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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais –


Departamento de Sociologia

Teorias Sociológicas Contemporâneas I


(SOL0103)
Terça-feira e quinta-feira
– 08:00 às 09:45 Horas

Prof.: Edson Farias

Unidade 01: Sistemas de coordenadas de ação


Resumo – Nesta unidade, o recurso ao modelo estrutural-funcionalista e sistêmico em
Talcott Parsons servirá à finalidade de situar o contexto institucional e epistêmico de
emergência do debate em torno do contemporâneo na divisão da teoria sociológica.

Introdução
O período logo posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial fora marcado pelo
formidável desempenho da economia e da civilização que orbita em torno da lógica do
capital. Para termos uma ideia, entre 1948 e 1971, a taxa de crescimento industrial atinge
o inédito percentual de 5,6% e o comércio mundial alcança um crescimento de 7,3%
(BEAUD, 1987, p.312). Segundo Hobsbawn, este consistiu num momento único na
história do capitalismo, os “trinta anos gloriosos” da “Era Dourada” (HOBSBAWN,
1996, p.253). A prosperidade econômica alastrara-se dos Estados Unidos aos países da
Europa Ocidental, incluindo no seu rastro também o Japão. A autorregulação do mercado,
enfim, passava a sincronizar o planeta num mesmo compasso. Os elementos decisivos
inteirados nessa totalidade sócio-histórica e cultural1, na segunda metade do século XX,
são a racionalização do processo produtivo, com a hegemonia da regulação fordista e dos
mecanismos projetados a partir das lógicas administrativas e funcionais de Fayol e de

1
Estou usando a noção de totalidade no sentido empregado por Marcel Mauss, quando este,
na análise do ritual do “potlach”, entende por “fato social total” aquele que envolve de uma
só vez os níveis psíquico, social e simbólico de um fato (MAUSS, 1974, p.44-45).
Taylor; a concentração monopolística do capital, cada vez apropriado por grandes
conglomerados empresariais, atuando vertical e horizontalmente, numa combinação entre
investimento e emprego maciço em tecnologia e a financeirização econômica; a
intervenção reguladora do Estado de Bem-Estar (de inspiração keynisiana) e a
considerável melhoria dos níveis de renda conquistada por segmentos das classes
trabalhadoras e das classes médias, em vários países da Europa e nos Estados Unidos e
Canadá. Somados, esses itens configuraram a chamada “sociedade de consumo de
massa”.
Pelo controverso Acordo de Breton Woods2, assinado em 1944, em que passa a
deter às mãos às rédeas monetário-financeira internacionais, os Estados Unidos
desfrutavam de uma situação invejável, política e economicamente, de democratização
do consumo de mercadorias (Op. cit., p.264), dentro de uma concatenação do mercado
mundial agora cada vez mais orientado para as trocas de produtos industriais, entre as
nações mais ricas. O número de automóveis em circulação nas estradas do país – naquele
momento – ajuda a dá a dimensão da supremacia norte-americana, à medida que é
indicativo de uma cultura material ancorada no sistema de produção e de consumo de
larga escala de bens duráveis. E este sistema se fazia exemplar de uma civilização que se
mundializava, tendo por característica tanto a intensidade e a interligação dos fluxos
quanto o apelo ao conforto material e a aventura individual. Assim é sugestivo o fato de,
em 1975, transitar pelas pistas norte-americanas 106 milhões de automóveis. Isto era mais
de oito vezes o que transitava nas autopistas japonesas, o segundo colocado – com algo
em torno de 17 milhões de veículos (BEAUD, Op. cit., p.319).
O traço marcante da cena internacional naquele instante era a bipolaridade, afinal
polarizações à maneira de capitalismo versus socialismo, indivíduo versus massa, vontade
versus sistema, ação versus estrutura, entre outras, pautaram debates. O enfrentamento
entre o Ocidente capitalista e a economia de comando à Leste deu o tom. De um lado, as
sociedades democráticas industriais. A União Soviética com seus aliados e a China de
Mao-se-Tung e alguns países satélites se inscreviam na mancha do socialismo de Estado,
de outro. Ainda na época, oposto ao Norte industrializado, o subdesenvolvimento nascia
com a descolonização da África e da Ásia, para se juntar à América Latina. Enfim, a

2
Acordo pelo qual o dólar, substituindo a onça do ouro, tornava-se o parâmetro monetário
internacional, porque o governo norte-americano era o “dono” da maior reserva de ouro em
barras do mundo.
situação de bipolaridade na geopolítica mundial instaurada pela Guerra Fria,
conjuntamente à expansão dos projetos modernizadores dispostos na esteira dos
movimentos de emancipação nacionais mundo afora, estivera na contrapartida da
relevância alcançada pela questão da disjunção entre escolha individual e sociedade de
massas e da regulação da economia de escala nas relações de produção.
O cenário dos mundos sociais estava, portanto, bem propício às interpretações
enfocando oposições, na maioria das vezes a partir de angulações dicotômicas; isto, à luz
dos acentos metodológicos das abordagens orientadas ou ao problema da diferenciação
sistêmico-funcional ou da intencionalidade. Justamente, nesta primeira unidade, se dará
atenção à situação polar estabelecida na teoria sociológica na ocasião opondo os modelos
explicativos funcional-sistêmicos e estruturalistas aos esquemas compreensivos
orientados à teoria da ação, do sujeito e das interações, de outro.

a) O estrutural-funcionalismo em Talcott Parsons

De acordo com Anthony Giddens, A rápida expansão da sociologia como disciplina


acadêmica nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, ocorre sob a égide do
apaziguamento dos confrontos entre correntes e escolas teóricas. Algo assim ocorreu
numa espécie de vácuo, incomum até aquele momento na história dessa disciplina,
sobretudo na Europa onde surgiu e se institucionalizou. A hegemonia internacional
alcançada pela sociologia realizada nos Estados Unidos estava àquela altura concentrada
na figura de Talcott Parsons. Ele permanece até hoje como fonte de polêmicas, já que
muitos o consideram excêntrico no cômputo intelectual estadunidense e isto seria relativo
ao fato de que a densidade teórica dos seus trabalhos estaria na contramão da vocação
empiricista manifesta majoritariamente entre os cientistas sociais, daquele país. No
entanto, esse autor condessa a parte mais significativa do estágio atingido pelo
conhecimento sociológico na sociedade norte-americana e, em função da centralidade
desta última no sistema internacional, no intervalo entre os anos de 1940 a 1960, sua obra
impôs como parâmetro seja aos posicionados contra ou a favor dela na sociologia, em
escala mundial.
Fazendo um rápido apanhado biográfico com a finalidade de apontar as linhas gerais
do itinerário intelectual do autor, vale lembrar que Parsons nasceu no seio de uma família
referenciada pela tradição puritana e reformista, no início do século XX, nos Estados
Unidos. Tradição esta de tamanha repercussão na região do meio oeste norte-americano.
Nascido em Colorado Springer, em 1904, filho de um pastor da Igreja Congregacionista
com atuação nos movimentos protestantes de reforma social, denominado “Evangelho
Social” (Social Gospel) e também professor de inglês, lecionando respectivamente nas
universidades do Colorado e do Ohio, tal atmosfera teve efeitos nos caminhos futuros de
Parsons. Ainda que, a princípio, hesitasse entre a biologia e a filosofia, tendo se dirigido
à medicina, ele finalmente opta pelas ciências sociais. Nunca hesitou, contudo, acerca do
interesse pela vida acadêmica. A escolha final pela sociologia em muito se deveu à
precoce convivência com as ideias do reformismo protestante e, no interior deste, a
proposta dos chamados economistas institucionalistas. Entre estes, autores como Walter
Hamilton e Clarence Ayers, alinhados com as ideias de Thorstein Veblen, defendiam uma
apreensão dos fenômenos econômicos em sua dimensão institucional, logo os concebiam
em suas relações com as demais estruturas da sociedade. Perspectiva esta mobilizada pelo
debate acerca da relação entre enriquecimento e desigualdade socioeconômica, cada vez
mais evidente em uma sociedade nacional que dava largos passos para se consagrar a
maior potência industrial e econômica do mundo.
Imbuído dessa perspectiva mais generalista e por se sentir insatisfeito com o desprezo
pela teoria em seu país, em 1924 prefere dar continuidade aos seus estudos na Europa –
contando com a ajuda de um tio abastado. A primeira estada, na London School of
Economics, abre oportunidades de contatos importantes, principalmente com o baluarte
do funcionalismo antropológico, o polonês Bronilsaw Malinowski. Deste autor, Parsons
guardará tanto a ênfase no nexo entre as instituições culturais e o tema do atendimento às
necessidades instintivas, em franca sintonia com o interesse biológico que ele alentara
desde a graduação e muito repercutirá na sua concepção sistêmico-sociológica, quanto o
retorno ao interesse pelo pensamento de Durkheim, motivado ainda na graduação pelo
acesso a alguns textos do autor francês.
Porém, à maneira de muitos dos seus conterrâneos, na ocasião, atraídos pela reputação
intelectual germânica, em 1925, por intermédio de uma bolsa, obtida graças à indicação
de um ex-professor alemão da graduação na Universidade de Amherst, ele se transfere
para Heidelberg. Tal estadia lhe oferece a oportunidade de conhecer figuras proeminentes
do campo sociológico alemão, à maneira de Alfred Weber e Karl Mannheim. Lá também
pode aprofundar estudos na filosofia tão decisivos aos encaminhamentos intelectuais
posteriores da sua carreira, sobretudo as aulas com Karl Jaspers sobre Immanuel Kant,
afinal o esquema parsoniano se filiará à linhagem neokantiana. Em Heidelberg – relata o
próprio Parsons – tivera o encontro decisivo nos rumos tomados pela sua carreira; isto é,
tem acesso ao legado de Max Weber, morto há pouco, em 1920. Conseguiu, inclusive,
frequentar os requintados e célebres saraus promovidos pela viúva Marianne Weber, nas
tardes dominicais. O prestígio deste ambiente de sociabilidade intelectual fazia dele alvo
de disputa entre os aspirantes a posições de destaque nos domínios intelectual-
universitários alemães (WEBER, 2003, p.451-521).
A frequência assídua à obra weberiana permite a Parsons estender até um plano bem
mais acentuado de elaboração intelectual o procedimento que cedo encontrou nos
economistas institucionalista, a saber, o complexo envolvendo as estruturas econômicas
com as estruturas políticas e socioculturais. Algo assim comparecera na maneira como,
nos seus estudos a respeito da sociologia da religião, Weber propõe a famosa
interpretação das conexões causais de sentido entre o tipo de ética predominante entre
segmentos protestantes puritanos e calvinistas do cristianismo reformado e o
desenvolvimento do capitalismo calcado tanto na separação entre negócios domésticos e
interesses empresariais quanto no trabalho metódico racionalizado. De acordo com a
interpretação do autor alemão, combinação esta fundamental à emergência das condições
para o florescimento do capitalismo industrial, do qual os Estados Unidos se tornava
sempre mais o centro propulsor. De posse de tal problemática, Parsons emprega seus
esforços na confecção do trabalho de doutoramento enfocando, comparativamente, como
a noção de capitalismo entendido enquanto instituição sócio-histórica está disposta nas
obras de Karl Marx, Werner Sombart e Max Weber. Intitulada de The Concept of
Capitalism in Recent German Literature, já nesta obra se revela um traço marcante da
sua trajetória profissional: a iniciativa de elaborar sínteses cotejando contribuições
distintas da teoria social.
Obtido o título, Parsons retorna aos Estados Unidos, em 1927. Lá, inicialmente, esteve
como assistente de docência (instructor) por um breve período na Universidade de
Amherst. No mesmo ano se dá o salto decisivo em sua trajetória profissional: se transfere
para a cidade de Boston e ingressa na célebre Universidade de Harvard. Ao contrário da
maioria dos acadêmicos estadunidense, ele permaneceu nessa instituição ao longo da sua
carreira. Iniciando, ali, também como assistente, lotou-se no departamento de economia
e estreitara laços com expoentes da ciência econômica – entre outros, F.W. Taussing,
T.N. Carver, Edwin F. Gay e outros. É o período em que interage em dois círculos de
interesses bem distintos, mesmo opostos. Estabelece diálogos com aqueles simpáticos à
doutrina liberal. Por intermédio do economista austríaco Joseph Schumpeter, aproxima-
se das elaborações do filósofo Alfred North sobre a natureza dos sistemas. Com William
Taussing, por sua vez, conhece os estudos neoclássicos de Alfred Marshall a respeito das
correlações entre mercado e utilidade. Frequenta também, no entanto, com Bernard Voto
e Lawrence J. Henderson o círculo formado em torno do estudo da obra do economista
italiano Valfrido Pareto no tocante, principalmente, à acepção deste último sobre o estudo
sociológico da ação, o qual deverá se estender bem além das recompensas materiais que
define a ação racionalmente econômica, porque inclui um complexo relacional de
finalidades e atividades. Por esta mesma senda, Parsons coloca em xeque a ideia da
autorregulação do interesse individual propalado pela escola neoclássica e se encaminha
na direção da proposta durkheimiana sobre a internalização de padrões morais que
controlariam os impulsos individuais. Enfim, motivado pelas duas frentes, Parsons se
debruça intensamente sobre a relação entre as ciências econômicas e sociológicas, o que
justifica a iniciativa de traduzir para o inglês A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo.
Apenas em 1931, a convite do sociólogo russo Pitrim Sorokin, transfere-se para o
recém-inaugurado departamento de sociologia da mesma universidade de Harvard,
embora ainda permanecesse lá no nível mais inferior da escala docente, atuando como
assistente. A ascensão ocorre tão-somente em 1936 e, um ano depois, ele escreve The
Strucutre of Social Action, obra a partir da qual adquiriu prestígio nos domínios
sociológicos. Ainda assim, somente dois anos mais tarde obteve o status de professor
permanente em Harvard. Já a permanência nesta universidade se deveu ao atendimento
da sua reivindicação para reorganizar, em 1944, o ensino das ciências sociais e, para isso,
institui o departamento de Relações Sociais sob uma perspectiva multidisciplinar.
Assumindo o cargo de diretor do mesmo órgão em 1956, ele arremata o projeto cujos
suportes teóricos estavam em The Structure of Social Action, mas contando com a
institucionalização da proposta epistemológica de unificar as ciências sociais, mediante
uma teoria geral da ação. Na execução do ambicioso projeto, ele contou com a
colaboração de nomes como o do psicólogo social Gordon Alport, do psicanalista Henry
Murray, do antropólogo Clyde Kluckhohn e dos sociólogos George Homans e Samuel
Stouffer.
A trajetória acadêmica de Parsons se mostra, portanto, obediente ao modo como ele
desdobra em três fases o projeto intelectual já contido em The Structure of Social Action.
Vale lembrar ser esta periodização original ao estudo realizado pelo também sociólogo
norte-americano Guy Rocher – importante comentador do legado parsoniano no domínio
da sociologia nos Estados Unidos. De acordo com esse intérprete, teríamos a seguinte
escala:

I – Durante o período estendido da estada em Heidelberg (destacada pela proximidade


com a obra weberiana fundada sobre os princípios de uma teoria compreensiva da ação
social) até a publicação de The Structure of Social Action, com a leitura de precursores
do quilate de Durkheim, Pareto e o próprio Weber, floresce a percepção de Parsons a
respeito dos grandes temas posteriormente sintetizados por ele sobre a chancela de “teoria
da ação social”. Neste primeiro livro, a temática da ação gira em torno do confronto com
as respectivas soluções encontradas pelo economista Marshall, além das contribuições
dos sociólogos Durkheim, Vilfredo Pareto e Weber ao tema sistêmico do capitalismo e
da sua evolução histórica. Era-lhe, no entanto, mais importante separar as alternativas
teórico-analíticas oferecidas por Durkheim, Pareto e Weber das suposições de Marshall,
no que tange ao relacionamento entre a economia e as outras dimensões da vida social.
Isto resultou em um diferencial importante para o posicionamento de Parsons, já que na
contramão da tendência em encerrar o entendimento do capitalismo nos limites
exclusivamente econômicos, o autor opta por um viés especificamente sociológico. Ou
seja, defende que o capitalismo deveria ser investigado como uma estrutura de produção
e propriedade “estreitamente dependente das estruturas sociais, valores, atitudes e
comportamentos não econômicos” (ROCHER, 1976, p.17). Na contrapartida desta senda
temática, encontramos como concepção metodológica a tentativa do autor em equilibrar
uma teoria da ação voluntarista com o exame dos mecanismos coletivos (normas e
valores) que constrangem o autointeresse, tanto motivando-o quanto o limitando, com
isto facultando a racionalidade da conduta. Assim, esta primeira fase corresponde ao
momento em que o seu esforço estará em sistematizar a proposta de teoria geral da ação
social sob a esteira da elaboração dos fundamentos lógicos e científicos capazes de
sustentar o postulado de uma teoria geral da ação humana, logo dotada de plena
universalidade. Para isto, em muito contribuiu o retorno às concepções de Marshall sobre
as relações entre motivações da ação humana e os dispositivos intrínsecos às atividades
econômicas. Porém, inquietavam-lhe neste referencial os aportes de uma psicologia e
sociologia restritas ao primado liberal-utilitarista. Ao mesmo tempo, Pareto e Durkheim
jogam um papel fundamental na reconsideração da ação humana no interior de uma
formação sistêmica. Ainda de Durkheim, Parsons extrai da categoria de “representação
coletiva” uma chave à “explicação psicossociológica do comportamento moral e da ação
normativa”;
II – Assim, emblematizada pelo livro The Social System, a segunda fase da sua
carreira se define pela tônica no aperfeiçoamento do seu primado sistêmico. De acordo
com o próprio autor, as razões centrais que justificam o lugar ocupado pelo legado
durkheimiano, na síntese inscrita na sua teoria geral da ação social, estão na maneira como
o autor francês fornece bases à investigação e explicação do aspecto lógico da unidade na
diversidade e, também, à problemática acerca da integração/coesão e da ordem no interior
de uma armação societal bastante diferenciada. Isto porque a categoria de representação
coletiva descortinaria o quanto a estrutura de uma sociedade “ou de qualquer sistema
social humano consiste em (não é meramente influenciada por) configurações da cultura
normativa, institucionalizadas no sistema social e internalizadas (embora não de maneira
idêntica) nas personalidades dos membros individuais”.
Em linhas bem gerais, podemos dizer que a noção de ação ocupa uma posição-chave
na sua proposta teórico-analítica. Contudo, se em Weber a ideia de ação está associada
ao tema do sentido visado pelo agente, no instante em que se orienta para algo (na “relação
social”), na concepção parsoniana a ação corresponde relações que uma entidade social
qualquer estabelece com outras unidades de um mesmo tipo e com o seu entorno (no que
se incluem outras entidades) no decorrer do seu funcionamento sistêmico. Quer dizer, não
se trata do indivíduo (entendido como sujeito) orientado para; e sim, do sistema agindo.
Este último consiste em uma entidade complexa vislumbrada mediante sua estrutura, isto
é, do ponto de vista do padrão que rege a concatenação dos seus elementos. Por sua vez,
os elementos constituem posições assumidas no grupo e, também, as normas
correspondentes a tais desempenhos, logo não se confundem com os indivíduos que as
executa enquanto atores ocupando posições, os “papéis sociais.” A noção de sentido,
enfim, diz respeito à orientação por padrões culturais extra-individuais, algo próximo à
normatividade ao estilo durkheimiano;
III – Culmina o seu trajeto intelectual com o exercício de aplicar a mesma teoria nos
diferentes campos disciplinares das ciências humanas – economia, psicologia, sociologia
e ciência política. Datada na década de 1950 e estendida até sua morte em 1979, esta fase
teve por objetivo a contraposição de Parsons frente a vertentes positivistas que
desdenhavam do lugar da subjetividade nos fenômenos relativos à ação social e a sua obra
de referência é Social Structure and Personality. A postura parsoniana vai ao sentido de
afirmar a associação teórico-analítica entre motivos, fins perseguidos e os valores
observados pelos agentes na orientação da sua conduta. Enfatiza fortemente o exame das
posições nos vários sistemas de ação. Ao mesmo tempo, ele permanecia fiel ao empenho
de demonstrar o dado estreito da proposta utilitarista para aferir os fenômenos sociais,
pela razão destes serem irredutíveis aos fins individuais. De acordo com Rocher, o núcleo
da sociologia parsoniana estava na seguinte ideia: “O homem formula e impõe a si mesmo
normas e valores objetivos, a partir dos quais estabelece suas regras de vida e de
comportamento.” (ROCHER, Op. cit., p.18).
Ante o primado utilitarista, o deslocamento de tônica no entendimento da racionalidade
humana ocorre pela renovação da metodologia estrutural-funcional, agora embasada em
um modelo sistêmico de interpretação dos fenômenos sociais que introduz na discussão
da ação social as “variáveis estruturais”. Retomando a leitura de Economia e Sociedade,
de Weber, o sociólogo estadunidense visara extrair do texto um modelo de sistema
econômico, mas principalmente recolher insumos o suficiente que o possibilitasse
reafirmar o método sociológico competente para oferecer um quadro conceitual aplicável
ao conjunto das formas de ações sociais.
Nesta última etapa – ainda acompanhando a interpretação de Rocher –, Parsons
faz uma série de correções em sua teoria, inteirando-as das propostas psicanalíticas de
Freud. Isto em função de que lhe instigava tomar os temas da estrutura da personalidade,
da aprendizagem, da socialização, da educação, além do estudo do modo como se
sintonizam mutuamente personalidade e meios sociais. Nesse momento, ele insere a
ciência política nos seus interesses, formulando um modelo para estudar o sistema
político. É no rastro de tais empreendimentos que o autor se dispõe realizar um amplo
quadro sinóptico da evolução das sociedades e civilizações. Algo assim lhe aproximara,
inusitadamente, dos grandes esquemas histórico-evolucionários propostos por Comte,
Spencer, Sorokin e outros. Não nos devemos precipitar e concluir daí ter sido Parsons
apenas um resignado continuador desses pensadores. De fato, ele ia à contramão da
tendência consagrada na sociologia norte-americana, desde a Escola de Chicago com seus
estudos sobre questões étnicas e sociais no meio urbano, de incentivar pesquisas
empíricas não dispostas a totalizações e bem mais inclinadas à sofisticação das técnicas
de inferências e na realização de grandes monografias. Se nestas últimas, longe de
qualquer objetivo abarcante macrossociológico, o estudo de cidades facultou evidenciar
a existência de conflitos entre grupos e classes sociais, o apego ao encaminhamento
empiricista respondia à crença generalizada entre os sociólogos naquele país de que as
grandes elaborações tinham o caráter impressionista, pior, retórico e logo tanto
enganariam o público e quanto travariam o desenvolvimento da ciência social. O alento
dado a uma visão mais ampla da sociedade, nos Estados Unidos, ainda que priorizando a
dimensão individual, ocorreu no campo da psicologia social, principalmente nas obras de
Charles H. Cooley, W.I. Thomas e George Herbert Mead. Tal elenco de autores se
debruçara frente à maneira como, nas relações interpessoais, a percepção de si e dos
outros exerce o condicionamento das próprias relações e, mais ainda, influencia o meio
social no qual se dá o desenvolvimento das personalidades. Em concordância com essa
atmosfera intelectual, as referências prioritárias eram nomes como os de Gabriel Tarde,
entendendo a sociedade pela imitação e Georg Simmel, enfatizando no seu ensaísmo o
indivíduo em relações.
Parsons permaneceu na mão contrária, na medida em que recorrera a autores
dotados de visões de cunho teórico e com ênfase analítica no plano coletivo. O que, por
outro lado, correspondeu ao seu propósito de integrar a sociologia ao sistema das ciências.
Ou seja, ele compreendia a sociologia como uma ciência analítica, visto que opera com
uma linguagem capacitada a reconstruir a realidade por meio de símbolos. Reconhece
assim o realismo científico como o posicionamento epistemológico a ser abraçado pelos
sociólogos e, portanto, não caberia uma adequação plena entre o conhecimento e a
realidade objetiva, afinal o primeiro corresponde a uma construção possível mediante a
estrutura mental-cognoscitiva. Se há, desse modo, certo cuidado com as pretensões
imediatas do empiricismo, Parsons não se satisfaz com certas prerrogativas, à maneiras
da ideia de Robert Merton sobre as teorias de “médio alcance”. Categórico, ele sentencia:
essas últimas se justificam apenas à luz de categorias abrangentes.
A inspiração tanto em Durkheim quanto em Weber leva-o a matizar a relação entre
ciências sociais e naturais. Porque, se o realismo analítico prevaleceria em ambas, nelas
igualmente se mantém o primado sistêmico, isto é, a “interdependência dos elementos
que formam um todo unido, no qual os movimentos e mudanças não podem se processar
de modo desordenado nem ao acaso, sendo fruto de uma interação complexa, da qual
resultam estruturas e processos” (ROCHER, Op. cit., p.30). A adoção de tal princípio
imprime em seus esforços a necessidade de considerar reciprocamente as dimensões
subjetiva e interpessoal; enfim, não haveria como deixar de abordar a “motivação do
sujeito que age, as ideias e imagens de que se inspira, os sentimentos que o animam, os
ideais que persegue, as angústias e receios que o consomem.” (Op. cit., p.30). Por esse
caminho, Parsons retoma toda a problemática weberiana em torno da objetividade e dos
dilemas axiológicos nas ciências sociais. Isto em razão de realçar a temática dos valores,
seja como propriedade do objeto sociológico seja no trato entre o pesquisador e suas
idiossincrasias sem, no entanto, se deixar seduzir pela concepção psicológica de explorar
a subjetividade pelo acesso introspectivo. Nos rastros de Weber, ele reconhece que, ao
compor uma subcultura, a ciência detém uma ética fundada na objetividade como valor
moral institucionalizado e a ser internalizado durante a socialização do cientista, o que
lhe garantiria independência em relação à sociedade abrangente, assegurando-lhe certa
liberdade pela distância relativa. Mas, por ser relativa, Parsons lembra a existência da
interdependência permanente entre o cientista e o universo cultural e moral de uma
sociedade e civilização onde o primeiro se insere. A dificuldade em romper esse vínculo
envolve tanto uma condição objetiva e afetiva que dá significado ao existir do agente
quanto a ruptura porta complicações, no tocante ao acesso e convivência do pesquisador
no mundo do qual extrai a matéria-prima para as suas investigações, na medida em que
compartilha dos mesmos valores e mediante estes se comunica com as pessoas da “vida
comum”.
Dada as grandes linhas da biografia intelectual-acadêmica de Parsons, passamos
a ver como esta mesma se consubstancia na sua proposta de uma teoria geral da ação, mas
de acordo com o problema central que o move e da posição que ocupa mediante as suas
interlocuções com a tradição sociológica.

* * *

Anotamos que, em 1937, Parsons publica The Structure of Social Action, obra
posteriormente consagrada como o norte da reflexão sociológica nas décadas seguintes.
Nela, o autor define a imagem da sociologia enfocando-a a partir da matriz disciplinar do
estrutural-funcionalismo, com ênfase na perspectiva sistêmica de interação social. Se o
núcleo da sua proposição central tomava as contribuições de Weber e de Pareto enquanto
precursoras do “sistema de coordenadas de ação”, percebemos que o esquema parsoniano
está orientado fundamentalmente para explicitar a natureza do funcionamento dos
sistemas sociais. Portanto, retoma, atualiza e redimensiona o legado da doutrina funcional
nas ciências sociais, ao substituir o modelo orgânico mecanicista por aquele de base
cibernética – veremos adiante. O ponto central da perspectiva funcionalista em Parsons é
a proposição de que os sistemas não são entidades inertes. A seu ver, tais sistemas
realizam atividades que afetam o ambiente ao seu entorno, o qual – vimos – é formado
basicamente por outros sistemas. Logo, ele conclui, os sistemas funcionam e a maneira
como afetam e são afetados por outros sistemas correspondem ao grau de diferenciação
funcional compondo uma trama de atividades em equilíbrio sinérgico que o mantém
coeso e atuante. Por sua vez, a classificação que propõe escalona os sistemas entre os
mais e menos complexos. A sociedade consiste, segundo esse critério, em um sistema
altamente complexo cuja propriedade básica consiste em ser capaz de se manter como tal
sem depender de outro sistema menor; o que não ocorre com os sistemas de menor monta
(a família, por exemplo) contidos na arquitetura maior.
No entendimento de Parsons, a natureza da relação assim estabelecida apenas se
faz inteligível quando se tem em mente a função que o sistema menor desempenha e o
efeito do funcionamento mais amplo, de todo o conjunto. Para tanto, ele sublinha como
imprescindível a existência de elementos nos sistemas que estejam empenhados em
atividades visando garantir a integração, ou seja, a adequação das variadas e diversas
relações no sistema. A luz dessa centralidade teórica e mesmo ontológica, a noção de
sistema exerce pressões interpretativas sobre a análise mediante as categorias de
totalidade, hierarquia, finalidade e necessidade. Com isto, devido à relevância gozada
pelos elementos desse enunciado à compreensão do problema teórico-filosófico em torno
da existência da ordem e sua permanência, fundamental ao esquema analítico-
interpretativo do autor, vale a pena detalhá-los.
Acima, chamamos atenção ao fato de que, ao redefinir a ideia weberiana de ação,
Parsons enfatiza que as entidades funcionam enquanto sistemas, os quais são complexos
em si, porém são subordinados a outro sistema ainda mais complexo. Podem, assim,
serem classificados de acordo com a função básica que desempenham: política,
econômica, cultural, etc. O decisivo a ser realçado é a proposição de que, internas a cada
um dos sistemas, as funções básicas desempenhadas por outros sistemas estão presentes
em todos os demais congêneres, de tal forma que, examinado o sistema político, nele
encontraremos o correspondente de um subsistema econômico e assim sucessivamente.
É de grande importância a conversão da ideia weberiana a respeito da interpenetração das
modalidades de ação no plano do sentido (para o agente) na tese sobre a interpenetração
de sistemas e subsistemas no plano do desempenho de funções. Para o autor
estadunidense, o conceito de sistema impõe ao esquema funcional o postulado sobre a
hierarquia entre as funções e, também, sobre relações estáveis entre estas últimas. Ainda
assim, Parsons se mantém fiel à asserção de Weber de que, para qualquer gênero de ação,
os fatos não podem ser tomados como intrinsecamente políticos, econômicos ou culturais.
Isto porque todas as dimensões básicas da ação compareceriam em cada uma das suas
manifestações. Cabe, portanto, ao próprio pesquisador fixar o aspecto que lhe interessa
estudar, com o que os demais aspectos serão evocados na medida em que sejam relevantes
para a realização da análise.
À luz do sumário traçado acima, nota-se a relação simétrica de correspondência
entre o tema da ordem e sua manutenção e a opção teórico-analítica pelo paradigma
estrutural-funcional no esquema parsoniano. Uma conclusão inicial nos leva à reposição
pelo autor do problema seminal que, no início da filosofia política moderna, motivou
Hobbes a formular a aterradora imagem da natureza egoística e destrutiva dos homens
revelada nas páginas de o Leviatan. Nelas, tal natureza encontra sua descontinuidade na
instauração da cultura, mediante a soma zero das vontades que instauram o Estado. Este
compreendido como unidade capaz de deter a anarquia, estabelecendo a autoridade
legítima para impedir o achincalhe das fronteiras entre o justo e o injusto e, portanto,
sagra-se modalidade dotada de suficiente força para debelar a insegurança, a qual
(entende-se) resulta impreterivelmente da escassez de poder (BOBBBIO, 1991, p.26). No
percurso do pensamento social, que daí deriva, a mesma oposição fundada no
reconhecimento da distinção entre instabilidade advinda da volúpia das paixões e
segurança social absorveu esforços e recebeu tantos e plurais tratamentos. Nas palavras
de Lévi-Strauss

(...) cada homem sente em função da maneira como tem sido permitido ou prescrito
se comportar. Os costumes são dados como normas externas, antes de engendrar
sentimentos internos e essas normas insensíveis determinam os sentimentos
individuais, assim como as circunstâncias em que poderiam ou deveriam se
manifestar. (LÉVI-STRAUSS, 1997, p.106).

Bem antes que ele, no instante em que conclui sobre a fonte do dever-ser no caráter
societário da religião, no que esta possui de fator preservacionista, Durkheim decide
incluir na mesma tarefa outras modalidades de unidade social (família e Estado). Logo, o
postulado subjacente nos seus escritos consiste na tese de que a sociedade implica na
garantia de estabilidade e preservação da integridade do indivíduo, ao assegurar um
padrão moral. Pela mesma chave, é possível constatar a desconfiança do autor frente ao
ensimesmamento individualista; o qual, para ele, poderia ser reduzido ao egoísmo
esterilizante. A sociedade cumpre, assim, uma missão civilizatória. E justamente por isso,
Durkheim concebe a integração coletiva no papel de barrar as ondas suicidógenas,
constituindo manifestações de estágios intensos de anomia. Nos seus termos:
Esse paralelo demonstra que, se essas diferentes sociedades têm sobre o suicídio
uma influência moderadora, não é em conseqüência de características particulares
a cada uma, mas em virtude de uma causa comum a todas elas. A religião não deve
sua eficácia à natureza especial dos sentimentos religiosos, pois as sociedades
domésticas e as sociedades políticas, quando são fortemente integradas, produzem
os mesmos efeitos, é isso, aliás, que já provamos estudando diretamente a maneira
pela qual as diferentes religiões agem sobre o suicídio. Inversamente, não é o que o
vínculo doméstico ou o vínculo político têm de específico que pode explicar a
imunidade conferida por eles, pois a sociedade religiosa tem o mesmo privilégio.
Sua causa só pode ser encontrada numa mesma propriedade que todos esses grupos
sociais possuem, embora, talvez, em graus diferentes. Ora, a única que satisfaz a
essa condição é serem todos eles grupos sociais, fortemente integrados.
Chegaremos portanto à seguinte conclusão geral: o suicídio varia na razão inversa
do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte.
(DURKHEIM,2000, p.258).

