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MARX E A SOCIOLOGIA MODERNA

São duas as principais ortodoxias, em termos das quais se interpretam geralmente


as relações entre os escritos de Marx e os dos dois autores analisados (Durkeim e
Weber). A primeira interpretação, adoptada por muitos sociólogos ocidentais, afirma
que a obra de Marx pertence à pré-história do pensamento social, e que a história da
sociologia propriamente dita só começa com a geração de autores em que se incluem
Durkeim e Weber.1A segunda é a versão marxista, que afirma que as obras da geração
de pensadores sociais que se seguiu a Marx não passam de uma resposta burguesa a
Marx – e que a grande parte do que pretende passar por «sociologia» pode assim ser
considerada como mera expressão da ideologia burguesa liberal. Ambas essas
ortodoxias contêm elementos de verdade, mas qualquer delas nos pode induzir num erro
perigoso.
O primeiro desses pontos de vista assenta numa aceitação integral das ideias
expressas pelos autores da geração de Durkeim e Weber, segundo os quais a sua obra
era de carácter «científico», diferindo na sua essência das construções grandiosas, mas
especulativas, dos autores do início do século XIX. Os adeptos deste ponto de vista
consideram geralmente irrelevantes as circunstâncias sociais e políticas nas quais
Durkeim, Weber e os seus contemporâneos desenvolveram o seu pensamento,
ignorando a Weltanschaung que, em qualquer desses casos, se exprimia nas obras
académicas do pensador em questão. Os marxistas mais recentes, pelo contrário, ao
prepararem as suas críticas à sociologia, analisam em pormenor o contexto social no
qual Durkeim e Weber escreveram e os interesses políticos que as suas obras
mascarariam.2O conteúdo das obras dos mesmos é assim qualificado de «falaz» nas
versões mais simplistas desses ataques, dado que essas obras equivaleriam a uma defesa
mais ou menos partidária da sociedade burguesa liberal face ao desafio marxista. Este
último ponto de vista nem sequer se harmoniza com a epistemologia do próprio Marx,
que evita esse relativismo ingénuo. Mar aceita grande parte da teoria económica
burguesa, que considera fornecer explicações válidas para o desenvolvimento do
capitalismo, se bem que afirme, que por outro lado, ser essa verdade parcial e, sob
certos aspectos, distorcida. Em termos marxistas, tanto Durkeim como Weber perfilham
uma posição política burguesa, mas esse juízo não permite de modo algum concluir que
tudo aquilo que escreveram é falso e como tal deve ser posto de parte. Acontece mesmo
que a crítica que Weber faz do marxismo a partir de premissas idealistas neo-kantianas
chega a conclusões que em certos aspectos se aproximam mais da dialéctica de Marx do
que as doutrinas deterministas de alguns dos seus discípulos declarados. Não é por
acaso que as opiniões políticas tanto de Durkeim, como de Weber, dificilmente podem
ser incluídas numa ou noutra das categorias tradicionais de liberalismo e socialismo. A
posição metodológica de Weber é mais «individualista» do que a de Durkeim, mas
ambos rejeitam – como o fizera já Marx – o solipsismo teórico dos utilitaristas, e com
este algumas hipóteses do liberalismo político do século XIX. As ideias dos três autores
relacionam-se directamente com as circunstâncias sociais e políticas diferentes que
caracterizavam a Inglaterra, a França e a Alemanha da segunda metade do século XIX.
Essas circunstâncias influenciaram a crítica de Marx realizada tanto por Durkeim como
por Weber, e estão na origem das principais diferenças entre o pensamento daqueles
dois autores, diferenças que não estão confrontadas neste trabalho. As obras de Durkeim

