Você está na página 1de 13

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Universidade Federal de Uberlândia

DISCENTE: José Guilherme da Silva de Oliveira;

MATRÍCULA: 11711HIS206;

DISCENTE: Lorrayne Lima dos Santos


MATRÍCULA: 11711HIS021

CURSO: História e Mídias

PROFESSORA: Ana Flávia Cernic Ramos

O roteiro a seguir foi pensado como o primeiro de uma série de episódios curtos
especiais do podcast Politicamente Preto1. Os quais teriam de dez a vinte minutos trabalhando
o passado e não o presente como o programa normalmente tratava. Tratava no passado
porque ele está em um hiato indeterminado devido a questões pessoais da host e produtora
Natália Granato. Após discussões com a mesma ficou decido que episódios curtos e pontuais
sobre temas específicos seriam a melhor escolha para o retorno das atividades por conseguir
se encaixar bem tanto na rotina dos ouvintes quanto dos produtores.
O podcast foi a mídia escolhida para tal por permitir discussões mais longas e
aprofundadas que plataformas como o Tik Tok e o Reels e é versátil o suficiente para se
encaixar nas rotinas dos ouvintes sem que parem suas atividades e no caso deste episódio
piloto em específico pode se aproveitar de uma estrutura já montada de feed RSS e registro
ativo no Spotify para o retorno das atividades Assim disputando espaço no debate do passado
com figuras que o fazem sem a devida formação, integrando-se a leva de História Pública.
A história pública se dá na prática do historiador de se adequar para além dos limites
da academia, ao debate público sobre o passado. Tornando-a acessível e relevante para um
público mais amplo. A divulgação científica desempenha um papel crucial nesse processo,
permitindo que os historiadores compartilhem seus conhecimentos e pesquisas com o público
em geral.

