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Introdução
O período logo posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial fora marcado pelo
formidável desempenho da economia e da civilização que orbita em torno da lógica do
capital. Para termos uma ideia, entre 1948 e 1971, a taxa de crescimento industrial atinge
o inédito percentual de 5,6% e o comércio mundial alcança um crescimento de 7,3%
(BEAUD, 1987, p.312). Segundo Hobsbawn, este consistiu num momento único na
história do capitalismo, os “trinta anos gloriosos” da “Era Dourada” (HOBSBAWN,
1996, p.253). A prosperidade econômica alastrara-se dos Estados Unidos aos países da
Europa Ocidental, incluindo no seu rastro também o Japão. A autorregulação do mercado,
enfim, passava a sincronizar o planeta num mesmo compasso. Os elementos decisivos
inteirados nessa totalidade sócio-histórica e cultural1, na segunda metade do século XX,
são a racionalização do processo produtivo, com a hegemonia da regulação fordista e dos
mecanismos projetados a partir das lógicas administrativas e funcionais de Fayol e de
1
Estou usando a noção de totalidade no sentido empregado por Marcel Mauss, quando este,
na análise do ritual do “potlach”, entende por “fato social total” aquele que envolve de uma
só vez os níveis psíquico, social e simbólico de um fato (MAUSS, 1974, p.44-45).
Taylor; a concentração monopolística do capital, cada vez apropriado por grandes
conglomerados empresariais, atuando vertical e horizontalmente, numa combinação entre
investimento e emprego maciço em tecnologia e a financeirização econômica; a
intervenção reguladora do Estado de Bem-Estar (de inspiração keynisiana) e a
considerável melhoria dos níveis de renda conquistada por segmentos das classes
trabalhadoras e das classes médias, em vários países da Europa e nos Estados Unidos e
Canadá. Somados, esses itens configuraram a chamada “sociedade de consumo de
massa”.
Pelo controverso Acordo de Breton Woods2, assinado em 1944, em que passa a
deter às mãos às rédeas monetário-financeira internacionais, os Estados Unidos
desfrutavam de uma situação invejável, política e economicamente, de democratização
do consumo de mercadorias (Op. cit., p.264), dentro de uma concatenação do mercado
mundial agora cada vez mais orientado para as trocas de produtos industriais, entre as
nações mais ricas. O número de automóveis em circulação nas estradas do país – naquele
momento – ajuda a dá a dimensão da supremacia norte-americana, à medida que é
indicativo de uma cultura material ancorada no sistema de produção e de consumo de
larga escala de bens duráveis. E este sistema se fazia exemplar de uma civilização que se
mundializava, tendo por característica tanto a intensidade e a interligação dos fluxos
quanto o apelo ao conforto material e a aventura individual. Assim é sugestivo o fato de,
em 1975, transitar pelas pistas norte-americanas 106 milhões de automóveis. Isto era mais
de oito vezes o que transitava nas autopistas japonesas, o segundo colocado – com algo
em torno de 17 milhões de veículos (BEAUD, Op. cit., p.319).
O traço marcante da cena internacional naquele instante era a bipolaridade, afinal
polarizações à maneira de capitalismo versus socialismo, indivíduo versus massa, vontade
versus sistema, ação versus estrutura, entre outras, pautaram debates. O enfrentamento
entre o Ocidente capitalista e a economia de comando à Leste deu o tom. De um lado, as
sociedades democráticas industriais. A União Soviética com seus aliados e a China de
Mao-se-Tung e alguns países satélites se inscreviam na mancha do socialismo de Estado,
de outro. Ainda na época, oposto ao Norte industrializado, o subdesenvolvimento nascia
com a descolonização da África e da Ásia, para se juntar à América Latina. Enfim, a
2
Acordo pelo qual o dólar, substituindo a onça do ouro, tornava-se o parâmetro monetário
internacional, porque o governo norte-americano era o “dono” da maior reserva de ouro em
barras do mundo.
situação de bipolaridade na geopolítica mundial instaurada pela Guerra Fria,
conjuntamente à expansão dos projetos modernizadores dispostos na esteira dos
movimentos de emancipação nacionais mundo afora, estivera na contrapartida da
relevância alcançada pela questão da disjunção entre escolha individual e sociedade de
massas e da regulação da economia de escala nas relações de produção.
O cenário dos mundos sociais estava, portanto, bem propício às interpretações
enfocando oposições, na maioria das vezes a partir de angulações dicotômicas; isto, à luz
dos acentos metodológicos das abordagens orientadas ou ao problema da diferenciação
sistêmico-funcional ou da intencionalidade. Justamente, nesta primeira unidade, se dará
atenção à situação polar estabelecida na teoria sociológica na ocasião opondo os modelos
explicativos funcional-sistêmicos e estruturalistas aos esquemas compreensivos
orientados à teoria da ação, do sujeito e das interações, de outro.
* * *
Anotamos que, em 1937, Parsons publica The Structure of Social Action, obra
posteriormente consagrada como o norte da reflexão sociológica nas décadas seguintes.
Nela, o autor define a imagem da sociologia enfocando-a a partir da matriz disciplinar do
estrutural-funcionalismo, com ênfase na perspectiva sistêmica de interação social. Se o
núcleo da sua proposição central tomava as contribuições de Weber e de Pareto enquanto
precursoras do “sistema de coordenadas de ação”, percebemos que o esquema parsoniano
está orientado fundamentalmente para explicitar a natureza do funcionamento dos
sistemas sociais. Portanto, retoma, atualiza e redimensiona o legado da doutrina funcional
nas ciências sociais, ao substituir o modelo orgânico mecanicista por aquele de base
cibernética – veremos adiante. O ponto central da perspectiva funcionalista em Parsons é
a proposição de que os sistemas não são entidades inertes. A seu ver, tais sistemas
realizam atividades que afetam o ambiente ao seu entorno, o qual – vimos – é formado
basicamente por outros sistemas. Logo, ele conclui, os sistemas funcionam e a maneira
como afetam e são afetados por outros sistemas correspondem ao grau de diferenciação
funcional compondo uma trama de atividades em equilíbrio sinérgico que o mantém
coeso e atuante. Por sua vez, a classificação que propõe escalona os sistemas entre os
mais e menos complexos. A sociedade consiste, segundo esse critério, em um sistema
altamente complexo cuja propriedade básica consiste em ser capaz de se manter como tal
sem depender de outro sistema menor; o que não ocorre com os sistemas de menor monta
(a família, por exemplo) contidos na arquitetura maior.
No entendimento de Parsons, a natureza da relação assim estabelecida apenas se
faz inteligível quando se tem em mente a função que o sistema menor desempenha e o
efeito do funcionamento mais amplo, de todo o conjunto. Para tanto, ele sublinha como
imprescindível a existência de elementos nos sistemas que estejam empenhados em
atividades visando garantir a integração, ou seja, a adequação das variadas e diversas
relações no sistema. A luz dessa centralidade teórica e mesmo ontológica, a noção de
sistema exerce pressões interpretativas sobre a análise mediante as categorias de
totalidade, hierarquia, finalidade e necessidade. Com isto, devido à relevância gozada
pelos elementos desse enunciado à compreensão do problema teórico-filosófico em torno
da existência da ordem e sua permanência, fundamental ao esquema analítico-
interpretativo do autor, vale a pena detalhá-los.
Acima, chamamos atenção ao fato de que, ao redefinir a ideia weberiana de ação,
Parsons enfatiza que as entidades funcionam enquanto sistemas, os quais são complexos
em si, porém são subordinados a outro sistema ainda mais complexo. Podem, assim,
serem classificados de acordo com a função básica que desempenham: política,
econômica, cultural, etc. O decisivo a ser realçado é a proposição de que, internas a cada
um dos sistemas, as funções básicas desempenhadas por outros sistemas estão presentes
em todos os demais congêneres, de tal forma que, examinado o sistema político, nele
encontraremos o correspondente de um subsistema econômico e assim sucessivamente.
É de grande importância a conversão da ideia weberiana a respeito da interpenetração das
modalidades de ação no plano do sentido (para o agente) na tese sobre a interpenetração
de sistemas e subsistemas no plano do desempenho de funções. Para o autor
estadunidense, o conceito de sistema impõe ao esquema funcional o postulado sobre a
hierarquia entre as funções e, também, sobre relações estáveis entre estas últimas. Ainda
assim, Parsons se mantém fiel à asserção de Weber de que, para qualquer gênero de ação,
os fatos não podem ser tomados como intrinsecamente políticos, econômicos ou culturais.
