguntar-nos
quais são as condições históricas (para o que teríamos que invocar toda a história política do Japão) que
fazem com que sejam os partidos conservadores os que, no Japão, conseguiram, através de formas muito
particulares de clientelismo, beneficiar da tendência para a delegação incondicional, favorecida pela
convicção de se não deter a competência estatutária e técnica indispensável à participação.
O modo de pensamento substancialista, que é o do senso comum – e do racismo – e que leva a
tratar as actividades ou as preferencias próprias de certos indivíduos ou de certos grupos de uma certa
sociedade num certo momento como propriedades substanciais, inscritas de uma vez por todas numa
espécie de essência biológica – ou – o que não é melhor – cultural, conduz aos mesmos erros na
comparação não já entre sociedades diferentes, mas entre períodos sucessivos da mesma sociedade.
Assim, devemos evitar transformar em propriedades necessárias e intrínsecas de um qualquer grupo (a
nobreza, os samurais, bem como os operários ou empregados de serviços) as propriedades que lhes
incumbem num dado momento do tempo em virtude da posição que ocupam num espaço social
determinado, e num estado determinado da oferta dos bens e das práticas possíveis. Somos assim
confrontados, a cada momento da cada sociedade, com um conjunto de posições sociais que se unem por
uma relação de homologia a um conjunto de actividades (a prática do golfe ou do piano) ou de bens (uma
residência secundária ou um quadro de um mestre), eles próprios relacionalmente caracterizados.
Esta fórmula enuncia a primeira condição de uma leitura adequada da análise da relação entre
as posições sociais (conceito relacional), as disposições (ou os habitus) e as tomadas de posição, as
escolhas que os agentes sociais operam nos mais diferentes domínios da prática, cozinha ou desporto,
música ou política, etc. A comparação só é possível entre um sistema e outro sistema e que a investigação
de equivalências directas entre traços isoladamente considerados, quer sejam à primeira vista diferentes,
mas funcionalmente ou tecnicamente equivalentes. Esta ideia de diferença, de desvio, encontra-se no
fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas ás
outras, definidas umas por referencia às outras, pela sua exterioridade mútua e por relações de
proximidade, de vizinhança ou de afastamento e também por relações de ordem, como acima, abaixo e
entre, numerosas propriedades dos membros da pequena burguesia podem por exemplo ser deduzidos o
facto de esses membros ocuparem uma posição intermédia entre as duas posições extremas sem serem
objectivamente identificáveis nem subjectivamente se identificarem nem com uma nem com outra.
O espaço social está construído de tal maneira que os agentes ou os grupos se distribuem nele
em função da sua posição nas distribuições estatísticas segundo os dois princípios de diferenciação que,
nas sociedades mais avançadas (E.U.A, Japão ou França) são sem dúvida mais eficientes, o capital
económico e o capital cultural. Daqui decorre que os agentes têm tanto mais em comum quanto mais
próximos estão nestas duas dimensões, e tanto menos quanto mais afastados.
As distancias espaciais no papel equivalem a distancias sociais. Assim, os agentes distribuem-
se, na primeira dimensão segundo o volume global do capital que possuem sob as suas diferentes espécies
e, na segunda a estrutura do seu capital, quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies de
capital, económico e cultural, no volume total do seu capital.
Assim, na primeira dimensão, sem qualquer dúvida, a mais importante, os detentores de um
forte volume de capital global como patrões, os membros de profissões liberais e os professores
universitários opõem-se globalmente aos mais desprovidos de capital económico e de capital cultural,
como os operários sem qualificação; mas de um outro ponto de vista, quer dizer, do ponto de vista do
peso relativo do capital económico e do capital cultural no seu património, os professores (mais ricos,
relativamente, em capital cultural do que em capital económico) opõem-se muito fortemente aos patrões
(mais ricos, relativamente em capital económico do que em cultural). Esta segunda oposição está, tal
como a primeira, na origem de diferenças nas disposições e, por isso, também nas tomadas de posição: é o
caso da oposição entre os intelectuais e os patrões ou que noutro nível se traduz em termos políticos,
numa oposição entre a esquerda e a direita (como sugerimos, a probabilidade de alguém tender, em
política, para a direita ou para a esquerda, depende, pelo menos, tanto da posição na dimensão horizontal
como da disposição na dimensão vertical, quer dizer, tanto do peso relativo do capital cultural e do capital
económico no volume do capital possuído como do próprio volume do capital.)
