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Análise do podcast Ciência Suja

Maria Eduarda Rabello

1.      O Ciência Suja


O podcast Ciência Suja é um projeto da produtora audiovisual Nav Reportagens,
fundada em 2017 pelos jornalistas Felipe Barbosa e Pedro Belo. Colegas na Faculdade
Cásper Líbero, ambos fizeram carreira como repórteres em veículos tradicionais.
Conforme relatam no site oficial da produtora, uniram-se com o objetivo de criar uma
empresa jornalística capaz de contar as histórias que não encontram espaço na grande
mídia. O foco da Nav, entretanto, é a produção de vídeos. O Ciência Suja foi o primeiro
projeto pensado para o áudio - e, ainda de acordo com o exposto no site, a principal
aposta da empresa para o biênio 2020-2021.
A proposta para o podcast era explorar casos emblemáticos em que a distorção
dos processos científicos houvesse trazido consequências graves para a sociedade, e, a
partir disso, reforçar a importância da “ciência ética, rigorosa e robusta”, assim como da
“divulgação científica responsável”. Com esse objetivo em mente, Barbosa e Belo
convidaram os também colegas de faculdade Thais Marinari e Theo Ruprecht para
pensar, produzir e apresentar o projeto. Ambos possuíam experiência em jornalismo de
saúde e de ciência. Com o apoio financeiro do Instituto Serrapilheira, a ideia foi posta
em prática.
A produção do Ciência Suja começou em 2020, mas o episódio de estreia só foi
lançado em 19 de agosto de 2021. A primeira temporada contou com seis episódios
narrativos e cinco episódios de mesa redonda, com foco em casos marcantes em que a
ciência havia sido “deturpada”. Os do primeiro tipo consistem em investigações
aprofundadas, com roteiros fechados e edição posterior, enquanto os do segundo tipo
são conversas entre os apresentadores e especialistas de cada pauta, sem um roteiro
fechado e com disponibilização do material gravado na íntegra. Os episódios foram
publicados com intervalo de duas semanas.
A segunda temporada foi ao ar em 21 de julho de 2022 e ainda está em
andamento - até o momento, foram publicados sete episódios narrativos e cinco
episódios de mesa redonda, com a mesma periodicidade. O Ciência Suja segue
abordando casos de mau uso da ciência, agora também com um olhar voltado para os
impactos na política e, em especial, nas eleições deste ano. Outras novidades desta
segunda fase foram a chegada da jornalista Chloé Pinheiro para contribuir com a etapa
de produção e a conquista de apoio financeiro do Instituto Questão de Ciência (IQC).
Hoje são estes cinco jornalistas citados que compõem o time do podcast. Thaís
Manarini e Theo Ruprecht atuam na produção, na elaboração de roteiro e na
apresentação; Chloé Pinheiro, Felipe Barbosa e Pedro Belo também auxiliam na
produção, e estes dois últimos, idealizadores do projeto, também são responsáveis pela
edição e pelas questões técnicas. 

  2.      Análise dos episódios “Cigarro: o pai do negacionismo moderno” e


“MESACAST #4 – Constelação familiar no judiciário”

  2.1 Seleção
A escolha dos episódios para análise se deu em função do interesse
pessoal nos temas abordados e da vontade de contemplar os dois formatos
atualmente produzidos pelo podcast (narrativa e mesa redonda). A ordem da
análise foi estabelecida de acordo com a data de publicação, do mais antigo para
o mais recente.

2.2 “Cigarro, o pai do negacionismo moderno”