Não é gratuita a afinidade temática assinalada na triangulação Durkheim, Lévi-


Strauss e Parsons a partir da antecedência do problema inaugural da ordem à evolução da
teoria social. Sob o risco de reducionismo, podemos detectar o pertencimento dos três a
uma mesma linhagem teórico-doutrinária, ainda que cada um diga respeito a ramificações
da matriz disciplinar intelectual-objetivista. Modelagem teórico-doutrinária cuja
prioridade recai sobre a generalidade do coletivo enquanto fato que se impõe sobre as
decisões e ajuizamentos individuais, ou seja, o coletivo corresponde ao plano normativo,
logo, da obrigatoriedade. Ao mesmo tempo, o recurso analítico ao funcionamento e ao
padrão de estabilidade dos sistemas sociais também aí persevera. Nesse sentido, a título
apenas de oferecer um quadro geral desta linhagem, a seguir resgato a sistemática
histórica na conformação do estrutural-funcionalismo.
O primeiro a definir o estudo da sociedade em ternos das obrigatoriedades fora o
próprio Hobbes. Interessava-lhe decompor o Estado como a um “corpo”, ao submetê-lo
ao crivo do método perscrutador de uma razão universalista, sensível ao percurso das leis
da matéria. Na teoria política do autor britânico, sendo o pensamento um cálculo
(realizado por operações de soma e subtração), caberia desfazer a síntese das vontades
viabilizadoras daquele ordenamento de poder para ser possível apresentar as motivações
do por que é possível a civilidade. Ou seja, como se parte da situação de guerra do “todos
contra todos” para o Estado de direito? Enfim, contrato e sociedade estão na raiz do
problema. Ora, em Hobbes, sabemos, o Estado é plena negação da natureza negativa
egoística do homem – sabendo ser este para ele, igualmente, o fundamento do Estado. E
este age por dominação em relação aos indivíduos. A subordinação de uma vontade
impetuosa é a causa a ser escutada nos efeitos do contrato:
Às leis de natureza enunciadas no capítulo 15 de acrescentar que todo o homem é
impelido pela natureza, na medida em que isso lhe é possível, a proteger na guerra
a autoridade pela qual é protegido em tempo de paz. Pois aquele que pretende ser
um direito de natureza a preservação de seu próprio corpo não pode pretender que
seja um direito de natureza destruir aquele graças a cuja força ele é preservado: é
uma manifesta contradição de si próprio. E muito embora esta lei possa ser
enunciada como conseqüência de algumas daquelas que já foram mencionadas,
contudo os tempos exigem que ela seja inculcada e lembrada (HOBBES,1988,
p.193)3.

Sem dúvida, encontraremos as melhores condições na França pós-revolucionária, na


virada do século XVIII para o XIX, para o despontar da proposta estrutural-funcionalista
e estas são as mesmas que informaram a emergência da sociologia. Isto se deveu
principalmente ao engate da contestação das instituições (insuflada pelo Iluminismo) com
as contradições crescentes vinculadas à polarização entre capital e trabalho no cenário
emergente da sociedade urbano-industrial. A sociologia é gestada com a finalidade de
cumprir a missão de reorganizar os dispositivos capazes de arrumar em novas oposições
o que a temporada revolucionária teria embaralhado. Na trama das interpretações fazia-
se imperativo o emprego de uma metodologia calcada no princípio empírico-analítico da
ciência capacitado a revelar tanto as propriedades quanto as correlações constituintes dos
fenômenos sociais, mas segundo o propósito de dotar os homens do controle sobre a
complexidade institucional. Por isto, Saint-Simon propusera uma “fisiologia social”.
Crente na promessa da razão natural, para ele o mundo social seria a combinação do
fisiológico com o psicológico e, ambos, estariam sobre o terreno da materialidade físico-
química. Se o ativismo desse agente revolucionário anuncia, porém não torna concreta a
figura da nova ciência, o que coube ao seu discípulo Auguste Comte. Empenhado na ideia
de reorganização da sociedade, este autor reafirmou a tese sobre a passagem histórico-
estrutural de sistemas sociais aristocrático-patrimoniais (onde prevaleceriam ideários
metafísicos) para àqueles urbano-industriais fundados ideacionalmente na ciência
positiva. A nova disciplina voltada para o estudo deste fenômeno herdou o modelo
histórico-organicista de sociedade, tendo ênfase no tema da ordem. As categorias de

3De acordo com Ernest Kantorowicz (1998), em Os Dois Corpos do Rei, o século XVI europeu assiste os esforços
político-teológicos para fundamentar e conferir legitimidade à concepção dual do corpo do soberano, o qual
estaria cindido entre sua gama eterna e aquela perecível, alvo das demandas prosaicas semelhante a qualquer
vivente. Igual período é também o palco das celeumas acerca da “morte de Deus”, objeto cálido das discussões
entre os iconoclastas que denunciavam a heresia idólatra latente na contemplação das imagens divinas e aqueles
certos de estar a fé a salvo no interior das margens das mimeses reproduzindo agentes e episódios sagrados.
“estática” e “dinâmicas” sociais adquirem prioridade intelectual e normativa na
demarcação da natureza do objeto sociológico. Para isso se forjou o projeto da sociologia
pela articulação entre a biologia e os saberes voltados ao plano psíquico-coletivo (a
moralidade), a partir do esquema evolucionário aplicado ao movimento histórico de
sistematização das ciências.
Já na fase inicial da sua trajetória intelectual de Comte, duas facetas sobressaem:
de um lado, a análise se volta para o presente, mas o que se busca é a estrutura e isto o
leva até a escuta do processo histórico, ou seja, dos mecanismos reguladores das
mudanças. Por outro lado, embora em consonância com o anterior, a questão da
intervenção direta no presente não deveria implicar em qualquer ação violenta tentando
desviar o curso histórico, justamente por se tratar de uma marcha inexorável na alteração
sucessiva das doutrinas indo do estado teológico ao metafísico e, daí, ao positivo-
científico. O mais adequado seria, portanto, acelerar a reforma intelectual. Isto o incita
propor a síntese de todas as ciências e a fundamentação de uma política positiva inscrita
no que lhe parece elementar à espécie humana: a busca do repouso, da estabilidade 4.
Então se, em coro com muitos dos seus contemporâneos, Comte reconhece a sociedade
moderna como uma situação eivada de crises, ao mesmo tempo ele não compartilha com
Marx, por exemplo, a crença sobre o papel da revolução no desenvolvimento do processo
histórico. Nem tampouco aquiesce acerca da a doutrina das instituições livres e nem
tampouco do livre-arbítrio, com Tocqueville. Seu diagnóstico é: a crise deve ter sua razão
perscrutada na contradição que corta o período no qual estavam todos imersos.
Contradição que seria proveniente da transição de uma ordem social e histórica teológico-
militar em vias de desaparecer à medida que ascende aquela outra científico-industrial. A
seu ver, a marcha progressiva contínua da humanidade daria cabo da etapa anterior e se
realizaria no triunfo da ordem industrial. É neste cenário do seu raciocínio que o autor
concebe a sociologia, afinal a vitória inevitável da sociedade industrial requeria tão-
somente mecanismos cognitivos habilitados intelectualmente a incrementar o trânsito de
uma etapa a outra. A tarefa da sociologia seria iluminar o necessário devir histórico,
contribuindo à realização plena do novo sistema e neste...

4 Postulado central à visão de mundo que abraçava e manifesto principalmente no lugar decisivo ocupado pelo
dogmatismo no seu raciocínio: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para o qual
tende, por sua natureza, continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele. O
Ceticismo nada mais é do que um estado de crise, resultado inevitável do interregno intelectual que sobrevém,
necessariamente, todas as vezes em que o espírito humano é chamado a mudar de doutrinas, ao mesmo tempo
que é indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer pela espécie, para permitir a transição de um
dogmatismo para outro, o que constitui a única utilidade fundamental da dúvida.” (COMTE, 1826, p.35).
(...) o poder espiritual ficará na mão dos sábios (cientistas), e o poder temporal
competirá aos chefes dos trabalhos industriais. Estes dois poderes devem
naturalmente proceder, na formação do novo sistema, como hão-de proceder,
quando for estabelecido, na sua aplicação diária, contando também com a
importância superior do trabalho que é indispensável executar nos dias de hoje. Há,
neste trabalho, uma parte espiritual que deve ser tratada em primeiro lugar, e uma
parte temporal que o será consecutivamente. Assim, é aos sábios que compete
empreender a primeira série de trabalhos, e aos industriais mais importantes,
organizar, nas bases que ficarem assim delineadas, o sistema administrativo. Tal é
a marcha simples, indicada pela natureza das coisas, e ela nos ensina que as próprias
classes que são os elementos dos poderes do novo sistema, e que devem ser um dia
colocadas na supremacia, ou na soberania; só elas podem construí-lo. Só essas
classes são capazes de bem apreender o espírito da reorganização social; só elas são
encaminhadas no sentido da verdade, graças ao impulso combinado dos seus
hábitos e dos seus interesses. (COMTE, 1977, p.81).

Os objetivos da sua Filosofia Positiva (1978, p.01-115) constam da proposta de


homogeneização do conjunto dos conhecimentos adquiridos, em consonância com os
diversos planos de fenômenos naturais. A unidade exigida está no nível do método. E este
se enriqueceria à proporção que se amplia o seu uso nas mais diversas disciplinas, das
mais simples às mais complexas. Portanto, o “método científico positivo” compreende
uma teoria explicativa dos respectivos fenômenos pertinentes a cada ciência. O método
caracteriza-se pelos instrumentos manejados para a obtenção e ordenação dos dados reais
que, reunidos em hipóteses gerais de trabalho, acabam por se constituir na ciência
propriamente dita. A classificação das ciências que ele propõe obedece ao critério de
considerar as ciências abstratas e não as suas manifestações concretas. Interessa-lhe a
ordem de generalidade explicativa e da coordenação dos fatos de cada uma. Elas vão
surgindo e sendo admitidas, na positividade, segundo uma ordem em que essas
especulações mantêm com os fatos da experiência. De acordo com o seu modelo
epistemológico, na medida em que a ordem das ciências se aproxima dos homens, tornam-
se mais complexas e menos gerais, ao mesmo tempo em que é enriquecido o seu
instrumental metodológico. Considerando ser a matemática a lógica geral do saber
científico, devido à ordenação numérico-dedutiva, teríamos a seguinte escala histórica e
sistemático-doutrinária do corpo propositivo geral do sistema das ciências positivas: das
ciências orgânicas (astronomia, física e química) às orgânicas (biologia/fisiologia,
sociologia); das gerais e simples às complexas e concretas.
Uma disciplina de saber apenas poderia ser admitida no escopo do sistema, para
Comte, quando o exercício do conhecimento nela se dá pela abordagem dos fenômenos a
partir das suas respectivas relações constantes de concomitância e de sucessão (leis),
advindo daí a possibilidade de previsão. Dessa maneira, o autor distingue a verdadeira
ciência da “simples erudição que acumula maquinalmente os fatos sem aspirar a deduzi-
los uns dos outros”. Portanto, assevera, método e doutrina são inseparáveis, taxando de
metafísica a possibilidade de se estudar a teoria geral do método, estando este excluído
de sua aplicação em cada uma das ciências positivas. Enfim, o método deveria ser
avaliado no seu “uso efetivo”. Por isso, ele sentencia, somente ao final de todas as suas
aplicações às diversas disciplinas é que o método positivo se torna verdadeiramente
conhecido em seus aspectos mais importantes. Estes corresponderiam: a observação,
experimentação, análise e filiação histórica (nas ciências sociais). Comte distingue, logo,
entre fatos significativos e não significativos para o conhecimento científico. Descarta
seja o empirismo seja o racionalismo, já que não haveria teorias sem fatos tampouco
inexistem fatos sem teorias gerais que os informem. Mediante a esse postulado, nem todos
os fatos são observáveis ou significativos.
Ora, se para Comte a hierarquia entre as disciplinas científicas se alicerça na disposição
legislativa que persevera uma linha contínua do simples geral ao complexo concreto, na
medida em que se aproxima do domínio humano, um salto fundamental se dá com o
advento da biologia, por realizar a passagem do inorgânico para o orgânico. Várias noções
surgem nesse trâmite: consenso, hierarquia, meio, condições de existência, de relação
entre estática e dinâmica, de órgão e função. Ocorre também a inversão de método com
o vetor indo da síntese para a análise. Sobretudo, a perspectiva funcional, cara a seu
sistema, decorre do relevo conferido por Comte ao modelo biológico. Isto na medida em
que, de acordo com as proposições próprias ao seu esquema, os fenômenos vitais
compõem o sistema funcional, inextrincável e complexo, distinguindo-se dos fenômenos
mecânicos passíveis de fragmentação e isolamento. A seu ver, a vida se recompõe a si
mesma, como auto-organização.
Mas se a biologia se ocupa dos aspectos anatômicos e fisiológicos da vida mental,
entende Comte, os aspectos ideativos, do psiquismo superior, inclusive até as suas
faculdades afetivas e volitas, estariam a cargo do estudo sociológico do homem como
membro de um grupo. Afinal, conclui, tais predicados humanos apenas se originariam ou,
pelo menos são revelados, no seio da vida associativa e histórica. A sua nova proposta de
uma nova ciência se justifica, então, por introduzir como problema no estudo do
comportamento humano as leis do desenvolvimento histórico; a ciência social se
fundamenta na observação e na comparação, empregando métodos análogos aos
empregados por outras disciplinas científicas. Mas esses métodos se enquadrariam nas
ideias e diretrizes positivistas das categorias de estática e de dinâmicas, ambas de natureza
sintéticas, porque em um e outro caso o espírito envolve as observações parciais ao
primado do entendimento do conjunto definido tanto pela ordem de uma sociedade
determinada quanto pelas grandes linhas da história. A “invenção” da sociologia estaria,
nesse sentido, em conexão com o propósito prático de reorganizar a sociedade.
Reformando-a intelectualmente com a finalidade de tornar a mentalidade humana de
acordo com a ordem industrial-científica que se consolidava. Por outro lado, a sociologia
constitui, do seu ponto de vista, o cume do sistema científico, afinal com a “física social”
se atingiria a completa hierarquia na divisão das ciências. Pois a nova disciplina, além de
se utilizar de todo o estoque de métodos acumulados, introduziria outro elemento
fundamental, a saber, o fato histórico. Assim, o autor pretendia observar a “filiação
histórica”, isto é, a herança sociocultural das diversas gerações humanas. O que, por sua
vez, permitiria entrever o princípio de unidade galvanizador da “espécie humana” cuja
faceta se revelaria no movimento contínuo, histórico, segundo um esquema
evolucionário-progressista da sucessão continuada de superações entre os estágios, a qual
iria do mais simples para o mais complexo. É justamente essa qualidade que inspira o tipo
de raciocínio do qual Comte se faz apóstolo sacerdote.
As duas categorias centrais do seu esquema explicativo são reveladoras deste
raciocínio, mas deitaram profundas raízes no imaginário intelectual das ciências sociais.
A ideia de “estática” consiste essencialmente no estudo do que Comte chama de
“consenso social”. Uma sociedade se assemelha a um organismo vivo. Assim como é
possível estudar o funcionamento de um órgão sem situá-lo no conjunto do ser vivo, é
impossível estudar a político e o Estado sem contextualizá-los no conjunto da sociedade,
em um dado momento. A estática social comporta, de um lado, análise do conjunto de
indivíduos e famílias de uma coletividade e uma pluralidade de instituições que
determinam o consenso, isto é, que fazem do conjunto dos indivíduos ou famílias uma
coletividade e de uma pluralidade de instituições uma unidade societária. Mas, se a
estática é o estudo do consenso, ela nos leva a procurar saber quais são os órgãos
essenciais de toda sociedade; ou seja, a ultrapassar por conseguinte a diversidade das
sociedades históricas para descobrir os princípios que regem toda ordem social. Já a
“dinâmica social” parte da descrição das etapas sucessivas percorridas pelas sociedades
humanas. A partir do conjunto, advoga o autor, saberíamos que o devir tanto das
sociedades humanas quanto do espírito humano é comandado por leis gerais. Como o
conjunto do passado constitui uma unidade deixando entrever as etapas necessárias do vir
a ser histórico, a dinâmica social não se parece com a história dos historiadores
notabilizada por colecionar fatos ou observar a sucessão das instituições.
As contribuições de Comte não apenas foram decisivas à circunscrição da
sociologia como um saber científico com pretensões lógico-empíricas, mas também
serviram ao projeto de entendimento das reciprocidades sociohumanas pelo viés das
funções ordenadas dentro de uma sistemática dotada de um padrão específico de
relacionalidade. Mas apenas com o advento da obra do filósofo social inglês Herbert
Spencer a categoria de função social ingressou, de fato, no repertório conceitual da
sociologia. À maneira de Comte, Hegel ou mesmo Marx, este autor se inscreve entre os
pensadores destacados pelo projeto de doar à humanidade grandes sistemas ou narrativas
abarcando o conjunto da trajetória da espécie enquanto gênero. Uma mesma filosofia da
história os sintoniza com o postulado lógico da continuidade em que o simples é
crescentemente sucedido por níveis maiores de complexidade, já que seriam envolvidos
um número maior de termos agregados e a soma implica não apenas uma adição, mas o
despontar de uma outra e original qualidade. Não iremos explorar aqui os distintos
matizes adquiridos pelo postulado evolutivo, tão-somente cabe sublinhar que, nos rastros
também de Comte, Spencer coroa com a sociologia a evolução das ciências. Porém, mais
que o autor francês, ele aspira de Lamarck e Darwin a “plataforma filosófica” erguida em
nome da evolução, elevada ao status de parâmetro de mensuração moral dos conjuntos
humanos. Deste modo, a tarefa central da ciência, na concepção spenceriana, compreende
a dedução da fórmula constante que atravessaria a variedade dos fatos. Trata-se tal
regularidade referida das leis de conservação da força e da evolução. Aqui, o autor elucida
duas categorias que, embora interdependentes, não poderiam ser confundidas, a saber, as
de “função” e de “estrutura”. Se a última equivale ao perfil assumido pelo arranjo mútuo
das relações sociais, as funções são os efeitos destas últimas, mas também são os fatores
responsáveis pela sua manutenção.
O exercício científico se encerra, para Spencer, na demonstração de que cada forma de
existência, na sua própria conjunção de elementos, corresponde ao desenvolvimento de
algo lhe anterior e porta o germe do que lhe sucederá. O resumo da tipificação que propõe
à categoria de sociedade pode ser descrito no seguinte encadeamento cotegorial:
a) Sociedade é um sistema, ou seja, um coerente conjunto de partes conectadas;
b) Este sistema só pode ser entendido em termos da operação de específicas
estruturas, cada uma delas têm a função de manter o conjunto social;
c) Sistemas têm necessidades que são determinadas pelas circunstâncias de
sobrevivência que encontram. A função da estrutura é determinada pela
descoberta de necessidades a que o sistema se está submetido.