Isto porque todas as dimensões básicas da ação compareceriam em cada uma das suas
manifestações. Cabe, portanto, ao próprio pesquisador fixar o aspecto que lhe interessa
estudar, com o que os demais aspectos serão evocados na medida em que sejam relevantes
para a realização da análise.
À luz do sumário traçado acima, nota-se a relação simétrica de correspondência
entre o tema da ordem e sua manutenção e a opção teórico-analítica pelo paradigma
estrutural-funcional no esquema parsoniano. Uma conclusão inicial nos leva à reposição
pelo autor do problema seminal que, no início da filosofia política moderna, motivou
Hobbes a formular a aterradora imagem da natureza egoística e destrutiva dos homens
revelada nas páginas de o Leviatan. Nelas, tal natureza encontra sua descontinuidade na
instauração da cultura, mediante a soma zero das vontades que instauram o Estado. Este
compreendido como unidade capaz de deter a anarquia, estabelecendo a autoridade
legítima para impedir o achincalhe das fronteiras entre o justo e o injusto e, portanto,
sagra-se modalidade dotada de suficiente força para debelar a insegurança, a qual
(entende-se) resulta impreterivelmente da escassez de poder (BOBBBIO, 1991, p.26). No
percurso do pensamento social, que daí deriva, a mesma oposição fundada no
reconhecimento da distinção entre instabilidade advinda da volúpia das paixões e
segurança social absorveu esforços e recebeu tantos e plurais tratamentos. Nas palavras
de Lévi-Strauss
(...) cada homem sente em função da maneira como tem sido permitido ou prescrito
se comportar. Os costumes são dados como normas externas, antes de engendrar
sentimentos internos e essas normas insensíveis determinam os sentimentos
individuais, assim como as circunstâncias em que poderiam ou deveriam se
manifestar. (LÉVI-STRAUSS, 1997, p.106).
Bem antes que ele, no instante em que conclui sobre a fonte do dever-ser no caráter
societário da religião, no que esta possui de fator preservacionista, Durkheim decide
incluir na mesma tarefa outras modalidades de unidade social (família e Estado). Logo, o
postulado subjacente nos seus escritos consiste na tese de que a sociedade implica na
garantia de estabilidade e preservação da integridade do indivíduo, ao assegurar um
padrão moral. Pela mesma chave, é possível constatar a desconfiança do autor frente ao
ensimesmamento individualista; o qual, para ele, poderia ser reduzido ao egoísmo
esterilizante. A sociedade cumpre, assim, uma missão civilizatória. E justamente por isso,
Durkheim concebe a integração coletiva no papel de barrar as ondas suicidógenas,
constituindo manifestações de estágios intensos de anomia. Nos seus termos:
Esse paralelo demonstra que, se essas diferentes sociedades têm sobre o suicídio
uma influência moderadora, não é em conseqüência de características particulares
a cada uma, mas em virtude de uma causa comum a todas elas. A religião não deve
sua eficácia à natureza especial dos sentimentos religiosos, pois as sociedades
domésticas e as sociedades políticas, quando são fortemente integradas, produzem
os mesmos efeitos, é isso, aliás, que já provamos estudando diretamente a maneira
pela qual as diferentes religiões agem sobre o suicídio. Inversamente, não é o que o
vínculo doméstico ou o vínculo político têm de específico que pode explicar a
imunidade conferida por eles, pois a sociedade religiosa tem o mesmo privilégio.
Sua causa só pode ser encontrada numa mesma propriedade que todos esses grupos
sociais possuem, embora, talvez, em graus diferentes. Ora, a única que satisfaz a
essa condição é serem todos eles grupos sociais, fortemente integrados.
Chegaremos portanto à seguinte conclusão geral: o suicídio varia na razão inversa
do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte.
(DURKHEIM,2000, p.258).
3De acordo com Ernest Kantorowicz (1998), em Os Dois Corpos do Rei, o século XVI europeu assiste os esforços
político-teológicos para fundamentar e conferir legitimidade à concepção dual do corpo do soberano, o qual
estaria cindido entre sua gama eterna e aquela perecível, alvo das demandas prosaicas semelhante a qualquer
vivente. Igual período é também o palco das celeumas acerca da “morte de Deus”, objeto cálido das discussões
entre os iconoclastas que denunciavam a heresia idólatra latente na contemplação das imagens divinas e aqueles
certos de estar a fé a salvo no interior das margens das mimeses reproduzindo agentes e episódios sagrados.
“estática” e “dinâmicas” sociais adquirem prioridade intelectual e normativa na
demarcação da natureza do objeto sociológico. Para isso se forjou o projeto da sociologia
pela articulação entre a biologia e os saberes voltados ao plano psíquico-coletivo (a
moralidade), a partir do esquema evolucionário aplicado ao movimento histórico de
sistematização das ciências.
Já na fase inicial da sua trajetória intelectual de Comte, duas facetas sobressaem:
de um lado, a análise se volta para o presente, mas o que se busca é a estrutura e isto o
leva até a escuta do processo histórico, ou seja, dos mecanismos reguladores das
mudanças. Por outro lado, embora em consonância com o anterior, a questão da
intervenção direta no presente não deveria implicar em qualquer ação violenta tentando
desviar o curso histórico, justamente por se tratar de uma marcha inexorável na alteração
sucessiva das doutrinas indo do estado teológico ao metafísico e, daí, ao positivo-
científico. O mais adequado seria, portanto, acelerar a reforma intelectual. Isto o incita
propor a síntese de todas as ciências e a fundamentação de uma política positiva inscrita
no que lhe parece elementar à espécie humana: a busca do repouso, da estabilidade 4.
Então se, em coro com muitos dos seus contemporâneos, Comte reconhece a sociedade
moderna como uma situação eivada de crises, ao mesmo tempo ele não compartilha com
Marx, por exemplo, a crença sobre o papel da revolução no desenvolvimento do processo
histórico. Nem tampouco aquiesce acerca da a doutrina das instituições livres e nem
tampouco do livre-arbítrio, com Tocqueville. Seu diagnóstico é: a crise deve ter sua razão
perscrutada na contradição que corta o período no qual estavam todos imersos.
Contradição que seria proveniente da transição de uma ordem social e histórica teológico-
militar em vias de desaparecer à medida que ascende aquela outra científico-industrial. A
seu ver, a marcha progressiva contínua da humanidade daria cabo da etapa anterior e se
realizaria no triunfo da ordem industrial. É neste cenário do seu raciocínio que o autor
concebe a sociologia, afinal a vitória inevitável da sociedade industrial requeria tão-
somente mecanismos cognitivos habilitados intelectualmente a incrementar o trânsito de
uma etapa a outra. A tarefa da sociologia seria iluminar o necessário devir histórico,
contribuindo à realização plena do novo sistema e neste...
4 Postulado central à visão de mundo que abraçava e manifesto principalmente no lugar decisivo ocupado pelo
dogmatismo no seu raciocínio: “O dogmatismo é o estado normal da inteligência humana, aquele para o qual
tende, por sua natureza, continuamente e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele. O
Ceticismo nada mais é do que um estado de crise, resultado inevitável do interregno intelectual que sobrevém,
necessariamente, todas as vezes em que o espírito humano é chamado a mudar de doutrinas, ao mesmo tempo
que é indispensável empregado, quer pelo indivíduo, quer pela espécie, para permitir a transição de um
dogmatismo para outro, o que constitui a única utilidade fundamental da dúvida.” (COMTE, 1826, p.35).
(...) o poder espiritual ficará na mão dos sábios (cientistas), e o poder temporal
competirá aos chefes dos trabalhos industriais. Estes dois poderes devem
naturalmente proceder, na formação do novo sistema, como hão-de proceder,
quando for estabelecido, na sua aplicação diária, contando também com a
importância superior do trabalho que é indispensável executar nos dias de hoje. Há,
neste trabalho, uma parte espiritual que deve ser tratada em primeiro lugar, e uma
parte temporal que o será consecutivamente. Assim, é aos sábios que compete
empreender a primeira série de trabalhos, e aos industriais mais importantes,
organizar, nas bases que ficarem assim delineadas, o sistema administrativo. Tal é
a marcha simples, indicada pela natureza das coisas, e ela nos ensina que as próprias
classes que são os elementos dos poderes do novo sistema, e que devem ser um dia
colocadas na supremacia, ou na soberania; só elas podem construí-lo. Só essas
classes são capazes de bem apreender o espírito da reorganização social; só elas são
encaminhadas no sentido da verdade, graças ao impulso combinado dos seus
hábitos e dos seus interesses. (COMTE, 1977, p.81).