O episódio, publicado em setembro de 2021, é o terceiro da temporada de
estreia do Ciência Suja. Sua produção se justifica quando considerada a
proposta desta primeira temporada, que é apresentar aos ouvintes os
principais casos de manipulação e negação da ciência na história recente.
O formato é narrativo, e a duração é de aproximadamente uma hora. A
estrutura textual possui semelhanças com a do texto de revista, o que, em
certos trechos, provoca no ouvinte a sensação de que os apresentadores estão
lendo uma reportagem pensada para o impresso. A linguagem é leve,
informal, com os apresentadores Theo Ruprecht e Thaís Manarini tratando o
ouvinte por “você” e adotando uma pronúncia despreocupada das palavras.
O roteiro é bem elaborado, fazendo bom uso das possibilidades de entonação
que o conteúdo em áudio permite e aproveitando a alternância de narradores
como ferramenta de alívio e retomada da atenção.
O ritmo da produção, por sua vez, é bastante acelerado – o suficiente para
tornar-se um problema. Isso acontece devido à maior complexidade da
narrativa, que faz um constante vai-e-volta entre passado e presente, Brasil e
exterior, e ainda se vale de uma quantidade significativa de números e nomes
estrangeiros. É preciso que o ouvinte dedique atenção máxima ao episódio
para compreendê-lo na sua totalidade. Considerando sua extensão e a
maneira como o público consome conteúdo digital hoje, é provável que
muitos dos ouvintes não levem a escuta até o final.
A edição é simples, mas eficiente. Não há um fundo musical, o que se
mostra uma escolha acertada diante da seriedade do tema e dos fatores
narrativos já mencionados. Os efeitos sonoros são empregados com dois
objetivos: intensificar momentos de clímax ou identificar a troca de fases da
reportagem. Eles são sempre enervantes, obscuros. Parece uma tentativa de
reforçar a gravidade dos fatos, e funciona. Como nos demais episódios da
temporada, neste também não há uma trilha característica do Ciência Suja.
Um ouvinte acostumado aos formatos do rádio e dos podcasts pode sentir
falta. Perde-se a oportunidade de gerar uma memória afetiva.
Quanto ao trabalho jornalístico, o foco está em demonstrar a ligação
entre o negacionismo promovido pelas empresas do ramo tabagista a partir
dos anos 50 e os casos de negacionismo da atualidade, especialmente em
relação ao aquecimento global e a pandemia de coronavírus.
Os jornalistas fazem uma extensa retomada histórica, voltando ao
período em que o cigarro era percebido como algo positivo pela sociedade.
Eles explicam o contexto da época e então partem para a reconstituição do
progresso científico no estudo da nicotina e seus efeitos. O roteiro mostra
como a indústria começou a agir tão logo foram constatados os primeiros
indícios de que a nicotina causava vício e diversas patologias.
Há um detalhamento dessas estratégias, feito a partir do caso judicial
americano “Estados Unidos X Philip Morris”, do livro “Merchants of
Doubt”, de entrevistas com pesquisadores do Observatório sobre Estratégias
da Indústria do Tabaco da FioCruz e da Aliança de Controle do Tabagismo
(ACT), e de fontes documentais. O podcast mostra como essa manipulação
das informações acontecia na prática: como cientistas sem especialização na
área da saúde eram usados para validar estudos com problemas
metodológicos e resultados enviesados, e como as empresas faziam o
possível para associar o ato de fumar à ideias de jovialidade, status social e
até mesmo saúde. Em certo trecho, a jornalista Tainá Manarini chega a
elencar essas táticas, construindo uma estrutura de “guia”, o que poderia
levantar questionamentos morais caso tal conteúdo não fosse já tão
difundido.
As consequências do negacionismo promovido pela indústria do cigarro
são ilustradas por dados. Os apresentadores trazem números relacionados à
adição, às doenças e às mortes derivadas do consumo de tabaco. As
informações são sempre de fontes oficiais como a Organização Mundial da
Saúde (OMS) e institutos de pesquisa, como a FioCruz.
Os dados conferem veracidade e peso à narrativa, mas o que comove o
ouvinte é a inserção do personagem Ricardo Gama. Fumante por quase dez
anos, Gama foi diagnosticado com câncer de laringe e perdeu a capacidade
de falar sem a ajuda de dispositivos auxiliares. É o seu relato que humaniza a
reportagem, e a sua rouquidão, tão característica de quem tem o fumo como
hábito, se soma ao tom metálico e artificial gerado pelo aparelho - causando
ao mesmo tempo estranhamento e certo interesse no ouvinte. Eles também se
valem do impacto das vozes roucas para abrir e fechar o episódio, quando
usam trechos de uma apresentação do Coral do A.C.Camargo Cancer Center,
composto exclusivamente por pessoas laringectomizadas. É eficiente e
desperta emoção.
O episódio, no geral, é bem sucedido nas suas escolhas e cumpre o
desafio de apresentar ao ouvinte a ligação entre o negacionismo promovido
pela indústria do tabaco décadas atrás e os casos de negacionismo que se
sucedem hoje. Incomoda, porém, a não-linearidade um tanto exagerada, o
ritmo demasiadamente acelerado e até mesmo o tempo dedicado ao
negacionismo da crise climática (trecho que se torna quase um episódio
dentro do episódio). Faz falta o relato de algum indivíduo que tenha sido
diretamente impactado pelas desinformações das empresas de cigarro (ou
pelo menos abordar este aspecto com o personagem escolhido) e um olhar
um pouco mais demorado para o crescente uso de cigarros eletrônicos que se
verifica no país e no exterior, derivado de um processo praticamente igual ao
que se sucedeu ainda no século passado. 