Sobre este tripé teórico se funda sua concepção de evolução societária, para a qual a lenta
transformação de um agregado se caracteriza pela metamorfose da homogeneidade à
heterogeneidade, imprimindo-se nesse curso uma diferenciação, isto é, de autonomização
relativa das partes mutuamente concatenadas, na medida em que se especializem em uma
função. Spencer vislumbra algo assim no mundo social: os grupos iniciados como hordas
(logo seus membros apresentariam similar grau intelectual, técnico e econômico) se
tornarão conglomerados complexos devido à divisão do trabalho e das relações jurídicas,
segundo uma processualidade de permanente diferenciação. Desta lei geral da evolução
das sociedades, ele distingue dois tipos morfológicos: a ) Tipo militar: há a predominância
da coerção e da força – ilustra-se historicamente no regime feudal; b) tipo industrial:
calcado na divisão social do trabalho; há o predomínio dos intelectuais e engenheiros – o
tipo corresponderia historicamente às sociedades industriais formadas nos Estados
nacionais da Europa Ocidental.
Na perspectiva metodológica interna ao esquema de Spencer ganha contornos a
sua concepção ontológica do objeto da sociologia, porque a finalidade dos fenômenos se
definiria pelo próprio impulso evolutivo e, assim, qualquer situação de equilíbrio é
sempre parcial. Deste modo, é verdade que a prerrogativa evolucionária esposada pelo
autor delimita um lugar secundário à deliberação individual, afinal o que determina a
evolução são as conformações hereditárias, as quais imprimem os teores da personalidade
e do destino de uma população. No entanto é detectável certo paradoxo no seu modelo.
Claramente ele opera de acordo com o modelo organicista, já que o social diria respeito
a um conjunto de reciprocidades funcionais. Porém, à diferença dos organismos animais
que dispõem apenas de um tecido sensorial para todo o conjunto, nos complexos
sociohumanos se evidenciariam a multiplicidade de órgãos articulados a diversos tecidos
sensoriais. No centro desta concepção está o postulado de que a consciência social habita
as partes, logo os indivíduos constituem a razão da totalidade. O deslocamento semântico,
devido à tônica depositada no indivíduo, deixa evadir o quanto a adoção da teoria da
evolução biológica, por Spencer, esteve na interface com tradições intelectuais já
sedimentadas nos domínios britânicos, sobretudo o utilitarismo e o laisse-faire do
liberalismo. Teríamos, no entanto, uma diferença de princípios básica. Enquanto o mote
utilitário propõe a competição entre sujeitos de interesses, a despeito das demandas
coletivas, em Spencer o organicismo prescreve o social pela integração das partes ao todo,
justamente ao transformar o ideário utilitarista em torno da categoria de função social.
O ponto de discordância entre as concepções de função em Durkheim e Spencer
está, neste último autor, exatamente na maneira com o conceito é atrelado à ideia utilitária
de propósito. Embora ambos tivessem por objeto a necessidade de integração diante da
crescente complexidade gerada com a diferenciação funcional inscrita na divisão do
trabalho nos sistemas sociais modernos, na acepção durkheimiana é descartada a
possibilidade de uma regulação integradora baseada no interesse privado agenciado pelo
e no mercado capitalista. A seu ver, importa identificar as regras morais que presidem a
cooperação nas condições em que prevalecem o tipo de solidariedade orgânico-
funcionais das sociedades industriais. Isto porque a carência de regulamentação social
impediria a cooperação entre as funções separadas; isto é, inviabilizaria a solidariedade
em um quadro de ausência de normas (DURKHEIM, 2000). Nesses termos, se a
sociedade consiste no conjunto de obrigações morais que liga os indivíduos, logo, a
“anomia” traduz e manifesta a carência de fins individuais. Por isso, Durkheim afirma
começar a moral só onde inicia igualmente a adesão a um grupo, seja ele qual for. O que,
conclui, torna o fato moral o impulso mercê do qual “no constrangimento sobre nós
mesmos, podemos agir moralmente, faz com que saiamos fora de nós próprios, eleva-
nos acima de nossa natureza, o que não consegue sem dificuldade, sem contensão. É esse
apetecível sui generis a que vulgarmente chamamos ‘bem`” (DURKHEIM, s.d., p.210).
Recorro a um elucidativo trecho do livro As Regras do Método Sociológico, em que trata
do tema da função social como fenômeno de análise sociológico:

Quando, pois, procuramos explicar um fenômeno social é preciso buscar


separadamente a causa eficiente que o produz e a função que desempenha. Servimo-
nos do termo função, de preferência ao fim ou de objetivo, justamente porque os
fenômenos existem, em geral, tendo em vista os resultados úteis que possam
produzir. O que é preciso determinar é se há correspondência entre o fato
considerado e as necessidades gerais do organismo social, e em que consiste esta
correspondência, sem se preocupar em saber se ela é intencional ou não. Todas estas
questões de intenção são, além do mais, muito subjetivas para poderem ser tratadas
cientificamente.
Não só se deve separar estas duas ordens de problemas, mas convém, em geral,
tratar a primeira antes da segunda. Esta ordem corresponde, efetivamente, à
realidade dos fatos. É natural procurar a causa de um fenômeno antes de procurar
determinar-lhe os efeitos. O método é tanto mais lógico quanto a primeira questão,
uma vez resolvida, auxiliará muitas vezes resolver a segunda. Efetivamente, o laço
de solidariedade que liga a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não
foi suficientemente reconhecido. É verdade que o efeito não pode existir sem a sua
causa, mas esta, por sua vez, tem necessidade do efeito. É dela que o efeito tira sua
energia, mas também lhe restitui quando necessário e, por conseguinte, não pode
desaparecer sem que ela se ressinta. Por exemplo, a reação social constituída pelo
castigo é devido à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende; mas
por outro lado, ela tem por função útil manter tais sentimentos no mesmo grau de
intensidade, pois estes não tardariam em se excitar se as ofensas que sofrem não
fossem castigadas. Do mesmo modo, à medida que o meio social se torna mais
complexo e mais móvel, as tradições, as crenças já formadas ficam abaladas, tomam
um aspecto mais indeterminado e mais maleável, e as faculdades de reflexão se
desenvolvem; mas estas mesmas faculdades são indispensáveis às sociedades e aos
indivíduos para se adaptarem a um meio mais móvel e mais complexo. À medida
que os homens são obrigados a fornecer um trabalho mais intenso, os produtos deste
trabalho mais se tornam mais necessários para reparar o desgaste que um trabalho
mais considerável acarreta. Então, em lugar de a causa dos fenômenos sociais
consistir numa antecipação mental da função que são chamados a desempenhar,
esta função consiste, ao contrário ( pelo menos em bom número de casos), em
manter a sua causa preexistente de que derivam; se a segunda for já conhecida,
encontraremos mais facilmente a primeira.
Mas embora se deva proceder somente em um segundo lugar a determinação da
função, esta determinação não deixa de ser necessária para que a explicação do
fenômeno seja completa. Com efeito, se a utilidade do fato não lhe dá o ser, para
poder manter-se, é preciso geralmente que seja útil. Pois, pela simples razão de que,
em tal caso, custa, sem nada trazer em troca, basta que não sirva para nada para que
seja nocivo. Se, pois, a generalidade dos fenômenos sociais tivesse tal caráter
parasitário, a balança do organismo estaria em déficit, a vida social seria impossível.
Portanto, para dar desta uma compreensão satisfatória, é necessário mostrar como
os fenômenos que lhe formam a substância concorrem entre si de maneira a
promover a harmonia da sociedade consigo mesma e com o exterior. Não há dúvida
de que a fórmula vulgar que define a vida como uma correspondência entre o meio
interno e o meio externo não tem senão validade aproximada; todavia, é verdadeira
de modo geral e, por conseguinte, para explicar um fato de ordem vital, não se trata
de mostrar a causa de que depende; é preciso ainda, pelo menos na maioria dos
casos, encontrar a parte que lhe é atribuída no estabelecimento da harmonia geral.
(DURKHEIM,1985, p.84-85).

Se a ideia de função tem vínculos lógicos com as prerrogativas da harmonia, ou


seja, do equilíbrio e da simetria entre partes internas a um sistema, entende-se, assim, a
centralidade que a categoria de representações coletivas ocupa no esquema do autor. Por
não terem como substrato o indivíduo, sentencia Durkheim, as representações coletivas
advêm da exterioridade abrangente da totalidade social ou, ainda, dos grupos parciais nela
encerrados (Op. cit., p.03). Ao se situarem fora dos indivíduos e possuírem independência
em relação às consciências daqueles e, sobretudo, deterem a qualidade de os superarem,
pela generalidade do coletivo, as representações coletivas se impõem; são coercitivas
justamente porque correspondem a pressões sociais sobre os indivíduos, dando-se como
tendências internalizadas na consciência individual. As representações coletivas, ainda
que sejam veiculadas nas ações de indivíduos, não lhes são inerentes, mas elas
compreendem o complexo societário composto capaz de ultrapassar, assim, cada membro
em específico e mesmo a soma das partes. Quer dizer, as crenças e práticas religiosas, às
da moral, os inúmeros preceitos do direito, todas as manifestações da arquitetura coletiva,
impor-se-iam de fora ao indivíduo. As representações coletivas têm, enfim, caráter de
“obrigatoriedade”, isto, ao não dependerem do âmbito individual, mas derivarem de um
“poder moral” que lhes é transcendente, à maneira de Deus, ou seja, a própria
transliteração da sociedade no sagrado contínuo, intocável, temível e adorado como o
bem em abstrato e o supremo poder. Donde se conclui que, no entendimento de
Durkheim, a integração de um sistema de ação é produzida no ajuste de um consenso
assegurado normativamente, devido ao acordo com o papel desempenhado pelas
representações coletivas, tendo em vista as etapas da diferenciação funcional-estrutural
dos sistemas sociais. São as representações coletivas este elemento outro capaz de, ao
exceder às consciências individuais, persuadi-las à integração, para além dos fins
utilitários daquelas e estão, igualmente, na soldagem das ações humanas enquanto partes
de um sistema de valores últimos. Tais valores consistem na justificativa primordial dos
atos e, portanto, mostram-se obrigatórios como o próprio bem perseguido. O
encadeamento entre moralidade e classificações sociais, como mecanismo ordenador
ajustando, correlacionando e dispondo pessoas e coisas aponta à primazia gozada pelo
postulado da estabilidade no esquema teórico-analítico durkheimiano, o qual contracena
com os limites axiológicos da sua concepção de realidade.
O legado durkheimiano irá sedimentar a tradição intelectual calcada na matriz
disciplinar intelectual-objetivista, estando esta amparada por sua vez no esquema
analítico estrutural-funcionalista. Nos anos que se seguem entre o final do século XIX e
as quatro primeiras décadas do século XX, nos rastros da emergência da chamada Escola
Francesa de Sociologia, a tradição funcional-estruturalista obteve sucessivos êxitos
institucionais, em termos analíticos5. Este relativo sucesso pode ser igualmente
mensurado pela disseminação da proposta em outras praças, principalmente na pressão
exercida pela contribuição de Durkheim sobre o universo dos estudos antropológicos
ingleses do período. Do outro lado do Canal da Mancha, uma fundamentada linhagem de
pesquisas no campo da antropologia física estava no contraponto dos estudos devotados
aos temas mentais (referidos mais à psicologia experimental) e morais. No compasso do
final do século XIX, com alterações sensíveis operadas na prática e na reflexão dos
etnólogos, a cisão epistemológica entre os dois domínios de saber antropológico começa
a ser questionada. Para isso, o empenho de W.H.R. Rivers fora em especial importante e
se manifestou na tentativa de agrupar as duas faces, moral-cultural e físico-biológico, sob
o apanágio da área que paulatinamente passou a ser denominada Antropologia Social.
Campo de saber disciplinar implementando na esteira dos estudos e pesquisas voltados
para problemas relativos à organização social, enfocando basicamente a questão do
parentesco a partir do emprego do método genealógico. Contudo, a empreita de Rivers
mereceu maior destaque pelo propósito que propriamente pelos resultados analíticos, em
grande medida devido ao emprego de conjecturas para trabalhar o amplo material
etnográfico recolhido no raio de alcance do Império Britânico. A situação começa a
mudar na medida em que uma nova geração formada pelos mestres – como Rivers – elege
por meta o recurso a esquemas lógicos e teóricos compromissados com a coerência
conceitual no trato dos corpus empíricos dispostos na observação disciplinada das
hipóteses de trabalho (KUPPER,1973, p.15-20). A este respeito, dois autores saltaram à
frente: Radcliffe-Brown e Malinowski. A despeito das controvérsias sobre o impacto das
respectivas trajetórias no campo antropológico, interessa-nos apenas o que ambos
legaram à montagem do método funcional, pois um e outro cientista social estiveram
compromissados em apreender e, desde aí, intervir sobre as premissas da Escola Francesa,
inserindo elementos que tanto corrigiram alguns aspectos quanto preencheram lacunas
presentes ao esquema do sociólogo francês.
Aliás, é com o espírito de renovar, para fortalecer a antropologia social como um
ramo da ciência natural, já que seria a disciplina teórico-natural devotada ao estudo geral
do homem, apanhando-o como objetividade em suas leis fundamentais, que Alfred

5
Escola Francesa, composta pelo próprio Durkheim, tendo no seu sobrinho Marcel Mauss
não apenas um continuador criativo, mas também um parceiro na confecção de um
patrimônio teórico indiscutível deixado aos estudos socioantropológicos.
Reginald Radcliffe-Brown irá travar contatos justamente com Durkheim e Mauss. Na
época, após passar pelo cargo de professor (reader) de etnologia na London School of
Economics, o então jovem antropólogo (nascido em 1881) dava aulas de sociologia
comparada na Universidade de Cambridge, discutindo o ritual do potlach entre os povos
da costa do Pacífico da América do Norte – tema do célebre estudo de Mauss, Ensaio
sobre a Dádiva. Graduado em ciência mental e moral, com ênfase em economia e
psicologia experimental, ainda cedo, Radicliff-Brown se mostrou pouco propenso aos
estudos de antropologia física, embora tenha adquirido subsídios conceituais na área pelo
tempo em que esteve nas Ilhas Andaman e pela atuação como etnólogo do Transvaal
Museum. Porém, como ele próprio relata, perseguindo os objetivos de pesquisa para
realizar o seu doutorado, a maior dificuldade em sistematizar os dados coletados estava
concentrada na ausência de recursos metodológicos que o permitisse uma reconstrução
hipotética do povo andamaneses. Lacuna a qual, conclui, conduzia a realizar uma história
especulativa com resultados poucos ou em nada promissores à compreensão da vida e
cultura humanas. É longo o lapso entre a defesa da tese de doutoramento e a publicação
desta, em livro: de 1914 a 1922, devido o eclodir da Primeira Guerra Mundial. É neste
ínterim que o autor conhece Durkheim e o acontecimento muda os rumos do seu trabalho,
levando-o a reescrever a tese, agora, com forte influência do esquema analítico do
sociólogo francês, mediante a introdução das duas seguintes categorias: “significado”
(próxima a de “representações coletivas”) e de “função social”. Sobre a primeira, é
exemplar o trecho: “O significado de uma palavra, um gesto, um rito, está no que ele
expressa, e isso é determinado por suas associações com um sistema de idéias,
sentimentos e atitudes mentais.” No que tange o emprego do conceito de função social,
ele assevera em outra passagem: “(...) para denotar os efeitos de uma instituição (costume
ou crença) enquanto concernente à sociedade e sua solidariedade e coesão.” Deste modo,
Radcliff-Brown aprofunda o estudo da organização social em The Andaman Islanders,
observando a conjunção de cerimônias, crenças e mitos. Sua hipótese para a interpretação
que faz dos ritos nativos deixa patente a incorporação do esquema intelectual-normativo
de cunho funcionalista. Cito-o:

Uma sociedade depende, para a sua existência, da presença nas mentes de seus
membros, de um certo sistema de sentimentos pelos quais a conduta do indivíduo é
regulada de acordo com as necessidades da sociedade. 2) Cada aspecto do próprio
sistema social e cada evento ou objeto que, de qualquer modo, afeta o bem-estar ou
a coesão da sociedade, se torna objeto desse sistema de sentimentos. 3) Na
sociedade humana, os sentimentos em questão não são inatos, mas sim
desenvolvidos pelo indivíduo pela ação da sociedade sobre ele. 4) Os costumes
cerimoniais de uma sociedade são um meio pelo qual os sentimentos em questão
recebem expressão coletiva em ocasiões apropriadas. 5) A expressão cerimonial
(isto é, coletiva) de qualquer sentimento serve tanto para mantê-lo no grau
necessário na mente do indivíduo como para transmiti-lo de uma geração para outra.
Sem tal expressão, os sentimentos envolvidos não podem existir. (RADCLIFF-
BROWN, 1964, p.233-234).