Sobre este tripé teórico se funda sua concepção de evolução societária, para a qual a lenta
transformação de um agregado se caracteriza pela metamorfose da homogeneidade à
heterogeneidade, imprimindo-se nesse curso uma diferenciação, isto é, de autonomização
relativa das partes mutuamente concatenadas, na medida em que se especializem em uma
função. Spencer vislumbra algo assim no mundo social: os grupos iniciados como hordas
(logo seus membros apresentariam similar grau intelectual, técnico e econômico) se
tornarão conglomerados complexos devido à divisão do trabalho e das relações jurídicas,
segundo uma processualidade de permanente diferenciação. Desta lei geral da evolução
das sociedades, ele distingue dois tipos morfológicos: a ) Tipo militar: há a predominância
da coerção e da força – ilustra-se historicamente no regime feudal; b) tipo industrial:
calcado na divisão social do trabalho; há o predomínio dos intelectuais e engenheiros – o
tipo corresponderia historicamente às sociedades industriais formadas nos Estados
nacionais da Europa Ocidental.
Na perspectiva metodológica interna ao esquema de Spencer ganha contornos a
sua concepção ontológica do objeto da sociologia, porque a finalidade dos fenômenos se
definiria pelo próprio impulso evolutivo e, assim, qualquer situação de equilíbrio é
sempre parcial. Deste modo, é verdade que a prerrogativa evolucionária esposada pelo
autor delimita um lugar secundário à deliberação individual, afinal o que determina a
evolução são as conformações hereditárias, as quais imprimem os teores da personalidade
e do destino de uma população. No entanto é detectável certo paradoxo no seu modelo.
Claramente ele opera de acordo com o modelo organicista, já que o social diria respeito
a um conjunto de reciprocidades funcionais. Porém, à diferença dos organismos animais
que dispõem apenas de um tecido sensorial para todo o conjunto, nos complexos
sociohumanos se evidenciariam a multiplicidade de órgãos articulados a diversos tecidos
sensoriais. No centro desta concepção está o postulado de que a consciência social habita
as partes, logo os indivíduos constituem a razão da totalidade. O deslocamento semântico,
devido à tônica depositada no indivíduo, deixa evadir o quanto a adoção da teoria da
evolução biológica, por Spencer, esteve na interface com tradições intelectuais já
sedimentadas nos domínios britânicos, sobretudo o utilitarismo e o laisse-faire do
liberalismo. Teríamos, no entanto, uma diferença de princípios básica. Enquanto o mote
utilitário propõe a competição entre sujeitos de interesses, a despeito das demandas
coletivas, em Spencer o organicismo prescreve o social pela integração das partes ao todo,
justamente ao transformar o ideário utilitarista em torno da categoria de função social.
O ponto de discordância entre as concepções de função em Durkheim e Spencer
está, neste último autor, exatamente na maneira com o conceito é atrelado à ideia utilitária
de propósito. Embora ambos tivessem por objeto a necessidade de integração diante da
crescente complexidade gerada com a diferenciação funcional inscrita na divisão do
trabalho nos sistemas sociais modernos, na acepção durkheimiana é descartada a
possibilidade de uma regulação integradora baseada no interesse privado agenciado pelo
e no mercado capitalista. A seu ver, importa identificar as regras morais que presidem a
cooperação nas condições em que prevalecem o tipo de solidariedade orgânico-
funcionais das sociedades industriais. Isto porque a carência de regulamentação social
impediria a cooperação entre as funções separadas; isto é, inviabilizaria a solidariedade
em um quadro de ausência de normas (DURKHEIM, 2000). Nesses termos, se a
sociedade consiste no conjunto de obrigações morais que liga os indivíduos, logo, a
“anomia” traduz e manifesta a carência de fins individuais. Por isso, Durkheim afirma
começar a moral só onde inicia igualmente a adesão a um grupo, seja ele qual for. O que,
conclui, torna o fato moral o impulso mercê do qual “no constrangimento sobre nós
mesmos, podemos agir moralmente, faz com que saiamos fora de nós próprios, eleva-
nos acima de nossa natureza, o que não consegue sem dificuldade, sem contensão. É esse
apetecível sui generis a que vulgarmente chamamos ‘bem`” (DURKHEIM, s.d., p.210).
Recorro a um elucidativo trecho do livro As Regras do Método Sociológico, em que trata
do tema da função social como fenômeno de análise sociológico:
5
Escola Francesa, composta pelo próprio Durkheim, tendo no seu sobrinho Marcel Mauss
não apenas um continuador criativo, mas também um parceiro na confecção de um
patrimônio teórico indiscutível deixado aos estudos socioantropológicos.
Reginald Radcliffe-Brown irá travar contatos justamente com Durkheim e Mauss. Na
época, após passar pelo cargo de professor (reader) de etnologia na London School of
Economics, o então jovem antropólogo (nascido em 1881) dava aulas de sociologia
comparada na Universidade de Cambridge, discutindo o ritual do potlach entre os povos
da costa do Pacífico da América do Norte – tema do célebre estudo de Mauss, Ensaio
sobre a Dádiva. Graduado em ciência mental e moral, com ênfase em economia e
psicologia experimental, ainda cedo, Radicliff-Brown se mostrou pouco propenso aos
estudos de antropologia física, embora tenha adquirido subsídios conceituais na área pelo
tempo em que esteve nas Ilhas Andaman e pela atuação como etnólogo do Transvaal
Museum. Porém, como ele próprio relata, perseguindo os objetivos de pesquisa para
realizar o seu doutorado, a maior dificuldade em sistematizar os dados coletados estava
concentrada na ausência de recursos metodológicos que o permitisse uma reconstrução
hipotética do povo andamaneses. Lacuna a qual, conclui, conduzia a realizar uma história
especulativa com resultados poucos ou em nada promissores à compreensão da vida e
cultura humanas. É longo o lapso entre a defesa da tese de doutoramento e a publicação
desta, em livro: de 1914 a 1922, devido o eclodir da Primeira Guerra Mundial. É neste
ínterim que o autor conhece Durkheim e o acontecimento muda os rumos do seu trabalho,
levando-o a reescrever a tese, agora, com forte influência do esquema analítico do
sociólogo francês, mediante a introdução das duas seguintes categorias: “significado”
(próxima a de “representações coletivas”) e de “função social”. Sobre a primeira, é
exemplar o trecho: “O significado de uma palavra, um gesto, um rito, está no que ele
expressa, e isso é determinado por suas associações com um sistema de idéias,
sentimentos e atitudes mentais.” No que tange o emprego do conceito de função social,
ele assevera em outra passagem: “(...) para denotar os efeitos de uma instituição (costume
ou crença) enquanto concernente à sociedade e sua solidariedade e coesão.” Deste modo,
Radcliff-Brown aprofunda o estudo da organização social em The Andaman Islanders,
observando a conjunção de cerimônias, crenças e mitos. Sua hipótese para a interpretação
que faz dos ritos nativos deixa patente a incorporação do esquema intelectual-normativo
de cunho funcionalista. Cito-o:
Uma sociedade depende, para a sua existência, da presença nas mentes de seus
membros, de um certo sistema de sentimentos pelos quais a conduta do indivíduo é
regulada de acordo com as necessidades da sociedade. 2) Cada aspecto do próprio
sistema social e cada evento ou objeto que, de qualquer modo, afeta o bem-estar ou
a coesão da sociedade, se torna objeto desse sistema de sentimentos. 3) Na
sociedade humana, os sentimentos em questão não são inatos, mas sim
desenvolvidos pelo indivíduo pela ação da sociedade sobre ele. 4) Os costumes
cerimoniais de uma sociedade são um meio pelo qual os sentimentos em questão
recebem expressão coletiva em ocasiões apropriadas. 5) A expressão cerimonial
(isto é, coletiva) de qualquer sentimento serve tanto para mantê-lo no grau
necessário na mente do indivíduo como para transmiti-lo de uma geração para outra.
Sem tal expressão, os sentimentos envolvidos não podem existir. (RADCLIFF-
BROWN, 1964, p.233-234).
(...) não morrem no mesmo sentido que os animais e, portanto, não podemos definir
disnomia como o que leva, se não controlado, à morte de uma sociedade. Ademais,
uma sociedade difere de um organismo no sentido de que altera seu tipo estrutural,
ou pode ser absorvida como parte integral de uma sociedade mais vasta. Por
conseguinte não podemos definir disnomia como perturbação das atividades usuais
de um tipo social (como Durkheim tentou fazer). (Op. cit., p.225).
