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Án(hieta e o Poema da Virgem


Já desde os primeiros annos da fundação de Piratininga
(1554-1557) na capitania de S. Vicente, vinham os Tamoyos
hostilisando as povoações portuguezas, confederadas com os
Tupis do sertão
O átaque se tornou cjuasi incessante em 1559, cjuando os
Tamoyos se alliaram com os Francezes, estaljelecidos no Rio
de Janeiro. Estes vencidos jror Mém de Sá em 1560 instiga
ram os Índios a uma insurreição gei-al, C|ue ameaçava arrasar
completamente a christandade (1562).
Nobrega e Anchieta partindo como embaixadores e refens
de paz, a 4 de Maio de 1563, chegaram ás praias de Yp ""«ig,
Hh. distante cerca de 155 Icm. ao nordeste de Santos. Mezes de
continua anciedade entre a vida e a morte foram os que elles
viveram no me^o destes índios cruéis por natureza e offendi-^
' dos pela cubiça dos colonizadores.
Fracassaram todas as tentativas, emquanto Nobrega não
se decidiu a voltar a S. Vicente, onde os inclios iam tratar as
suas pazes.
Anchieta oífereceu-se generosamente a ficar entre os Ta
moyos. Jovem, entre o desenvolto impudor dos selvagens, elle
sentiu que precisava de uma assistência especial da Rainha dos
Anjos. Esse favor assegurou-se com o voto de escrever eir!
honra de Nossa Senhora um poema que fosse a expressão do
seu amor e do seu reconhecimento.
Certo de que seu voto era acceito, começou immediatamen-
te a dar cumprimento ao que promettera. Passeando ao longo
da praia, roçada pelo manto azul do mar que lhe representa va
o de Maria envolvendo-lhe a alma na aridez daquelle deserto.
Anchieta ia trasladando do coração á praia e da praia á me
mória o cântico da virgindade.
A Virgem foi, de sua parte, fiel ao compromisso, guar-
dando-lhe intacta a pureza da' alma. Signal do agrado mater- •

1
— 4

no, uma avezinha saltava-lhe aos hombros, mãos e cabeça. A


própria Virgem revelou-lhe que não morreria naquella empre-
za, apezar de lhe soar de quando em quando aos ouvidos a phrs
Se terrivel dos indios: "José, farta-te de ver o sol!"
A 21 de Setembro, depois de quasi cinco mezes de au
sência, entrava Anchieta em S. Vicente. Estavam feitas as
pazes entre Tamoyos e Portuguezes. Cunhambeba, o chefe fe
roz, vinha ao lado do jovem heroe, para firmar a alliança.
Foi em S. Vicente que elle abriu o cofre robusto de sua
memória, para dar ao mundo os thezouros de poesia que esca
vara das areias de Yperoig.
Lançou-os ao papel, retocou-os, completou-os. (I
E' provável que já em 1564 tivesse acabado o seu poema,
pois nesse mesmo anno vamos encontra-lo em Piratininga, onde
era reclamado pelos indios, dizimados por cruel epidemia.
O poema sahiu impresso nas obras de Simão de Vascon-
cellos: "Na chronica da Companhia de Jesus do Estado do Bra
sil" em 1663 e 1865, e na "Vida do venqravel Padre Joseph
de Anchieta" em 1672. Em separado sahiu com o titulo "Poe
ma Marianum auctore Venerabili Patre Josepho de Anchie
ta..." em S. Cruz de Teneriffe no anno de 1887.
FONTES E CARACTER DA INSPIRAÇAjO
Quem, naquella hora silenciosa, entrasse na Sé de Coim
bra, ao pé do altar da Virgem, depararia com um jovem ajoe
lhado. Pela fixidez do olhar, movimento dos lábios, rubor do
rosto, parece pronunciar singular oração.
Era José de Anchieta, o futuro Thaumaturgo do Brasil.
Posterior confidencia veio revelar-nos o que dizia seu coração,
naquelle solemne momento da vida: consagrava a Maria a sua
virgindade! .
Qualquer de nossos jovens poetas houvera de representar
esse acto como uma flexa encravada no peito ao mavioso caná
rio de Tenerife. Quando muito, já não passará de uma pobre
avesiiiha a debateT-se de tristeza, entre os varedos de uma
gaiola... Tenerife já não será para elle
Mimo do largo mar^ cesta de flores
Esquecida no rota dos Phenicios!
»>.•

— 5 —
•I < 71

Ha de esquecer a Montanha Branca, o Pico do Teide, o


Paiz dos Perfumes entre ondulações de flores, aquella Terra em-
fim, de cujas lavas vulcânicas herdara elle um coração de fogo.
Na própria Coimbra já não descansará seus olhos
Nos saudosos campos do Mondcgo
Por onde fresca fonte rega as flores
E as lagrimas são agua e o nome amores!
Puro engano! O sagrado não mata a inspiração," purifica-a
com a verdade da concepção, reforça-a muitas vezes com a ele
vação do sentimento.
A obra do meigo Canarino é disto mais uma prova. vi:',;'

*
* *

Na mais intensa phase da primavera humana, aos vinte


annos de idade, Anchieta veio pedir ao Brasil ares sadios para
a sua saúde enfraquecida. A visão deste novo mundo produ
ziu nelle impressão semelhante á que produzira em Camões o
Oriente: o deslumbramento, o extase ante as extraordinárias
bellezas, que o Creador semeara em profusão nestas Terras
virgens.
Anchieta, como todos os versificadores do seu século, per
tencia á escola profundamente classica, que em parte sepultara
a escola popular de Gil Vicente. O contacto intimo com a sim
plicidade rústica do colono, com a ingenuidade e candura do
Índio, fê-lo descer e retomar o fio cortado da simpleza Vicen-
tina, que se traduz principalmente nos autos e canções popu- •
lares.
O nobre dassicismo, temperado pela ingenuidade preclas- .
sica, eis pois, a meu ver, a caracteristica geral do primeiro poe
ta do Novo-Mundo.
Mas Anchieta, ao escrever o seu poema, apesar dos poucos
annos de Brasil, tinha já assimilado em parte os elementos, que
fariam delle o grande poeta da colonia e das selvas. H' o que
prova a analyse, bem que summaria, desta sua obra, élo de
transição entre a poesia erudita e a popular.
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— 6

Com que gosto o latinista não pronuncia, na culta Imgua


de Ovidio, o nome barbaro da tribu feroz, que guardava o jo
vem religioso, como refém da paz com os colonos portugue-
- es! Nesses versos bellissimos, exprime em dez linhas a razão
do st", poema, um voto á SSma. Virgem, por lhe conservar
mtacta a castidade do corpo e da alma, no meio da mais desen-
ft-efida barbaria. Adolescente de pouco mais de vinte annos,
deixado a si mesmo pelo P. Manoel da Nobrega, a quem a for
ça das circumstancias-arrancava do seu lado, tem razão de di
zer na effusão do seu affecto:

(1) Eis o que eu nesse dia, ó Mãe celeste,


Te jurei com amor:
E' o Teu canto, que amanson do imir/q
O vesano furor.

Emqiuinto entre os Tamoyos conjurados.


- . . Jovem refém de paz,
Eti procurava apaziguar a raiva'
Do Índio fero e audaz.

O' doce Mãe, o Teu amor materno


Ao meu olhar sorriu:
Tomou-me pela mão, e corpo e alma
Co manto mé cobriu.

Esta pequena dedicatória, fecho do poema, parece ter sido


fei+a, quando o ardente e santo poeta, alcançado já o êxito da
•ibaixada, vinha de perder a esperança, em que até aquelle k
ponto o trazia enleiado o seu generoso amor para com Deus: 'i

rn Fn tibi Ciuae vovi, Mater .Sanctirsiitia, ciuondam f


Carmina, cum saevo cmgcrer hoste latus.
num mea Tamnyas praesenfia mitigat liostcs,
Tractoque tranquiHum pacis mcrmis opus;
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Hic tua'materno me gratia fovit amore,


Trcorpus tutum mensque regente íu.t.

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(3) Era uma lua do céo! dores, tormeiitoí


' •".. i' .'• Eu desejai soffrer...
Desejei muita vez cm duros f erros
A morte padecer.
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A'-') 'S 'r.ji,
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Mas ai! não merecia, eu era indigno,
'/ . O Senhor não me quis: • ./taíZ'JiV j ^
E' aos heróes sómente que compete
. Essa morte feliz!
Anchieta exordia o seu poema por uma interrogação de
sincera duvida. Dois são os motivos que o induziram a esse
proceder: a grandiosidade do assumpto — as glorias da Mãe
de Deus — e as circumstancias em que se acha, tendo unica
mente, como livros de consulta, o thesouro da sua memória,
aliás extraordinária, e por papel, a praia tão instável do mar,
que elle para logo era obrigado a substituir pela fidelidade da
sua mesma memória, onde o amor traçava profundmente;

(3) Romper? Calar? qual c melhor, Senhora?


Mãe de Jesus, da santidade aurora,
Cantar-te-hei ou mudo hei de ficar? \ .

A minha pobre mente fugiria D*. 1"'


Estupefacta... mas o amor, Maria,
V;'
Afoga o medo, obrigam:e a cantar!
A inspiração apoderou-se do Irmão José. Espreitando-o
de longe, os proprios indios dizem de si para si: "Deixá-lo! o
pagé fala com o céo. Tupan mandou as avesinbas para saber
os seus desejos!"

(2) Saepius optavi, Deo inspirante, dolores,


Duraciue cum saevo funere vinda pati.
At sunt passa tamen mea vota repulsam,
Scilicet heroas gloria tanta decet I
(3) Eloquar? an sileam, sanctissima Mater Jesu?
Num sileam? laudes eloquar anne tuas?
••••A Mens stupefacta fugit, nisi quod tuus, optima Virgo,
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Corde metum pavido cedere cogit amor"

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o amor vencera a tímida humildade. Unidos-numa subli


me imprecação, estes dois sentimentos lhe abrem os lábios numa
torrente de poesia:

(4) 'Ah! e si eu i}ão cantar, e teu divino


E forte amor, para arrancar-me um liymno,
Força bastante fião tiver jamais:
y,/>V.
'm' Seja meu coração, qual de precito.
Mais duro que o dicumante e que o granito
Mais rijo do que o ferro e que os metaes!

* * ^
Eis a dedicatória e o exordio desta obra singular. Longo
seria percorrer-lhe os cerca de 5.500 versos., Avivemos os tra
ços originaes que brotam a cada canto, a cada pagina do vasto
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poema. Podem reduzir-se a tres principaes; lyrismo o mais
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íi ' subjectiyo e sincero, não destituído de verdadeiras bellezas lit-
terarias; poder de amplificação extraordinário, que chega quasi
ao excesso dos seiscentistas; colorido bíblico em freqüentes al-
lusões e paraphrases de trechos sagrados, que elle encastôa com
felicidade em sua obra.
Anchieta não é um narrador épico, cuja voz se ouve e
cujo rosto fica escondido atrás do scenario. Não, elle é um dos
personagens principaes do seu poema, elle é o actor que can
tando desenrola, ante nossos olhos, um por um os episódios da
existência da Virgem, envolvendo-os com as formosas flores
do coração, affectos que se evolam espontâneos, ingênuos, va-
riadissimos, de filho, de desterrado, de santo.
E' uma efflorescência! o amor enthusiasta deu-lhe um po
der de desdobramento que difficilmente se encontraria igual
nesse campo de idéias. No intuito de resumir um pouco a obra
e facultar a sua leitura a muitos, que se não abalançariam a
' I•

(4) Sidereae tangar si non ego Matris amore.


Si m€a non dicant Virgims ora decus:
DuriWam silicis, ferrique aerisque rigorem
Vincat et invictum cor adanianta meuml

.1,1' •

Aiz:
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"llWflipi

—•9

percorrer-lhe os milhares de versos, sente-se uma verdadeira


difficuldade em escolher o verso, que uma mesma idéia é apre >

sentada com maior felicidade.


Quem dos grandes poetas biblicos tem algum conhecimen
to, depara com satisfacção aqui e ali referencias mais ou menos
claras a essas fontes de poesia oriental, genero que nossos poe
tas deveram com maior carinho explorar. Lugares ha até, no
poema de Anchieta, em que veem paraphraseados com gosto
cânticos inteiros de David, Salomão, Isaias...

A GONqEIÇÃiO DA VIRGEM
Dirigindo-se á SSma. Virgem, que dormia ainda no seio
materno, diz-lhe com summa delicadeza:

(5) Ouves já, ó pequenina,


A tenue voz do meu canto,
Ou dormes inda quietinha
No berço materno santo?
•» 1
Sim ouves! os teus ouvidos
São já despertos, são bonsj
E' a teia dos meus vicios
Que estorva meus pobres sons: .'H

Si pudesse á fresca noite


Faltar o leve rocio.
Si de altaneira nascente
Pudesse não vir o rio.

(5) Percipis, an fallor, tremulae vaga murmura voeis?


An sopita jaces tegmine ventris adhuc?
Et fortasse tuas obstruxit fertilis aures
Sordibus et vitiis mens mea fceta suis...
Desinet ante leves nox humida fundere rores.
Et cadere e gravidis nubibus humor aquae,
Mens. do Cor. de Jesus—^Outubro, 1933—4,
10

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Si pudesse o grave nivibo
A^ão desprender a sua agua,
í
E as fontes reborbulhando
Negar os olhos com magua:
Poderia a tua piedade
Deixar-nos também sequiosos:
Não ser o teu pequenino
Coração um rnar de gosos!
Teu coração é fornalha
Dc um infinito calor:
Todo inteiro me incendeie
Esse amor do Teu a/mor!
mp, Mais tarde, occupado, diz elle, com os cuidados do mun
do, reprehende-se acremente por não ter ainda admirado o ros
to formosissimo de

MARIA RECBMNASCIDA:
• •

(6) Insensato que paixão


Te arrasta num remoinho?.
íK Teus pés agora onde vão,
E após elles o mesquinho
Do Coração?
Olhos meus, que vagueaes
A'» , Cansados por esta vida,
i-V' Oh! porque não descansaes
Ú: • Na rosa recemnascida
,v
Destes rosaes?
. ^i
4' Ante negent liquidi dulcissima pocula fontes, m
Ante fluens vitreum non eat omne látex;
Quam tua non maneat pietatis vena liquores
Et stent dulcoris lata fluenta tui.
O utinain forti nostras sine fine medullas
Concremet igne tui dulcis ainoris amor!
L Quo feror impulsu demens? quo turbine raptar?
(6)
Quo celeres properant tam sine more pedes?
"••V.
Lít'
Cur ocuH effluitis, nec Virginis ora videtis.
Ora verecundis pUis rubicunda rosis?

.'Aw^ívr-. '1 •. AW.


L-t — 11 —

Fixa pois nella os seus olhos: em affectos sem fim rompe


ra o seu coração, si não achara, nas lettras do alphabeto, modo
gracioso e original de conter este oceano. São cerca de vinte
bellissimas comparações em louvor da Virgem. Na enumera
ção inesperada da lettra S não é difficil interpretar um arrou
bo de poeta, como a dizer, quasi no fim da sua serie, que mui
to mais teria a cantar se seguira o ardor da sua paixão:
(7) Este meu rude cantar
Acolho-o, Virgem formosa,
E' de um mendigo sem lar:
Some ao menos, ó rosa,
P'ra Te embalar!

. , Preparadas tenho aqui '.y


Muitas outras flores bellas,
Para offerta-las a ti:
São mil grinaldas singelas
, ,'' ' Que entreteci!

w • Guardou-as o arnor porém


V Para aquelle alegre dia, : \

Que, em teu collo de cecém, "


Dormir, pequena Maria,
Teu doce Bem! ,

Muito original é o scenario da


APRESENTAÇÃO EA VIRGEM NO TEMPLO:
O poeta sente um como odor celeste que se diffunde sua
: w vemente pela cidade. Desperta do seu lethargo e pÕe-se a cor
rer pelas ruas de Jerusalém, como desvairado em busca de algo

(7) Haec cap« quae cecini, Virgo, pulcherrima, cunis


i' Turpis, abortivus, pauper, inopsque tuis.
Lilia plura meus, florum tibi laeta rubentura M
Stemmata nascenti plura pararat amor.
Nunc tamem illa tibi pariturae numera servo,
Cum Deus in grêmio sedent ipsc tno. ^

V V.;'•.
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12
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que ignora. Dá-se o encontro. A' vista do objecto do seu amor,
trespassado por um dardo que aquella singular belleza lhe atira
aos olhos, a sua alma prorompe num hymno sublime á Virgin
dade, levando um pouco o véo á sua vida, e junta a esse canto
um outro á humildade. Espanta tenha ella podido achar expres
sões tão depreciantes contra esse espelho de pureza, que era a
sua alma. O grande santo e poeta quer significar o que seria, si
a Virgem o não tomasse para si desde a juventude:

(8) Apcms teu semblante encantadoi assoma


No Immilde limiar
Do paterno solar.
Enche Jerusalém do mais suave aroma.

Eu o senti de certo: aquelle hello dia


Pus-me, sem o saber
A correr, a correr \
Um quê misterioso o caminho me abria.

E eu vi'... oh! que visão! e tombei trespassado


Por um dardo de artíor:
Sim, foi: foi o fulgor.
Virgem, do teu olhar, que me feriu o lado.

Üm incêndio se ergueu, de viva claridade


Dentro no coração!
•[•N.
Nova, feliz canção
Dictou á minha voz o amor cia Virgindade:

(8) Ut pátrio profers divinum e limine vultum


Spargitur anibrosius moenibus urbis odor.

Ut sensi, aut certe credens sensisse, ciicurri,


Oblatum calcans qua rapiebar iter. •/o

Ut vidi, ut perii jaculo coiifossus amoris,


Ut mea traxisti lumina, Virgo, tuis!
Ut mihi inassuetis ardoribus intima carpsit
.VV Pectora formosae Virginitatis amor!
V- .

'.'t ♦ • .

• i. .i.
— Í3 —

^'Oh! tarde, muito tarde entendo o meu destroço:


Ha muito te perdi.
O' fulgido rubi
Que és o maior fulgor num coração de moço!
Que fera tão cruel, ó minha herdade hella,
A sebe te arrancou?
Que monstro derrocou
A potente muralha á tua cidadella?
O' santa Virgindade, ó noiva tão fomnosa
De noivo tão gentil, \
Que tempestade vil
Te veio esfolhar do peito a branca rosa?
Oh! q-uando, já mui perto, a morte negra e fria 5
Em torpe abraço quis
Do peito do infeliz
A pureza manchar no leito em que jazia. •á
Não sei que ciciar suave de aura mansa
Roçou-me o coração:
Era a consolação
Que me vinha tocar a harpa da esperança:
Erguc-te, vem commigo, oh! vem do Omnipotcnte
Aos sagrados umbraes.
E não me deixes mais!
Tu meu servo serás aqui perpetuamente!"

• S
Tunc ego jam sero mea tristia damna rependens,
fe- Heu periit, dixi, Virginitatis honos!
Quae tam saeva tuam rapit, mea vinea, sepem
Bastia? maçariam quis laceravit aper?..,
O bona Virginitas Sponso tam grata decoro, ,
Quis mihi te casus, quae fera ademit hiemsP...
Quum prope mors esset, nec spes foret ulla salutis,
Vellet et in lecto foeda jacaré suo,
Néscio quis lenis placidae mihi sibilus aurae
Hos dadit inspirans cordis m ore sonos:
" Surge veni mecum sacrata in templa Tonantis:
Tu mihi perpetuo 4empore servus ens!

M.
14

Ouvir, e â minha alma a,vida esmorecida


Lento, lento voltou:
A lingua me soltou
E eu disse: "Eis-me, eu te sigo, ó lus de minha vida!'

l
Mas é principalmente nos mistérios da
ANlSrUNCIAÇAO E MATERNíIDADE DIVINA

que a phantasia irrompe em conceitos que parecem não ter fim.


Anchieta dedica a estes dois mistérios cerca de 1.500 ver
sos, quasi uma quarta parte do poema. Só a violentissima sati-
ra contra Calvino, o blasphemador da virgindade de Maria,
abrange cerca de 200 versos: verdadeira tempestade artistica
num horizonte plácido de luz e fogo, nós a reproduziramos quasi
por inteiro, si o espaço nó-lo consentisse.
Saboreemos em seu lugar o trecho da maternidade em que
intelligencia e coração, sciencia e santidade, fé e amor concen
traram seus esforços numa pequena joia litteraria:
(9) Meigo somno solta os membros
Que atara o labor \do dia:
Na terra só brilha a lampada
•r
Do teu olhar, ó Maria.
• 'f. •"
Devolves na mente ha muito
O alto mistério divino: •!l 'V'
Contemplar o rosto almejas
Do teu formoso menino. .'ÍAí
Auclivi, et vita siniul ac sernionc rcsumpto,
"Ecoe seqiior, dixi, quo bcncdicta venis!
•fNffm V
(?) Omnia somnus habct placida resoluta quiete;
At tua, ceu lampas, lumina clara micant.
Altaque jamdudum miracu'a mente volutas,
Ora cupis Pueri pulchra videre tui.
lítt - . J S • »
15 —

Anceias libar mil osculos '


Dessa boquinha formosa.
Estampar teus doces lábios
Em suas faces cor de rosa.
"Meu futuro paraíso,
Vem, nasce, ó eterno Deus!
Vem dar-me um beijo celeste
Desses labiosinhos teus!"

Emquanto assim desabafas


:'íi' A chamma do teu amor,
E esperas ver o semblante
Do que Deus fez teu .penhor: •MT.íá

Í^-Im' " Vestido da carne humana


Jy>Ár<-.<i,': Eis nasce o Verbo menino:
Dorme intacta a virgindade
Em teu albergue divino.
I'. -jf'
fi'.''.;,! > ',.• '
v:'>!.,' Como o caule verdejante
Produz a nitente flor. •^3
Sem que ella no desatar-se
rV'
Lhe fira em nada o candor:
. . . "• - v-f •waí
Krj Como o sol passa as vidraças
Com seus fios coniscantes. . y, . ;í, V.
Tira e retira seus raios
Deixando o vidro como antes:

, ><• Oscula jam gestis roseis libare Iabellis_


' ' '.'í, Et rubra caiididulis figere iabra genis.
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, V IM
"Nascere, sunime Deus, mea magna future .voluptas 1
Basiolumque ofis da mihi dulce tui!"
•'jw:-!
Haec durii divini succensa cupidine amoris
Volvis, et exspectas pignoris ora sacri;
Nascitur humano vestitum corpore Vcrbum.
Et tua virginitas intemerata manet.
Ut viridis profert nitidum virguncula florem,
Nec trusu floris laeditur ipsa sui:
Ut sol subtili penetrans spccularia luce
Illaeso radians itque reditque vitro:

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— 16 —

Por essa porta de aurora


Sae o príncipe do céo:
Não rangeu um só ferrolhOj
Não se roçou um só véo.

Sahiu do thalamo augusto


Qual esposado novel:
A' nova esposa levando
De eterno mnor o annel.
I u
Já te prendem de joelhos
De santo respeito os laços:
MaSj és mãe, já não resistes
A enfaixa-lo de abraços!

Não me furto ao prazer de exarar aqui o trecho, senão o


mais bello, certamente o mais celebre do poema.
Elle mereceu de muitos ascetas ao seu auctor o titulo de um
dos grandes cultores da devoção ao
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

antes que este coração repellido pelos homens fosse pedir refu
gio ao coração da Virgem de Paray:
(10) Chaga dizàno., quem te abriu primeiro
Não foi a lança, não!
Jesus amou-nos e esse amor immenso
Rasgou-lhe o coração!

Egreditur porta princeps sublimis Eoa,


Limina signatae nec patuere fores.

Candidus e thalamo procedit Sponsus honesto


Conjugis aeterno vinctus amore novae.

Flexa genu, et toto venerabile Nnmen adoras


Corpore, in amplexos jam ruitura pios!

(10) O sacrum vulnus, quod non tarn ferrea cuspis,


Quam nimius nostri fecit amoris amor!

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Fonte perenne a horhnUiar no seio


Do celestial Eden,
De tuas agiias a flor da santidade-
Na terra se niantem!

Real caminho ao viajor perdido.


Umbral da eternidade.
Trincheira certa na refrega ardente.
Porto na tempestade!
Purpurea rosa a repa^-tir benéfica
Exhalações divinas,
Joia, que, ao peccador, do céo descerra
As portas cristallinas!
Macio ninho, que resguarda 'os ovos
A's candidas pombinhas ' -
Em ti vêm occultar suas esperanças
As timidas rolinhas

Sublime chaga a rutilar formosa


De eterno resplendor
Tu és que feres 7tossos frios peitos
Em scentelhas de amor!

Celeste chaga, abriste larga estrada


Em nosso coração,
Por onda possa entrar suavemente
Da cruz a salvação!

O flumen médio Paradisi e fonte refusum_,


Cujus ab uberibus terra tumescit aquis!
O via regalis, gemmataque janua caeli,
Presidii turris confugiique locus!
O rosa divinae spirans virtutis odorem,
Gemma, poli solium qua sibi pauper emit!
ííidus ubi purae sua ponunt ova columbae,
• Castus ubi tenere pignora turtur alit.
O plaga imraensi splendoris honore rubescens,
Quae pia divino pectora amore fens.
O vulnus dulci praecordia vulnere findens,
Qua patet ad Christi cor via lata piuml
18 —

Prova inaudita és tu, ó viva chaga,


Do amor do meu Jesus!
A ti se acolhe a barca nad>rocclla,
Pharol da eterna lua!

Sede eterna da paa, limpída fonte


De lympha perennal,
A lefrescar suave com seus jorros
A patría celestial!

Só tu, 6 Mãe, scntistc o rude ferro


que esta chaga rasgou!
A ti. pertence dar ahi refugio
Ao pobre que peccou.

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Dei^-a pois que eu corra a esse abrigo
Que a lança me mostrou:
Quero passar unido toda a vida
A quelle que me amou!
A sombra desse amor acalentado
Alegre hei de viver:
Dentro em teu coração, ómeu amado.
Virei emfim morrer!
*

* *

Fechemos este trabalho com uni exemolo siniipt- rtc f


característica. qt,e reconhecemos em Anchieíar ocolonío bXa
Portus ab a«juonbus,sibiquo
junxit, amoris!
fugit icta ratis!
O pacis sedes! o yivae vena perennis
Aeternam ui vitam subsilientis aquae!...
Tu sola hoc patens, tu dare sola potes.
possini in Domini vivere corde mei i
•' ''
^"'viverei"I'-' ^""bus
Vivere dulcc dies, liic mihi dulce nioriomne^
|

U.i-JCÜi^bL I--V -A ,'|||.


. — 19

E' z^Mortc da SSma. Virgem: Jesus chama para o'céo sua mãe
com palavras que lembram as do Esposo dos Cantares: " Sur
ge, propera, amica iliea, columba mea, formosa mea, et veni!
Jam enim hiems transiit, imber abiit et recessit- Flores appa«-
ruenuit in terra nostra" etc....

(11) Pomba celeste, quebra á vida os laços • • • tiVÍ


Enfiando pelo espaço as leves pennas!
"Vem, minha Pilha!" já o Pac te chama,
"Vem, minha Mãe!" já te snpplica o Filho.
A passo lento o inverno foi-se: os tempos,
Que a primavera ornou de flores bellas, • ,^
Voltaram carregados de mil rosas. • ..
E' tempo! vae sorver beijos de goso
Querida mãe, nos lábios de teu Filho.
Ao collo de teu Pae, 6 filha camada,
Vae, vae dormir do amor o somno eterno.
"Eis que ]á vou!" respondes tu num hymno
De celeste saudade, e tua mente.
Liberta dos grilhões da carne humana,
Adcja no pombal do paraiso! - ,
A.C.,S.J,

• i' (11) Rumpe, columba, moras, levibus pulcherrima pemiís:


Nata Patri, Nato Mater amica veni!
Tristis hiems abiit, venerunt florida vcris
Têmpora, purpureis deliciosa rosis. ^
Rumpe moras, veri Mater cape gaudia Nati,
Inque sinu Patris, Nata, recumbe tui!
"En venio!" dulci respondes voce, Deumque
Mens tua corporea libera mole petit.

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