O procedimento analítico já detém seus contornos claros e deslinda os propósitos


nele inscritos. O estudo dos rituais, ao ouvir os significados, absorvendo os sentimentos
que compõem a atmosfera afetiva do evento, inclina-se para a função social, ou seja,
vasculha os matériais empíricos e procede a construção de um modelo teórico explicando
em que medida a sociedade depende da aspiração pelos seus componentes dos mesmos
sentimentos para se manter como solda entre eles. Deixo para trás, sem explorar, as
indicações dadas pelo autor visando os caminhos a serem percorridos pelos potenciais
intérpretes na decomposição das cerimônias e ritos, com a meta de atingir os sentimentos
neles veiculados – algo pertinente a uma abordagem antropológica da obra de Brown.
Para os objetivos de uma análise de teoria social, o mais interessante é reter a maneira
como ele encadeia os conceitos e assim, estabelece o nexo categorial que faculta, ao
mesmo tempo, a grade teórico-doutrinária e o aporte metodológico do esquema estrutural-
funcionalista. Exatamente isto merece ser frisado: em Radcliff-Brown, o desdobramento
da matriz intelectual-objetivista e funcional se ocorre pelo tratamento mais apurado,
porque distingue analiticamente os conceitos de estrutura e função. Vejamos,
esquematicamente, tal encadeamento.
Embora parta da ideia de função, inspirado em Durkheim no modo de traduzir as
premissas biológicas em proposições sociológicas, ele procura escapar de uma apreensão
teleológica da mesma, redefinindo-a como “condições necessárias de existência”, ou seja,
defende a tese de que há “condições necessárias de existência para as sociedades
humanas, do mesmo modo que há para os organismos animais, e que elas podem ser
descobertas pela pesquisa científica adequada.” (Op.cit., p.220-221). Sua proposta a
respeito da doutrina funcional é ver um povo como um todo, isto é, como unidade
funcional e, sob este aspecto, a função compreende uma hipótese inicial de trabalho,
considerando que cada parte da comunidade social pode possuir uma função; trata-se,
portanto, de uma pressuposição que deflagra e dinamiza a investigação, na busca de leis
sociológicas importantes, que permitam generalizações científicas calcada em
sistemáticas verificações e demonstrações empíricas. Nota-se o empenho do autor de
transportar ao campo das ciências sociais o postulado central das ciências naturais, desde
Newton e Galileu, quer dizer, a “investigação sistemática da estrutura do universo tal qual
nos é revelado através dos sentidos.” (Op.cit., p.234). O interesse pelo geral quer
corroborar o que seria o interesse científico natural pelas generalidades – as leis. A
generalidade intelectual-científica não está em correspondência direta com a realidade
concreta, pois não tem acento maior as variações, ainda que estas não sejam totalmente
desconsideradas. A estrutura social implica, então: a) relações de pessoas e b)
diferenciação de indivíduos e classes por seu desempenho social. A generalidade dotada
da possibilidade de permanência histórica, portanto, não é confundível com a duração de
algum dos seus membros individuais e mesmo o espaço que ocupa corresponde a um
mapeamento das relações estabelecidas entre si por um povo e, também, com outros
povos. Se estes são imprescindíveis para o estudo antropológico, o são não enquanto
unidades biológicas e sim, enquanto pessoas – “(...) um complexo de relacionamentos
sociais (...), a certo lugar na estrutura social”. A forma da estrutura social resulta da
descrição de padrões de conduta seguidos pelos indivíduos e grupos no trato mútuo entre
si (BROWN, 1973, p.244).
Com o intento de detalhar o conceito, Brown propõe entender tais condições
necessárias como um sistema de relações, numa espécie de série relacional entre
entidades. As relações correspondem a atividades e interações processadas que são
responsáveis pela constituição mesma do sistema, ou seja, pela concorrência na busca do
interesse comum, segundo um mesmo valor social. O processamento composto dessas
atividades e interações é o que ele chama de funcionamento. Nesse sentido, a função diz
respeito ao papel desempenhado pela parte contribuindo à vida do organismo e, logo,
possuidora deste significado, do valor social atribuído pelo conjunto do uso (BROWN,
1973, p.222). O funcionamento destas valências, enquanto condutas dotadas de padrões
específicos, o autor conceitua de instituições.
A estrutura social é, portanto, a contrapartida do conglomerado formado por
entidades essenciais que são os indivíduos, os quais estão interagindo em uma série de
relações sociais precisas em uma totalidade orgânica, porque integrada enquanto um
consenso valorativo; totalidade que consiste em uma espécie de contrato tácito e é
somente parcialmente manifesto em formas conscientes. Delineia o autor:

A continuidade da estrutura social, como da estrutura orgânica, não é destituída


pelas mudanças das unidades. Os indivíduos podem deixar a sociedade, por morte
ou de outro modo; outros podem entrar nela. A continuidade da estrutura é mantida
pelo processo da vida social, que consiste de atividades e interações dos seres
humanos como indivíduos, e dos grupos organizados nos quais estão unidos. A vida
social da comunidade é definida aqui como funcionamento da estrutura social. (Op.
cit., p.223).

Logo, a função social comparece como a atividade periódica necessariamente


implicada com a manutenção da continuidade do concerto estrutural (Op. cit., p.222-223).
Segundo propõe, no caso da sociedade humana, podemos observar a estrutura social
apenas em movimento, com raras exceções. Assim, conclui, a sociedade muda o seu tipo
estrutural, sem com isto implicar na quebra de continuidade, graças à unidade funcional,
ou seja, pela condição na qual “todas as partes do sistema social atuam com suficiente
grau de harmonia ou consistência interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que
nem podem ser solucionados nem controlados.” (Op. cit., p.224). Deste modo, Brown
revisa a questão da patologia social tal como posta por Durkheim. Para ele, as
sociedades...

(...) não morrem no mesmo sentido que os animais e, portanto, não podemos definir
disnomia como o que leva, se não controlado, à morte de uma sociedade. Ademais,
uma sociedade difere de um organismo no sentido de que altera seu tipo estrutural,
ou pode ser absorvida como parte integral de uma sociedade mais vasta. Por
conseguinte não podemos definir disnomia como perturbação das atividades usuais
de um tipo social (como Durkheim tentou fazer). (Op. cit., p.225).

Com isto, ele classifica três ordens de questões a serem problematizadas:

a) morfologia: o estudo das espécies de estruturas, suas semelhanças e


diferenças, modos de classificação;
b) fisiologia: atém-se ao modo como funcionam as estruturas, dando
relevo a natureza dos processos sistêmicos;
c) desenvolvimento: ocupa-se dos temas da evolução e
desenvolvimento dos organismos, com interesse pela emergência
nos novos tipos.

No recurso a essas três linhas interligadas de aspectos, nota-se o lugar destacado


que o tema sistêmico-estrutural ocupa no raciocínio do autor, aliando-se ao método
comparativo e, por este, estabelecendo nexo com a pesquisa empírica de campo, de
acordo com o objetivo de obter uma classificação geral das estruturas sociais. E isto
remete à maneira como, Brown, retoma a problemática da evolução social. Tendo por
referência a evolução biológica, ele distingue: a) “no curso dela pequeno número de
espécies de organismos enseja um número maior de espécies; b) mais complexas formas
de estrutura orgânica vêm à existência pelo desenvolvimento a partir de formas mais
simples” (Op. cit., p.250). Donde conclui que:

Deste modo, o processo da história humana que se poderia chamar de evolução


social, a meu ver apropriadamente, poderia ser definido como o processo pelo qual
sistemas de grande amplitude de estrutura social engendraram ou substituíram
sistemas menores. Aceitável ou não este parecer, sugiro que o conceito de evolução
social seja aquele que exige ser definido em termos de estrutura social. (Op. cit.,
p.251).

Eis o núcleo do desacordo com Malinowski, outro eminente antropólogo inglês da época.
Este último destina um lugar secundário ao problema da evolução e encerra o predicado
decisivo à definição da estrutura social nos estudo do modo como se sincronizam os
fatores constitutivos de um processo cultural por intermédio da função que cumprem.
Controverso, este polonês nascido em Cracóvia em 1884 deixou as ciências exatas
rumo à antropologia devido ao impacto provocado pela leitura de The Golden Bough de
James Frazer. A motivação determina o deslocamento para Leipzig na Alemanha, aí deu
continuidade aos estudos na área psicoantropológica, sob a orientação de Karl Bücher e
Wilhelm Wundt. Desta base extraiu os recursos para ingressar na pós-graduação da
London School of Economics, onde em 1913 é admitido como professor, na situação de
lecturer on special subjects.
A inserção nos domínios antropológicos ocorre, justamente, em um instante em
que se dava intensamente a substituição da atitude do intelectual de gabinete, empenhado
no trato especulativo com problemas teóricos, pelo pesquisador comprometido com a
observação direta e sistemática dos povos estudados, capacitando-o testar hipóteses e
dispor suas interpretações vinculadas aos corpus empíricos. Em meio a tal atmosfera, ao
lado de Radcliff-Brown, Malinowski se esforça por fazer a avançar o arsenal teórico da
antropologia e, para isso, submete ao crivo os dois principais estatutos teórico-
metodológicos em vigência – o evolucionismo e o difusionismo. E como o
contemporâneo, é tenaz em defender a correlação entre método e pesquisa de campo e
em ambos os autores, as influências durkheimianas se manifestam no recurso ao conceito
de função e integração funcional. Um e outro conceito são empregados para contornar o
que aos dois jovens intelectuais parecia frágil na atuação dos antropólogos até então: tanto
a desconexão entre as categorias analíticas e as sociedades estudadas quanto a tendência
a isolar aspectos destas últimas, não as reconhecendo partes de uma totalidade. E, pior,
eliminar a particularidade de cada um desses conjuntos significativos em nome de
generalidades.
Por conta de uma estada, entre 1914 a 1918, por áreas banhadas pelo oceano
Pacífico, abarcando a Austrália e a Nova Guiné, pode exercitar sua postura de pesquisador
informado pelos princípios que defendia. Escreve e publica três artigos nos quais expõe
os resultados desses estudos: The Family Among the Australian Aborígines, uma
monografia sobre os Mailu e edita Baloma: spirits of the dead in the Trobriand Islands.
Mas apenas com a edição do célebre Argonautas do Pacífico Ocidental atinge o propósito
de refinamento do seu esquema analítico. Nesta obra, ele aplica ao pé da letra os critérios
da observação participante, assim, minimiza o exame colhido por meio dos relatos obtidos
entre alguns nativos em favor do procedimento calcado na longa permanência do
pesquisador no sítio estudado. Algo assim, além de viabilizar perspectivas diferentes na
compreensão da realidade local pelo agente da pesquisa, dota este da condição de penetrar
no cotidiano daquele povo e apreender diretamente as dinâmicas internas aos ritmos da
comunidade e desvelar os fundamentos da topologia separando público e privado,
objetivo e subjetivo. Ao mesmo tempo, torna-se apto a discernir em torno do que orbitam
os fazeres e a arquitetura classificatória e ideacional dentro da qual se situam as normas,
os credos, os ritos e os ditos. Para daí dar conta das instituições e dos códigos, chegando
assim ao entendimento sobre quais as estruturas estavam subjacentes ao dia a dia aldeão.
Enfim, para o autor, o estudo da vida tribal se encerraria na observação desta triangulação:
1) rotina estabelecida pela tradição; 2) a maneira como se desenvolve essa rotina; 3) o
comentário à resposta dela, contido na mente do nativo. O objeto antropológico, enfim,
deixar-se-ia ver no exame dos modos estereotipados de pensar e sentir (MALINOWSKI,
1976, p.36).
Para isso, caberia ao observador se aculturar e se nutrir das categorias nativas com
a finalidade imergir naquela realidade à princípio exótica enquanto alteridade simbólica.
Mas o princípio gerador dessa postura e dos procedimentos que adota se funda na
proposição teórica a respeito de duas leis gerais a serem identificadas e explicadas pelo
pesquisador, mas à luz do material coletado pela observação participante, sem se
confundir com as concepções dos membros das sociedades em foco; fenômenos
sintetizados e expressos pelos respectivos conceitos de cultura e de função. O primeiro
diz respeito à maneira como o Malinowsky retoma a ideia de instituição para obter a
imagem de uma totalidade multidimensional, para ela concorrendo os planos político,
econômico, jurídico, instrumental e cognitivo, religioso, entre outros. Igualmente envolve
os aspectos do parentesco, cosmológicos, da cultura material e da organização social.
Assim, no texto dos Argonautas, Malinowski elege o ritual trombriandes do Kula para,
na observação das correlações possíveis naquele arranjo sociocultural, expor quais os
fatores de integração e coerência sobressaiam a partir da descrição etnográfica, deixando
ver a totalidade integrada ali em questão, ou seja, a regularidade institucional emergiria
das relações interpessoais concretas e nas coisas e objetos que delas coparticipavam em
suas tantas dimensões experienciais sintetizadas nos costumes, as quais são vivificados
pelas pessoas entregues inopinadamente à realização dos seus próprios interesses, ao
sabor dos ditames da sobrevivência e das suas aspirações e afetos:

Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias ambições,
seguem a seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade. Em cada
cultura encontrarmos instituições diferentes, nas quais o homem busca seu próprio
interesse vital; costumes diferentes através dos quais ele satisfaz às suas aspirações;
diferentes códigos de lei e moralidade que premiam suas virtudes ou punem seus
defeitos. Estudar as instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento
e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos
quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é para ele, a essência de sua
felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar o
estudo do homem. (Op. cit., p.38).

Contudo, afirma o autor, elaborar conceitualmente o esquema mental básico a uma


teoria inscrita em determinada tradição cultural não equivaleria supor semelhante
entendimento e virtual tradução conceitual por parte dos nativos:

(...). Não há códigos de lei, escritos ou expressos explicitamente; toda a tradição


tribal e sua estrutura social inteira estão incorporadas ao mais elusivo dos materiais:
o próprio ser humano. Mas nem mesmo na mente ou na memória do nativo se
podem encontrar estas leis definitivamente formuladas. Os nativos obedecem às
ordens e à força do código tribal, mas não a entendem., do mesmo modo como
obedecem aos seus instintos e impulso, embora sejam incapazes de formular
qualquer lei da psicologia. As regularidades existentes nas instituições nativas são
resultado automático da ação recíproca das forças mentais da tradição e das
condições materiais do ambiente. Da mesma forma que os membros mais humildes
de qualquer instituição moderna – seja do Estado, a igreja, o Exército, etc. –
pertencem a ela e nela se encontram, sem ter visão da ação integral do todo, menos
ainda, sem poder fornecer detalhes de sua organização seria inútil interpelar o
nativo em termos sociológicos abstratos. (Op. cti., p.28).
É notável o empenho de Malinowsky em reverter a atitude costumeira até então na
antropologia, qual seja, de privilegiar a forma em detrimento da função. Para ele, ao
contrário, o conceito de instituição assinalava a convergência entre ambas e o problema
básico estaria em explicitar conceitualmente a conexão forma e função, o qual seria
elucidado na determinação da primeira pela última (MALINOWSKI, 1962, p.145). À luz
dessa prerrogativa, Malinowisk persevera a proposição de que se trata a cultura do meio
à realização de um fim instrumental e funcional. Conduzir essa assertiva decorre da
postulação, por ele abraçada, de que são indissociáveis, nas atividades humanas, os planos
fisiológicos e culturais, afinal haveria uma...

(...) constante interação entre o organismo e o meio secundário em que ele existe,
ou seja, a cultura. Em suma, os seres humanos vivem por normas, costumes,
tradições e regras, que são o resultado de uma interação entre processos orgânicos
e manipulação e recomposição de seu ambiente pelo homem. (Op. cit., p.71).

Os costumes são apresentados pelo autor justamente como “formas


tradicionalmente reguladas e padronizadas de comportamento corporal” (Idem, ibidem).
Na raiz da tradução e resposta cultural às determinações advindas da natureza humana
com suas funções elementares de respirar, dormir, nutrir-se, repousar, excretar e
reproduzir, estariam as condições ambientes e biológicas de satisfação dessas carências
elementares e igualmente, estas últimas, constituiriam o alicerce à complexificação
mesma das necessidades e também de...
Tudo o que se relaciona com a nutrição humana, o sexo e o ciclo de vida, inclusive
nascimento, crescimento, maturidade e morte, é invariavelmente cercado de
perturbação fisiológicas no corpo e no sistema nervoso do participante e seus
associados. Isto sugere, uma vez, mais, que se desejamos abordar as dificuldades e
complexidades de comportamento cultural, temos que relacioná-los a processos
orgânicos no corpo humano e àquelas fases concomitantes de comportamento a que
chamamos desejo ou impulso, emoção ou perturbação fisiológica, e as quais, por
uma razão ou por outra, têm que ser reguladas e coordenadas pela aparelhagem de
cultura. (Op. cit., p.76).

No momento, então, em que propõe uma Teoria Científica da Cultura, Malinowski


escuda-se nesta indissocialidade entre necessidades biológicas, ambiente e dimensão
institucional da vida humana para elencar o que seriam os cinco axiomas gerais do
funcionalismo:

A. A cultura é essencialmente uma aparelhagem instrumental pela qual


o homem é colocado numa posição melhor para lidar com os
problemas específicos concretos que se lhe deparam em seu
ambiente, no curso da satisfação de suas necessidades.
B. É um sistema de objetos, atividades e atitudes, no qual cada parte
existe como um meio para um fim.
C. É um integral na qual os vários elementos são interdependentes.
D. Essas atividades, atitudes e objetos são organizados em torno de
tarefas importantes e vitais, em instituições tais como família, o clã,
a comunidade local, a tribo e as equipes organizadas de cooperação
econômica, política legal e atividade educacional.
E. Do ponto-de-vista dinâmico, ou seja, no tocante ao tipo de
atividade, a cultura pode ser analisada numa série de aspectos tais
como educação, controle social, economia, sistema de
conhecimento, crença e moralidade, e também modos de expressão
criadora e artística. (Op. cit., p.146).

Logo se ver que para o autor, enquanto artefato, os bens culturais são impreterivelmente
determinados pelos seus específicos usos, quer dizer, pelas funções e estas dizem respeito
sempre às malhas de cooperações entre indivíduos, conformando os “ambientes sociais”.
Decorre que todos os processos culturais abrangem o substrato material da cultura, os
modos padronizados de comportamento e os atos simbólicos, estes últimos entendidos
como as influências mútuas entre organismo por meio de estímulos-reflexos
condicionados. A totalidade de todo processo, por sua vez, se desenrolaria a partir da
função de satisfazer a necessidade primária da nutrição. Desde esse ponto de instauração,
o autor delimita os procedimentos analíticos informados doutrinariamente pelo
funcionalismo, partindo do imperativo de que sejam identificados alguns isolados ou
unidades possuidoras dos “limites naturais de coordenação e correlação” relativos à
totalidade cultural estudada, assim, voltamos à categoria de instituição, antes comentada.
O desdobramento necessário nesse percurso analítico é identificar a estrutura desse ente;
em outros termos, perscrutar e traduzir conceitualmente os estatutos internos que
fornecem a solda sistêmica de cada instituição. Os estatutos são exatamente os códigos
de regras constitucionais que se manifestam seja nas narrativas mitológicas seja no enlace
de valores básicos à integração dos comportamentos dos membros de um grupo (Op. cit.,
p.128).
O ponto de contato principal entre Malinowski e Parsons está, exatamente, por
ambos depositarem esperança de unificação entre as dimensões naturais (biopsicológicas)
e socioculturais. Parsons abraçou com força a tese sobre a “continuidade fundamental da
sociedade e da cultura como parte de uma teoria mais geral da evolução das espécies.”
(PARSONS, 1969, p.54-55). E sua tentativa de equilibrar uma teoria da ação voluntarista
com o primado estrutural o coloca em aliança com Radcliff-Brow e outros da mesma
linhagem. Portanto, no curso desta sumária síntese em que passamos em revista traços
bem gerais dos autores mais representativos da matriz funcional-estruturalista, embora
saltem aos olhos as variações de abordagens, é possível destacar como todos estão em
sintonia graças ao modo como relacionam a alternativa analítico-interpretativa sistêmica
para lidar com o problema em torno da coesão, integração e coerência de partes ajustadas
em um arranjo societal. Uma vez mais notamos como a teoria se define como um domínio
cognoscitivo-discursivo que se realiza na combinatória entre memória e evento, ajustando
assim o registro das elaborações textuais e apropriações destas em épocas pretéritas pelos
usos e condicionantes destes usos em uma situação histórico-institucional precisa. Com
isso, o alongado intergeracional tanto pavimenta a existência de uma tradição intelectual
quanto repõe, atualizando-a como horizonte hermenêutico e interpretativo, no estágio
relacional em que se encontra e em meio aos diálogos de que participa seus representantes
contemporâneos.
Ao focalizarmos Parsons, portanto, o que requer desde agora atenção é justamente
a maneira como ele realiza ambos os processos em sua obra e no repertório categórico-
conceito interno ao seu esquema analítico informado, fundacionalmente, pelo princípio
caro à tradição estrutural-funcionalista do comunitarismo, isto é, da supremacia do todo
sobre as partes.

* * *

Antes sublinhamos que o projeto intelectual de Parsons se encerra na reunião de


esforços para, ao sintetizar contribuições distintas no campo da teoria social, dotá-la de
uma teoria geral da ação. Igualmente chamamos atenção para a centralidade que a escrita
de The Structure de Social Action tem nesse projeto como o momento inaugural do
propósito de obter um funcionalismo sistêmico. Por outras palavras, a proposição teórica
se funda sobre a tese de que os sistemas sociais são, em última instância, sistemas de
ações e o tratamento analítico da estrutura desses sistemas opera desde o princípio sobre
a existência empírica generalizada de pautas institucionalizadas e não diretamente em
termos de ação. Algo assim conduz ao estudo de dinâmicas processuais de ações
consideradas à realização de papéis institucionalizados inscritos em equilíbrios, os quais
por sua vez estão sob o duplo registro: ou da conformidade ou do desvio frente às
expectativas de papéis sancionados socialmente, mas igualmente de expectativa de papéis
em conflito no tocante ao “indivíduo e as constelações de forças e mecanismos
motivacionais implicados em tais balanças e conflitos.” (PARSONS, 1968, p.25).
Atendo-nos tão-somente ao construto lógico-conceitual do projeto, observamos
que lhe interessa a pavimentação do caminho epistemológico da sociologia, o que perfaz
o tema mais geral da obra. Vale ressaltar, porém, que o intento esteve circunscrito à
iniciativa de dar uma contribuição à sistematização teórico-metodológica das ciências
sociais e não privilegiando uma abordagem histórica. Daí por que o enfoque principal do
livro é o tratamento estrutural-funcionalista ao problema da motivação, angulando-o do
vínculo com as pautas culturais. Isto quer dizer que o marco do interesse está na atenção
analítica aos problemas dinâmicos...

(...) no contexto de sua relação tanto com a estrutura de um sistema como com a
relação entre os processos e pré-requisitos de sua manutenção (que) fornecem um
marco de referência para julgar o significado geral de um arranjo e para perseguir
sistematicamente suas interconexões com outros problemas e fatos. (Idem, ibidem).

Tal evolução, para o autor, se centra nas relações entre os planos psicológicos e culturais
da teorização sociológica, mas desdobradas em duas vertentes, as quais delimitam os
objetivos inerentes à proposta da obra. A primeira, de natureza doutrinário-conceitual,
corresponde à elaboração e aprimoramento teórico da análise estrutural-funcional dos
sistemas sociais entendidos à luz da estrutura da ação social. Já a segunda é propriamente
metodológica, no instante em que se volta para a operacionalidade de técnicas de
investigação informadas pelo vocabulário conceitual resultante da elaboração anterior. O
que, enfim, traduz a intenção de uma revisão capaz de promover uma síntese cuja
finalidade é revelar uma transição e transposição de um nível a outro de sistematização
teórico-conceitual, ao se recorrer aos esquemas legados por nomes decisivos da teoria
social. Dessa maneira, esta última diz respeito ao corpo de uma mesma unidade, a
despeito da tantas “escolas” que no seu interior concorrem no intervalo de um período
histórico. Interessa-lhe justamente as contribuições à montagem do corpo doutrinal,
perseverando esclarecer a estrutura e a utilidade empírica do sistema teórico fundado
sobre um grupo de conceitos interconectados em relação a problemas empíricos que os
transcende e integram.
O recurso às obras de Marshall, Durkheim, Pareto e Weber, assim, obedece a um
critério de agrupamento calcado nos problemas empíricos internos às suas respectivas
interpretações do capitalismo enquanto moderno sistema econômico caracterizado pelo
“regime de empresa” e o “individualismo econômico”. Se o entendimento elementar ao
livro, logo, é tomar a teoria social como um único corpo de raciocínio sistemático cujo
desenvolvimento pode ser rastreado mediante uma análise crítica dos escritos que o
possibilita, incluindo àqueles seus predecessores, Parsons prioriza o estudo sobre o
trinômio composto pelos vieses utilitarista, do idealismo e, ainda, o positivista,
relacionando-os à questão capitalista. É isto que o leva anotar a centralidade gozada pela
ação humana no raciocínio utilitarista, enquanto enxerga no positivismo um esforço para
equiparar as ciências sociais às naturais evocando a objetividade das últimas e destaca
finalmente o quanto a dimensão espiritual da humanidade é ressaltada pela corrente
idealista.
A hipótese do livro vem a reboque da suspeita deixada por Herbert Spencer ao
perseguir as motivações histórico-estruturais para, na Europa Ocidental, terem se
conjugados os elementos que levaram à transição culminada no advento da sociedade
industrial. Entende Parsons que a resposta que oferece Spencer está subordinada à
centralidade valorativa do individualismo aspirada pelo próprio autor inglês, a qual se
manifesta no pressuposto de que a iniciativa individual na busca dos seus interesses
possibilita à satisfação das necessidades coletivas. Nesse sentido, a concepção sobre a
religião que abraça, refutaria a atividade religiosa como face de um estágio primitivo
dominado pela ignorância e o erro, tendência que teria sido suplantado à medida que a
razão científica se impôs. No entanto, conclui Parsons, os inconvenientes lógico-teóricos
estavam na indagação sobre os efeitos da ciência sobre a ação humana, principalmente
no tocante ao primado individualista, afinal, ao ser mantida a prerrogativa evolucionista,
então, como entender e explicar o caminho que leva da religião à ciência. Nesse
acompanhamento que empreende, Parsons verifica espécie de revolução cognoscitiva e
esta seria intrínseca ao surgimento sob a esteira da refutação empírica às interpretações
fundadas sobre a perspectiva do evolucionismo linear. Cada vez mais se daria margem a
teorizações voltadas para encaminhamentos cíclicos e, por outro lado, ele percebe como
no caudal desta circularidade ocorreria a ascensão de propostas que substituem o primado
individualista pela centralidade do coletivo. O socialismo seria exemplar a respeito.
Ainda nesse bojo viria à tona uma série proposições deixando em xeque a primazia da
razão em favor de outros aspectos na orientação e coordenação das condutas humanas.
Com isto, o autor se impõe a tarefa de compreender a origem e motivação para semelhante
corte e, a seu ver, estaria no desenvolvimento imanente do corpo mesmo da teoria social
a base da mesma alteração qualitativa apontada pelo seu exercício interpretativo. O que,
portanto, justificaria o esforço dele em apreender a teoria como um sistema integrado, no
interior do qual as proposições gerais consistem em enunciados sobre um modo de
relações entre fatos e tais modos estão em mútuas relações lógicas, ou seja, de
intercâmbios necessários na formulação de sínteses de conhecimento e, simultaneamente,
delimitando o que se faz imperativo conhecer.
O propósito de acompanhar o processo geral do desenvolvimento imanente da
ciência mesma é solidário ao tema do livro, no instante em que este último diz respeito à
emergência da “teoria voluntarista da ação” como um sistema teórico recentemente
agregado ao pensamento social. A iniciativa do autor, ao longo da obra, reside na
verificação de como este sistema teórico é afirmado pelos seus defensores nas suas
categorias positivas frente ao que chama de “categorias residuais”, isto é, um envolto de
obscuridade que cerca as certezas basilares do próprio sistema, mesmo o deixando em
contradição com os seus pilares lógicos. Entorno obscuro inerente ao movimento no qual
se pergunta sobre as condições próprias de formulações de um sistema teórico voltado ao
enfrentamento de questões empíricas, como observa o autor:

(...). Ao estudar a obra empírica de um homem, a pergunta formulada não será


simplesmente: que opinião tinha acerca de certos fenômenos concretos? Nem,
incluindo, o que tem contribuído, em geral, a nosso “conhecimento” destes
fenômenos? As primeiras perguntas serão, mais precisamente: que razões teóricas
tinha para se interessar por estes problemas concretos em lugar de outros? E em
que medida contribuem os resultados de suas investigações à solução de seus
problemas teóricos? Depois, por sua vez? Em que medida contribuíram os
conhecimentos obtidos por estas investigações à formulação de seus problemas
teóricos e, através disto, a revisão de seu sistema teórico? Assim, pois, o
verdadeiramente interessante com respeito a Durkheim no é que haja estabelecido
o dato de que a taxa de suicídio no exército francês foi, durante certo tempo,
consideravelmente mais alto que entre a população civil. Os interessados por esse
fato, em si, podem consultar seu estudo. O que agora interessa é precisamente: por
que ocorreu a Durkheim estudar o suicídio? E qual é o significado para sua teoria
geral deste e de outros fatos que estabeleceu no curso de suas investigações do
mesmo? (Op. cit., p.51).

De acordo com as prerrogativas defendidas por Parsons, se trata, na escuta do


desenvolvimento imanente da ciência, de ater-se como observações empíricas associadas
a categorias positivas de um sistema teórico se transformam qualitativamente no
movimento crítico decorrente da renovação da própria verificação empírica. E isto traduz
para ele a proposição de que o progresso do conhecimento condiz com a alteração
qualitativa da estrutura dos sistemas teóricos e não ao mero acúmulo de dados. Ao situar
o objeto do estudo de The Structure of Social Action neste marco, o autor burila a
motivação que o levou à proposta do livro; empenho movido pelo objetivo de
compreender o enlace entre certeza e ambiguidade envolvendo a costura alinhavando, no
mesmo corpo doutrinário, ação humana e racionalidade pelo viés da teoria da ação
voluntarista. Cito-o na passagem em que desvela o propósito à luz do tipo de opção feita
na distribuição analítica do corpus estudado:

O ramo utilitário do pensamento positivista se tem centrado, em virtude da estrutura


do sistema teórico, em uma gama determinada de observações empíricas concretas
e de problemas conexos. O fato central – um fato fora de toda dúvida – é que, em
certos aspectos e até certo ponto, assim como em determinadas condições, a ação
humana é racional. Ou seja, que os homens se adaptam a sua situação e adaptam os
meios a seus fins, buscando o modo mais eficaz de conseguir estes fins; e “se sabe”
que as relações entre estes meios e condições e a consecução dos fins são
intrinsecamente verificáveis pelos métodos da ciência empírica. Desde logo, este
postulado contém um número considerável de termos que tem sido, e são todavia,
ambíguos. Sua definição é uma das tarefas do presente estudo. Só esta série de
observações de fato e os problemas teóricos nelas implicados constituem o tema da
primeira análise. A tarefa das duas primeiras partes do estudo é a de rastrear seu
desenvolvimento desde um sistema teórico até o outro. No processo tem sido, em
essência, o que acabamos de descrever: um processo consistente em centrar a
atenção sobre, e em extrair conceitos teóricos positivos das categorias residuais
inseridas nas diversas versões do sistema inicial. (Op. cit., p.54).

A eleição do percurso atende, por sua vez, ao primado de entender a metodologia como
a consideração dos fundamentos gerais de validez das proposições de um estudo ante as
observações realizadas. No caso em questão, o estudo do sistema teórico da ação
voluntarista, estará em pauta o encadeamento observando a unidade priorizada na análise
em suas conexões com outras partes. Assim o enunciado lógico da proposta do livro é
descrito a partir do objetivo de apreender o traço estrutural do sistema da ação social, por
isto, ele nos diz no trecho a seguir:

O estudo das partes ou unidades dos sistemas de ação é naturalmente classificável


em dois grupos: a da definição e classificação das unidades elementares e o da
determinação das relações relevantes das unidades nos sistemas. No último pode,
aos efeitos presentes, denominar-se das relações estruturais. O esquema
fundamental do presente estudo pode, pois, considerar-se uma análise do aspecto
estrutural dos sistemas de ação; em certo sentido, sua “anatomia”. Convém chamar
a atenção a que, em relação com os mesmos fenômenos concretos, cabe levar a
análise estrutural a muitos níveis distintos. As relações mútuas dos quatro esquemas
privilegiadamente mencionados são, fundamentalmente, as dos diferentes níveis a
que se descreve “a estrutura social”. Destes quatro, em qualquer caso, o que nos
interessa aqui, o da “ação”, deve considerar-se a estrutura social na medida em que
pode se expressar de acordo com o esquema da ação. Daí o título: A Estrutura da
Ação Social. (Op. cit., p.77).