Eis o núcleo do desacordo com Malinowski, outro eminente antropólogo inglês da época.
Este último destina um lugar secundário ao problema da evolução e encerra o predicado
decisivo à definição da estrutura social nos estudo do modo como se sincronizam os
fatores constitutivos de um processo cultural por intermédio da função que cumprem.
Controverso, este polonês nascido em Cracóvia em 1884 deixou as ciências exatas
rumo à antropologia devido ao impacto provocado pela leitura de The Golden Bough de
James Frazer. A motivação determina o deslocamento para Leipzig na Alemanha, aí deu
continuidade aos estudos na área psicoantropológica, sob a orientação de Karl Bücher e
Wilhelm Wundt. Desta base extraiu os recursos para ingressar na pós-graduação da
London School of Economics, onde em 1913 é admitido como professor, na situação de
lecturer on special subjects.
A inserção nos domínios antropológicos ocorre, justamente, em um instante em
que se dava intensamente a substituição da atitude do intelectual de gabinete, empenhado
no trato especulativo com problemas teóricos, pelo pesquisador comprometido com a
observação direta e sistemática dos povos estudados, capacitando-o testar hipóteses e
dispor suas interpretações vinculadas aos corpus empíricos. Em meio a tal atmosfera, ao
lado de Radcliff-Brown, Malinowski se esforça por fazer a avançar o arsenal teórico da
antropologia e, para isso, submete ao crivo os dois principais estatutos teórico-
metodológicos em vigência – o evolucionismo e o difusionismo. E como o
contemporâneo, é tenaz em defender a correlação entre método e pesquisa de campo e
em ambos os autores, as influências durkheimianas se manifestam no recurso ao conceito
de função e integração funcional. Um e outro conceito são empregados para contornar o
que aos dois jovens intelectuais parecia frágil na atuação dos antropólogos até então: tanto
a desconexão entre as categorias analíticas e as sociedades estudadas quanto a tendência
a isolar aspectos destas últimas, não as reconhecendo partes de uma totalidade. E, pior,
eliminar a particularidade de cada um desses conjuntos significativos em nome de
generalidades.
Por conta de uma estada, entre 1914 a 1918, por áreas banhadas pelo oceano
Pacífico, abarcando a Austrália e a Nova Guiné, pode exercitar sua postura de pesquisador
informado pelos princípios que defendia. Escreve e publica três artigos nos quais expõe
os resultados desses estudos: The Family Among the Australian Aborígines, uma
monografia sobre os Mailu e edita Baloma: spirits of the dead in the Trobriand Islands.
Mas apenas com a edição do célebre Argonautas do Pacífico Ocidental atinge o propósito
de refinamento do seu esquema analítico. Nesta obra, ele aplica ao pé da letra os critérios
da observação participante, assim, minimiza o exame colhido por meio dos relatos obtidos
entre alguns nativos em favor do procedimento calcado na longa permanência do
pesquisador no sítio estudado. Algo assim, além de viabilizar perspectivas diferentes na
compreensão da realidade local pelo agente da pesquisa, dota este da condição de penetrar
no cotidiano daquele povo e apreender diretamente as dinâmicas internas aos ritmos da
comunidade e desvelar os fundamentos da topologia separando público e privado,
objetivo e subjetivo. Ao mesmo tempo, torna-se apto a discernir em torno do que orbitam
os fazeres e a arquitetura classificatória e ideacional dentro da qual se situam as normas,
os credos, os ritos e os ditos. Para daí dar conta das instituições e dos códigos, chegando
assim ao entendimento sobre quais as estruturas estavam subjacentes ao dia a dia aldeão.
Enfim, para o autor, o estudo da vida tribal se encerraria na observação desta triangulação:
1) rotina estabelecida pela tradição; 2) a maneira como se desenvolve essa rotina; 3) o
comentário à resposta dela, contido na mente do nativo. O objeto antropológico, enfim,
deixar-se-ia ver no exame dos modos estereotipados de pensar e sentir (MALINOWSKI,
1976, p.36).
Para isso, caberia ao observador se aculturar e se nutrir das categorias nativas com
a finalidade imergir naquela realidade à princípio exótica enquanto alteridade simbólica.
Mas o princípio gerador dessa postura e dos procedimentos que adota se funda na
proposição teórica a respeito de duas leis gerais a serem identificadas e explicadas pelo
pesquisador, mas à luz do material coletado pela observação participante, sem se
confundir com as concepções dos membros das sociedades em foco; fenômenos
sintetizados e expressos pelos respectivos conceitos de cultura e de função. O primeiro
diz respeito à maneira como o Malinowsky retoma a ideia de instituição para obter a
imagem de uma totalidade multidimensional, para ela concorrendo os planos político,
econômico, jurídico, instrumental e cognitivo, religioso, entre outros. Igualmente envolve
os aspectos do parentesco, cosmológicos, da cultura material e da organização social.
Assim, no texto dos Argonautas, Malinowski elege o ritual trombriandes do Kula para,
na observação das correlações possíveis naquele arranjo sociocultural, expor quais os
fatores de integração e coerência sobressaiam a partir da descrição etnográfica, deixando
ver a totalidade integrada ali em questão, ou seja, a regularidade institucional emergiria
das relações interpessoais concretas e nas coisas e objetos que delas coparticipavam em
suas tantas dimensões experienciais sintetizadas nos costumes, as quais são vivificados
pelas pessoas entregues inopinadamente à realização dos seus próprios interesses, ao
sabor dos ditames da sobrevivência e das suas aspirações e afetos:
Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias ambições,
seguem a seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade. Em cada
cultura encontrarmos instituições diferentes, nas quais o homem busca seu próprio
interesse vital; costumes diferentes através dos quais ele satisfaz às suas aspirações;
diferentes códigos de lei e moralidade que premiam suas virtudes ou punem seus
defeitos. Estudar as instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento
e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos
quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é para ele, a essência de sua
felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar o
estudo do homem. (Op. cit., p.38).
(...) constante interação entre o organismo e o meio secundário em que ele existe,
ou seja, a cultura. Em suma, os seres humanos vivem por normas, costumes,
tradições e regras, que são o resultado de uma interação entre processos orgânicos
e manipulação e recomposição de seu ambiente pelo homem. (Op. cit., p.71).
Logo se ver que para o autor, enquanto artefato, os bens culturais são impreterivelmente
determinados pelos seus específicos usos, quer dizer, pelas funções e estas dizem respeito
sempre às malhas de cooperações entre indivíduos, conformando os “ambientes sociais”.
Decorre que todos os processos culturais abrangem o substrato material da cultura, os
modos padronizados de comportamento e os atos simbólicos, estes últimos entendidos
como as influências mútuas entre organismo por meio de estímulos-reflexos
condicionados. A totalidade de todo processo, por sua vez, se desenrolaria a partir da
função de satisfazer a necessidade primária da nutrição. Desde esse ponto de instauração,
o autor delimita os procedimentos analíticos informados doutrinariamente pelo
funcionalismo, partindo do imperativo de que sejam identificados alguns isolados ou
unidades possuidoras dos “limites naturais de coordenação e correlação” relativos à
totalidade cultural estudada, assim, voltamos à categoria de instituição, antes comentada.
O desdobramento necessário nesse percurso analítico é identificar a estrutura desse ente;
em outros termos, perscrutar e traduzir conceitualmente os estatutos internos que
fornecem a solda sistêmica de cada instituição. Os estatutos são exatamente os códigos
de regras constitucionais que se manifestam seja nas narrativas mitológicas seja no enlace
de valores básicos à integração dos comportamentos dos membros de um grupo (Op. cit.,
p.128).
O ponto de contato principal entre Malinowski e Parsons está, exatamente, por
ambos depositarem esperança de unificação entre as dimensões naturais (biopsicológicas)
e socioculturais. Parsons abraçou com força a tese sobre a “continuidade fundamental da
sociedade e da cultura como parte de uma teoria mais geral da evolução das espécies.”
(PARSONS, 1969, p.54-55). E sua tentativa de equilibrar uma teoria da ação voluntarista
com o primado estrutural o coloca em aliança com Radcliff-Brow e outros da mesma
linhagem. Portanto, no curso desta sumária síntese em que passamos em revista traços
bem gerais dos autores mais representativos da matriz funcional-estruturalista, embora
saltem aos olhos as variações de abordagens, é possível destacar como todos estão em
sintonia graças ao modo como relacionam a alternativa analítico-interpretativa sistêmica
para lidar com o problema em torno da coesão, integração e coerência de partes ajustadas
em um arranjo societal. Uma vez mais notamos como a teoria se define como um domínio
cognoscitivo-discursivo que se realiza na combinatória entre memória e evento, ajustando
assim o registro das elaborações textuais e apropriações destas em épocas pretéritas pelos
usos e condicionantes destes usos em uma situação histórico-institucional precisa. Com
isso, o alongado intergeracional tanto pavimenta a existência de uma tradição intelectual
quanto repõe, atualizando-a como horizonte hermenêutico e interpretativo, no estágio
relacional em que se encontra e em meio aos diálogos de que participa seus representantes
contemporâneos.