Mas o essencial é que, quando são percebidas através destas categorias sociais de percepção,
destes princípios de visão e de divisão, as diferenças nas práticas, os bens possuídos, as opiniões
expressas que se tornam diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem. As diferenças
associadas às diferentes posições, quer dizer, os bens, as práticas e sobretudo as maneiras, funcionam, em
cada sociedade, ao modo das diferenças constitutivas de sistemas simbólicos, como o conjunto dos
fonemas de uma língua ou o conjunto dos traços distintivos e dos desvios diferenciais que são
constitutivos de um sistema mítico, quer dizer, como signos distintivos. De facto a ideia central é que
existir num espaço, ser um ponto, um indivíduo no espaço, é diferir, ser diferente; ora, segundo a fórmula
de Benaviste ao falar de linguagem, “ser distintivo, ser significativo, é a mesma coisa.”
Opondo-se significativo a insignificante, nos seus diferentes sentidos. Mais precisamente –
Benviste avança com alguma dose de pressa... – uma diferença, uma propriedade distintiva, cor de pele
branca ou negra, magreza ou rotundidade, Volvo ou 2cv, vinho tinto ou champagne, Pernod ou Wisky,
golfe ou futebol, piano ou acordeão, bridge ou bisca (estou a proceder por oposições, porque é assim que,
a maior parte do tempo, as coisas se verificam – embora a realidade seja mais complexa), só se
transforma numa diferença visível, perceptível, não-indiferente socialmente pertinente, se for percebida
por alguém capaz de estabelecer a diferença – porque, sendo alguém inscrito no espaço em questão, não é
indiferente e é dotado de categorias de percepção, de esquemas classificatórios, de um gosto, que lhe
permitem estabelecer diferenças, discernir e distinguir entre um cromo e um quadro ou entre Van Gogh e
Ganguin. A diferença não se torna signo e signo de distinção (ou de vulgaridade) a não ser que se lhe
aplique um princípio de visão e de divisão que, sendo o produto da incorporação da estrutura das
diferenças objectivas (por exemplo a estrutura da distribuição no espaço social do piano ou do acordeão
ou dos apreciadores de um e de outro) se encontra presente entre todos os agentes.
É contudo necessário precisar a análise da lógica – a violência simbólica – que quer que as
artes de viver dominadas sejam quase sempre percebidas pelos próprios portadores, do ponto de vista
destruidor e redutor da estética dominante.
Construir o espaço social, essa realidade invisível, que não se pode nem mostrar nem tocar com
o dedo, e que organiza as práticas e as representações dos agentes, é darmo-nos no mesmo acto a
possibilidade de construir classes teóricas tão homogéneas quanto possível do ponto de vista das duas
determinantes maiores das práticas e de todas as propriedades que dela decorrem. O princípio de
classificação assim introduzido é realmente explicativo: não se contenta com descrever o conjunto das
realidades classificadas mas, como as boas taxinomias das ciências naturais, liga-se a propriedades
determinantes que, por oposição às diferenças aparentes das más classificações, permitem predizer as
outras propriedades e que distinguem e reúnem os agentes tão semelhantes quanto possível entre eles e
tão diferentes quanto possível dos membros das outras classes, vizinhas ou afastadas. Mas a própria
validade da classificação arrisca-se a incitar-nos a perceber as classes teóricas, agrupamentos fictícios que
só existem no papel, por outra decisão intelectual do investigador, como classes reais, grupos reais,
construídos como tais na realidade. O modelo define portanto distâncias que são predictivas de encontros,
de afinidades, de simpatias ou mesmo de desejos: concretamente, isto significa que as pessoas que se
situam no alto espaço têm poucas probabilidades de casar com pessoas que se situam em baixo. Em
primeiro lugar porque têm poucas probabilidades de as encontrar fisicamente (a não ser nos chamados
“lugares impróprios”, quer dizer ao preço de uma transgressão dos limites sociais que redobram as
diferenças espaciais); em seguida, porque se se encontrarem com elas de passagem, ocasionalmente e
como que por acidente, umas e outras não “se entenderão”, não se compreenderão realmente nem
mutuamente se agradarão. Pelo contrário, a proximidade no espaço social predispõe às aproximações: as
pessoas inscritas num sector restrito do espaço estarão ao mesmo tempo mais próximas umas das outras
(pelas suas propriedades e as suas disposições, os seus gostos) e mais inclinadas a aproximarem-se;
juntar-se-ão e mobilizar-se-ão igualmente com mais facilidade.