No encadeamento dos capítulos, Parsons se debate com a herança do utilitarismo. A seu


ver, caberia propor outro marco interpretativo ao caudal da formulação da teoria da ação
que ultrapasse o parâmetro da ação racional pelo qual o indivíduo orienta sua conduta
pela norma da eficiência, no tocante à adaptação às condições externas. E isto, ele
acredita, deixa a teoria social a mercê do perigo atomista quando se trata de obter um
entendimento seguro da questão da ordem, na medida em que ressalta um individualismo
que deixa a ideia de ordenamento numa situação aleatória de instabilidade, por se
subordinar aos atos de cada indivíduo visando garantir a realização dos seus interesses.
Parsons assinala a inconsistência do argumento liberal-utilitarista, pois este seria incapaz
de explicar como os esforços de um agente (a agência) em afirmar suas metas escapa
qualquer controle sobre as demais metas vinculadas às vontades alheias a sua. Com isto,
ele propõe que a obtenção de êxito ou não por parte dos agentes requer um olhar atento à
situação e esta escapa em grande medida ao controle do agente e pode favorecer ou
obstacularizar o seu acesso aos recursos, meios para ação que tornem viável a
exteriorização das suas intenções. De acordo com Parsons, seriam efetivamente
importantes aquelas restrições que permanecem inalteradas – as normas. Estas
compreenderiam pautas compostas por expectativas ideais presentes às interpretações das
diversas subjetividades, mediante às quais os indivíduos podem julgar a situação. Se as
ações dos indivíduos adquirirem ajuste relacional com a situação graças à intervenção das
mesmas normas, são elas os fatores por trás do êxito deles em ou não atingir suas
finalidades.
Na medida em que alia integridade individual e razão como um controle social
mais amplo, Parsons propõe uma alternativa analítica multidimensional fundada na
concepção de um voluntarismo indissociável da restrição normativa. Para isto ele redefine
a compreensão da unidade-ato, anotando a existência nela de planos subjetivos e
objetivos, tentando equilibrar as ordens instrumental e normativa. Os esforços e os meios
fatores objetivos estariam, portanto, na contrapartida dos eixos reguladores. A ação
estaria assim tensionada por um e outro plano; ambos também se entrecruzariam nas
grandes tradições que pavimentaram o caminho da teoria social. Para ele, se a ênfase recai
nas normas, as tradições idealistas tendem ao coletivismo; já se priorizam o esforço, vão
para o individualismo. No caso do viés materialista, ao se privilegiar as condições,
teríamos coletivismo; se por ventura abraça-se os meios, a opção é individualista.
Como observa Giddens, a ideia de voluntarismo em Parsons é, desde início, concebida
como vinculada à resolução do problema da ordem e esta é apresentada como a
“coordenação das vontades individuais potencialmente desintegradoras”. Cada vez mais,
Parsons se empenhará em demonstrar que a resolução da questão da ordem no trato com
o voluntarismo estará no estudo do modo como os atores internalizam, como motivos,
valores compartilhados, os quais são básicos à coesão social. Deste modo, no seu esquema
o empreendimento de explicar a ação tenderá à equação dos seguintes termos: de que
maneira é demonstrável a sintonia entre uma teoria psicológica da motivação e uma
interpretação sociológica das propriedades estruturais de sistemas sociais. O enunciado
leva o seu esquema para o interesse em relação aos consensos de valor ou mais
especificamente às ordens simbólicas. Torna-se alvo as interpenetrações entre o que ele
denomina respectivamente de “sistema social” e “sistema de personalidade”, mediante a
unidade-papel do sistema de interação. Cabe, a seu ver, à sociologia atuar de maneira
interdisciplinar com a finalidade de elucidar o problema em torno do ajuste entre sistemas
diferentes, por serem constituídos de distintos complexos de existências adaptativas e
integrativas. A questão em foco seria o tipo de coação que possibilita a interdependência
entre ambos. A solução encontrada pelo autor convergirá na direção da ideia
durkheimiana de que a “sociedade existe somente na mente dos indivíduos”. Esta
elucidação de fundo ideacional-cognoscitivo se realiza na opção pela premissa de que os
padrões constitutivos da estrutura de um sistema, para se obter a devida estabilidade, deve
ser igualmente constitutivo do sistema de personalidade. Logo, com o emprego da ideia
de cultura-comum o propósito está em demonstrar como tais padrões avançam para além
das fronteiras dos sistemas de personalidades integradas a uma interação, isto é, os
interpenetram.
Proposta que se manifesta quando, em parceria com Eduard Shills, edita Toward
a General Theory of Action (de 1951). Resultado dos estudos iniciados na década de 1940,
visando o entendimento da ação, o livro compreende a compilação de contribuições de
autores provenientes de campos disciplinares distintos das ciências humanas. Nesta obra,
Parsons e Shills apresentam o artigo “Values, Motives, and Systems of Action” com a
intenção de sintetizarem como se complementam os tipos de sistema de ação
(personalidade, cultural e social). É isto que o levará à redação de Social System.
Publicado também em 1951, o livro encerra um trajeto de pesquisas e formulações
teóricas iniciado após a edição de Structure of Social Action, em 1937. Ao longo deste
período os esforços de Parsons se dirigem no sentido de erigir um “enfoque sistemático
mais estrito da teoria sociológica como tal”. Com isto, o objetivo da obra está em
“sistematizar os elementos principais de um esquema conceitual para a análise da
estrutura e dos processos dos sistemas sociais.” Mas, como evidencia o autor, a proposta
do livro se mantém interna ao problema acerca do marco de referência da ação, o que
resulta no interesse de delimitar tanto o sistema de papéis institucionalizados quanto os
processos motivacionais organizados em torno deles. Em razão deste aspecto – e,
também, devida a sua atenção maior aos processos de intercâmbios econômicos e na
organização política – o livro se insere no escopo da teorização sociológica geral
integrada à teoria dos sistemas social cujo núcleo são os fenômenos de institucionalização
das pautas de orientação de valor nos papéis (PARSONS, 1966, p.17). Assim, neste
trabalho, Parsons assume sua dívida intelectual com Vilfredo Pareto, quem teria sido
pioneiro da percepção da importância do conceito de sistema no raciocínio científico e,
desde aí, teria se empenhado em delimitar o sistema social6.
O ponto de partida fundamental do livro, assim, é o conceito dos sistemas sociais
de ação. E este diz respeito ao entendimento de que a interação dos atores individuais
ocorre em circunstâncias específicas de reciprocidades, permitindo tratar analiticamente

6 A certa altura do texto Tratado Geral da Sociedade, em se debruça sobre os problemas das formas sociais, Pareto
encaminha seus esforços conceituais à definição própria ao emprego da ideia de sistema social. Vejamos: “2060.
Os elementos. A forma da sociedade é determinada por todos os elementos que atuam sobre ela e, uma vez
determinada, reage sobre os elementos; pode-se dizer, portanto, que acontece mútua determinação. Entre os
elementos podemos distinguir as seguintes categoriais: 1.) O solo, o clima, a flora, a fauna, as circunstâncias
geológicas, minerológicas, etc.; 2.) Outros elementos exteriores a uma da sociedade, em um dado tempo; isto
é, as ações das outras sociedades sobre a mesma, que são exteriores no tempo; 3.) Elementos internos, entre os
quais os principais são a raça, os resíduos, ou seja, os sentimentos que manifestam, as inclinações, os interesses,
a aptidão ao raciocínio, à observação, o estágio dos conhecimentos, etc. As derivações também entre estes
elementos.
2061. Os elementos que notamos que não são independentes, sendo na maior parte interdependentes. Por
outro lado, entre os elementos devem ser colocadas as forças que se opõem à dissolução, à ruína das sociedades
persistem; portanto, quando uma destas sociedades é constituída sob certa forma determinada por outros
elementos, atua por sua vez estes elementos, os quais, nesse sentido, devem também ser considerados em estado
de interdependência com ela. Algo mais se observa em relação aos organismos dos animais. Por exemplo, a
forma dos órgãos determina o gênero de vida, mas este, por sua vez, atua sobre os órgãos.
(...)
2066. De qualquer modo, seja pequeno ou grande o número dos elementos que consideramos, supomos que
constituam um sistema que chamaremos sistema social, e nos propomos estudar sua índole e propriedades.
Tal sistema muda de forma e de caracteres com o tempo, e, quando propomos o sistema social, entendemos este
sistema considerado tanto em momento determinado quanto nas transformações sucessivas que experimenta
em determinado espaço e tempo. Igualmente, quando se propõe o sistema solar, entende-se tal sistema
considerado tanto em um momento determinado quanto nos sucessivos momentos que compõem um espaço
de tempo pequeno ou grande.
2067. O estado de equilíbrio. Em primeiro lugar, se desejamos raciocinar um pouco rigorosamente, devemos fixar
o estado em que desejamos considerar o sistema social, cuja forma é, a qualquer hora, mutável. O estado real,
estático ou dinâmico, do sistema é determinado pelas suas condições. Suponhamos que se dêem artificialmente
algumas modificações na forma (movimentos virtuais), logo haverá uma reação no sentido de reconduzir a
forma mutável ao seu estado primitivo, levada em contra a mutação real. Se assim não fosse, essa forma e suas
mutações reais não seriam determinadas, mas permaneceriam ao sabor do acaso.” (PARETO, 1984, p.83-84-
85).
tais processos interativos como um sistema. Parsons aproxima sua abordagem dos
sistemas sociais de semelhantes análises voltadas a outras espécies de sistemas. A base
de referência da ação corresponde à “orientação” de um ou mais atores (em se tratando
de sistemas sociohumanos, organismos biológicos) em uma situação na qual estarão
outros atores. Se a ênfase recai na relacionalidade das unidades biológicas e/ou
biopsíquicas com as situações, onde estão inseridas outras unidades, são deixadas de lado
as propriedades internas às unidades, à exceção das influências diretas que tais estruturas
possam exercer sobre a relacionalidade sistêmica.
Com base no marco desta conceituação, a categoria de situação é definida como
o “objeto de orientação” e descrita enquanto diferentes ângulos de referenciamento de
atores, os quais estariam dotados de categorias com as quais se fazem aptos à
conformação de um conjunto. Em se tratando do problema da ação, o mundo dos objetos
é classificado em três classes: “físicos”, “sociais” e “culturais”. Para fins analíticos sobre
a orientação, nos termos parsonianos, pode-se eleger o objeto social correspondendo ao
ator, este poderá ser tanto outro indivíduo qualquer (alter) quanto o próprio ator, ao se
tomar como ponto de referência de si mesmo (ego), ou ainda determinada coletividade.
No bojo desta definição, os objetos empíricos ocupam a posição de meios e condições da
ação, já que não interagem no e reagem ao ego. Por sua vez, os objetos culturais implicam
em elementos simbólicos da tradição cultural, ideias ou crenças, símbolos expressivos ou
padrões de valores, mas desde que considerados inerentes à situação pelo ego e não sejam
internalizados e não integrem à estrutura da personalidade.
Conclui-se, com isso, que a categoria de ação traduz um processo revestido de
significação, o qual é inerente ao sistema ator-situação, ao se mostrar capaz de motivar o
ator – quer dizer, o indivíduo ou os membros de uma coletividade. Em outras palavras, a
orientação dos processos de ação diz respeito aos esforços dos atores visando obter
satisfações de fundo orgânico e, logo, excluir privações, sabendo estarem privação e
satisfação classificadas sob a égide das suas respectivas estruturas de personalidades e
das suas experiências. Isto significa que, de acordo com o esquema proposto no livro, as
necessidades básicas do organismo são ressaltadas apenas no marco da função
desempenhada pela relação do ator com a situação e com a história desta relação.
Portanto, as ações não dizem respeito a reações a estímulos situacionais. Na interpretação
sistêmica proposta, seria decisivo revelar e remontar em suas partes o sistema de
expectativas desenvolvido pelos atores em relação a vários dos objetos internos a uma
situação. Tais objetos apenas serão estruturados à luz das tendências particulares e
também das possibilidades de satisfações e privações vinculadas às alternativas de ação
que abrem. Em se tratando dos objetos sociais, adverte Parsons, delimita-se uma nova
dimensão analítica. E esta advém do fato de que parte da expectativa do ego,
majoritariamente mais importante, resulta da reação do outro à sua ação provável,
afetando diretamente suas opções.
O autor chama atenção ao fato de que as situações são igualmente compostas por
sinais ou símbolos inscritos na organização dos sistemas de expectativas do ator. Mais
propriamente, nas interações, símbolos ou sinais adquiririam significados comuns e
atuam como fatores de comunicação entre os atores. Ao se definirem sistemas simbólicos,
capacitados também à função de meios de comunicação, seria possível então falar de uma
“cultura” constituinte dos sistemas de ação dos atores. São justamente os sistemas de
interação cuja diferenciação teria viabilizado a inserção em um nível cultural, os objetos
focalizados por Parsons, no livro. Nesse sentido, a ideia de sistema social trata dos
sistemas de interação definidos pela inclusão da diversidade de atores individuais
orientados para uma situação dotada de aspectos físicos e ambientais, em que se constata
a existência de um sistema de símbolos culturais de aceitabilidade generalizada. Nestas,
acrescenta Parsons, os mesmos atores tendem à motivação para maximizar suas
satisfações, na medida em que estão interagindo com os pares e com os objetos empíricos
mediante um sistema comum de símbolos culturalmente elaborados. Se esta
reciprocidade define as qualidades posicionais (status) internas aos sistemas sociais, cada
objeto detém um significado na relacionalidade com o ego e isto constitui o que ele chama
de sistema de símbolos ou de “cultura comum”. Mais detalhadamente, isto quer dizer que
a condição de estabilidade entre as complementaridades exige uma padronização
determinada dos significados dos objetos e das orientações, uma permanência no sentido
e no valor atribuído no modo como ambos significam e, logo, ocupam uma posição na
sistemática dos significados internos ao quadro semântico e sintático de um grupo:

A necessidade e a importância de uma cultura comum para um sistema interativo


não implica que ele seja “estático”, que “nada aconteça” ou que uma mudança de
estado seja responsável. Significa apenas que as características de cada ato e cada
situação em transformação não são determinantes do processo, mas que o processo
é organizado com relação a estas características e que, no quadro de referência da
ação, a significação do conceito envolve a padronização das relações entre o
símbolo e o seu significado. Ao mesmo tempo, o sistema interativo, enquanto
sistema, não pode ser determinado somente por estes padrões significados, pois está
sujeito a exigências adaptativas e integrativas, isto é, condições decorrentes da
natureza das situações e das unidades-atores de que se compõe. Então, como
resultante de sua padronização cultural e das exigências integrativas do sistema e,
finalmente, das forças motivadoras envolvidas, o sistema de interação, em qualquer
tempo dado, possui uma estrutura determinada. Ele possui partes – as unidades-
papel – que se ligam entre si por relações relativamente determinadas e que
constituem pontos de referência, canais de atuação e fontes de sanções.
(PARSONS, 1973, p.49).

