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A DEMOCRACIA E OS GRUPOS SECUNDÁRIOS

Como o demonstra Durkeim em A divisão do trabalho, a tendência primordial de


evolução à medida que as sociedades se tornam mais complexas, é para a emancipação
progressiva do indivíduo em relação à consciência colectiva. Este processo acompanha-
se da emergência de ideais morais que atribuem um relevo especial aos direitos e à
dignidade do ser humano individual. À primeira vista, poderíamos pensar que esse tipo
de evolução contrariaria a expansão das actividades do estado. Ora é óbvio, diz
Durkeim, que o estado se torna mais importante à medida que a diferenciação da divisão
do trabalho se acentua: o desenvolvimento do estado constitui característica normal do
desenvolvimento das sociedades. 1Esta antinomia aparente desaparece, porém, se
considerarmos que o estado é nas sociedades modernas a instituição responsável pela
protecção e satisfação desses direitos individuais. Assim, a expansão do estado
relaciona-se directamente com o progresso do individualismo moral e com o
desenvolvimento da divisão do trabalho. Todavia, nenhum estado moderno desempenha
funções exclusivas de garantia e administração dos direitos dos cidadãos. A perpetuação
das rivalidades internacionais estimulou a constituição de crenças comuns, relativas à
nação como colectividade (patriotismo, orgulho nacional). Se bem que o nacionalismo
seja, na opinião de Durkeim, de importância meramente secundária nas sociedades
modernas, tende contudo a gerar um conflito entre a adopção de ideais nacionais e o
pan-humanismo intrínseco às noções de igualdade e liberdade individuais, hoje tão
profundamente enraizadas. Por outro lado, podemos admitir ao orgulho nacional seja
sobreposta no futuro a realização dos ideias gerais da humanidade. A análise que atrás
acabámos de expor permite-nos formular a pergunta seguinte: dada a expansão
crescente das actividades do estado, este não tenderá a evoluir no sentido de se tornar
numa tirania burocrática? Durkeim admite essa possibilidade. O estado pode tornar-se
numa força repressiva, isolada dos interesses da massa dos indivíduos componentes da
sociedade civil. Essa eventualidade poderá verificar-se caso não existam entre o
indivíduo e o estado grupos secundários fortemente constituídos que possam intervir: só
se esses grupos forem suficientemente fortes, contrabalançando assim o poder do
estado, é que os direitos dos indivíduos poderão ser adequadamente protegidos. A teoria
do estado de Durkeim e a sua concepção da democracia relacionam-se através desta
asserção da necessidade de pluralismo, o que o leva a preconizar o restabelecimento das
associações profissionais (corporations).
Durkeim rejeita a concepção tradicional de democracia, na medida em que esta
implica a participação directa da grande massa da população no governo. À excepção
das pequenas tribos mais atrasadas, não há nenhuma sociedade em que o governo seja
directamente exercido por todos em comum: encontra-se sempre nas mãos de uma
minoria escolhida quer pelo nascimento, quer por eleição; o âmbito dessa minoria pode
ser maior ou menor, conforme as circunstâncias, mas não compreende nunca mais do
que um círculo limitado de indivíduos. De acordo com a terminologia de Durkeim, uma
sociedade é mais ou menos democrática conforme o grau de comunicação recíproca que
se estabelece entre o estado e os outros níveis da sociedade. Segundo Durkeim, uma das
consequências mais importantes de quantas derivam da existência de um sistema
democrático, é que a condução da vida social assume um carácter consciente e dirigido.
1
Durkeim insiste em que não há uma relação universal entre a sociedade e estado: “Os tipos de sociedade
não podem ser confundidos com os diferentes tipos de estado ... uma alteração do sistema de governo de
uma nação não implica necessariamente uma alteração do tipo de sociedade nela prevalecente”. Este
argumento é utilizado por Durkeim na crítica a Montesquieu. Vide Montesquieu and Rousseau (Na
Arbor, 1965), p.33 e seguintes.
Muitos dos aspectos da vida social que até aí tinham sido regidos pelo costume ou pelo
hábito passam a ser objecto da intervenção do estado. O estado intervém na vida
económica, na administração da justiça, na educação e até na organização das artes e
das ciências. A função do estado na democracia não consiste pois unicamente em
reflectir e resumir as opiniões e os sentimentos perfilhados de forma difusa e irreflectida
pela grande massa da população. Durkeim chama ao estado o ego social (isto é, a
«consciência»), enquanto a consciência colectiva como um todo é o “espírito” social
(isto é, inclui muitas modalidades de pensamento habitual e reflexivo). Assim, o estado
está frequentemente na origem das ideias novas, orientando a sociedade ao mesmo
tempo que é orientado por ela. Nas sociedades modernas, nas quais foi em grande parte
eliminada a influência das tradições coercivas, o espírito crítico pode manifestar-se à
vontade, e as mudanças de opinião e de sentimentos das massas são frequentes: se o
governo se limita a reflecti-las, o resultado será uma incerteza e vacilação constantes na
esfera política, que não conduzirão a nenhuma alteração concreta. Verificar-se-ão
muitas alterações superficiais, que se anularão entre si. Essas sociedades aparentemente
tão tumultuosas, são na realidade rotineiras. Essa situação verifica-se sobretudo quando
há falta de grupos secundários que sirvam de medianeiros entre o indivíduo e o estado.
Esta mesma condição que, caso o estado seja forte, pode conduzir a um despotismo
tirânico, pode por outro lado dar origem a uma instabilidade constante, caso o estado
seja fraco.

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