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HISTÓRIA PÚBLICA

e divulgação de história

Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira [editores]

v ^

e
© Copyright 2019 Os autores
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Letra e Voz

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Richard Cândida Smith (UC Berkeley)
Diagramação e capa
Estúdio Xlack
Imagem de capa
Ryoji Iwata / Unsplash

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H673 História pública e divulgação de história / Editores Bruno Leal


Pastor de Carvalho, Ana Paula Tavares Teixeira. - São Paulo,
SP: Letra e Voz, 2019.
14 x 20 cm
ISBN 978-85-93467-23-3
1. Consciência histórica - Brasil. 2. História - Estudo e ensino.
3.História pública - Brasil. I. Carvalho, Bruno Leal Pastor de.
II.Teixeira, Ana Paula Tavares.
CDD 907
Elaborado por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422
Sumário

Introdução: Os lugares do historiador-divulgador 9


Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira

Artigos
Ed\itando a História 25
Luciana Pinsky

d História é notícia: Temas históricos e o ofício do historiador


6171 re
portagenspublicadas na Folha de S.Paulo 41
Juliana Sayuri

Pesquisa publicada épesquisa divulgada? A experiência de divulgação da


r
evtsta História, Ciências, Saúde - Manguinhos e seus públicos 5 5
Roberta Cerqueira

História no YouTube: Relato de experiência e possibilidades para ofuturo 73


Rles Rodrigues

História da Ditadura:
Oomo tratar de regimes ditatoriais com o grande público 93
Raulo César Gomes
Café História; Divulgação científica de História na internet 105
Bruno Leal Pastor de Carvalho

Entrevistas

Experiências de uma historiadora-divulgadora 125


Entrevista com Keila Grinberg
Café História:

Divulgação científica de História na internet

Bruno Leal Pastor de Carvalho

No dia 18 de janeiro de 2008, o Café História foi ao ar pela primeira


vez. Seu principal objetivo era usar a internet e as chamadas novas
mídias digitais" para divulgar o conhecimento histórico para amplas
audiências. Na época, a topografia do mundo online era bastante dife
rente da atual. O Facebook ainda era muito pouco conhecido e usado
no Brasil, sendo o Orkut a rede social mais utilizada pelos brasileiros.
Plataformas como Twitter e YouTube eram pouco conhecidas no país,
e outras, como Instagram e WhatsApp, sequer tinham sido lançadas.
Pouco mais de 34% da população brasileira tinha acesso à internet,
sendo a maior parte deste acesso através de computadores.1 O fenô-
meno da internet colaborativa estava prestes a chegar ao seu auge e a
maioria dos usuários estava entusiasmada com as ferramentas de in
teração e de produção coletiva de conteúdos que pareciam quase ma
terializar a idéia de "inteligência coletiva", conforme prevista nos anos
1990 por Pierre Levy (2007).
Em pouco mais de uma década, a internet mudou profundamente e,
com ela, o Café História. Desde 2008, o portal experimentou diversas
linguagens, expandiu-se para novas redes virtuais, ampliou seu pú ico,
enfrentou ameaças e quedas na audiência, e transformou sua po itica
editorial mediante mudanças não só tecnológicas, mas tam ém isto
riográficas.Tais transformações foram desafiadoras para o projeto, mas
parecem ter um saldo positivo expressivo ao fim. o Café istonayo
ser considerado hoje o maior portal de divulgação cientí ca em ingu

prensa/2013-agencia-
temet-aumenta-753 >.
io6

portuguesa especializado em História na internet, alcançando até meio


milhão de pessoas com suas publicações.
Este artigo descreve o processo de desenvolvimento do Café História
a fim de compreender como o portal se tornou relevante para a difusão
do conhecimento historiográíico na internet. Para tanto, foi utilizada a
metodologia de relato de experiência, buscando-se destacar a origem
do projeto, suas estratégias de comunicação, sua história dividida em
duas fases, além de seus principais resultados e desafios.

Como surgiu a idéia do Café História

Andreas Huyssen aponta que as manifestações de interesse pelo pas-


sado histórico ou mesmo de nostalgia adquiriram mais intensidade no
início deste século, energizadas em grande medida pelo surgimento de
tecnologias que expandiram dramaticamente nossa capacidade de re-
gistrar, lembrar e, consequentemente, esquecer (Huyssen, 2000, p. 10).
Assim, a primeira metade da década de 2000 foi um período privile-
giado para aqueles que, como eu, cursavam as graduações de História
e Comunicação.2
Nesse curto período, foi possível testemunhar uma verdadeira ex-
plosão de narrativas históricas voltadas ao consumo do grande público
- romances, biografias, revistas, jogos, sites de genealogia, a comemo-
ração de efemérides, fóruns virtuais sobre fatos históricos, minisséries
históricas na televisão, documentários e curadorias, etc. O que mais me
chamou a atenção quanto a esse fenômeno é que boa parte dessas nar-
rativas sobre o passado não era (e ainda não é) produzida por historia-
dores profissionais, dos quais se esperaria esse tipo de produção, mas
sim por profissionais de outras áreas, especialmente jornalistas. Há um
vazio demográfico de historiadores no campo da divulgação histórica.
Para mim, isso foi surpreendente.
Esse desequilíbrio era visível também no meu próprio cotidiano de
graduando em História, pois se eram abundantes no currículo do curso

2 Entre 2003 e 2008, eu cursei graduação em Comunicação Social, com habilitação


em Jornalismo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em História, oa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
loy

disciplinas sobre história da historiografia e métodos de pesquisa, não


havia disciplinas obrigatórias ou optativas voltadas para o debate da di-
vulgação científica, tampouco laboratórios, minicursos ou oficinas que
discutissem as novas tecnologias que marcavam aquela época.
Isso não quer dizer que os historiadores estiveram o tempo todo di-
vorciados da comunicação com o grande público, nem que a comuni-
dade historiográfica tenha simplesmente ignorado a importância es-
tratégica de dialogar com as massas. Ocorre, no entanto, que eram (e
ainda são) poucos os historiadores dedicados a projetos de divulgação
de história para o público não acadêmico, especialmente no Brasil. En-
sino e pesquisa estão no centro do debate acadêmico, mas a divulgação
científica parece ainda situada num ponto cego do olhar do historia-
dor profissional. Talvez porque a divulgação do conhecimento para o
grande público ainda seja vista por muitos como uma prática menos
importante na área. Em entrevista concedida a Francesco Maiello, no
início dos anos 1980, Jacques Le Goff afirmou que 'até há não mui-
to tempo, o historiador universitário julgava praticamente indigno, se
não mesmo imoral, divulgar as suas idéias, particularmente através da
televisão. Esta era considerada uma prática embrutecedora (Le Goff,
2009, p. 14).
Por volta de 2006, tomei a decisão de desenvolver um projeto na inter-
net que pudesse construir uma ponte entre a História e a Comunicação.
Na época, fiz como muitos dos que se arriscam em projetos de conteú-
dos online: me aventurei na dinâmica de "tentativa e erro . Experimen-
tei diversos formatos, de comunidades virtuais em plataformas como o
Orkut a blogs pessoais em plataformas como o Blogger..Nenhum desses
empreendimentos obteve êxito. Em 2007, conheci uma tecnologia que
parecia corresponder às minhas expectativas: a plataforma Ning.
Com sede em Paio Alto, na Califórnia, a Ning é uma plataforma que
permite que qualquer pessoa monte a sua própria rede social. Para uti-
lizá-la, não é preciso ter conhecimento de computação, pois o processo
de criação é idêntico ao de um blog, o design da rede social é construí-
do a partir de um modelo semipronto, mas com algumas opções de
eustomização. Também não é preciso fazer instalação de programas e
n
em a contratação de servidores — tudo fica hospedado na nuvem' da
plataforma. Foi relevante ainda para minha escolha na época o fato de
io8

a Ning ser uma plataforma intuitiva, colaborativa, sem custo, estável e


disponível em língua portuguesa.
O Café História foi lançado no dia 18 de janeiro de 2008 com dois
principais objetivos: 1) divulgar o conhecimento historiográfico pro-
duzido nos departamentos e programas de pós-graduação em História
- tanto para a academia quanto para o público em geral; 2) oferecer um
espaço democrático e integrador para estudantes, pesquisadores e pro-
fessores de História interessados na troca de idéias e de experiências.
A trajetória do Café pode ser dividida em duas fases. Na primeira,
que vai do lançamento até 17 de janeiro de 2017, o Café História es-
teve hospedado na plataforma Ning. Na segunda fase, que teve início
no dia 18 de janeiro de 2017 e ainda está em vigor, o Café História foi
relançado em outra plataforma, o Wordpress, e passou por mudanças
expressivas na sua navegabilidade e no processo editorial. Tais mudan-
ças refletem tanto transformações no comportamento dos usuários de
internet - e, claro, do Café História em especial - quanto o amadureci-
mento dos seus editores no que diz respeito ao papel do historiador no
campo da divulgação de História.

Primeira fase (2008-2017): O ciclo das redes sociais

O desenvolvimento do Café História levou aproximadamente dois


meses. Nesse período foi definida a sua identidade visual {banners, pale-
ta de cores, logo e avatares) e diagramação (design das páginas, também
chamado de layout ou leiaute). Foram ainda elaborados os primeiros
conteúdos, as normas de utilização da rede e as perguntas que com-
poriam os formulários de cadastro. Quando a estrutura básica foi fi-
nalizada, uma aplicação-piloto entrou em operação. Convidei cerca de
50 colegas - de diferentes áreas e atividades profissionais - para que
navegassem pelo site e compartilhassem comigo suas impressões sobre
essa "versão beta". A aplicação-piloto durou cerca de uma semana e foi
fundamental para corrigir erros e problemas gerais que não tinham sido
detectados. Só então o Café História foi aberto ao público.
Vale a pena sublinhar que, no momento do lançamento do Café His-
tória, a História Pública ainda não tinha chegado ao Brasil. Embora em
109
alguns anos ela fosse se tornar importante para a minha reflexão sobre
o portal, em 2008 eu desconhecia absolutamente tudo sobre o "campo".
Dois conceitos que nortearam o desenvolvimento do Café História fo-
ram o de "Comunidade de Prática" (CoP), desenvolvido pelos antropó-
logos Etienne Wenger e Jean Lave no início dos anos 1990 (Wenger,
Snyder & McDermott, 2002, p. 4-5)3, e o de divulgação científica.
A divulgação do site foi feita por meio de flyers impressos, distribuí-
dos em pontos culturais onde eu acreditava que encontraria um público
interessado, como teatros, cinemas, livrarias, museus e universidades, e,
depois, na internet, por meio de convites feitos através de mailing lists
(listas de e-mails) e comunidades de História no Orkut. A primeira
forma de divulgação, a impressa, revelou-se pouco efetiva. Poucas pes-
soas chegaram ao site partindo das informações contidas no flyer - ao
que tudo indica, projetos na internet são mais acessados quando sua
divulgação é feita também na internet. Os números de acesso ao Café
História só passaram a ser realmente representativos quando a segunda
forma de divulgação (online) passou a ser utilizada.
O crescimento do Café História foi rápido. Em pouco menos de um
ano, o site cresceu de 50 membros cadastrados para 10 mil, mesmo
sendo possível acessar boa parte dos conteúdos sem estar cadastrado.
Em dois anos, a rede já ultrapassava os 20 mil membros e no último
ano desta fase, em 2016, contava com mais de 65 mil. Em nove anos
na plataforma Ning, a média de crescimento foi de 677 novos usuários
cadastrados por mês (ou em média 22 usuários por dia), embora esse
crescimento não tenha sido regular - teve seu ápice por volta de 2014 e
queda nos dois anos seguintes. Neste cálculo, deve-se levar em conside-
ração que pessoas também deixavam a rede todos os dias.
Acredito que uma das grandes inovações do Café História nessa pri-
nieira fase foi a fusão entre rede social e portal de conteúdo. Essa ca-

^ As CoP são definidas por Wenger e Lave como "grupos formados por pessoas que
Co
e
mpartilham uma preocupação, um conjunto de problemas, ou uma paixão sobre algo,
Co
aprofundam conhecimentos e experiências em uma determinada área interagindo
ni uma base contínua". Essas pessoas, sublinham ainda os dois autores, "não necessa-
Uamente trabalham juntas todos os dias, mas elas se encontram porque acreditam no va-
or de suas interações. Como passam algum tempo juntas, elas naturalmente comparti-
ar
ri informações, insights e conselhos" (Wenger, Snyder ôc McDermott, 2002, p. 4-5).
110

racterística decorreu da minha decisão, durante a criação da rede, sobre


como utilizar um dos recursos de design de página disponibilizados pela
plataforma: as caixas de texto, módulos que podiam ser alocados em
qualquer ponto da página principal. Em praticamente todas as redes
sociais desenvolvidas na plataforma Ning, essas caixas eram usadas para
publicar recados, inserir textos fixos, como regras de comportamento e
descrição da rede, ou badges de parceiros. A novidade do Café foi utili-
zar essas caixas de texto para criar editorias, seguindo uma lógica bas-
tante comum em jornais e revistas, que agrupam seus textos por tema:
economia, política, internacional, cidade, esportes, etc. Mas, ao invés de
temas, as editorias do Café História foram agrupadas por tipo de texto.
Para o lançamento da rede, foram criadas seis editorias: 1) Mural, com
informações sobre editais, concursos, novos números de periódicos cien-
tíficos, chamadas de artigo, dicas de sites, processos seletivos de pós-gra-
duação, etc.; 2) Entrevistas; 3) Notícias {Clipping), com uma curadoria
de notícias sobre História publicadas em outros veículos; 4) Resenhas de
livros; 5) Artigos; e 6) Resenhas de filmes. Mais tarde, algumas mudan-
ças foram feitas: as seções de resenhas foram substituídas por uma seção
intitulada "Bibliografia Comentada'. O conteúdo de todas essas editorias
era atualizado pela administração do Café História (na época, apenas eu),
embora pudesse ser comentado pelos usuários da rede.
O Café História, no entanto, não era só um portal de conteúdos au-
torais, era também uma rede social "de nicho", ou seja, destinada a um
público interessado em História. Quem fazia inscrição na rede tinha
permissão para publicar conteúdos - e, em geral, costumava publicar.
Os integrantes podiam fazer seus próprios blogs dentro do Café, abrir
e responder fóruns, criar grupos temáticos, postar fotos e vídeos embe-
dados, etc., além de participar do chat (sala de bate-papo por escrito) e
interagir com conteúdos publicados por terceiros (por meio de curtidas
e de comentários). Naquele momento, as redes sociais de "grande por-
te" ainda não dominavam tão completamente as comunicações online
entre as pessoas, deixando espaço para redes nichadas.
Em nove anos foram criados pelos participantes do Café História
1.037 grupos temáticos, dos quais os cinco maiores foram: "História
e Cinema" (1.441 membros), "História Medieval" (1.317 membros);
"História das Religiões" (1.192 membros), "Projeto e Pesquisa em His-
111

tória" (1.177 membros) e "História do BrasiF (1.174 membros). Em


cada um desses grupos ocorriam debates direcionados, criados pelos
próprios participantes, que se tornavam, dessa forma, coeditores do
espaço. Nesse mesmo período, os participantes criaram ainda 1.582
fóruns de debate (geralmente na forma de perguntas). Também envia-
ram ao todo 7.946 fotos e 2.927 vídeos embedados.
A postagem de conteúdos pelos membros provocava um círculo vir-
tuoso: à medida que novos usuários entravam na rede, mais conteú-
dos eram adicionados a ela, o que fazia com que um número cada vez
maior de textos, fotos, vídeos e posts fosse indexado por motores de
busca, como o Yahoo e o Google, tornando a rede mais "encontráver
na internet, o que aumentava significativamente os acessos e leituras,
ampliando as possibilidades de novos usuários se cadastrarem. Além
disso, a exemplo do que ocorre em redes como o Facebook, o usuário
cadastrado também podia enviar convites de amizade a outros usuários.
Nos primeiros três anos do Café História, os conteúdos das seções
autorais foram produzidos exclusivamente por mim. Eu escrevia todas
as resenhas, notícias e artigos e elaborava as entrevistas - a primeira
foi com o historiador Luis Edmundo de Souza Moraes, professor do
departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), especialista no tema do Partido Nazista no Brasil. A
periodicidade desses textos não era fixa. Havia apenas uma rotina edi-
torial definida: publicar toda semana uma entrevista, um artigo ou uma
notícia, além do envio semanal de uma newsletter (boletim informativo)
para os participantes por e-mail. Na função de editor, eu tinha também
de fazer a moderação dos conteúdos enviados pelos participantes, me-
diar conflitos, sanar dúvidas, produzir tutoriais de navegação e atualizar
a
regras de comportamento. A atualização da estrutura da rede e do seu
v
isual - o Café teve três leiautes diferentes nesta fase - também deman-
dava atenção especial.
Para reduzir este volume de trabalho e garantir a qualidade do con-
^údo, em 2010 eu comecei a convidar pesquisadores e professores para
escreverem artigos para o Café História. O primeiro a publicar na rede foi
0
historiador Igor Gak, professor do departamento de Arquivologia da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que na época
começava o doutorado em História na Universidade Livre de Berlim.
112

Gak escreveu um artigo sobre a exposição "Hitler e os alemães: Volksge-


meinschaf e crime", que estava em cartaz no Museu Histórico Alemão.
Uma vez iniciada a colaboração de pesquisadores externos, o proces-
so editorial da rede se viu diante de dois desafios. Em primeiro lugar,
os autores convidados enviavam textos pertinentes e bem-escritos, mas
demasiadamente longos (entre 15 e 20 páginas) e cuja linguagem era
muito parecida com aquela de artigos publicados em periódicos cien-
tíficos. Por essa razão, preparei um pequeno briefing com o objetivo de
ajudar nossos colaboradores a compreenderem melhor o que eu estava
chamando de texto de divulgação científica e as particularidades do
ambiente online. Essa orientação foi o primeiro esboço daquilo que
anos depois seria o Guia do Colaborador do Café História, inspirado nos
manuais de redação utilizados por veículos de imprensa.
Em segundo lugar, a abertura para colaboração externa exigiu um
novo processo editorial. Todos os textos recebidos passam por uma re-
visão editorial e de conteúdo, feita atualmente pelos dois editores do
Café História, Esse trabalho de revisão é fundamental para a adequação
desses textos à linha editorial do portal e à linguagem da internet. E
comum nesse processo que os editores levantem dúvidas quanto a con-
ceitos ou idéias que podem não ter ficado claros, e sugiram mudanças
na estrutura, inclusão de subtítulos, etc. Esse processo pode levar até
um mês.
Um dos diferenciais do Café História quando comparado a outros pro-
jetos de divulgação da ciência é que seus textos não são escritos por jorna-
listas, mas pelos próprios pesquisadores que produzem o conhecimento
científico. Isso torna o texto do Café História diferente de reportagens,
matérias e notícias que são comuns em veículos de jornalismo científico.
Os textos do Café História estão menos calcados na noção de novidade
ou de fiiro jornalístico. Em vez disso, o conteúdo publicado pelo portal
está mais baseado em análise de problemas e contextualizações.
Aqui é importante chamar a atenção para a seleção dos temas a serem
publicados. De acordo com Antoine Prost, os historiadores costumam
valorizar "questões históricas ainda não respondidas", isto é, fundadas
em perguntas para as quais ainda não se têm respostas. Para boa parte
da comunidade historiográfica, essas são as questões mais relevantes,
aquelas que valem a atenção do historiador, já que são elas que "fazem a
ii3
história avançar". Em contrapartida, questões históricas já amplamen-
te conhecidas pelos historiadores são rebaixadas a um lugar periférico,
mesmo que despertem enorme interesse social (Prost, 2012, p. 83). No
caso do Café História, questões históricas já consolidadas no campo his-
toriográfico, mas que ainda não têm amplo reconhecimento no senso
comum ou que mobilizam o debate público, são também consideradas
relevantes e costumam ser de grande interesse do público.
Em nove anos de hospedagem na Ning, o Café História recebeu um
total de mais de 10 milhões de usuários únicos e obteve mais de 25 mi-
lhões de páginas visitadas. De todos esses usuários, 76,87% estavam no
Brasil. Em seguida, temos: Estados Unidos (3,79%), Paraguai (1,56%),
Portugal (1,39%) e índia (1,27%). No que diz respeito ao tipo de dispo-
sitivo usado para acessar o Café História, temos a seguinte distribuição:
desktop (51,88%), celular (44,98%) e tablet (3,14%).4 Para calcular o al-
cance total do portal nesta primeira fase, deve-se tomar a sua presença
em outras redes sociais, tais como: Twitter (entrada em 2009, 25 mil),
Facebook (2010,340 mil), Google Plus (2012,1.000), YouTube (8 mil)
e Instagram (1.000) - segundo os dados coletados ao final de 2016.
Há uma estratégia de comunicação diferente para cada rede social - o
que costuma ser fundamental para o sucesso dos produtores de conteúdo
em cada rede. No Instagram, o Café História privilegiou a indicação de
livros de História; no Twitter, sabendo-se que o público brasileiro é mais
acadêmico do que não acadêmico, deu-se preferência a cartazes de even-
tos, estatísticas e divulgação de pesquisas científicas; no Google Plus, a
uiais esvaziada de todas as redes (encerrada recentemente pelo Google),
foram divulgados apenas os conteúdos originais do Café História', no Fa-
c
cbook, a mais importante porque é a que tem o maior alcance, combina-
ram-se publicações originais com curadoria de notícias e conteúdos di-
v
crsos publicados em outros canais na internet; no YouTube, finalmente,
lr
uplementamos o "Café História TV" (ainda um projeto experimental,
Se
m periodicidade definida ou modelos fixos de vídeos).
A sustentabilidade financeira do Café História não foi uma grande
questão nos primeiros anos do projeto. O meu trabalho e o dos autores

^ Todos os dados foram extraídos com a ferramenta Google Analytics em março de 2017.
ii4

convidados era voluntário - continua sendo. Além disso, a plataforma


Ning não cobrava taxas. Esse cenário mudou em abril de 2010, quando
a Ning passou a cobrar uma anuidade. Para manter o portal no ar,
foram implementados alguns métodos de monetização: o Google Ad-
sense (sistema de anúncios inteligentes do Google), publicidade direta
(paga pelo próprio anunciante) e os programas de afiliados de editoras
(como a Contexto) e de sites de livrarias (como a Amazon), nos quais o
Café História recebia uma pequena porcentagem do valor da venda dos
produtos (entre 5% e 8%), desde que a compra fosse feita por meio de
links customizados e exibidos no Café História.

Migração de plataforma

A decisão de migrar de plataforma não foi simples. Deixar a rede so-


cial Ning, já estabelecida e sem igual no mercado, e adotar o Wordpress,
um sistema de gestão de conteúdo livre e de código aberto, baseado
no modelo site, significava mudar um endereço já bem posicionado na
mente dos leitores e nos buscadores de internet, refazer a identidade
visual e a navegabilidade do projeto, perder parte dos conteúdos e um
mailing de 65 mil endereços de e-mail, além dos nove anos de indexa-
ção no Google. Significava também assumir o risco de perder a fide-
lidade de um número desconhecido, mas possivelmente significativo,
de pessoas que não gostariam da mudança. Por que fazer, então, uma
mudança tão brusca? Há três razões fundamentais.
A primeira diz respeito à desatualização da Ning. Em tempos de rá-
pidos avanços nas tecnologias digitais, as poucas inovações da empresa
americana deixaram a plataforma ultrapassada. Os editores não tinham
recursos para fazer backup de conteúdos (o que incide no controle e
na segurança do trabalho), a customização dos ambientes era muito
limitada, a adaptação para tablets e celulares era fraca e boa parte do
conteúdo publicado pelos participantes não podia ser moderada - 011
seja, conteúdos inapropriados poderiam subir à rede sem que os edito"
res pudessem intervir.
Também levei em conta as transformações pelas quais passou o me10
digital nos últimos dez anos - e podemos dizer que essa é a segunda
razão. Quando o Café História fez a sua estreia, o Orkut era a maior
115
rede social no Brasil, e a prática colaborativa era vista com grande oti-
mismo para aqueles engajados na construção coletiva do conhecimen-
to. Em 2016, o cenário mudara completamente. Houve um processo
de popularização da conexão em banda larga, da internet móvel e dos
smartphones. Não só o Facebook assumiu o posto de maior rede social
no país (forçando inclusive o encerramento do Orkut) como também
essa hegemonia mudou a maneira como as pessoas passaram a usar as
redes sociais na internet. O Facebook hoje ocupa um lugar na internet
e na vida dos usuários muito maior do que o Orkut ou qualquer outro
site ou rede social já ocupou. Isso diminuiu o interesse do público pela
interação em outras redes sociais na internet, especialmente as mais
segmentadas.
A terceira razão diz respeito ao desgaste do modelo de redes sociais.
Nos últimos cinco anos, essas redes refletiram e, ao mesmo tempo, re-
forçaram uma grande polarização político-ideológica no país - e, talvez,
no mundo. As redes sociais foram dominadas por um debate marcado
por discursos de intolerância, pelo denuncismo, pelas fake news e pela
manipulação das emoções. O Café História sentiu esses efeitos.
Nos últimos dois anos em que esteve na plataforma Ning, muitos
fóruns e grupos se tornaram espaços de desentendimentos, radicalis-
mos, preconceitos, messianismos e outros comportamentos incompa-
tíveis com um espaço de debate intelectual. O princípio da internet
colaborativa, na qual os participantes são responsáveis por boa parte
do conteúdo, parecia ter chegado a um momento de esgotamento. As
ferramentas colaborativas passaram a ser usadas por indivíduos deses-
tabilizadores, os chamados trolls, que, embora em número reduzido, tu-
toultuavam o ambiente e afastavam aqueles que tinham interesse em
desenvolver um debate respeitoso, produtivo e consistente.
Desta forma, entendi que o tempo de rede social do Café História
bnha chegado ao fim. Os leitores da rede não tinham mais interesse
er
ti conteúdos produzidos de forma colaborativa por outros usuários.
Essa atenção ao público é fundamental. Como explica Jill Liddington,
devemos, certamente, colocar a audiência no centro do palco. Os his-
^riadores públicos - em oposição aos privados - têm consciência da
au
diência e provavelmente, desde o início de uma idéia ou projeto, bus-
Ca
ni estar atentos a leitores e audiências ampliados, visando aumentar o
ii6

acesso público ao passado" (Liddington, 2011, p. 47). A partir daquele


momento, então, todo o empenho passou a ser direcionado à produção
de textos originais. Começava a fase do Café História no Wordpress,
um sistema de gestão de conteúdo para a internet (um CMS, do inglês
Content Management System) que permite que qualquer pessoa crie
sites e hlogs com enorme facilidade, não sendo necessários conhecimen-
tos prévios de programação.
Por se tratar de um software livre e de código aberto, o Wordpress é
gratuito e altamente customizável.5 Seu sistema admite a instalação de
plugins, que são módulos de extensão produzidos por terceiros instala-
dos no Wordpress de forma semelhante a como instalamos programas
em nossos computadores. Esses plugins, que podem ser pagos ou gra-
tuitos, adicionam novas funções ao Wordpress e o mantêm atualizado
e atraente. Segundo informações do WSTechs, serviço da companhia
de consultoria austríaca Q^Success, 34% de toda a internet mundial é
hoje baseada em Wordpress, número muito superior ao dos serviços
de CMS concorrentes, caso do Joomla (2.8%), do Drupal (1.9%), do
Shopify (1.6%) e do Squarespace (1.5%).6

Segunda fase (2017-):


Foco na produção de conteúdo original

O novo CaféHistória foi lançado em 18 de janeiro de 2017, data de


seu aniversário de nono ano. Nessa nova fase, o portal surgiu com um
visual completamente diferente: mais claro, mais simples, mais organi-
zado e com carregamento mais ágil dos conteúdos da página. Como se
trata de um portal, não há mais área de login, perfis ou páginas pessoais
dos usuários. Isso não significa que não haja interação do público com
o conteúdo publicado, mas essa interação agora é limitada aos comen-
tários que podem ser deixados em c&ázpost ou aos formulários de con-

5 Há duas modalidades de Wordpress: a .com e a .org. Ambas são gratuitas, mas a


segunda modalidade não disponibiliza servidor, serviço pago, que deve ser contratado
pelo editor.
6 Ver: <https://w3techs.com>.
iiy
tato. Também é possível se cadastrar para recebimento da newsletter ou
solicitar o aviso de conteúdos novos no navegador.
Em sintonia com as tendências da comunicação na internet, a navega-
bilidade do novo Café História é mais intuitiva e organizada. Os conteú-
dos mais recentes estão na parte superior da página principal. À medida
que novos posts são publicados, os antigos migram em seqüência para
a parte inferior do site, até saírem permanentemente da página prin-
cipal, permanecendo apenas nos arquivos de cada editoria - acessíveis
na página principal ou via tags. Todos os conteúdos são publicados pela
administração do portal. O endereço do site também é novo: o www.
cafehistoria.ning.com foi substituído por www.cafehistoria.com.br.
O conteúdo do antigo site foi parcialmente transferido: notícias, ar-
tigos, entrevistas e bibliografias comentadas foram manualmente repu-
blicadas no novo endereço, com as datas originais de publicação, mas
perderam, infelizmente, por motivos técnicos, os seus comentários. Já
os conteúdos dos membros, isto é, mensagens de hlog, vídeos, fotos, gru-
pos e fóruns não puderam ser transferidos, haja vista que o Wordpress
não é uma rede social nem usa a mesma linguagem da Ning. Porém,
graças ao projeto internet Archive e sua ferramenta Way Back Machine,
que permite a visita a sites que saíram do ar, esses conteúdos ainda po-
dem ser acessados, embora com limitações.7
As editorias "Bibliografia Comentada", "Artigos" e "Entrevistas" con-
tinuaram a existir, mas foram criadas outras duas: "História Importada"
Especializada em tradução para o português de textos de divulgação
Publicados em língua estrangeira, com as devidas autorizações) e "Por
Trê? (artigos cujo objetivo é responder sucintamente a perguntas bási-
Cas < a
^ historiografia). Além da opção de busca por textos segundo sua
classificação em editorias, disponibilizamos também uma navegação
P0r grandes áreas do conhecimento historiográíico: Antiga, Medieval,
oderna, Contemporânea, Teoria e Historiografia, Brasil, América,
frica, Ensino, Acadêmico e Ciências e Saúde. Por fim, há uma seção
e
Hnks úteis (baseada na curadoria de sites considerados relevantes) e
Ur
na seção chamada "Dicas de Livros" (antigos e lançamentos).

^ ^er: <https://archive.org/web>.
ii8

Pela primeira vez o Café História assumiu oficialmente uma periodi-


cidade regular, o que já havia sido identificado como muito importante
tanto para a fidelização do público na internet quanto para a indexação
dos motores de busca. Toda segunda-feira é publicado um texto espe-
cial (um ^5/dentro de uma das cinco editorias anteriormente citadas).
Já entre terça e sexta, publicamos notícias - não de forma diária, mas
obedecendo às especiíicidades de cada momento. Diferentemente do
que ocorria nos anos de Ning, não há curadoria de notícias, ou seja, não
se trata mais de uma reunião de notícias publicadas em outros veículos
com os devidos créditos {clipping), mas de notícias e reportagens origi-
nais, produzidas pela "Agência Café História', uma espécie de departa-
mento do Café História que produz textos de jornalismo científico - em
meados de 2018, as notícias do Café História passaram a ser indexadas
pelo Google Notícias.
Além de continuar presente no Facebook, no Twitter, no Instagram,
no YouTube e no Google Plus, o Café História agora está presente tam-
bém no Pinterest e no aplicativo Telegram. E a título experimental,
o Café História fez duas coberturas jornalísticas: a da 10a Edição da
Campus Party, realizada em São Paulo entre os dias 31 de janeiro e 5
de fevereiro de 2017, e a do XXIX Simpósio Nacional de História da
Anpuh, realizado entre os dias 24 e 28 de julho de 2017, na Universi-
dade de Brasília (UnB).
Nessa nova fase, o foco do portal está completamente na publica-
ção de conteúdos desenvolvidos por especialistas. Os números ajudam
a demonstrar essa mudança. Na primeira fase (2008-2017), o antigo
Café História publicou 64 textos originais de divulgação científica em
História. Foram 29 artigos, 29 entrevistas, 6 bibliografias comentadas
em nove anos. Já na segunda fase (2017-atual), até 4 de março de 2019,
essas mesmas três editorias publicaram no novo Café História 83 textos
originais. Foram 59 artigos, 15 entrevistas e 9 bibliografias comenta-
das em cerca de dois anos. Se levarmos em consideração as duas novas
editorias da rede, temos mais 14 textos originais de divulgação: dois
artigos da editoria "Por quê?" e 12 artigos traduzidos pelo "História
Importada". Por fim, a "Agência Café História" produziu 157 notícias ^
reportagens, cujos textos atendem aos critérios do jornalismo científico-
A transição para o Wordpress marca a entrada de Ana Paula Tavares
119
na administração do Café História. Tavares, que é jornalista (UERJ) e
mestre em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/FGV), as-
sumiu o papel de subeditora do portal. Ela já tinha colaborado nos
últimos anos com o projeto de forma intermitente, sobretudo no "Café
História TV". Nesse momento, com a ampliação da demanda por edi-
ção e por revisão de textos, ela passou a participar mais ativamente dos
processos, das decisões e do desenvolvimento do conteúdo.
Com apenas dois anos, o novo Café História tem recebido entre 1.000
e 1.500 acessos diários provenientes de buscas orgânicas realizadas no
Google e no Yahoo. Somados aos acessos diretos, aos por meio de refe-
rências (links em outros sites) e àqueles com origem em mídias sociais,
o Café História tem, atualmente, entre três e cinco mil acessos diários,
podendo alcançar picos de sete mil. Entre os conteúdos da nova fase do
portal, a Bibliografia Comentada "Nova história indígena: o protago-
nismo dos índios", escrita por Luís Rafael Araújo (Colégio Pedro II), e
publicada em abril de 2017, é um dos conteúdos mais acessados. Até o
fechamento deste artigo, em março de 2019, o texto já tinha sido aces-
sado mais de 11 mil vezes. Alcance ainda maior teve o artigo "Gênero
não é ideologia: explicando os estudos de gênero", de Georgiane Ga-
rabely Heil Vázquez (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Depois
de 15 meses no ar, o texto foi acessado mais de 24 mil vezes.
Também temos buscado verificar em que medida os conteúdos pu-
blicados no portal estão repercutindo em artigos, monografias, dis-
sertações, teses e outras publicações acadêmicas. Em geral, o sentido
c
ontrário é o que mais vemos acontecer, isto é, artigos científicos sen-
do citados por artigos de divulgação científica. Mas o inverso também
ncorre? Parece que sim. Até o momento, foram identificadas 15 cita-
ções de artigos e entrevistas publicados no Café História em artigos
de periódicos científicos indexados, livros ou trabalhos monográficos,
c
omo TCCs e dissertações.
Um desses conteúdos é o artigo de Helen Nunes (FGV), "Brasil atô-
mico: o nascimento do programa nuclear brasileiro", publicado no dia
de agosto de 2017. Cerca de um ano depois de publicado no Café
istória, ele foi citado em um artigo russo de P.P. Yakovlev, também
isponível em inglês com o título "Argentina and Brazil: from Military
u
clear Programs to National Atomic Energy" (Yakovlev, 2018). As
120

duas versões foram publicadas no periódico Outlines ofglobal transfor-


mations: Politics, economics, law, da Rússia.8
Esses dados revelam que, embora a divulgação científica se dirija ao
grande público, ela também pode ter um impacto expressivo na comu-
nidade acadêmica. Além disso, é relevante destacar a velocidade com
que essa repercussão aconteceu. O texto da pesquisadora Helen Nunes
foi citado em um artigo bilíngüe de um periódico científico russo ape-
nas um ano depois de sua publicação em português no Café História,
um projeto brasileiro. Experiências de divulgação para o grande pú-
blico, desta forma, podem contribuir para se repensar os processos de
divulgação e difusão para os pares.

Considerações finais

Em seu Apologia da história, Marc Bloch escreve que não imagina,


para um escritor, "elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom,
aos doutos e aos escolares" (Bloch, 2002, p. 41). Cabe sublinhar, contu-
do, que o "privilégio" desse bilinguismo não é fruto de qualquer habi-
lidade inata dos historiadores, mas de um exercício contínuo e sincero
de aprender outros tipos de escrita. A prática da divulgação científica
compreende, neste sentido, técnicas, metodologias e modelos que não
só podem ser replicados como também aperfeiçoados e adaptados a
novas situações e necessidades. Todos podemos ser historiadores-divul-
gadores, ainda que, certamente, nem todos o precisemos ser.
Se por muito tempo mantivemos em fogo baixo a nossa disponibili"
dade para o grande público, no começo deste novo século, felizmente,
o campo da História no Brasil tem vivido uma abertura importante
para a experimentação de novas linguagens, proporcionada, acredito,
pelo surgimento das novas tecnologias da informação e da comunica-
ção. O Café História é fruto dessa abertura, assim como tantos outros
projetos que em anos recentes têm se dedicado a usar as "novas mídias
a fim de constituir uma "nova" modalidade de discurso historiográfico "
um discurso especializado na difusão da história produzida no âmbit0

8 Ver: <www.ogt-journal.com/jour/article/view/232?locale=en_US>.
121

dos departamentos e dos programas de pós-graduação e que, portanto,


também deve se guiar pelo rigor acadêmico.
Essa abertura também tem se dado, mais recentemente, e particular-
mente no Brasil, em função de uma conjectura política adversa. No de-
senlace da atual década, a comunidade acadêmica diagnosticou muito
acertadamente a relação intrínseca entre o avanço de uma "onda con-
servadora" no país e a intensidade, em escala talvez inédita, de ataques
dirigidos aos campos científico e intelectual, traduzidos em cortes de
bolsas de estudo, contingenciamento de verbas universitárias, desvalori-
zação das humanidades e a contestação, fora de bases racionais, da qua-
lidade e da relevância das pesquisas produzidas no âmbito acadêmico.
Neste caso, devemos ter um cuidado redobrado, pois, a despeito des-
te movimento no campo historiográfico ser positivo e compreensível,
cabe destacar que a melhoria da comunicação com o grande público,
bem como a construção de uma historiografia realmente mais acessível,
cidadã e emancipadora, tendem a ser alcançadas com mais facilidade e
efetividade quando a perspectiva da divulgação é tomada como projeto
de longo prazo e inerente ao campo profissional. Em outras palavras,
o que quero dizer é: se incorporarmos a perspectiva da divulgação ao
nosso ofício de modo mais atencioso e perene, mais resguardadas estarão
^ autoridade e a legitimidade do trabalho do historiador, inclusive (e
principalmente) em situações de tensionamento social, e menos suscetí-
veis estaremos aos equívocos que podemos incorrer quando apertamos o
passo diante de situações reativas e de combatividade política. A divul-
gação do saber histórico para as amplas audiências deve acontecer para
além dos momentos de crises institucionais e de crise da democracia.
As mudanças implementadas nos últimos dois anos no Café História
Apresentam a culminância de um grande esforço que temos feito na
hltima década como editores a fim de inscrever a História em uma
Perspectiva de divulgação científica. Tenho defendido com alguma in-
Sl
stência a idéia de que a divulgação, ao lado do ensino e da pesquisa,
^eve ser tomada como uma vocação do historiador profissional. Essa
defesa se baseia na idéia de que a divulgação científica é fundamental
Pata a construção da cidadania e para o fomento à cultura científica.
122

Referências

ALMEIDA, J. R.; ROVAI, M. G. O. (org.) Introdução à história pública. São


Paulo: Letra e Voz, 2011.
BLOCH, M. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2002.
BOURDIEU, P. "Uma revolução conservadora na edição". Política & Sociedade,
Florianópolis. 17, n. 39, p. 198-249,2018.
DUBY, G. A história continua. Rio de Janeiro: Zahar, 1993
FICO, C.; WASSERMAN, C.; MAGALHÃES, M. S. "Expansão e avaliação da
área de História-2010/2016". História da Historiografia, Ouro Preto/MG, v.
11, n. 28, p. 267-302,2018.
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cs, law. Moscou, v. 11, n. 6, p. 109-27,2018.

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