Mas isto não significa que constituam uma classe no sentido de Marx, quer dizer, um grupo
mobilizado em vista de objectivos comuns e em particular contra uma outra classe. As classes teóricas
que constituem estão mais que qualquer outro recorte teórico, mais do que os recortes segundo o sexo, a
etnia, etc; predispostas a tornarem-se classes no sentido marxista do termo. Se eu for um dirigente político
e me propuser fazer um grande partido reunindo ao mesmo tempo patrões e operários, tenho poucas
probabilidades de ter êxito, porque uns e outros se encontram demasiado afastados no espaço social;
numa certa conjuntura, a favor de uma crise nacional, na base de nacionalismo ou de chauvinismo, uns e
outros poderão aproximar-se, mas essa reunião continuará a ser bastante superficial, e muito provisória. O
que não quer dizer que a proximidade no espaço social, inversamente, engendre uma unidade automática:
define uma potencialidade objectiva de unidade ou, para falar-mos como Leibniz, uma “pretensão de
existir” enquanto grupo, numa classe provável. A teoria marxista comete um erro inteiramente semelhante
ao que Kant denunciava no argumento ontológico ou ao que o próprio Marx censurava em Hegel: opera
um salto mortal da existência em teoria para a existência em prática, ou, segundo a frase de Marx “das
coisas da lógica para a lógica das coisas.”
A existência de classes, na teoria e sobretudo na realidade, é, cada um de nós o sabe por
experiência, uma questão decidida por lutas. E é nisso que reside o principal obstáculo a um
conhecimento científico do mundo social e à solução (porque há uma ...) do problema das classes sociais.
Negar a existência das classes, como a tradição conservadora se empenhou em fazê-lo em nome de
argumentos que não são nem todos nem sempre absurdos, é, em última análise, negar a existência de
diferenças e de princípios de diferenciação. Todos os países industrializados se dizem países homogéneos,
onde existe uma enorme classe média, a democratizar-se, etc, a diferença está em toda a parte. E nos
E.U.A., hoje, não passa um dia sem que uma nova investigação seja publicada mostrando a diversidade
onde se queria ver a homogeneidade, o conflito onde se queria ver o consenso, a reprodução e a
conservação onde se queria ver a mobilidade. Portanto, a diferença (aquilo que exprimo ao falar de
espaço social) existe e persiste. Mas devemos por isso aceitar o afirmar de existência de classes? Não. As
classes sociais não existem. O que existe é um espaço social, um espaço de diferenças, no qual as classes
existem de certo modo em estado virtual, em ponteado, não como um dado adquirido, mas como qualquer
coisa que teoricamente se trata.
Assim, se o mundo social, com as suas divisões, é qualquer coisa que os agentes sociais têm a
fazer, a construir, individual e sobretudo colectivamente, na cooperação e no conflito, resta que tais
construções não se operam no vazio social, como parecem acreditar certos etnometodólogos: a posição
ocupada no espaço social, quer dizer, na estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital, que
são também armas; governa as representações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas que visam
conservá-lo ou transformá-lo.
Para resumir esta relação complexa entre as estruturas objectivas e as construções subjectivas,
que se situa para além das alternativas correntes do objectivismo e do subjectivismo, e mesmo do
materialismo e do idealismo, costumo citar, deturpando-a um pouco uma fórmula célebre de Pascal: “o
mundo compreende-me e observa-me como um ponto, mas eu compreendo-o”. O espaço social engloba-
me como a um ponto. Mas este ponto é um ponto de vista, o princípio de uma vista tomada a partir de um
ponto situado no espaço social, de uma perspectiva definida na sua forma e no seu conteúdo pela posição
objectiva a partir da qual é tomada. O espaço social é bem a realidade primeira e última, uma vez que
governa ainda as representações que dele os agentes sociais podem ter.
Quanto a mim, esforçar-me-ei por dizer amanhã que mecanismos asseguram a reprodução do
espaço social e do espaço simbólico, sem ignorar as contradições e os conflitos que podem estar na
origem das transformações destes dois espaços e das suas relações.
4 – O novo capital:
As famílias são corpos (corporate bodies) animados por uma espécie de conatus, no sentido de
Espinosa, quer dizer, por uma tendência para perpectuarem o seu ser social, com todos os seus poderes e
os seus privilégios, tendência que é a origem das estratégias de reprodução, estratégias de fecundidade,
estratégias matrimoniais, estratégias sucessórias, estratégias económicas e por fim e sobretudo estratégias
educativas. Investem tanto mais na educação escolar (em tempos de transmissão, em auxílios de toda a
espécie e em certos casos, em dinheiro como acontece hoje com algumas instituições). Quanto mais
importante é o seu capital cultural, tanto maior é o peso relativo do seu capital económico e também
quanto menos as outras estratégias de reprodução (sobretudo as estratégias sucessórias visando a
transmissão directa do capital económico) se mostram eficazes ou rentáveis em termos relativos.
Este modelo, que pode parecer algo abstrato, permite compreender o interesse crescente que as
famílias, e sobretudo as famílias privilegiadas e, entre estas últimas, as famílias de intelectuais, de
professores ou de membros de profissões liberais, atribuem à educação em todos os países avançados
sobretudo da Europa Ocidental do que em qualquer outra parte do mundo; permitindo também
compreender que as instituições escolares de grau superior, as que conduzem às posições sociais mais
elevadas, sejam cada vez mais monopolizadas pelos filhos das categorias privilegiadas, isto tanto na
Europa como no Japão ou E.U.A. Mais amplamente, permite também compreender não só como as
sociedades avançadas se perpectuam, mas também como mudam sob o efeito das contradições específicas
do modo de reprodução escolar.
O REGRESSO ÀS IDENTIDADES
Nos últimos anos coexistiram alterações profundas e várias revisões forma feitas ao nível das
mentalidades, que apesar de insuficientes começam a revelar a importância extrema da universalização e
a não-ruptura com as inovações. Tudo sem se perder a homogeneidade dos discursos e das práticas
identitárias, deixando no ar a dúvida sobre se a concepção hegemónica da modernidade se equivocou na
identificação da tendências dos processos sociais. A questão que se coloca, é se as dúvidas são acima de
tudo sobre o que presenciamos é realmente novo ou se é apenas novo o olhar com que o presenciamos.
Não se trata de ilusão óptica, tão pouco de dúvidas existenciais. Estamos numa época em que é muito
difícil tornar-se ser-se linear, inclusivé, no discurso, principalmente se este tiver um carácter político. Isto,
porque estamos numa fase de revisão radical do paradigma espistemológico da ciência moderna, é bem
possível que seja sobretudo o olhar que está a mudar. Mas, não parece crível que essa mudança tivesse
ocorrido sem nada ter mudado no objecto do olhar, ainda que, para maior complicação, seja debatível até
que ponto tal objecto pode ser sequer pensado sem o olhar que o olha. Se o nosso olhar conceber o seu
objecto como parte de um processo histórico de longa duração, é bem possível que as mudanças do
presente não sejam mais que pequenos ajustamentos. Pelo contrário, a dramaticidade destes saltará
facilmente aos olhos se o objecto do olhar for concebido como de curta duração.
O clima geral das revisões é que o processo histórico de descontextualização das identidades e
de universalização das práticas sociais é muito menos homogéneo e inequívoco do que antes se pensou, já
que com ele concorrem velhos e novos processos de recontextualização e de particularização das
identidades e das práticas. Eis algumas das revisões. A propósito da reemergência da etnicidade, do
racismo, do sexismo e religiosidade, fala-se do novo “primordialismo”, do regresso da solidariedade
mecânica, do direito às raízes. A secularização de que falava Weber, é confrontada não apenas com o
fundamentalismo religioso, mas também com o facto de os factores que tradicionalmente foram tidos
como motores da secularização, como por exemplo, o liberalismo e a democracia, se apresentarem hoje
em discursos e práticas muito próximos dos que são próprios do fundamentalismo religioso e de a sua
eficácia depender da incomensurabilidade e da opacidade recíprocas entre os princípios absolutos e as
práticas realistas típicas da adesão religiosa. Por outro lado, a base étnica das nações modernas torna-se
cada vez mais evidente e o Estado-Nação, longe de ser uma entidade estável, natural, começa a ser visto
como a condensação temporária dos movimentos que verdadeiramente caracterizam a modernidade
política: Estados em busca de nações e nações em busca de Estados. Portugal, é possivelmente o único
Estado-Nação uni-étnico da Europa e está a deixar de sê-lo à medida que aumentam a imigração africana
e asiática e o fluxo de turistas residentes, reformados da vida activa, vindos da Europa do Norte ou
mesmo do Japão. Por sua vez, tal como o Estado nacional, a cultura nacional é confrontada com pressões
contraditórias. De um lado, a cultura global (consumismo; Holywood, disco sound, fast food, cultura
comercial, João Baião e mass media globais); do outro, as culturas locais (movimentos comunitários
indígenas, afirmação de direitos ancestrais de línguas e culturas até agora marginalizadas) e as culturas
regionais (por exemplo, na India, na Itália e, entre nós, a emergência do regionalismo nortenho).