2.3 “MESACAST #4 - Constelação familiar no judiciário”

O episódio foi publicado em 8 de setembro de 2022, e é o nono da


segunda temporada. Nesta segunda fase do Ciência Suja, os episódios de
mesa redonda foram realizados em parceria com o Observatório de Ciências
Políticas do IQC – o que é mencionado já na abertura. A relação da pauta
“constelação familiar” com a temática norteadora da temporada (casos de
mau uso da ciência e seus impactos na política e nas eleições) é menos óbvia
e até pouco nítida, ainda que este seja um perfeito exemplo de desconstrução
dos conceitos e métodos científicos.
Diferentemente do episódio anteriormente analisado, aqui o formato é de
mesa redonda, e a duração é de mais de uma hora. A mediação da conversa
fica sob responsabilidade de Theo Ruprecht, que adequadamente realiza uma
profunda apuração prévia e evita ser ele mesmo um mero ouvinte dos
convidados. Pelo contrário: o jornalista conduz o encontro com presença
crítica e por vezes contrapõe e embasa as falas dos especialistas com dados
Assim como nos episódios narrativos, a linguagem é leve e informal, e
essas características se tornam ainda mais marcantes devido à
impossibilidade de um roteiro fechado, natural do formato. Tudo é mais
adjetivado, inclusive a descrição textual associada ao episódio. O
apresentador trata a constelação familiar como a pseudociência que ela de
fato é, por vezes explicitando a própria incredulidade e repúdio.
Como não há um roteiro fechado e a conversa se desenrola de acordo
com as participações dos convidados, aqui o ritmo não é um problema. É um
bate-papo fluído, nem vagaroso nem corrido. Pode-se compreender com
tranquilidade os contextos e conceitos expostos, e o ouvinte consegue
inclusive dividir sua atenção entre o podcast e outra atividade. A boa
condução do mediador impede que hajam digressões para assuntos satélites.
Mais uma vez a edição é simples e eficiente, mas dessa vez há um fundo
musical neutro, que parece estar ali apenas para provocar a sensação de
continuidade, de movimento. É quase como se a trilha mantivesse a conversa
fluindo. Sente-se novamente a falta de uma identidade sonora do Ciência
Suja, algo que já poderia ter sido repensado, dada a quantidade de episódios
publicada.
Quanto ao trabalho jornalístico, o foco está em demonstrar como a
prática da constelação familiar não possui nenhum embasamento ou
comprovação científica – e se quer faz algum sentido. O jornalista e os
convidados reconstituem a origem das constelações e o seu momento de
chegada e ao Brasil e implementação no judiciário, em 2012. A partir de
então, explicam para o ouvinte como a dita técnica funciona e como é
aplicada hoje nas rotinas do terceiro poder, sempre evidenciando seus muitos
problemas e as consequências sofridas por quem é sujeitado à ela.
Theo Ruprecht é acompanhado pelos advogados e pesquisadores Mateus
de França e Marina Guagliariello, e pelo jornalista especializado em ciência
(e parceiro do IQC) Carlos Orsi. Todos são estudiosos das constelações
familiares, ainda que sob diferentes aspectos. Juntos, os quatro são eficientes
na missão de demonstrar para o ouvinte porquê o uso da técnica no judiciário
brasileiro deve ser considerado absurdo. As falas são bastante didáticas, e até
mesmo pontos mais simples, como as atribuições do judiciário, são
revisitadas para eliminar dúvidas. A ressalva fica por conta da escolha das
fontes, uma vez que Guagliariello e de França falam de posições muito
parecidas – e não há, no grupo do Mesacast #4, um representante do
judiciário capaz de trazer as perspectivas das instituições de justiça.