1
Vide Talcott Parsons: «some comments on the sociology of Karl Marx», in Sociological Theory and
Modern Society (Nova Iorque, 1967), pp. 102-35.
2
Herbert Marcuse; Industrialisieruung und Kapitalismus, pp.161-80.
e de Weber radicam numa tentativa de defesa – ou antes, de reinterpretação – das
reivindicações do liberalismo político face à pressão exercida, por um lado pelo
conservadorismo hipernacionalista romântico, e por outro pelo socialismo
revolucionário. As obras de Marx constituem, por outro lado, uma análise e uma crítica
do capitalismo na sua fase inicial. A obra de Marx inspirou, porém, um movimento
político de massas no período de consolidação do capitalismo, nos fins do séc. XIX,
adquirindo assim grande importância. Mas isto deu-se dentro de um contexto que
transformou as ideias originais de Marx de forma a estas parecerem muito mais a
expressão directa das principais correntes intelectuais do séc. XIX, do que uma análise
crítica e uma tentativa de superação destas. Em consequência disso, as obras de Marx
aproximam-se mais das de Durkeim e de Weber do que o pensavam estes dois últimos
autores: os intuitos polémicos dos três autores eram muito semelhantes, na medida em
que as obras de Marx, tal como as de Durkeim e de Weber, constituíam uma tentativa
para transformar e superar tanto o conservadorismo romântico (da filosofia alemã)
como o utilitarismo da economia clássica. É claro que nem por isso podemos minimizar
as diferenças irreconciliáveis de perspectiva teórica e de interpretação empírica que há
entre Marx e os outros dois autores. Algumas das diferenças básicas radicam em
explicações divergentes das consequências do progresso da divisão do trabalho –
interpretada não em termos meramente económicos mas como diferenciação social – na
sociedade moderna. Para aqueles que, reconhecendo embora a importância da
contribuição de Marx para a sociologia, o consideram não como «um santo defunto»,
mas antes como «um pensador vivo», há muitos problemas significativos que podem ser
correctamente formulados através de uma análise comparativa entre as obras de Marx e
as de outros pensadores sociais, consideradas em termos do seu conteúdo intelectual.
Podemos afirmar sem exagero que tanto o marxismo, como a sociologia
académica, estão hoje em dia em vias de serem sujeitos a um processo importantíssimo
de reinterpretação teórica.3Essa análise tem sido estimulada por uma mesma
circunstância: a aparente ‘convergência’ da estrutura social das sociedades capitalistas e
socialistas.
A influência da tecnologia e da cultura ocidentais sobre os países não-
industrializados é sem dúvida um campo de investigação teórica e prática do maior
interesse para a sociologia. Essa investigação faz-se, porém, normalmente a partir da
hipótese implícita de que conhecemos já as principais características das «sociedades
desenvolvidas», e que o problema consiste, pois, em saber até que ponto as sociedades
do «terceiro mundo» conseguirão aproximar-se desse modelo num futuro mais ou
menos próximo. O modo como o termo «sociedade industrial», é utilizado quase
universalmente em sociologia para referir tanto as sociedades «capitalistas» como as
«socialistas», é significativo das hipóteses em que assenta esse ponto de vista. Os
debates que recentemente têm surgido no que se refere ao problema da «convergência»
das sociedades capitalistas e socialistas, e da hipotética dissolução das relações de classe
tal como estas eram tradicionalmente concebidas, são sintomáticos de uma renovação
do interesse pela análise das tendências de desenvolvimento no seio das sociedades
«avançadas». O que acabo de referir equivale em certos aspectos a um retorno aos
problemas a que os três autores discutidos neste livro atribuem nas suas obras
significado primordial. Caso pretendamos, pois, proceder a uma orientação importante
da teoria social, teremos de partir uma vez mais das obras dos tr<<<<<<<<<<<<<<~es
autores em questão. O modelo de capitalismo de Marx pode não ser já na sua totalidade

3
Norman Birnbaum: «The crisis in Marxist sociology», in Hans Peter Dreitzel: Recent Sociology Nº1
(Londres, 1969), pp.12-42. Vide também Jürgen Habermas: Theorie und Praxis (Neuwied e Berlim,
1967), pp.261-335.
aplicável à sociedade industrial pós-burguesa na qual vivemos. O que não significa que
alguns dos principais elementos da análise da sociedade burguesa de Marx não sejam
ainda hoje muito significativos. Não vamos repetir a afirmação já familiar de que Marx
teria «previsto» algumas das principais características das sociedades contemporâneas,
ou a de que outras das suas «previsões» se teriam revelado erróneas. Limitamo-nos a
afirmar que na análise de Marx são formuladas questões que continuam a ser
problemáticas para uma sociologia moderna: e o mesmo podemos afirmar em relação às
obras de Durkeim e Weber. O facto de considerarmos que uma das principais tarefas
que compete à sociologia moderna será a de se debruçar uma vez mais sobre problemas
que interessam já aos seus fundadores, não equivale a dizer que a sociologia tem de
andar para trás: a análise desses problemas permitir-nos-á, paradoxalmente, libertar-nos
da nossa presente dependência em relação às ideias por eles formuladas.

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