Ao focalizarmos Parsons, portanto, o que requer desde agora atenção é justamente
a maneira como ele realiza ambos os processos em sua obra e no repertório categórico-
conceito interno ao seu esquema analítico informado, fundacionalmente, pelo princípio
caro à tradição estrutural-funcionalista do comunitarismo, isto é, da supremacia do todo
sobre as partes.
* * *
(...) no contexto de sua relação tanto com a estrutura de um sistema como com a
relação entre os processos e pré-requisitos de sua manutenção (que) fornecem um
marco de referência para julgar o significado geral de um arranjo e para perseguir
sistematicamente suas interconexões com outros problemas e fatos. (Idem, ibidem).
Tal evolução, para o autor, se centra nas relações entre os planos psicológicos e culturais
da teorização sociológica, mas desdobradas em duas vertentes, as quais delimitam os
objetivos inerentes à proposta da obra. A primeira, de natureza doutrinário-conceitual,
corresponde à elaboração e aprimoramento teórico da análise estrutural-funcional dos
sistemas sociais entendidos à luz da estrutura da ação social. Já a segunda é propriamente
metodológica, no instante em que se volta para a operacionalidade de técnicas de
investigação informadas pelo vocabulário conceitual resultante da elaboração anterior. O
que, enfim, traduz a intenção de uma revisão capaz de promover uma síntese cuja
finalidade é revelar uma transição e transposição de um nível a outro de sistematização
teórico-conceitual, ao se recorrer aos esquemas legados por nomes decisivos da teoria
social. Dessa maneira, esta última diz respeito ao corpo de uma mesma unidade, a
despeito da tantas “escolas” que no seu interior concorrem no intervalo de um período
histórico. Interessa-lhe justamente as contribuições à montagem do corpo doutrinal,
perseverando esclarecer a estrutura e a utilidade empírica do sistema teórico fundado
sobre um grupo de conceitos interconectados em relação a problemas empíricos que os
transcende e integram.
O recurso às obras de Marshall, Durkheim, Pareto e Weber, assim, obedece a um
critério de agrupamento calcado nos problemas empíricos internos às suas respectivas
interpretações do capitalismo enquanto moderno sistema econômico caracterizado pelo
“regime de empresa” e o “individualismo econômico”. Se o entendimento elementar ao
livro, logo, é tomar a teoria social como um único corpo de raciocínio sistemático cujo
desenvolvimento pode ser rastreado mediante uma análise crítica dos escritos que o
possibilita, incluindo àqueles seus predecessores, Parsons prioriza o estudo sobre o
trinômio composto pelos vieses utilitarista, do idealismo e, ainda, o positivista,
relacionando-os à questão capitalista. É isto que o leva anotar a centralidade gozada pela
ação humana no raciocínio utilitarista, enquanto enxerga no positivismo um esforço para
equiparar as ciências sociais às naturais evocando a objetividade das últimas e destaca
finalmente o quanto a dimensão espiritual da humanidade é ressaltada pela corrente
idealista.
A hipótese do livro vem a reboque da suspeita deixada por Herbert Spencer ao
perseguir as motivações histórico-estruturais para, na Europa Ocidental, terem se
conjugados os elementos que levaram à transição culminada no advento da sociedade
industrial. Entende Parsons que a resposta que oferece Spencer está subordinada à
centralidade valorativa do individualismo aspirada pelo próprio autor inglês, a qual se
manifesta no pressuposto de que a iniciativa individual na busca dos seus interesses
possibilita à satisfação das necessidades coletivas. Nesse sentido, a concepção sobre a
religião que abraça, refutaria a atividade religiosa como face de um estágio primitivo
dominado pela ignorância e o erro, tendência que teria sido suplantado à medida que a
razão científica se impôs. No entanto, conclui Parsons, os inconvenientes lógico-teóricos
estavam na indagação sobre os efeitos da ciência sobre a ação humana, principalmente
no tocante ao primado individualista, afinal, ao ser mantida a prerrogativa evolucionista,
então, como entender e explicar o caminho que leva da religião à ciência. Nesse
acompanhamento que empreende, Parsons verifica espécie de revolução cognoscitiva e
esta seria intrínseca ao surgimento sob a esteira da refutação empírica às interpretações
fundadas sobre a perspectiva do evolucionismo linear. Cada vez mais se daria margem a
teorizações voltadas para encaminhamentos cíclicos e, por outro lado, ele percebe como
no caudal desta circularidade ocorreria a ascensão de propostas que substituem o primado
individualista pela centralidade do coletivo. O socialismo seria exemplar a respeito.
Ainda nesse bojo viria à tona uma série proposições deixando em xeque a primazia da
razão em favor de outros aspectos na orientação e coordenação das condutas humanas.
Com isto, o autor se impõe a tarefa de compreender a origem e motivação para semelhante
corte e, a seu ver, estaria no desenvolvimento imanente do corpo mesmo da teoria social
a base da mesma alteração qualitativa apontada pelo seu exercício interpretativo. O que,
portanto, justificaria o esforço dele em apreender a teoria como um sistema integrado, no
interior do qual as proposições gerais consistem em enunciados sobre um modo de
relações entre fatos e tais modos estão em mútuas relações lógicas, ou seja, de
intercâmbios necessários na formulação de sínteses de conhecimento e, simultaneamente,
delimitando o que se faz imperativo conhecer.
O propósito de acompanhar o processo geral do desenvolvimento imanente da
ciência mesma é solidário ao tema do livro, no instante em que este último diz respeito à
emergência da “teoria voluntarista da ação” como um sistema teórico recentemente
agregado ao pensamento social. A iniciativa do autor, ao longo da obra, reside na
verificação de como este sistema teórico é afirmado pelos seus defensores nas suas
categorias positivas frente ao que chama de “categorias residuais”, isto é, um envolto de
obscuridade que cerca as certezas basilares do próprio sistema, mesmo o deixando em
contradição com os seus pilares lógicos. Entorno obscuro inerente ao movimento no qual
se pergunta sobre as condições próprias de formulações de um sistema teórico voltado ao
enfrentamento de questões empíricas, como observa o autor:
A eleição do percurso atende, por sua vez, ao primado de entender a metodologia como
a consideração dos fundamentos gerais de validez das proposições de um estudo ante as
observações realizadas. No caso em questão, o estudo do sistema teórico da ação
voluntarista, estará em pauta o encadeamento observando a unidade priorizada na análise
em suas conexões com outras partes. Assim o enunciado lógico da proposta do livro é
descrito a partir do objetivo de apreender o traço estrutural do sistema da ação social, por
isto, ele nos diz no trecho a seguir:
6 A certa altura do texto Tratado Geral da Sociedade, em se debruça sobre os problemas das formas sociais, Pareto
encaminha seus esforços conceituais à definição própria ao emprego da ideia de sistema social. Vejamos: “2060.
Os elementos. A forma da sociedade é determinada por todos os elementos que atuam sobre ela e, uma vez
determinada, reage sobre os elementos; pode-se dizer, portanto, que acontece mútua determinação. Entre os
elementos podemos distinguir as seguintes categoriais: 1.) O solo, o clima, a flora, a fauna, as circunstâncias
geológicas, minerológicas, etc.; 2.) Outros elementos exteriores a uma da sociedade, em um dado tempo; isto
é, as ações das outras sociedades sobre a mesma, que são exteriores no tempo; 3.) Elementos internos, entre os
quais os principais são a raça, os resíduos, ou seja, os sentimentos que manifestam, as inclinações, os interesses,
a aptidão ao raciocínio, à observação, o estágio dos conhecimentos, etc. As derivações também entre estes
elementos.
2061. Os elementos que notamos que não são independentes, sendo na maior parte interdependentes. Por
outro lado, entre os elementos devem ser colocadas as forças que se opõem à dissolução, à ruína das sociedades
persistem; portanto, quando uma destas sociedades é constituída sob certa forma determinada por outros
elementos, atua por sua vez estes elementos, os quais, nesse sentido, devem também ser considerados em estado
de interdependência com ela. Algo mais se observa em relação aos organismos dos animais. Por exemplo, a
forma dos órgãos determina o gênero de vida, mas este, por sua vez, atua sobre os órgãos.