1
Disponível em: https://open.spotify.com/show/0X3f62yvAszkVq2afMfSKx
A história pública busca estabelecer uma ponte entre os historiadores e o público alvo
de seu trabalho de divulgação, levando em consideração que a história não é apenas um
campo de estudo acadêmico, mas também uma parte integrante da vida cotidiana de todas as
pessoas. Com o passado sendo parte essencial do referencial necessário para dar sentido à
vida. De tal forma, a divulgação científica permite que a história seja trabalhada de forma
envolvente e cativante, despertando o interesse do público e incentivando a compreensão e
apreciação da importância do passado.
Uma das formas mais eficazes de divulgação científica da história pública é através de
livros, documentários, exposições, podcasts e outras formas de mídia. Essas mídias têm o
poder de contar histórias de maneiras que atraem e envolvem o público, conectando-se com
suas experiências e emoções. Além disso, as mídias digitais e as redes sociais desempenham
um papel crucial na divulgação da história pública, permitindo que os historiadores alcancem
um público global de maneira mais direta e interativa.
No entanto, a divulgação científica da história pública também traz consigo desafios e
questões a serem considerados. Por exemplo, é importante garantir que a divulgação seja
precisa e baseada em pesquisas sólidas. Os historiadores devem se esforçar para comunicar
suas descobertas de maneira acessível, sem comprometer a complexidade e a nuance da
história. Também é importante reconhecer e abordar diferentes perspectivas e interpretações
históricas, evitando simplificações excessivas ou narrativas unilaterais. Sempre em um
diálogo constante com o público alvo, com seus conhecimentos prévios para poder a adaptaro
conteúdo aos interlocutores. De forma que se torna uma via de mão dupla com todo o
processo sendo continuamente adaptado ao feedback dos de quem o consome.
Além disso, a divulgação científica da história pública deve ser inclusiva e diversa,
refletindo a multiplicidade de experiências e vozes presentes na sociedade. Isso implica em
incluir narrativas e histórias de grupos sub-representados, desafiando estereótipos e
promovendo uma compreensão mais abrangente do passado. A história pública também pode
desempenhar um papel importante na construção de pontes entre diferentes comunidades e na
promoção do diálogo intercultural.
Em suma, a divulgação científica da história pública desempenha um papel vital na
democratização do conhecimento histórico e na promoção de um maior engajamento e
apreciação do passado por parte do público. Ao levar a história para além dos muros da
academia, os historiadores podem contribuir para uma sociedade mais informada, reflexiva e
consciente de sua própria história e identidade.
Os podcasts têm se tornado uma forma popular de divulgação científica da história
pública e de combate à desinformação. Eles oferecem uma plataforma acessível e
conveniente para os historiadores compartilharem seu conhecimento, pesquisas e perspectivas
de uma maneira envolvente e cativante.
Um dos benefícios dos podcasts é a sua natureza auditiva, que permite que as pessoas
ouçam os episódios enquanto realizam outras atividades, como dirigir, fazer exercícios ou até
mesmo durante tarefas domésticas. Isso torna a informação histórica mais acessível, pois
elimina a barreira do tempo e oferece a flexibilidade de consumir conteúdo em momentos
convenientes para o público.
Os podcasts podem desempenhar um papel significativo na promoção de um
pensamento crítico e na disseminação de informações baseadas em evidências. Os
historiadores podem utilizar essa plataforma para abordar mitos e distorções históricas que
possam ser usados para fortalecer discursos políticos ou disseminar desinformação. Eles
podem fornecer um contraponto sólido aos argumentos simplificados e enviesados,
oferecendo uma perspectiva embasada em pesquisa e análise histórica.
Além do mais, os podcasts podem abordar temas controversos de uma forma que
promova o diálogo e a compreensão. Ao apresentar diferentes perspectivas e interpretações
históricas, os historiadores podem ajudar o público a desenvolver uma visão mais complexa e
contextualizada dos eventos passados. Isso pode ajudar a combater polarizações e
estereótipos simplistas, promovendo uma discussão mais informada e construtiva sobre a
política atual e o contexto histórico que a moldou.
Os podcasts também podem ser uma ferramenta eficaz para aumentar a
conscientização sobre a importância da análise crítica da informação e da fonte. Os
historiadores podem discutir métodos de pesquisa, fontes primárias e secundárias, e os
critérios usados para avaliar a credibilidade e a confiabilidade de informações históricas. Isso
pode incentivar o público a adotar uma abordagem mais cética em relação às notícias e
informações que encontram, especialmente em um cenário de desinformação disseminada
pelas redes sociais.
A educação histórica e a alfabetização midiática são elementos fundamentais para
combater esses problemas. Os historiadores e produtores de podcasts devem trabalhar em
conjunto com educadores, instituições acadêmicas e a sociedade em geral para promover uma
compreensão mais profunda e crítica do passado e uma análise mais cuidadosa das
informações recebidas.
Os podcasts têm o potencial de ser uma ferramenta poderosa na divulgação científica
da história e no combate à desinformação. Eles oferecem uma plataforma acessível,
envolvente e flexível para os historiadores compartilharem seus conhecimentos e perspectivas
históricas embasadas em evidências. Ao promover o pensamento crítico, a compreensão
contextualizada e a análise rigorosa das informações, os podcasts podem contribuir para uma
sociedade mais informada e consciente do seu passado e presente.
Além do mais, a classe dos historiadores e por tabela dos professores passam por uma
crise de legitimidade que se agravou com a crise da democracia liberal. De tal forma que dá
vasão a saídas autoritárias tanto do ponto de vista social quanto político. E para se justificar
os movimentos conservadores recorrem ao passado. Figuras como Olavo de Carvalho e Paulo
Kógos e até mesmo algumas que não estão ligadas a extrema direita, como Pondé. Abrindo
também espaço para o revisionismo, como o dos militares que passaram todo o governo
Bolsonaro esbravejando sobre a inexistência de um golpe de 1964. De forma que é necessário
para o historiador de profissão disputar espaço com estas pessoas. Ainda mais num cenário
permeado pela pós-verdade, onde tudo é narrativa e a realidade passa a ser uma escolha
subjetiva. Com a crise se alastrando aos especialistas e culminando em cenários absurdos
como os vistos na pandemia de COVID 19. Neste cenário o principal papel do cientista que
trabalha com divulgação ao público, seja ele da História ou outra área é lidar com as micro
realidades atomizadas e criar caminhos visíveis para seu público aprender a como não ficar
preso em bolhas e realidades baseadas em narrativas.
Roteiro: Episódio 1 O Espectro do Haiti
Convidamos o ouvinte a abrir o Google e procurar por Hemeroteca Digital Nacional.
O primeiro link o levará a um dos maiores acervos de periódicos do Brasil. Ao abri-lo vá até
a sessão de periódicos, proucre por ‘Liberal Mineiro” e a na parte de palavras chaves procure
por escravo fugido. Onde a primeira busca resultará no seguinte anúncio:

“Aos 26 de setembro de 1881 fugio da fazenda das Canos, freguesia da cidade de


Monte Claro, o escravo de nome Marcello, pardo, idade de 30 annos, ou menos,
com signaaes seguintes: alto de estatura, corpo regular, com um dedo de uma das
mãos que não abre bem, tem uma pequena cicatriz logo abaixo dos olhos, em um pé
temo o signal de um golpe de machado, um outro signal de golpe de machado em
uma das coxas.
Quando anda bambeia com o corpo ou curva as pernas.
Este escravo é pertencente a D. Gertrudes Marcolina e Souza, mulher de João José
de figueiredo, e tem o costume de viajar com tropa.
Quando fugio levou um canivete proprio de tropeiro, é também acostumado a
trabalhar em cortume de couros.
Falla pouco e é desecansado no fallar. Levou roupa de algodão tinta de cor preto,
chapeo de couro com uma fita de panno preto, signal de luto.
Quem o prender e depositar em qualquer cadea segura terá a gratificação de
100$00, e contuzi-o à cidade de Montes Claros, a entregar a ao Tenente Francisco
Durães Coutinho a gratificação séra de 200$00.” - Liberal Mineiro 15 de janeiro de
1882.2

Este é um dos 12 anúncios publicados entre Janeiro e Fevereiro de 1882 por sua
antiga senhora. Marcello Fugira ainda em setembro de 1881 da fazenda das Canoas em
Montes Claros, Minas Gerais. Com este sendo apenas uma das 438 notícias de fuga de
pessoas escravizadas nos jornais mineiros nos dez anos entre 1878 e a abolição. Com todos
estes casos sendo facilmente acessíveis pela Hemeroteca Digital Nacional.
E aqui fica a seguinte dúvida: houveram apenas 438 fugas num período de dez anos?
Não estaria este número subnotificado? Muito pequeno dada quantidade de pessoas
escravizadas que o senso comum nos leva a pensar para um Estado como Minas Gerais?
2
ESCRAVO FUGIDO. Liberal Mineiro, Ouro Preto, 15 de janeiro. 1882. Anúncio. P4
Quantas pessoas você conhece que em caso de perda de um dos seus bens materiais teriam o
poder aquisitivo para bancar um anúncio de jornal, quanto mais recompensa? Agora pense
em um Brasil muito mais desigual do que o que vivemos hoje? Seriam estes casos de fuga
mais comuns do que imaginamos? Mais numerosos do que as matérias de jornais que nos
restaram conseguem comprovar? A escravidão era a estrutara que suportava toda a base da
sociedade brasiliera neste perído .
E a estrutura era composta de pessoas, sujeitos que tinham suas próprias trajetórias,
gostos, desejos e sonhos. Mesmo que muitos destes não tenham deixado registros escritos a
próprio punho ao analisar os jornais conseguimos inferir muito sobre eles. O próprio
Marcello citado na abertura do programa, pelas poucas informações ali dadas sabemos que
era um um sujeito de fala arrastada, gostava de andar em bandos, estava passando por luto e
tinha duas cicatrizes de machado em suas pernas. Poderiam ser oriundas de uma briga ou
quem sabe de outras tentativas de fuga? Foram acidades ou objetivaram lesioná-lo para que
não pudesse mais fugir? Infelizmente, estas questões não conseguimos responder porque não há
provas a respeito.
E assim como a personalidade podemos também inferir as redes de sociabilidade que
estes sujeitos faziam ao longo de suas vidas. E para tal vamos recorrer a uma matéria do
jornal O Baependyano: Folha Scientifica, Litteraria e Noticiosa, Caxambu, no qual analisaremos o
caso de Victória. Que fugira em 1885 da fazenda Passarinho Preto. No anúncio colocado por
José Isalino de Carvalho lê-se:

“Fuigo ao abaixo-assignado, em fins de janeiro desde anno a escrava Victoria,


africana, de nação Mina, com os signaes no rosto próprios da nação, de estatura
regular: escrava prestimosa, cosinha bem, corta e cose com perfeição, e faz todos os
mais serviços de uma casa; não tem vicio de qualidade alguma.
Levou uma porção de roupa.
A referida escrava foi a Pouso-Alto apresentar-se ao juiz municipal, e depois a
Baependy para o mesmo fim.
Dali veio para Posses, onde foi vista no dia 2 de Fevereiro, seguindo dahi em
direcção á estação da Soledade OU Marimbondo, ignorando-se o destino que
depois teve, mas sabendo-se que passou 1 legua distante da fazenda do
Abaixo-Assiguado, nesta freguesia de Caxambú.
Quem a aprender e trouxer ao abaixo-assignado ou della der notícia certa, será
gratificado.
Fazenda do Passarinho Preto, 13 de Março de 1885.”3

Por estas informações sabemos que Victoria detinha um certo grau de mobilidade, podendo
viajar sem a companhia de seus senhores ou um responsável apontado por eles. Outro ponto a
ressaltar é que Victória era Africana, da Costa da Mina, ou seja: Fruto do Tráfico que fora
proíbido 35 anos antes pela Lei Eusébio de Queiroz. Então resta a possibilidade de ser uma
pessoa mais velha ou então caso tivesse nascido após 1850 tecnicamente ela poderia recorrer
legalmente por sua liberdade uma vez que fora oriunda de tráfico ilegal. É muito provável
que podendo viajar sozinha tenha feito uma rede de sociabilidade que a auxiliou na fuga.
Talvez possa ter algum dinheiro guardado por trabalhar por fora utilizando as habilidades
descritas no anúncio. Tendo o hábito de viajar sozinha é possível que seus senhores
alugassem seus serviços. E por mais que não possamos afirmar que ela fora acolhida por uma
rede de sociabilidade temos outros casos onde é possível observar não apenas a interação de
fugidos com o restante da sociedade, mas até mesmo sua tolerância.
Para tal, saímos de Minas Gerais onde nos mantemos até agora e iremos até a
Província do Grão-Pará. Mas desta vez fugiremos dos jornais e recorremos aos Relatórios do
Ministério da Justiça. No qual é reportado um grupo de mais de 600 pessoas escravizadas e
desertores do exército pertencente ao Quilombo do Itapacú negociam e comercializam
livremente com as pessoas da cidade4. Neste cenário de comércio aberto seria fácil para
alguém como Victória entrar em contato com quilombolas de sua região e arquitetar uma
fuga. Os quilombolas mantinham redes intrincadas de comunicação que se estendiam pelas
senzalas da região próxima dos quilombos e dos mercados que eles frequentam
Mas este tipo de relação não costuma ser noticiada em jornais. Pode ser pelo fato de
ser algo comum do cotidiano, simples demais para virar notícia. Mas também há outras
razões. A ideia de cativo submisso e cativo não remetia a realidade do Brasil da década de
1880. O próprio Quilombo do Itapucú põe tal noção em xeque. Enquanto em 1882 ele
aparece no radar do Ministério da Justiça por seu comércio, em 1883 ele aparece pela sua
violência. Em sua primeira aparição é despachado o 15º Batalhão de Infantaria para
exterminá-lo antes que crescesse. Já no ano seguinte sabemos que o assalto falhou e que os

3
ESCRAVA FUGIDA. O Baependyano: Folha Scientifica, Litteraria e Noticiosa, Caxumbu, 17 de
maio. 1885
4
BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório do anno de 1882, Rio de Janeiro, 1883, p.8
quilombolas se tornaram os assaltantes. Atacando e saqueando o Engenho de Santo Antônio5.
Por razões que infelizmente não há fontes o suficiente para afirmar. Um quilombo grande
poderia se manter sozinho, mas o ataque do governo pode ter diminuído seus números e os
assaltos se tornarem necessários para a subsistência. Pode ser uma rixa política com o dono
da fazenda ou libertar mais pessoas para fortalecer seus números.
Independente da razão, o que podemos afirmar é que não houve passividade por parte
dos cativos. Um espectro rondava o Brasil nas décadas finais do século XIX, o Espectro do
haitianismo.O medo de uma revolução escrava tal qual acontecera em terras caribenhas tinha
bases sólidas no medo constante da multidão de pele escura . No mesmo relatório de 1883 é
relatado o Quilombo de Benedicto, composto por um número de 20 a 30 escravos fugidos.
Estes faziam assaltos a estradas e fazendas. Sendo também descoberto que estavam
articulando um plano com senzalas contidas em sua rede de influência em São Matheus para
fazer uma rebelião na região. A repressão policial conseguiu prender seis escravos, incluindo
o lider, e oito ditos aliciadores e escravos6. Dando a entender que estes oito eram brancos,
porque há o hábito de deixar claro nos registros quando os atos eram praticados por um
negro. Apesar da falha há aqui a certeza da inter-relação quilombo senzala. Podendo até
mesmo cogitar uma hipótese de uma identidade negra que unia tanto os ainda cativos, os
quilombolas e os libertos e que esta podia dar a união necessária para agir em conjunto em
prol da liberdade dos seus iguais.
Mas ao pesquisar na Hemeroteca Nacional jornais da região do Espírito Santo neste
período não temos menções a Benedicto, quilombos, assalto às fazendas, sublevação ou um
plano frustrado de rebelião. Pode ser que foi um fato amplamente noticiado e de alguma
forma os jornais que o relataram foram perdidos. É possível, mas é bem pouco provável.
Muito mais plausível era a mídia passar por um processo de censura, para não causar alardes,
não causar mais pânico entre os brancos e não dar ideia aos negros. Um leitor na senzala com
uma notícia de uma sublevação exitosa, um senhor morto e uma trupe de fujões partindo para
Maracangalha com seus chapéus de palha podia dar aos cativos ideias muito perigosas. O
Haiti do Sul era extremamente palpável e por isso notícias envolvendo os negros tinham de
ser cuidadosamente editadas e montadas. Se você, como eu, se perdeu na Hemeroteca pode
ter notado que os anúncios de fuga se limitam às páginas três e quatro dos jornais num
cantinho sem destaque de uma página sem destaque. São fugas de apenas uma ou duas

5
BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório do anno de 1883, Rio de Janeiro, 1884, p.14
6
BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório do anno de 1884,Rio de Janeiro, 1885, p.43-44.
pessoas, não fugas em massa e sobretudo não são violentas. Com exceção de periódicos
abertamente abolicionistas, os jornais passavam por censura para garantir que estas notícias
não chegassem às senzalas e quando noticiados tais eventos eram descaracterizados para
manter a aparente ordem pública. Então, partindo do ponto de vista deste pacto midiático de
silêncio, a nossa pergunta do começo do episódio foi respondida e não foram apenas 438
casos de fugas em Minas Gerais em 10 anos. Mas como não há registros hábeis também não é
possível determinar um número.
Enquanto os jornais ficam mais limpos, as páginas dos relatórios do Ministério da
Justiça se tornam mais sangrentas. Ressaltamos aqui dois casos para explicitar tanto a
violência quanto o racha social brasileiro. O primeiro se dá em 1877 onde em maio do ano
anterior na fazenda do Queimado de Campos os cativos do comendador Julião Ribeiro de
Castro se insurgiram e foram capturados. O líder da insurreição era um homem chamado
Manoel do Sacramento que toda noite fazia leituras para o restante da senzala. Na mesma
página é relatada o assassinato do feitor de uma fazenda da região. Ainda na mesma página
sessenta escravos se uniram para matar Marianno Pereira Fialho, feitor de outra fazenda da
região conhecido por excesso de maus tratos. Que neste dia colocou os sessenta indivíduos
em linha e deu quatro chicotadas em cada para “esquentar”. Quando um escravo suplicou por
misericórdia e continuou apanhando os demais se uniram para matá-lo. Após o assassinato o
grupo de sessenta negros se dirigiu ao escrivão do juiz de paz para relatar o crime.
Aterrorizados, os senhores locais, tremendo por suas vidas, solicitaram proteção do governo
que enviou 40 praças para a região.7
Sobre a recorrência dos cativos como um grupo único. Juntamente com o Ventre
Livre em 1871 veio também a desprivatização das punições. O Estado disputando o poder
com os senhores deu garantias de como deveria ser o tratamento das pessoas escravizada, do
que poderia e não poderia ser feito com eles.. E por mais que o Estado pudesse matá-los por
seus atos ainda valia o risco de se unirem em um grupo de sessenta pessoas para justificarem
o acontecido pelo tratamento desumano e indigno.
Voltando ao relatório, na página seguinte, em Carangola foi conduzido um processo
de busca e apreensão de escravos fugitivos que se escondiam na fazenda de Santa Fé. Ao se
aproximarem da senzala para capturar os fujões os policiais foram recebidos a tiros,
resultando na morte de um PM, a de um escravo, a captura de duas mulheres e fuga de dois

7
BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório do anno de 1877, Rio de Janeiro, 1878, p31.
outros8. Neste período, ao se aproximar da abolição há pontos onde as ocorrências são quase
diárias, chegando a três ou quatro páginas seguidas de violência de escravos contra seus
senhores. Por mais que não fossem noticiadas formalmente, a palavra não deixava de correr
nas ruas, mercado e senzalas. Os senhores iam dormir ao lado de seus inimigos, tendo plena
noção de quão numerosos estes eram e que não tinham nada a perder.. A todo momento
forças do governo eram movidas para lá e pra cá com o intuito conter revoltas e tal qual o
Cerrado em outubro, quando apaga se um fogo surgem mais dois.
O medo de uma guerra civil racial era constante e até mesmo agentes do governo se
voltam contra a escravidão. Em 1884 o delegado de Pirassununga foi acusado pelo chefe de
polícia como o autor da revolta que aconteceu na fazenda Santa Rita. O delegado manteve
seu cargo, mas o Chefe Policial foi atrás de provas e contou com a colaboração do jornal
pró-escravidõa Diário de São Paulo que o atacou, exigindo que o Vice Presidente da
província tomasse medidas para punir e retirar o delegado do caso9. Vemos neste caso uma
guerra midiática e política, com o jornal abertamente abolicionista Correio Paulistano
estampando o caso em sua primeira página na seção Boletim do Dia do dia 24 de maio de
1884. Onde ele ataca o Diário de São Paulo por ser escravista e o Vice Presidente por tentar
utilizar o chefe de polícia como peão para a prisão do delegado. Onde o governo e a mídia
trabalham juntos para tentar suprimir e deslegitimar os abolicionistas da província. Neste
acontecimento em particular podemos ver fraturas no governo e no próprio movimento
abolicionistas. Com o delegado apoiando a sublevação violenta e o jornal Correio Paulistano
ainda que sendo abolicionista trata, mesmo que de passagem, os revoltosos como
criminosos.10
O que é uma atitude esperada numa sociedade em que bandos de negros vagam pelas
estradas e matas em busca de sua liberdade. Apesar da ideia comum de que a abolição veio de
cima para baixo pelas graças da princesa Isabel, nos anos finais do Império a branquitude se
encontrava sob cerco por todos os lados, incluindo suas próprias casas. Não é atoa que um
dos livros mais notórios sobre a temática de Célia Maria Marinho de Azevedo se chama Onda
Negra Medo Branco. A escravidão era a fundação da estrutura que sustentava o Brasil. E a
fundação se desfazia a olhos nus, levando aqueles que estivessem no caminho consigo.

8
BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório do anno de 1877, Rio de Janeiro, 1878, p32.
9
DIARIO DE HONTEM. Correio Paulistano, São Paulo, 22 de maio. 1884. p.2
10
BOLETIM DO DIA. Correio Paulistano, São Paulo, 23 de maio. 1884.
Era então, um cenário de constante tormento, o outro falava sua língua, conviveu com
você toda a sua vida, é por vezes sua única fonte de renda e subsistência. Morando ao lado de
um conhecido estranho. Era um ser completamente diferente, mesmo que no mesmo
ambiente virtualmente coabitavam mundos divergentes. Com cada mundo tendo seus
próprios hábitos, culturas, redes de comunicação. Dois mundos convergentes e fragmentados,
os dois não podiam mais coabitar o mesmo espaço e ninguém tinha certeza do que fazer com
o estranho ao seu lado. O Brasil na década de 1880 era um barril de pólvora prestes a
explodir, o que culminou no Império cedendo às pressões cada vez mais numerosas e
violentas e assinando a Lei Áurea em 1888. Não como uma liberdade dada, mas como uma
alternativa ao cada vez mais sólido Novo Haiti que poderia ocorrer em suas terras. Abrindo
mão de sua base econômica para um futuro de incerto trabalho livre, mas afastado do banho
de sangue diário que foi a conquista da liberdade.
Referências Bibliográficas:
SOUZA FERREIRA, Heloisa. Dando voz aos anúncios:: os escravos nos registros de
jornaiscapixabas (1849-1888). Temporalidades: Revista de História, Vitória, v. 2, 2 dez.
2010. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5402/3329. Acesso em: 14
jun. 2023.

Azevedo, C. (1987). Os políticos e a Onda Negra. In: C. Azevedo, ed., Onda negra, medo branco o
negro no imaginário das elites - século XIX, 6th ed. Rio de Janeiro: Paz e terra S/A

MACHADO, Maria Helena. “Teremos grandes problemas, se não houver providências


enérgicas e imediatas”: a rebeldia dos escravos e a abolição da escravidão. IN:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs.) O Brasil imperial – volume III –
1870-1889.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.376-378

SLENES, Robert W. “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e


identidade escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)” in: Libby, Douglas C. & Furtado,
Júnia Ferreira (org). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX.
São Paulo: Annablume, 2006, pp. 273-316

ESCRAVOS, Jornais e Propaganda:: O Piauí Na Rota Da Escravidão De 1848-1885.


ANPUH-Brasil : 31° Simpósio Nacional de História, Rio de Janeiro/RJ, 2021. Disponível
em:
https://www.snh2021.anpuh.org/resources/anais/8/snh2021/1627620368_ARQUIVO_4a07d8
d6b0818387176c81f9ad630056.pdf. Acesso em: 15 jun. 2023.
GRINBERG, Keila; ALMEIDA, Anita. Detetives do passado no mundo do futuro:
divulgação científica, ensino de História e internet. Revista História Hoje, v. 1, n. 1, p.
315-326, 2012.
PINHA, Daniel; RANGEL, Marcelo; PEREZ OLIVEIRA, Rodrigo. Teoria, historiografia e
ensino de história em tempos de crise democrática. Revista TransVersos, [S.l.], n. 18, p. 6-16,
abr. 2020. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/transversos/article/view/50328>. Acesso em: 05 fev. 2023.

CESARINO, Letícia. Pós-Verdade e a Crise do Sistema de Peritos:: uma explicação


cibernética. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, 8 out. 2020. DOI
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75630. Disponível em:
https://scholar.archive.org/work/64e5kc5gfvattc22maj6v4tuuy/access/wayback/https://periodi
cos.ufsc.br/index.php/ilha/article/download/75630/45501. Acesso em: 11 jul. 2023.

Você também pode gostar