Deste ponto de vista, nos revela o autor, um sistema social se insere como uma das facetas
entre as três que comporiam um sistema social de ação concreto. Deste modo, teríamos
correlatos ao sistema social, os sistemas de personalidades dos atores individuais e o
sistema cultural incorporado na ação desses atores. No esquema parsoniano, cada um dos
três sistemas são considerados como independentes no tocante à organização dos
elementos de um sistema de ação, no instante em que é teoricamente impossível reduzir
um ao outro frente suas específicas composições e princípios estruturais. Estão
interdependentes entre si, observa Parsons, na medida em que são mutuamente
complementares e abertos às interpenetrações pelo fato de a ação se manter referencial
aos três.
Reveladas as propriedades essências do sistema social de ação concreto, Parsons
se volta à delimitação dos componentes dos sistemas sociais. E estes se bifurcam em duas
vertentes específicas, ainda que inteiradas à tradição estrutural-funcionalista. São elas,
respectivamente, estrutura e função. Para ele, a categoria de estrutura traduz à
configuração de uma constância, ou seja, modelos institucionalizados de uma cultura
normativa (valores). Sendo esta constituída por componentes apenas na medida em que
estes estejam na interseção de sistemas sociais com os culturais, isto quer dizer que ambos
os sistemas foram internalizados no organismo dos indivíduos mediante a formação de
suas respectivas personalidades. Por sua vez a função condensa e descreve a dinâmica
integrativa que consiste na mediação entre o caráter dado (a estrutura) e as exigências
impostas pela situação circundante, quer dizer, exterior ao sistema. Decorrem daí quatro
imperativos funcionais a qualquer sistema social de ação: a função de manutenção dos
modelos (normativos), a integração, a realização de fins e a adaptação.
Nota-se desde já a destacada importância conferida, no esquema parsoniano, aos
modelos normativos. Estes compreendem valores que são, no entendimento de Parsons,
o componente partilhado nas interações; já a norma consiste na especificação valoracional
referente a um papel ou a sistemas mais complexos (a exemplo de famílias, igrejas,
empresas, administração governamental, etc.). Deste modo, o encadeamento conceitual
elaborado pelo autor se desdobra tendo por referência tais modelos. A princípio tem-se o
papel, ou seja, o complexo de condutas de um dos atores, regulado de maneira normativa.
Os papéis dizem respeito ao setor dos sistemas sociais ocupado por comportamentos de
cada um dos seus membros e que se situa na personalidade destes últimos. Nestes termos,
o papel de um ator é concebido, na articulação das situações definidas pelas suas
participações em um período alongado, por consistir em uma série de comportamentos
esperados ou padronizados, enfim, trata-se de um padrão de tipos cuja variação está
sujeita ao desenvolvimento da situação interativa, ou seja, o processo do sistema
interativo e a correlação entre as sanções do “alter” aos comportamentos do “ego”. Na
sequência categorial está a coletividade, isto é, o sistema formado pela interação de dois
participantes, na medida em que eles compartilhem de uma cultura normativa comum e
se distingam de outros sistemas pela participação específica de ambos os atores.
Desde The Structure Social Action, Parsons se viu às voltas com o problema da
motivação do agente em se tratando de compreender o vínculo lógico desta no corpo de
uma teoria do sistema estruturado de ação. A dificuldade em tela estava em tornar
recíprocos planos instrumentais e normativos da ação, ou seja, como fazer
interdependentes a satisfação de interesses por parte dos indivíduos, na luta por atender
suas carências, e ainda assim se manter coerente com um ideário integrado às
prerrogativas coletivas. A saída que tendeu o autor foi para a interseção entre sistema
social de interação e sistema de personalidade mediante a intervenção do que denominou
“cultura comum”. Vinculada aos quatro princípios funcionais, a seu ver, centrais de um
sistema, a cultura comum estaria na raiz da possibilidade de justamente cimentar um
padrão compartilhado às condutas. No entanto, dois problemas logo decorreram exigindo
alternativas de elucidação. De um lado, como demonstrar os efeitos de generalização de
valores dos dispositivos normativos no respaldo das pautas de expectativas na orientação
das condutas das unidades psíquico-biológicas? De outro, como lidar com o recurso
estrutural-funcional diante do problema da mudança histórica e das alterações ambientais,
além das nuances próprias aos organismos individuais inseridos nestas situações, sabendo
da urgência de integrar as dimensões macro e microssociológicas?
Certamente, o montante dos aspectos inerentes a ambas as indagações
extrapolaram o marco das respostas possíveis dadas por Parsons. Por isso mesmo, o
desenrolar das duas questões estiveram na origem da emergência de posições de ataque
ao esquema parsoniano; posições as quais, por volta dos anos de 1960, lograram sucesso
na reivindicação de se colocarem como alternativas interpretativas e analíticas.
No prefácio à segunda edição de The Structure Social Action, no mesmo compasso
em que deixa patente serem as proposições de Boas, na antropologia social, secundárias
para os propósitos de uma teoria geral da ação, frente ao legado deixado por Durkheim,
Parsons sublinha estar uma das limitações do seu livro no descaso dos aspectos
psicológicos do esquema conceitual da teoria social. Anota a contribuição de todo um
curso geracional, centralizado na figura de Freud, exatamente, à evolução do pensamento
nessa mesma direção e, apesar da diferença em seus pontos de partida e nos seus
interesses empíricos, ele sinaliza para a imperiosidade de retomar a contribuição
freudiana à revisão do livro, considerando a tarefa indispensável à realização dos seus
objetivos, pois os alargaria. Bem evidente que, nesse momento, Parsons tentava sanar
aquelas dificuldades do seu raciocínio que vinham à tona. E estas se revelavam na exígua
margem à compreensão e tratamento conceitual dos processos cognoscíveis próprios aos
agentes sociais.
A elaboração de The Social System já porta algumas iniciativas visando contornar
o problema. Na segunda parte do livro, dedicada à integração e aos padrões latentes de
manutenção e à tensão na realização de finalidades internas aos sistemas, ele devota maior
atenção ao plano expressivo das ações à luz da organização interna dos sistemas enquanto
grupos humanos de pessoas socializadas mediante padrões culturais presentes à interação.
É neste momento em que reforça a ideia sobre os quatro imperativos do paradigma
funcional, mais popularmente conhecido como AGIL. Ou seja, o esquema encadeando
“adaptação”, “integração”, “padrão de manutenção” e realização de finalidades como
requisitos decisivos ao equilíbrio sistêmico. A função “A”, de adaptação, refere-se ao
problema do processo no qual o sistema se relaciona com ambiente externo no tocante à
busca e distribuição de recursos necessários às suas atividades. Por sua vez a função “G”,
realização de finalidades, consiste na formulação de bens pelos sistemas sociais e de
motivações na mobilização desses já elaborados recursos. A função de integração
concerne à questão interna dos processos de coordenação das varias relações
organizando-as, assegurando a prevenção ou à solução das irrupções de conflitos.
Finalmente, a função “L”, padrão latente de manutenção e da tensão do comando, diz
respeito a um modo igualmente de organização de problemas. Ao estender o seu esquema
das cinco funções, Parsons atribui ao sistema cultural o encargo de manutenção, ao suprir
de valores e normas as motivações dos atores. O sistema de personalidade atuaria naquilo
relacionado à formulação de bens e a tomada de decisões, estando vinculado à realização
de finalidades a função adaptativa na articulação entre as necessidades orgânicas e os
recursos ambientais. Por fim, o sistema social (mais propriamente a sociedade)
corresponderia o plano da configuração organizacional dos papéis inscritos no estatuto
das posições integradas pelos padrões culturais, que orientam os esforços no
agenciamento dos sistemas de personalidades no atendimento das suas necessidades. Tal
arquitetura funcional-sistêmica teria outra contrapartida, de acordo com Parsons, na
delimitação dos subsistemas político, econômico, de integração e cultural. Assim, caberia
ao subsistema econômico executar as funções de realização de atividades, isto no ajuste
de instituições e papéis sociais relativos às tecnologias e aos mercados. Já a função de
adaptação das motivações, ao sistema político. Cabendo o reforço da coesão ao
subsistema integrativo, formado pelas instâncias jurídicas e de controle como a polícia.
Os padrões de manutenção estariam sob a égide do subsistema cultural capacitado ao
fornecimento de padrões valoracionais comumente comungados na socialização, graças
à atuação de entidades como igrejas, escolas, entre outras.
Mais tarde, quando escreve Economia e Sociedade, em parceria do Neil J.
Smelser, Parsons tenta aperfeiçoar o exame dos múltiplos intercâmbios entre esses
sistemas e seus subsistemas. Sobretudo retomando o seu interesse em rearticular
sociologia e economia, volta-se para o estudo da interdependência funcional entre os
subsistemas, observando como as trocas se devem as disposições de abertura e
fechamento relacionadas ao movimento dos recursos na cadeia funcional dos sistemas.
Deste modo, atem-se ao dinheiro enquanto recurso definido justamente por viabilizar o
intercâmbio generalizado em sistemas altamente diferenciado de funções, mas
convergentes na realização de finalidades. Já o poder exerceria função similar de meio
simbólico de intercâmbio no tocante ao subsistema político nos mesmos arranjos
sistêmicos, tendo por foco a adaptação. A influência seria um recurso neste sentido, mas
ajustado à função de integração e os padrões culturais na função de manutenção.
Cada vez mais, no avanço do seu percurso, Parsons se viu pressionado em
conceituar a aliança capaz de proporcionar o ajuste sistêmico de partes em equilíbrio. Isto
determinou uma atenção maior, principalmente a partir da década de 1950, ao fluxo
informacional intrasistêmico. O auxílio da cibernética e, nela, das teorias do código e da
informação foram decisivas ao redimensionamento do seu esquema conceitual-analítico7.
Desta maneira retoma o problema acerca das entradas (inputs) e saídas (outputs) de

7A novidade inserida pelo esquema parsoniano na teoria dos sistemas sociais está justamente na premissa de
que residem nos dispositivos de inputs e outputs, pelos quais se estabelecem as relações de troca entre sistemas e
ambiente, o procedimento que mantém os sistemas ordenados, em equilíbrio, diante do perigo da entropia que
ameaça-lhes a diferencialidade (BUCKLEY, 1974, p. 45-54).
recursos à luz da teoria sobre os controles informacionais das condições energéticas. Pode
assim reelaborar as cinco funções dos sistemas de ação enquanto expressão de um modelo
de hierarquia. Ter-se-ia então funções no controle do desenvolvimento do sistema de
ação, funções de canalização mediante o fluxo informacional; enquanto outras estariam
ocupadas no fornecimento de energias demandadas pelo mesmo desenvolvimento.
Resulta uma imagem piramidal hierárquica, tendo por pináculo as funções culturais de
fornecimento de padrões-valores básicos à estruturação da ação por meio da
internalização de valores durante a socialização. A modelagem cibernética se apresenta
como uma saída interpretativa para o autor se voltar mais de perto às articulações das
ações com as condições físico-ambientais, desde aí ele investe na investigação dos modos
como se dariam o controle dos atores no plano mesmo das suas atuações em papéis
sociais. Tentará considerar para isto como as dimensões físico-químicas do organismo
são atravessadas pelos fluxos informacionais contendo os valores de orientação e visando
extrair disso as conexões entre os eixos normativos societais e as tomadas de decisões dos
atores na execução de finalidades que lhes demanda energias. Enfim, volta ao que deixou
em descoberto no texto de The Structure of Social Action; aplica-se sempre mais ao estudo
da estrutura enquanto correlação entre agência, interpretação e subjetividade. Em
especial, concentra-se no tema dos significados como elementos moral-normativos
capacitados a coordenar, orientando as atitudes individuais.
Sem dúvida, Parsons guarda da obra de 1937 a proposição de que Weber e
Durkheim compartilham de um mesmo horizonte, pois ambos ao falarem respectivamente
em legitimidade e autoridade estariam enunciando conceitualmente a devoção a valores
que superariam os limites dos interesses da autoconservação individual e inserindo estes
mesmos interesses nos planos da entrega a ideários cuja abrangência só a teoria coletivista
de prisma macrossociológico voltada à escala dos sistemas poderia dar conta. Ao mesmo
tempo, isto requer aliar ao problema cognoscitivo da realização instrumental de finalidade
à questão da norma e, com ela, tudo que cerca o tema mesmo do envolvimento,
notadamente a evocação afetiva. Assim, o autor resgata a contribuição psicanalítica,
principalmente as elaborações canônicas de Freud quando escreve o livro Social Structure
and Personality. Editado em 1964, na verdade a obra compila em três partes um rol de
artigos teóricos e analítico-empíricos que revelam a trajetória parsoniana ao longo da
década de 1950, período de maior aproximação com a psicanálise. Em especial, a parte
um demonstra o esforço de oferecer uma perspectiva teórica.
Neste sentido, o artigo de abertura – “The superego and the theory of social
systems” – reúne as principais sugestões ao tipo de aporte conceitual que autor canaliza
para sua interpretação da relação entre as dimensões psíquico-biológicas e societais. Aí,
inicialmente, Parsons se debruça na maneira como Freud resolve pelo emprego das
categorias de “catexia” e de “identificação” a relação sujeito e objeto na teoria do
superego. De acordo com a proposição freudiana, a instância superegóica do inconsciente
é formada ante de mais nada pela catexia (ou seja, por afetos, amor). O que leva o sujeito
a identificar-se ao seu objeto seria o amor, permitindo a internalização do último. As
crianças concentradas em seus pais, enquanto fonte de prazer, os introjetariam
afetivamente, identificando-se a eles e convertendo os traços inerentes às personalidades
dos pais em seus elementos psíquicos. Justamente o interesse de Parsons pela psicanálise
é a possibilidade que esta ofereceria de demonstrar como, no movimento formativo da
personalidade, as condições externas são sempre mais mediadas por padrões morais
internalizados. As expensas de Freud, ele extrai daí uma plataforma explicativa à
internalização das normas como incorporação, ou seja, desde a tenra infância, os objetos
sociais estariam referidos às interações em que prevalece a conexão entre afetos e
identificações. Na proposta freudiana, ao se deflagrar na primeira internalização objetual
a formação do superego, dar-se-ia o trato com outras modalidades de autoridade ao longo
da vida pessoal. Parsons conclui, alargando por conta própria e fazendo a crítica da
concepção original freudiana, que toda e qualquer relação com objetos externos seria
regulada por padrões normativos previamente internalizados.
Com isto, argumenta o autor, a relação com os objetos são experienciadas pelos
sujeitos como se fossem familiares, deslocando a percepção de externalidade daqueles.
Nesta interpretação se ressalta o foco do interesse parsoniano: demonstrar que, na
generalização da infância, os movimentos de introjeção e identificação compõem não
apenas a formação da personalidade, igualmente da manutenção da sociedade. Deste
modo, o autor acrescenta que a distinção entre sistema cultural, social e de personalidade
é tão somente analítica, não se tratariam de substâncias, entes físicos, afinal uma
instituição, uma situação social e uma pessoa constituem simultaneamente todos os
sistemas. A partir de tal esclarecimento, Parsons irá definir a personalidade como o
conjunto das necessidades individuais (orgânicas e emocionais) que assumem um perfil
em cada indivíduo por meio da socialização, ou melhor, da evolução da sua experiência
no escopo da sociedade. A personalidade é um nível da vida social articulado, mas não
redutível à diferenciação social. Já o nível do sistema social é aquele das
interdependências das personalidades em que a organização societal enfrenta a
distribuição de bens em meio à escassez de recursos exigidos à satisfação das diversas
necessidades individuais, assim, inserindo os temas da legitimidade e da justiça. A cultura
aí interfere justamente por fornecer amplos padrões simbólicos de sentido e valor que
informam de ideais o ajuste possível entre necessidades e a sistemática das interações.
Logo, a cultura estaria na raiz da possibilidade de entender o sistema social como uma
série complicada de papéis sociais definidos como um conjunto detalhado de obrigações
para a interação no mundo real. Vê-se, assim, que a sequência de papéis executados por
um ator encadearia sua autoimagem com as perspectivas do sistema social, já que este
corresponde à coordenação e controle dos diversos papéis e, em última instância, efetuaria
o controle das necessidades a base dos valores comuns difundidos. A coerência sistêmica
seria, portanto, um produto caracterizado pelo estado pleno de equilíbrio e cooperação
entre as partes. Esta harmonia se regularizaria pela complementaridade das expectativas
intrínsecas às institucionalizações, no bojo do qual a situação das interações diria respeito
ao fato de existir mutualidade entre os desejos pela concordância entre as autoimagens,
por intermédio de recompensas possíveis pela regulação dos fluxos de informação e de
energias devido à intervenção dos meios de intercâmbio. O conflito emergiria no instante
em que se tornam insatisfatórios os intercâmbios entre atores (sejam eles indivíduos ou
grupos), favorecendo assim comportamentos desviantes aos padrões ideais descritos pelas
normas.
Sem dúvida, aqui se concentram as maiores dificuldades do arranjo de proposições
gerais que conformam o sistema teórico parsoniano, já que toda perspectiva evolucionária
em Parsons se encerra no movimento de um ordenamento de poder capacitado a
maximizar as recompensas com finalidade de manter o equilíbrio entre as partes e, assim,
favorecer a estabilidade mantenedora das complementaridades institucionais de todo o
sistema. Em livros como Societies: Evolutionary and Comparative Perspectives (de
1966) e The System of Modern Societies (de 1971), o autor se impõe a tarefa de apresentar
um modelo explicativo e de explanação do processo geral de evolução das sociedades.
Recorre para isto à ideia de adaptação dos sistemas sociais aos seus ambientes, dando
relevo à diferenciação dos subsistemas internos às estruturas daqueles, entendendo-a
como manifestações progressivas da adaptação na mobilização e transformação de
recursos de integração por meios de dispositivos de coordenação e controle. Com isso,
ele acompanha o que seria a passagem de sociedades primitivas de embocadura mais
simples para sistemas cada vez mais complexos. Em The System of Modern Societies,
porém, o autor resgata de Durkheim a ideia de solidariedade social para argumentar como
este processo progressivo de diferenciação socioinstitucional, ajustado às alternativas de
adaptação dos sistemas, realiza-se na permanência de sentidos comunitários.
Notoriamente, Parsons perseverava sua tônica comunitarista e sua ênfase no paradigma
estrutural-funcionalista sobre perspectivas orientadas para o plano micro da ação e, na
contrapartida, deslocava o foco do desvio para soluções internas aos arranjos sistêmicos.
Os impasses gerados no compasso das lacunas deixadas pelo seu esquema
analítico fazem eclodir celeumas internas aos domínios estrutural-funcionalistas,
deixando em xeque a posição hegemônica parsoniana. Posição cada vez mais diluída no
decorrer dos anos de 1960 com o advento correntes teórico-analíticas concorrentes. No
início da década de 1970 se dissolve o Departamento de Relações Sociais na Universidade
de Harvard. Encerrava-se, desta maneira, a trajetória que, desde 1931, Parsons iniciará
pavimentando um caminho no qual formou um conjunto célebre de jovens e cujas
posteriores participações no campo sociológico dos Estados Unidos implicaram na
própria expansão do modelo estrutural-funcionalista pela via da teoria sistêmica.

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