(...)
2066. De qualquer modo, seja pequeno ou grande o número dos elementos que consideramos, supomos que
constituam um sistema que chamaremos sistema social, e nos propomos estudar sua índole e propriedades.
Tal sistema muda de forma e de caracteres com o tempo, e, quando propomos o sistema social, entendemos este
sistema considerado tanto em momento determinado quanto nas transformações sucessivas que experimenta
em determinado espaço e tempo. Igualmente, quando se propõe o sistema solar, entende-se tal sistema
considerado tanto em um momento determinado quanto nos sucessivos momentos que compõem um espaço
de tempo pequeno ou grande.
2067. O estado de equilíbrio. Em primeiro lugar, se desejamos raciocinar um pouco rigorosamente, devemos fixar
o estado em que desejamos considerar o sistema social, cuja forma é, a qualquer hora, mutável. O estado real,
estático ou dinâmico, do sistema é determinado pelas suas condições. Suponhamos que se dêem artificialmente
algumas modificações na forma (movimentos virtuais), logo haverá uma reação no sentido de reconduzir a
forma mutável ao seu estado primitivo, levada em contra a mutação real. Se assim não fosse, essa forma e suas
mutações reais não seriam determinadas, mas permaneceriam ao sabor do acaso.” (PARETO, 1984, p.83-84-
85).
tais processos interativos como um sistema. Parsons aproxima sua abordagem dos
sistemas sociais de semelhantes análises voltadas a outras espécies de sistemas. A base
de referência da ação corresponde à “orientação” de um ou mais atores (em se tratando
de sistemas sociohumanos, organismos biológicos) em uma situação na qual estarão
outros atores. Se a ênfase recai na relacionalidade das unidades biológicas e/ou
biopsíquicas com as situações, onde estão inseridas outras unidades, são deixadas de lado
as propriedades internas às unidades, à exceção das influências diretas que tais estruturas
possam exercer sobre a relacionalidade sistêmica.
Com base no marco desta conceituação, a categoria de situação é definida como
o “objeto de orientação” e descrita enquanto diferentes ângulos de referenciamento de
atores, os quais estariam dotados de categorias com as quais se fazem aptos à
conformação de um conjunto. Em se tratando do problema da ação, o mundo dos objetos
é classificado em três classes: “físicos”, “sociais” e “culturais”. Para fins analíticos sobre
a orientação, nos termos parsonianos, pode-se eleger o objeto social correspondendo ao
ator, este poderá ser tanto outro indivíduo qualquer (alter) quanto o próprio ator, ao se
tomar como ponto de referência de si mesmo (ego), ou ainda determinada coletividade.
No bojo desta definição, os objetos empíricos ocupam a posição de meios e condições da
ação, já que não interagem no e reagem ao ego. Por sua vez, os objetos culturais implicam
em elementos simbólicos da tradição cultural, ideias ou crenças, símbolos expressivos ou
padrões de valores, mas desde que considerados inerentes à situação pelo ego e não sejam
internalizados e não integrem à estrutura da personalidade.
Conclui-se, com isso, que a categoria de ação traduz um processo revestido de
significação, o qual é inerente ao sistema ator-situação, ao se mostrar capaz de motivar o
ator – quer dizer, o indivíduo ou os membros de uma coletividade. Em outras palavras, a
orientação dos processos de ação diz respeito aos esforços dos atores visando obter
satisfações de fundo orgânico e, logo, excluir privações, sabendo estarem privação e
satisfação classificadas sob a égide das suas respectivas estruturas de personalidades e
das suas experiências. Isto significa que, de acordo com o esquema proposto no livro, as
necessidades básicas do organismo são ressaltadas apenas no marco da função
desempenhada pela relação do ator com a situação e com a história desta relação.
Portanto, as ações não dizem respeito a reações a estímulos situacionais. Na interpretação
sistêmica proposta, seria decisivo revelar e remontar em suas partes o sistema de
expectativas desenvolvido pelos atores em relação a vários dos objetos internos a uma
situação. Tais objetos apenas serão estruturados à luz das tendências particulares e
também das possibilidades de satisfações e privações vinculadas às alternativas de ação
que abrem. Em se tratando dos objetos sociais, adverte Parsons, delimita-se uma nova
dimensão analítica. E esta advém do fato de que parte da expectativa do ego,
majoritariamente mais importante, resulta da reação do outro à sua ação provável,
afetando diretamente suas opções.
O autor chama atenção ao fato de que as situações são igualmente compostas por
sinais ou símbolos inscritos na organização dos sistemas de expectativas do ator. Mais
propriamente, nas interações, símbolos ou sinais adquiririam significados comuns e
atuam como fatores de comunicação entre os atores. Ao se definirem sistemas simbólicos,
capacitados também à função de meios de comunicação, seria possível então falar de uma
“cultura” constituinte dos sistemas de ação dos atores. São justamente os sistemas de
interação cuja diferenciação teria viabilizado a inserção em um nível cultural, os objetos
focalizados por Parsons, no livro. Nesse sentido, a ideia de sistema social trata dos
sistemas de interação definidos pela inclusão da diversidade de atores individuais
orientados para uma situação dotada de aspectos físicos e ambientais, em que se constata
a existência de um sistema de símbolos culturais de aceitabilidade generalizada. Nestas,
acrescenta Parsons, os mesmos atores tendem à motivação para maximizar suas
satisfações, na medida em que estão interagindo com os pares e com os objetos empíricos
mediante um sistema comum de símbolos culturalmente elaborados. Se esta
reciprocidade define as qualidades posicionais (status) internas aos sistemas sociais, cada
objeto detém um significado na relacionalidade com o ego e isto constitui o que ele chama
de sistema de símbolos ou de “cultura comum”. Mais detalhadamente, isto quer dizer que
a condição de estabilidade entre as complementaridades exige uma padronização
determinada dos significados dos objetos e das orientações, uma permanência no sentido
e no valor atribuído no modo como ambos significam e, logo, ocupam uma posição na
sistemática dos significados internos ao quadro semântico e sintático de um grupo:
Deste ponto de vista, nos revela o autor, um sistema social se insere como uma das facetas
entre as três que comporiam um sistema social de ação concreto. Deste modo, teríamos
correlatos ao sistema social, os sistemas de personalidades dos atores individuais e o
sistema cultural incorporado na ação desses atores. No esquema parsoniano, cada um dos
três sistemas são considerados como independentes no tocante à organização dos
elementos de um sistema de ação, no instante em que é teoricamente impossível reduzir
um ao outro frente suas específicas composições e princípios estruturais. Estão
interdependentes entre si, observa Parsons, na medida em que são mutuamente
complementares e abertos às interpenetrações pelo fato de a ação se manter referencial
aos três.
Reveladas as propriedades essências do sistema social de ação concreto, Parsons
se volta à delimitação dos componentes dos sistemas sociais. E estes se bifurcam em duas
vertentes específicas, ainda que inteiradas à tradição estrutural-funcionalista. São elas,
respectivamente, estrutura e função. Para ele, a categoria de estrutura traduz à
configuração de uma constância, ou seja, modelos institucionalizados de uma cultura
normativa (valores). Sendo esta constituída por componentes apenas na medida em que
estes estejam na interseção de sistemas sociais com os culturais, isto quer dizer que ambos
os sistemas foram internalizados no organismo dos indivíduos mediante a formação de
suas respectivas personalidades. Por sua vez a função condensa e descreve a dinâmica
integrativa que consiste na mediação entre o caráter dado (a estrutura) e as exigências
impostas pela situação circundante, quer dizer, exterior ao sistema. Decorrem daí quatro
imperativos funcionais a qualquer sistema social de ação: a função de manutenção dos
modelos (normativos), a integração, a realização de fins e a adaptação.
Nota-se desde já a destacada importância conferida, no esquema parsoniano, aos
modelos normativos. Estes compreendem valores que são, no entendimento de Parsons,
o componente partilhado nas interações; já a norma consiste na especificação valoracional
referente a um papel ou a sistemas mais complexos (a exemplo de famílias, igrejas,
empresas, administração governamental, etc.). Deste modo, o encadeamento conceitual
elaborado pelo autor se desdobra tendo por referência tais modelos. A princípio tem-se o
papel, ou seja, o complexo de condutas de um dos atores, regulado de maneira normativa.