3.0 Relacionamento
O Ciência Suja é um podcast jornalístico que não está atrelado a um grande
veículo ou conglomerado de mídia. Esse é um fator definidor em todas as suas escolhas
e direcionamentos, desde a proposta de conteúdo até as estratégias de divulgação. Pode
ser considerado um projeto independente, já que o único vínculo de responsabilidade é
com a NAV Reportagens, empresa de pequeno porte conduzida pelos mesmos
jornalistas que produzem o podcast.
Há um apoio financeiro por parte do IQC (indefinido) e do Instituto
Serrapilheira (50 mil reais em 2020 e 99 mil reais em 2022), mas são doações dentro de
projetos de incentivo e suporte à divulgação científica, de forma que o podcast continua
tendo total liberdade na produção dos seus episódios e também na comunicação
desenvolvida em outras frentes. Também existe uma ligação com a Rádio Guarda-
Chuva, com uma natureza semelhante à de chancela, que eles classificam como “selo”.
O projeto parece estar sustentado apenas nessas doações: em nenhum momento
há veiculação de anúncios ou pedido de doações por parte do público. Também não são
oferecidos serviços que demandem uma assinatura ou pagamento único. Essas
constatações são válidas para os episódios das duas temporadas, para o conteúdo
publicado nas redes sociais e para o material exibido no site. Dado o estilo do podcast,
supõe-se que o custo de produção não seja demasiadamente elevado - o que torna viável
executar o projeto. Preocupa, entretanto, que a equipe aparentemente não busque meios
alternativos de financiamento nem incentive doações de ouvintes, uma vez que apoios
de institutos e entidades semelhantes não oferecem garantia de renovação.
O site oficial do podcast, entretanto, é um alento - é atrativo, de fácil navegação,
contém as informações necessárias sobre o projeto e a equipe, disponibiliza a íntegra
dos episódios da segunda temporada (mas não da primeira) e ainda oferece material
complementar para o ouvinte, como links para os documentos consultados e reportagens
ou trabalhos mencionados e uma versão para download dos roteiros. O
redirecionamento para as redes sociais também é bem posicionado e fácil. É preciso
ainda destacar a qualidade dos materiais gráficos que acompanham os episódios e da
identidade visual do Ciência Suja, desenvolvida por May Tanferi e Guilherme Henrique
(o que também está bem creditado no site).
O projeto possui perfil no Instagram, no Facebook, no Twitter e no Youtube,
totalizando 14.400 seguidores. Todo conteúdo publicado nesses perfis é derivado dos
episódios. No Instagram, há uma tentativa maior de explorar formatos capazes de atrair
novos ouvintes, e um cuidado com as tendências atuais. O mesmo não acontece nas
outras redes sociais, em que o Ciência Suja apenas reposta os episódios ou as
publicações pensadas para o Instagram. A interação com o público ainda é mínima, com
a figura do podcast se limitando a curtir comentários e sem estimular uma participação
mais ativa dos ouvintes, o que pode estar relacionado à fase inicial do projeto ou à sua
condição de atividade paralela para todos os membros da equipe.
Hoje as temporadas estão disponíveis, além das redes sociais, nos agregadores
Spotify; Apple; Google; Amazon; Deezer; Castbox; Overcast; Stitcher; Podcast Addict,
Pocket Casts; Player FM e RSS. Em síntese, pode-se dizer que o Ciência Suja se
preocupa com a distribuição do seu material, mas, ao menos no momento, não tem
como prioridade a construção de uma comunidade de ouvintes.

ANEXO:
Link para o comentário em áudio -
https://drive.google.com/file/d/1bmBB8V2oyaNDiS8jA_0mxbiOc2QoJNaQ/view?usp=sharing
 

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