Os papéis dizem respeito ao setor dos sistemas sociais ocupado por comportamentos de
cada um dos seus membros e que se situa na personalidade destes últimos. Nestes termos,
o papel de um ator é concebido, na articulação das situações definidas pelas suas
participações em um período alongado, por consistir em uma série de comportamentos
esperados ou padronizados, enfim, trata-se de um padrão de tipos cuja variação está
sujeita ao desenvolvimento da situação interativa, ou seja, o processo do sistema
interativo e a correlação entre as sanções do “alter” aos comportamentos do “ego”. Na
sequência categorial está a coletividade, isto é, o sistema formado pela interação de dois
participantes, na medida em que eles compartilhem de uma cultura normativa comum e
se distingam de outros sistemas pela participação específica de ambos os atores.
Desde The Structure Social Action, Parsons se viu às voltas com o problema da
motivação do agente em se tratando de compreender o vínculo lógico desta no corpo de
uma teoria do sistema estruturado de ação. A dificuldade em tela estava em tornar
recíprocos planos instrumentais e normativos da ação, ou seja, como fazer
interdependentes a satisfação de interesses por parte dos indivíduos, na luta por atender
suas carências, e ainda assim se manter coerente com um ideário integrado às
prerrogativas coletivas. A saída que tendeu o autor foi para a interseção entre sistema
social de interação e sistema de personalidade mediante a intervenção do que denominou
“cultura comum”. Vinculada aos quatro princípios funcionais, a seu ver, centrais de um
sistema, a cultura comum estaria na raiz da possibilidade de justamente cimentar um
padrão compartilhado às condutas. No entanto, dois problemas logo decorreram exigindo
alternativas de elucidação. De um lado, como demonstrar os efeitos de generalização de
valores dos dispositivos normativos no respaldo das pautas de expectativas na orientação
das condutas das unidades psíquico-biológicas? De outro, como lidar com o recurso
estrutural-funcional diante do problema da mudança histórica e das alterações ambientais,
além das nuances próprias aos organismos individuais inseridos nestas situações, sabendo
da urgência de integrar as dimensões macro e microssociológicas?
Certamente, o montante dos aspectos inerentes a ambas as indagações
extrapolaram o marco das respostas possíveis dadas por Parsons. Por isso mesmo, o
desenrolar das duas questões estiveram na origem da emergência de posições de ataque
ao esquema parsoniano; posições as quais, por volta dos anos de 1960, lograram sucesso
na reivindicação de se colocarem como alternativas interpretativas e analíticas.
No prefácio à segunda edição de The Structure Social Action, no mesmo compasso
em que deixa patente serem as proposições de Boas, na antropologia social, secundárias
para os propósitos de uma teoria geral da ação, frente ao legado deixado por Durkheim,
Parsons sublinha estar uma das limitações do seu livro no descaso dos aspectos
psicológicos do esquema conceitual da teoria social. Anota a contribuição de todo um
curso geracional, centralizado na figura de Freud, exatamente, à evolução do pensamento
nessa mesma direção e, apesar da diferença em seus pontos de partida e nos seus
interesses empíricos, ele sinaliza para a imperiosidade de retomar a contribuição
freudiana à revisão do livro, considerando a tarefa indispensável à realização dos seus
objetivos, pois os alargaria. Bem evidente que, nesse momento, Parsons tentava sanar
aquelas dificuldades do seu raciocínio que vinham à tona. E estas se revelavam na exígua
margem à compreensão e tratamento conceitual dos processos cognoscíveis próprios aos
agentes sociais.
A elaboração de The Social System já porta algumas iniciativas visando contornar
o problema. Na segunda parte do livro, dedicada à integração e aos padrões latentes de
manutenção e à tensão na realização de finalidades internas aos sistemas, ele devota maior
atenção ao plano expressivo das ações à luz da organização interna dos sistemas enquanto
grupos humanos de pessoas socializadas mediante padrões culturais presentes à interação.
É neste momento em que reforça a ideia sobre os quatro imperativos do paradigma
funcional, mais popularmente conhecido como AGIL. Ou seja, o esquema encadeando
“adaptação”, “integração”, “padrão de manutenção” e realização de finalidades como
requisitos decisivos ao equilíbrio sistêmico. A função “A”, de adaptação, refere-se ao
problema do processo no qual o sistema se relaciona com ambiente externo no tocante à
busca e distribuição de recursos necessários às suas atividades. Por sua vez a função “G”,
realização de finalidades, consiste na formulação de bens pelos sistemas sociais e de
motivações na mobilização desses já elaborados recursos. A função de integração
concerne à questão interna dos processos de coordenação das varias relações
organizando-as, assegurando a prevenção ou à solução das irrupções de conflitos.
Finalmente, a função “L”, padrão latente de manutenção e da tensão do comando, diz
respeito a um modo igualmente de organização de problemas. Ao estender o seu esquema
das cinco funções, Parsons atribui ao sistema cultural o encargo de manutenção, ao suprir
de valores e normas as motivações dos atores. O sistema de personalidade atuaria naquilo
relacionado à formulação de bens e a tomada de decisões, estando vinculado à realização
de finalidades a função adaptativa na articulação entre as necessidades orgânicas e os
recursos ambientais. Por fim, o sistema social (mais propriamente a sociedade)
corresponderia o plano da configuração organizacional dos papéis inscritos no estatuto
das posições integradas pelos padrões culturais, que orientam os esforços no
agenciamento dos sistemas de personalidades no atendimento das suas necessidades. Tal
arquitetura funcional-sistêmica teria outra contrapartida, de acordo com Parsons, na
delimitação dos subsistemas político, econômico, de integração e cultural. Assim, caberia
ao subsistema econômico executar as funções de realização de atividades, isto no ajuste
de instituições e papéis sociais relativos às tecnologias e aos mercados. Já a função de
adaptação das motivações, ao sistema político. Cabendo o reforço da coesão ao
subsistema integrativo, formado pelas instâncias jurídicas e de controle como a polícia.
Os padrões de manutenção estariam sob a égide do subsistema cultural capacitado ao
fornecimento de padrões valoracionais comumente comungados na socialização, graças
à atuação de entidades como igrejas, escolas, entre outras.
Mais tarde, quando escreve Economia e Sociedade, em parceria do Neil J.
Smelser, Parsons tenta aperfeiçoar o exame dos múltiplos intercâmbios entre esses
sistemas e seus subsistemas. Sobretudo retomando o seu interesse em rearticular
sociologia e economia, volta-se para o estudo da interdependência funcional entre os
subsistemas, observando como as trocas se devem as disposições de abertura e
fechamento relacionadas ao movimento dos recursos na cadeia funcional dos sistemas.
Deste modo, atem-se ao dinheiro enquanto recurso definido justamente por viabilizar o
intercâmbio generalizado em sistemas altamente diferenciado de funções, mas
convergentes na realização de finalidades. Já o poder exerceria função similar de meio
simbólico de intercâmbio no tocante ao subsistema político nos mesmos arranjos
sistêmicos, tendo por foco a adaptação. A influência seria um recurso neste sentido, mas
ajustado à função de integração e os padrões culturais na função de manutenção.
Cada vez mais, no avanço do seu percurso, Parsons se viu pressionado em
conceituar a aliança capaz de proporcionar o ajuste sistêmico de partes em equilíbrio. Isto
determinou uma atenção maior, principalmente a partir da década de 1950, ao fluxo
informacional intrasistêmico. O auxílio da cibernética e, nela, das teorias do código e da
informação foram decisivas ao redimensionamento do seu esquema conceitual-analítico7.
Desta maneira retoma o problema acerca das entradas (inputs) e saídas (outputs) de
7A novidade inserida pelo esquema parsoniano na teoria dos sistemas sociais está justamente na premissa de
que residem nos dispositivos de inputs e outputs, pelos quais se estabelecem as relações de troca entre sistemas e
ambiente, o procedimento que mantém os sistemas ordenados, em equilíbrio, diante do perigo da entropia que
ameaça-lhes a diferencialidade (BUCKLEY, 1974, p. 45-54).
recursos à luz da teoria sobre os controles informacionais das condições energéticas. Pode
assim reelaborar as cinco funções dos sistemas de ação enquanto expressão de um modelo
de hierarquia. Ter-se-ia então funções no controle do desenvolvimento do sistema de
ação, funções de canalização mediante o fluxo informacional; enquanto outras estariam
ocupadas no fornecimento de energias demandadas pelo mesmo desenvolvimento.
Resulta uma imagem piramidal hierárquica, tendo por pináculo as funções culturais de
fornecimento de padrões-valores básicos à estruturação da ação por meio da
internalização de valores durante a socialização. A modelagem cibernética se apresenta
como uma saída interpretativa para o autor se voltar mais de perto às articulações das
ações com as condições físico-ambientais, desde aí ele investe na investigação dos modos
como se dariam o controle dos atores no plano mesmo das suas atuações em papéis
sociais. Tentará considerar para isto como as dimensões físico-químicas do organismo
são atravessadas pelos fluxos informacionais contendo os valores de orientação e visando
extrair disso as conexões entre os eixos normativos societais e as tomadas de decisões dos
atores na execução de finalidades que lhes demanda energias. Enfim, volta ao que deixou
em descoberto no texto de The Structure of Social Action; aplica-se sempre mais ao estudo
da estrutura enquanto correlação entre agência, interpretação e subjetividade. Em
especial, concentra-se no tema dos significados como elementos moral-normativos
capacitados a coordenar, orientando as atitudes individuais.
Sem dúvida, Parsons guarda da obra de 1937 a proposição de que Weber e
Durkheim compartilham de um mesmo horizonte, pois ambos ao falarem respectivamente
em legitimidade e autoridade estariam enunciando conceitualmente a devoção a valores
que superariam os limites dos interesses da autoconservação individual e inserindo estes
mesmos interesses nos planos da entrega a ideários cuja abrangência só a teoria coletivista
de prisma macrossociológico voltada à escala dos sistemas poderia dar conta. Ao mesmo
tempo, isto requer aliar ao problema cognoscitivo da realização instrumental de finalidade
à questão da norma e, com ela, tudo que cerca o tema mesmo do envolvimento,
notadamente a evocação afetiva. Assim, o autor resgata a contribuição psicanalítica,
principalmente as elaborações canônicas de Freud quando escreve o livro Social Structure
and Personality. Editado em 1964, na verdade a obra compila em três partes um rol de
artigos teóricos e analítico-empíricos que revelam a trajetória parsoniana ao longo da
década de 1950, período de maior aproximação com a psicanálise. Em especial, a parte
um demonstra o esforço de oferecer uma perspectiva teórica.
Neste sentido, o artigo de abertura – “The superego and the theory of social
systems” – reúne as principais sugestões ao tipo de aporte conceitual que autor canaliza
para sua interpretação da relação entre as dimensões psíquico-biológicas e societais. Aí,
inicialmente, Parsons se debruça na maneira como Freud resolve pelo emprego das
categorias de “catexia” e de “identificação” a relação sujeito e objeto na teoria do
superego. De acordo com a proposição freudiana, a instância superegóica do inconsciente
é formada ante de mais nada pela catexia (ou seja, por afetos, amor). O que leva o sujeito
a identificar-se ao seu objeto seria o amor, permitindo a internalização do último. As
crianças concentradas em seus pais, enquanto fonte de prazer, os introjetariam
afetivamente, identificando-se a eles e convertendo os traços inerentes às personalidades
dos pais em seus elementos psíquicos. Justamente o interesse de Parsons pela psicanálise
é a possibilidade que esta ofereceria de demonstrar como, no movimento formativo da
personalidade, as condições externas são sempre mais mediadas por padrões morais
internalizados. As expensas de Freud, ele extrai daí uma plataforma explicativa à
internalização das normas como incorporação, ou seja, desde a tenra infância, os objetos
sociais estariam referidos às interações em que prevalece a conexão entre afetos e
identificações. Na proposta freudiana, ao se deflagrar na primeira internalização objetual
a formação do superego, dar-se-ia o trato com outras modalidades de autoridade ao longo
da vida pessoal. Parsons conclui, alargando por conta própria e fazendo a crítica da
concepção original freudiana, que toda e qualquer relação com objetos externos seria
regulada por padrões normativos previamente internalizados.
Com isto, argumenta o autor, a relação com os objetos são experienciadas pelos
sujeitos como se fossem familiares, deslocando a percepção de externalidade daqueles.
Nesta interpretação se ressalta o foco do interesse parsoniano: demonstrar que, na
generalização da infância, os movimentos de introjeção e identificação compõem não
apenas a formação da personalidade, igualmente da manutenção da sociedade. Deste
modo, o autor acrescenta que a distinção entre sistema cultural, social e de personalidade
é tão somente analítica, não se tratariam de substâncias, entes físicos, afinal uma
instituição, uma situação social e uma pessoa constituem simultaneamente todos os
sistemas. A partir de tal esclarecimento, Parsons irá definir a personalidade como o
conjunto das necessidades individuais (orgânicas e emocionais) que assumem um perfil
em cada indivíduo por meio da socialização, ou melhor, da evolução da sua experiência
no escopo da sociedade. A personalidade é um nível da vida social articulado, mas não
redutível à diferenciação social. Já o nível do sistema social é aquele das
interdependências das personalidades em que a organização societal enfrenta a
distribuição de bens em meio à escassez de recursos exigidos à satisfação das diversas
necessidades individuais, assim, inserindo os temas da legitimidade e da justiça. A cultura
aí interfere justamente por fornecer amplos padrões simbólicos de sentido e valor que
informam de ideais o ajuste possível entre necessidades e a sistemática das interações.
Logo, a cultura estaria na raiz da possibilidade de entender o sistema social como uma
série complicada de papéis sociais definidos como um conjunto detalhado de obrigações
para a interação no mundo real. Vê-se, assim, que a sequência de papéis executados por
um ator encadearia sua autoimagem com as perspectivas do sistema social, já que este
corresponde à coordenação e controle dos diversos papéis e, em última instância, efetuaria
o controle das necessidades a base dos valores comuns difundidos. A coerência sistêmica
seria, portanto, um produto caracterizado pelo estado pleno de equilíbrio e cooperação
entre as partes. Esta harmonia se regularizaria pela complementaridade das expectativas
intrínsecas às institucionalizações, no bojo do qual a situação das interações diria respeito
ao fato de existir mutualidade entre os desejos pela concordância entre as autoimagens,
por intermédio de recompensas possíveis pela regulação dos fluxos de informação e de
energias devido à intervenção dos meios de intercâmbio. O conflito emergiria no instante
em que se tornam insatisfatórios os intercâmbios entre atores (sejam eles indivíduos ou
grupos), favorecendo assim comportamentos desviantes aos padrões ideais descritos pelas
normas.
Sem dúvida, aqui se concentram as maiores dificuldades do arranjo de proposições
gerais que conformam o sistema teórico parsoniano, já que toda perspectiva evolucionária
em Parsons se encerra no movimento de um ordenamento de poder capacitado a
maximizar as recompensas com finalidade de manter o equilíbrio entre as partes e, assim,
favorecer a estabilidade mantenedora das complementaridades institucionais de todo o
sistema. Em livros como Societies: Evolutionary and Comparative Perspectives (de
1966) e The System of Modern Societies (de 1971), o autor se impõe a tarefa de apresentar
um modelo explicativo e de explanação do processo geral de evolução das sociedades.
Recorre para isto à ideia de adaptação dos sistemas sociais aos seus ambientes, dando
relevo à diferenciação dos subsistemas internos às estruturas daqueles, entendendo-a
como manifestações progressivas da adaptação na mobilização e transformação de
recursos de integração por meios de dispositivos de coordenação e controle. Com isso,
ele acompanha o que seria a passagem de sociedades primitivas de embocadura mais
simples para sistemas cada vez mais complexos. Em The System of Modern Societies,
porém, o autor resgata de Durkheim a ideia de solidariedade social para argumentar como
este processo progressivo de diferenciação socioinstitucional, ajustado às alternativas de
adaptação dos sistemas, realiza-se na permanência de sentidos comunitários.
Notoriamente, Parsons perseverava sua tônica comunitarista e sua ênfase no paradigma
estrutural-funcionalista sobre perspectivas orientadas para o plano micro da ação e, na
contrapartida, deslocava o foco do desvio para soluções internas aos arranjos sistêmicos.
Os impasses gerados no compasso das lacunas deixadas pelo seu esquema
analítico fazem eclodir celeumas internas aos domínios estrutural-funcionalistas,
deixando em xeque a posição hegemônica parsoniana. Posição cada vez mais diluída no
decorrer dos anos de 1960 com o advento correntes teórico-analíticas concorrentes. No
início da década de 1970 se dissolve o Departamento de Relações Sociais na Universidade
de Harvard. Encerrava-se, desta maneira, a trajetória que, desde 1931, Parsons iniciará
pavimentando um caminho no qual formou um conjunto célebre de jovens e cujas
posteriores participações no campo sociológico dos Estados Unidos implicaram na
própria expansão do modelo estrutural-funcionalista pela via da teoria sistêmica.
Referências Bibliográficas: