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Manifesto pelas dêndas sodais


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Tradução
Verônica Galíndez

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Verónicâ Galindez
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Doutora em Literatura Francesa pela
Universidade de São Paulo, onde ●í
ensinou (2004-2018) e desenvolveu
pesquisa sobre manuscritos de escri
tores franceses (Gustave Flaubert,
Pascal Quignard, Marcei Cohen e
Ivan Jablonka) e sobre as relações
entre a teoria da enunciaçâo de Émile
Benveniste e a literatura (coorganiza-
dora de Émile Benveniste: a gênese de
um
pensamento. Editora UnB, 2019).
Autora de Fogos de artifício: Flaubert e
a escritura(Annablume,2009)e tradu-
tora de Butes(Dobra Editorial,2013)e
Último reino (Hedra, 2013, com Leda
Cartum e Mario Sagayama),ambos de
Pascal Quignard,Atua como Professeur
Certifié de Lettres Modemes(Línguae
Literatura Francesa) na França, onde
reside atualmente.
A história é
uma
A,
Universidade de Brasília
Reitora Márcia Abrahão Moura
Vice-Reitor Enrique Huelva

EDITORA

UnB
Diretora
Germana Henriques Pereira
Conselho editorial
Germana Henriques Pereira (Presidente^
Fernando César Lima Leite ^
Beatriz Vargas Ramos Goncalve»; Ha d ^
Carlos José Souza de Alvaren™
Estevão Chaves de Rezende Martins
Flávia Millena Biroli Tokarski
Jorge Madeira Nogueira
Maria Lidia Bueno Fernandes
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Sely Maria de Souza Costa
Verônica Moreira Amado
Ivan Jablonka

A história é
uma literatura
contemporânea
Manifesto pelas
ciências sociais

Tradução:
Verônica Galíndez

EDITORA

UnB
Equipe editorial

Coordenação de produção edrtoriaJ Luciana Lins Camello Gaivão


Tradução Verônica Galindez
Preparação e revisão Alexandre Vasconcellos de Melo
Projeto gráfico Marina Dourado L. Cunha
Diagramação Wladimir de Andrade Oliveira

Título originai; CHistoire est une littérature


contemporaine: manifeste pour les Sciences sociales.

© Editions du Seuil 2014, 2017

Collection La Librairie du XXIe siècle, sous Ia


direction de Maurice Olender.

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme


d'Aide à Ia Publication année 2020 Carlos
Litrrlf ● tjtaiu/ ● Fraurniit
RÊPUDLIQUE FRASCAISE Drummond de Andrade de lAmbassade de France
AMiussAni nr írasci, au Brésil, bénéficie du soutien du Ministère de
AU HRf.^11.
1'Europe et des Affaires étrangères.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de


Apoio à Publicação ano 2020 Carlos Drummond de
Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou
com 0
apoio do Ministério francês da Europa e das
Relações Exteriores.

; © 2018 Editora Universidade de Brasília

; Direitos exclusivos para esta edição:


: Editora Universidade de Brasília
: SCS, quadra 2, bloco C. n° 78, Edifício OK,
; 2°andar. CEP 70302-907, Brasília. DF
; Telefone:(61) 3035-4200
: Site: www.editora.unb.br
; E-mail: contatoeditora@unb.br

: Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta


; publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por
: qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central


da Universidade de Brasília

Jll Jablonka, Ivan.


A história é uina literatura contemporânea : manifesto Dclíi^
ciências sociais / Ivan Jablonka ; tradução: Verônica Galindez
Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2020
4ü»p. ;21cin.

I ISBN 978-65-5846-031-2

1. Historiografia. 2. Narrativa (Retórica). 3. Subjetividade. 4.


Ciências sociais. 1. Título.

COU 930

Impresso no Brasil
T

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Agmdlecimeínitos

Meu livro contou com os conselhos e comentários de Sarah

Al-Matary,Ludivine Bantigny, Christophe Charle, Quentin Deluermoz,


Pauline Peretz, Claire Zalc.
con-
Sou muito grato a Séverine Nikel, cujo interesse e apoio
tam imensamente para mim.
O historiador Maurice Olender, meu editor, é ao mesmo tempo
um conselheiro, um interlocutor e um amigo.
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■UEmáridD

Modernizar as ciências sociais 11

A história-tragédia 40
A história-eloquência 44
A história-panegírica 49
Contra a história de corte 53
Nascimento do escritor e da literatura 57
A história ou a “terceira cultura' 63

2.
O romance, pai da história? 69
Chateaubriand e a epopeia-história 70
Scott e o romance histórico 74

As guerras da verdade 81
O historiador-criador 86
Balzac e as ciências morais 92

3.
((
História-ciência e micróbios literários

O método naturalista 100


O advento da história-ciência 104

O modo objetivo 107


Videntes contra mandarins 115
Dois milênios esquecidos 121
Nascimento do nào texto 125
As ciências sociais e a “vida” 132

4.
O retorno do recalcado literário 137

O “escândalo” narrativista 139


A “virada retórica” 142

As “seduções” da literatura 148


Depois do divórcio 153

O raciocínio histórico 159

5.
Que é a história? 161

Os efeitos de verdade 161


Da mimese à gnose 170
Compreender o que os homens fazem 174
Explicação causai e compreensão 179
O ordenamento do mundo 183

6.

Os escritores da hístória-ciência 187


Raciocínios de Heródoto 188

A retórica de Aristóteles e de Cícero 192


A história-ciência no século XVI 195
O espírito de 1690 200
A cólera da verdade 206
7.

A distância 211
A investigação 216
A comparação 222
Aprova 225
A refutação 231
O enunciado de verdade 236

As fiicções de método 243


Status da ficção 243
A ficção revelação 249
O estranhamento 255

Conceitos e teorias 262


Procedimentos narrativos 267
Ativar a ficção 271

liiteratuim e ciências sociais 279

Da não ficção à literatura-verdade 281


A zona de extraterritorialidade 283

O pós-realismo 289
A literatura não ficcional 296
Da ficção 299
Do factual 302
Do literário 310
Literatura e busca da verdade 316
10.
A história, uma literatura sob coerçâo? 321

As regras libertadoras 321


Riqueza de estilos 326
Grandeza e miséria da nota 336
A prova sem nota 342
A modernização das ciências sociais 349

11.
O texto-pesquisa 359

A situação do pesquisador 360


O “eu” de método 367

Contar a investigação 374


Transparência e hnitude 378
O modo reflexivo 383

12.

Da literatura no século XXI 387

A investigação ou a pós-disciplinaridade 387


Por um neociceronismo 392
Uma contraliteratura 396
Os tempos estão maduros 399
O espirito de resistência 402
Mederni^ar as ciêandas sociais

Reconciliar pesquisa e criação,inventar novas formas de encar

nar o saber, modernizar as ciências sociais, são algumas propostas

que, para mim,se equivalem. Este livro tem o objetivo de atualizar

suas condições de possibilidade.

A profissionalização das disciplinas, contínua desde o final do

século XIX,traduziu-se por um progresso em tennos de método, mas

também por uma regressão em termos de forma,de emoção e de pra

zer. A história - para limitar-me apenas a minha disdplina- não apren

deu grande coisa com o romance moderno,a reportagem,a fotografia,

o cinema, os quadrinhos, e esse desinteresse não deixa de ter relação

com a obtusão que ameaça hoje as ciências sociais: uma hiperespecia-

lização dos pesquisadores, uma fascinação pelo fator de impacto, um

desinteresse pela palavra pública,a crença de que um artigo de revista

é, em si, mais “científico” do que um documentário ou do que uma

exposição de museu.

Pode-se arguir que um pesquisador é um conhecedor especiali

zado que precisa de colegas e de alunos, mas não de leitores “profa

nos”. O problema é que o esquecimento da forma,o desdém da escrita

e a transmissão são obstáculos à própria iniciativa do conhecimento.

Pois todos os grandes avanços epistemológicos - Heródoto, Cícero,

Bayle, Michelet, Nietzsche, Foucault - também foram revoluções


A história é uma literatura contemporânea

literárias. Sem escrita, escritura, o saber é incompleto; ele fica órfão

de sua própria forma. É exatamente isso que me faz dizer que a lite

ratura não enfraquece, mas, pelo contrário, fortalece o método das


ciências sociais e também sua dimensão cívica.

Como fazer para que a pesquisa não se resuma simplesmente à

citação ou ao comentário, mas que seja criação? Como unir imagi

nação, audácia e rigor? Retornar às belas-letras do século XVII seria

um erro; transformar a história em um grande romance à maneira

do século XIX seria uma ilusão; insistir na hiperespecialização aca

dêmica em vigor seria uma facilidade. E possível evitar, ao mesmo

tempo, uma literatura sem método e um método sem literatura

para praticar um método em uma literatura, um raciocínio-investiga-

tivo, um texto-pesquisa, pois a pesquisa trata indissociavelmente

de fatos que devem ser estabelecidos, fontes que os comprovem e

uma forma que permita comunicá-los.

A ideia de reconciliar a pesquisa em ciências sociais com a cria

ção literária pode produzir alguns mal-entendidos. Assim, se defini

mos, preguiçosamente, a história a partir dos “fatos” e a literatura

a partir da ficção , elas realmente correm o risco de serem incom

patíveis. Se julgamos que a história é uma atividade séria e que a

literatura é da ordem do diletantismo, devemos transformar uma

delas em profissão e reservar a outra aos passatempos do domingo.

Mas se considerarmos que a história é uma investigação, e o histo

riador, um investigador, poderemos tirar consequências literárias de

12
Modernizar as ciências sociais

seu método: empregar o eu para indicar de onde falamos, narrar

a investigação, recorrer à obsessão de um questionamento, ir e vir

entre o presente e os passados, inventar ficções de método para

compreender melhor o real, situar o cursor no melhor lugar entre

distância e empatia, buscar as palavras ideais, dar espaço à língua

das pessoas (vivas ou mortas) que encontramos.

Essas regras são operadores de literariedade, ou seja,ferramen

tas cognitivas e literárias que, à medida que aumentam o rigor da

pesquisa e da reflexividade da abordagem,incentivam o pesquisador


a escrever. Aqui reside o ponto de junção entre história e literatura.

Antes de ser uma disciplina universitária, a história é uma viagem

no tempo e no espaço, uma investigação baseada no raciocínio;

a literatura, sem precisar se assujeitar à ficção, é um trabalho sobre

a língua, uma construção narrativa, uma voz singular, uma emoção,


uma atmosfera, um ritmo, uma evasão para outros lugares, assim

como um cânone forjado pelas instituições. FeHzmente, essas duas

definições se encontram: a história é uma literatura contemporânea.

0 raciocínio, graças ao qual produzimos e transmitimos conheci

mento, é o centro nevrálgico da escrita, a pulsação do texto. Assim,

podemos reinventar novas formas- ciências sociais para o século XXI.

Em Como se escreve a história (2008[1971]) Paul Veyne propõe

a noçao de “romance verdadeiro”. Essa bela fórmula retoma um


elemento crucial: o historiador narra, a história é uma narrativa.

Mas por que o romance? Não há garantia de que se possa produzir

13
A história é uma literatura contemporânea

algo novo com Zola ou Steinbeck; ou então, deve-se ser capaz, a

exemplo de Proust, Woolf, Joyce e Faulkner, de romper com as

convenções herdadas do século XIX (realismo, narrativa linear,

hierarquia do herói e dos personagens secundários, encadeamento

das ações num jogo de causa-consequência, etc.). No entanto, não

somos obrigados a reduzir a literatura ao romance. A poesia, o tea

tro, o ensaio, a autobiografia, a narrativa de vida, o testemunho,

grandes reportagens, a Creative nonfiction, pertencem à literatura,

mas não ao gênero romanesco.


Em A escrita da história (1982 [1975]), Michel de Certeau

relembra, contra as habituais denegações cientificistas, que a his

tória se escreve. Mas o título de sua obra insinua que todos os

historiadores teriam vocação para escrever - o que está longe de ser

o caso. Frequentemente, estes instauram algo como uma técnica

e não propriamente uma escrita: montagem de arquivos, marche-

taria de citações, notas de rodapé, dispondo o todo em um plano

que se declina em introdução, capítulos e conclusão. A partir desse

momento,o historiador não produz um texto, mas um não texto,

uma dissertação de especialista, uma forma puramente instrumen

tal, inerte, morta para a linguagem, que não cessa de renunciar à

sua própria literariedade. Em outros termos, uma caixa de mudança

que preenchemos com fatos, excertos e alguns conceitos.

Quando abriremos ateliês de escrita para historiadores e soció

logos? Ao longo do século XX, antropólogos como Malinowski,

14
Modernizar as ciências sociais

Lévi-Strauss e Geertz aceitaram escrever, no sentido forte do termo.

Michel Leiris era, por exemplo, etnólogo e escritor. Em Writing

Culture (1986), James Clifford e George Marcus se questionam


acerca da fabricação e da poética dos textos. Eles criticam, com

outros pesquisadores, a retórica do etnólogo,seu realismo ingênuo,


seus efeitos de estilo, seus discursos de autoridade, seus vieses

etnocêntricos ou colonialistas. Só nos resta elogiar esse corajoso

distanciamento crítico.

Infelizmente, Writing Culture se concentra em um único hori

zonte: a renovação da etnologia. James Clifford se torna o etnó-

grafo dos etnógrafos”, mas era impossível tornar-se historiador


ou sociólogo dos etnógrafos, ou etnógrafo dos historiadores e dos

sociólogos. Os historiadores também fazem pesquisa de campo,

porque viajam, vasculham, observam, participam, questionam os

homens. Podemos estudar o passado como sociólogos, o presente

como historiadores. A pluridisciplinaridade sempre tem algo de

subversivo, porque perturba rotinas, hábitos, descentraliza o olhar.

Muitos já 0 disseram: a escrita da história costuma se limitar a uma

técnica. Entre os etnólogos é o inverso, pois a crítica dos “disposi

tivos de escrita” ameaça desencadear uma criação descontrolada:

autoficções, performances, digressões egóticas, poesia do quoti

diano. No final, a literatura matou as ciências sociais.

O fato de narrar a pesquisa e de dizer “eu” reflexivamente

é um gesto ao mesmo tempo científico e literário. Nesse ponto.

15
A história é uma literatura contemporânea

assim como em outros, a contribuição dos gender studies [estudos

de gênero]foi capital. Na introdução de Feminism andMethodology


(1987),Sandra Harding propõe explicitar a posição encarnada pelo

pesquisador - gênero, classe, educação, valores, posição social.


A “neutralidade” nunca é neutra: ela confunde frequentemente

masculino e universal. Ela contempla o mundo de um ponto de

vista, essa posição de superioridade e de exterioridade típica da

historiografia tradicional, em que a voz invisível do historiador se


confunde com a voz do Passado.

Em vez disso, a consideração do pesquisador, e mais parti

cularmente da sua relação com o objeto de estudo, faz parte da

pesquisa. O “eu” de método recoloca o pesquisador no meio dos

outros mortais que ele ou ela estuda. Isso permite evitar ao mesmo

tempo o cientificismo dominador, o relativismo cético e o suposto

privilégio epistemológico da classe oprimida. O “conhecimento

situado” recusa o sexismo metodológico, que consiste, quando se

é um homem,em estudar os grandes homens, as grandes datas,

os grandes fatos, as instituições e, quando se é uma mulher, as

relações sociais de sexo e o lugar de inferioridade que as sociedades


reservam às mulheres.

O olhar através do qual consideramos as atividades humanas

(inclusive intelectuais) é profundamente sexuado: a ciência, grave

e difícil, seria ‘masculina”, enquanto a literatura, sensível,intros-

pectiva e psicológica, seria “feminina”. É uma das razões pelas quais

16
Modernizar as ciências sociais

tantos pesquisadores recusam-se a “cair na literatura: os homens


se aceitassem dar à luz textos? Está claro
perderiam seu imperium

que assumir a literariedade das ciências sociais é uma forma de


recusar a ‘malestream history”.
um método em um texto, uma investi-
É impossível encarnar

gaçao em uma narrativa, sem prestar atenção à língua. Nesse sen-

tido, meu livro dialoga com o Imgidstic turn [a virada linguística],


como Rorty, Barthes, Foucault, Derrida
alimentado por pensadores

e, mais próximos da história, Hayden White e Dominick LaCapra.

Essa corrente, a ponto de não mais sabermos se falar em turn ou em

turns, propôs várias pautas ao longo dos anos 1970-1980: a forma

discursiva de toda experiência, papel da retórica e do imaginá-

io científicos (os historiadores do século XIX em Metahistory de

Hayden White), as “linguagens de classe”(a classe operária inglesa


em Gareth Stedman Jones), a análise dos textos literários em relação

com seu contexto de produção (Musset e Baudelaire em Present Past

de Richard Terdiman). objetivos mais amplos do estruturalismo,

do Novo Historicismo e da filosofia da linguagem - tantos debates

fundamentais que enriqueceram a reflexão dos historiadores.

Entretanto, há um ponto de discórdia: afirmar que não há dife-

rença entre a história e a ficção. Se a virada linguística consiste em

estudar a linguagem sob todos os seus aspectos ou relembrar que

a escrita é uma força criativa que pertence ao processo de conheci-

mento, eu sou a favor. Os historiadores não deveriam desconfiar da

17
A história é uma literatura contemporânea

escrita, pois a escrita não é um problema, mas uma solução. Por outro

lado, se a virada linguística se torna uma máquina de guerra contra

as ciências sociais, a pretexto de que “tudo é ficção ou que não se

pode escapar ao império dos signos”, não posso mais aderir. Contra

namente ao que afirmam os poeticistas, o texto histórico comunica

com o que está fora do texto, ou seja, não somente com as provas

materiais (ossadas, moedas, ruínas, arquivos), mas com a realidade

da qual é testemunha. A diferença entre um romance de Flaubert e

um livro de Danton reside menos na qualidade literária do primeiro

do que na capacidade de veridição do segundo. É por essa razao que

é impossível desconstruir completamente as ciências sociais.


No posfácio de 2006
ao seu artigo “Rethinking Chartism”
(publicado
em 1983), Gareth Stedman Jones concluiu, opondo-

'Se a Saussure e a Derrida que: “O historiador não pode se eximir


de uma referencialidade implícita.” Haveria então uma virada lin¬

guística para os historiadores” e uma virada linguística para os

literários ? Com efeito, a verdadeira linha de demarcação é o desejo


de verdade
que nos anima. A verdade não é um termo escorrega-
dio. As palavras e os arquivos não possuem um número infinito

de significações. A noção de objetividade pode até ser criticável,


mas
não deixa de guardar todo seu valor. Antes de jogar no lixo

o noble dream”, é preferível torná-lo menos ingênuo, menos envie-


sado, mais reflexivo. Se
os estudos pós-coloniais e de gênero são
tão importantes é porque oferecem ferramentas para apreender

18
Modernizar as ciências sociais

melhor o real, e não porque permitiríam a cada grupo formular

sua verdade”, segundo suas necessidades e sua visão das coisas.

A história enquanto ciência será sempre mais importante do que


os discursos das identidades. Palavra de judeu feminista.

Minha posição não consiste, portanto, em diminuir as exi

gências das ciências sociais, mas, pelo contrário, aumentá-las,

tornando a investigação mais transparente, a abordagem mais

honesta, a pesquisa mais audaciosa, as palavras mais acertadas,

o que acaba resultando no aprofundamento do debate crítico.

Ao passar do discurso ao texto, podemos fazer com que a escrita seja


um ganho epistemológico claro. Não na multiplicação de belas pala-

vras e de metáforas, mas na invenção de formas novas. No âmbito


método, somos livres. E ninguém
das regras que constituem

deve se desculpar por querer exercer sua liberdade. Um percurso

intelectual de criação, uma reflexividade vibrante, uma recusa do

sexismo metodológico, uma independência de tom e de estilo, uma

sensibilidade à linguagem, uma abertura ao público: esse poderia

ser o futuro da pesquisa em ciências sociais.

Há dois continentes no mapa das escritas: a ficção romanesca

e o não texto acadêmico, ambos nascidos no século XIX. Podemos

viver felizes nesses dois continentes (eu mesmo publiquei um

romance e produzi um grande número de artigos especializados),

mas também podemos considerar que esses espaços estão hoje bem
-se
desbravados, cada vez mais saturados, e que é possível aventurar

19
A história é uma literatura contemporânea

em zonas inabitadas do mundo. Nesse sentido, meu Histoire des

grands-parents [História dos avós que não tive] e Laètitia são explo
rações. Dipesh Chakrabarty propunha ‘ provincializar a Europa".
Quanto a mim, proponho sair do século XIX. É um terceiro con
tinente que se abre a nós, o da criação em ciências sociais - uma

investigação pluridisciplinar, uma hibridaçâo, um texto-pesquisa,


uma literatura-verdade, uma emocionante aventura intelectual.

Ivan Jablonka

Paris,junho de 2017.

20
ao mesmo tempo história
É possível imaginar textos que sejam
e literatura? Esse desafio só adquire sentido se faz nascer formas

novas. A história e a literatura podem ser algo mais, uma para a

outra, do que um Cavalo de Troia.

Minha ideia é a seguinte: a escrita da história não é sim

plesmente uma técnica (anúncio da estrutura, citações, notas de


uma
rodapé), mas uma escolha. O pesquisador se coloca diante de

possibilidade de escrita. Reciprocamente, uma possibilidade de conhe


cimento se abre ao escritor: a literatura é dotada de uma aptidão

histórica, sociológica, antropológica.

Como,no século XIX,a história e a sociologia se separaram das

belas-letras, o debate habitualmente subentende dois postulados:

as ciências sociais não têm alcance literário; um escritor não produz

conhecimento. Seria necessário escolher entre uma história que fosse

científica”, em detrimento da escrita, e uma história que fosse lite

rária”, em detrimento da verdade. Essa alternativa é uma armadilha.

Primeiramente, as ciências sociais podem ser literárias. A his

tória não é ficção, a sociologia não é romance, a antropologia não é

exotismo, e as três obedecem a exigências de método. Nesse âmbito,

nada impede o pesquisador de escrever. Fugindo da erudição que se


texto.
relega a um não texto, ele pode encarnar um raciocínio em um
elaborar uma forma que sirva a sua demonstração. Conciliar ciências

sociais e criação literária é tentar escrever de forma mais ou menos


A história é uma literatura contemporânea

livre, mais justa, mais original, mais reflexiva, não para abrandar a

cientificidade da pesquisa, mas, pelo contrário, para reforçá-la.

Pois, se a escrita é um componente incontornável da história

e das ciências sociais, é menos em função das razões estéticas do

que das razões de método. A escrita não é o simples veículo de

“resultados”, ela não é a embalagem feita às pressas depois de ter

minada a pesquisa; ela é o desdobramento da própria pesquisa, o

cerne da investigação. Existe uma dimensão cívica que se acresce

ao prazer intelectual e à capacidade epistemológica. As ciências

sociais devem ser discutidas entre especialistas, mas é fundamen

tal que também possam ser lidas, apreciadas e criticadas por um

público mais amplo. Contribuir, por meio da escrita, a tornar mais

atraentes as ciências sociais pode ser uma maneira de conjurar o

desamor que as toca, tanto na universidade como nas livrarias.

Em segundo lugar, desejo mostrar em que medida a literatura

está apta a dar conta do real. Assim como o pesquisador pode encar

nar uma demonstração em um texto, o escritor pode colocar em fun

cionamento um raciocínio histórico, sociológico, antropológico. A lite

ratura não é necessariamente o reino da ficção. Ela aceita, e às vezes

ultrapassa, os modos de investigação das ciências sociais. O escritor

que quer dizer o mundo se torna, à sua maneira, pesquisador.

Porque elas produzem o conhecimento sobre o real, porque são

capazes não somente de representá-lo (é a velha mimese), mas de

explicá-lo, as ciências sociais já estão presentes na literatura - relatos

22
A história é uma literatura contemporânea

de viagem, memórias, autobiografias, correspondência, testemu


nhos, diários, relatos de vida, reportagens, todos esses textos nos

quais alguém observa, deposita, registra, examina,transmite, conta


sua infância, evoca os ausentes,dá conta de uma experiência, retraça
0 itinerário de um indivíduo, percorre um país em guerra ou uma

região em crise, investiga um fato, um sistema mafioso, um meio


profissional. Toda essa literatura revela um pensamento histórico,
sociológico e antropológico, carregado de certas ferramentas de
inteÜgibilidade: uma forma de compreender o presente e o passado.
Portanto, eis as questões às quais este livro tenta responder;
- Como renovar a escrita da história e das ciências sociais?

- É possível definir uma literatura do real, uma escrita


do mundo?

Essas questões convergem numa terceira, mais experimental.


Pode-se conceber textos que sejam ao mesmo tempo literatura e
ciências sociais?

Desde que a história existe, pensa-se a respeito da forma de


escrever a história. Há dois séculos e meio, Voltaire observava que

“há tanto o que se dizer sobre essa matéria, que é preciso dizer o
mínimo aqui”.^ Pouco se perguntava o que as ciências sociais traziam

' Voltaire, “Histoire”, in Denis Diderot D’Alembert,Encydopédie ou Dictionnaire


raisonné des Sciences, des arts et des métiers,tome VIII, Neuchâtel, Faulche,1765,
p. 220-225. A bibliografia citada será mantida como no texto original. Na exis
tência de tradução, serão apresentados os títulos traduzidos no corpo do texto
e mantidas as referências originais nas notas (N.T.).

23
A história é uma literatura contemporânea

à literatura e o que a literatura fazia para as ciências sociais. A razão é

que estas ultimas são relativamente jovens. Desde o início do século

XX, a história e a sociologia formam uma “terceira cultura” entre

as letras e as ciências ditas exatas. As guerras mundiais e os crimes

de massa também mudaram esse quadro: história, testemunho e

literatura não significam mais a mesma coisa desde 1945.

Este livro trata da literatura permeável ao mundo, da histó-

ria-ciência social, da pesquisa enquanto método de criação, epis-

temologia em uma escrita. A história é mais literária do que parece;

a literatura mais historiadora do que acredita. Cada uma delas é

plástica, repleta de extraordinárias potencialidades. Há alguns

anos, as iniciativas florescem de todos os lados, nas revistas, nos

livros, na internet, no seio da universidade. Sente-se que há um

apetite voraz por parte dos pesquisadores, dos escritores, dos jor

nalistas e uma imensa expectativa por parte dos leitores.

Isso não significa um vale-tudo. As ciências sociais existem, a

literatura existe: a linha de demarcação existe. Se, como diz Philip

Roth, o escritor “não tem responsabilidade para com ninguém’7

o pesquisador é pelo menos responsável pela exatidão daquilo que

afirma. Desejo simplesmente fazer uma reflexão acerca dos gêneros,

para ver se a linha de demarcação não poderia se tornar uma frente

2 Citado em "Les carnets de route de François Busnel” [“'O diário de viagem de


François Busnel"], France 5,17 de novembro de 2011.[programa da televisão
pública francesa dedicado à literatura,]

24
A história é uma literatura contemporânea

pioneira. Explorar uma pista em vez de fixar uma norma. “Pode

mos” em vez de “devemos”. Gostaria de sugerir uma possibilidade,

indicar um caminho pelo qual, às vezes, pudéssemos caminhar.

Escrever a história

Falar de “escrita da história” no sentido primeiro (escrita como

forma literária, história como ciência social) implica interessar-se

pelas relações entre literatura e história. Ora, essas noções são

tão polêmicas, tão flutuantes, tão recentes sob certos aspectos,

que aproximá-las faz invariavelmente nascerem mal-entendidos.

Primeiro equívoco: a literatura e a história estariam em uma

óbvia relação de identidade. O romance histórico não seria prova

disso? De fato, esse gênero literário adere a uma concepção épico-me-

morialista que data da Antiguidade: a história, diz Cícero, trata dos

fatos “importantes e dignos de memória”.^ A História com maiúscula

seria o importante do passado, um espetáculo no qual os grandes

homens produzem grandes eventos, um afresco no qual guerras,

revoluções, cabalas, casamentos, epidemias, perturbam os destinos

individuais e coletivos. Certos romancistas se apropriariam dessa

"grande História”, ressuscitando Cleópatra, os gladiadores, a noite

de Saint-Barthélemy, Napoleão, as trincheiras, a conquista espacial.

^ Cícero, De oratore, II, 15, 63.

25
A história é uma literatura contemporânea

Mas a história é menos um conteúdo e mais uma empreitada, um

esforço de compreensão, um pensamento da prova. Se as Memórias


de além-túmulo e E isto um homem? são mais históricos do que os

romances de capa e espada, não é porque falam de Napoleão ou de

Auschwitz; é porque produzem raciocínio histórico.

Independentemente do tema, poderiamos identificar história e

literatura com base em sua vocação narrativa: ambas contam, agen

ciam eventos,tecem uma intriga, encenam personagens. A história


se funde, então, em uma vasta literatura romanesca sob a forma

de “romance verdadeiro”.** Mas será que a história é necessaria

mente uma história de eventos? Será que a literatura se resume

ao romance? Se, restringindo ainda mais a noção de literatura,

fingirmos acreditar que ela consista em fórmulas agradáveis, em

frases bem equilibradas, a história se transforma quase como que

em um passe de mágica: bastaria “escrever bem”, escrever livros

que se leem bem, para fazer literatura.

Nos anos 1970-1980, pensadores como Hayden White, Paul

Veyne, Michel de Certeau, Richard Brown, Jacques Rancière,

Philippe Carrard estabeleceram que havia uma “escrita da história”

e até mesmo uma “poética da história”(ou da sociologia). Mas o

fato de que um pesquisador conte ou cite não diz nada do esforço

Paul Veyne, Comment on écrit Vhistoire. Essai d'épistémologie, Paris, Seuil, 1971,
p. 22[Como se escreve a história. Ensaio de epistemologia, Brasília, Editora Uni
versidade de Brasília, 1983.]

26
A história é uma literatura contemporânea

de criação que empreende. A literariedade de um texto é diferente

de sua discursividade, na qual intervém a gestão do passado, a orga

nização de um material documental, o aparato da erudição. O fato

de que exista uma escrita técnica da história é uma prova; mas nem

todos os pesquisadores escolhem escrever, pelo contrário. De fato, a

esse respeito, as ciências sociais estão longe de terem conhecido as

mesmas revoluções que o romance no século XX.Se aceita passar do

discurso ao texto, o historiador estabelece para si um novo horizonte:

não mais a “escrita historiadora”, mas simplesmente a escrita.

Refletir acerca da escrita da história supõe, portanto, esqui

var-se desses falsos encontros que são a “História”, o “romance

verdadeiro” e o “belo estilo”. Não é porque a história desperta pai

xões, conta ou agencia que ela é literatura.

Segundo equívoco simétrico ao primeiro: a história seria


uma antiliteratura. Para aceder ao status de ciência, a história

se extirpou das belas-letras, e a sociologia se construiu contra os

romancistas que se pretendiam sociólogos. Associado ao amado

rismo, à pretensão, à ausência de método, o esforço literário vem,

de fato, parasitar o trabalho do pesquisador. Além disso, a ideia

de literatura conota, hoje, a ficção; ora, a história não é ficção.

Se fosse o caso, ela perderia sua razão de ser, que é distinguir-se

dessa “velharia, o real’, aquilo que autenticamente aconteceu’.”^

^ Pierre Vidal-Naquet, “Lettre” [Carta], citado em Luce Giard (dir.), Michel de


Certeau, Paris, Centre Georges Pompidou, 1987, p. 71-74.,

27
A história é uma literatura contemporânea

Ela não produziría conhecimento, mas apenas uma versão mais


ou menos convincente dos fatos. Nos anos 1970-1980, a virada

linguística e o pós-modernismo tentaram contestar o alcance cog


nitivo da história ao assimilá-la à literatura (lida ao mesmo tempo

como ficção e como retórica).

Apartir do momento em que se quer opor literatura e história,


as coisas sao bem nítidas. Há, de um lado, a escrita como diverti

mento e, do outro, o trabalho sério. Essa dicotomia explica a relação

ambígua que muitos pesquisadores mantêm com a literatura. Eles a

empregam no âmbito do trabalho, deleitam-se com ela no privado,


mas não fazem literatura - isso seria rebaixar-se. A única “escrita”

universalmente aceita tem a ver com o normativo: introdução,

capítulos, notas de rodapé, com algumas figuras de estilo.

A pesquisa em ciências sociais tem razão de suspeitar das

belas-letras e da ficção, mas, ao reiterar que ela nada tem a ver

com o trabalho literário, corre o risco de se enfraquecer: o romance,


!
com sua capacidade de problematização e de figuração, influenciou

profundamente a história do século XIX. Sobretudo, quando se

condena a escrita em razão de que ela seria a preocupação dos

literatos”, condena-se ao vazio partes inteiras da historiografia.

Pois, de Heródoto a Políbio, de Cícero a Valia, de Bayle a Gibbon,

de Michelet a Renan, todos os avanços epistemológicos também

consistiram em inovações literárias. É a razão pela qual corre-se o

risco de se pagar caro o desdém pela escrita.

28

J
A história é uma literatura contemporânea

í^efletir acerca da escrita de história implica, assim, recusar os

^natemas. Não é porque a história é método, ciência social, disci

plina profissionalizada, que nada mais tem de literário,


escrita da história: evidência ou risco? Toda história seria

literatura? Nenhuma história seria literatura? A única forma de

escapar desse vai e vem estéril é proceder de forma a que a aspira¬

ção literária do pesquisador não seja uma renúncia, uma recreação


depois do
verdadeiro” trabalho, o descanso do guerreiro, mas um

ganho epistemológico; que ela signifique progresso reflexivo, acrés¬

cimo de honestidade, aumento de rigor, atualização do protocolo,

discussão das provas, convite ao debate crítico. Querer escrever as

ciências sociais não é, portanto, reabilitar a História, perder-se na

sociografia de bar, nem fazer o elogio do floreio. É reatar com os

fundamentos da disciplina, conciliando um método e uma escrita,


colocando em funcionamento um método em uma escrita. Não se

trata de matar a história a golpes de ficção e de retórica, mas de

voltar a mergulhá-la numa forma, uma construção narrativa, um

trabalho sobre a língua, em um texto-investigação que se conjuga

com um esforço pela verdade. A criação literária é o outro nome


da cientificidade historiadora.

O pesquisador tem todo o interesse em escrever de maneira

mais sensível, mais livre, mais justa. Aqui, a justeza, a liberdade, a

sensibilidade estão relacionadas à capacidade cognitiva, da mesma

forma como se costuma dizer que uma demonstração matemática é

29
A história é uma literatura contemporânea

“elegante”. Uma cronologia ou anais não produzem conhecimento;

e a ideia segundo a qual os fatos falariam por si mesmos tem a ver

com o pensamento mágico. Muito pelo contrário: a história produz

conhecimento porque ela é literária, porque ela se desdobra em um

texto, porque ela conta, expõe, explica, contradiz, prova, porque ela

escreve-verdadeiro. A escrita, portanto, não é a maldição do pesqui

sador, mas a forma que a demonstração adquire. Ela não implica

qualquer perda de verdade; ela é a própria condição da verdade.

Cabe a cada um forjar sua escrita-método. Renovar a escrita

das ciências sociais não consiste, assim, em abolir qualquer regra,

mas consiste em conferir a si mesmo,livremente, novas regras.

 literatura do real

Os rinocerontes desenhados nas paredes da gruta de Chauvet,

há aproximadamente 32.000 anos, as florestas ou as cóleras evoca

das no ciclo de Gilgamesh, mais de mil anos antes de Homero, mos

tram que a mimese é tão antiga quanto a arte. No Renascimento,

a perspectiva e a expressividade aperfeiçoaram a representação


do mundo. O romance, sob seus diferentes avatares - romance

de cavalaria no século XII, romance de aventuras ou psicológico a

partir do século XVII,romance social no século XIX -, propõe outra

forma de realismo, capaz de evocar o real, de descrever pessoas e

lugares, de encenar ações, de adentrar a alma humana. Assim como

30
A história é uma literatura contemporânea

OS pintores fazem com o desenho e a cor, os escritores tentam fazer

que palavras e coisas se correspondam.

Ninguém duvida que seja uma construção, por meio de certos

efeitos. Ninguém imagina que as palavras deem acesso direto à

“realidade”, como se tivessem ao mesmo tempo o poder de designar

e o de apagar-se no momento em que designam. Mas a ambição de

conhecimento que move toda ciência repousa sobre a certeza de

que um texto pode estar em uma relação de adequação com o real.


Como lembrava Tarski nos anos 1930, uma teoria é verdadeira se, e

somente se, ela corresponde aos fatos. Em filosofia da linguagem,

o “axioma de identificação” postula que o auditor é capaz de reco

nhecer um objeto a partir de um enunciado.

Os historiadores, os sociólogos e os antropólogos têm uma

consciência muito aguda da defasagem que existe entre suas frases

e a realidade, da dificuldade que existe para se encontrar as palavras

certas, da incomunicabilidade de certas experiências. Ninguém tem

a ingenuidade de querer restituir a realidade “objetiva” ou os fatos

tais como são ; mas ninguém pode aceitar a ideia de que seu verbo

esteja desligado das coisas. A pesquisa não é compatível com a ideia

de que estaríamos trancados na biblioteca,jogados de uma palavra

a outra, de uma significação a outra, condenados a chorar (ou a

fruir) de nossa ruptura com o mundo. Por mais defeituoso que seja,

nosso verbo é preênsil: um texto pode, apesar de tudo, dar conta

do que está fora do texto. A linguagem é ao mesmo tempo nosso

31
A história é uma literatura contemporânea

problema e nossa solução. É por isso que mantemos a “coragem de

escrever”,® contando histórias, recorrendo a imagens,inventando

tropos, mobilizando símbolos.

Por que a convicção dos cientistas e dos pesquisadores em

ciência sociais não poderia ter repercussões na literatura? Todo o

problema está em saber como o mundo penetra em um texto. Pelo


viés do realismo? Do verossímil? Seria fácil contestar. Na tradição

platoniciana e até Barthes, a literatura é uma cópia da cópia, uma

ilusão de ótica. Os românticos alemães, por sua vez, concebem

o romance como um universo em si, um solipsismo regido por

suas próprias leis, que encena sua literariedade ou a imaginação do

escritor. Depois da Segunda Guerra Mundial, no momento em que

o Novo Romance anunciava o fim do realismo tradicional, escri

tores como Primo Levi, Variam Chalamov, Georges Perec, Annie

Ernaux propuseram outra solução para apreender o real: decifrar

nossa vida. Compreender o que aconteceu. Fazer da escrita um

“meio de conhecimento,[uma]forma de tomar posse do mundo”.”^

Dessa necessidade nasceu uma literatura profundamente histórica

e sociológica, alimentada pela vontade de compreender - forma

de ultrapassar a mimese pelo alto.

® Geertz Clifford, Ici et là-bas. Lanthropologue comme auteur, Paris, Métaillé, 1996,
p. 138-139.

’ Georges Perec. “Pour une littérature réaliste”, In L. G. Une aventure des années
soixante, Paris, Seuil, “La Librairie du XX"siècle”, 1992, p. 47-66.

32
A história é uma literatura contemporânea

Consegue-se formular a questão das relações entre a literatura

e o real; não tratar a questão, tão debatida, da representação ou da

verossimilhança, mas determinar como se pode dizer algo verdadeiro

no e pelo texto. Para teorizar uma literatura do real, é preciso partir


não do realismo, mas das ciências sociais enquanto motores de

investigação. É pelo raciocínio que um texto entra em adequação


com o mundo. Há compatibilidade entre a literatura e as ciências

sociais porque o raciocínio já está alojado no coração do literário.

É o que mostram, por exemplo, as narrativas de vida, as memórias

e as grandes reportagens.

Essa mudança de perspectiva permite dispensar o lugar-comum

da literatura “desvinculada do mundo” e o das ciências sociais de

coração de pedra, incapazes de inventar, privadas de qualquer

ambição estética. Também permite abordar mais serenamente

a questão da ficção. Pois as próprias ciências sociais recorrem a


elementos indis-
certas ficções, controladas e escoradas, que são
espírito das
pensáveis da demonstração. Inspirada pela letra e
a se
ciências sociais, a literatura do real não é, portanto, obrigada

definir como uma não ficção. Ela não se resume a relatar fatos;

ela os explica, graças a instrumentos de inteligibilidade. O conhe-

cimento que produz transcende a simples narrativa “factual”.

Sua compreensão engloba e aperfeiçoa a mimese.

33
A história é uma literatura contemporânea

O texto-pesquísa

Este livro propõe outra maneira de escrever as ciências sociais

e de conceber a literatura do real, mas não chega a aderir a uma

forma particularmente nova. Por que essa contradição? Porque ele


é herdeiro
e é o duplo de outro livro, Histoire des grands-parentsque

je ndipas eus [História dos avós que não tive], que refaz a trajetória de
um
casal de judeus poloneses comunistas, Matès e Idesa Jablonka,

do shtetl até Auschwitz. Esse ensaio de biografia familiar inspirou


diretamente a presente obra, e esta é seu alicerce teórico.
Em meados dos
anos 2000, ao mesmo tempo, defendi minha

tese de doutorado (dedicada às crianças da Assistência Pública) e


publiquei um romance,Âme sceur
[Alma gêmea](que conta a deriva
de um jovem entre a Picardia e o Marrocos); a tese na Sorbonne e o
romance
sob pseudônimo. Essa dupla tentativa de história pura
e de literatura “pura’ era um
pouco artificial, ainda que essas duas

obras contassem a história de crianças em luto, abandonadas e

enganadas. Julgando que fosse impensável conciliar ciências sociais

e criação literária, e mais ainda pretendê-lo publicamente, vivia


em
uma espécie de sofrimento:“Se me torno historiador, a escrita

deverá se reduzir a um hobby;se me torno escritor, a história nao


passará de um emprego de subsistência.” Foram necessários vários

anos, várias tentativas, vários encontros, para que eu me decidisse

a lançar mão de uma forma pirata, essa História dos avós que não

34
A história é uma literatura contemporânea

tive, cuja natureza histórica e literária era indecidível. Finalmente,


chegava ao que queria fazer.
Um texto-pesquisa e, hoje,sua explicação metodológica. Um nao
existe sem o outro. Mas esse modo de usar também tem algo de um

manifesto. Eu direi “eu” porque exponho minha convicção e minha


comunidade de
prática; eu também direi “nós” porque somos uma
pesquisadores, de escritores, de jornalistas, de editores - talvez uma
das ciências sociais,formas
geração - unidos por uma reflexão acerca
reinventar. É claro
da pesquisa, escritas do mundo,necessidade de se
que nossa reflexão não vem do nada. Ela está enraizada nas expe-
riências de nossos antepassados, nos êxitos de nossos antecessores

que,cada um do seu jeitO; escreveram a história ou disseram o real.


as
Trata-se, portanto, de explorar potencialidades das ciências
sociais e da literatura quando elas aceitam encontrar-se. Tal propó-
sito recusa toda norma e, a fortiori, toda receita: bastaria misturar
‘fatos” ou os “conceitos”, e a
ingredientes,já que a história traria os
da “sensibilidade”. Mas essa
literatura se encarregaria da escrita ou

paródia de fecundação ainda exalta as identidades habituais. Ligadas


à literatura estariam a vida, o indivíduo, a psicologia, o intimo, a

complexidade dos sentimentos; às ciências sociais estariam ligados


os temas sérios e coletivos, os grandes eventos, a sociedade,as insti-
literatura seria escrita somente
tuições. Recusemos a ideia de que a
‘literatos”, enquanto a his-
por “escritores” e estudada somente por
tória seria domínio exclusivo dos “historiadores”. Não se é obrigado

35
A história é uma literatura contemporânea

a acreditar nas brigas domésticas de velhos casais: ciência contra

narrativa, razão contra imaginação,seriedade contra prazer,fundo


contra forma, coletivo contra indivíduo.

As fronteiras são necessárias. A história não é (e nunca será)

ficção, fábula, delírio, falseamento. A distinção que Aristóteles

opera entre poesia e história, no capítulo 9 da Poética, é fundante

nesse sentido. Mas a divisão entre aquilo que podería acontecer e

aquilo que efetivamente aconteceu não condena o pesquisador a ser


um órfão da poiesis. Sua inventividade
arquivística, metodológica,
conceituai, narrativa e lexical constitui, no sentido primeiro, um

ato criador. Ele opera conjugando uma produção de conhecimentos,


uma poética do saber e uma estética. O problema é menos "saber

se o historiador deve ou não fazer literatura, mas qual literatura


ele faz Pode-se dizer a mesma coisa do escritor com as ciências

sociais: o problema não é saber se ele fala do real, mas se ele dispõe
dos meios para compreendê-lo.

O importante é não sentir vergonha. A implicação é experimentar


coletivamente. Imaginemos uma ciência social que cativa, uma his

tória que comove porque ela demonstra e que demonstra porque ela
se escreve.
uma investigação na qual se desvenda a vida dos homens,
uma forma híbrida que se pode chamar texto-pesquisa ou Creative

history- uma literatura capaz de dizer algo verdadeiro sobre o mundo.

Jacques Rancière, Les noms de rhistoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Seuil,
“La Librairie du XX'" siéde”, 1992.

36
1
1.

Historiadores, oradores e escritores

nao é a literatura. Desde


Para as pessoas no geral, a história

quando se pensa assim? Seria anacrônico querer estudar a diver-

gência entre história e literatura antes do século XIX, porque essas


um sentido muito
noções não existem ou, pelo menos, possuem

diferente daquele que lhe damos hoje. Mas seria errôneo concluir

que seu divórcio data apenas do Romantismo ou da revolução

metódica, como se, recém-nascidas,“história e literatura tives

sem se tornado independentes uma da outra.


Para evitar os contrassensos, é preciso fazer a genealogia des-
- no seio de
sas duas noções - enquanto gêneros e instituições

uma economia das produções intelectuais, sem deixar de prestar

atenção a suas relações, antes mesmo de seu sentido ter-se fixado


no vocabulário. Desde o início, a história manteve uma relação

de intimidade com a literatura (entendida como poesia, retórica

ou belas-letras), antes dela se separar, no século XIX, para nascer

enquanto ciência. Mas, desde a Antiguidade, os debates conduzi


contornos “literários”: a sepa-
ram a distinguir a história de seus
há vinte e cinco séculos.
ração entre história e literatura começou
A história é uma literatura contemporân ea

A história-tragédia

A posteridade de Heródoto é paradoxal. O historiador das Guer

ras Médicas, de Salamina, de Maratona, dos Persas, dos Egípcios,

dos Citas, dos Babilônios, é ao mesmo tempo celebrado como o pai

da história e ridicularizado por sua ingenuidade. Escrita no século

V antes da nossa era, Histórias busca racionalmente as causas dos

eventos(mais particularmente aqueles relativos à guerra entre gre


gos e bárbaros), mas também implica a função arcaica da memória:

Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso


teve em mira evitar que os vestígios das açoes pra-
ticadas pelos homens
se apagassem com o tempo
e que as grandes e maravilhosas explorações dos
Gregos, assim como as dos bárbaros, permaneces¬
sem ignoradas [...].

Essa célebre abertura nos faz penetrar em um mundo em que


os
deuses, detentores da verdade, a fazem refletir nos sonhos e nos

oráculos, um mundo no qual a Pítia conhece o destino dos homens

e até mesmo o número de grãos da praia. Assim como Homero na

Ilíada e Hesíodo na Teogonia, Heródoto celebra


ao mesmo tempo

o poder dos deuses e as grandes ações humanas, das quais trans-

mite a memória às gerações futuras(uma tradição tardia, por sinal,


atribuirá aos livros das Histórias o nome das nove musas, filhas de

Mnemosine). Primeiro moderno ou último aedo?

40
Historiadores, oradores e escritores

Para seus detratores, o lado “poeta” de Heródoto provém tam

bém das fábulas que ele dispensa, os muthoi que espalha. Aristóteles,
Diodoro e Estrabão consideram Histórias como uma teia de balelas.

Plutarco dedica um panfleto à “malignidade’ de Heródoto. Quais


sao as motivações desse “logógrafo”, “fiiomita , homo fabulator?

Divertir. Heródoto teria sacrificado o verdadeiro pelo prazer de seu

auditório. Seu objetivo não é a veracidade da proposição, mas o ade

reço do estilo e o maravilhoso da narrativa, mesmo que seja ainda

“mais fácil dar fé às flcções de Hesíodo e de Homero }

Expondo seu método no início da Guerra do Peloponeso (cerca

de 430 a.C.), Tucídides toma o contrapé de Homero e de Heródoto.

Quanto ao primeiro,só se pode nele confiar com parcimônia, porque

ornou e embelezou tudo,“como poeta que era . O segundo brilhou

nos Jogos Olímpicos com “trechos pomposos , parct um instante

de satisfação. De um só gesto, Tucídides manifesta sua ambição


falastrões: “A ausência de
epistemológica e deixa os aplausos aos
maravilhoso em minhas narrativas talvez as torne menos agradáveis

de ouvir."2 Não é com belas palavras que se obtém “realizações para

sempre”: a verdade exige uma historiografia da austeridade.

’ Strabon, Géographie, Paris, Hachette, 1867, XI, 6, 3.


2 Thucydide, Histoire de la Guerre ãu Péloponnèse, Paris, Flammarion,1966,1,10 e
22. Ver François Hartog,Évidence de Vhistoire. Ce que voient les historiens, Paris,
EHESS, 2005, cap. IV.

41
A história é uma literatura contemporânea

Três séculos depois, outro historiador, Políbio, distancia-se de

outros historiadores-poetas: os trágicos. Recrimina seus erros, sua

falta de rigor e, principalmente, seu gosto pelo páthos. Ao relatar

a tomada de Mantineia, alguém como Filarco multiplica as cenas

de horror”: vencidos escravizados, mulheres que se contorcem de

desespero, cabeleiras desfeitas, seios desnudados.^ Filarco comete

o erro de se entregar a uma história-emoção na qual não figuram

quaisquer elementos explicativos, causas dos acontecimentos,


motivos das ações, intenções dos homens. Ao criticar as cenas

cruéis ou perturbadoras de Filarco, Políbio responde a Aristóteles,

que propunha a superioridade da poesia sobre a história. Para

assentar sua utilidade contra os poetas, Políbio opõe o inteligível

ao adereço: “Busco menos agradar meus leitores e mais servir aos

espíritos reflexivos.”^ Para os poetas, tem-se o trágico, o espetáculo,

o singular; para os historiadores, essa rocha que é a verdade.

Os “mitos” de Heródoto, as “tragédias” de Filarco, tendem à

poesia. Épica ou trágica, ela agencia os muthoi para obter o máximo

de efeito sobre o espectador. Qual o valor desse tipo de história?

Aristóteles já respondera: ela é inferior à poesia. Mas a história tea-

tralizada também é uma má história. Ela atenta menos para o verí

dico do que para o sensacional; ela prefere horrorizar ou encantar

^ Polybe, Histoire, Paris, Gallimard, “Quarto", 2003, II, 56.

■* Polybe, IX, 1-2.

42
Historiadores, oradores e escritores

a instruir. Historiador segundo os poetas e poeta segundo os his

toriadores, o “trágico”(ou o “mitólogo”) se condena ao mesmo

tempo a ser uma subpoesia e uma sub-história.

A lenda negra de Heródoto e a querela dos trágicos fazem

emergir um ideal amparado em seu contrário: a história-verdade,

sem divertimento, e a história-poesia, teatralizada, cheia de sedu-

çoes mentirosas. Daí Tucídides e Políbio fazerem coincidir uma

epistemologia com uma estética: a história não poderia encantar


nem emocionar. Ela não visa nada além da austera verdade.

Enquanto isso, nada os impede de oferecer tragédias .Tucídides


nao nos poupa do espetáculo das vítimas emparedadas vivas em

Corcíria, nem dos atenienses matando a sede em um rio tingido com

seu próprio sangue. Os efeitos de presença de Políbio são intrinse-

camente trágicos, posto que, ao fazer surgirem as coisas como se


não teme
estivéssemos lá”, produz páthos. Quanto a Tito Lívio, ele

impressionar seu leitor com a narrativa da morte de Lucrécia ou de

Virgínia, ou com a imagem de Roma à mercê dos gauleses: os gritos

dos inimigos eram abafados “pelos choros das mulheres e das crianças,

o crepitar das chamas e o estrondo das casas que desmoronavam

" Tite-Live, Histoire romaine. Livros I a V, Paris, GF Flammarion. 1995, p. 552.


Acerca desses debates, ver Adriana Zangara, Voir Vhistoire. Théories anciennes
du rédt historique(W siècle avant J.-C.-ir siède après J.-C), Paris, EHESS; Vrin,
2007, p. 56 sq.

43
A história é uma literatura contemporânea

Como escreveu Cícero em sua carta a Lucéio, o trágico suscita


uma emoção ambígua e deliciosa (catártica, diz Aristóteles). Trans

formada em fábula cheia de perigos e de reviravoltas, a história de

seu consulado fará com que o leitor passe por todos os estados:

admiração, expectativa, alegria, tristeza, esperança, receio. Talvez

exista uma diferença entre o efeito gratuito e o episódio edificante,

mas o importante aqui é a regra que os historiadores fixaram a si

mesmos para imediatamente transgredir: nada de encenação, nada

de emoção, nada de espetáculo. Essa concepção, proclamada pela


história-ciência, carrega uma suspeita com relação à linguagem,

o verbo autotélico, cintilante, tão imbuído do próprio poder que


acaba substituindo o mundo.

A história-eloquência

Os primeiros cronistas atestam uma economia de meios que

chega ao grau zero da narrativa; genealogias bíblicas,listas de fatos

memoráveis ocorridos no Egito ano por ano, nomes de reis gra

vados sobre as lápides da acrópole de Susa, listas de vencedores

dos Jogos Olímpicos,lembranças públicas registradas pelo grande

pontífice em Roma, efemérides. Os analistas romanos, de Catão

e Fábio Pictor a Sisena, não se saem muito melhor. No diálogo

Do orador e no tratado Das leis (redigidos em 55 e 52 a.C.), Cícero

deplora a pobreza dessa “história” radicalmente factual, que se

44
Histoi'iadores, oradores e escritores

contenta em registrar nomes, lugares, ações. Contrariamente à


Grécia, Roma ainda não tem historiadores. Pois o historiador, para

Cícero, sabe ornar sua narrativa: exornator e não simples narrator,

ele se distingue por suas qualidades de escrita, riqueza de estilo,

capacidade de mudar de registro. É a razão pela qual a história é

uma tarefa magnífica para o orador.®

Essa história-eloquência é valorização do real, fixação de uma

bela ação em uma língua bela. É precisamente esse aspecto que


marca a inferioridade do historiador. Puro contador, ele não argu

menta, não prova nada, não refuta ninguém; ele simplesmente

exibe seu talento relatando “aquilo que aconteceu .Ahistoria ornata

não participa de nenhum esforço de persuasão, contrariamente à

retórica nobre do fórum e do pretório. A máxima segundo a qual

a história é uma “arte oratória por excelência (opus oratorium

maxime) não deve deixar de lembrar que, para o próprio Cícero, o

historiador é inferior aos oradores, aos políticos e aos advogados,

brilhantes representantes dos gêneros deliberativo e judiciário.

Ele manipula uma eloquência de desfile; os outros, uma eloquência


de combate. A retórica historiadora, puramente decorativa, nada

tem da retórica agonística, que age na cidade. Depois do suicídio de

^ Ver Jacques Gaillard, “La notion dcéronienne à'historía ornata’, in Raymond


Chevallier (dir.). Colloque histoire et historiographie, Paris, Les BeUes Lettres,
1980, p. 37-45; e Eugen Cizek,“La poétique cicéronienne de 1’histoire”, Bulletin
de VAssodation Guillaume Budé, 1, p. 16-25,1988.

45
A história é uma literatura contemporânea

Lucrécia, Brutus incita a cólera do povo por meio de falas violentas

“que os oradores julgam sob o efeito da indignação, mas que os

historiadores acham difícil reproduzir”.’

A história pode servir à retórica nobre fornecendo-lhe exem-

pios, precedentes, anedotas que permitem que juizes reflitam ou

que os imponham às massas. Para Cícero e Quintiliano é útil que o

orador conheça a cronologia dos acontecimentos,a história de Roma

e dos grandes reis. A história “mestra da vida” de Políbio, Tito-Lívio,

Suetônio ou Plutarco tem inúmeros exemplos para imitar, lições

para disseminar. Ela é proveitosa para o orador, o político, o advo

gado, o jovem que se lança na vida pública. Também é o refúgio

agridoce dos aposentados da cidade, como Salústio meditando, após

a morte de Cesar, acerca das virtudes de Cipiào, da louca ambição

de Jugurta e da decadência dos costumes. Útil nas lutas de fórum,


a história também é um sucedâneo das lutas de fórum.

O ciceronianismo, essa arte do bem dizer, essa “retórica” no sen

tido moderno(em oposição à retórica judiciária e política, teorizada

por Aristóteles e pelo próprio Cícero),ilustra ao mesmo tempo o bri

lho e a enfermidade da história: brilhante porque bela, mas inválida

porque somente bela. Subordinada à verdadeira retórica, sem outra

“verdade” a oferecer para além das lições de moral, ela traz o prazer

’’ Tite-Live, Histoire romaine. Livros I a V, op. cit., p. 152. Ver François Hartog,
Èvidence de Vhistoire..., op. cit., cap. II; e Adriana Zangara, Voir 1’histoire... op. cit.,
p. 91 sq.

46
Historiadores, oradores e escritores

sob a forma da linguagem,e não do saber ou do combate. Degradada

em sub-retórica e em subpolítica, ela serve de escapatória para as

ambições frustradas daquele que a conta. A história, diz Quintiliano,

visa somente “relembrar os fatos à posteridade e conquistar o renome

para o escritor”.® Assim que concebe seu discurso como um repertório

de belas ações construído em um plano bem composto (dispositio)

e pela melhor expressão (elocutio), o historiador se toma estüista.

Ele desliza suavemente na direção da sofistica, em que o importante

não é o verdadeiro, mas o eficaz, ou até mesmo o belo.

A Antiguidade atribui qualidades ou defeitos de estilo aos his

toriadores. Nesse campo, Cícero se torna apóstolo de um estilo

“corrente e amplo”, doce, regular, rico, cheio de graça. A leitura de

Heródoto faz com que seu discurso “ganhe cores”, como quando

alguém se bronzeia durante um passeio sob o sol. Ao contrário,

Tucídides, com sua secura e seus pensamentos obscuros, não tem

utilidade nenhuma para o orador.^ É Salústio, adversário do Cícero

político e historiógrafo, que prolonga a tradição tucidiana alimen

tada por um estilo ático: pureza da língua, concisão, gravidade,


ausência de ornamentos. Essa escrita da sobriedade, que encon

tramos em César na mesma época, contribui para uma história-

-inteligência que busca primeiramente compreender, ao contrário

® Quintilien, Institution oratoire, X,1, 31.

^ Cicéron, De Vorateur, livre II, XIII-XIV; e VOrateur, IX, 30-32.

47
A história é uma literatura contemporânea

de uma história-paixão destinada a inflamar o auditóriod® Rigor

de estilo, rigor de raciocínio?

A oposição entre historia nuda e historia ornata está presente

na historiografia cristã. No início do século IV, Eusébio de Cesareia

distingue os anais e as crônicas, de expressão breve, das histórias

e gestas, mais eloquentes. Nos séculos XI e XII, os historiadores

afirmam querer escrever em um estilo simples, acessível, à imagem

do “sermão humilde” que Santo Agostinho recomenda aos padres.

A despeito dessas promessas, eles oferecem aos poderosos discur

sos em bela prosa latina ou rimada, como a Kunstprosa floreada de


11
retórica. Em 1369, Froissart abandona o verso pela prosa, mas

suas Crônicas oferecem-lhe a possibilidade de “cronicizar e historiar

no decorrer da matéria”.

A história-eloquência, segunda forma “literária” da história

antiga depois da história-tragédia, é, ao mesmo tempo, almejada

e criticada. Por que o erudito teria necessidade de escrever bem?

Interessamos porque dizemos a verdade, não porque fazemos

belas frases; a aliteração e o hipérbato não têm qualquer utili

dade para aquele que queira relatar o que aconteceu. Seria preciso

então narrar o mínimo necessário, de medo que as figuras de estilo

Michel Reddé,“Rhétorique et histoire chez Ihucydide et Salluste", in Raymond


Chevallier (dir.), CoUoque histoire et historiographie, op. cit., p. 11-17.
Bernard Guenée, Histoire et culture historique dans VOccident médiéval, Paris,
Aubier, 1981, p. 215 sq.

48
Historiadores, oradores e escritores

corrompam os fatos? A “verdade nua” correría o risco de fazer cair

no vazio a catalogação do analista. Pouco importa se é partidário


da concisão ática ou se emula Cícero exornator rerum: o historiador

se vê diante de um dilema. Se ele enuncia demais , seu propósito

nao e§ mais adequado ao real e trai a verdade. Se ele enuncia de

menos , sobra apenas uma enumeração de fatos, ou ainda uma


0 leitor sem florear a nar-
lista de nomes. Isso posto, como cativar
rativa? Como não sacrificar a verdade em detrimento da beleza?
historiadores da Antiguidade
Se a questão da escrita ocupa tanto os

e da Idade Média, é porque tem uma dimensão epistemológica.

A história-panegirica

Na retórica de desfile, Cícero inclui a história, os elogios, os


tudo aquilo que os
discursos à moda do Panegírico de Isócrates e

gregos designam sob o nome de epidítico, conferência que con


a associarem a história
siste em elogiar ou censurar. Os primeiros
alunos, no século
da arte oratória foram, de fato, Isócrates e seus

IV antes da nossa era. Foram eles que inventaram o “panegírico ,


ou de um homem
elogio de um povo (os gregos no Panegírico)

(Felipe da Macedônia em Teopompo).

No elogio, o historiador encontra a função arcaica do poeta


distribuidor de memória, e a verdade” que transmite, alètheia,

acaba sendo a negação do esquecimento,lèthè. Ao conferi-la, acaba

49
A história é uma literatura contemporânea

perpetuando a glória dos reis. Tal privilégio aumenta desmesura-


damente seu papel e o torna indispensável a todos aqueles que

aspiram a uma imortalidade. Cícero confessa a Lucéio sua von-


tade incrível” de ser coberto de elogios por seu consulado. O poeta

Árquias também terá a oportunidade de ajudá-lo a disseminar uma

espécie de semente de glória e de imortalidade na memória dos

tempos”.^^ Na época imperial, como deplorado por Tácito no Diá

logo dos oradores, a ideologia oficial abafa a genialidade oratória.

Ele instrumentaliza a história: Tito-Lívio contribui para o poder

de Augusto cantando a Roma eterna, e Plínio celebra o imperador

no Panegírico de Trajano.

À semelhança da tragédia e da eloquência, o elogio desperta a

suspeita: a ação merecia passar para a posteridade? O historiador,


como Heródoto com Temístocles, como Plutarco com os legislado

res e os conquistadores, não atende demais aos poderosos? Do lado

oposto, muitos historiógrafos fazem da imparcialidade um dos ele-

mentos-chave de sua ética. Aquilo que denunciam é menos o elogio

(próprio ao epidítico) do que o elogio complacente, não merecido,

injustificado, ilegítimo, que faz do historiador um propagandista.

Este último não é menos culpado quando carrega nas tintas para

assumir o papel de acusador. Políbio fustiga a parcialidade dos

historiadores para com Felipe da Macedônia, por dedicação ou

Cicéron, Ad familiares, V, 12; e ProArchia,XI. Ver Laurent Pernot,La Rhétorique


dons lAntiquité, Paris, LGF, “Le Livre de Poche’’, 2000, p. 236-237.

50
Historiadores, oradores e escritores

por medo:"Não se deve vilipendiar sem propósito os monarcas,


13
nem tampouco elevá-los.’ Em Como escrever a história, redigido

em grego cerca de 165 d.C., Luciano de Samósata julga haver uma


“muralha” entre a história e o panegírico. Livre em seus posiciona

mentos,incorruptível, o historiador não deve ter nenhum amigo,

nenhum rei, nem pátria, a não ser a verdade. Se um adulador sugere


que Alexandre pode matar vários elefantes com um só golpe de
14
lança, seu livro será lançado ao rio.
Sob suas várias formas,a poesia (épica ou trágica), a eloquencia

e o epidítico correspondem a nossa literatura”: mesmo cuidado com


a forma, mesma visada estética, mesmo princípio de prazer, mesmo
se
valor atribuído ao talento. Ora, desde a Antiguidade, a história

definiu a partir do distanciamento das formas “literárias : a histó-


efeitos dramá-
ria-tragédia, que impressiona por suas encenações e
com o estilo e a moral;
ticos; a história-eloquência, que se preocupa
do historiador.
a história-panegírica, em que fermentam as paixões
se confundir. Isócrates e
Essas formas estão ligadas e costumam
a arte oratória, a história
seus discípulos praticam ao mesmo tempo

13
Polybe, VIII, 8-9.
i«i
Lucien de Samosate, Cojnment écrire l histoire, Paris, Les Belles Lettres, 2010.
§7,12 e 38-41.
15 Communications, n. 16, p. 172-223,
Ver Roland Barthes,“L’ancienne rhétorique
literária”, ver Adriana Zangara,
1970. Acerca da epideixis como ‘‘performance
VoirVhistoire... op. cit., p. 135 sq.

51
A história é uma literatura contemporânea

eo
panegírico. Luciano considera que é um erro grave” misturar

história, poesia, mito, elogio, hipérboles e adulações.

Entretanto, se pode ser útil distinguir três formas “literárias

é porque cada uma delas funciona como repelente da outra, e isso

desde Tucídides e Políbio. Um historiador que fosse pego roman

ceando, bordando,embelezando, declamando, valorizando-se, adu

lando, idealizando, caricaturando ou condenando, não guardaria


mais tantos traços de historiador. Existem três remédios contra tais

derivas: a história sem emoção,a história sem apetrechos e a história

sem tendência. Elas convergirão, no século XIX,na história-dência.

Exagerar com a tragédia, se ouvir falar” com a eloquência,

“tomar partido” com o panegírico; são formas literárias que ameaçam

a história. Mas - eis um ponto capital- não lhe são exteriores; nao e

possível eliminá-las como um corpo estranho. Elas se mantêm no texto

histórico em estado de remanência,porque é preciso interessar o leitor,

porque não se pode contentar em encadear fatos, porque sempre se

constrói uma ligação com o objeto de estudos. O problema começa

quando a narrativa se torna páthos,a escrita se toma grandiloquência,

o interesse se toma parcialidade. Literatura demais e a história morre;

literatura de menos e não sobra nada. Enquanto a história for uma

narrativa concebida por um indivíduo e não uma listagem de datas

escolhidas por acaso,será literária. E a razão pela qual é tão fácil apontar

as armadilhas da própria “literatura” nas quais caem os historiadores

que acreditam estar mais livres dela. Sempre se é o poeta de um outro.

52
Historiadores, oradores e escritores

Denunciadas desde a Antiguidade, essas formas literárias ,


um risco a
portanto, não são patologias do eu historiador, mas

ser corrido, uma batalha a ser lutada. A literatura, necessária e

perigosa, vive no coração da história.

Contra a história de corte

Na idade clássica, a história ainda é um subgênero. Herança

do enciclopedismo humanista, as “Letras” designam o conjunto

dos saberes, história, filosofia, gramática, direito, moral, teolo

gia, geometria, física, astronomia. A “República das Letras é uma

comunidade abstrata no seio da qual se correspondem os doutos


, no
da Europa toda. Na segunda metade do século XVII emerge
seio dessas Letras universais, um subgrupo unificado pela arte da
helas-letras”.
linguagem e o reconhecimento que ela suscita, as
Dentro de fronteiras moventes, seu núcleo estável compreende a

gramática, a eloquência, a história e a poesia. É preciso ser poeta

para ser historiador”, enuncia Le Moyne na abertura de De l histoire

(1670), precisando que a história deve se escrever “com sagaci


dade”. O Renascimento também estabelecia essa relação, em 1482,

Bartolommeo delia Fonte, professor de poesia e de retórica em

Florença, abre seu curso anual com um discurso sobre a história.

Tal coabitação, no seio das belas-letras, reacende os debates da

Antiguidade. A que verdade pode chegar uma história declamatória,

53
A história é uma literatura contemporânea

poética, entrincheirada, invadida por suas formas “literárias”?


No século XVI, o ciceronianismo goza de imensas vantagens junto

dos homens de Estado e da Igreja, dos advogados dos Parlamen-

tos, dos moralistas, a quem oferece o modelo de uma fala eficaz,

capaz de agir na cidade. Mas alguns humanistas (por exemplo,


Jean Sleidan, historiador da Reforma, tradutor de Froissart e de

Commynes em latim) começam a polemizar contra o ciceronia

nismo. Antigos, como Cícero e Tito-Lívio, ou modernos, como os

hagiógrafos da Legenda áurea, os poetas-historiadores compromete


ram a verdade com suas fábulas, elogios, ou censuras.^® Na geração

seguinte, o jurista e filósofo Jean Bodin teoriza a historia nuàa,

“sóbria, simples, direta”, herdeira dos Comentários de César que

seu estatuto de testemunho e a secura do estilo glorificam.

Bela e inflada, a palavra do historiador é também aduladora.

Com o crescimento do Absolutismo, os historiógrafos oficiais sao

acusados de assujeitar a história aos interesses do rei. Alguns dentre

eles são verdadeiros eruditos, como Scipion Dupleix ou os padres

jesuítas do século XVII; outros não hesitam em “pronunciar ver-

dades” contra as loucuras de seu mestre, a exemplo de Chastelain,

historiógrafo da corte de Borgonha nos anos 1460. Entretanto, nesse


sistema de mecenato real, a história se torna o meio de conservar

o esplendor das iniciativas do rei e os detalhes de seus milagres”.

Marc Fumaroli, Lage de Véloquence. Rhétorique et res literaria de Ia Renaissance


au seuil de Vépoque classique, Genève, Droz, 1980, p. 42 sq.

54
Historiadores, oradores e escritores

segundo a fómuila de Chapelain, conselheiro de Colbert. O título de

historiógrafo é cobiçado, mas é em nome da integridade que sofre

ataques, porque a poesia contrabandeada degrada a própria ideia de

história. A respeito de Racine e de Boileau, nomeados historiógrafos

de Luís XIV em 1677, Madame de Sévigné escreve a Bussy-Rabutin

que o rei merecia ter “historiadores melhores do que dois poetas .

Bussy-Rabutin responde que “essa gente descredita as verdades

quando estas lhes escapam”.^^

Em reação à instrumentalização dos historiógrafos, desenvol-


e a erudi-
vem-se três formas de história: as memórias,os sermões

ção. Enquanto o historiógrafo ergue um monumento aos príncipes,


testemunhou no
o memorialista restabelece os fatos porque os
na corte. Ao redigir
campo de batalha, quando das embaixadas ou

suas memórias, Martin du Bellay(1569), Blaise de Montluc(1592),

Michel de Castelnau (1621), Bassompierre (1665) e Retz(1677)

ambicionam dizer as coisas 'tais como elas são”, aproveitando para


vitórias do príncipe. A his
mostrar o quanto contribuíram com as

tória gosta de apologias, de elogios, de adereços, de ornamentos de

estilo; as memórias praticam uma dicção sem pesquisa, uma escrita


18
simples, uma “clareza tão livre de maquiagem quanto de sujeira

Citado em Raymond Picard, La carríère de Jean Racine, Paris, Gallimard, 1961,


p. 318-320. A citação de Chapelain está na p. 79.

Le Moyne,citado em Béatrice Guion.“*Une narration continue de choses vraies,


grandes, et publiques': 1'histoire selon le père Le Moyne”,in CEuvres et Critiques,

55
A história é uma literatura contemporânea

Do alto de sua cátedra, Bossuet desvela outra “verdade aos

poderosos da corte: seu vazio. A glória não pertence nem aos con-

quistadores, nem àqueles que os servem, mas ao Criador. É ele

quem favorece ou rebaixa, comunica aos reis seu poder ou o retira.

As inscrições, as colunas, os catafalcos, a glória dos Condés,a gloríola

dos Cíceros são as “marcas vãs daquilo que não é mais”.^^ O homem

de igreja é menos um cortesão do Rei-Sol do que um órgão de Deus.

É Bayle, em seu Dictionnaire historique et critique(1697), que se

distancia mais claramente da história-eloquência e da história-pane-

gírica. O estilo pomposo do retor não convém à história, que exige

simplicidade e gravidade. A independência dos soberanos conta entre

as “regras da arte histórica”. Capriata,jurisconsulto e historiador

do século XVII, especialista da Itália e de Veneza, se orgulha de ter

mantido o equilíbrio entre a França e a Espanha. Dupleix, por mais

ligado que fosse à casa de Marguerita de Valois, tem razão de desvelar

seus vícios: “ministro público da verdade”, ele contribui para “fixar


a certeza desses fatos”. A liberdade do historiador não sofre nem

com as dedicatórias aos poderosos, nem com suas recompensas.

Ele deve abandonar tanto o espírito de partido como o espírito de

XXV, 2, p. 91-102, 2010. Ver, mais abrangentemente, Marc Fumaroli, “Les


mémoires, ou 1’historiographie royale en procès”, in La diplomatie de Vesprit.
De Montaigne à La Fontaine, Paris, Hermann, 1994, p. 217-246.
19
Jacques-Bénigne Bossuet,“Oraison funèbre de Louis de Bourbon, prince de
Condé (1687)”, in CEuvres choisies, Paris, Firmin-Didot, 1941, p. 520.

56
Historiadores, oradores e escritores

maledicência. Quando lhe perguntam de onde vem, ele responde:

“Não sou nem francês, nem alemão,nem inglês, nem espanhol, etc.

Sou habitante do mundo,[...] a serviço da verdade, que é minha

única rainha.”^'^ No sistema das belas-letras, a poesia e a eloquência

são irmãs inimigas aos olhos da história.

Nascimento do escritor e da literatura

Como a história pertence às belas-letras, fará parte da litera

tura”. Nos séculos XVI e XVII, esse termo designa o conhecimento

das Letras, ou seja, o conjunto dos saberes profanos, inclusive a


as belas-letras, a “litera-
matemática. À medida que se constituem

tura” se torna a erudição produzida pelo conhecimento dos grandes

textos, a frequentação dos antigos, dos oradores, poetas, historia¬

dores: é a definição encontrada no dicionário de Richelet, em 1680.


sinônimo,e depois um
A contiguidade é tal que o termo se torna um

concorrente, de “belas-letras”. O tratado do abade Batteux, Cours de

belles-lettres, ou Príncipes de Ia littérature (1753),é republicado anos

depois sob o título único Príncipes de Ia littérature. Batteux define

os grandes gêneros literários (apologia, epopeia, poesia lírica, elo

quência, história), assim como suas regras de composição. A título

de exemplo, ele cita Homero, Virgílio, Racine ou La Fontaine.

Pierre Bayle,“Usson”, Dictionnaire historique et critique, 3'^ éd., Rotterdam, 1715,


V. 3, p. 848-854, nota F.

57
A história é uma literatura contemporânea

Daí um segundo desvio: a “literatura’ acaba definindo o pró

prio corpus dos textos. Ela remete menos a uma competência do

que a um patrimônio: o importante não é aprender a retórica ou se

imbuir da bela latinidade dos antigos para imitá-los, mas apreciar

as “obras de espírito”. Essa evolução é sensível no Dicionário filo

sófico (1765) de Voltaire: a literatura é o “conhecimento das obras

de bom gosto, uma pitada de história, de poesia, de eloquência, de

crítica”, mas a “bela literatura” designa “um bom trecho de Virgílio,


de Horácio, de Cícero, de Bossuet, de Racine, de Pascal”.

Quem é digno de figurar nesse cânone? “Gênios”, diz Voltaire.

Essa resposta indica outra revolução lexical: o nascimento do escri

tor. Desde o século Xl/íí, as Academias, os salões, o mecenato. 0


direito de autor, a imprensa, a codificação da linguagem definem

Uin Carnpo social no qual circula gentu de letras e de escrita. S por

um lado a palavra “escrito” reveste um caráter laudatório(o fato de

escrever consistindo em produzir uma obra de visada estética), a

expressão “gente de letras” se torna sinônimo de pedante ridículo,

de “Povo de Letras” [Jean-de-Lettres], como escracha Tallemant

des Réaux. O escritor, seja ele historiador, epistológrafo, fabulista,

21
Voltaire, “Littérature”, Dictionnaire philosophique, in CEuvres complètes, Paris,
Crapelet, 1819(1765), v. 37, p. 136-139. Ver Philippe Caron,Des "Belles Lettres"
à la "Littérature". Une archéologie des signes du savoir profane en langue française
(1680-1760), Paris, Société pour Tlnformation Grammaticale, 1992.
22
Alain Viala, Naissance de Vécrivain. Sociologie de Ia littérature à lage dassiq ue,
Paris, Minuit, 1985, cap. IX.

58
Historiadores, oradores e escritores

poeta ou romancista, cria para o prazer do público; ele é um homem


do mundo e um homem no mundo. Já o homem de letras, conhece

grego, a filosofia e a álgebra; ele comenta e cita os outros, como


um homem douto”; segundo La Bruyère, uma pessoa humilde,
e confrontou a
fechada em seu gabinete, que meditou, pesquisou

vida toda. No século das Luzes, quando o homem de letras triunfa,


seu século. E
é sob a forma de “grande escritor” engajado em

Voltaire só sente desprezo pelos antiquários e eruditos.

É ao final do século XVIII que o “escritor” se encontra com a

“literatura”: é ele quem cria obras belas e originais, portanto cha

madas a participar do cânone. Ele tira de seu ingenium um uni-

verso no qual evoluem heróis doridos de vida: JuLg, Samt-Preux,


Rousseau euriserva seus
Werther. Célebre, adulado por seus leitores,
iiiaiiuíicritus c conta Gua viila, conirariamente a um Cervantes ou

a um Shakespeare, de vida obscura, cujo nome é nials Ullia niarca


se
de fábrica do que o patronímico de um indivíduo. Eles também

tornam,retroativamente,“escritores”: um engendrou Dom Quixote,

Sancho Pança, Dulcineia, e o outro,recusando-se a imitar os antigos,

pintou imitando a natureza com toda a potência do seu engenho.

Por volta de 1800, momento em que Madame de Staél publica De la

littérature, os irmãos Schlegel e seus amigos do círculo de lena fazem


23
da literatura um absoluto, uma poiesis em estado puro. Se para o

Philippe Lacoue-Labarthe; Jean-Luc Nancy (dir.), L'absolu littéraire. Théorie de


la littérature du romantisme allemand. Paris, Seuil, 1978; Jean-Marie Schaeffer,

59
A história é uma literatura contemporânea

abade Batteux o gênio consistia em formar um plano e basear-se na

realidade dos materiais para preenchê-lo, os românticos, por outro

lado, fazem do escritor um demiurgo sem outro modelo para além


de si mesmo.A “literatura” tornou-se um dos mais elevados valores

espirituais, e o “escritor” é seu sacerdote.^'’

Nessa época, a literatura abraça todos os gêneros. No período

de três décadas, Rousseau escreve uma dissertação sobre a música,

um discurso sobre as origens da desigualdade, um romance epis-

tolar, um ensaio pedagógico, um tratado político, uma autobio

grafia. Voltaire tem o mesmo alcance. Por volta de 1770, alguns

meses depois, o escocês James Beattie publica seu poema The

Ministrei, cujos tormentos anunciam Byron e o Romantismo, e o

Essay on the Nature and Immutability ofTruth, destinado a refutar

Hume. Os românticos alemães querem reunir no romance todos

os gêneros: poesia, retórica, filosofia, mas também fundir poesia e

prosa, criação e crítica, chegando a “poetizar o Witz \ Do seu lado,

Madame de Staêl dá conta, “sob a denominação de literatura, a

poesia, a eloquência, a história e a filosofia”, tendo o cuidado de


25
distinguir “os escritos filosóficos das obras de imaginação”.

La naissance de la littérature. La théorie esthétique du romantisme allemand, Paris,


Presses de 1’ENS, 1983.
24
Ver Paul Bénichou, Le sacre de lecrivain, 2750-1830. Essai sur Vavènement d’un
pouvoir spirituel laíque dans la France moderne, Paris, José Corti, 1973.
25
Germaine de Staèl, De Ia littérature considérée dans ses rapports avec les institutions
sociales, Paris, GF-Flammarion, 1991 (1800), p. 90 e p. 66.

60
Historiadores, oradores e escritores

O advento da literatura e do escritor, portanto, não abala o sis

tema das belas-letras. Em compensação, seu centro de gravidade se

desloca para o romance. Em Hojnmes illustres, publicado na França

durante o século XVII, Charles Perrault elencava “os homens de

letras distintos, filósofos, historiadores, oradores e poetas . Entre

os trágicos e os eruditos habilidosos “no conhecimento das belas-

“letras", consta apenas um romancista: Honoré d'Urfé. O romance

é então, segundo os dicionários, uma fábula que conta aventuras


de amor ou de cavalaria: L’Astrée é claro, mas também Cléopâtre

(1646), Le Grand Cyrus (1649) e Faramonã (1661). Com a exceção

de Pierre-Daniel Huet e de alguns outros, não é muito valorizado,

ele é inverossímil, oferece o espetáculo de todos os desvarios, sua

frivolidade corrompe. Contrariamente, a história é mestre de vida.

É graças a ela que Henriqueta da Inglaterra perde o gosto pelo


romance: “Com o cuidado de formar-se acerca do verdadeiro, ela
”26
desprezava essas frias e perigosas ficções.

Um século depois escritor inventa mundos suprarreais


em
sob a forma de romances ou de correspondências recolhidas

Clarissa (1748),A nova Heloísa (1761),As ligações perigosas(1782)

ou Delphine (1802). Ora, essas ficções, em função de seu poder

de evocação e de seu ensinamento, concorrem com a história.

Para Madame de Staél, os romances conferem um conhecimento

Jacques-Bénigne Bossuet,“Oraison funèbre d’Henriette d'Angleterre (1670),


in CEuvres choisies, op. ciL, p. 237.

61
A história é uma literatura contemporânea

íntimo de todos os movimentos do coração humano”: amor, ambi

ção, orgulho, avareza. Eles pintam os caracteres com tamanha força

e detalhe; eles retratam um quadro tão completo das paixões que o

leitor, ao projetar-se, torna-se sensível à moral que eles carregam.

Tal profundidade não existe em história, que oferece o “panorama

geral dos eventos públicos”, sem nunca evocar a vida dos homens.
27
A moral só existe “em massa”, relativa aos povos e às nações.

A história oferece apenas, portanto, uma imagem truncada

do mundo,indiferente à experiência comum. A ficção romanesca,

por sua vez, fundada na verossimilhança e na identificação, tor


na-se a verdade da literatura. Seus temas são os movimentos do

coração, a vida interior, os eventos psicológicos, as aspirações do

indivíduo diante dos imperativos sociais, a excepcionalidade dolo

rosa. A verdadeira historia magistra vitae é o romance. Blanckerburg


na Alemanha, Clara Reeve na Grã-Bretanha, Madame de Staèl na

França, serão os teóricos do romance nos anos 1770-1790.

No seio da “literatura”, nem todos os gêneros têm o mesmo

status. Num momento em que a história ocupava uma posição


crucial no seio das belas-letras, ela é fragilizada não somente pelo

crescimento do romance, mas pela própria ambição da literatura

no sentido romântico. Como disse Schelling em 1796,“não há mais

filosofia, não há mais história, a poesia sobreviverá sozinha a todo o

27
Mme de Staèl, Essai sur les fictions, London, Colburn, 1813(1795), p. 37-41.

62
Historiadores, oradores e escritores

resto das ciências e das artes”.^® Verdadeira ontologia estética, a lite

ratura faz coincidirem o Dizer e o Ser. Ela não apreende o mundo,ela

o substitui. A história, contrariamente, nada tem de um absoluto lite

rário: sua vocação é precisamente a de dar conta de um fora-do-texto.

A história ou a “terceira cultura'

No momento em que os humanistas colocavam a astronomia, a

matemática e a poesia nas Letras,o campo dos saberes no século XVIII

é cada vez mais normalizado, estruturado pela oposição entre ciên

cias” e “letras”(no sentido estrito, ou seja, belas-letras). Fimdadas por

Colbert nos anos 1660, a Academia de Ciências se dedica à física e à

matemática,enquanto a Academia de inscrições e belas-letras estuda

a história, as moedas,as chancelas, os alvarás, os textos antigos, aos

quais dedica centenas de memórias ao longo do século XVTI.

À medida que as ciências e as letras se separam, lhes são atri


buídas virtudes e defeitos característicos. Quem estuda as ciências

se torna amigo da verdade, mas se expõe a fadigas, desencorajamen-

tos, perigos, ao longo de uma trilha íngreme; as belas-letras são um

jardim florido onde o espírito se deixa levar pelas delícias do diver

timento e da virtuosidade. Essa guerra das disciplinas é aiimentada

pela ideia, formulada por Fontenelle já em 1702, que as ciências

2a
Citado em Philippe Lacoue-Labarthe; Jean-Luc Nancy (dir.), Labsolu littéraire...
op. cit., p. 54.

63
A história é uma literatura contemporânea

“exatas” respondem melhor às necessidades da sociedade: ou por

acaso não fazem progredir a navegação, a cirurgia, a agricultura, as

artes mecânicas? O útil com as ciências vale mais do que o agradável

com as letras. Um abade retrucará relembrando "o quanto as ciências


devem às belas-letras”, outro pretenderá estabelecer “a utilidade das

belas-letras” e “os inconvenientes do gosto exclusivo que parece se

estabelecer em favor da matemática e da física”.^® Ainda assim: no

século das Luzes, as ciências estão revestidas de todas as virtudes.

Ora, a história não consegue se impedir de ser atraída pelas


ciências: assim como elas, ela ambiciona dizer a verdade e, assim

como elas, quer produzir um saber socialmente útil. A desconfiança

dos eruditos no tocante à história-arte, cheia de rimas, de adula-

ção, ou de figuras à moda antiga, os leva a abandonar o sistema

das belas-letras. Na Antiguidade, a história tucidiana desconfiava

da necessidade de agradar; no final do século XVII, Bayle sofre por

causa da vizinhança com a eloquência e o panegírico. A história

ainda teria seu lugar no seio da literatura, no momento em que o

romance começa sua irresistível ascensão? Nos anos 1760-1770, o

abade Batteux relega a história à parte final de seu manual de lite

ratura, entre o gênero oratório e o gênero epistolar. O historiador,

escreve ele, deve evitar as expressões fortes, as expressões rebus

cadas e os pensamentos brilhantes, porque eles traem as paixões e

29
Ver Philippe Caron, Des "Belles Lettres’’ à la “Littérature"... op. cit, p. 281 sq.

64
Historiadores, oradores e escritores

O orgulho. “Todo o seu trabalho consiste em expor a coisa tal como


ela é.’'30 Quanto menos literatura se fizer, mais se dirá a verdade.

A história se encontra, então,em uma situação incômoda: lite

ratura de segunda se fica no sistema das belasTetras, mas sem legi

timidade entre as ciências exatas. Várias possibilidades se abrem


em
a ela para aumentar a autoridade. A primeira solução consiste

valorizar as “ciências” auxiliares representadas pela epigrafia, a


Louis Jobert em
numismática, a sigilografia. Foi a via aberta por
Science des médailles (1692). Mas a história-antiquário, na qual se

destaca a Academia das inscrições e belas-letras, tem pouco em


comum com o espírito filosófico. Quando preparava O século de Luís

XIV, Voltaire não qualificou os detalhes em história de vermina

que mata as grandes obras”?^^

Pode-se, ainda, tentar recusar a hierarquia dos saberes que


coloca as letras acima das ciências. Nos anos 1740-1750, vários

estudiosos afirmavam que as ciências deviam muito às belas letras,

a seu espírito crítico, ao seu gosto pela exatidão. Para o jovem britâ

nico francófilo Edward Gibbon, as letras são úteis para a sociedade

se sabem raciocinar, e a história participa do espírito filosófico

porque é “a ciência das causas e dos efeitos . Quer seja sistema,

Abbé Batteux, Príncipes de la littérature, 5" éd., Paris, Saíllant et Nyon, 1774,
V. 4. p. 332-333.
Voltaire, carta ao abade Dubos(30 de outubro de 1738), in CEuvres complètes,
V. 43, Correspondance générale, t. II. Paris, Armand-Aubrée, 1830, p. 83.

65
A história é uma literatura contemporânea

relação ou concatenação, ela pode explicar as ações humanas per


manecendo na literatura.^^

Ultima perspectiva: as ciências do homem”. Nascidas por volta

de 1770 nos meios fisiocráticos e sensualistas, elas se propõem a

estudar o indivíduo em suas dimensões físicas e morais, para defi

nir uma arte de governar que estaria baseada nas melhores insti

tuições e contribuiria para o bem-estar social. Em seu relatório de

1792 sobre a organização da instrução pública, Condorcet distingue

várias classes de saber, dentre os quais as “letras” (incluindo as

belas-artes e a erudição) e as “ciências morais e políticas , encar-


(
regadas de estudar os sentimentos humanos e os princípios de

justiça natural do qual procedem as leis. A história, a mesma que

se interessa pelos homens e pelas instituições, poderia passar de


uma classe a outra?

Quando de sua fundação em 1795,o Instituto compreende três

classes; as ciências físicas e matemáticas, as ciências morais e polí

ticas, a literatura e as belas-artes. A segunda classe, animada pelo

grupo dos Ideólogos, se dedica(entre outras) a pesquisas históricas,

sob a iniciativa de Daunou. Nesse mesmo ano, Volney pronuncia

suas Leçons ã’histoire na École Normal [Escola Normal Superior

(ENS)de Paris]: recusa dar à história o nome de ciência, mas inicia

uma reflexão acerca de sua epistemologia e de sua deontologia, a

32
Edward Gibbon, Essai sur letude de la littérature, London, Becket, 1762, p. 65

66

J
Historiadores, oradores e escritores

fim de torná-la mais sólida, menos dogmática, e que tenha condi¬

ções de esclarecer a ciência do governo. Entre letras e ciências, a


história começa a incarnar uma “terceira cultura .33

Em 1803, Bonaparte reorganiza o Instituto, suprimindo as

ciências morais e políticas, subversivas demais, e os historiadores

devem se juntar à nova classe de “história e literatura antigas .


Com o declínio das ciências do homem sob o Consulado, ciências e

letras se veem novamente cara a cara. “Estudiosos” e “escritores se

afrontam em uma arena cada vez mais politizada. Ao opor o século

de Luís XIV, época de ouro das belas-letras, às Luzes atraídas pela

ciência materialista, os defensores das letras adotam tons revo

lucionários. Em 1819, Louis de Bonald descreve os dois campos

presentes: de um lado,“as ciências exatas e naturais , apoiadas por

“tropas auxiliares” como a estatística e a arqueologia; do outro, as

“letras frívolas”, com a tragédia, a epopeia, a história, aliadas do


romance e do vaudeviUe.^*^

33
Acerca dessa divisão, ver Charles Snow, The Two Cultures and the Scientiflc Revo-
lution, Cambridge, Cambridge University Press, 1959; e Wolf Lepenies,Les trois
cultures. Entre Science et littérature, Vavènementde la sociologie. Paris, MSH,1990.
34
Louis de Bonald. "Sur la guerre des Sciences et des lettres”, Mélanges Litté-
raires, Politiques et Philosophiques, Paris, Le Clère, v. 2, p. 305-310, 1819. Ver
Jean-Luc Chappey,“De la science de rhomme aux Sciences humaines. enjeux
politiques d une configuration de savoir (1770-1808)”, Revue dWstoire des
Sciences Humaines, n. 15, p. 43-68, 2006.

67
A história é uma literatura contemporânea

Nessa guerra das ciências e das letras”, as ciências do homem

acabaram reduzidas. Quanto à história, despida de toda ambição

científica, separada da arqueologia, da estatística e das antiguida


des, ela corre o risco de
se tornar apenas um agradável passatempo.

68
2.

O TOmainKce, pai da Mstória?

vez em 1623,
Ao editar a obra de Shakespeare pela primeira

Condell e Heminges, antigos atores de sua trupe, distribuem k


as peças em três conjuntos: as comédias, as histórias, as tragé-

dias. O estranhamento que produz essa classificação é flagrante.


relacionadas à história
Nas histórias figuram apenas as peças

inglesa, classificadas em ordem cronológica dos reinos, vida e morte

do rei João, Ricardo II, Henrique IV, Henrique V Henrique VI,

Ricardo III, Henrique VIII. As peças de história antiga {Júlio César.


do século
Antônio e Cleópatra) e Macbeth, do nome do rei escocês

XI, são contadas entre as “tragédias”. Inversamente, certas peças

“históricas” são claramente trágicas(como Ricardo Í7I).


de histó-
De fato, o folio de 1623 expressa uma concepção

ria; uma narrativa política, ritmada pela sucessão dos reis cris
as Crônicas de
tãos e ingleses. Esse ponto de vista contrasta com

Holinshed, historiador do século XVI, e fonte do dramaturgo para


Macbeth e Rei Lear. Se o teatro (ou a literatura ) de Shakespeare

influenciou os historiadores, deve-se tanto a sua representação de

dramas políticos e seus retratos de soberanos loucos, ambiciosos,

First Folio: The History ofthe Book, Oxford,


‘ AnthonyJamesWest,The Shakespeare
Oxford University Press, 2001.
A história é uma literatura contemporânea

cruéis, quanto pela construção de uma história nacional “recente”

na qual interferem as dinastias e o povo da Inglaterra. É devido a

razões análogas que o romance, no século XIX, moldou a história.

Chateaubriand e a epopeia-história

De Ensaio sobre as revoluções (1797) até Vida de Rancé (1844),

passando por Memórias de além-túmulo, Chateaubriand fez história

— história de sua família e de si mesmo,história do Antigo Regime e

da França nova, história da Revolução e de Bonaparte. Na medida em

que essa história abraça a “epopeia de meu tempo", Chateaubriand é

ao mesmo tempo historiador, poeta e orador, assim como Bossuet,

que ele cita. Mas o “historiador de altos personagens nao se reco-

nhece nos eruditos e na gente de letras. Por exemplo,ele ridiculariza

os gemidos dos “antiquários” sob Luís XIV (quando o rei manda

derrubar um templo romano para construir um castelo) e os sofismas

de Adolphe Tiers, esse “brilhante historiador”.^

Na nova terminologia, Chateaubriand se situa do lado dos

“escritores”. Filho adorado das musas, ele espera a inspiração

sentado à mesa de trabalho, junto a suas rolinhas; o sucesso de

Atala, acompanhado de declarações de amor das leitoras, lisonjeia

sua “vaidade de autor”; ele admira O Paraíso perdido de Milton, os

^ François-René de Chateaubriand,Mémoires doutre-tombe, Paris, Garnier,"Le Livre


de Poche”, 1998(1847), v. 1, p. 401 e p. 758; v. 2. p. 104 e p. 394.

70
0 romance, pai da história?

poemas de Ossian, Werther, os Estudos da natureza de Bernardin de


Saint-Pierre. O mundo das letras, segundo Chateaubriand, é muito
: Homero,
hierarquizado. No topo se encontram os gênios mãe

Dante, Shakespeare, que “pariram e amamentaram todos os


ele mesmo é a alma
demais”(Chateaubriand gosta de relembrar que
ordem decrescente
da geração romântica). Depois seguem-se,em
família de René poetas
de prestígio, os autores, os epígonos,“uma

e de René prosadores”, e, por üm,os sábios e os eruditos-copistas.


uma biblioteca
De Homero a Byron, Chateaubriand compõe

de escritores seminais, gênios e inventores de mundos, mas a

“literatura” designa sempre o conjunto das letras (poesia, teatrO;

romance,história, ensaio). Assim, no início do século XIX,a geração

dos Benjamin Constant, Madame de Staêl, Bonald e Chateaubriand


‘nova literatu-
desencadeou uma “mudança de literatura e pariu a
ra O sistema das belas-letras sempre mescla diferentes atividades

de escrita, mas é cada vez mais dominado pelos escritos de visada

estética, aqueles que oferecem uma glória superior ou pelo menos

igual à dos estadistas (daí o entrecruzamento permanente entre a

vida de Chateaubriand e a de Napoleão em Memórias de além^túmuh).

É nesse contexto intelectual que se concebe Os mártires(1809).

Ao mesmo tempo história, epopeia, poema,narrativa dos amores


sacerdotisa de
infelizes entre um oficial cristão de Roma e uma

^ iiííf., V. 2, p. 48, p. 69 e p. 76.

71
A história é uma literatura contemporânea

Homero, a obra é uma espécie de romance histórico de tese:

maravilhoso cristão é superior à mitologia pagã. Tal projeto em


nada exclui a erudição. Sabe-se que Chateaubriand se documentou

minuciosamente, visitando os principais sítios da Antiguidade


grega e cristã, consultando amigos letrados, dentre os quais um

professor de literatura grega da Sorbonne. No prefácio, ele cita suas


fontes e reconhece ter tomado liberdades: retratou Diocleciano

um pouco melhor, situou a cena em Roma(em vez de Nicomédia,

residência habitual do imperador), encurtou “um pouco o tempo'

para reunir os grandes homens da Igreja em um só livro.

Por que essa epopeia cheia de ínverossimilhanças e de anacro-

nismos despertou o entusiasmo dos jovens historiadores liberais?

Seriam Os mártires uma proto-história, um método que se busca,

apoiado desajeitadamente em protestos de imparcialidade, precisões

livrescas e topografias, das “autoridades” bibliográficas? É antes o

fôlego dos Mártires que, ainda que seja uma ficção, revela brusca
mente uma nova forma de escrever a história. Os detalhes fanta

siosos que abundam na descrição dos francos, inspirada em Tácito

e Sidônio (guerreiros em suor cobertos de peles de urso, sangue nos

olhos, cânticos de morte),têm tamanho poder de evocação; são tes

temunhos de um sentido tão agudo da dramatização que a narrativa

se torna não somente verossímil, mas viva. É a “ressurreição” do

passado, tal como Michelet a trabalhará algumas décadas depois.

72
o romance, pai da história?

Por volta de 1810, momento em que o público descobre


os escri-
Os mártires, a história está fragmentada em três polos:

tores”, tais como Chateaubriand, seguindo os exemplos de Voltaire

e de Gibbon, que conjugam a história e um talento literário; os

“eruditos”, representados no Instituto (a Academia das inscrições


e de belas-letras foi restabelecida em 1816) e nas universidades

alemãs em vias de profissionalização; os “historiógrafos , como

Anquetil, herdeiro de Mézeray e do abade Velly, autor, como eles,

de uma História da França adaptada em livro didático. Augustin


seu estilo
Thierry é só desprezo com relação a esses últimos, por
frivolidades sobre “Clóvis
pomposo,suas frases convencionais,suas

fundador da monarquia francesa”. Falar dos “favores do rei” e de


sua galantaria” diante da corte franca, quando na verdade se trata

de rudes germanos pilhadores em luta contra o poderio romano!


Tornado líder da nova escola histórica sob a Monarquia de

Julho, Augustin Thierry conta que a leitura de Mártires, no Colé

gio de Blois, produziu-lhe um “maravilhamento de imaginação ,

decisivo para sua vocação.A anedota talvez seja uma homenagem

àquele que passou a ser o patriarca das letras francesa; mas não

deixa de ser reveladora do choque intelectual que Chateaubriand

produziu entre os historiadores nascidos nos anos 1790. Sua epo-

peia é mais verdadeira do que a história à moda de Anquetil e Velly,

Augustin Thierry, Prefácio de Récits des temps mérovingiens (1840), in CEuvres


complètes, v. 4, Paris, Lévy Frères, 1868, p. 10.

73
A história é uma literatura contemporânea

que parece um conto de criança ou uma página de Grand Cyrus.

A ficção tornou-se menos fictícia do que a história.

Scott e o romance histórico

Os romances de Walter Scott, que conhecem enorme sucesso

e são traduzidos na França dois anos depois da publicação de

Waverley (1814), provocam uma revolução historiográfica. De certa

forma, Scott é menos historiador do que Chateaubriand: não é nem

testemunha de seu tempo, nem historiador das revoluções, e sua

biografia de Napoleão em onze volumes é fortemente apologética.

O passado que ele evoca é fortemente idealizado, com planícies,

florestas, monumentos megalíticos, cavaleiros, menestréis, tor

neios e gaitas de foles.

Se ainda assim Walter Scott tem algo de um historiador, não

é apenas porque situa Ivanhoé (1819) na Inglaterra do século XII

e dedica Quentin Durwarã(1823)a um arqueiro de Luís XI. É tam

bém porque se baseia em uma documentação rica e variada para

situar o pano de fundo da intriga. Ainda, como ele explica a seus

admiradores, é porque ele adapta as técnicas dos cronistas medie

vais franceses, Froissart e Commynes:topografia, quadros, descri

ções, retratos, cenas, ações, diálogos, detalhes. Essa “vivificação da

74
o romance, pai da história?

história”^ faz que o leitor sinta que os homens do passado, apesar


da morte e da distância, foram serem humanos assim como ele,

dotados de vida e habitados por paixões.


romances
Em alguns anos, a narração histórica é perturbada. Os

de Scott inspiram a História dos duques de Borgonha(1824)de Barante,

a História da conquista da Inglaterra(1825)de Augustin Thierry e até


mesmo a História da Marinha francesa (1835) de Eugène Sue. Em

Barante, assistimos a duelos, torneios, festins, casamentos, como


como se sua vida se
se os duques fossem nossos contemporâneos e
desenrolasse diante de nossos olhos. Em meados de 1820,um crítico

observa que

caminho
a história propriamente dita seguiu
aberto pelo romancista escocês. [...] Até então, a
história moderna não passara de um esqueleto des
carnado; Walter Scott, os senhores Barante e Thierry
conferiram-lhe músculos, carnes e cores.

Nos anos 1830,Pushkin escreve ao mesmo tempo poemas, um

estudo erudito dedicado à revolta de Pugatchev e um romance de


, assom-
amor histórico inspirado nessa revolta(A filha do capitão)
uma história de
brando as bibliotecas e os arquivos pata preparar
Pedro o Grande.

^ Leslie Stephen, Hours in a Library [..■], Grosse Pointe, Scholaily Press, 1968
(1894), p. 220.
® J.-J. V. "De la réalité en littérature", LeMercureduXIX^siède, v. 11, p. 502-509,1825.

75
A história é uma literatura contemporânea

De fato, Scott inventa, contrariamente aos historiadores.

Mas a grande lição, para estes, é constatar que seus romances

tornam falsa a erudição dos antigos mestres: eles contêm mais

verdade do que a própria história. É a narração que, animando

os seres, indicando suas relações, revelando a complexidade dos


interesses e dos sentimentos, arranca a história à entediante litania

dos reinos. A partir de 1820, Augustin Thierry escreve que Ivanhoé


reaviva a conquista normanda,enquanto os historiadores se enter

ram debaixo de banalidades abstratas, poder, governo, sucessões.

Os personagens de ficção, o velho chefe Cédric Rotherwood, sua

pupila Rowena, Rebecca a bela judia, o próprio cavaleiro, animam

“o teatro real e verdadeiramente histórico no qual se desenrola a

fábula de Ivanhoé”7 O que há de real e de verdadeiro nessa fábula

é o calor da vida e a inteligência do passado, de que opaca erudição

é precisamente incapaz.

Mas o impacto de Chateaubriand e de Scott não é apenas “lite

rário”. A contribuição de suas obras não se resume à ressurreição

do passado, nem à cor locai. Aquilo que os historiadores liberais


renovam no contato com os romances não é somente sua arte de

escrever, mas também seu método.

Os objetos. Na sexta Carta sobre a história da França, Augustin


Thierry nota que os romances de Scott fizeram nascer a curiosidade

’ Augustin Thierry, Le censeur européen (27 mai 1820), in CBuvres complètes, v. 3,


Paris, Lévy Frères, 1867, p. 442.

76
o romance, pai da história?

pela Idade Média, antes descrita como bárbara, e em certos epi

sódios, conquista normanda, conflito entre o rei da França e o

duque de Borgonha, etc. Em grandes linhas, os romances Waverly


mesmo
manifestam um interesse novo pelo povo, representado ao

tempo nas figuras (o guardador de porcos Gurth, o bufão Wamba,

o regente da banda na infantaria), um quotidiano (costumes, ocu

pações, roupas, miséria) e um princípio político (a história é gover

nada pela atividade silenciosa das massas). Trata-se de garantir

justiça a todos os homens”.^ O povo entra em cena; estará presente


em Michelet e na História socialista da Revolução Francesa de Jaurès.

A chegada dos anônimos democratiza a história.


é um dos ele-
Os problemas. O par conquista/assujeitamento

mentos-chave da historiografia de Thierry. Sua história está estru-

turada no conflito milenar entre sujeitos e mestres, os “vencidos’

(galo-romanos, saxões, servos, Terceiro Estado). Sendo ele mesmo


se esforça para conferir
oriundo da pequena burguesia, Thierry
Terceiro Estado não
aos plebeus a parte de glória que lhes cabe: o

irrompeu em 1789, mas conheceu uma longa ascensão através do

regime municipal romano e da libertação das comunas na Idade

Média. Em certa medida, esse padrão de análise tem por fonte

Ivanhoé. Thierry não cansa de evocar seu interesse pela conquista

Walter Scott, Waverley, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade", 2003,


p. 287. Ver Louis Maigron, le roman historique à Vépoque romantique. Essai sur
Vinfluence de Walter Scott, Paris, Hachette, 1898, p. 86-95.

77
A história é uma literatura contemporânea

normanda da Inglaterra e o assujeitamento dos autóctones saxões:

“Esse grande feito [...] ficara gravado em minha imaginação, como


”9
um problema não resolvido, cheio de mistérios. Os romances de

Scott, portanto, contribuíram para ampliar a problemática histo

riadora, e a “luta das raças” de Thierry e Guizot acabará inspirando

Marx para o conceito de “luta de classes”.

O campo de investigação. Na primeira Carta, publicada em


1820, Thierry retoma a necessidade de escrever uma "história da

França”. A nova escola que Chateaubriand saúda em Estudos his

tóricos(1831) está cimentada por um objetivo comum: definir as

bases de nossa história nacional”. Ora,como os poemas de Ossian

deveríam refletir a alma celta, como Herder se assume cantador

da cultura alemã, como Os noivos de Manzoni acompanham um


casal de humildes “italianos” na Lombardia do século XVII, Scott

celebra a generosidade dos escoceses e o espírito de independência

dos saxões. Esse romanesco nacional contrabalança a convicção,

profundamente ancorada no espírito dos historiadores, de que algo

decisivo aconteceu na França entre 1789 e 1815. O fato de eles mes

mos terem vivido esse drama - como heróis de epopeia - qualifica

os historiadores-testemunhas, e sua competência é enriquecida

pela experiência que são capazes de mobilizar. A “personalidade

moderna,tão poderosa e tão enaltecida” que Michelet evoca em seu

^ Augustin Thierry, Dix ans detudes historiques(1834), in CEuvres complètes, v. 3,


op. cit., p. 337.

78
o romance, pai da história?

prefácio de 1869, é a que foi parida pela Revolução; os historiadores


viveram a história antes de escrevê-la. Aqui repousa a diferença

entre os beneditinos do século XVII, enclausurados em suas biblio

tecas, e nomes como Chateaubriand, Thierry e Guizot. Da Tomada

da Bastilha a Waterloo, os acontecimentos ensinaram-lhes a ver

o fundo das coisas sob a letra das crônicas”.^” Os historiadores

fundam a nação, a nação sustenta os historiadores; Nomeação de

Danou para o Collège de France e depois na chefia dos Arquivos

(1830), criação da Secretaria dos Monumentos Históricos (1830),

do concurso de agregação para professores de História (1831)^^ e

da Sociedade de História da França (1833),lançamento de gigan

tescas coletas de Arquivos (1835), reabertura da École des Chartes

(1836).^^ A saga nacional fez nascer um embrião da comunidade

científica, dotada de um programa de pesquisas unificado. A nação

se torna contexto legítimo da história - e por muito tempo,


de Scott há uma
A demonstração. Por trás de cada personagem

epoca, uma nação, uma classe social, um combate, por meio do

qual o singular encontra o coletivo. Assim que se torna revelador,

o indivíduo escapa a sua unicidade - e à ficção - para se tornar


os historiadores tomam
tipo, exemplo, símbolo. É ao romance que

Ibid., Considérations sur Vhistoire de France(1840). in CEuvres complètes, v. 4, op.


cit., p. 133.

Concurso público para docência no ensino médio e superior.(N.T.).

Escola especializada em ciências auxiliares da história. (N.T.).

79
A história é uma literatura contemporânea

emprestado esse regime de representatividade. Em Récits des temps

mérovingiens(1840), Thierry reúne “os fatos mais característicos” e

realça “quatro figuras que são os tipos para seu século”: Frédégonde,

a bárbara elementar; Chilpéric, o bárbaro um pouco civilizado;

Mummolus, o civilizado tornado bárbaro; Grégoire de Tours, o

civilizado nostálgicod^ Enquanto argumento epistemológico, a


significância dos indivíduos e das ações sobreviverá às teses de

Ihierry, refutadas a partir do final do século (a conquista normanda


foi rapidamente apagada, o desenvolvimento das liberdades nao e

a revanche dos vencidos).

Em suma,a revolução metodológica provocada pelo romance

se efetua em quatro direções: os objetos, ou seja, os temas que o

historiador escolhe; os problemas, as questões que o historiador

formula; o campo de pesquisa, ou o marco de inteligibilidade pro

posto; a demonstração, com os argumentos avançados.

O romance não explica toda a historiografia dos anos 1820-1830.

Mais do que ele, a Revolução determina uma nova relação com o

passado,o patrimônio,a memória, nesse período que se torna, subi

tamente, o “Antigo Regime”. Augustin Thierry trabalha enquanto

historiador: ele mergulha nas grandes coleções beneditinas, home

nageia Sismondi, Guizot e Barante, iniciadores de uma “verdadeira

Ibid., prefácio de Récits des temps mérovingiens, op. cit., p, 7. Ver Marcei Gauchet,
"Les Lettres sur Vhistoire de France d'Augustin Thierry", in Pierre Nora (dir.),
Les lieux de mémoire, v. 2, La Nation, 1.1, Paris, Gallimard, 1986, p. 247-316.

80
0 romance, pai da história?

revolução na forma de escrever a história da França”, e sua reflexão

sobre o Terceiro Estado prolonga os debates do século XVIII em que

se enfrentam Boulainvilliers, Saitn-Simon, Mably e Sieyès.

Em contrapartida,frequentemente o canto de guerra dos qua

renta mil bárbaros” em Les Martyrs, as cenas de duelo em Rob Roy

e Ivanhoé não têm dimensão narrativa. Se as ficções do poeta épico

Chateaubriand e do romancista Scott contêm mais verdade do que

as narrativas (ou quase ficções) do historiador Anquetil, é porque

eles reavivam o passado graças a personagens, emoções, atmosfe

ras; também porque isolam uma ação e formulam um problema,

oferecendo ao leitor instrumentos de inteligibilidade. Formular

uma pergunta, selecionar fatos, recontar algo, fazer compreen

der - são meios “literários” pelos quais a história adquire, pouco

a pouco, o estatuto de ciência. No seio da literatura, a epopeia e o

romance acompanham o crescimento da cientificidade da história.

As guerras da verdade

No início do século XIX, escritores-historiadores inspiraram

uma geração de historiadores-escritores, tanto no plano narrativo e

temático como metodológico e arquivístico. Mas o sucesso de Scott,

lançando a moda do romance histórico, cria concorrentes para a

história. Bug-Jargal (1820), Han d'Islande (1823), Notre-Dame de

Paris(1831)de Victor Hugo, Cinq-Mars(1826) de Alfred de Vigny,

81
A história é uma literatura contemporânea

Les Chouans (1829) de Balzac, Chronique du temps de Charles IX

(1829) de Mérimée, sem esquecer os romances de Dumas,for

mam uma literatura perfeitamente contemporânea das primeiras


obras de Barante, Thierry, Guizot e Michelet. A redescoberta de

Shakespeare encoraja a vocação historiadora dos românticos; não

são apenas os eventos que aparecem no palco, mas seus meca


nismos ocultos, suas coxias. Alternando cenas nobres e baixas,

mostrando o estábulo ao pé do palácio e o escravo presente na


vitória, o teatro oferece o quadro de uma “humanidade completa”.^'’

No prefácio de CromweU (1827), Hugo confia uma nova missão à

literatura; a pintura da vida total, da sátira ao sacrifício, do grotesco

ao sublime. O drama diz a realidade porque não omite nada.

No cruzamento do drama neosshakespeariano com a “his

tória da França walterescotteada”,^^ Vigny narra em Cinq-Mars a

conspiração urdida pelo marquês de Cinq-Mars para derrocar a


tirania de Richelieu e restabelecer os direitos da nobreza. A teoria

do verdadeiro que emerge disso se apoia na história para superá-la.

Vigny distingue entre "a VERDADE da arte e o VERDADEIRO do

fato”. A primeira realiza o segundo; ela aperfeiçoa o acontecimento

para conferir-lhe a significação moral que deve conservar aos olhos

da posteridade. O artista precisa da história assim como o escultor

François-René de Chateaubriand, Mémoires doutre-Combe, v. 2, op. cit., p. 664.

Honoré de Balzac, Prefácio de La peau de chagrin, Paris, Gosselin, 1831, p. 29.

82
o romance, pai da história?

precisa do mármore. Ele deve conhecer “todo o VERDADEIRO de

cada século”, mas se fosse obrigado a ficar nesse jogo de paciência,

a arte não passaria de uma duplicação da vida, uma duplicação da


“triste e desencantadora realidade”. Desertando o positivo, o escri

tor deve elevar os fatos a uma verdade superior, enquanto as teste

munhas protestam e que os eruditos escavam ou folheiam.^® Vigny

sublima o real no qual se protegem os historiadores. Ao escolher


em vez
a forte beleza em vez do fato trêmulo, o espírito da época
em vez da rotina da
do formigamento de detalhes, a profundidade

exatidão, ele encontra a capacidade de idealização que possuía a

história-eloquência ciceroniana.

Mas não é tão fácil assim abjurar a religião do pequeno fato

verdadeiro. Diferentemente de Scott, Vigny situa os personagens

históricos no primeiro plano do seu drama, o que exige uma docu-

mentação minuciosa. Será que esse cuidado com a autenticidade


da erudi-
não faria com que o escritor pós-scottiano caísse no nsco
memo-
ção? Em Cinq-Mars, quando Richelieu lê uma página de suas

rias ao padre Joseph, Vigny remete a CoUection des mémoires relatifs

à rhistoire de France. A partir da segunda edição (junho 1826), ele


de indicar suas fontes:
sente a necessidade de corrigir seus erros e
as vestes do cardeal são descritas em Mémoires manuscrits de Pontis,

disponíveis na Biblioteca do Arsenal de Paris; uma carta manuscrita

Alfred de Vigny,"Réflexions sur la vérité dans Tart”(1827),in CBia're5 completes,


V. 2, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1993, p. 5-11.

83
A história é uma literatura contemporânea

de Cinq-Mars contendo seus últimos desejos é conservada na Biblio

teca Real de Paris. Vigny, que temia rebaixar sua arte ao nível do

real, acaba se prendendo ao “verdadeiro anedótico”. O escritor não

é tão livre quanto esperava, e a beleza ideal se torna secundária

com relação ao fato.

Signiúca continuar imitando o mestre. Na edição “Magnum


Opus” de seus romances, Scott acrescentou cerca de oitocentas

notas de extensão variada. Ele se explica no prefácio geral de 1829:

a menção às fontes oferecerá ao leitor um segundo prazer, assim


como a 'maquinaria interna” de um relógio desperta a curiosidade

infantil. O crescente prestígio da história levaria os romancistas a

dar provas de seriedade? Em 1843, acusado de apregoar em LesBur-

graves a lenda dos assassinatos ritualísticos cometidos pelos judeus

no século XIII, Hugo relembra editor da revista Arc/jzVes Israélites

[Arquivos Israelitas] que “o poeta dramático é historiador e não tem


17
mais autoridade para refazer a história do que a humanidade”.

Não é a independência do poeta que se revela aqui, mas o escrúpulo

do historiador. A acusação de erro (ou de mentira)é tão infamante

que o romancista, no entanto soberano em seu próprio universo,

não a pode sustentar: sua liberdade não é grande o bastante para

varrer, em nome da ficção, os processos de veracidade. O romance

histórico não pode se lihertar da exigência de exatidão.

Citado em Pascal Melka, Victor Hugo, un combat pour les opprimés, Paris,
La Compagnie Littéraire, 2008, p. 166-167.

84
o romance, pai da história?

Isso também porque os historiadores reagem ao sucesso do

romance atraindo-o para a arena. O historiador alemão Ranke,

admirador de Scott, mas chocado com o tratamento de Carlos o

Temerário e de Luís XI em Quentin Durward, promete a si mesmo

nunca "poetizar”.^® A respeito desse mesmo romance, Gizot julga

que o burgomestre de Liege é representado como um verdadeiro

burguês de comédia: gordo, mole,sem experiência, sem audácia ,

enquanto os burgueses desse tempo sempre tinham a cota de


19
malha no peito e a lança na mão. Os mesmos críticos se fazem

ouvir contra Cinq-Mars. Em 1826, em Le spectateur, Sainte-Beuve

denuncia as liberdades de Vigny para com os personagens, carre

gando nos tons de sua conduta e caráter ao sabor de sua imagi¬

nação. Vinte anos depois, na Academia Francesa, o conde Molé

censura Vigny por ter atentado profundamente contra a verdade,

e, por conseguinte contra a moralidade da história . A acusação


também visa os trechos de Steílo (1832) dedicados ao cativeiro de

André Chénier durante o Terror.^'’Assim que o romancista se inte

ressa pela história, deixa de ter o direito de manipular a verdade,

a ficção é julgada à luz do real.

Citado em Cicely Wedgwood, Jhe Sense ofthe Past, Cambridge, Cambridge Uni-
versity Press, 1957, p. 10-11.
en
François Guizot, Coiií-s ã'hÍstoire moderne. Histoire générale de la civÜisation
Europe, Bruxelles, Hauman, 1838(1828), p. 215.
20
Louis-Mathieu Molé. Réponse au discoiirs de M. le comteÁlfred de Vigny [...],
Paris, Firmin Didot, 1846.

85
A história é uma literatura contemporânea

O histoiriador-o-iador

A doutrina da “verdade da arte” produz um primeiro confronto


entre historiadores e romancistas: estes honrariam ou achincalha

riam a verdade? A questão esconde um segundo confronto: a cria

ção literária. Para Vigny, a “crisálida do fato” só alça voo nas asas

da imaginação e do engenho. Sem eles, a história está condenada

a pisar em falso, sob a poeira dos detalhes. Em outras palavras, o

poeta cria; o historiador, não.

Contra essa profissão de fé neoaristotélica, que exclui a história

da “literatura”(no sentido romântico), os historiadores afirmarão

que também podem ser criadores. Não que inventem seres de ficção;

mas,ao personificar coletivos, ao nomear forças, eles fazem nascer

novos personagens. Em Michelet, será a França, o Povo, a Bruxa, a

Mulher; em Ranke, o Espírito do tempo,as Idéias, os Poderes im/isí-

veis como o Estado e a Igreja; em Bancroft, a América, o Progresso,

a Providência; em Carlyle, o Herói, e, em French Revolution (1837),

o Sol, a Guilhotina, o Faubourg Saint-Antoine ou ainda a própria


21
Revolução, que, “feito um anjo da morte, plana sobre a França”.

Esses historiadores são demiurgos porque inventam perso

nagens que existem. Michelet lhes atribui outro povo: os mortos.

O arquivista-escritor é o legislador dessa “admirável necrópole” na

21
Thomas Carlyle, Histoire de la Révolution Française, Paris, Baillière, 1867(1837),
V. 3, p. 325.

86
o romance, pai da história?

qual chegou para trabalhar: “Devagar, senhores mortos, proceda-


’22
mos pela ordem, por favor.’ Ele confere outra vida aos defuntos,

aos assassinados, aos engolidos, chora por eles, explica-lhes seu

próprio enigma, e essa responsabilidade faz do historiador um

Prometeu, cujo fogo desperta as vozes geladas que se calaram.

O historiador cria ao transmitir sua energia aos homens dos

séculos passados. Esse dom da vida é o outro nome da criação literá

ria. French Revolution é uma reconstituição, um reenactment ao longo

do qual Carlyle interpela os protagonistas por um “vós sonoro, pene

tra em seu íntimo graças ao estilo indireto livre, varia os pontos de

vista, leva o leitor das Assembléias às torres de Notre-Dame. Pode-se


uma
ter uma medida desse trabalho comparando o texto de Carlyle a

de suas fontes, a História da França do fim do reino de Luis XIV até o


ano 1825, publicada pelo abade Montgaillard. Em 28 de fevereiro

de 1791, os sans-culotte do Faubourg Saint-Antoine atacam a torre


monarquistas ali
de Vincennes (porque, segundo os rumores, os
nas Tulherias, armados
estocam armas)e aristocratas se precipitam
com punhais, para proteger o rei. A guarda nacional, comandada por

La Fayette, reprime esses dois movimentos sediciosos.

Jules Michelet, “Éclaircissement", in Histoire de France, t. II, Paris, Hachette,


1833, p. 701-702.

87
A história é uma literatura contemporânea

Histoire de France (1827) de French Revolution (1837)


Montgaillard de Carlyle

“Há algum tempo que “Ah se Coblentz ou a Áustria


corre o rumor que, em pudessem sair uma bela
Paris, são transportadas manhã de seus subterrâneos;
O rumor
armas e munições de todo e com seus canhões de longo
tipo, à noite, até a torre de alcance, fulminar o patriótico
Vincennes.” faubourg Saint-Antoine\"
“Saint-Antoine sai do seu
“Uma multidão imensa sai
bairro como já fizera antes.
em disparada do faubourg
O faubourg [...] Ele se dirige ao leste do
Saint-Antoine para ir demolir
a torre.” lado de Vincennes, que aflige
sua visão.”

“A maioria desses “E vós, amigos da realeza,


tomai vossos punhais
Os indivíduos vestiam roupas
aperfeiçoados,feitos sob
pretas, tinham cabelos
monarquistas encomenda, vossas bainhas de
encaracolados e carregavam
espada, vossas armas secretas
pistolas e punhais.” e vossas entradas.”

"Depois de ter contido os


“Tendo escapado de raspão ao
proletários em Vincennes,
sans-cuhtte [sem culote] Cila,
La Fayette ele vem à residência real
encontra no seu caminho o
dispersar os frequentadores aristocrata Caríbdis!”
da corte.”

Personificação, simbolização, exortação, facilidades dramáti


cas, implicação do espectador, fórmulas e metáforas contrastam
com a narrativa linear do abade Montgaillard. Ranke recorre aos
mesmos procedimentos para salientar a bravura do jovem Francisco
I durante a campanha de Milão em 1515:

Quem não sabe que, na noite em que a batalha


se interrompeu, ele repousou totalmente armado
sobre uma culatra de canhão, tendo apenas tirado o

88
o romance, pai da história?

capacete; que ele matou a sede, como os outros, com


a água dos fossos cheios de uma lama sangrenta;
que ele recomeçou o combate no raiar do dia, com
coragem renovada, e que ele venceu?^^

Essa história é fundamentalmente heróica. Ela conduz todo

mundo na epopeia: o rei, os cavaleiros de punhal, o faubourg, o

historiador-dramaturgo e o leitor que sente calafrios. Não há dúvi

das de que essas composições grandiosas possuem algo de entu-


siasmante. Nos anos 1830-1840, a História da França de Michelet,

History ofthe United States de Bancroft, History ofEngland de

Macaulay, são o canto da nação que se autoengendra, se regenera,


universal. Não é apenas
fusão de rostos nos quais se encarna o

porque ela exalta a nação, a liberdade, o progresso humano, que


logos anima,sob
essa epopeia é irresistível; mas também é porque

nossos olhos, um afresco no qual, ao se combaterem, os tiranos e

os povos encenam o destino da humanidade. No primeiro século

XIX, Grimm, Michelet, Macaulay, Ranke tocam o público culto para

além do círculo de especialistas, assim como hoje os historiadores

do totalitarismo e da Segunda Guerra Mundial, Antony Beevor,

lan Kershaw ou Timothy Snyder.


“Minha vida esteve nesse livro, ela passou por ele , escreve

Michelet no prefácio que encerra sua grande obra. A arte do

=3 Léopold Ranke. Histoíre de France, prindpalemeut pe?7dant le XVF et le XVIF


siècle, Paris, Klincksieck, 1854, p. 93.

89
A história é uma literatura contemporânea

historiador é profundamente pessoal, o que não quer dizer arbi


trária. E o homem-criador que se manifesta, o homem-historiador

que age, se lança na batalha, dá sua vida para ressuscitar os mortos.

Isso ainda faz do historiador romântico um escritor, movido por

sua sensibilidade, buscando em si mesmo a coerência de sua obra.

A de Michelet, como m.ostrou Barthes, está unificada pela devora-

çâo-assimilação dos mortos, os ritos de fecundidade, a erótica do

voyeurísrno, o poder da mulher, o retrato dos animais, a fascina

ção pelo sangue, sangue preto, podre, fechado, ou rico, pletórico,


impetuoso. Para Ranke, a história é literatura: ela mobiliza o gênio

da língua, os valores do escritor, sua sensibilidade estética, sua

coragem,sua sinceridade, sua capacidade de recriação do material


recolhido.^^ Não estamos muito distantes dos irmãos Schlegel.

O que esqueceriamos sem pena é que a história romântica tem

uma ambição científica. Formado em filologia na universidade de

Leipzig, Ranke retorna aos documentos originais, cita suas fontes,

estabelece um rico aparato crítico; e os leitores admiram a impar

cialidade com a qual o historiador protestante aborda a história do

papado, cheio de calma soberana da ciência, que não quer imolar a

Rudolf Vierhaus,“Historiography Between Science and Art’’, in Georg Iggers,


James Powell(ed.), Leopold von Ranke and the Shaping ofthe Historical Discipline,
Syracuse, Syracuse University Press, 1990, p. 61-69.

90
o romance, pai da história?

verdade em prol do preconceito e do fanatismo Quanto a Michelet,

ele dirige a seção histórica dos Arquivos Nacionais. Grande erudito,

devorador de arquivos, descobridor de documentos inéditos, ele


utiliza suas fontes muito variadas em sua História da França,em Hzs
História romana (1831):
tória da Revolução Francesa, assim como em

solos, paisagens,inscrições, medalhas, manuscritos,impressos raros,


textos legislativos, minutas de processos, livro de queixas.

A história que Michelet escreve já é científica: ela combina o

“pequeno detalhe erudito”, “mil documentos variados , o âmbito

nacional, a problematização, a verificação da crônica, a inteligência

das rupturas, a abertura aos outros saberes, a curiosidade inte

lectual que permite considerar a economia, a língua, as obras de

arte, as sensibilidades, o imaginário, as doenças, a alimentação, ou


ainda o vestuário. Obviamente, acontece de Michelet se enganar,

como quando evoca o medo do ano mil, qne é da ordem do mito.

O que não é erro, no entanto, é querer compreender as crenças


servo
(as “mentalidadss”, como se dizia há quarenta anos) de um

em sua vala, de um preso na torre, de um padre perseguido por


idade de análise, Michelet
uma maldição. Armado de sua capac

chega a lembrar que "o método histórico costuma ser oposto ã

Alexandre de Saint-Chéron.Introdução de Léopold Ranke,Hístoíre de papauté


penàantlesXVPetXVIPsièdes, Paris, Debécourt, 1838. p. XXIII.

91
A história é uma literatura contemporânea

arte propriamente literária Razão pela qual é menos um poeta


e mais um escritor de história-ciência.

Balzac e as ciências morais

A concorrência do romance levaria a história na direção dessa

terceira cultura constituída pelas ciências humanas renascen

tistas? Em 1832, nomeado ministro da Instrução Pública, Guizot

restabelece a Academia de Ciências Morais e Políticas, a fim de

conferir-lhes aquilo que sempre lhes faltou; um caráter verda

deiramente científico . Ela debate grandes problemas do tempo -

pauperização, abandono de crianças, prisões - e, por ISSO mesmo,

acolhe historiadores (Michelet preside o prêmio de história de

1837 consagrado à abolição da escravidão). Daunou é membro

legítimo, enquanto veterano da época dos Ideólogos. Entretanto,


sua carreira ilustra, antes, a perenidade do sistema das belas-letras:

membro e depois secretário perpétuo da Academia das inscrições

e belas-letras, ele participou da História literária da França e da

História literária da Itália sob a Restauração, antes de se coordenar

o Curso de estudos históricos sob a Monarquia de Julho. Poeta, ora-

dor, arquivista, admirador de Boileau e dos historiadores gregos.

Jules Michelet. “Préface de 1869”, Histoire de France, Paris, Librairie Interna


tionale, 1871, V. 1, p. XXX.

92
o romance, pai da história?

crítico acerbo do Romantismo, Daunou incarna uma história que


27
participa plenamente da literatura.

Mas, assim como o romance influenciou a história, ele se con¬

vida no projeto das ciências morais e políticas. Os acontecimen


sociedade
tos revolucionários fizeram emergir uma angústia: a

pós-1789 teria se tornado ilegível. Enquanto elucidam o social,

os romances da Monarquia de Julho pertencem ao mesmo regime

hermenêutico que os “quadros de costumes”, fisiologias e outras

“investigações”(muitas vezes comandadas pela Academia das ciên

cias morais e políticas): uma espécie de pré-sociologia suscetível de

decifrar a vida contemporânea, de sondar as feridas da sociedade,

de compreender os efeitos da liberdade. Para além das diferenças

nacionais e ideológicas, a proximidade entre OUver Twist e Um conto

de Natal de Charles Dickens, Classes perigosas de Honoré-Antome

Frégier, Os mistérios de Paris de Eugène Sue, A condição da classe

operária de Friederich Engels e London Labour de Henry Mayhew,

publicados entre 1837 e 1850, atesta a imbricação entre jornalismo

em plena efervescência, romance em majestade e ciências sociais


de Londres e de Paris que
em gestação. É sempre o pequeno povo

se deve conhecer, da street-life até os pulgueiros.


realista e a histó-
Filhos da revolução scottiana, o romance
ria nacional entram em concorrência a respeito de vários pontos.

Benjamin Guérard,“Notice sur M. Daunou Bibliothèque de l’École des Charles,


1842. t. III. p. 209-257.

93
A história é uma literatura contemporânea

A visada de verdade, a capacidade de decifrar, a epifania do povo,

a regeneração do passado. Em vários momentos, principalmente

no prefácio de A pele de onagro, Balzac defende que o romancista

adivinhe a verdade por meio de uma “espécie de segunda visão”,

inventando o verdadeiro “por analogia”. Com efeito, ele recorre a

uma forma de demonstração: a tipificação. Ao concentrar-se em

um personagem de traços característicos, ele elabora um “modelo

do gênero”, ou seja, uma ficção social carregada de inteligibilidade

(a mulher de 30 anos, a solteirona, a solteira do interior, etc.).^®

Essa epistemologia de exemplaridade permite compreender


povo informe e fervilhante. Pode-se encontrá-la em todas as par

tes, em Augustin Thierry e Michelet, mas também nos retratos de

Mayhew (o caixeiro-viajante, a pequena vendedora de flores, a jovem

prostituta), assim como em Os franceses retratados por si mesmos,

série de brochuras ilustradas apresentando um “tipo social”(Balzac

inaugura a série.com um retrato do dono de mercearia). Na pensão

Vauquer, o ambiente, o mobiliário, o vestuário, os hóspedes, tudo

contribui para a atmosfera moral e ao mesmo tempo para a expli

cação sociológica. Os personagens possuem uma história - nasci

mento, qualidades, fortuna, profissão - que os situa simultanea

mente na narração e na sociedade francesa. Para Henry James, que


o admira, Balzac é concomitantemente um criador e um “beneditino

28
Jérôme David, Une réalité à mi-hauteur’. Exemplarités littéraires et générali-
sations savantes au XIX" siècle”, Annales HSS, n. 2, p. 263-290, mars-avr. 2010.

94
o romance, pai da história?

do real", investigador insaciável, dividido entre a necessidade de

registrar e a de explicar.^® Melhor do que a história, no meio do

caminho entre a epopeia nacional e as ciências morais e políticas,


A comédia humana dá visibilidade à sociedade pós-revolucionária.

Daí as seguintes reivindicações permanentes: Balzac se quer

“mais historiador do que romancista”, mais sensível aos costumes do


30
os fatos e as datas”,
que os eruditos unicamente “preocupados com
Balzac é
e o prefaciador dos Estudos filosóficos (1834) afirma que

superior aos historiadores de toga, que se acham grandes por terem

registrado fatos”. A polêmica contra a história continua no preâm

bulo de A comédia humana (1842). Ao se interessar pelos costumes,


o romancista escreve
que mudam segundo os meios e as épocas

uma história contemporânea e democrática, enquanto o historia

dor, entrincheirado atrás das “secas e nojentas nomenclaturas ,só

enxerga a superfície das sociedades. Balzac faz pela França do século

XIX o que não foi possível para Roma, Egito, Pérsia ou índia, escavar,
e das coisas.
registrar, explicar, estabelecer a significação das ações
Não somente o escritor faz um trabalho mais difícil do que o do

29 James MiUer, Theory ofFiction:


Henry James,“Honoré de Balzac” (1902), in
I. 79-80. Ver Judith
Henry James, Lincoln, University of Nebraska Press, 1972, p
au temps de Balzac, Paris,
Lyon-Caen, La lecture et la vie. Les usages àu roman
Tallandier, 2006.
3U mceiirs auXIX'"siède.v. 1.
Honoré de Balzac, prefácio de Fragments des études de
La femme supérieure [...], Paris, Werdet, 1838, p. LIIl; e Béatrix ou les amours
forcés, Bruxelles, Méline, 1839, p. 6.

95
A história é uma literatura contemporânea

historiador, mas seus romances são mais autênticos, mais demons

trativos, enfim, mais verdadeiros. O célebre elogio do romancista

capaz de “concorrer com o estado civil”(com Dom Quixote, Manon

Lescaut, Robinson Crusoé, Werther ou Ivanhoé) tem por objetivo


rebaixar o historiador, cuja ambição toda consiste em “ordenar os

fatos relativamente iguais em todas as nações”. Balzac toma para si

as duas bravatas de Vigny: o romancista é melhor historiador que o


historiador; o romancista cria, mas o historiador, nao.

No século XX, um demógrafo tirará o chapéu diante da “lição


de história” dada por Balzac: A comédia humana fornece um pro

grama à história e à sociologia; por exemplo, a biologia da evolução

social(envelhecimento, gerações, fases da vida) e o estudo das cias

ses sociais (hierarquia, contatos, lugares, práticas). Não contente

em ser um escritor de gênio, Balzac também seria o primeiro dos


historiadores. Ora, nos anos 1830-1840, os historiadores reivin

dicam a mesma dualidade: eles são criadores em tempo integral,

ao mesmo tempo que detêm o monopólio da verdade. Assim como

Ranke e Michelet, Augustin Thierry tem a ambição de conciliar

drama e exatidão, narração e problema, erudição e epopeia, para


“fazer arte e ciência ao mesmo tempo”.

Louis Chevalier,"La comédia humaine: document d’histoire?”, Revue Historiq ue


V. 232, p. 27-48, juil.-sept. 1964.
32
Augustin Ihierry, prefácio de Dix ans detudes historiques, op. cit., p. 347,

96
o romance, pai da história?

A história-ciência da época romântica vive em osmose com

seu meio, a literatura, e esse milagre também será seu fracasso.

Os universitários do final do século dirão que é narrativa demais,

lírica demais, partidária demais, em suma, literária demais, con

finando Michelet à patética história-tragédia, Daunou ao decoro

da história-eloquência, Thierry ao excesso da história-panegírica.


nova linha de
No início dos anos 1860, Sainte-Beuve traça uma

divisão entre os historiadores e os poetas. Dentre estes, Vigny,


de cristal”, mas também
que vê a realidade “através de um prisma

Michelet, que pratica “ciências semiocultas”:^^ dois delírios a partir

de fontes mal compreendidas.

aux
Sainte-Beuve, Panorama de la Uttérature française de Marguente de Navarre
frères Goncourt, Paris, LGF,“Le Livi-e de Poche". 2004, p. 1199 e p. 1213.

97
À
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3.

História-ciêstcia e
(i 5?
micróbios literários

em
O termo “realismo”, nome do pavilhão onde Courbet expõe
uma coletânea
1885, título de uma revista dirigida por Duranty e de

de artigos de Champfleury (1857), pode serútilpara caracterizar boa

parte dos romances da segunda metade do século XIX. Não é difícil,

de fato, de neles encontrarmos pontos comuns: vontade de pintar a

realidade sem expurgá-la nem idealizá-la, interesse pela vida do povo e

pelas coisas do quotidiano, evocação dos grandes problemas do tempo.

Mas, definido assim, o realismo não é fundamentalmente novo.

No início do século XVII, pintores como Caravaggio e os irm*ãos Le


das cidades e do
Nain não hesitam em representar o pequeno povo
meio rural. Defoe em Moll Flmiders (1722), Saint-Simon em Memó¬

rias (redigidas em parte nos anos 1720-1730), Fielding em Tom Jones

(1749) oferecem uma descrição do mundo, de suas misérias, de seus

vícios. Sob a Monarquia de Julho, Balzac pinta a dureza da sociedade.

assim como Eugène Sue se interessa pelo destino das classes baixas.

No sentido amplo, a tradição realista tem por fonte os Evangelhos,


existência dos artesãos, dos
nos quais a palavra de Deus atravessa a

pescadores, dos incapazes, das prostitutas.^

' Erich Auerbach, Mimésis. La représentation de la réalité dans la littérature occi-


dentale, Paris, Gallimard, 1977, cap. II e III.
A história é uma literatura contemporânea

Desde do Renascimento, a maior parte das revoluções artísti


cas se deram em nome da verdade. Mas o Classicismo e o Roman

tismo não se apoiavam na autoridade do erudito. Contrariamente,


o romance realista dos anos 1860-1880 ambiciona sustentar um

discurso de verdade baseado na ciência, da qual Claude Bernard

expõe os fundamentos em Introdução cio estudo da medicina expe

rimental (1865). O que distingue o projeto realista, nascido do

cruzamento entre a literatura, a pesquisa, a biologia, é menos a


representação fiel do mundo (ou o espetáculo das misérias "sem

maquiagem”), e mais a vontade de elaborar uma ciência do real.

É nesse ponto preciso que se encontram o naturalismo e a história

metódica a partir dos anos 1870.

O método naturalista

Os escritores realistas se esforçam em teorizar uma arte que con

segue chegar à verdade por meio da ciência. A partir dos anos 1850,

Flaubert profetiza que "a literatura ganhará cada vez mais contornos

de ciência d e os irmãos Goncourt explicam no prefácio de Germinie

Lacerteux (1864) que esse “romance verdadeiro” impôs a si mesmo

os deveres da ciência”. Isso explica que o realismo se identifique

menos à tradição romanesca do que às ciências naturais e à medicina.

2 Gustave Flaubert, carta a Louise Colet(6 de abril de 1853), Correspondance,


V. 2, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1980, p. 298.

100
História-ciência e “micróbios literários”

No preâmbulo de A comédia humana, Balzac pede a benção a Buffon,

Cuvier e Geoffroy de Saint-Hilaire antes de fazer rápidas alusões a

Petrônio e à canção de gesta. Sob tais patronos, o realismo é tanto

uma forma literária, ficção e narração, quanto uma inteligência do

real,“um método de pensar, de ver, de refletir, de estudar, de experi

mentar,uma necessidade de analisar para saber",segundo os termos

de alguém próximo de Zola,frequentador das reuniões de Medan.^

É a razão pela qual a capacidade de invenção nunca ofusca o

esforço documental: os romancistas realistas não partem do nada,

mas se tomam homens de campo,jornalistas, arquivistas, viajantes,

etnólogos, a fim de recolher seu material. Balzac se documenta a res

peito da Vendeia para LesC/íouflíis[ABretanhaem 1799]e se relembra

dos desgostos de impressor em Ilusões perdidas. Em seus romances,

Hugo intercala longos desenvolvimentos em Paris, as barricadas, os

recifes da Mancha, os lordes da Inglaterra, a Convenção, Waterloo.

Depois de visitar a Tunísia em 1858, Flaubert decide que o manus

crito de Salammbô dever ser “completamente refeito Os romancistas


se
americanos também serão grandes investigadores. Uiejungíe(1906)

inspira na experiência de Upton Sinclair nos abatedouros de Chicago.

3 Paul Alexis, citado em Jules Huret, Enquête sur lévolution littéraire [...], Paris,
Charpentier, 1891, p, 188 sq.
■' Citado em Clémentine Gutron, ‘'Salammbô: une leçon darchéologie par Flaubert”,
in Alban Bensa; François PouiUon, Terrains decrivains. Littérature et ethnographie,
Toulouse, Anacharsis, 2012, p. 35-66.

101
A história é uma literatura contemporânea

Antes de escrever As vinhas da ira (1939), Steinbeck encontrou Okies

e fez pente fino nos campos de emigrantes da Califórnia.

Antigo jornalista,Zola vai muito além desse método de investiga

ção. Cada um de seus romances abre espaço para uma longa prepara

ção que consiste em coletar informações e documentos,fazer visitas,

encontrar pessoas, impregnar-se de ambientes. Zola lê (e por vezes

redige fichas) as obras dos grandes alienistas de seu tempo,o que lhe

permite descrever com precisão os efeitos do delirium tremens e de

diversas patologias profissionais. Ele visita os mercados e o Teatro

de Variedades, perambula pelas gôndolas do Bon Marché, desce até a

mina de carvão,assiste a reuniões sindicais, entra em garimpos e bares,

percorre a região da Beauce, refaz o caminho do exército em Sedan. Em

Germinal(1885)há toda uma etnologia da vida quotidiana dos minei

ros - horários, hábitos alimentares, rituais familiares ou amorosos,

festas, distrações, jogo de lacrosse, partida de boliche, concursos de

pintassilgos, que Zola observou ou mandou que lhe descrevessem. O

dossiê preparatório do romance revela fontes muito variadas: artigos

de jornal, verbetes do dicionário Larousse, resenhas de obras sobre as

técnicas de extração e de higiene de menores, planos de uma cidade

mineradora, anotações sobre a companhia Anzin de carvão,léxico da

mineração. O H\nro todo é testemunho desse “sentido do real”.^

^ Émile Zola, Le sens du réel”(1878),in Le roman naturaliste. Anthologie, Paris,


“Le Livre de Poche”, 1999; e Carnets denquêtes. Une ethnographie inédite de Ia
France. Paris, Plon,"Terre Humaine”, 1986.

102
História-ciència e “micróbios literários”

Apoiado nessa documentação, Zola procede a uma experiên


em um meio
cia que se quer científica. Ele coloca os personagens

determinado, com condições particulares e, retirando-lhes a ação,

testa a validade de sua hipótese inicial. Os organismos e os tempe


romance
ramentos se modificam sob a pressão das circunstâncias; o

constitui os autos dessa experiência.“No final, há o conhecimento

do homem,o conhecimento científico.”® Nesse sentido, o escritor

não inventa nada. Ele estuda casos, resolve problemas,levado pela

curiosidade do erudito e pelo amor da verdade. O romance tem

uma visada cognitiva apesar de seu caráter de ficção.


Inútil atardar-se sobre as ilusões desse cientificismo. O processo

feito ao naturalismo começou com o próprio naturalismo, feiura,

obscenidade, simplismo, arbitrariedade, fatalismo. O fato é que as

“hipóteses” de Zola impHcam crenças bem deUmitadas: os indivíduos

são prisioneiros da própria herança, a modernidade produz homens

nervosos e ávidos, rapidamente atormentados por monstruosida

des morais. O ciclo todo dos Rougon-Macquart é determinado pela

ideia que o Segundo Império, agravando a desregulação da Revo

lução, atiçou as ambições, desencadeou os apetites, multiplicou a

sede de fruição, favoreceu os atropelos democráticos nos quais os

indivíduos se precipitam e caem,esgotados por terem vivido rápido

demais. Portanto,Zola detém sua verdade antes mesmo de escrever

^ Émile Zola, Le roman expérimental(1880),in Le roman naturaliste..., op. cít., p. 90.

103
A história é uma literatura contemporânea

uma linha. Seus romances desenvolvem uma premissa,ilustram um


diagnóstico, mais do que “demonstram’ o que quer que se;a, em

detrimento da enorme documentação de Zola.

Mas uma coisa é o que os escritores realistas acreditam fazer

com a ciência; outra é que eles compartilham os mesmos valores

que os médicos, os físicos e os biólogos. As “cartas” são cada vez

mais influenciadas pelas “ciências”. Na segunda metade do século

XIX, o cientificismo substitui ao mesmo tempo o romance e a his


tória; essas duas formas de literatura-método.

A história deve adotar um "ponto de vista estritamente cien

tífico”. anuncia Gabriel Monod na abertura do primeiro número


da Revue HistoriqueP Perceptível em território alemão desde os

anos 1830, uma revolução intelectual tem lugar na Europa e na


América do Norte nos últimos 25 anos do século XIX,fazendo com

que a história entre na “ciência positiva”. Essa revolução é marcada


pela criação de revistas (a Revue Historiq ue em 1876), associações

(a American Historical Association em 1884), instituições (a École

Française de Rome em 1875) e o ajuste de um método (o coletivo


Methods of Teaching History em 1883, a Introduction aux études

^ Gabriel Monod,"Du progrès des études hisüoriques en France depuis le XVI'


siècle", Revue Historique, t. I, p. 5-38, jan.-juin. 1876.

104
História-ciênda e “micróbios literários”

historiques de Langlois e Seignobos em 1898). A ciência histórica

que triunfa no final do século se baseia em três pilares: o ideal de

objetividade, a fonte documental, o meio profissional.

O historiador é quem estuda os fatos. Essa definição visa rom

per com as controvérsias pós-revolucionárias e a história regula

dora de vida, mas também com a filosofia da História, que busca

estabelecer leis válidas tanto para o passado como para o futuro,

Daí o novo historiador não ser um “positivista no sentido de

Auguste Comte; ele não tenta estabelecer o sentido da História,

as diferentes idades pelas quais passa a humanidade. Em compen-

saçao, e um metódico”, um erudito, cujo trabalho se baseia em

uma abordagem científica.

O historiador não polemiza, não aconselha, não especula, ele

se contenta em estabelecer, segundo a fórmula tomada de Ranke,

“aquilo que realmente aconteceu” (.wie es eigentlich gewesen).

Esse mote, que poderiamos qualificar de norma rankeana, erige o


idealismo alemão em modelo de cientificidade, em pai fundador da

disciplina, e é a esse título que os historiadores americanos o vene


ram, de Herbert Adams nos anos 1880 a George Adams no inicio do

século XX. A história objetiva, sem paixão nem idéias preconcebidas,

vulgariza o empirismo de Bacon e de John Stuart MiU:indução pru

dente a partir de observações, recusa das generalizações apressadas

105
A história é uma literatura contemporânea

e das teorias metafísicas, importância das taxinomias, vontade de

deixar falar os fatos para produzir uma história definitiva.®

Com esse fim, o historiador se baseia em fontes, um material

original constituído de arquivos, de vestígios, de inscrições, de moe-

das, e autentificado graças às ciências ditas “auxiliares”: a numis-

mática, a paleografia, a epigrafia, a diplomática. Para Seignobos, os

documentos são traços, graças aos quais o historiador pode recuar até
os fatos hoje desaparecidos. Nesse campo,os franceses e os amenca-
nos
se valem dos eruditos alemães, Niebuhr, Bõckh, Ranke, Harnadc,
Gervinus, Mommsen,Waitz, e se inspiram de suas grandes coleções

eruditas. JsÁonumenta Germaniae ou Scríptores Rerum Prussicarum.

A institucionalização da história - meio profissional unificado, publi

cações eruditas, elo com o ensino superior- constitui outro motivo

de admiração, e inúmeros americanos e franceses efetuam viagens de

estudos em universidades alemãs(Monod a partir de 1867,Emerton


e Herbert Adams em 1876,Seignobos em 1879, CamiUe JuUian em

1882). A história abandona o gabinete do amador para entrar na

era da Wissenschaft [ciência]. A partir de então, o historiador é um

Ver Georg Iggers, “The Image of Ranke in American and German Historical
Thought”, History and Theory, v. 2, n. 1. p. 17-40,1962; e mais especificamente
Peter Novick, That Noble Dream. The “Objectivity Question’and the American
Historical Profession, Cambridge, Cambridge University Press, 1988 cap 1-3

106
História-ciência e "micróbios literários'

universitário, e o ensino superior se organiza em torno de seminá

rios, graduações, programas e diplomas.^

A erudição alemã e a institucionalização da história na França

haviam transformado, desde a primeira metade do século XIX, a

prática da história; mas é nessas últimas décadas do século que ela

adquire um verdadeiro título de nobreza. Na Antiguidade era um

gênero menor:subpoesia, sub-retórica,subfilosofia. Na Idade Média,

dividida entre as artes, a teologia e o direito, ela ocupava um lugar

secundário na universidade. Quanto aos historiógrafos da idade clás

sica, eles eram assimilados a cortesãos. Pela primeira vez, a história,

tomada profissão, método, discurso de verdade, deixa de ser domi

nada. Ao tomar-se ciência, ela adquire definitivamente sua dignidade.

Imperativo de documentação, registro dos fatos, preocupação

metodológica, busca da verdade: a convergência epistemológica


entre a literatura realista e a história-ciência produz um efeito de

embaralhamento, como no tempo de Balzac. Para os Goncourt, o


“romance atual se faz com documentos, contados ou recolhidos a

partir do real, assim como a história se faz a partir de documentos

'' Ver Charles-Olivier Carbonell,Histoire et historiens. Une ?nutatíon idéologique des histo-
ríensfiançais,1865-1885,Toulouse,Privat,1976; e mais espedficamente, Chnstophe
Charle; Jacques Verger. Histoire des universités. Paris,PUF,2012,cap. V e VI.

107
A história é uma literatura contemporânea

escritos”.^'^ Zola, cujo ciclo Rougon-Macquart é dedicado à “história

natural e social” de uma família sob o Segundo Império, vai ainda


11
mais longe: “Eu faço história.' Contrariamente, quando de um

congresso internacional de historiadores em 1900, o presidente

Henri Houssaye observa que o romance é feito com “documentos

humanos”, cadernetas com anotações, observações diretas, antes


12
de concluir que o “romancista procede quase como o historiador”.

Uns estudam o passado, outros o presente: só muda o objeto.

O cientificismo que anima o romancista e o historiador cria um

modo narrativo comum,um fundo de técnicas ao qual ambos recor¬


rem.A convergência foi preparada pelos mestres dos anos 1860,Fustel

de Coulanges, Renan e Taine, historiadores-escritores anunciadores

da revolução metódica. Esse modo objetivo tem quatro dimensões.

O desprendimento do erudito. Admiradores da erudição bene


ditina, os detentores da história-ciência exibem um ideal de obje

tividade e de serenidade. Nada de favoritismo, nada de ódio, nada

de rancor: o passado estando claramente separado do presente, o


historiador pode estudá-lo com toda a distância necessária. Desinte

ressado, preservado de todas as paixões, ele sabe se distanciar para

10
Edmond e Jules de Goncourt(24 octobre 1864), Journal, v. 1. Paris, Robert
Laffont, “Bouquins”, p. 1112.
Émile Zola, “Premier plan remis à Lacrobc”, in Les Rougon-Macquart [...], v. 5,
Paris, Gallimard, "Bibliothèque de la Pléiade”, 1967, p. 1757.
Annales internationales d'histoire. Congrès de Paris. 1900, Paris, Armand Colin
1901, p.7.

108
História-ciéncia e “micróbios literários

saborear “esse charme da imparcialidade perfeita que é a castidade

da história”d^ Encontramos essa atitude em Flaubert, que pretende


tratar a alma humana com a mesma neutralidade, a mesma capaci

dade que um entomologista diante de um formigueiro. E Taine con

fessa ao mestre,em 1877,sua admiração pela “calma” e a “perpétua

ausência” que revela em Três contos, cortando o cordão umbilical que

liga sua obra a seu autor: “Herodias é a Judeia trinta anos após J.C.,
a Judeia real. [...] Você tem toda razão de me dizer que hoje a his

tória e o romance não podem mais ser distinguidos. Esse princípio

de impassibilidade faz de Flaubert o inspirador, ou pelo menos, o


14
precursor dos historiadores do final do século.

A expulsão do “eu”. A partir dos anos 1850 e das obras de Claude

Bernard, a ciência entra em um regime de objetividade que consiste

em proteger a observação contra o sujeito que a efetua.^^ A mediação

humana se torna perturbação, deformação; risco de erro. Dispensar o

observador, expulsar o narrador do texto. Em Flaubert isso equivale

à regra de não intervenção; o romancista não tem o direito de dar sua

opinião, “ele deve, em sua criação, imitar Deus em seu ato, ou seja:

Numa Denis Fustel de Coulanges, Qiiestions contemporaines, Paris, Hachette,


1919(1893), p. 26.
Marianne Bonwit, Gustave Flaubett et le príncipe d impassibilité, Berkeley, Los Angeles,
University of Califórnia Press, 1950;e Bruna Donatelli,“Taine lecteur de Flaubert.
Quand Ihistoire rencontre la littérature”, Romantisme, n. 111, p. 75-87, 2001.
Ver Lorraine Daston; Peter Galison, Objectiuité, Paris. Les Presses du Réel, 2012,
cap. III e IV.

209
A história é uma literatura contemporânea

fazer e calar”.^® Para Zola, não é o escritor que fala, mas os fatos, as leis

da hereditariedade. Fustel de Coulanges(e a maioria dos historiadores

depois dele) compartilha essa moral da abstenção, afastando tudo o

que podería manchar a subjetividade, guardando o controle de si para

não infligir sua individualidade ao leitor: *'0 melhor historiador da

Antiguidade será aquele que tiver feito mais abstração de si mesmo,

de suas idéias pessoais e das idéias de seu tempo, para estudar a


”17
Antiguidade. Há, nesse apagamento do eu, uma abnegação, uma

modéstia sacrificial que se pode encontrar no monge de Mabillon ou

nos “heróis da ciência”, segundo Renan,resignados a nao passarem

de anônimos monógrafos. A virtude tem a mesma importância do

que a verdade, o eu em história é digno de ódio porque narcísico,

mas também porque ele é não ciência. Posto que a química e a astro¬

nomia são impessoais, a extinção do eu garante a objetividade dos

historiadores. Ela garante a neutralidade axiológica, essa Wertfreiheit


que Max Weber recomenda no início do século XX.

O ponto de vista universal. A atitude de recuo adotada pelo


romancista e pelo historiador é uma forma de dominar o panorama.

A posição de proeminência, ponto de vista de Deus, permite ver

Gustave Flaubert, carta a Amélie Bosquet(20 de agosto de 1866), Correspon-


dance, op. cit, v. 3, p. 517.

Numa Denis Fustel de Coulanges, “Comment il faut lire les auteurs anciens”,
in Camille JuUian,Extraits des historiens français du XIX‘= siècle, Paris, Hachette,
1908, p. 659 sq.

110
História-ciência e “micróbios literários'

tudo de uma só vez. Essa visão geral é uma das marcas de fábrica

do realismo, mas os historiadores a conhecem desde que Políbio

inventou a sunopsis, narração sinótica que permite ver tudo. Luciano

de Samosata diz que, do alto, se pode ver o campo romano e, logo

depois, o campo persa. À imagem de Zeus ou do aventureiro em

Icaromenipo, o historiador é aquele que sobrevoa “acima das nuvens .

Ponto de vista externo ou ponto de vista onisciente?. Contrariamente


ao romancista, o historiador não é capaz de penetrar as profunde

zas da alma; mas, como o romancista, ele sabe sempre mais do que

seus personagens, ainda que seja porque conhece o resto da história.

A focalizaçào zero (para retomar a tipologia de Gérard Genette),

na qual o narrador é ao mesmo tempo ausente e onipresente, será

)modo privilegiado da história metódica. No final das contas, o

‘ponto de vista sem ponto de vista” da ciência histórica, ponto de


18
vai ao encontro
vista visto de cima do espectador quase divino,

do em-toda-parte-e-em-lugar-nenhum do narrador flaubertiano.

O sonho de transparência. Para tornar credível a ideia de que


têm acesso direto à realidade, os romancistas costumam recorrer

à metáfora do vidro. “A casa da ficção não tem,no final das contas,

uma só janela, mas um milhão”, escreve Henry James no prefácio

de 1908 de The Portrait ofa Lady; essas aberturas,janela ou buraco

na parede, dão para a “cena humana . Em Zola, as arquiteturas

Pierre Bourdieu, Science de la science et réftexivité. Cours du CoUège de France,


2000-2001, Paris. Raisons d’Agir, 2001, p. 222.

111
A história é uma literatura contemporânea

abertas - janela, vitrine, estufa, gabinete envidraçado - formam

uma imensa casa de vidro” que nada consegue esconder aos olha¬

res. Esse verismo hialino se traduz por uma perfeita clareza de


intriga, uma luz igual lançada sobre todos os personagens, uma

composição lógica, um vocabulário acessível a todos. Pois, como

disse Maupassant, os romancistas que fogem da "simples reali

dade , expondo fatos duvidosos ou escrevendo com preciosismo,


fazem chover sobre a limpeza das vidraças”. Os historiadores

metódicos não ignoram que a história seja um conhecimento indi

reto, por traços; mas sua narrativa toma emprestado da hipotipose


que, como a define Quintiliano,"coloca a coisa sob nossos olhos”.

Ao dar a ver, esse realismo permite um acesso direto aos “fatos”.

Assistimos à cena: o passado volta a se desenrolar diante de nos.

como se a linguagem e a narração se apagassem.

O cientificismo justifica o modo objetivo no qual se baseiam


tanto a literatura realista quanto a história metódica. Para além

da técnica de narração, pode-se discernir um verdadeiro habitus

de objetividade: discrição, segurança, controle de si, associados à

legitimidade do erudito e do resultado. As posições epistemológicas

e morais determinam, portanto, as escolhas de escrita. Os poéticos,

sob a influência de Barthes, mostraram o “efeito de real” resultante

19
Guy de Maupassant, “Le roman” (1887), in Pierre etJean, Paris, Ollendorff,
1888. Ver Philippe Haraon, “Zola, romancier de la transparence”, Europe,
n. 468-469, p. 385-391, avr.-mai 1968.

112
História-ciência e “micróbios literários

O papel do ilusionismo que a mimese veicula, privilégio e grande


20
golpe do narrador-Deus.
sem
Didatismo, ideal de clareza-límpida, alisamento, narração

costura, princípio de impassibilidade, ausência ubiquista do enun


direto à realidade, tom da
ciador, ponto de vista absoluto, acesso
e nar¬
evidência, são as estruturas indissociavelmente cognitivas
se conta
rativas de uma história (no duplo sentido do termo) que

sozinha. Essa “objetividade” em majestade acaba adquirindo uma


setores
dimensão mitológica. A exemplo de Zola descrevendo os

da grande loja de departamentos, Ernest Lavisse, substituto de

Fustel de Coulanges na Sorbonne e mais tarde professor e diretor


corte de Luís XIV:
da Escola Normal Superior, narra as festas na

Havia refinamentos deliciosos no esplendor desses


festejos. [...] Após ter sido servida uma refeição leve
no arvoredo do Marais ao som embaralhado das
águas, dos violinos e dos oboés, o Alceste de LuUi
foi executado no pátio de Mármore,todo ornado de
caixas de laranjeiras, de mesinhas de centro e de vasos
da fonte decorada com
de ouro. As águas jorravam
fizessem muito barulho, a queda
flores; para que não -
de água se ensurdecia nos vasos de flores. Era um dos
prazeres mais caros ao Rei, o passeio de gôndola no

20
Ver Gérard Genette; Todorov Tzvetan (dir.), Littérature et réalité. Paris, Seuil,
1982, principalmente Roland Barthes, “L’effet de réel” (1968), p. 81-90, e
Philippe Hamon,“Un discours contraint , p. 119-181.

113
A história é uma literatura contemporânea

cair da noite ou com a noite já caída,seguido por uma


21
barca que acomodava LuUi e sua trupe.

A história metódica
não é um pensamento da prova. Tem-se ali

uma exposição de fato, um encadeamento de certezas, mais do que

uma demonstração. As águas jorram da fonte, Luís XIV e sua corte


aparecem diante de nós. Caímos
numa narrativa sem origem nem
arestas. Pois o paradoxo do mundo objetivo se deve ao fato de que
é um mundo que se nega, dissimula sua presença e seus atributos
até o desaparecimento,
graças a uma virtude de autoapagamento
que deixa a realidade falar “sozinha".

A respeito do Salão de 1859, Baudelaire escreve que o positi

vismo caracteriza a pintura realista,ligada às coisas “tais como são".

De fato, o equivalente da história objetiva, no campo da arte, não

é a pintura de Courbet, mas a pintura acadêmica. Os “bombeiros

Cabanel, Gérôme, Bouguereau, Meisonier, Laurens, Detaille,

ligados a grandes instituições públicas - Academia, Escola de

Belas-Artes, Salão oferecem Vênus e tropas de cavalaria à bur¬

guesia no poder. Produtores de arte oficial, apaixonados pelos deta

lhes nos quais se exibe seu virtuosismo técnico, eles pintam como
eruditos. A exatidão se esconde até mesmo nos botões de polainas.

Ernest Lavisse, Histoire de France depuis les originesjusqua Ia Révolution Paris,


Hachette, 1905, t. VII, p. 155-156.

114
História-ciência e “micróbios literários"

Assim como os historiadores de Estado dos anos 1870 1890,

os pintores acadêmicos reencenam o passado nacional no palco da


História. Sua história-evento, na qual os reis e as eminências pardas

mandam,é uma história bajuladora na qual a imitação se sobrepôs

à inteligência. Tanto no campo artístico quanto no campo histo

riador, é 0 mesmo monopólio da legitimidade, o mesmo profissio

nalismo, a mesma preocupação com a legibilidade, o mesmo ponto


de vista frontal e universal, a mesma “estética do acabamento que

escamoteia a impressão e o esboço,fazendo desaparecer o mestre

por trás da obra, des-realizando a realidade a força de distância e

de impessoalidade. Será preciso aguardar a genialidade de Manet

não somente para tornar obsoleta essa forma de pintar, mas para
derrubar o sistema da Academia. A universidade francesa, por

sua vez, não teve um Manet.

Videntes contra mandarins

Nas últimas décadas do século XIX, os metódicos da universi

dade (Seignobos, Lavisse, Lanson, Durkheim) radicalizam os prin

cípios epistemológico-narrativos introduzidos pelos cientistas da

primeira geração, a ponto de torná-los lei de ferro. Entretanto, estes

Pierre Bourdieu,Manet Une révolutíon symbolique, Paris,Seuü; Raisons dAgir,2013.

115
A história é uma literatura contemporânea

possuíam uma prática muito mais flexível da história-ciência, que


não ignorava sua dimensão literária.

Nos prefácios aos Essais de critique etd’histoire(1858), Taine pre

coniza uma história experimental à Claude Bernard, com análise dos

fatos, classificação, abstração,formulação,com vistas a alcançar uma


“anatomia na história humana”. Isso
nao o impede de homenagear
Lessing,Scott, Carlyle, Thierry e Michelet, pioneiros da historiografia

moderna que buscaram o homem vivo dotado de paixões por trás


dos textos. Em artigo consagrado à "psicologia do Jacobino”(1881),

ele propõe uma história psicológica tanto mais próxima da litera

tura quando baseada na intuição, na imaginação, na capacidade de


introspecção, na identificação do historiador
a seu objeto, na técnica

do monólogo interior.^=> Quanto a Renan,filólogo, ele escreve a Vida

de Jesus(1863) após ter viajado à Palestina, pelos caminhos percor-

ridos pelo Nazareno, diante dos horizontes por ele contemplados.

Da mesma forma que a introspecção e a psicologia, a imaginação


figura entre os instrumentos do biógrafo: para reavivar as almas do

passado,“deve-se autorizar um pouco de adivinhação e de conjetura”.

Não somente esses cientistas de primeira geração vivem ainda


nos tempos das belas-letras - arte da pena, talento do homem de

letras, recusa da especialização, ensaísmo, viagens de erudição,

Patrizia Lombardo,“Hippolyte Taine Between Art and Science”, Vale French


Studies, n. 77, p. 117-133, 1990; e Nathalie Richard, Hippolyte Taine. Histoire.
psychoíogie, littérature, Paris, Classiques Garnier, 2013, p. 140 sq. e p. 245 sq.’

116
História-ciência e “micróbios literários

êxitos mundanos mas são perfeitamente conscientes de que a

história pertence à literatura. Contrariamente, a geração dos metó

dicos recusa qualquer relação de parentesco: essa ciência pura que


é a história correria o risco de se contaminar. Nas últimas décadas

do século XIX, a história rompe com a literatura. Mais exatamente,

ela se extrai da classe dos textos "literários .

Esse divórcio tem várias causas. A primeira é uma situação

de rivalidade aguçada pelo emprego do modo objetivo. A batalha da


verdade dos anos 1830 continua. Seria a história uma ciência social

melhor do que o naturalismo? Quem proferira o discurso mais

pertinente acerca da realidade? O romance é a forma que adotam

a pesquisa social e a história contemporânea em uma época em que


os historiadores de profissão, contrariamente a Zola, não se inte-

ressam pelas profissões, os salários, os orçamentos, a hierarquia


social, os modos de vida, o nascimento,a morte, a doença, o sexo,

o amor. nem a qualquer um dos temas que seduzirão a Escola dos


Anais e a história das mentalidades no século XX. Nesse contexto,

o naturalismo teve um papel precursor, assim como o romance de

Scott em sua época. Enquanto as pessoas comuns interessam os


escritores desde os anos 1830 e os sociólogos de Chicago desde os

anos 1920, será preciso aguardar o trabalho de Georges Lefebvre

no período entre-guerras e, sobretudo, a “nova história” dos anos

1970, para que os historiadores tenham a ideia de pesquisar os

humildes, os anônimos, os silenciosos, as coisas do quotidiano.

117
A história é uma literatura contemporânea

As transformações institucionais constituem outro fator

de ruptura. Com a autonomizaçâo paralela da universidade e do

campo literário, duas figuras se cristalizam: o “erudito” (Claude

Bernard, Pasteur, Lavisse), artífice da verdade e da glória nacional,

notável coberto de honras; o “artista” (Baudelaire, Verlaine, Van

Gogh), deparado com a sociedade burguesa e com a incompreen


24
são de seus contemporâneos, Ora, essas dinâmicas entram em

conflito. O poeta leva uma vida boêmia, exibe seu desprezo pelas

convenções,sua aversão pelo quotidiano prosaico (e, portanto, pelo

naturalismo). O utilitarismo da ciência e o imperativo documen


tal contrariam sua sede de liberdade. Vidente contra mandarim.

Gemo incompreendido contra instituição. Obra-prima imortal


contra descobertas perecíveis. Paixão crítica contra meticulosidade.

Gratuidade da arte contra ideologia do progresso.

Representantes de uma profissão, os historiadores não mais

se reconhecem nos artistas, poetas e outros "homens de letras".

As provocações da vanguarda perturbam sua busca pela respeita

bilidade científica. A disciplina coletiva não é compatível com as


incursões do eu e as fugas do imaginário. A moral da humildade

não pode tolerar as pretensões do autor. Ao confessar, no início

do seu estudo Des réputations littéraires (1893), que buscava a


glória póstuma, o diretor da Faculdade de Letras de Bordeaux se

Ver Christophe Charle, Naissanceáes "intellectuels", 1880-1900, Paris, Minuit.


1990, p. 24 sq.

118
História-ciênda e “'micróbios literários

ridicularizou: ele esqueceu que o ofício de crítico e de historiador


25
“só é válido mediante o apagamento de sua pessoa .

Sob Luís XIV, a maioria dos homens de letras frequentava

meios acadêmicos ou eram financiados pelo Estado. No século

XIX, esse é o destino dos universitários e mais precisamente dos

escritores. A história vive subjugada: ela depende da nação, da

faculdade, da corporação, dos arquivos. A literatura, por sua vez,


libertou-se. Nesse sistema muito polarizado, Zola ocupou um lugar
os artistas malditos
central, porém ambíguo. Ele se associará com
ou com os eruditos da República? Ficaria, melhor, do lado da espe

cialização, do êxito comercial, da Legião de Honra; mas as ciências


e a história não aceitam mais os homens da escrita.

Conferir ao historiador o monopólio do real, da seriedade, da

ciência, da verdade, e deixar o escritor reinar na literatura, na arte,

na imaginação, na subjetividade, significa condenar o projeto natura¬


lista. Esse intervalo se torna suspeito, condenado ao fracasso. E nesse
da Sorbonne e futuro dire-
contexto que Gustave Lanson, professor

tor da Escola Normal Superior(em 1919,após Lavisse), inventa uma

ciência da literatura, aplicando aos textos os métodos da erudição,

da filologia e da história. Os críticos “Uterários”, Brunetière, Faguet,


Nisard, são colocados do lado da literatura, ou seja, da não ciência.

Gustave Lanson, 'Eimmortalité littéraire” (1894),in Hommes et livres. Études


morales et littéraires, Genève, Slatkine, 1979(1895), p. 295-315.

119
A história é uma literatura contemporânea

As implicações desse esclarecimento institucional explicam a

violência antizoliana demonstrada no artigo de Lanson *La littéra-

ture et la Science”(1892) e que ultrapassa amplamente o tom da


discussão erudita. Para ele, os naturalistas oferecem a forma mais

indignada e mais degradada da literatura científica”; eles se com

portam como os charlatões nos cafés-concertos do interior, “entre

uma canção boba e porcos eruditos”. O projeto zoliano é o nó que

se deve desatar para então separar a ciência da arte, a objetividade

da escrita. É preciso que cada um passe a ocupar o seu território.

O possível, o desconhecido, o indemonstrável, o irreal, constituem

a matéria da literatura; os objetos da ciência não poderíam fornecer

matéria para a invenção poética, romanesca ou oratória. Para se

caminhar em terreno seguro e fundar uma ciência do literário, é

necessário dotar-se de um método. E Lanson festeja: “A história


hoje, rompeu com a literatura.”^®

Que a literatura perca qualquer esperança de dizer a verdade:

tal é o papel da ciência e de seus novos recrutas - história, histó

ria literária, sociologia - no seio da universidade. O erudito nao

faz literatura; ele só pode lê-la e comentá-la. Esse adeus à criação

é o preço a pagar para entrar no templo do saber e conquistar a

Gustave Lanson,“La littérature et la Science”(1892),in Hotnmes et livres., op.


cit., p. 317-364. Ver Antoine Compagnon,La Troisième République des Lettres
de Flaubert à Proust, Paris, Seuil, 1983, p. 35-51.

120
História-ciência e “micróbios literários

autonomia profissional no seio do sistema de disciplinas especia

lizadas. A história-ciência passa a se opor à literatura-arte.

Dois milênios esquecidos

Eruditos e escritores: é o novo traçado da fronteira. Mas essa


da literatura, do
linha perpassa a própria história. A separação

romance, da poesia, do universo das letras, é redobrada por um


modernos)
desprezo pelos historiadores; eles mesmos(antigos ou

“literários” demais. A história que praticam é, ao mesmo tempo,o

contrário e o passado da ciência histórica: dramatização, anedotas,

pitoresco, cor local, retórica, subjetividade, ecletismo, adivinhação,


,o termo “literário”
paixões contemporâneas. No seio da disciplina
irrita com os elogios
se torna depreciativo. Em 1855, Michelet se
'sob a qual acre-
de escritor ou poeta, pois essa é a denominação
ditou-se até então assolar o historiador Fustel de Coulanges se
admirável Cité
sente ferido quando seu “talento” de escritor e seu
com a ciência enobrece, a
antique” são celebrados.^® O parentesco

vizinhança com a literatura degrada.

Roland Barthes, Michelet, Paris,


27
Jules Michelet, carta a Taine (1855), citado em
Seuil, “Points”, 1988(1954), p. 76.
28
François Hartog. Le XIX‘siècle et Vhistoire. Le cas Fustel de Coulanges. Pans, Seuil,
"Points histoire”, 2001, p. 156-157.

121
A história é uma literatura contemporânea

Para Monod, Langlois e Seignobos, a história é um gênero lite


rário até o Romantismo. É somente a partir dos anos 1860 que entra

na modernidade ao se tornar ciência. Os metódicos escolhem alguns

predecessores a partir do Renascimento (jesuítas, beneditinos, eru

ditos alemães): eles encarnam uma longa tentativa, a pré-história

da história, os degraus que se deve subir para chegar à Ciência.

Os outros, entregues aos caprichos da imaginação,foram "Hteratos


antes de serem eruditos”.^^ Exeunt Heródoto e os gregos. Tácito e os

latinos, os cronistas medievais, os memorialistas da idade clássica,

os Guichardin, os Bayle, os Voltaire, os liberais, os românticos,todos

esses autodidatas,cheios de charme e de paixão. Vítimas colaterais

da revolução metódica, eles passam a pertencer à "literatura”.


Voltaire? Um filósofo. Gibbon? Um escritor do século das

Luzes. Michelet? Um poeta dotado de um temperamento forte.

Até mesmo Monod,que conserva seus escritos íntimos e consagra

a ele um curso no CoUège de France, se arrepende que seus livros


30
ignorem “a precisão cientifica, o método”. Michelet tem o mérito

de ter ressuscitado o passado, mas nada mais tem de um estudioso

de um erudito, de um devorador de arquivos, de um inventor de

29
Gabriel Monod,“Du progrès des études historiques en France depuis le XVP
siède”, Revue Historique, 1.1, p. 5-38,jan.-juin. 1876, p. 29-30.
30
Gabriel Monod,Les Maítres de Ihistoire. Renan, Taine,
Michelet, Paris, Calmann-Lévy
1894, p. 181. Ver Yann Potin,“Les fantômes de Gabriel Monod. Papiers et paroles
de Jules Michelet,érudit et prophète”, Revue Historique, n. 664,p.803-836 2012

122
História-ciência e "micróbios literários

conceitos - isso até que Lucien Febvre fulmine os pobres coita

dos” da geração de 1870-1890 que o haviam relegado ao posto de

“literário”.^^ É assim que a história-método encolhe e desvirtua os

historiadores que pensaram diferente dela; eles se tornam escrito

res talentosos”, artistas essencialmente preocupados com o estilo,

com a cor, movidos pelo entusiasmo. Aquele que não busca extrair
fatos está condenado a errar nas neblinas da imaginação. A norma

rankeana apagou a complexidade de Ranke.


homem de letras não
A liberdade de criação da qual usufruía

consegue sobreviver à especialização das disciplinas e às exigências

da carreira. A esse respeito, a morte de Macaulay em 1859,saudado


como um gênio quase universal, um poeta um orador, um crítico.

um historiador, um biógrafo”,marcou o fim de uma epoca, muito


início dos anos
antes do desaparecimento de Renan e de Taine no

1890. A partir de então, raros são os historiadores que ousam pra

ticar outro gênero que não a história. Henry Adams, acadêmico e

futuro presidente da American Histórica!Association, publica dois

romances nos anos 1880,Democracia e Esther, mas sem reivindicar

sua autoria. Gaston Roupnel, apaixonado pela vida da Borgonha,


historiador do meio rural, mas
é ao mesmo tempo romancista e
tem uma carreira sem destaque; Febvre é o único que recusa ver

Lucien Febvre, Michelet et la Renaissance, Paris, Flammarion, 1992, p. 53.


,essais
Amédée Pichot, preâmbulo de Macaulay,in CEuvres diversas. Biographies
historiques, critiques et littéraires. Première série, Paris. Hachette, 1860, p. IX.

123
A história é uma literatura contemporânea

33
nele “um amador algo fantasioso”, Ainda mais raros são os eru-

ditos que tentam conciliar, numa mesma pesquisa, arte e ciência.


Os devaneios-caminhadas de Élisée Reclus, escritos em primeira

pessoa,sem bibliografia, a fim de instruir e de sensibilizar, são “ao


34
mesmo tempo ciência e poesia”, Mas ele é desdenhado como um

geógrafo excêntrico, mais literário ’ do que “científico”, apesar de


sua Nova Geografia universal em dezenove volumes. É verdade que

esse burguês protestante ousa dizer que é anarquista, feminista


e vegetariano.

A vocação literária é tida como uma prova de diletantismo,


falta de seriedade, pretensão risível. O historiador não poderia ser

um escritor; sua cultura, a partir de então, é a do compilador ou do

comentador. Essa assombração da escrita, essa fobia do literário que

poderia manchar a história, revela a força do paradigma científico.


Dois séculos após as letras e as ciências terem sido separadas, a

história mudou de campo. Ela se extraiu da literatura, da poesia,


da epopeia, da eloquência, do romance, que tanto lhe ofereceram

Esse repúdio, como uma vergonha das origens, desfere o golpe fatal
no sistema das belas-letras.

33
Lucien Febvre,“Les morts de l’histoire vivante: Gaston Roupnel,Annales ESC
n.4,p. 479-481, 1947.
Élisée Reclus, carta ao seu editor, citada em Histoire d’une montagne, Gollion
Infolio, 2011(1880), p. 18-19.

124
História-ciência e '‘micróbios literários”

Daí a alternativa diante da qual se confrontaram os historiado

res. Seja fazer literatura e alcançar o grande público, mas sua escrita,

pré-científica ou até mesmo anticientífica, fecha-lhes as portas da


mas
universidade; seja fazer história e ter o privilégio da verdade,

submetendo-se às regras de um meio profissional. Há duas categorias

de historiadores, observa um jovem poeta às vésperas da Primeira


Guerra Mundial: a escola universitária, de Seignobos a Aulard, que

fundou a história-ciência; a escola acadêmica, que visa a Academia

francesa especializando-se em escritos de batalhas e retratos de


monarcas,35 Infelizmente, é preciso escolher entre a verdade sólida

e a potência de vida, entre a seriedade e a evocação.


nas classificações nor-
A ruptura dos anos 1880 se repercute

mativas. Tanto para a enciclopédia Larousse do século XX como

para o manual de literatura Lagarde e Uicharã, a literatura inclui

as histórias antigas, medievais e românticas, até Renan e Taine,

depois deles, a história não aparece mais.

Nascimento do não texto

os metódicos a
Mas não é porque denunciam a literatura que

ela escapam. Primeiramente, como vimos, eles compartilham um

conjunto de técnicas com os escritores realistas: o modo objetivo.

Henri Franck, “Henri Houssaye”, in La danse devant Varche, Paris, NRF, 1912,
p. 219-222.

125
A história é uma literatura contemporânea

Ora, os efeitos de real mergulham o leitor em uma narrativa tea-

tralizada, narrativa-espetáculo que leva ao coração da "História”.

O verismo hialino, longe de garantir a objetividade, a fragiliza,


fazendo da história uma narrativa óbvia, uma evidência na qual o
eu do erudito é tão mais ativo quanto conscientemente invisível.

Não surpreende, portanto, que o rancor antiliterário dos metódi

cos caminhe pari passu com uma escrita dramatizada e partidária.

Nesse sentido, eles praticam uma história fortemente "enliteratu-

rizada : L invasion àans le département de VAisne (1872) do j


j ovem

Lavisse é uma epopeia com traços da história-tragédia; os manuais


de história republicanos, com seus homens ilustres e suas lições de
moral, pertencem ao gênero da história-eloquência; o nacionalismo

exacerbado de Monod e Lavisse ressuscita a história-panegírica,

E principalmente: a história universitária elabora uma poética


do saber. Introdução, nos
de majestade, citação, nota de rodapé
e bibliografia constituem “procedimentos literários por meio dos

quais a história “se esquiva da literatura, confere a si mesma um

estatuto de ciência e o significa”.^^ Essa escrita funciona,


portanto,
como um antídoto: o historiador é ainda
mais historiador(ou seja,
cientifico) à medida que elimina as metáforas, se desvencilha “dos

falsos brilhantes e das flores de papel”, cuida para nunca se arrumar

36
Jacques Rancière, Les noms de Vhistoire..., op. cit., p. 21.

126
História-ciência e "micróbios literários

demais”.^^ À imagem de Pasteur, ele destrói os micróbios literários


38
que se alojam nas introduções, nas transições e nas conclusões.

A escrita é um fator parasita que se deve reduzir ao mínimo, pois

não é possível livrar-se dele completamente. Ela é um ornamento

de mau gosto, a crinolina da história, quase uma doença vexatória.

Como é preciso bem veicular uma proposição, os manuais e

textos teóricos abordam a questão da escrita, mas sempre ao final,

depois que todo o resto já foi tratado. Langlois e Seignobos só lhe

dão atenção nas últimas páginas de sua Introdução. Até mesmo em

Monod,sensível à questão dado o seu fervor micheletiano, a escrita

é o que vem por último. Quando se faz história, é preciso primeira¬

mente reunir materiais, classificá-los, depois criticar as fontes e os

fatos e sintetizar o conjunto; por fim vem a exposição histórica ,

ou seja, a apresentação dos resultados. Essa etapa, relegada ao

“talento pessoal” do historiador,introduz uma deformação emba-


à realidade um “elemento
raçosa, porém inevitável, ao acrescentar a
acabamento do trabalho eru-
subjetivo e individual”.^® A escrita é o

dito, o aditivo ao qual é preciso resignar-se. Enquanto toque final.

Charles-Victor Langlois; Charles Seignobos,Intwduction aux études historiques.


Paris, Kimé,1992(1898), p. 252.
Charles-Victor Langlois, “L'histoire au XIX<^ siède”, in Questions d'histoire et
denseignement, Paris. Hachette, 1902, p. 229.
Gabriel Monod,"Histoire". in De la méthode dans les Sciences. Paris, Alcan,1909,
p. 360.

127
A história é uma literatura contemporânea

ela cabe ao talento” do historiador, mas permanece submetida às

regras da proôssão, que mandam controlá-la de perto.

De fato, essas prescrições repousam sobre uma divisão social:

a hierarquia universitária exerce todo o seu peso sobre as práticas

da escrita. Em 1913, Lavisse, com 71 anos, personagem oficial da


República, repleto de honrarias, é o “chefe” da história francesa.

Ele exerce uma verdadeira censura sobre seus colaboradores da

Histoire de France contemporaine, que organiza na editora Hachette.

Rasurando as provas de La Révolution de Philippe Sagnac, primeiro


volume da coleção, ele tempera o verbo generoso demais, refreia

o ímpeto da convicção, faz prevalecer seu ponto de vista liberal e

burguês, dá destaque ao consenso nacional.-^ Mas ninguém censura


Lavisse quando este elogia os feitos de Sully, e ainda menos quando
glorifica a República junto dos estudantes.

No mundo acadêmico, a escrita reflete a divisão dos poderes.


Aqueles que fixam e transgridem as regras estão no auge da glória.

Eles dão livre curso a suas penas em um estilo amplo e agradável


Eles têm o direito de indicar suas preferências, de exaltar a França

nos manuais ou em ensaios que marcam o apogeu de uma carreira

Seu “eu” tem permissão de se exercer nos prefácios, nas autobio

grafias e, mais tarde, nas “ego-histórias”, introduzidas por Pierre

40
Alice Gérard, “Philippe Sagnac revu et corrige par Ernest Lavisse: un modèle
de censure discrète”, Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, v. 48, n. 4,
p. 123-159, oct.-déc. 2001.

128
História-ciência e "micróbios literários

Nora no final dos anos 1980. Para os demais, ou seja, o grosso da

universidade, a escrita é a roupa que se deve vestir para sair - entre

colegas. Ambígua necessidade das palavras: não se pode, razoavel

mente, aparecer nu em público, mas seria inconveniente chamar


arru-
a atenção por causa de um traje barroco ou uma aparência
mada demais”. A escrita deve ser o mais discreta possível, porque

ela é a embalagem de algo infinitamente mais precioso do que ela.


'as fórmulas da
a realidade “objetiva”. Como explica Seignobos,

eloquência não são ornamentos inofensivos; elas escondem a reali


41
dade; elas desviam a atenção dos objetos para dirigi-la às formas .

A exterioridade da linguagem é um dos princípios da história

metódica. Em literatura, diz Lanson, a “forma é mais importante

do que o “fundo”. Nas ciências é o contrário: a verdade preexiste à

forma, sendo-lhe superior. Assim, “se a verdade pode ser apreen

dida em si-mesma, a forma não passa de uma roupagem emba

raçosa; a verdade é mais bela em sua nudez Para aceder a essa


moldar a um estilo
verdade, para ser fiel aos “fatos”, é preciso se

assepsiado e um plano complexo, proteções contra a subjetividade,


A escrita se tornou o tormento da história, que deve efetuar sobre
. Escrever, mas o
si-mesma um esforço permanente de coerção

Charles Seignobos, Vhistoiredanslenseignement secondaire, Paris, Armand Colin,


1906, p. 38-39.
Gustave Lanson,“La Httérature et la Science ,op. cit., p. 346.

129
A história é uma literatura contemporânea

menos possível. Utilizar palavras, mas silenciosas;


; um plano, mas
mecânico; tornar-se insignificante, da cor da parede,
O advento dos metódicos é
e esse momento um tanto absurdo
no qual a história acreditou
que pudesse expulsar a literatura
de si
SI mesma, como algo mórbido -
emancipação” da qual saiu
mutilada, órfã e
^ empobrecida. A codificação
a histona-ciència por uma comunidade profissional constituiu
uma revolução, mas teve um
preço. A teoria do estilo-roupagem,
que afirma o caráter
ao mesmo tempo utilitário e inessencial da
escrita, invadiu as
publicações eruditas.
O desprezo pelo literário,
a preferência pelo “conteúdo , o
elogio do neutro e do modesto,
a assombração do “brilhant
e se cristalizaram. em um não texto,
cuja função é abjurar
sem cessar sua literalidade. Ao abandonar
o sistema das belas-letras nara
P J^^^tar-se ao campo da ciência, a
história abandonou a ideia dp nno oi-, *. ^ -
eia também era uma forma.
Portanto, ha um elo entre
ajuste do método e a vitória do
nao texto, entre o apetite da cientificidad
e e o repúdio à literatura,
como se a nova dignidade da hiQfóví-, ^ ● ● , ,
tona exigisse uma tábula rasa do
passado. A partir desse momento,
o não texto é garantia de cien-
tificidade. Ser objetivo significa não escrever.
A revolução não metódica
não impedirá a obra de alguns. Marc
Bloch escreverá A estranha derrota (1940), ao mesmo tempo testemu

nho,introspecção e análise do desmoronamento francês. No século

XX, haverá também Johan Huizinga, C.L.R. James, Mona Ozouf,

130
História-ciência e “micróbios Hterários”

Michelle Perrot, Georges Duby, Saul Friedlánder. Historiadores de

profissão que escreverão, às margens de sua pesquisa, romances ou

autobiografias. Mas não haverá muita gente em defesa da ideia de que

a história possa ser - enquanto ciência social- uma criação literária.

O adeus à literatura permitiu que a história conquistasse sua


autonomia intelectual e institucional. Funcionou, também, como
as letras tudo aquilo
um purgante. Pois o historiador deixa para

que passou a embaraçá-lo: o engajamento do eu, os desafios da

investigação, as incertezas do saber, as potencialidades da forma,

a emoção, o prazer do leitor. Essa neutralidade mais ou menos

forçada se tornará, ao longo do tempo, tradição, obrigação pro

fissional, modéstia mal compreendida, autocensura, austeridade

rabugenta. Na universidade, instauram-se mecanismos para jus-


tificar uma total indiferença à escrita, ao texto, à construção, ao

ritmo, à língua e, claro, ao leitor, porque esse desdém é uma prova


de cientificidade. Só há uma narração lícita, e ela se nega. é o modo
historiador
objetivo. Todo um conjunto de regras tácitas engajam

(e seus novos colegas, o historiador da literatura e o sociólogo)


melhor, a
a abafar sua criatividade, a não produzir um texto, ou

produzir um não texto revestido de uma não escrita.

131
A história é uma literatura contemporânea

As ciências sociais e a “vida

Diante da geração dos Langlois e dos Lanson, que afirma que


somente a história tem acesso à verdade dos homens,a sociologia

emergente e a jovem literatura reagem com vigor. Mais duro, o

conflito instala uma intimidade triangular.

A sociologia contra a história. Ainda que se reivindique "erudi

ção ou ciência pura , a história ainda mantém laços com a "ter


ceira cultura . Monod entra para a Academia das ciências morais e

políticas em 1897; no CoUège de France, ele reanima o espírito da

cátedra de história e de moral ocupada por Daunou e Michelet.

Mas a sociologia fundada por Durkheim nos anos 1890,herdeira de

uma tradição tornada secular, é severa quanto à história. No início

do século XX, respondendo a uma obra de Signobos, Método his


tórico e ciência social, François Simiand, aluno de Durkheim,inter

põe um processo de cientificidade aos historiadores. Eles ficam

de fora da ciência porque veneram três “ídolos”: o fato político ou

militar, o indivíduo ou o caso único e a origem ou a faixa crono

lógica. As ciências sociais, por sua vez, privilegiam o estudo das

instituições, das regularidades, dos fenômenos coletivos, a fim de

estabelecer leis. Em uma só palavra, não se trata de estudar pela

centésima vez “o caso do colar”, mas o estado da agricultura e da

132
História-ciênda e “micróbios literários"

indústria na época de Turgot.^^ Os durkheimianos empurram a

história para o lado das letras, ou seja, da não ciência: a sociologia

despreza a história, assim como a história despreza a literatura.

A literatura contra a história e a sociologia. As letras são risonhas

e doces; as ciências são áridas. No século XIX, esse clichê resulta

no processo feito à “ciência moderna”,acusada de drenar a vida, de

desencantar o mundo,de querer dissecar com bisturi as belezas da

natureza e as cintilações do ser. A crítica,formulada pelos escrito


res católicos dos anos 1800 contra os enciclopedistas, é retomada

por Nietzsche em "Sobre a utilidade e a desvantagem da história


dos metódicos
para a vida” (1874). À Belle Époque, as pretensões
e dos durkheimianos suscitam a ira dos escritores conservadores.

A exemplo de Agathon, Paul Bourget e Henry Bordeaux, Péguy


recrimina aos eruditos da nova Sorbonne (republicana)seu racio-

nalismo,seu espirito crítico, seu intelectualismo repleto de jargões,


destrutores da sensibilidade e da vida interior. Enquanto Péguy

abate os historiadores fazedores de fichas em Clio e Langlois tel

qubn le parle” (1912), Proust constrói Em busca do tempo perdido


contra Sainte-Beuve e Lanson. Os escritores não precisam das ciên

cias sociais para contar a vida, para dizer a verdade dos homens.
Em Buddenbrook: decadência de uma família (1901), Thomas Mann

afirma ter encontrado sozinho,“sem nenhuma leitura, por intuição

François Simiand,“Méthode historique et Science sociale"(1903),incluído em


Annáles ESC, 15'-’ année, n. 1, p- 83-119,1960.

133
A história é uma literatura contemporânea

direta”, a ideia de que o capitalismo implicava a ética protestante;

ele reconheceu, a posteriori, sua ideia em Weber e Sombart."*^ Paul

Bourget, que conhece grande sucesso, inscreve seu livro Letape

(1902) na esteira de uma “sociologia” de Balzac e de Le Play por

tadora de verdades científicas”: febre igualitarista nascida em

1789, individualismo sem amarras, morte do espírito de família,


desenraizamento dos homens.

A sociologia contra a literatura. Desde o nascimento, a sociolo

gia tem que se distinguir da literatura, porque esta alimenta, há

décadas, um projeto idêntico ao seu: compreender a sociedade.

Essa concorrência epistemológica é sobreposta por uma divisão

de natureza política. Impressionismo e ideografia, a literatura

está mais para “velha França”, enquanto a sociologia, científica e

republicana, nascida das perturbações do século XIX, pertence à


modernidade. Esse é o pano de fundo sobre o qual se desenrola a

luta dos durkheimianos contra Tarde e Bourget, ao mesmo tempo

letrados, romancistas e sociólogos. A exemplo dos historiadores

“literatos” e dos críticos “que escrevem' os escritores “sociólo-

gos” são excluídos do campo disciplinar. A sociologia não é ama


dorismo. A literatura interessa o sociólogo na medida em que ofe

rece exemplos a serem desenvolvidos e tipos a serem analisados.

É assim que Fausto, Werther e René ilustram O suicídio (1897) e

44
Citado em Wolf Lepenies, Les Trois Cultures..., op. cit., p. 296.

134
História-ciência e “micróbios literários'

que Saint-Simon é um dos principais informantes de Norbert Elias

em A sociedade de corte (1969).

Com a querela de durkheiraianos e historiadores, com a revolta

de Péguy contra os chefes da universidade republicana, com a ins-

titucionalização da sociologia, instala-se tim sistema bem fechado,

no qual todos são estrangeiros a todos, em que cada um se define

em oposição aos outros: a sociologia não é a história, que não e


sistema das
a literatura, que não é a sociologia. Ao abandonar o
belas-letras, a história adere à ciência nos anos 1880 e às ciências

sociais por volta de 1930,com os Anais. Mas no momento em que


a universidade exclui a escrita da sua atualização metodológica, o

romance está em plena revolução.

135
1
.AIÜJJJJ.

4,

O retorníD) d© recalcad© literáfi©

Um caso é julgado: um historiador faz ciência, e se insiste em

●querer escrever (movido por um “talento pessoal qualquer), seu

trabalho perde em cientificidade. Os vasos comunicam; quanto


rnais a história é literária, menos é científica, e vice-versa. Em 1931,

diante de seus c olegas da. American Historical Association, Carl

Becker não hesita em invocar os manes “bardos, contadores e tro

vadores”, ancestrais dos historiadores, mas é para romper melhor

com o cientificismo do século XIX”

Na França do pós-guerra, a segunda geração dos Anais - esta

tísticas, forças coletivas, conjuntura, longa duração - integrou a


crítica dos durkheimianos. A ironia é que ela pratica uma história

profundamente literária. As pesquisas de inspiração labroussiana,


“social” e o “mental”, respon-
que desenvolvem o “econômico”, o

dem aos mesmos automatismos que a dispositio da antiga retórica.


um afresco grandioso, com
Em O Mediterrâneo (1949), Braudel faz
heroína (o mar) e metáforas que
uma intriga, ações, encenação, uma
a descrevem como um faroeste, uma ‘máquina de coletar m etais
uma
preciosos , uma Velha rainha” destronada pelo Atlântico,

Carl Becker, “Everyman His Own Historian”, American Historical Review, v. 37,
n.2,p. 221-236,1931.
A história é uma literatura contemporânea

pessoa que “fracassou no seu papel de distribuidora de bens”. Em que

medida essas imagens se isentam de fornecer provas? Que significam

fórmulas tais como a “eterna história” e a “física da história?”^

Aqui, a literalidade do historiador é menos confessável na

medida em que mascara, por seu brilho, as fraquezas da demons


tração. A história-poesia e a história-retórica se distanciam, efeti

vamente, das ciências sociais. Essa impossibilidade de se assumir

como escritor transformou Braudel, o mais romancista dos histo

riadores do século XX,em emblema da história-dênda.

A lógica de Langlois e Seignobos manteve-se, portanto, na

escola dos Anais: a ciência e a literatura se excluem mutuamente,e

esta última trabalha contra o saber. É aceitável, a rigor, que a “pena”

se dispense de obedecer ao método,desde que confira estofo ao pas

sado e prazer ao leitor. A partir de então, historiadores-escritores

experimentam o sentimento de cometer uma transgressão, ou até


mesmo um crime de lesa-dentificidade. Foi necessária a coragem

de Georges Duby, cuja história se compõe de cenas e cenários,

de eventos e introspecções, de vida e paixão, para alegrar-se que

Guilherme le Maréchàl(1984)possa ser lido “como um romance de

^ Paul-André Rosental,“Métaphore et stratégie épistémologique: La Méditerranée


de Fernand Braudel”, in Daniel Milo; Alain Boureau {áir.), Alter histoire. Essais
d'histoire expérimentale, Paris, Les Belles Lettres, 1991, p. 109-126.

138
o retorno do recalcado literário

capa e espada”. Mas ele tem uma sensação de volta ao passado:


“Voltava diretamente à narrativa.”^

O “escândalo” narrativista

“Revival of narrative”,“O ressurgimento da narrativa”: é o título

do artigo que o historiador britânico Lawrence Stone publica em Past

and Present, em 1979.^* O esgotamento do paradigma eco-demográ

fico-quantitativista, explica Stone, seja encarnado pelo marxismo,

pelos Anais ou pela cliometria americana,leva o historiador a redes


a investir
cobrir a narração, sua função imemorial de story-teller, e
mentalidades, as
em novos territórios: os reprovados, o íntimo, as

emoções,a família, o sexo, a morte.

Portanto, o reinado da história-ciência teria sido interrompido


anos 1980, ilustrado
pelo retorno da narrativa e da biografia nos

pelo trabalho de Georges Duby, de Natalie Zemon Davis ou de


levar a sério as denegações
Robert Darnton. Tal análise peca ao

dos historiadores dos anos 1870-1970,como se, ainda que fossem

metódicos ou quantitativos, tivessem parado de contar a história em

algum momento. A partir de então, cai-se outra vez na dicotomia

Odile Jacob, 1991, p. 192-193.


^ Georges Duby, Vhistoire continue, Paris
“Ressurgimento da narrativa:.: reHexões sobre uma nova velha história”, tradução
na França logo no ano
publicada pela Reuista âe História, Unicamp,em 1991,e
seguinte pela revista Le Débat.(N.T.).

139
A história é uma literatura contemporânea

científica/literária, segundo o princípio já clássico dos vasos comu

nicantes. A ciência havia banido a “narrativa”; a arte de contar


volta a se
expressar, ao mesmo tempo que a história estatística e

demográfica declina; a descrição substitui a análise; o pós-impres-

sionismo artístico rompe com a obsessão pelas estruturas.

Isso porque a análise de Stone não exclui quase nada das déca¬

das de reflexão acerca da escrita da história. Ao subscrever-se à

ideia de que a história é um “meio {médium)narrativo”, pensadores

como GaUie, Danto, Kracauer, Certeau, Veyne, reunidos nos anos


1980-1990 por Ricceur e Rancière,
mostraram que a inteligência do
passado tem uma necessidade específica de intriga, de encenação,
de descrições, de retratos, de figuras de estilo. Como explica Arthur

Danto em AnalyticalPhÜosophy ofHistory (1965),só se pode expli-


car
um evento no contexto de uma história {story), ou seja, ligan-
do-o a outros eventos. A ideia será retomada por Veyne em Como se
escreve a história (1971) e por Ricceur em Tempo e narrativa (1983)
O conhecimento histórico deriva da
compreensão narrativa”,essa

capacidade que temos de contar ou acompanhar uma história- mas


esse “caráter ultimamente narrativo da história' não se confunde

com a defesa da história-narrativa tradicional.^ De


fato, quer seja
escrita por Macaulay, Seignobos, Braudel ou Guinzburg, a história

^ Siegfried Kracauer, Vhistoire. Des avant-dernières choses, Paris, Stock 2006


(1969), p. 100.
Paul Ricceur, Temps etrécit, Paris, Seuil, “Points
Essais”, 1983,v. 1,p.165 e p. 255 sq

140
o retorno do recalcado literário

tem sempre a mesma estrutura: “Aconteceu uma série de eventos

a tal ou tal sujeito”, esse sujeito sendo um moleiro, Guilherme de

Orange, a França ou o Mediterrâneod

Daí a conclusão, que soa como um desafio: sim, a história se


escreve. Sim,fazer história é contar uma história, uma narrativa

de eventos verdadeiros. Sim, há uma literariedade da história, e o

historiador, esse “poeta do detalhe”, efetua uma “encenação literá

ria”.® Tínhamos esquecido disso tudo desde os anos 1870!

Hoje, o narrativismo perdeu um pouco de seu caráter icono-

clasta: seus argumentos parecem óbvios para todos. Mas é tam

bém porque se deixa levar pelo tedioso vai e vem entre ciência e

literatura. Para Paul Veyne, a profunda narratividade da história

está acompanhada de sua ausência de método: se literária, ela é

não científica. Inversamente, para Labrousse, a história pode ser

declinada em números, séries, ciclos e médias: se científica, ela é


'a história se escreve” é uma
não literária. A partir daí, afirmar que
am
forma de polemizar, de reduzir os colegas à insignificância. Sej
consideram científicos, mas
um pouco mais modestos! Vocês se

são literatos.” Se essa pseudodicotomia tivesse sido submetida aos


historiadores liberais e românticos, a Thierry, a Carlyle, a Michelet,

eles teriam dado de ombros.

’ Jacques Rancière, Les noms de l histoire..., op. cit., p. 9.


Michel de Certeau, Lecriture de Vhistoire, Paris, Gallimard,“Folio histoire”, 1975,
p. 111 ep. 119.

141
A história é uma literatura contemporânea

No entanto, o que não é nada óbvio é avaliar as escolhas de

literariedade que os historiadores fazem. Pois finalmente, se por

um lado é bem verdade que toda história é narrativa, tampouco

resta dúvida de que Renan e Duby optaram por uma forma mais
“literária” que os demais.

A “virada retórica'

Perigo da posição narrativista: sua indulgência para com o ceti¬


cismo
. Veyne dá a entender que não existe "diferença fundamental
entre história e ficção,^ e Ricceur evoca a “referência cruzada” que

liga uma à outra. Ora, suas obras historiográficas, publicadas nos

anos 1970 e 1980,são contemporâneas da virada linguística, cor-


rente de pensamento segundo a qual, sendo que tudo é linguagem,
a história não passaria de uma construção discursiva entre outras.

Um de seus principais teóricos, Hayden White,professor de litera¬


tura comparada, desenvolve emMeta-história(1973)uma tese estimu

lante: a história combina uma linguagem tropológica(metáfora, meto-

nímia,sinédoque,ironia) e três modos de expHcaçâo: o estabelecimento

da intriga (romanesca, trágica, cômica ou satírica); a argumentação

(formista, mecanicista, organicista ou contextualista), e a implicação

ideológica(anarquismo,radicalismo,conservadorismo ou liberalismo).

^ “Entretien avec Paul Veyne”, VHomme,n. 175-176, p. 233-249,juil.-sept. 2005.

142
o retorno do recalcado literário

A história é, portanto,regida por escolhas estéticas,lógicas, políticas,

em todos os casos pré-cognitivos, que formam a matriz do discurso, o


substrato “meta-histórico” da narrativa.

Essa abordagem, que evidencia a prefiguração narrativa da

história, revela sua dimensão retórica e poética. Contrariamente

àquilo em que acreditam os cientistas, a escrita não envolve um

“conteúdo” da história; ela é constitutiva da história. MaS, ao fazê

-lo, White procede a um duplo deslocamento. Não somente reduz a

história a um puro objeto literário, mas aproxima-a da ficção com


base em suas formas comuns. Não somente os tropos e as ideo
narrativas dos historiadores,
logias determinam as “estratégias
natureza. A história, tor-
mas a história e a ficção são de mesma
não tem mais nenhum
nada composição, artifício, “ficção verbal

regime cognitivo próprio. É dessa forma que a virada linguística


tenta arruinar a história, negando-lhe qualquer capacidade de dizer

uma verdade que vá além de uma ficção. Veyne, Certeau e Ricceur


nar-
não passam desse limite: é toda a diferença entre a proposta
rativista e o relativismo cético.

A virada linguística é resultante de várias correntes de pen-

sarnento. A primeira é a dúvida generalizada. Pirro de Élis, filó

sofo grego ativo por volta de 300 a.C„ é considerado como um dos

Hayden White,‘“The HistoricalText as Literary Artifact"(1974).in Brian Richardson


(ed.). Narrative Dynamics:Essays on Time, Plot. Closure, and Frames, Ohio, Ohio
State University Press, 2002, p. 191-210.

143
A história é uma literatura contemporânea

fundadores do ceticismo, mas é Sexto Empírico que, cinco séculos


mais tarde, transforma seu ensinamento em doutrina em Esboços

pirronianos: contradição de todas as escolas de pensamento entre si,

indecidabilidade de opiniões, suspensão do juízo, aporia. O “pirro-

nismo” é redescoberto nos séculos XVI e XVII por Henri Estienne,

que traduz os Esboços pirronianos (1562); por Saint-Réal, em seu

Traité de Vusage de Vhistoire (1671); e por La Mothe Le Vayer, autor

de Du peu de certitude quilya dans Vhistoire (1668). A história não

consegue chegar a nenhuma verdade, porque a verdade não é deste

mundo e que não há nenhum critério para arbitrar entre as dife

rentes versões dos fatos. Incapaz de certeza, ela deve ser contentar

em enunciar o verossímil e descrever as paixões dos homens.

Com isso, chega-se à segunda tradição, o pan-poetismo, que


afoga a história no oceano dos textos “literários”. Para Quintiliano

a história não demonstra. Ela conta; é uma espécie de poesia em


prosa, liberada das imposições métricas. É sobretudo no modelo

saussuriano que a virada linguística se baseia, podendo ser até

caricatural: a linguagem é um sistema fechado de signos, não há

nada além de texto, as palavras só remetem a si-mesmas. A história

está, portanto, condenada a permanecer prisioneira da linguagem,

máquina semiológica que produz significações sem relação com o

real, construção verbal de tudo o que está fora do texto.

Essa posição vai ao encontro daquela dos poéticos. Estes,

sob o pretexto que o romancista realista e o historiador metódico

144
0 retorno do recalcado literário

recorrem a efeitos de real, concluem que toda história faz uso do

modo objetivo e se confunde com a ficção. Em outras palavras, já

que a história acaba empregando técnicas do realismo, é a vítima da

“ilusão referencial”. É Barthes que,em um artigo de 1967, permite

a transição entre a postura semiótica e a virada linguística: a his

tória finge acreditar que não há um referente exterior ao discurso,

mas aquilo que designa como “real”, resgestae, não passa de um

significante desprovido de significado. O referente entra em relação


real. Conclusão:
direta com o significante, e o discurso “expressa c
11
“O fato tem somente uma existência linguística (é a frase que

White empregará na epígrafe de The Content ofthe Form, vinte anos

depois). Já que todo texto é autorreferencial, a única diferença

entre o romance e a história repousa em seus efeitos retoncos, nos

argumentos de autoridade dos quais se reveste.

Daí a relação com a terceira tradição: a crítica do Poder.


em
A história, diz Barthes, é uma “elaboração ideológica , ponto

que coincide com o pós-modernismo e sua suspeita com respeito


massas. A história
às “grandes narrativas” destinadas a enganar as

pretende “nos” fazer acreditar em suas epopeias legitimadoras.

que servem de disfarce à dominação do Ocidente ou à exploração

social(White dirá, por sua vez, que a história moraliza). Ideologia,

autoridade, norma, dominação: a história é burguesa .Destruí-la

Roland Barthes, ■Le discours de l’histoire” (1967). in Le bruissement de la hngue.


Essaís critiques IV, Paris, Seuil, “Points Essais , 1984, p. 163-177.

145
A história é uma literatura contemporânea

significa subverter o real, liberar-se do passado reacionario para


entrar, livre, no futuro de todos
os possíveis. A revolução, seja ela

de extrema direita ou de ultraesquerda, só pode odiar a história,

assim como os Exércitos vermelhos “profanando as relíquias no


templo do lugar onde nasceu Confúciod^ As críticas dos anos 1970

apresentam os panfletos antissemitas de Céline e as incitações

pronazistas de Genet como motivos "ficcionais” quaisquer.


Navegando entre nihilo-danáismo
e ceticismo paranoico, a
virada linguística foi rapidamente percebida como um pengo.

Foi combatida pelos historiadores, Arnaldo Momigliano a partir


de 1981, Cario Guinzburg, seu discípulo, e mais tarde Krzysztof

Pomian e Roger Chartier. Todos defenderam que o historiador tem

por missão a pesquisa da verdade, que obedece, no final, ao real,

que seu saber é verificável, comprovado por textos, testemunhos,

vestígios, moedas ou ainda técnicas de datação. Porque a teoria


de White,influenciada pelo idealismo do filósofo fascista Giovanni

Gentile, fornece armas para aqueles que afirmam que as câmaras

12
Ibid., p. 176.
13
Arnaldo Momigliano,'‘Tlie Rhetoric of History and the History of Rhetoric: on
Hayden White’s Tropes”(1981),Settimo contributo alia storia degli studi classici e
dei mondo antico, Rome, Edizioni di storia e letteratura, 1984, p. 49-59; e Roger
Chartier, Au bordde la falaise. Vhistoire entre certitudes et inquiétude, Paris, Albin
Michel, 1998, cap. III e IV.

146

J
r

14

li
K
o retorno do recalcado literário

n
gás não passam de um “discurso”. Suas últimas trocas com os
14
historiadores girarão, por sinal, em torno do genocídio. '
t

Definitivamente, a virada linguística terá produzido um efeito

ambíguo. Ela obrigou os historiadores a afiarem seus argumentos


f

Metodológicos, mas excluindo a escrita, percebida como Cavalo de '


'Tróia da retórica e da ficção. Isso significa um lamentável desperdí

cio. No momento em que os narrativistas conseguem mostrar que F


I
t
a história se escreve e se conta, o ceticismo pós-moderno obrigou
a história a se definir - outra vez - contra a literatura. É assim que i'

Se perpetuam a velha interdição aristotélica e o tabu do século XIX.


ç
a história não pode ser poiesis para não correr o risco de cair na não
●K
ciência, na poesia, no relativismo, no delírio. É assim que se eter

niza a guerra fria entre duas superpotências: a ciência e a literatura.


no !.
Hoje, a virada linguística está morta, mas deixou pairar
debate a pestilência do seu cadáver: a crença de que a história não *

pode ser um gênero literário sem cair imediatamente em desgraça.

A reflexão acerca da poética da história ficou manchada. Aqueles

que querem escrever as ciências sociais são suspeitos seja de sau- T


\
dosismo das belas-letras sem método, seja de serem militantes do
t

relativismo panficcional. ' I i.-:


V ●.
I

S
If
1
Ver Saul Friedlànder (ed.), Probing the Limits ofRepresentation: Nazism and the
"Final Solution", Cambridge, Harvard University Press, 1992, príncipalmente >
4
Cario Ginzburg, “Just One Witness , p- 82-96.
í,

147

I
A história é uma literatura contemporânea

Certo número de pesquisadores trabalha nas fronteiras. Existe

a sociologia histórica, a sociologia econômica, a antropologia his


tórica, a geografia histórica, a história-ciência social. Entretanto,

as disciplinas, territorializadas, continuam vivendo das proibições

que erigem. O domínio do sociólogo é,grosso modo, a sociedade

atual. O historiador estuda o passado e, de vez em quando, o “tempo


presente”. Ele pode se interessar pelos escritores e pelas institui

ções literárias, mas não analisa os textos. nem tampouco os pro

duz. O literato, por sua vez, não se ocupa diretamente da história.


Se quiser compreender o contexto de uma obra, o pedaço de “his

tória" que lhe interessa, ele deve mergulhar em um livro de histó-


ria. Nas universidades, historiadores e literatos costumam estar

reunidos na mesma unidade de pesquisa. Essas “letras e ciências

humanas” se opõem às “ciências duras”, como se umas fossem moles

e as outras,inumanas. Quanto ao escritor, este não faz ciência(nem

duras nem humanas). Ele inventa, ele cria, ele escreve


. A sociologia
e a história suspeitam da literatura, porque esta significa ficção
palavrório,futilidade, fantasia; a literatura-criação foge a todo vapor

da névoa e do jugo que a pesquisa representa.

Essa divisão é profundamente sexuada, seguindo uma tra

dição que associa a poesia à feminidade tentadora e a verdade

ao masculino severo. Se admitíssemos a “musa voluptuosa” na

148
0 retorno do recalcado literário

República, diz Platão, correriamos o risco de substituir a razão

pelos elementos inferiores da alma, prazeres da carne ou lamen

tações das choronas. Para Luciano de Samósato, a história se ridi

culariza quando sonha com os ornamentos da poesia, assim como

um atleta que exibe a púrpura das cortesãs. Na idade clássica, o

“charme” é atributo das belas-letras, e o romance está associado

às mulheres, ao coração, ãs lágrimas, à sensibilidade, ou ainda ao


êxtase amoroso. Essa visão erótico-hedonista também engloba

a história excessivamente “escrita”. Como afirma Sainte-Beuve,

Michelet chega a observar “até o seio de Clio”. A história narrativa

revela a dimensão humana e psicológica dos eventos; os textos

literários acrescentam movimento, cor, substância à austeridade


ou se nos alegramos.
das estatísticas. Pouco importa se deploramos
a literariedade feminiza a história. Menos gravitas, porém mais

charme. Pouco rigorosa, mas tão sensível! O homem-ciência traz


o conceito, a literatura-mulher confere a vida: em história, como

em outros lugares, há uma divisão sexual do trabalho.


observa em sociolo-
Essa repartição das tarefas também se

gia. Para Bourdieu, a literatura moderna (Flaubert, Proust, Woolf)

possui uma excelente intuição, mas permanece opaca a si-mesma

enquanto a sociologia não “desvenda o texto, ainda que seja neces


sário acabar com o “charme”(o que fazem, precisamente,As regras

da arte). Para esse mestre em cientificidade que é o sociólogo, a

“tentação” literária da sociografia se torna um perigo.

149
A história é uma literatura contemporânea

Seria preciso muita virtude para não ceder a tais


tentações e às conquistas fáceis que prometem.
Os censores cuidadosos, guardiões do Templo meto
dológico, às vezes se comovem, mas como que diante
de um vício privado [...]. O convite ao sabá, entre
tanto, é um chamado que se faz ouvir no mais íntimo
da interpretação sociológica, na própria insatisfação
do trabalho amargo de produção dos conhecimentos,
algo como um ciúme por ter que olhar de tão longe as
bodas orgíacas e, no entanto,fecundas da -grafia e da
15
-logia quando operam sob o charme da literatura.

Todo esse trecho está estruturado por uma oposição entre


a literatura-
corrupçao prazer e a sociologia-virtude-desdém-
A sociologia não sente prazer, porque escolheu dizer a verdade.

Rigor contra orgia, pureza científica contra sífilis literária. A domi

nação masculina é a mesma do sociólogo sobre a literatura* ele a


“desvenda”, mas sem “ceder” a ela.

Essa estruturação do imaginário erudito explica que o debate


sobre a cientificidade(ou a literariedade) da história esteja sempre

repleto de segundas intenções. Não se trata mais de reduzir o pes

quisador à insignificância, mas de impor uma moral da austeridade:

“Você quer fazer ciência? Então! Renuncie aos prazeres da literatura.”

O pesquisador se conforma, mas guardando no fundo uma espécie


de remorso, o sentimento de se sentir frustrado. Literatura ele não

faz(é claro), mas gostaria de fazer(um pouco).

Jean-Claude Passeron,Le raisonnementsociologique. Un espace non poppérien de


Vargumentation, Paris, Albin Michel, 2006(1991), p. 355-356.

150
li
*4>
o retorno do recalcado literário

com
O escritor responde a essa condescendência invejosa

o argumento das “verdades superiores”. É a posição aristotélica

clássica: a poesia toca o geral, enquanto a história continua pri

sioneira do particular. O escritor-rapsodo tem uma visão instantâ

nea da verdade, enquanto o historiador está condenado a buscá-la

laboriosamente, sem jamais alcançá-la. Fábula da águia e do rato.

A fulguração da verdade constitui um aspecto da sagração do escri


naturalistas
tor”, perceptível em Diderot, Chénier ou Hugo; e os
atribuirão a si-mesmos esse dom sob forma laicizada. Diante da

concorrência das ciências da história, os escritores têm a possibi-

lidade de se voltarem para a exploração interior, campo no qual a

busca pela ver


::dade” permanece possível: coração humano, pro-
da
fundezas da alma, sentimentos, motivações secretas, nuanças

personalidade. No final do século XVIII, Rousseau escreve.

Posso cometer omissões nos fatos,transposições, erros


de datas; não posso, porém,enganar-me a respeito do
que senti, nem a respeito daquilo que os meus senü-
mentos me levaram a fazer. [...] O verdadeiro objetivo
de minhas confissões é fazer conhecer exatamente o
meu íntimo em todas as situações da minha vida.

A certeza e a exatidão não trazem benefício à história dos


16
mas à “história da minha alma .
reis ou das grandes civilizações,

16
Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, in CEuvres complètes, v. 1. P^^is,
Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade . 1959, p. 278.

l'
151

L
A história é uma literatura contemporânea

Essa partilha do mundo,ainda em vigor hoje, garante um remo


para a ficção. Aos historiadores cabe a verdade "exterior”. os even¬
tos, os grandes homens; aos romancistas cabe a verdade "interior”,

o vivido, as pessoas comuns. É assim que os romances, ao contar

histórias que todo mundo sabe que não são "verdadeiras”, dizem

transmitir um conhecimento mais verdadeiro” do que a história:

o refinamento da representação psicológica permite que o leitor


compreenda aquilo que, em sua própria vida, sente de maneira con-

fusa. Para Kundera, o romance revela a incerteza, a contradição, a

ambivalência, a relatividade das coisas humanas, ou seja, a ausência


de verdade definitiva. O suicídio de Anna Karênina chama a atenção

para o aspecto a-causal, imponderável, das ações humanas,e Kafka, a


respeito da nossa condição, diz aquilo que nenhuma reflexão socio

lógica ou política podería nos dizer”:^”^ a verdade do romance. que e a

ausência de verdade, permite resistir à verdade do Estado totalitário

O conflito teatralizado entre a história e o romance leva cada um

a se identificar a sua função, muito menos intelectual do que social

O sucesso de ficções de vocação histórica. As benevolentes (2006) e


de Jan Karski(2009), herdeiras distantes de La mort est mon métier

de Robert Merle, suscitou polêmicas nas quais os papéis são defi


nidos de antemão. O historiador, guardião da “verdade histórica”,

corrige o escritor, que reivindica, por sua vez, o direito de dizer o

17
Milan Kundera, Vartdu roman, Paris, Gallimard, 1986, p. 17-18 e p. 138-139.

152
o retorno do recalcado literário

que quiser, em nome da “liberdade de criação”. Depois do ataque


de Claude Lanzmann ao seu Jan Kavski, Yannick Haenel replicou:

“Contrariamente a esse tribunal da história, de onde fala Lanzmann,


18
a literatura é um espaço livre onde a ‘verdade não existe.
O escritor sai vencedor em todos os contextos. Filosofando

sobre a Shoah, oferecendo ao público uma história verdadeira , ele

se encontra entre aqueles que oferecem sua visão da História , mas

sem ter que prestar contas à verdade, pois faz literatura (entendida

como ficção). A liberdade do escritor se aparenta a uma recusa de

qualquer autoridade, inclusive aquela dos fatos e dos documentos

- prolongamento da autonomia conquistada no século XIX. Essa

profissão de fé o faz deslocar-se insensivelmente no terreno polí

tico, onde volta a se deparar com os rebeldes da virada linguística:

o escritor é aquele que contesta a ordem (histórica) estabelecida.

><ois

Um escritor escreve, um historiador faz história. A partir do


história constituem dois cam-
momento em que a literatura e a
suas relações. Paradoxalmente,
pos distintos, é possível estudar ;

o divórcio permitiu instaurar certo diálogo. Perante a história, a

seulement un droit, il est


Yannick Haenel,“Le recours à la fiction nest pas
nécessaire”, Le Monde, 26 jan. 2010.

153
A história é uma literatura contemporânea

literatura pode ser três coisas: um documento, um objeto de estudo,


uma fonte de inspiração.

A literatura, e mais particularmente o romance do século XIX,


fornece ao historiador (assim como
ao sociólogo) informações,

exemplos, ilustrações. Ela se torna uma “fonte”, ainda que deva ser
retificada dizendo exagerar ou enganar-se. No início de Histoire de

la littérature anglaise (1863), Taine escreve que uma obra literária

é uma “cópia dos costumes ambientes e o signo de um estado de


espírito”, espécie de concha deixada pelos homens de antigamente.

Entre 1916 e 1936, Henri Bremond publica Histoire littéraire du


sentiment religieux em doze volumes.

E no momento em que a história se torna uma ciência social

que o estatuto documental das obras se generaliza. Para constituir a

“vida afetiva de antigamente”, Febvre propõe basear-se em arquivos

judiciais, obras de arte e escritos literários, que registram as dife

rentes nuanças de sensibilidade.^® Em seu grande estudo acerca do

povo de Paris no século XIX, Louis Chevalier usa a Comédia humana

como fonte, colocando a questão da veracidade. Não se trata de

confiar cegamente nesses romances. É pelo desvio da demogra-

fia e da estatística que Chevalier evidencia sua “surpreendente

qualidade”, ou seja, sua conformidade com aquilo que os arquivos

revelam. Essa abordagem libera a história social da sua sujeição

Lucien Febvre, ‘La sensibilité et l’histoire”, in Combats pour VHistoire, Paris


Armand Colin, “Agora", 1992, p. 221-238.

154
o retorno do recalcado literário

à literatura”: ela permite não somente verificar a desigual verdade

das obras, mas também rivalizar com a própria literatura, erigindo


“monumentos rivais”^® à sua frente.

Os historiadores também se esforçaram em historicizar o objeto

literatura, questionando-se acerca da evolução dos gêneros, do cor-

pus, do meio profissional, das experiências de leitura, do mercado

da edição, das instituições literárias. Esse programa, esboçado por


Lanson e saudado com entusiasmo por Febvre, só foi verdadeira

mente realizado a partir dos anos 1980,com os trabalhos de Roger

Chartier, Robert Darnton, Pierre Bourdieu e Cristophe Charle.

Seu foco privilegia o livro ao texto, abrindo caminho a uma história

cultural, mas também social e econômica. A Barthes, que desejava

liquidar a velha história literária á moda de Picard,só resta aplaudir

a captação do objeto literatura pelos Anais e pela sociologia: entre


21
sobrou mais nada.
a história-ciência e a crítica poeticizadora, não
confere sensibili¬
A literatura é, finalmente, essa musa que

dade, emoção, intuição, um sexto sentido (qualidades femini


nas ’) ao historiador. Assim, dizem que Proust “sentiu” o declínio

da aristocracia e a ascensão da burguesia progressista, o poder

20
Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Pans pendant la pre-
mière moitié du XIX'-' siècle, Paris Hachette, “Pluriel”, 1984(1954), p. 19-21.
21
Roland Barthes, "Histoire ou littérature?’’, in Sur Racme, Paris, Semi, 1963,
ver
p. 145-167. Acerca desse movimento de “re-historicização do literário
o número especial dos Amales HSS. “Littérature et Histoire”, organizado por
Christian Jouhaud, v. 49, n. 2, mar.-avr. 1994.

155
A história é uma literatura contemporânea

das estratégias culturais de distinção, o aparecimento de híbri


dos sociais como Albertina, ao mesmo tempo pequeno-burguesa,

esportiva e homossexual.^^ Essa presciência, ainda que seja pré-

ciência, abre novas possibilidades de pesquisa para o historiador.

A literatura tem um quê de adjuvante epistemológico. Ela sensibi¬

liza os historiadores a respeito do que ignoram ou conhecem mal;

o papel do acaso, a ideia de contingência, a dimensão privada dos


grandes eventos.^^ A literatura é uma caixa de ferramentas cogni-

tivas na qual se podem escolher modelos de historicidade ou de

exemplaridade, categorias de percepção do real, filosofias do tempo

de das formas de interpretação do mundo(que se torna "homérico”,

“dantesco", “balzaquiano” ou “kafkiano”).^'' Por meio da leitura o

historiador bebe de uma fonte de inspiração subterrânea

Todos esses trabalhos são inovadores e estimulantes mas


repousam sobre uma tristeza secreta; a história não é mais litera

tura. Exilada de si mesma, ela se quer não literatura selvagem, não

texto, não escrita. Confundida com a “primeira cultura” das letras

na Antiguidade e na idade clássica, fascinada pela “segunda cultura’

22
Ver Catherine Bidou-Zachariasen, Proust sociologue. De la maison aristocratique
au salon bourgeois, Paris, Descartes, 1997; e Jacques Dubois, Pour Albertine
Proust et le sens du social, Paris, Seuil, 1997.
23
Mona Ozouf, “Récit des romanciers, récit des historiens”, Le Débat, n. 165
p. 13-25, mai-aoüt 2011.
24
Ver o número especial dos Annales HSS,“Savoirs de la Littérature”, organizado
por Étienne Anheim e Antoine Lilti, v. 65, n. 2, mar.-avr. 2010.

156
o retorno do recalcado literário

científica no século XIX, a história integra a “terceira cultura das

ciências sociais por volta de 1930, mas com a crença de que a nâo

escrita garante sua cientificidade. Uma literatura sem método abriu

caminho para um método sem literatura. Essa renúncia constitui


um ódio de si mesmo. Como a literatura não é expulsável da his

tória, pode ser atenuada, perder a graça, tornar-se insignificante,


ausência de método
Essa automutilação tem quatro causas: a

que caracteriza as belas-letras; o prestígio da ciência, útil e sólida,

a hegemonia do romance,tomado um quase-sinônimo de literatura;

a ameaça cética. A história que não é ficção, que repousa sobre um

método, que visa enunciar a verdade,funda-se na desconfiança de

certa concepção da literatura. Mas,embriagada com seu novo status,

acabou se renegando. Para sair dessa armadilha, é preciso extrair-se


‘escrito¬
do âmbito disciplinar(onde há “historiadores , literários ,
res , com suas áreas de especialidade e suas concorrências) e isolar

aquilo que,intelectualmente,funda a história enquanto ciência social.

257
o raci^dm© laistoric®
5.

ou do teórico da virada
Coloquemo-nos no lugar do semioticista

linguística que abre um livro de história e só enxerga um agendamento

de palavras,uma narração, um discurso. Ele tem razão num ponto,para

além da identidade sintática, a ficção e a história podem ser apreen

didas sob o paradigma da narrativa. “A história é um romance que

foi; o romance é a história que teria podido ser”, observam os irmãos


história de
Goncourt,^ um século antes que Paul Veyne qualificasse a

“romance verdadeiro”. Essas definições se reladonam com as nonfiction


anos 1960-1970.
noveJs que os jornalistas americanos publicam nos

Entretanto,como pode parecer óbvio para qualquer um,contar algo

não equivale a contar algo verdadeiro. Portanto,que tem a história em


comum com a ficção realista, o romance histórico e as coisas vistas”?

Os efeitos de verdade

A representação da realidade na arte é um dos grandes temas


de reflexão no Ocidente. “Simulacro do simulacro segundo Platão,

agendamento de ações para Aristóteles, imitação da natureza na

Edmond e Jules de Goncourt(24 novembre 1861), Journal, v. 1,op. cit, p. 750.


A história é uma literatura contemporânea

idade clássica, “espelho que levamos ao longo de um caminho”


segundo Stendhal, ela é, portanto, uma técnica antes de ser um

conteúdo (o povo, as coisas do quotidiano, etc.). Para Jakobson, o

realismo precisa motivar as ações, conferir espessura à narrativa a

partir do emprego de metonímias ou sinédoques, caracterizar per

sonagens a partir de traços inessendais.^ Para Auerbach, o realismo

se baseia, melhor, na seriedade do tom, na coerência da narrativa,

no procedimento da hypotaxe que mina a complexidade do real, a


integração das personagens em um contexto histórico conhecido.^

Por exemplo, pode ocorrer que Zola desdobre seu modelo, presente
ao mesmo tempo sob sua forma real e uma forma fictícia. A com¬

panhia de Anzin, na qual se baseia a de Montsou, é explicitamente

citada no romance; Lantier lê a obra do doutor belga usada por Zola

O barômetro acima do piano (em Flaubert) e a pequena porta na


cela de Charlotte Corday(em Michelet) são um luxo narrativo um

detalhe sem outra utilidade a não ser fazer “emergir” a realidade no

livro. É o efeito de real, segundo a análise de Barthes.

Mas,assim definida, a noção de realismo acaba se dissolvendo

Como aponta Jakobson, todas as correntes artísticas se preten

dem fieis à realidade. Além disso, toda literatura é realista porque

remete, em última instância, ao real, à experiência do leitor, aos

^ Roman Jakobson,"Le réalisme en art”(1921), in Questions de poétíque. Paris,


Seuil, 1973, p. 31-39.

^ Erich Auerbach, Mimésis..., op. cit., p. 487.

162
Que é a história?

objetos ou a sentimentos que lhe são familiares. Dom Quixote

não existe, mas um jegue, um moinho de vento, e Amaãis de Gaula

existem. Quando Dante, ao evocar um condenado no inferno, diz

que ele carregava sua “cabeça, a qual levava pendurada pelas mãos
»4
à guisa de lanterna sua descrição é ao mesmo tempo realista e

captadora de realismo. As fábulas são menos credíveis, os poemas

mais obscuros, são realistas: é a condição para que possamos figu

rar os personagens, para compreender a ação ou impregnar-se de

imagens. No final das contas (como também observa Jakobson),

é o leitor que julga o realismo: é “realista aquilo que me diz algo,

que corresponde a meus hábitos. Detalhes, verossimilhança e moti


em que satisfazem nosso
vação são realistas a partir do momento

desejo de acreditar. E essa crença é a própria fonte do prazer.


A história não somente conta, não somente representa ações,
abolirem toda distância
mas recorre a efeitos de presença que, ao

entre objeto e leitor, colocam-no diretamente em contato com a


de dar a ver/fazer acre-
“realidade”, em uma prodigiosa operaçao
essa
ditar. Nesse sentido, a história é plenamente realista. Mas

capacidade não tem qualquer valor se não for fator de compreensão,

A história não tem vocação para refletir o real “o mais fielmente


o
possível”, mas para explicá-lo. Como diz Platão na República,

imitador não tem qualquer conhecimento daquilo que o limita.

Dante Alighieri, La Divine Comédie, Paris, Diane de Selliers, 2008, canto XXVIIl,
p. 158.

163
A história é uma literatura contemporânea

e Barthes tem razão em lembrar que a mimese contém um pouco

de ilusionismo. O leitor acredita no que lê, mas a crença é precisa


mente o elemento com
o qual o conhecimento pretende romper.
Em Zola, se o realismo é levado a seu ponto de perfeição, o nível de

explicação é extremamente frágil: determinismo biológico, dege-

nerescência, desordens causadas pela Revolução, avidez financeira.


É precisamente essa doxa
que as ciências sociais querem superar,
No fundo, o realismo existe em história. mas, nem necessário nem
suficiente, não constitui
um elemento de reflexão pertinente,
Um poderoso fator romanesco
consiste em deslocar persona-
gens sobre o pano de fundo de um passado conhecido, a “História”.

A tradição dos homens ilustres, simbolizada pela musa Clio, cuja


trompa e louros servem para celebrar {kleõ), alimenta a confusão
ente a História como narrativa de fatos memoráveis e a história
como atividade intelectual: certas
pessoas, certas ações, certos
períodos, seriam mais importantes, mais “históricos” do que

outros, e bastaria pronunciar o nome de Madame de Pompadour ou

de Bismarck para fazer história. Essa concepção épico-poética, reor-

denada no século XIX pelo idealismo hegeliano e pelo positivismo


transforma o historiador em filósofo ou em preceptor, a menos que

acabe se tornando simplesmente o arauto de seus heróis.

Essa História é o meio no qual circulam o romance histórico e

a pintura da história: papas, imperadores, reis, ministros, intrigas

de palácio, assassinatos, batalhas, tratados, penitência em Canossa,

164

.J
Que é a história?

vitória de Lepanto, a bofetada com um leque do dey de Argel no côn

sul da França. Essa concepção vai do Romance de Alexandre de Albéric

de Piscançon, cerca de 1120,às narrativas de aventura de Alexandre


Dumas e de Maurice Druon. Mas ela tem um ponto fraco:“Se as figuras

do primeiro plano são históricas, elas pertencem,portanto,à história,

e temos sobre elas,já que nos são oferecidas, um direito de verificação

e de controle.”^ É possível desarmar essa inquisição projetando,como

Madame de La Fayette, Walter Scott e Stendhal, ações anônimas e

fictícias sobre um fundo “histórico”, relegando os príncipes ao segundo

plano. O romance histórico-realista ativa, então, efeitos de Históna:

alusões de contexto, sinais, importações “reais”, brilho da corte de

Henrique II, admiração de Julien Sorel por Napoleão, etc.

Em Marcha de Radetzsky(1932),Joseph Roth mobiliza efeitos de

História. O romance,ainda que coloque em cena o imperador Francisco

José,evoca, príncipalmente,os “destinos privados que a História,cega

e despreocupada”, acabou deixando para trás.*" Mas não se trata de

contar as tribulações de alguns desconhecidos entre 1859 e 1918: a

extinção dos Trotta acompanha metonimicamente a desagregação do

Império Austro-Húngaro. Em outras palavras, eventos fictícios e de

ordem familiar reproduzem em miniatura o movimento da “História”.

Como fazer com que o leitor sinta isso? A questão da informação é

^ Louis Maigron, Le roman historique..., op. cit., p. 42-43.


® Joseph Roth em Frankfurter Zeitung(1932), citado em La Marche de Radetzky,
Paris, Seuil,“Points”, 1995, p. II-

165
A história é uma literatura contemporânea

capital. Ao recorrer à focalização zero, o narrador revela casualmente

aquilo que os personagens ignoram. O tédio de Carlos José:“Na ver

dade, aquilo que buscava era uma expiação voluntária. Nunca teria

sido capaz de expressá-lo por si mesmo, mas podemos dizê-lo em seu

lugar.” O destino dos oficiais russos e austríacos: nenhum deles sabia

que “acima dos copos nos quais bebiam, a morte invisível já cruzava
seus dedos descarnados”.

O narrador nunca entrega a significação do romance sob a

forma de uma mensagem, do tipo “o prefeito Trotta ignorava que


sua linhagem estava fadada ao desaparecimento, assim como o

Império”. Em compensação, para não deixar o leitor na ignorância

(essa ignorância do futuro que é a mesma dos protagonistas), Roth

emprega procedimentos de divulgação. O conde de Choinicki e o

doutor Skowronnek chocaram o amigo Trotta ao garantirem que o


Império caminhava na direção de sua perda. Na confusão do final

de junho de 1914, Carlos José, vendo as coisas como se fosse atra-

vés de um cristal puro”, garante aos demais oficiais que o príncipe

herdeiro foi assassinado em Sarajevo. Finalmente, o tenente Trotta

compreende que seu mundo ruiu e que o “profético Choinicki” tinha

razão. Em 28 de junho de 1914 cai uma tempestade “sobrenatu

ral”, à qual se acrescenta uma invasão de corvos, que permanecem

empoleirados,“negros, sinistros frutos caídos dos ares”. São efeitos


da História: Choinicki anuncia os demais eventos diante do tenente

incrédulo, e a embriaguez de Carlos José o faz adivinhar a verdade.

166
Que é a história?

Os oráculos (com base no modelo de Cassandra) e os pres¬

ságios (com base no modelo da tempestade), que encontramos

na mitologia grega e em Heródoto, resolvem uin dos problemas

narratológicos do romance, que consiste em manifestar o conhe

cimento do futuro dos personagens que não poderiam conhecê-lo.

A história é contada do ponto de vista deles, com sua informação


com
lacunar, sua cegueira de seres humanos. Nossa superioridade,

respeito a eles, e a fonte do nosso prazer, é que o narrador sussurra

aos nossos ouvidos informações que eles desconhecem. Ao fazer

isso, Roth consegue, de uma só vez, respeitar a verossimilhança e

manter a conivência daqueles que sabem com o leitor. Esses pro

cedimentos são típicos do romance histórico-realista, no qual a


“História” está encarnada no destino fictício de indivíduos ou de

famílias anônimas: Evaristo em Os deuses têm sede, os dois irmãos

dos Jhibault, Dom Fabrizio em O leopardo.

Para o historiador, no entanto, a divulgação da informação


roman-
nunca é um problema. Ele sabe tudo e diz tudo,enquanto o

cista sabe tudo, mas destila e sugere seu saber. Um mostra sua

distância, o outro se mantém incógnito junto de seus persona

gens. Por essa razão, o romance precisa de augúrios ou de perso

nagens particularmente lúcidos. Quando o historiador esclarece

a experiência dos “homens do passado”, é sempre de forma crua,

iluminado pelo presente. A respeito do assassinato do arquiduque

herdeiro, em 28 de junho de 1914, um historiador não precisa

167
1

A história é uma literatura contemporânea

inventar uma tempestade natural para anunciar a catástrofe que

se aproxima. Ele se contenta em escrever que “ninguém ou qua-

se-ninguém acreditava que esse lamentável acidente pudesse se


transformar em drama mundial”.”^

E claro que o imperador, a derrota de Solferino, a marcha de

Radetzky, o Império Austro-Húngaro, a Primeira Guerra Mundial

são elementos reais, e o entrecruzamento entre ficção e história

tem algo de fascinante. Essa magia, que o naturalismo também

se esforça em dominar, é a da realidade “que adentra” um texto

para chegar até nós “tal qual”. Daí a força dos analecta: evocações,
alusões, relatos, detalhes verdadeiros.

A ficção extraída de um fato real, como por exemplo um crime,

é diferente. Empregado desde o século XIX, o selo “inspirado de um

fato real” ainda está presente no cinema e na literatura, como se o


fato de ter sido vivida tornasse uma história mais emocionante.

Entretanto, além do fato de que numerosas narrativas “inspiradas em

fatos reais” são ordenadas para serem mais dramáticas, um pequeno


fato bruto ou um acúmulo de “coisas vistas” não contribui mais do

que uma ficção para a compreensão. Há narrativas e testemunhos

que não têm nenhum interesse porque são banais, cheios de clichês,

ingênuos e entediantes, sentimentalismos de antigamente, banali


dades familiares e outras besteiras. Se a micro-história de Giovanni

Jean-Jacques Becker; Serge Berstein, Victoire et frustrations, 1914-1929, Paris,


Seuil, “Points Histoire”, 1990, p. 20.

168
Que é a históina?

Levi e a descrição densa de Clifford Geertz têm algum valor, não

e porque recolhem detalhes “verdadeiros (a vida de um exorcista

piemontês, uma rinha de galos em Bali, uma razia de ovelhas), mas

porque revelam estruturas de significação.®

A densidade, aqui, é a inteligibilidade, ou seja, o contrário de

uma biografia de mil páginas na qual a pretensão de exaustividade

tem papel de metodologia. Quando se pretende fazer compreender

ou ainda contar “aquilo que aconteceu”, é preciso construir uma

narrativa, hierarquizar os fatos, deixar de lado os detalhes não sig-


nificantes. Dessa forma, um cronista judiciário não mencionará as

moscas que sobrevoaram o pretório ou as pessoas que espirraram,

a menos que isso se relacione com o caso.^ Esse duplo critério de


uma história, o
inteligibilidade e de pertinência mostra que, em

argumento da verdade não basta.

Um abismo separa o pequeno fato verdadeiro, apresentado

como tal, da produção de conhecimento. Muitas coisas são verda

deiras: que De Gaulle era partidário dos blindados, que foi a Argel

em 1943, que publicou um sainete cômico aos 16 anos; ou ainda


os romanos eram construtores.
que os gregos eram filósofos, ou que

« Giovanni Levi, Le pouvoirau village. Histoire dun exorciste dansle Piemont ãu


XVIP siècle, Paris, Gallimard, 1989; e Clifford Geertz,“La description dense ,
Bnquête.Anthropohgie, Histoire, Sociologia, n. 6, p. 73-105,1998.
^ Arthur Danto,Analytical Philosophy ofHistory, Cambridge, Cambridge Univer-
sity Press, 1965, p. 131.

169
A história é uma literatui-a contemporânea

Mas como distinguir, entre todas as coisas, o aforismo banal, a


anedota sem interesse e o
discurso do pesquisador? Imaginemos
que um drone tivesse filmado a Batalha de Koursk, em 1943, ou
que uma câmera de vigilância tivesse sido instalada no quarto de

Luís XIV. Essas imagens “reais” e até mesmo “históricas” ajudariam

a compreender algo? O real é a coisa bruta dada


na sua in-signifi-
caçào, enquanto a verdade, resultado de uma operação intelectual

e fator de conhecimento, contribui para a inteligibilidade.

As ciências sociais costumam ter que adotar uma posição anti-


fenomenológica, capaz de se distanciar do vivido, ou até mesmo

repudiá-lo, para retornar a ele com mais força. É a diferença entre

um testemunho e sua análise, entre a fonte e sua crítica, entre o


“aí tem” e o enunciado de verdade.

Da mimese à gnose

A história é um texto, claro, mas se separa de três formas que

não oferecem uma resposta satisfatória à questão da verdade pore

no texto: a imitação, o memorável, a matéria, ou seja, para empre


gar termos narratológicos, o efeito de real, o efeito de História e
o efeito de vivido. Naturalmente, o historiador acaba recorrendo

a esse tipo de efeito, mas não pode confundir o acessório com o

principal: a história se interessa menos pelo “real” do que pelo ver-

dadeiro, menos pela “história" do que pelos homens, menos pelas

170
Que é a história?

“coisas vistas” do que pelas provas. Essa passagem da representação

ao conhecimento é garantida pelo raciocínio.


O raciocínio histórico consiste em tentar compreender e, por

tanto,em particular, encontrar os meios de fazê-lo. Qual o interesse

em dizer que minha avó foi condenada a cinco anos de prisão ou

que os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria, se eu não explico

por que digo isso, como sei disso, com quais provas, qual contexto,

em nome de quê? Separados de um raciocínio e de uma demonstra

ção, os fatos não valem muita coisa; eles são, no melhor dos casos,

reais. “Hitler era um pequeno pintor de paisagens”, afirma um per

sonagem em Beijos proibidos de Truffaut. Ele tem razão, mas não é

fácil explicar por que ele está profundamente enganado, ou como,

a partir de algo real, ele fabricou algo falso. É claro que sentimos

que sua declaração é tendenciosa; mas,o fundo de impostura, é que

se apresenta em estado de morte cerebral. Porque, se quisermos

começar a compreender algo sobre Hitler, devemos admitir que,

pintor (frustrado), talvez, mas também e, principalmente, soldado

durante a Grande Guerra, chefe do partido nazista, chanceler ale

mão,estrategista militar, criminoso, ele não pode sequer ser asso

ciado à profissão de artista; em seguida, podemos nos perguntar

como chegou ao poder, como aplicou seu programa, etc.


Obteremos o mesmo tipo de solecismo se identificarmos

Napoleão a suas vitórias ou se reduzirmos a escravidão a sua abo

lição. Focalizar um elemento do quadro em detrimento de todo o

171
A história é uma litei'atura contemporânea

resto é uma forma de enganação.0 pedaço de real isolado, órfão de

raciocínio, não está em relação com o verdadeiro. Não é aceitável

enquanto não for analisado, provado, compreendido, explicado,


conectado, comparado, criticado; só então se torna conhecimento,

“adquirido para sempre”,segundo a fórmula de Tucídides. E pode

mos dizer, se quisermos, que os fatos foram estabelecidos.

E por essa razão que o raciocínio histórico é o coração da his

tória. Essa afirmação, que poderia parecer um truísmo, tem um


alcance considerável. Permite, não somente, distinguir a atividade

intelectual, de um lado, da profissão, do diploma, do gênero institu


cionalizado, do outro, mas conduz a relativizar próprio objeto de

estudo: o valor da história não reside em tal período, personagem,

fenômeno, resultado, mas nas qualidades das questões que um


pesquisador (se)formula. Enquanto raciocínio, a história implica

operações universais: buscar, compreender, explicar, demonstrar.

Ela pertence a todos e todo ser humano está apto.

A Grécia arcaica pensava que a verdade era privilégio de certas


figuras: poetas, adivinhos, reis,“mestres de verdade”.^® No século XIX

a universidade quis se autoconferir o monopólio do saber. Esse fecha

mento oligárquico faz nascer uma história na qual as técnicas são

mais importantes do que os problemas. Em 1931, Carl Becker defen

derá, ao contrário, a ideia de que todo homem pode ser seu próprio


Marcei Detienne, Les maitres de vérité àans la Grèce archàique, Paris, “Le Livre
de Poche", 2006(1967).

172
Que é a história?

historiador: vasculhando seus papéis, verificando algo, explicando

um incidente, qualquer um faz história, pelo menos do ponto de

vista prático. A atividade científica, explica CoUingwood emAideia

de História, começa quando um detetive busca “quem matou John

Doe”,ou quando um mecânico explica por que o carro não dá partida.

A história tem,portanto, algo do raciocínio natural. O homem

pode aplicá-la a sua própria vida, à vida dos seus familiares, à dos

seus desaparecidos, ou, o que acaba sendo a mesma coisa, à dos seres
vivem fora
que ele não conheceu, porque já estão mortos ou porque

de sua vizinhança imediata. Um escritor, um jornalista, repórter

investigativo, um detetive, um juiz, um conservador de museu,


cidadão, um
um curador de exposição, um documentarista, um

neto participam da democracia historiadora se aceitam fazer uso


isso
do raciocínio. Veremos,adiante, os modos de pensamento que

implica. Por ora, notemos que o raciocínio, antídoto do ceticismo

generalizado, é a atividade pela qual a história se define. É sua pre

sença que,sozinha, detém o poder de tornar históricos a crônica, o

quadro “exato e fiel”, o testemunho e até mesmo o romance.

Carl Becker,"Everyman His Own Historian , op. cit.

173
A história é uma literatura contemporânea

Ainda que se deixe de lado a História e outras coisas “dignas

de memória”, a história admite várias acepções. Pode ser definida


como o
espelho da vida humana”(La Popelinière),“uma narração

contínua de coisa verdadeiras, grandes e públicas” (Le Moyne),

aquilo que aconteceu entre os homens” (Leibniz), “a narrativa

dos fatos tidos como verdadeiros”(Voltaire), a “realidade passada’


(Beard), as coisas humanas passadas”(Hempel), “o passado, na

medida em que for conhecido” (Galbraith), a “ciência das socie¬

dades humanas” (Fustel de Coulanges), a ciência “dos homens,

no tempo” (Bloch), a “ciência do passado, ciência do presente”

(Febvre). Da mesma forma, é possível recordar aquilo que a história

não é: uma fábula, uma polêmica, uma glorificação, uma denúncia.

Gostaria de propor outra definição: fazer história enquanto

ciência social é tentar compreender aquilo que os homens fazem.

Essa definição ampla, transdisciplinar por natureza, tem

várias implicações.

Um método para compreender. Nossos conhecimentos são varia

dos, nossas fontes de informação inúmeras,e é forte a tentação de

acreditar que se compreendeu tudo imediatamente. De fato, “tentar

compreender” supõe colocar-se em certas disposições intelectuais

e morais, nas quais o raciocínio figura acertadamente. Seu método

se baseia na ideia de que não é fácil compreender, que o saber nao

174
Que é a história?

é um bem imediato, incondicional, definitivo, mas o fruto de uma

reflexão, à qual se chega formulando as questões apropriadas e

fazendo de tudo para responder a elas. É a demonstração que liga

a compreensão ao conhecimento. A pesquisa, fundada em argu

mentos e provas, consiste, portanto, em fazer de tudo para tentar

compreender aquilo que os homens fazem na verdade.

Mais uma abordagem do que um conteúdo. A história é uma ativi

dade intelectual definida por uma abordagem, não por um sujeito

e ainda menos por um sujeito “nobre”. Assim como Napoleão, um

pobre sapateiro analfabeto pertence à história: “Tudo é histórico,

portanto, a História não existe.”^^ Já que a história é, antes de tudo.

um raciocínio, ela admite todo tipo de suporte:filmes, exposições,

histórias em quadrinhos, mitos, epopeias, romances e, no caso da

índia do final do século X\TII, textos épicos em sânscrito, kavya

(poesia da corte) ou purãna (“antigos” que contam os mitos da

índia pós-védica).^^ O gênero acadêmico - modo objetivo, notas de


forma de história
rodapé, digressões eruditas - é, portanto, uma
entre outras. Toda essa literatura é de uma grande riqueza, ainda
si.
que suas formas não sejam equivalentes entre

Uma ética capabilista. Não é preciso esconder que a história,

ainda que definida como uma ciência, se baseia em premissas morais.

Paul Veyne, Comment on écrit Vhistoire..., op. cit., cap. II.


Velcheru Narayana Rao; David Shulman; Sanjay Subrahmanyam, Textures du
temps. Écrire Vhistoire en Itide, Paris, Seuil, “La Librairie du XXL siècle , 2004.

175
A história é uma literatura contemporânea

O historiador se confere, como objeto, a humanidade plural e ondu-

lante, os seres em sua infinita diversidade, e não o “homem” no

singular, as leis da “História”, nem a obra da Providência. O homem

é mestre do seu destino. Até mesmo na Idade Média, os historiadores

falam menos daquilo que aconteceu do que daquilo que foi feito,

efetuado pelos homens em ação; refletido pelos termos actus,facta,

resgestae. Tentar compreender “aquilo que os homens fazem mais


do que “aquilo que acontece” é uma maneira de aderir ao princí

pio capabilista de Karl Popper, Amartya Sen e Martha Nussbaum:

os homens nascem livres e iguais, são dotados de razão, capazes de

serem algo e de fazerem algo - o que não deve conduzir a negar os

determinismos que pesam sobre eles. Querer “explicar” a escravidão

pela inferioridade nativa dos negros (ou a Shoah pela inadmissi


bilidade dos Judeus) não implica a história, mas o racismo (ou o

antissemitismo). A história é humana e, portanto, humanista.

Os homens no tempo. Do universal Políbio à “representa

ção de tudo” segundo La Popelinière; do panorama civilizacio-

nal voltairiano à “vida integral” ressuscitada por Michelet; dos


novos territórios de Alain Corbain à história conectada de Sanjay

Subranmanyam, a história não se fixa em outra baliza que nao

seja a humanidade. É claro que ela se interessa pelos objetos, pelos

animais, pelas doenças, pelo clima, mas somente na medida em

que afetam a vida dos homens. Já que o historiador é profissional


I

176
Que é a história?

em compreender as mil e uma maneiras de ser humano, não há

qualquer motivo para que leve em conta a invenção da escrita, cerca

de 3000 a.C., como ponto de partida. A história engloba necessa-


riamente a pré-história, ainda que caiba determinar quando apa

rece e o que chamamos homem:o surgimento do gênero Homo há


mais de dois milhões de anos, concepção de ferramentas, bipe-

dismo que libera a mão,inumação dos mortos, desenvolvimento

do pensamento simbólico com o emprego de pigmentos e de vestes,

primeiras manifestações artísticas, emergência do homem anato

micamente moderno. revolução neolítica? Acontece que o paleon

tólogo e o historiador constroem seu raciocínio a partir da mesm

base: traços vindos do passado. A cesura pela escrita é derrisó


detrimento da(muito)longa
pois destaca uma simples técnica, em

duração. Ela conduz a negar 98% da história dos homens e 100%


15
nas regiões de tradição oral.
historiador estuda o
A história até hoje. Costuma-se dizer que o
risco de erigir uma
passado. Tal associação não é falsa, mas corre o
antes, e “nós”, os modernos.
barreira entre “eles”, presos em seu
- o historiador estuda o
mestres do presente. Ora - outro truísmo

passado a partir daquilo que sobra, a partir de traços que exist

une rencontre Orient-Occiáent,


Romain Bertvand, Vhistoire à parts égales. Récits d
XVP-XVIP siècle, Paris, Seuil, 2011, p-12-
avec Anne Lehoèrff, Actes
Jean Guilaine, Archéologie, science humaine. Entrcticns
Sud, Errance, 2011, p. 22 e p. 150.

177
A história é uma literatura contemporânea

et nuTic. As questões que coloca são questões do seu século, de sua

cidade, de sua vida. A máxima de Faulkner segundo a qual “o passado

ainda não passou tem um valor heurístico: esse passado que os his
toriadores estudam vibra ainda
no presente, no nosso presente,sob

a forma de palavras, de instituições, de obras, de paisagens, de fron


teiras, de construções, de costumes,tanto que nosso presente é cons-

tituído de diferentes estratos de passado adicionados,sedimentados

em múltiplas concreções,assim como a abadia de Westminster, onde

Chateaubriand vê o “templo monolítico de séculos petrificados”.


Marc Bloch diz o mesmo de outra maneira:"O passado comanda o

presente. Pois nâo há praticamente nenhum traço da fisionomia rural

da França de hoje cuja explicação não deva ser buscada na evolução

cujas raízes mergulham na noite dos tempos.”^®

Nada depresentísmo aqui. Somos o ponto de partida e de chegada


do estudo histórico, mas também seu objeto: humanos no tempo,

carregados pelas águas tumultuosas, estaremos mortos em breve,


i
“homens do passado”. Ao fazer história, nos debruçamos sobre nossa
própria historicidade. Projetamo-nos em uma reflexão sempre em

movimento, onde o presente, rejuntado ao passado que o aspira, é


uma etapa que precede outros pontos de fuga. Os homens que estu

damos foram, assim como nós,“homens do presente”, modernos

Marc Bloch, Les caractères originaux de Vhistoire rurale française, Oslo, Instituto
de Estudos Comparativos das Civilizações, 1931, p. 250.

178
Que é a história?

Essa é a razão pela qual um historiador busca compreender aquilo

que os homens fazem e não aquilo que fizeram outrora.


uma disciplina acadêmica, mas
A história não é primeiramente
um conjunto de operações intelectuais que visam compreender
a histó-
aquilo que os homens fazem de verdade. Disso resulta que

ria(como raciocínio) está presente em atividades que nada têm de

“histórico”: a reportagem,o jornalismo, a investigação judiciária, o

relato de viagem. A história ultrapassa de longe a História. E isso


é uma excelente notícia.

Explicação canasal e cosnpi:'ee2ísão

ciência? Muitos
Que é preciso para que a história seja uma

pensadores, de Platão a Toynbee, passando por Comte, tentaram


atualizar as “leis da História” indicando a destinação final da huma

nidade: emancipação.servidão, decadência ou progresso através


história-ciência dos
das idades, estados e ciclos. No século XIX, a

metódicos é hostil a toda filosofia da História, mas certos historia-


imentalmente,leis análogas àquelas
dores esperam encontrar, experim
no sentido estrito,
que regem a natureza. Para esses positivistas
título de nobreza e
a descoberta de leis conferiria à história seu
17
Os durkheimianos
transformaria a história no novo Darwin .

17 Annual Report ofthe American


Henry Adams,"The Tendency of History
Historical Associadon, p. 17-23,1894.

179
A história é uma literatura contemporânea

compartilham essa concepção nomológica, mas excluem a história:

só a sociologia é capaz de estabelecer leis(ou pelo menos regulari-


dades), ou seja, propor uma explicação científica.
Hempel, por sua vez, coloca a história e as ciências naturais no
mesmo plano: eles subsumem um
evento a leis, “hipóteses de forma
universal” validadas pela experiência."^ Ao excluir o evento dessas

leis, pode-se explicá-lo. Hempel não oferece exemplos para sua teo¬
ria, com exceção da explosão de um radiador de carro durante uma

noite de frio intenso. Mas,ainda que fosse possível listar o conjunto

de elementos desencadeadores da Revolução Francesa (difusão das

Luzes, nova cultura do.livro, constituição de uma esfera pública,


descristianização, crescimento da burguesia, excesso de absolutismo,

apodrecimento da monarquia, pressão fiscal, más colheitas, carestia

das mercadorias), a reunião dessas “condições determinantes não

garantiria, a cada vez, o desencadeamento de uma revolução

Nenhum modelo jamais podería capturar a diversidade, a


complexidade e a liberdade humanas. Ou então, o grau de gene

ralização se torna tão elevado que se obtém, à guisa de lei, uma

espécie de máxima. “Explicar” o assassinato de Trotski consisti-

ria, então, em dizer que “todo tirano busca fazer desaparecerem

aqueles que ameaçam seu poder” ou que “aquele que viveu pela lei
do talião morrerá pela lei do talião”. Por outro lado, ainda que as

Car] Plempel,"'The Function of General Laws in History”,'^te Journal ofPhilosophy


V. 39, n. 2, p. 35-48,15 jan. 1942.

180
Que é a história?

leis da história pudessem ser formuladas, elas não bastariam para


conferir à história o estatuto de ciência; é precisamente contra o

historicismo (platoniciano, hegeliano, marxista) que Popper definiu

a lógica da descoberta científica.

O covering law model, como diz William Dray, é mais interes


sante se considerados os elos de causa e efeito que estabelece.

É óbvio que o valor de uma narrativa histórica repousa em parte


de Políbio é fundador:
sobre sua capacidade explicativa. O gesto

sublinha, a respeito da guerra entre Roma e Cartago, a diferença

que existe entre o início, de um lado, e as causas, assim como os

motivos invocados, de outro, as causas estando na origem de tudo,

enquanto o início só vem depois Ao final do século XVI, durante


bom historiador
as guerras de religião, La Popelinière escreve que o
se move , ou
parte em busca das causas “sem as quais ninguém
âmbito privado
seja, dos motivos que fazem agir os homens no
no civil (sedições, tirania.
(ambição, ódio, amizade, vingança) como
20
fome, epidemias).
Mas a busca das causas visa menos enunciar generalidades do

que explicar o evento em sua mais íntima singularidade. Stalin que

ria eliminar um rival e um oponente político; Stalin sentia ciumes

de um herói da Revolução que incomodava; o NKVD planejou

Políbio. III, 6.
20
Henri Lancelot-Voisin de La Popelinière Vhistoire cies histoires, avec Vidée de
. 94-95.
1’histoire accomplie [...], Paris, Fayard 1989(1599), v. 2. p

181
A história é uma literatura contemporânea

longamente a operação, Mercader conseguiu se infiltrar no círculo

de Trotski. O papel do historiador é apresentar e hierarquizar um


conjunto de causas, e isso constitui um trabalho de detalhe. Cabe

ainda dizer que a explicação causai não é o começo e o fim da ati


vidade historiadora. É
apenas um aspecto, desde que tenha um

sentido. Pois, no final das contas, será que a Shoah tem causas”?

Contra os positivistas, a tradição hermenêutica afirma que a


história é uma ciência, mas nao como as outras: uma “ciência do

espírito”. Ela visa compreender os humanos,enquanto as “ciências


da natureza” explicam as moléculas e as galáxias. Se acompanha-
mos
Diltney, Weber e Marrou, pode-se dizer que a história nâo

é uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência

interpretativa em busca de sentido.^i Profundamente abrangente,


visa esclarecer, com base na humanidade
comum ao pesquisador e
aos homens que estuda, a intencionalidade destes e o sentido que

conferem a suas ações.

Diante das ciências do espírito, Hempel responde que o

método de compreensão (por exemplo a empatia) é um procedi


mento heurístico, e não uma explicação. Já Popper critica o sepa

ratismo hermenêutico, lembrando que um físico também busca

“compreender” o universo, uma vez que faz parte dele. Mais ampla

mente, as humanidades e as ciências da natureza compartilham

21
Ver Clifford Geertz,“La description dense”, op. cit, p. 8.

182
Que é a história?

22
em resolver problemas.
da mesma epistemologia, que consiste

De fato, é difícil entender de que maneira a compreensão podería

se opor à explicação. Para compreender a experiência dos peludos

na Grande Guerra, pode-se recorrer à empada do Verstehen (ainda


tão
que seja difícil colocar-se em condições físicas e psicológicas

extremas). Também é possível tentar explicar como os homens


numa teia de
suportaram e aceitaram tamanha provação, presos

imposições que implicam o patriotismo, a cultura de guerra, o


se
código de honra, o dever de obediência, o sentimento de não

ter escolha, a ameaça de ter que enfrentar um tribunal militar.

ia múltipla: ela produz


Assim, a história pode ser uma ciência

explicações causais, descreve o mundo objetivamente, é abran-


ciência que hoje
gente. Mas a questão é saber se é ou não uma
contaminado por con
perdeu sua força. O debate foi longamente
ser alçada ao nível” de ciência,
siderações relativas ao prestígio:

não “passar de" literatura. No fundo,a única coisa que conta é que

a história explicita e valida seus enunciados, ou seja, dem

segundo um método e um raciocínio. Nessas condições ela


ciência social - forma de reconciliar Seignobos e Simiand.

Karl Popper,La connaissance objective. Paris, Aubier,1991(1972). p. 267-287.

183
A história é uma literatura contemporânea

Os fenômenos que o historiador estuda podem ser compreen

didos por meio de uma descrição-explicação que integra modos


de inteligibilidade um tanto díspares: intenções, motivos, causas,

circunstâncias, interações, acasos. A narração opera, em seguida,


23
a “síntese do que é heterogêneo”. Contar um acontecimento é,

indissociavelmente, explicar e compreender, responder a um como-

por que que o torna intelectualmente apropriável. Portanto, uma

narrativa é, em si, uma explicação. Contrariamente, uma história

filandrosa, sem pé nem cabeça, que atira para todos os lados, nao
é uma narrativa. Assim,
a narrativa não é a camisa de força da

história, seu mal necessário; ela constitui, pelo contrário, um de

seus mais importantes recursos epistemológicos.

Tentar compreender o que os homens fazem. Na Grécia Antig.a, a

história nasce ao mesmo tempo que o pensamento tradicional: Tales


observa o movimento dos astros, Anaximandro representa o uni¬

verso, Hecateu cartografa a terra, Heródoto a percorre para conhecer


os homens,seus costumes,suas ações. Fiel à tradição iônica, ele con-

fere simetria ao ecúmeno.Ao Norte,a Cítia fria; ao Sul, a Líbia quente.

O Danúbio e o Nilo, com seus cursos d agua Leste-Oeste,formam para


lelos de parte em parte do Mediterrâneo.^*^ Na metade do século XVI

23
Paul Ricceur, Temps et récit, v. 1, op. cit., p. 339. Ver ainda Arthur Danto, Ana-
lytical Philosophy ofHistory, op. cit., cap. VII.
2-1
François Hartog,Le miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de 1'autre, Paris
Gallimard,"Folio histoire”, 2001(1980), p. 72.

184
Que é a história?

O jurista Jean Bodin recorre à história porque ela permite descobrir

a ordem sob o caos aparente, o universal por trás das contingências.

Os eixos nos quais se podem ordenar os fatos (cronologia, geografia,


25
clima, quantidade)são as estruturas de inteligibilidade do real.

Ciência social, instrumento de compreensão-explicação, dis

curso do método, a história introduz inteligibilidade na vida dos

desaparecidos, em nossas existências cheias de ruído e de furor,

a fim de que o mundo seja menos confuso e a realidade menos


opaca. Assim como Robinson em sua ilha, o pesquisador em ciên

cias sociais se outorga a missão de vasculhar, nomear,inventariar,

decifrar o mundo que herdou. A partir de traços, ele tenta com

preender a organização dos fatos, a coerência de uma cultura, a

mecânica do social. Ele depreende a sintaxe do real.

Claude-Gilbert Dubois, La conception de Vhistoire en France au XVF siècle


(1560-1610), Paris, Nizet, 1977, p. 94sq.

185
6.

Os escritores da história-ciência

De Platão a Barthes, passando por Descartes e Simiand, toda

uma tradição opõe história e verdade: a história é um não conheci

mento, um puro empirismo, um gabinete de curiosidades. Ela não

podería ser uma ciência porque não tem um método e visa apenas o

particular. Consequentemente,a verdade deve ser buscada em outro

lugar: na filosofia, na matemática, na sociologia, na literatura, etc.

A revolução metódica, no final do século XIX, rompe com essa

rotina de difamação. Mas ela não deve ser considerada como uma
certidão de nascimento da história-ciência; trata-se, melhor, do

resultado de uma reflexão milenar. Porque a história sempre se impôs

regras. Em grego, a verdade se diz negativamente: aletheia (ausên

cia de esquecimento) ou atrekeia (ausência de mentira). A partir do

momento em que a verdade não é mais emitida por uma autoridade

mágico-religiosa, mas demonstrada pela razão de um homem diante

de seus iguais, ela muda de estatuto.^ Há,portanto, uma positividade

da verdade, que consiste em buscar com argumentos,graças a técni-


cas. por meio de provas. É esse raciocínio histórico, nascido em uma

época em que a história era comumente considerada como literatura.

Marcei Detienne, Les maitres devérité..., op. cit.


A história é uma literatura contemporânea

A lenda negra de Heródoto nos fornece o retrato de urn homo

fabulator, mentiroso ou crédulo, muito inferior a Tucídides, a não

ser pelo estilo. O fato de que existam, em Heródoto, erros, inge-

nuidades, “explicações” pela divindade ou a sorte, é uma evidên

cia. Mas essa visão não faz justiça à profundeza historiográfica do

“pai da história”, cuja habilidade foi atestada pelas descobertas

arqueológicas recentes e que continua sendo, no tocante às Guerras

Médicas, nossa principal fonte.^ A obsessão de Histórias é o choque

entre os gregos e os bárbaros. No âmbito dessa problemática geral,

os povos vítimas dos persas são sistematicamente descritos, com

suas tradições, seus costumes, seus deuses, seu habitat. Quem

diz costumes diz passado, e Heródoto se faz também historiador

do Egito, da Arábia e da Cítia. Já Tucídides privilegiará a história

política e militar contemporânea.


São sobretudo os raciocínios de Heródoto que merecem ser

levados em conta. Histórias se baseia em observações do viajante-

-testemunha e em informações recolhidas ao longo de peregrina


ções na Ásia Menor, na Pérsia, na Babilônia, no Egito e na Grécia

^ Ver Amédée Hauvette, Hérodote, historien desguerres médiques, Paris, Hachette,


1894, p. 500; e Arnaldo Momigliano, “La place d’Hérodote dans I’histoire de
rhistoriographie” (1958), in Problèmes d'historiographie ancienne et moderne.
Paris, Gallimard, 1983, p. 169-185.

188
Os escritores da história-ciência

nos anos 440-430. Como Heródoto conta suas viagens e comparti

lha seus encontros, é levado a indicar a origem de suas informações;


●»
VI
(opsis), “ouvi” (akoe), “informei-me” (punthanomai), “pesqui

sei” {historeó). Por vezes, a narrativa é pontuada por um simples

“disseram”. Em outros momentos, ele confessa seus limites:“Não

me foi possível obter informações precisas acerca do número da

população cita e ouvi opiniões muito diferentes.”^

Se, por um lado, Heródoto é capaz de decidir segundo sua alma

e sua consciência, por outro, é também capaz de transmitir tais quais

as opiniões ouvidas. Exemplo eloquente a esse respeito é a abertura

de Histórias, que justapõe a versão dos persas e dos fenícios a respeito

do rapto de Io. Aquilo que se interpretou como sinal de amadorismo

ou prova de tolerância também pode ser lido como prudência meto

dológica. A expressão da dúvida, confissão da ausência de certeza, é

uma espécie de autocontrole crítico. Que representam as estátuas de

mulheres nuas no palácio de Myquerinos? “A esse respeito, só posso

repetir aquilo que me foi dito.

A história que Heródoto pratica nada tem de rudimentar. Suas

questões poderíam figurar na pauta atual: o imperialismo persa


desde Ciro, a “guerra de civilização” entre os gregos e os bárbaros, o

combate pela liberdade contra a tirania, o papel das cidades jônicas

^ Hérodote, Lenquête, Paris, Gallimard, ‘Tolio”, 1964, v. IV, 81.


“ Ibid.,U,130.

189
A história é uma literatura contemporânea

no conflito. Para responder a tudo isso, Heródoto recorre a várias

formas de raciocínio.^ A primeira, a mais frágil, é a analogia. Em um

lago situado na Ilha de Cirauis, perto da costa líbia, moças recolhem

palhetas de ouro com auxílio de plumas banhadas em resina. Ora,

em uma ilha grega, usa-se um ramo de murta para retirar a resina

de um lago. “Portanto”, o que se diz a respeito da Ilha de Cyrauis

pode ser verdade. O parentesco é prova.

A segunda forma é o raciocínio por verossimilhança. Na impossi


bilidade de verificar as informações fornecidas, Heródoto é obrigado

a avaliar sua veracidade, pesá-las, por assim dizer, em função de sua

coerência,lógica ou probabilidade. Dessa forma, recusa uma alega

ção “inverossímil” (as abelhas teriam invadido as regiões para além

de Istros), “inadmissível”(um tirano dispondo de grande número

de mercenários teria sido vencido por uns quantos exilados) ou

simplesmente “falsa”(o Nilo teria sua origem no derretimento das


neves). A respeito do liberto Salmoxis, que passou três anos em um
esconderijo subterrâneo antes de reaparecer aos olhos do mundo,

supostamente ressuscitado, Heródoto permanece dubitativo: ele

não deseja “negar nem aceitar cegamente” essa história.® No caso

de um acontecimento complexo,o critério da plausibilidade permite

discernir entre várias explicações.

® Ver Catheríne Darbo-Peschanski, Le discours du particulier. Essai sur Venquète


hérodotéenne. Paris, Seuil, 1987, p. 127 sq.
® Heródoto,IV, 95-96.

190
Os escritores da história-ciência

Quando não existe qualquer certeza, o historiador abre o

leque de possibilidades e formula uma hipótese, terceira forma de

raciocínio. Aristodemo, escapado dos Termópilos, foi dispensado

de combate em função de sua oftalmia, ficou para trás por covar

dia, foi encarregado de transmitir uma mensagem fora do campo?

Examinando as diferentes versões das quais dispõe, o historiador

conserva aquela que satisfaz aos requisitos da lógica, da verossi

milhança ou do conhecido. É Epialto que indica aos persas o cami

nho que conduz às Termópilas, e a tradição que incrimine outro é

infundada. De fato, Epialto fugiu e teve a cabeça posta a prêmio.^

Enfim, Heródoto pratica raciocínios “semiológicos”, baseados

em signos e indícios. Epialto se comporta como culpado; o Nilo

carrega aluvião, como se observa ao longo de suas margens; os

Egípcios ignoram Poseidon, e os Dioscuros, portanto, não tomaram

emprestados seus deuses aos gregos. Esse tipo de raciocínio pode

lembrar o “paradigma indiciário” segundo Ginzburg, que apreende

uma realidade a partir de detalhes, de fatos marginais, de traços

subestimados e de traços imperceptíveis.®

Todas essas escolhas metodológicas têm consequências sobre

a composição da obra. Heródoto indica suas fontes, interrogando,


citando, discutindo, trazendo à tona os alicerces de sua pesquisa

’ Ibid., VII, 213-214 e 229-230.

® Cario Ginzburg, “Traces. Racines d’un paradigme indiciaire”, in Mythes,


emblèmes, traces. Morphologie et histoire, Paris, Flammarion, 1989, p. 139-180.

191
A história é uma literatura contemporânea

-visitas, observações,interlocutores,impressões, dúvidas, surpre

sas. Ele não se apaga, como Tucídides, diante de uma história que

fala sozinha, mas assume seu status de pesquisador. Ele não se con
tenta em descrever, mas revela suas dificuldades. Ele se engana,sem

dúvida, mas não cessa de refletir sobre suas fontes, sobre o direito

que tem de afirmar algo. Seus “acredito que”, seus “segundo meu

ver” e seus “no que me diz respeito” não selam o estatuto pré-cien-

tífico da investigação, mas o escrúpulo do pesquisador, ou seja, no

fundo,sua cientificidade. Heródoto fala, mas sob certas condições.

A retórica de Aristóteles e de Cícero

Cario Ginzburg mostrou que o livro no qual Aristóteles mais

fala de história (como a entendemos) não é na Poética, mas na

RetóricaP A primeira contém o famoso trecho no qual a poesia

se opõe à história; mas é na segunda que Aristóteles expõe sua

teoria da prova, estabelecendo as bases da retórica agonística que

encontramos no probare dceroniano.


Assim como o orador antigo, o historiador também prova.

Ele também recorre à retórica para demonstrar, atestar ou refu

tar; ele também emprega, no âmbito de seu raciocínio, provas

® Cario Ginzburg, "Aristote et 1’histoire, encore une fois”. in Rapports de force.


Histoire, rhétorique, preuve, Paris, Gallimard, Seuil, Hautes études , 2003,
p. 43-56. Ver também Adriana Zangara, VoirVhistoire..., op. cit, p, 112-116.

192
Os escritores da história-ciência

materiais, assim como provas verbais, indício seguro (tekmerion)


ou signo {semeion). Surpreende, nesse sentido, que Barthes, fino

conhecedor da retórica antiga, não tenha sentido que a história

pudesse ser algo mais do que um discurso melhorado por efeitos de

real. Entretanto, a cerca que separa a história-narrativa (depreciada


na Poética) da /lístóría-investigação (baseada em indícios e provas)

e a mesma com partilhada pela arte oratória: enquanto o poeta

epidítico apenas mostra, o advogado demonstra. Aristóteles pensa


mais ou menos o mesmo da história-investigaçào, útil, em última
em matéria de
instância, para enriquecer a experiência política

finanças, de segurança ou de legislação. Fica ainda que sua retórica

demonstrativa, tão distante da retórica belo estilo” no sentido

moderno,funda indiretamente a história-ciência.


'dom de
Em 1440, o filósofo Lorenzo Valia demonstra que

Constantino”(por meio do qual o imperador teria doado uma parte


falsário de meados do século
de suas posses ao papa) é obra de um

VIII agindo sob as ordens do papa Etienne II, que buscava estabele
cer seu poder temporal. Da falsa e mentirosa doação de Constantino

mostra, primeiro, que a doação não é plausível e, segundo, que o


texto contém anacronismos linguísticos, contradições, erros. Valia
istotélica, recebida por intermédio
é, aqui, herdeiro da retórica ari-
10

da Instituição oratória de Quintiliano, que o entusiasma.

10 de Constantin”, in Rapports de
Cario Ginzburg,“Lorenzo Valia et la donation
force..., op. cit., p. 57-70.

193
A história é uma literatura contemporânea

E à luz dessa retórica que se deve considerar a contribuição

historiográfica de Cícero. Quando este pede a Luceio que cubra de


elogios seu consulado, tem total consciência de estar violando as

regras da história. Quais são elas? Não dizer nada falso; dizer toda

a verdade; evitar a suspeita de favoritismo ou de ódio. Cícero acres-

centa uma quarta: contar os fatos indicando suas causas. Obtém-se

uma definição de história baseada em quatro pilares: recusa do falso,

coragem do verdadeiro, cuidado com a imparcialidade, busca do por-

quê-como. Se a história ciceroniana tem tamanha necessidade de

eloquência, é menos para ornar e mais para dizer a verdade. A Revue

Historique, na qual Monod publica seu manifesto em 1876,adotara,

por sinal, como divisa as regras de Cícero.

É claro que Cícero não é um historiador. Mas,enquanto advo


gado, conduziu várias investigações. Em 70 a.C., cidades da Sicília

apelam a ele para confundir seu antigo propretor, Verres, suspeito


de rapina e de concussão. Em Roma,como autoriza a lei, Cícero exa-

mina as finanças de Verres; exportações efetuadas desde a Sicília

registros de contabilidade, arquivos de publicanos que autenticam

os impostos, direitos alfandegários não pagos. In loco, na Sicília

Cícero fala com os trabalhadores e se informa junto da assembléia

de Siracusa. Os senadores lhe mostram registros secretos, con-


tendo roubos sofridos pela cidade. A “primeira ação contra Verres”,

Cícero, De Vorateur, livre II, v. XV, 62-63.

194
Os escritores da história-ciência

que Cícero pronuncia em agosto de 70,basta para liquidar a parte

oponente; as acusações da “segunda ação” (acerca das ilegalidades

cometidas durante o pretório, os roubos de obras de arte, as cruel-


12
dades) são, ainda assim, publicadas.

O aspecto de propaganda de que se reveste a eloquência de


a história,
Cícero não só não o impede de reconhecer regras para

mas sua prática jurídica, baseada em uma história-investigaçâo, e

fundante do raciocínio histórico: arquivos, testemunhos,indícios,

provas mobilizadas no âmbito de uma demonstração, estabeleci-


mento de fatos, busca da verdade. A tradição que liga Aristóteles,

Cícero, Valia, Bayle, Mabillon, Momigliano, Vidal-Naquet e

Ginzburg é a da retórica demonstrativa, porque prova que a his

tória é uma eloquência de ação.

A consciência historiadora se desenvolve ao sabor de um pro-

cesso de laicização. Este começa no século VI antes da nossa era,


inter
com o advento da dialética contra a palavra-oráculo. Ele se

rompe na Idade Média: ir além da simples crônica dos eventos

seria pretencioso; seria como uma tentativa de explicar a vontade

Pierre Grimal, Cicéron, Paris. Fayard. 1986, cap. VI.

195
A história é uma literatura contemporânea

divina.^^ No Renascimento, a história se baseia no livre-arbítrio e

na abordagem crítica, o que implica certa emancipação com relação


à Igreja. Lorenzo Valia se opõe à tradição; Henri Estienne ri dos

milagres que a Legenda áurea dissemina. As guerras de religião


levarão La Popelinière e de Thou a combaterem a intolerância.

A história é o campo da razão humana,e não dos dogmas e das

verdades reveladas. O historiador não recebe a verdade pronta, de


cima; ele a busca por meio de um método. Independentemente em

relação a todas as autoridades, ele é sua própria autoridade(o que nao

impede de trabalhar coletivamente). Essa ruptura com o divino,essa


desconfiança das crenças, essa recusa do sobrenatural — esse esforço

de compreender o que fazem os homens -ligam os humaniores litterae

dos humanistas à história profana das Luzes e do século XIX. Banir

os milagres se torna um “princípio de crítica histórica”.

Onde encontrar a certeza aqui na Terra, se não nos arquivos,

nos manuscritos, na Antiguidade? Esse retorno às fontes, ad fontes


como dizem os humanistas, dá a luz à erudição crítica. Ela é pra

ticada por filólogos como Valia e Budé e por juristas como Bodin,

Cujas, Pasquier e Thou (autor, em 1604, de uma história da Europa

contemporânea e proprietário invejado de uma biblioteca de vários

milhares de volumes). A paixão pelo original influencia a economia

13
Bernard Guenée, “Histoires, annaJes, chroniques. Essai sur les genres histo
riques au Moyen Âge”,Annales ESC, v. 28, n. 4, p. 997-1016, 1973.
14
Ernest Renan, ViedeJésus, Paris, Lévy, 1863, p. LII.

196
Os escritores da história-ciência

do texto. A “retórica das citações”, típica do humanismo galicano


ao
dos magistrados-historiadores, atesta o crédito que outorgam
testemunho
documento comprobatório, à lição dos manuscritos, ao

escrito. Como explica Étienne Pasquier, autor de Recherches de la

Prance (1560), não se pode dizer nada sem apresentar provas .

No coração da filologia e do pensamento jurídico do século

XVI se encontra a exigência de método. Aquela que Bodin define


em seu Methodus ad facilem historiarum cognitionem (1566) servirá

de modelo para muitos historiadores, que, como La Popelinière,


encontrarão a ideia de uma matemática da história baseada em
16
desenvolvimentos.
problemas, séries causais, pontos de origem e

A história não é uma metafísica na qual todas as especulações estão


a um material
autorizadas; ela estuda as ações dos homens graças

que teve o desígnio de recolher. Essa exigência de observação


assim
anuncia o método do Novum Organum (1620) de Bacon.

como conhecemos a natureza graças a experiências, conhecemos

o passado graças a documentos. Ainda que a história-problema do


século XVI nada tenha de um empirismo, La Popelinière e Bacon
em
(autor também de uma Histoire du règne de Henri VIJ) coincidem

vários pontos: a desconfiança da tradição, o recurso à experiência,

Marc Fumaroli. Lage de Véloquence..., op. cit, p. 489 sq. e p. 686 sq.
Philippe Desan,Penser 1'histoire à la Renaissance, Caen,Paradigme, 1993,cap. V.
IG

197
A história é uma literatura contemporânea

a saída de si, a preocupação com a objetividade.^^ Essa aspiração


cientí5ca justifica o despojamento da historia nuda. Para Bodin e

La Popelinière, os escritos do historiador não devem se destacar

pelo ornamento retórico, mas pela clareza de expressão. Seu valor


não repousa na beleza, mas na exatidão.

O século XVI vê, assim, nascer o ideal de uma “história

bem~sucedida . não mais a história legada pelos antigos, mas uma

história-ciência autônoma, baseada na laicização da pesquisa, no


questionamento das fontes originais, no método racional, na sobrie

dade do estilo. Para além de seu próprio campo de pesquisas(a moeda


romana
para Budé,a continuidade da França para Pasquier), ela tem

por objetivo a pesquisa da verdade, que Popelinière define como


“a principal e mais necessária graça do historiador”.^®

Sujeição, erro, parcialidade: no século XVII, os historiógrafos


financiados pela monarquia representam a antítese da “história

bem-sucedida”, e os valores desta são mais bem defendidos pelos


memorialistas. Essa convergência entre história e memória é favo

recida pelo fato de que a história contemporânea pode ser escrita

por testemunhas-autores, como Guichardin, de Thou e, antes deles

17
F. Smith Fussner, The Historical Revolution: English Historical Writing and
Jhought, 1580-1640, London, 1962; e G. Wylie Sypher, “Similarities Between
the Scientific and the Historical Revolutions at the End of the Renaissance”
Journal ofthe History ofIdeas, v. 26, n. 3, p. 353-368,jul.-set.1965.
18
Henri Lancelot-Voisin de La Popelinière, VidéedeVhistoireaccomplie..., v. 2. op.
cit., p. 258.

298
Os escritores da história-ciéncia

Políbio, Xenofonte, César e Commynes. A partir dos anos 1550,


sua
os memorialistas, grandes da nobreza de espada, valorizam

retidão e sua experiência, que os tornam aptos a bem julgar os

assuntos que relatam, ao contrário dos historiógrafos, cortesãos


mao.
servis e inexperientes, obrigados a trabalhar de segunda

Em suas Memórias, o abade Arnauld pretende restabelecer toda a

verdade a respeito da derrota de Thionville em 1639, dissimulada


os memorialistas
pela historiografia; Bussy-Rabutin defende que

são “imparciais e amigos da verdade”d®


defende seu esta-
Saint-Simon é quem mais energicamente
tuto de historiador-testemunha digno de fé, redentor da verdade
si mesmo as coisas
manchada, melhor por ter “manipulado por
mes-
que escreve”. O marechal de Villars usurpou a glória de seus

tres, Madame de Maintenon manobrou “com tamanha arte que a

posteridade recusará acreditar, o duque de Orleães não envenenou

o príncipe herdeiro e sua família, o Rei-Sol foi um “rei bastante

grandioso”. Nesse combate pessoal contra a mistificação, o histo

riador é auxiliado por suas próprias lembranças, assim como por

testemunhas; o marechal de Lorges,“homem mais verdadeiro que

existiu”, ou os oficiais que participaram das campanhas de Villars.

É claro que Saint-Simon não brilha graças a sua imparcialidade.

Ele cultiva um ódio cego aos bastardos do rei, a sua antiga governanta

Emmanuèle Lesne, La poétique des mémoires (1650-1685). Paris. Honoré


Champion,1996, p. 42-49.

199
A história é uma literatura contemporânea

e protetora Madame de Maintenon,a todos os “monstros” da corte.

Ele é obcecado pelas querelas de posição e de etiqueta. Duque até a


raiz dos cabelos, ele é excessivamente vaidoso, muitas vezes superfi

cial e, às vezes, repreensível. Mas suas Memórias são habitadas pelo

raciocínio histórico tal como forjado no século XVI: recorrer aos tes

temunhos autênticos, desmascarar as mentiras,falar de experiência,

atualizar as engrenagens dos acontecimentos”, nada dizer que nao

seja ‘ditado pela verdade nua para bem ou para mal”, impedir que a

posteridade se deixe levar pelas máscaras do presente.

O espirito de 1690

A autoridade da Igreja, a glória ao rei, a dúvida radical de

Descartes, o pirronismo de La Mothe Le Vayer são as principais


ameaças que a história deve enfrentar no século XVII. Caso ela se

torne elogio da corte, passatempo, frivolidade, como se diz, ela

perderá totalmente o interesse. Contra esses ataques, organizam-se


demonstrações nas últimas décadas do século.

“Por história, entendo tudo aquilo que já foi inventado e que

está contido nos livros. Mas por ciência, entendo a habilidade


de resolver todas as dificuldades”, escreve Descartes em 1640.^°

A ciência é uma atividade da razão, enquanto a história é uma

20
René Descartes, carta a Hogelande(8 de fevereiro de 1640), citada em Yvon
Belaval, Leibniz critique de Descartes, Paris, Gallimard, 1978, p. 91.

200
Os escritores da história-ciência

narrativa pronta e, ainda por cima, repleta de erros e de dúvidas.

Aquele que busca a verdade deve começar rejeitando o incerto: é a

razão pela qual o filósofo deixará a história para os eruditos.


Leibniz recusa essa divisão. A matemática e a história não têm

a mesma natureza, mas esta pode alcançar a certeza, sob a condição

de que estabeleça um método para si mesma. Qual? Leibniz desen

volve sua reflexão historiográfica a partir de 1687, por ocasião da

grande viagem que empreende nos Estados alemães e italianos para

pesquisar as origens da casa de Brunswick. Para extrair a história da

fábula, pode-se criticar documentos e testemunhos; para fazer revi

ver o passado, pode-se estudar aquilo que dele subsiste no presente;

para aumentar nossas certezas, pode-se fazer uso da geologia, da


mensurar
arqueologia, da linguística, da filologia, da genealogia; para

a verossimilhança, pode-se recorrer à probabilidade matemática;em

vez de rejeitar opiniões, pode-se confrontá-las. Em uma palavra, a

história pode se tornar uma ciência caso se baseie em hipóteses,

raciocínios, demonstrações. Em uma monografia para o duque de

Brunswick (1692), Leibniz escreve que “essa exatidão que os verda

deiros eruditos exigem atualmente se popularizou até na história,

que parecia a menos suscetível”. A história tem várias partes, mas


21
“a alma de tudo é a verdade”. A ela se chega graças a “boas provas”.

Louis Davilé, “Le développement de la méthode historique de Leibniz , Revue


de Synthèse Historique. XXIII, n. 69. p. 257-268, déc. 1911.

201
A história é uma literatura contemporânea

Purgar a história de seus erros, referir-se a seus documentos,

não avançar sem provas, visar a certeza como em toda ciência é,

quase que literalmente, o programa de Pierre Bayle. Esse erudito


cartesiano, calvinista refugiado na Holanda, editor de Nouvelles de

la République des lettres(1684), baseia-se na dúvida, mas não para

deslegitimar a história, e sim para torná-la inatacável. Depois de

ter projetado estabelecer uma “coletânea de falsidades” apresenta

das em outras obras, ele publica o Dictionnaire historique et critique

(1697), dicionário biográfico no qual os erros de seu predecessor,

Moréri, são sistematicamente corrigidos.


A paginação do Dicionário coloca em evidência a meticulosidade

do trabalho de fontes. Como anuncia Bayle no prefácio, as entradas

são divididas em duas partes. Uma,puramente biográfica, confere


“uma narrativa sucinta dos fatos”; a outra, composta de anotações,

é um longo comentário, “mistura de provas e de discussões”. Em

cada uma das partes, anotações indicam a fonte das informações,

assim como a referência das citações. Bayle introduz, assim, quatro

níveis de texto: a narrativa biográfica propriamente dita; suas notas

críticas (A, B, C...), no rodapé e em fonte pequena, longo comen-

tário que forma a segunda parte da entrada; as notas de erudição

da biografia, nas margens de cima (a, b, c...); as notas de erudição

do comentário, nas margens de baixo (1, 2, 3...). Em suma, temos

a narrativa biográfica, o comentário crítico em nota, as notas da

202
Os escritores da história-ciéncia

biografia e as notas das notas. Graças a esse sistema, cada afirmação

é comprovada, referenciada, colocada ern perspectiva e criticada.

Pela imensidão de sua erudição, pelos níveis de leitura que per

mite, pela complexidade de sua narrativa, por sua organização labi-

ríntica, o Dicionário de Bayle é uma obra-prima da literatura. Ora,

é precisamente por meio dessas escolhas literárias que a história

se torna uma ciência. A narrativa responde às exigências em maté

ria de versificação, de certificação, de gestão das provas. E porque


uma
Bayle conta que prova, e é porque prova que conta. Ele cria por
uma
questão de rigor. As notas críticas e de erudição constituem

revolução de método e, ao mesmo tempo, uma revolução literária.

Daí o porquê desse Dicionário ser tão decisivo: depois de Heródoto,

Cícero, Valia, ele encarna uma epistemologia em um texto. A escrita

bayliana não é nem ornamento, nem retórica; ela é um raciocínio


histórico em si mesma.

A invenção de uma técnica literária da veridição permite que Bayle

reajuste, em favor dos historiadores,a balança que pendia para o lado


dos memorialistas: um erudito formado no método é muito mais

qualificado do que uma testemunha de seu tempo, ainda que este

disponha de informações de primeira mão. Graças ao aparato crítico,


a história se torna um modelo de ciência. Graças a suas remissões

referenciadas, eia propicia o recuo do erro e do preconceito.

À guisa de história, o Dicionário retraça a vida dos grandes

personagens que viveram desde a Antiguidade. Sua documentação

203
A história é uma literatura contemporânea

é mais livresca do que arquivística. Ora, para conhecer o passado

dos homens, sem se restringir ao memorável ou ao contemporâ

neo, é preciso estudar o conjunto dos traços que eles deixaram.

Mabillon, monge beneditino de Saint-Maur,funda a crítica docu

mental em De re diplomática (1681). A diplomática se torna uma

ciência capaz de autenticar um documento, datá-lo, determinar

sua proveniência. Em seus trabalhos sobre os santos de sua ordem,


no final dos anos 1660, assim como em sua Lettre sur le culte des

saints inconnus(1698), Mabillon prega a exatidão e o espírito crítico

em matéria de história religiosa, o que lhe vale ferozes inimiza

des. Para defender seu trabalho, ele define as “regras da história”.


A primeira qualidade de um historiador é “o amor e a busca pela

verdade”. Para alcançá-la, ele só pode adiantar “aquilo que se apoia


na própria Antiguidade”.^^ O original é a única autoridade válida.

As antiguidades incluem, segundo Furetière, as “medalhas,

estátuas e outros monumentos que sobraram dos Antigos”. Mate


rialidade e autenticidade, examinadas com método, conferem um

peso de certeza. Jacob Spon recenseia os testemunhos arqueo

lógicos em Voyage de Grèce et du Levant(1678); Spanheim cria a


numismática moderna nos anos 1660-1670; a Ars critica (1697) de

Le Clerc propõe um método para estudar documentos,inscrições,

moedas e estátuas. Essa abertura às antiguidades reforça o trabalho

22
Mabillon, Brèves réfiexions sur quelques règles de Vhistoire, Paris, POL, 1990.

204
Os escritores da história-ciência

dos historiadores, principalmente a Histoire de France de Mézeray

(1685)e do padre Daniel(1696).^^ Os historiadores liberais, român

ticos e metódicos do século XIX não esquecerão esses progressos.


Amar a verdade no Grande Século, lutar contra a intolerân

cia ou o absolutismo: esse será o combate dos memorialistas.

dos antiquários, de Leibniz, de Mabillon e de Bayle. Para este

último, a nota de rodapé é um triplo refúgio; contra o desprezo


ortodoxia
de Descartes, contra a opressão de Luís XIV, contra a

católica.^'’ Ao fixar novas regras para si mesma, a história se torna


uma escola de resistência. Uma restrição em troca da liberdade de

saber. A independência intelectual ao proveito de todos os homens.


Esse retrato do historiador estoico, sem pátria nem paixao,

revela uma sociologia da verdade no século XVII: Racine e Boileau


memo-
são burgueses cortesãos, enquanto os grandes senhores

rialistas vivem na desgraça e que os eruditos escapam ao poder de


ou explorando
atração de Versalhes estudando em seu mosteiro
as bibliotecas, cidadãos da República das Letras. A história passa

a se interessar não somente em compreender, mas em provar, a

23
Arnaldo Momigliano,“L’histoire ancienne et 1’antiquaire (1950),in Problèmes
d'historiographie ancienne et moderne, op. cit., p. 244-293; e Marc Fumaroli,
Gilbert Gadoffre
“Historiographie et épistémologie à lepoque classique , in
(dir.), Certitudes et incertitudes de Vhistoire, Paris, PUF, 1987, p. 87-104.
24
Anthony Grafton, Les origines tragiques de lerudition. Une histoire de Ia note en
bas de page, Paris, Seuil, “La Librairie du XX'^ siècle , 1998.

205
A história é uma literatura contemporânea

fim de corrigir os erros, purgar a tradição, confundir a impostura.

Embalada pelo espírito dos anos 1690, ela se tornou um combate.

A cólera da verdade

O raciocínio histórico não serve apenas para compreender o

passado; ele também contribui para agir no presente. Ele permite

reabilitar o protestante Calas, acusado injustamente da morte de seu


filho. Nos anos 1780, a fim de demonstrar a crueldade do tráfico,

Thomas Clarkson percorre a Inglaterra em busca de provas, entre


vista marinheiros, recolhe algemas e outros instrumentos de tortura

usados nos navios, ajuda a divulgar a autobiografia de um ex-escravo.

Pode-se menosprezar Chateaubriand: ele descreve terras que


nunca visitou, sonha ser igual a Napoleào. Mas o livro XVI das Memó'

rias de além-túmulo é uma das primeiras tentativas de compreender a

execução do duque de Enghein, nas fossas do castelo de Vincennes,


em 1804.Para restabelecer a verdade, Chateaubriand argumenta com

base nos documentos de que dispõe: interrogatório do jovem duque

diante da junta militar, memórias publicadas pelos protagonistas,

ata de exumação (a mandíbula da vítima foi quebrada por balas).

Imediatamente depois da análise desse “assassinato”, Chateaubriand

cita o artigo que publicara em 1807 no Mercure de France:

206
Os escritores da história-ciência

Quando, no silêncio da abjeção, só se ouve ressoar a


corrente do escravo e a voz do delator, quando tudo
treme diante do tirano, e que é tão perigoso incorrer
em seu favor do que merecer sua desgraça, surge o
historiador, incumbido da vingança dos povos. E em
vão que Nero prospera, pois Tácito já havia nascido no
Império; ele cresce desconhecido junto das cinzas de
Germanicus, mas a íntegra Providência já entregara
uma criança obscura à glória do mestre do mundo.

O escritor-historiador é um oponente pela simples razão que


diz a verdade.

No final do século, historiadores como Charles de Seignobos,

Henri Hauser, Albert Mathiez e Georges Lefebvre se posicionam

em favor de Dreyfus. Eles se engajam enquanto cidadãos, socia

listas ou republicanos, mas também enquanto detentores de uma

competência. Pois o historiador é um profissional da prova. Gabriel

Monod analisa o fac-símile do processo e depõe diante da câmara

criminal do Tribunal de Cassação em 1899; quatro documentalistas

da École des Chartes são citados no processo Zola. Seu engaja


25
mento é “quase deontológico”.

Na segunda metade do século XX,o raciocínio histórico ajuda


em muitos combates. Órfão da Shoah, criança escondida, aluno de

Marrou na Sorbonne, engajado na luta contra a tortura na Argélia,

25
Olivier Dumoulin, “Les historiens”, in Michel Drouin (dir.), L'Affaire Dreyfus,
Paris, Flammarion, 2006, p. 389-396.

207
A história é uma literatura contemporânea

Pierre Vidal-Naquet defende a ideia que o historiador deve desem

penhar um papel na cidade. Se é “testemunha da verdade”, não

é apenas porque defende valores, mas também porque segue as

regras do seu ofício. Vidal-Naquet estabelece um paralelo entre o

caso Dreyfus e o caso Audin. Em um campo, a falsidade, a cumpli

cidade do estado-maior, a mentira de Estado; no outro,“um lobby

a serviço da verdade", buscando testemunhas, angariando provas,


publicando artigos e livros.

Mais uma vez, é importante realçar que o pesquisador e o mili¬

tante são uma única e mesma pessoa. Pode-se, portanto, combater


a Guerra da Argélia enquanto historiador: Estabelecer fatos, cons

tituir conjuntos, restabelecer ou tentar restabelecer a verdade com


’26
relação à mentira ohcial não me obrigava a mudar de trabalho.'

E Vidal-Naquet pode citar o trecho no qual aparece o opositor de

Napoleão, encarregado da vingança dos povos". Retrato de Vidal-


Naquet em Chateaubriand, retrato de Chateaubriand em Tácito.

O historiador Ginzburg, que consagrou um livro à demonstração

da inocência do militante esquerdista Adriano Sofro, também é o


autor do prefácio de Valia.

A força que move o historiador é a mesma que alimenta os


combates de Valia contra o papado, La Popelinière contra a intole

rância, Mabillon contra o obscurantismo, Bayle contra a opressão,

Pierre Vidal-Naquet,Face à Ia raison d'État. Un historien dans la Guerre d‘Algérie,


Paris, La Découverte, 1989, p. 45.

208
Os escritores da história-ciència

Saint-Simon contra os impostores, Chateaubriand contra o despo

tismo, Thierry contra os historiógrafos, Voltaire e Jaurès contra

o erro judiciário, Vidal-Naquet contra os segredos de Estado e o

negacionismo. É a cólera da verdade sob todas as suas formas: a

intranquilidade, o frenesi de saber, a urgência de dizer, a “paixão

histórica”, ou seja, o oposto desse estado de ataraxia intelectual

que buscam Pirron e os céticos. Essa é a cólera que leva o jornalista

Albert Londres a contar as colônias penais, os asilos, as guerras,

a exploração dos africanos, a solidão dos judeus. A mesma que


Alemanha em 1945:
invade um jovem deportado que atravessa

Sentíamos a necessidade de tirar conclusões, de


perguntar, de explicar e de comentar, como fazem
os jogadores de xadrez no final da partida. Será que
conheciam a existência de Auschwitz, o massacre
batia à sua porta? [...]
quotidiano e silencioso que
Se não, devíamos, eu devia, era um dever sagrado, 28
contar-lhes, imediatamente, toda a verdade.

O historiador não está trancado na Biblioteca; ele acaba de sair

do campo. Ele sente a necessidade de compreender o que aconte

ceu, aquilo que ocorreu, aquilo que aconteceu conosco, aquilo que

os homens fizeram, aquilo que fazemos. Esse é, como diz Primo


militantismo da verdade.
Levi,seu “dever sagrado”. A história é um

27
Augustin Thierry, préface à Dix ans cietudeshistoriques, op. cit., p. 353.
28 . 245-246.
Primo Levi, La trêve, Paris, Grasset,“Le Livre de Poche , 1966, p

209
A história é uma literatura contemporânea

Ela se exerce sempre em meio hostil, contra um inimigo que se

chama erro, traição, denegação, mentira, segredo, esquecimento,


indiferença. Mas a verdade, neste caso, não remete a um grito de

desespero ou de raiva, nem a uma sabedoria imemorial, nem a

uma equação matemática, nem a uma informação recebida em sua

imediatez midiática. Ela é tributária de um raciocínio que historia

dores e não historiadores, viajantes, monges,juristas, advogados,


colecionadores, jornalistas, contribuíram para inventar.

No século XIX, os metódicos conseguem fazer frutificar essa


herança, mas arrancando-a a suas
raízes: a escrita e o engajamento
do eu. Toca~se, aqui, no grande limite do cientificismo antiliterário.

Disfarçado de objetividade, ele ignora a capacidade epistemológica

do eu da pesquisa . Em nome da cientificidade, ele ignora o peso


demonstrativo
e cognitivo que pode haver na literatura — narra¬

tiva de viagem, pesquisa, alegação, epopeia, memória, romance.


A história-ciência foi inventada
por escritores que nela apostavam
sua vida. Isso era no tempo das belas-letras.

29
Paul Ricoeur, Histoire et vérité, Paris. Seuil, "Essais' 1955, p. 32-39.

210
7.

As operações de veridição

Contrariamente aos profetas, que declaram a verdade, o pes

quisador a persegue por meio de um raciocínio, fio condutor de uma

empreitada de compreensão-explicação. Esse raciocínio, comum ao

conjunto das ciências sociais, compreende várias operações que dis-

tinguiremos aqui em função das necessidades da causa: o distanda-

mento, que permite colocar um problema; a investigação, por meio

da qual as fontes são coletadas; a comparação, que dissipa a ilusão do

caráter único; a formulação-destruição de hipóteses, graças às provas.

Em outras palavras, a história como ciência social é um racionalismo

crítico que consiste em responder às questões que formulamos.

A distância

distância? A distância
Como o pesquisador faz para tomar

temporal facilita o trabalho. Certas frases, diz Danto, só podem


'a Guerra de
ser pronunciadas por um contemporâneo: dizer que

Trinta Anos começou em 1618” implica conhecer não somente seu


desfecho, mas também sua importância. De fato, descrever algo à
em uma abordagem histórica.
luz de informações futuras consiste

Mas e aquilo que estamos vivendo, a história viva ou o campo


A história é uma literatura contemporânea

sociológico? Uma solução consiste em distanciar fisicamente o

evento. Salustio, desejando escrever a história do povo romano,


distancia¬se
da vida pública depois da morte de César. Em 18 de

junho de 1815, data da Batalha de Waterloo, Chateaubriand está

em Gand, a cinquenta quilômetros, sozinho sob uma arvore, o que


lhe permite imaginar as consequências desse “novo Azincourt”.
Mas nem o
distanciamento temporal,nem a quietude do otium,
nem
a postura da testemunha podem substituir o distanciamento

diante da própria situação. Notar que se é, assim como Proust que

reve sua avó, alternadamente ator implicado, e, portanto, cego, e

observador distanciado, de chapéu e casaco de viagem, Kracauer


recusa-se a
privUegiar o objetivismo de Ranke ou a hermenêutica de

ey. Essa é a razão pela qual há posições heuristicamente fecun


das, entre impHcação e liberação; o eterno viajante(como Heródoto),
o
exilado (como Tucídides, Políbio, Maquiavel), o pária consciente.
o apátrida, o desertor. o
estrangeiro segundo Simmel, ao mesmo
tempo próximo e distante, indiferente e participativo, o marginal
man
de Park e Stonequist, que fica às margens não somente porque
a sociedade o rejeita.
mas porque escolheu viver entre duas águas.

Noção-chave da sociologia alemã e da Escola de Chicago, essa


defasagem - um pé dentro e um pé fora- encontra uma equivalência
na tradição durkheimiana:
a ruptura com o real”, a necessidade de se

^ Siegfried Kracauer, LHistoire..., op. dt., p. 145.

212
As operações de veridiçào

desfazer do senso comum,das noções prévias, da teoria espontânea,

da linguagem banal, das relações familiares, dos objetos que pareciam

óbvios.^ As Mitologias de Barthes são do campo das ciências sociais, na

medida em que se esforçam em desnaturalizar os objetos da vida quo

tidiana, enredados nas falsas evidências e naquilo que parece óbvio.

Finalmente, é na relação com as fontes que se pode tomar dis

tância: há falsos documentos, assim como há más testemunhas.

Todos os discursos do método, de Mabillon a Langlois e Seignobos,

assumem essa função crítica. Mas como evitar a introdução da


o 11 de
prudência na loucura paranóica, que consiste em dizer que

setembro foi montado pelos serviços secretos americanos ou que


Descartes é um mito inteiramente criado pelos jesuítas de La Flèche?

Quando se está diante de um documento ou de um testemunho,não

se deve perguntar se o autor quis enganar, mas se ele compreendeu

aquilo que disse, e com qual grau de exatidão e de clarividência.

Marrou diz que posto que o conhecimento histórico e mediato, ele


dizer credulidade.^
supõe uma relação de confiança, o que não quer

Fugindo da ingenuidade que implica a hipercrítica, o pesquisa

dor deve, portanto, adotar uma atitude de confiança-vigilância que


Heródoto resume à sua maneira:"Ainda que tenha o dever de relatar

o que foi dito, não sou obrigado a acreditar - leve-se em consideração

ues,
2 Ver Pierre Bourdieu et al, Le métier de sodologue. Préalables épistémologiq
Berlin; New York, Mouton de Gruyter, 2005(1968).
3 Henri-Irénée Marrou. De la connaissance historique. Paris, Seuil, 1954, p. 132 sq.

213
A história é uma literatura contemporânea

essa reserva do início ao fim desta obra.”^ Cabe ao pesquisador expli


citar as razões que tem de validar, duvidar ou recusar. Cabe a ele

tratar suas fontes como trata a si mesmo,distante de sua pessoa, de

seu estatuto social, de suas identidades, de suas motivações.

O recuo epistemológico permite menos definir um problema

sempre se tem um problema - e mais defini-lo com pertinência.


Contrariamente ao
que dizem os empiristas, o erudito não vai do
particular ao geral, do detalhe ao todo, da observação à teoria; é o

problema que o impele ao mundo. Toda uma tradição epistemoló-

gica, de Koyré a Popper, relembra que a formulação de um problema

constitui o gesto científico fundamental. E cada resolução, por meio

da experimentação,faz surgirem novos problemas.


As ciências sociais não procedem de maneira diferente. Desde
Heródoto, todos os historiadores
perseguiram um problema que,

frequentemente, encontra-se mesclado a sua própria vida; guerra,

advento, conquista, revolução, genocídio. Mas foi preciso aguardar


o século XX para que a história se
apresentasse explicitamente
como
problem solvingactivity. Collingwood dirá; e a Escola dos

Anais, cutucada pelos críticos durkheimianos. lembrará que o


historiador sempre parte com a ideia de um propósito preciso,

um problema para resolver, uma hipótese de trabalho a verificar”.^

Hérodote, VII, 152.

^ Lucien Febvre, Examen de conscience d’une histoire et d'un historien”(1933),


in CombatspourVHistoire, op. cit., p. 3-17.

214
As operações de veridição

as
Esse postulado tem duas consequências importantes: todas

ciências pensam da mesma forma; a história não pode se definir

como o conhecimento do passado. Não há “passado em si, fatos

para descobrir. Só há problemas, ou seja, questões colocadas aos


subsistiram,
traços - objetos, documentos, testemunhas - que
nos fazemos, a
0 problema histórico, essa é a pergunta que

questão paradoxal, contradoxal,a expressão daquilo que surpreende,

resiste, dá comichão, estimula; é o enigma fecundo, a intuição, a


sua
"pequena ideia” que ruminamos, a obstinação do pesquisador,

angústia,sua ingenuidade,sua pequena loucura, o contrapé que ele

dá com relação ao resto.“São Luís de fato existiu? , pergunta malicio

samente Le Goff, antes de desconstruir o mito do rei supercristão.

A questão desencadeia o raciocínio, comanda a investigação


vai trabalhar;
documental, traça o âmbito no qual o pesquisador

daí o sentimento de perplexidade inspirado pelos projetos de his


tória universal. No final das contas, a pesquisa em ciências sociais
uma atitude de recuo, que
implica duas atitudes complementares:

consiste em extrair a si mesmo (pelo menos mentalmente) para


atitude de
observar de uma posição temporal e sociológica; uma

focalização, por meio da qual escolhe-se ficar no contexto de per

tinência delimitado pela questão.

® Jacques Le Goff, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996.

215
A história é uma literatura contemporânea

O pesquisador não é um adivinho que “sabe” por meio de ciência


infusa. As ciências sociais se fazem com fontes, e a história, em parti
cular, precisa de documentos. Assim como os historiadores da época

romântica, os metódicos sabem que a história é um conhecimento

indireto, que busca compreender o passado por meio de traços.

Essas fontes, que podemos designar sob o termo genérico de

arquivos ,são de natureza diversa. Há arquivos arqueológicos (ossa

das, moedas,joias, monumentos,construções,inscrições), arquivos

submarinos (naufrágios, ãnforas, blocos de pedra), arquivos mate-


riais (estradas, mobiliário urbano. móveis, objetos de arte ou da

vida quotidiana), arquivos escritos(manuscritos,impressos,


i - - - jomais.
^ '

cartazes, bandeirolas), arquivos visuais ou audiovisuais (imagens,

fotos, vídeos, filmes), arquivos digitais (internet). Entretanto, à


nossa volta, há
pessoas e coisas, paisagens e livros que não dizem
nada. Isso porque ninguém é testemunha, nada é fonte, enquanto

o pesquisador não tiver assim decidido por meio de uma pergunta.

Assim que existe uma pergunta, tudo é dotado de palavra:"É docu

mento toda fonte de informação cujo espírito do historiador sabe

tirar algo para o conhecimento do passado humano.”^

’ Henri-Irénée Marrou, De la connaissance historique, op. cit, p. 77.

216
As operações de veridiçao

É preciso um bom faro, técnico ou psicológico, para ter acesso ao

arquivo; mas isso não deve deixar de lado o fato de que o arquivo está

em toda parte. O pesquisador pode “inventar suas fontes, ou sej

questionar objetos novos esperando que respondam à sua questão,

cercados, motores, receitas de cozinha, sonatas, eclipses da lua

rédeas”, minha vizinha, uma conta do Facebook e até mesm

sonhos, usados para compreender o impacto da ditadura naz


hora de coletar
nas consciências.® É crucial não vestir tapa-olhos na
menos inte-
as fontes. Se não, negligenciam-se aquelas que parecem
subalternos”.
ressantes, lacunares demais ou emanadas de atores

Romain Bertrand, em VHistoire à parts égales (2011), recon

mesma dignidade ao conjunto de documentos em presença, j


,recusando
eles de origem holandesa, portuguesa, malaia ou javanesa
fundamento
de cara o jogo das hierarquias implícitas que estão no
do nosso etnocentrismo. Para compreender as primeiras inte ç"

entre holandeses e javaneses no final do século XVI, devem-se der-

rubar as “muralhas de papel do arquivo europeu .

Quando se dá por encerrada a coleta de fontes? Nunca am

que se decida o contrário. Como se recolhem as fontes? Por meio de


sua
uma investigação. Graças à investigação pesquisador reúne

Charlotte Beradt, Rêversous le Troisième Reich, Paris, Payot & Rivages, 2002.
autre histoire” (1949), in
A citação encontra-se em Lucien Febvre, Vers une
Combats pour Vhistoire, op. cit., p. 419-438.

217
A história é uma literatui'a contemporânea

documentação. Ela se baseia em três procedimentos que podem ser

combinados: a escavação, o encontro, a experiência.

A escavação consiste em buscar arquivos comprobatórios na

terra, na superfície da terra, sob o mar, nos depósitos especiali


zados ou nas bibliotecas: ossadas, vestígios, escritos, papéis, etc.
A escavação é,
em si, um raciocínio, pois o arqueólogo ou o historia
dor nunca abre um túmulo ou uma caixa sem querer. Antes disso,

foi preciso experimentar a necessidade, deduzir sua existência e


conseguir locaHzar o objeto. Não é fácil descobrir o que um Estado,
uma coletividade local, uma empresa,uma família, escondem. Não é

óbvio encontrar os documentos que descrevem as condições de vida


dos escravos de
um navio negreiro do século XVIII ou o sofrimento
das crianças abandonadas
no século XIX, nem de obter diários ínti¬
mos nos quais se confiam as moças do século XX.
O mesmo ocorre na
paleontologia. Em busca de antigos homi-
nídeos, Michel Brunet escolheu partir ao oeste do Rift, ao Chade e à

Líbia, contra a ideia dominante


segundo a qual o homem teria surgido
na África do Leste. Quando das
campanhas de escavação, graças às
imagens de satéHte ou a
perfurações de petroleiros, ele sonda dife

rentes zonas em busca de níveis geológicos com antiguidade mínima

de três milhões de anos. Em 1995, ele faz uma grande descoberta:


a mandíbula do
mais antigo australopiteco conhecido, batizado de
Abel. Pura sorte? Não há
acaso no nosso trabalho, mas um caminhar

218
As operações de veridição

a um
racional, pensado, ao longo do qual os indícios coletados um
9

permitem estabelecer novas deduções, escolher novas orientações

O encontro permite que o pesquisador se confronte a seres

vivos, por meio de entrevistas ou graças à observação participativa.

0 “trabalho de campo' ou field Work, valorizado pelos sociólogos de


sociais
Chicago (por sua vez herdeiros das grandes investigações
ir ao
do século XIX, de Frédéric Le Play a Charles Booth), incita a

encontro das pessoas, a ir falar com elas in situ e a viver em sua

companhia. Para fazer uma antropologia da pobreza no México


de horas no
dos anos 1950, Oscar Lewis passou muitas centenas

seio de cinco famílias, comendo com eles, escutando os problemas

de uns e de outros, dançando com eles.

Todo encontro tem algo de desestabilizador. Ele desloca o olhar,

faz com que o ponto de vista mude; ele permite,também,recolh

novos arquivos, administrativos ou privados, escritos ou ora


do Pacífico ocidental
Como pontua Malinowski em Os argonautas
(1922),as sociedades modernas dispõem de instituições cuja função
sociedade indí-
é conservar o material documental, enquanto uma

gena-por exemplo das ilhas Trobirand - nada tem disso. A solução,

para o etnólogo, consiste em conduzir suas próprias observações e


recolher testemunhos acerca de todos os imponderáveis da vida. ceri

mônias,trocas, cozinha,higiene, conversas, discussões, brincadeiras.

Michel Brunet, D’Abel à Toumat Nômade, chercheur dos, Paris. Odile Jacob,
2006, p. 60-61 e p. 124-125.

219
A história é uma literatura contemporânea

A experiência consiste em fazer reviver, na medida do possí-

vel, aquilo que os outros, mortos ou vivos, viveram. À medida que

estuda seus semelhantes, o pesquisador compartilha com eles cer¬

tos sentimentos, emoções e lembranças. Por ter igualmente vivido,

desejado, amado, viajado, sofrido, aprendido, compartilhado, ele


10
possui “arquivos interiores
aos quais se refere para compreen-
der intuitivamente a vida dos outros. Da mesma forma, nossos

neurônios espelho permitem estabelecer uma ligação entre o reco

nhecimento das emoções dos outros e o fato de experimentá-las

em nos mesmos. Também existe uma experiência mais intelectual,


por procuração: raros são os pesquisadores internados ou tortura
dos.
mas numerosos são aqueles que podem imaginar, ainda que
grosseiramente, o que isso significa.
Essa capacidade de
co-sentir, que Monod, Dilthey, Ricoeur,
Marrou e Corbm (para nos limitarmos à história) consideram como
elo essencial na
cadeia do conhecimento, baseia-se em uma pre

disposição de identificação. Ela implica uma atitude de escuta e de


receptividade,sem rodeios.
a aceitação de uma semelhança que pode

chegar a empatia,ainda que o interlocutor seja um psicopata. Richard


Holmes radicaliza esse procedimento
por meio do footstepping: o
biógrafo segue passo a passo o sujeito cuja vida retraça,sobrevoando

de balão como os eruditos do século XVIII, seguindo os passos de

Alain Corbin,“Ne rien refuser dentendre”, Vacarme n. 35, primavera 2006.

220
As operações de veridição

Stevenson na travessia das Cevenas, vivendo com seu herói em uma


11
coabitação imaginária, O registro da experiência não se limita,
assim, ao estado de espírito. A etno-arqueologia de lan Hodder ou

de Pierre Pétrequin consiste em observar sociedades primitivas

contemporâneas, na África, na Nova-Guiné,no Grande Norte, para

compreender melhor as sociedades pré-históricas desaparecidas. Cer¬

tos arqueólogos reproduzem gestos ancestrais de apropriação,fabri

cação de um forno neolítico, de uma liga de metal ou de uma arma.

Uma investigação em ciências sociais possui, portanto, tres

dimensões, cada uma implicando um tipo de raciocínio: encontrar


os homens.
os traços dos homens, estabelecer um contato com

colocar-se no lugar dos homens,ou seja, em todos os casos, tentar

compreender o que eles fazem. Essa tripartição, ainda que imper

feita, permite apreender a unidade das ciências sociais. É claro que

a paleontologia e a história recorrem mais à escavação, enquanto

a sociologia e a etnologia procedem mais pelo encontro. Mas, no

fundo, toda pesquisa é suscetível de englobar essas três formas.

É assim que os historiadores suscitam arquivos orais para enrique

cer seu corpus, que os sociólogos e os antropólogos exumam arqui


vos escritos para ganhar profundidade temporal, sem falar nos pes-

quisadores que, por obrigação ou por curiosidade, viajam. Seja qual

Richard Holmes, Footsteps: Adventures ofa Romantic Biographer, New York,


Viking, 1985.

221
A história é uma literatura contemporânea

for o caso, melhora-se a qualidade explicativa da pesquisa. Havería

defesa melhor daquilo que chamamos de pluridisciplinaridade?

A comparação

O modelo da investigação foi inventado por Heródoto. O histo

riador etnólogo-repórter nos informa, com vinte e cinco séculos de

distância, que as ciências sociais podem ser uma aventura, uma busca
na qual investimos todo
nosso ser. Pesquisar, viajar, dedicar-se,
descobrir,investigar, historei: a etimologia nos relembra que a histó-
ria se faz indo
ver pessoalmente, coletando, reconstituindo pedaço

por pedaço, passo a passo, ao longo de um percurso ao mesmo tempo


intelectual e físico.0 livro amadurece. assim como o historiador.
Políbio
exprime essa exigência em sua polêmica contra Timeu
e Éforo, que acusa de serem historiadores de interior. Para ele, a
história obedece
a três palavras de ordem: buscar informações nos
livros, recolher a opinião das testemunhas, assistir aos eventos que

pontuam a vida dos Estados. A partir do século XV,vários pesquisa-


dores-viajantes redescobriram Heródoto: Lorenzo Valia, seu tradu

tor latino; Henri Estienne, autor de Apologie pour Hérodote (1566),


depois de o mundo ter sido
desmesuradamente alargado; Volney,
cujo Chronologie d’Hérodote
anuncia as viagens ao Egito e à Síria
nos
anos 1780; Kapuscmski, cujas reportagens levam a inúmeras
Viagens com Heródoto(2004). Outros continuam discretamente essa

222
As operações de veridição

tradição, mesclando leituras, testemunhos, viagens, observações

in loco. Lançado nos traços de Jesus em meados do século XIX,


admira
Renan explora “as ruas onde ele brincou quando criança e
Vale do
o horizonte que fora o seu: o Monte Carmelo, o Tabor, o

Jordão, o Golfo de Haifa, elementos de um “quinto Evangelho


deve ir além
Mas, para ser realmente completa, a investigação

do sujeito: é o comparatismo, ou seja, a capacidade de confrontação.

Comparar permite sair do particular e abandonar a religião do único.

Se por um lado é verdade que só existe ciência do geral(é a crítica que


Aristóteles faz à história), se é verdade que os historiadores tendem

a idolatrar o individual(é a crítica de Simiand), a monografia, por

outro, é muito pior do que a falta de curiosidade: é a própria negaça

das ciências sociais. Estas, pelo contrário,esforçam-se em inscrever o


indivíduo nas estruturas do seu tempo,os meios aos quais pertence
limitam e dos quais às
ou pelos quais passa, os determinismos que o

vezes escapa, seu campo de possíveis. Um fato só existe, uma vida


no fluxo do seu tempo.
só é inteligível, se ligado aos outros,imersos

Se não,isolados, eles perdem toda significação; eles se contraem sob

forma de anedotas; eles morrem únicos, petrificados em algo que


não é verdadeiro-nem-falso. Em La crise des sodétés impériales(2001),

Christophe Charle compara a Alemanha,a França e a Grã-Bretanha


do início do século XX.Em Renascimentos: um ou muitos?(2010), Jack

Goody confronta os diferentes Renascimentos ocorridos na Europa,


no Islã, na índia e na China.

223
A história é uma literatura contemporân ea

Esse apetite comparatista - em certa medida a consciência his


tórica — manifesta-se
desde a fase da investigação. A documentação
deve ser mais ampla do que o sujeito visado; ou melhor,o verdadeiro

sujeito é a reunião de vários subsujeitos. Daí a necessidade de aber

tura a outros períodos, de ir e vir entre o passado e o presente, de cir

cular pelo mundo,para ser capaz de contar toda a história. Não existe

uma boa biografia atomista, que sequestra o escolhido e o coloca em

uma gaiola dourada. Não há ciência social ancorada em um ponto


do tempo ou do
espaço. Existem apenas épocas e experiências que
se chocam, contextos que se embaralham, categorias em constru-

çao, instituições em rivalidade, indivíduos moldados por coletivos,

do único, séries, gerações, movimentos, interações, certa

representatividade, uma norma,figuras, exceções.


É o que permite passar de Guillaume le Maréchal à cavala-
ria dos séculos XII e XIII; das fantasias de um moleiro friulano

a dmamica da cultura dita popular; da “mania ducal” de Saint-


-Simon ao problema das
categorias e das hierarquias na corte de
Versalhes; dessa pequena cidade da
região de Quercy à moderni-
zação da economia francesa após 1945; de uma transferência de

crianças da Ilha da Reunião à engenharia social praticada pelas


grandes potências europeias no século XX; da minha saudosa avó
à trajetória dos judeus comunistas às voltas com o estalinismo e o

224
As operações de veridição

nazismo; da biografia à história-problema; da mônada à estrutura;


12
do solipsismo às ciências sociais.

A comparação-generalização confere interesse a qualquer tema.

Se os segredos de alcova e os grandes crimes, o homem da máscara


de ferro e as fichas técnicas dos Panzer me deixam indiferentes, não

é porque sejam fundamentalmente desinteressantes, é porque são

tratados como fósseis em um gabinete de curiosidades,sem qualquer


raciocínio. A história é mais um método do que um objeto.

. Na elo-
Chegamos ao fundo do raciocínio histórico: provar

quência antiga, há vários tipos de provas. Aristóteles na Retórica e


técnicas”,
Quintiliano em Instituições oratórias distinguem as provas
extra-técnicas”, não
discursivas,inventadas pelo orador, das provas
discursivas, institucionalizadas, recolhidas já prontas sob forma de

testemunhos, de confissões ou de documentos.

le meilleur chevalier du
Faço alusão a Georges Duby, Guillaume le Maréchal ou
. Vunivers d'un
monde. Paris, Fayard, 1984; Cario Ginzburg,Le fromage et les vers
meunier du XVP siècle, Paris, Flammarion, 1980; Emmanuel Le Roy Ladune,
Saint-Simon ou le système de la cour. Paris, Fayard, 1997; Jean Fourastié. Les
Trente Glorieuses ou la révolution invísible de 1946 à 1975, Paris. Fayard, 1979,
assim como a dois de meus livros: Enfants en exU. Transfert de pupilles réunionnais
en métropole, 1963-1982, Paris, Seuil, 2007; e Histoire desgrands-parents queje
n’ai pas eus. Une enquête, Paris, Seuil. “La Librairie du XXP siècle”, 2012.

225
A história é uma literatura contemporânea

Dentre as primeiras figura o indício necessário, irrefutável {tek-

meriori)'. Se essa mulher tem leite, é porque deu à luz.” No entanto,


os traços de sangue na camisa de um fugitivo só fazem presumir

sua culpa. O entimema é um silogismo no qual uma das premis-

sas foi silenciada porque supostamente adquirida. Ao dizer que


Haendel compôs seu Te Deum em memória à vitória de Dettingen
de 1743, deixamos de
precisar a significação de um Te Deum.

A Batalha de Dettingen é vitoriosa.


[Ora, um Te Deum acolhe um evento feliz.]
Portanto, Haendel compõe um Te Deum.

Certos encadeamentos do
raciocínio foram, portanto, silen-
ciados, pois julgados evidentes(de uma “evidência” que deveria ser
contestada, é claro). Ainda que rigorosas, as ciências sociais recor

rem frequentemente ao entimema. Recorrer sistematicamente ao

epiquirema, silogismo no qual cada premissa é acompanhada de


sua prova, seria entediante.

A prova “extra-técnica”, física, material, documental, tem algo


de direto. Ela faz parte de
um raciocínio natural, quase intuitivo:
integrar ao real aquilo que se
propõe. Os títulos de propriedade ou

de nobreza, os papéis de identidade, os diplomas permitem provar


algo: uma posse, um estado, uma dignidade, uma identidade, uma
qualificação. Assim como Heródoto, e Tucídides antes dele, Políbio

se baseia na autoridade de fontes. Assim,o irmão de Aníbal recebeu

226
As operações de veridiçao

11.850 africanos e 21 elefantes, como indica “um texto gravado

em bronze por ordem de Aníbal na época em que se encontrava

na Itália”. Para Voltaire, o historiador chega à verdade graças a


“monumentos incontestáveis”: coletânea de observações astronô

micas feitas na Babilônia, crônica de Atenas gravada em mármores


14
de Arundel, cartas e diplomas da Idade Média.

A prova realça a diferença não somente entre a história e a fic¬

ção, mas entre um texto científico e qualquer outro texto. Ela está

no âmago da prática de Bayle, de “nada adiantar sem prova .


Esse reflexo, fundador da história, permitiu afastar o assalto da

virada linguística nos anos 1980. O objeto material, o documento


o fora-do-
citado, a referência verificável, ao comunicarem com

-texto, com o que está para além do texto,funcionam como a pro

pria garantia do texto. Poder verificar é, também, poder contestar.

Portanto, é a existência da prova que impede de confundir, em um


16
texto, “a verdade e a dimensão tipográfica”.

Mas a distinção aristotélica entre provas técnicas e provas


extratécnicas corre o risco de se tornar artificial se esquecemos de

13
Políbio, III, 33.
14
Voltaire, “Histoire”, in Encydopédie, op. cit.
15 3*= éd., Rotterdam,
Pierre Bayle,“Épicure”, in Dictionnaire historique et critique.
Bohm,1720, v. 2, p. 1077, nota E.
16
Jorge Luís Borges,“Deux livres", in Enquêtes, Paris, Gallimard,"Folio", 1967;
p. 169.

227
A história é uma literatura contemporânea

que um objeto só se torna fonte por meio e no seio de um raciocí-


mo: e a
retórica que eleva o documento à dignidade veridicional.

A argumentação transforma em provas(em provas "documentais”,

como diz Ricceur) os arquivos recolhidos ao longo da investiga


ção. De fato, não há fontes em
si; há apenas objetos que atraímos,

que transformamos em provas, pelo olhar que conferimos a eles.

No sentido oposto, qualquer objeto pode servir de prova, à condi

ção que se tenha a intenção de demonstrar algo com ele. Tudo se


resume
a uma escolha: uma ruína pode ratificar o que dizem um

arqueólogo ou um historiador, mas também pode encantar um


poeta, inspirar um artista, relembrar ao erudito a brevidade da
nossa
existência, a fragilidade das civilizações. A ruína-curiosidade,

a antiguidade-cenário, a citação-máxima, a gravação da câmera de


segurança nada provam em si
mesmas;é a pergunta do investigador

que transforma o objeto em instrumento de veridição. No final


das contas, tentar compreender as ações dos homens consiste em

mobilizar provas para responder às perguntas formuladas.


A melhor maneira de ir além da dicotomia entre provas técni

cas e extratecmcas consiste em relembrar que um fato é mais bem

comprovado quando atestado por várias fontes. Quanto mais pro-


vas
comporta uma demonstração, mais é complexa, argumentada,

garantida. Pelo cruzamento de dois elementos de arquivo, um texto

e um testemunho, vários testemunhos, um texto de época e um

vestígio arqueológico, o cross-checking permite reforçar a certeza.

228
As operações de veridição

Vários trechos de Heródoto foram, assim, corroborados por des

cobertas arqueológicas: as técnicas de construção da muralha da


Babilônia, os ritos funerários citas, o tsunami na Potideia em 479.

É no intuito de confirmar suas fontes que Commynes se refere ao

arcebispo de Viena, médico do duque de Borgonha quando este

afunda na neurastenia após o desastre de Grandson em 1476: E a

esse respeito. Monsenhor de Viena, vós sabeis mais do que eu,ja


man-
que fostes aquele que o ajudou a pensar nessa doença e quem
■17

dou que o barbeassem, a mesma barba que ele deixou crescer.

O método quantitativo oferece outro tipo de prova. A tentação


mais “científica”
é grande de acreditar que uma estatística seria

do que um elemento de arquivo ou um argumento lógico. Como

escreve Seignobos:

A impressão especial produzida pelos números é


particularmente importante nas ciências sociais.
O número tem um aspecto matemático que dá a ilu
sao de fato cientifico. [..-] Em francês, diz-se: “brutal
como um número” quase no mesmo sentido que
“verdade brutal”, o que dá a entender que o número
18
é a forma perfeita da verdade.

Philippe de Commynes. Mémoires, Paris, Les Belles Lettres, 1965, v. 2. p. 129.


Charles Seignobos, La méthode historique appUquée aux Sciences sociales, Paris,
Alcan, 1901, p. 34-35.

229
A história é uma literatura contemporânea

Contra essa ilusão, a atitude mais saudável é considerar que o


número é uma
prova como outra qualquer, uma forma de raciocí

nio, uma forma de relacionar dados a serviço de uma demonstra¬

ção. Desde que esses dados estejam corretos. É precisamente por


que busca medir as variações de preços e de salários na França no

século XVIII que Labrousse exprime sua dúvida relativa a um índice


19
constituído de séries ligadas e “talvez parcialmente inexatas’'.
Para escapar ao conflito entre a bela escrita e o número extra-

vagante, admite-se que exista uma narrativa do quantitativo, com

formas de representação, efeitos de compreensão,jogos de escalas,

articulações de problemas, uma dialética entre a sofisticação de um


cálculo e a instantaneidade de um
resultado(dado,por exemplo,sob
forma de porcentagem). Assim como uma tabela de número conta,
um
gráfico pode figurar, explicar, cartografar. Provar pelo número
também é provar pelo verbo. Essa é a razão pela qual “quanti” e

quali se casam harmoniosamente. como em Face à la persécution

(2010) de Nicolas Mariot e Claire Zalc, no qual se alternam tabelas

de números,testemunho e análises micro-históricas, num conjunto

que permite compreender a atitude dos 991 judeus de Lens sob a


Ocupação. Fica claro, por sinal, que as bases de dados costumam

19
Emest Labrousse,Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au XVIIF
siède, V. 2, Paris, Éditions des Archives Contemporaines, 1989(1933) p 315

230
As operações de veridição

ser extraídas de um material heterogêneo (arquivos, entrevistas,

observações in loco). Os números não passam de “traços quaisquer

O pesquisador prova com auxílio de fontes recolhidas, veri

ficadas, cruzadas. A essa lógica, poderiamos opor que despojar

uma massa de arquivos não é suficiente para estabelecer um fato.

Segundo Popper, a ciência não funciona de maneira positiva, por

acúmulo de provas, mas segundo uma abordagem negativa, por

conjeturas e refutações. Antes de proceder segundo um empirismo


'método dedutivo de
de origem baconiana, pode-se adotar um

controle” Uma hipótese implica certo número de consequências.

que podem ser verificadas ou invalidadas. Se a hipótese resiste aos

“testes” documentais, arquivísticos, arqueológicos, testemunhais,

ela é adotada como padrão; pode-se dizer que “cai em pé . Inversa


em contradição com
mente, uma hipótese será eliminada se entra

aquilo que se sabe por outros meios.

Pode-se reunir milhares de arquivos, de regulamentos e de tes

temunhos que tenderíam a provar,intuitivamente, que as crianças

Claire Lemercier; Claire Zalc, "Le sens de la mesure: nouveaux usages de la


quantification", in Christophe Granger (dir.), À quoÍ pensent les historiens? Faire
de Vhistoire auXXP siècle. Paris, Autrement, 2013, p. 135-148.

Kar\'Popper,Lalogiquedeladécouvertesríentifique, Paris. Payot,1973(1934),p. 26.

231
A história é uma literatura contemporânea

da Assistência Pública francesa são “sem família”: órfãos, abando

nados ou retirados dos pais, são transferidos a um destino distante

e mantido em sigilo, onde ninguém tem direito de visitá-los com

exceção do agente. Mas, se enunciássemos essa aparente conclu


são sob forma de uma hipótese de trabalho, ela seria facilmente
refutada:
nao somente os irmãos não são deslocados, mas certo

número de crianças, inclusive aquelas que estão sob a guarda do


Estado,
conseguem escrever a seus pais ou contatá-los por meio
de fuga, sem contar aqueles que são oficialmente devolvidos às

famílias de origem. Deve-se, então, tentar responder a uma nova

questão que se formula: Como esse tipo de relações se sustentam?^^

Quando tentei estabelecer as circunstâncias da prisão de meus

avós em 1943, tive que formular três hipóteses para poder criti
cá-las uma a uma:

- se foram
presos pela polícia municipal do seu
bairro, em represália a um atentado ocorrido dias
antes,como explicar que todos os habitantes judeus
do prédio não tenham sido levados?
- se foram presos enquanto resistentes ou comu
nistas, como explicar que as Brigadas Especiais não
tenham sido mobilizadas?

22
Ivan Jablonka,Ni père ni mère. Histoire des enfants de 1’Assistance Publique. 1874-
1939, Paris, Seuil, 2006,cap. I.

232
As operações de veridição

- se foram pegos após a prisão de um vizinho pela 3‘'‘


seção dos RG [Régiment du Génie], como explicar a
presença da polícia municipal nesse dia?
Existem outras pistas. A partir de 1942, os Judeus
presos pelos RG são conduzidos à delegacia local.

Também se pode supor que a operação, conduzida pelos RG,

tenha necessitado da intervenção dos guardiães da paz em função

da “rebeldia” do meu avô. Aceito essa hipótese, até o momento em

que é invalidada por um testemunho inédito ou novos arquivos,


um papel decisivo.
Em paleontologia, o método negativo tem
Nessa história anônima,a documentação é extremamente tênue e

lacunar. Além disso, a formulação de hipóteses, de paleocenários ,

e ao mesmo tempo fundamental e altainente regulada (pela biblio-

grafia, escavações, outras ciências, dendrocronologia, paleontobo


tânica. antracologia, palinologia). Para explicar a presença de con-
África do Sul, em níveis
chas perfuradas na gruta de Biombos, na
datados de cerca de 75.000 anos, os pesquisadores procedem por

eliminação. As conchas não chegaram ali nem naturalmente, nem

acidentalmente; tampouco foram levadas por razões alimentares.

e esse tipo de perfuração não é observada em espécimes atuais,


se pode obter ao furar
No entanto, os furos parecem aqueles que

as conchas com uma ponta de osso. Conclusão: foram utilizadas

233
A história é uma literatura contemporânea

como pérolas, e isso muito antes do aparecimento dos ornamentos


23
corporais na Europa.

O historiador formula hipóteses no âmbito de um problema

e de um contexto específicos. Em seguida, busca invalidá-los por

meio de vestígios, de objetos, de escritos, de testemunhos, que

permitam uma “arbitragem pelos fatos”.24 Ele conserva a hipó

tese que não consegue refutar, aquela que resiste à documentação

disponível. Emergem, então, um modelo conjetural, um cenário


racional, uma
proposta coerente e escorada em fontes, ou seja,
uma tentativa de resposta à questão formulada.

Antes de se tornar um dos fundamentos do paradigma arqueo


lógico e do “método dedutivo de controle”, a refutação pertence à

retórica agonistica. No livro V de Instituição oratória, Quintiliano dá


conselhos para criticar um testemunho escrito ou de oitiva, refutar

os argumentos de adversários, atacar um ponto particular, rejeitar


aquilo que é contraditório, absurdo
ou incrível. No campo das ciên¬
cias sociais, assim como no das ciências físicas, cabe à comunidade
verificar, discutir, contestar. Mas é i
- e importante que esse processo se
inicie antes,
ao longo da própria pesquisa. O historiador pode orques-

trar sua própria refutação, questionando os resultados que submete

23
Francesco d’Errico, "Nassarius Kraussianus Shell Beads from Biombos Cave:
Evidence for Symbolic Behaviour in the Middle Stone Age”. Journal ofHuman
Evolution, n. 48, p. 3-24, 2005.

Jean-Claude Gardín, Une archéologie théorique, Paris, Hachette, 1979 p. 214.

234
As operações de veridiçâo

ao leitor. Nessa mesma Unha de raciocínio, ele propõe uma história e


nos
uma contra-história. Segundo Bayle, a imparcialidade exige que

desdobremos: deve-se usar de “rigor contra si mesmo”,fazendo-se

“comparecer diante dos examinadores rígidos, que obrigam a expUcar


25
sem compaixão tudo o que quiserem perguntar”.

Uma contraepistemologia se define, na qual o pesquisador luta

consigo mesmo,conta a história e ao mesmo tempo a crítica, aponta

as dificuldades, se inflige objeções, mina sua própria posição. E ele

quem organiza os testes suscetíveis de arruinar seus próprios argu

mentos. Ele faz proUferarem as hipóteses, antes de eUminar o maior

número possível com auxíUo do material documental. Como escreveu

Popper,“a descoberta de exemplos que confirmam uma teoria signi

fica muito pouco,se não tivermos tentado,sem êxito, descobrir refu-

tações. Pois, se não adotamos uma atitude crítica, encontraremos

sempre aquüo que desejamos”.^^ No final das contas, os documentos


e uma forma
são, ao mesmo tempo,fonte de informações positivas

de fechar portas. Provamos ao reunir indícios e ao comparar fontes,

mas também por eliminação de hipóteses.

Familiares da indução e do exemplo,as ciências sociais também


visem estabelecer
têm algo de um espaço popperiano. Não porque

Pierre Bayle. carta a seu irmão Joseph (30 de janeiro de 1675), disponível em
http;//bayle-correspondance.univ-st-etienne.fr/.
Karl Popper, Misère de Vhistorkisme, Paris, Presses Pocket,"Agora”. 1988(1945),
p. 168-169.

235
A história é uma literatura contemporânea

leis universais, é claro: seus enunciados têm um alcance dos mais

limitados, sem caráter de generalidade, sem capacidade preditiva.


Idiossincráticos e não reprodutíveis, seus “testes” nada têm de uma

experiência efetuada em laboratório, reiterável à vontade. Mas o

historiador, ao colocar um problema,é levado a formular hipóteses

que submete a um procedimento de eliminação do erro. O critério


da não refutação se aplica tanto à física como às ciências sociais:

um cenário é válido até que se prove o contrário. Isso garante o caráter

aberto e provisório da história. Conhecimento à guisa de tentativa,

a história é o contrário da palavra de autoridade à qual costuma ser

identificada. Guiado por seu método e sua intuição, o historiador

tateia, hesita, duvida e exibe sua dúvida:“aquilo que molda o homem


de ciência não é a posse de conhecimento, de verdades irrefutáveis,
mas
a busca obstinada e audaciosamente crítica da verdade.’●27

O enunciado de verdade

Chega se a um paradoxo: Como conciliar o caráter provisório


e imperfeito de todo enunciado com o sentimento de certeza ao

qual se chega pela história? De um lado, os defeitos de termino¬

logia. o caráter lacunar da documentação, a dificuldade de provar

positivamente, a confissão de impotência de Ranke, para quem só

27
íd., La logique de la découverte scientifique, op. cit., p. 287.

236
As operações de verídição

Deus conhece a história do mundo. Do outro, o que foi “adquirido

para sempre”, a recusa de considerar a história como um simples

probabilismo, a confiança serena do próprio Ranke. A história,

escreve Bayle, atinge “um grau de certeza mais indubitável do que

a matemática. Pois o objeto da matemática não existe fora da nossa

mente, enquanto César e Pompeu existiram independentemente da

nossa pessoa e de todos os homens presentes e por vir. Não se pode


28
objetar nada a essa “verdade de fato”: César derrotou Pompeu.

César derrotou Pompeu? Jesus e sua mãe são judeus de nasci

mento? Uma epidemia de peste teria assolado a Europa em meados


do século XIV? Lincoln aboliu a escravidão nos Estados Unidos?

As câmaras de gás existiram? Aviões comerciais se chocaram ao


World Trade Center na manhã de 11 de setembro de 2001? É possí-

vel glosar infinitamente a respeito da formulação dessas questões,


a cada
mas um mundo no qual não seria possível responder sim
uma delas não seria um mundo revolucionário, aberto à liberdade

de palavra”, mas um mundo totalitário, ou em apagamento e já des

provido de sentido. Há coisas que sabemos de maneira definitiva e


incondicional. O fato irreversível, a realidade obtusa, o desenlace

dos acontecimentos, como diz Bayle, existem fora de nós.

Mas seria esse o objeto da história? Sabemos definitivamente

que Carlos Magno foi coroado imperador em 800 e que Rousseau

28
Pierre Bayle, “Dissertation”(1692), in Dictionnaire historique et critique, 3'éd.,
Rotterdam, Bohm,1720, v. 4, p. 2983-2984.

237
A história é uma literatura contemporânea

se chamava Jean-Jacques. Nada disso constituí um projeto de pes


quisa. De fato, nenhum historiador “trabalha” sobre isso. Assim, é

importante diferenciar um fato(que não necessariamente implica


a compreensão) da pesquisa.

Essa distinção implica uma linha divisória invisível: Que é

necessário provar? Em um livro de história, certas afirmações não

são demonstradas, mas supostamente adquiridas: contexto geral,

grandes datas, personagens famosos. Pressupõe-se, também, um

fundo cultural comum. Em um livro publicado na França no início

do século XXI, numerosas noções podem não ser explicitadas: a

Revolução [francesa], a última guerra [a Segunda Guerra Mundial],


o presidente [da República], o Velho Continente [a Europa]. Então

quais sao as vias que permitem que a história possa,legitimamente,

inspirar certeza? Não é porque produza um saber absoluto; pelo


contrário, é porque se esforça em responder, de maneira argumen-

tada, às questões que ela mesma coloca. Como diz Xenopol no


6nal do século XIX, a história é composta de verdades de caráter
individual, mas isso não a impede ser uma ciência, pois a ciência
e um 29
sistema de verdades (singulares ou gerais) comprovadas.
Entre as não perguntas (“Carlos Magno teria existido?”) e

as perguntas sem interesse (“Qual o nome do primeiro ferido da

Batalha de Austerlitz? ), existe um campo de pertinência no qual

Alexandre-Dimitri Xénopol, Les príncipes fondamentaux de VHistoire, Paris,


Leroux, 1899, p. 32.

238
As operações de veridição

a história pode se desenvolver. Portanto, fazer ciências sociais

não consiste em remoer evidências, nem esclarecer leis, mas em

produzir enunciados de verdade sob forma de conjeturas rigoro

samente testadas, ou seja, não refutadas. Essa é a diferença entre

uma pseudoquestão (“As câmaras de gás existiram?”) e um projeto

de pesquisa (“Quais eram as dimensões e a configuração das ins

talações de extermínio em Belzec?”).

Fazer ciências sociais, portanto, não consiste em encontrar

a verdade, mas em dizer algo verdadeiro, em construir um raciocí

nio, fornecendo a prova, formulando enunciados dotados de um

máximo de solidez e de pertinência explicativa. A respeito de uma

célebre série de fotos, é mais acertado dizer “ChurchiU, Roosevelt e

Stalin posaram para fotógrafos na conferência de lalta, em fevereiro

de 1945” do que “Três velhos sentados numa cadeira . Pode-se,

ainda, propor uma legenda mais elaborada:

Num momento em que o exército soviético é ampla


mente vitorioso, os três Grandes se reuniram para
acabar de “destruir o militarismo alemão e o nazismo ,
preparar a ocupaçao da Alemanha e definir as bases
de um mundo novo, quando de uma das últimas con
ferências interaliadas antes do início da Guerra Fria.

Tentar compreender o que fazem os homens é ampliar enun

ciados de verdade e, portanto, a complexidade da demonstração e

da qualidade da narrativa, logo o risco epistemológico.

239
A história é uma literatura contemporânea

Entre os fatos “definitivamente adquiridos” e aquilo que nos

dispomos encontrar, estende-se uma frente, que é o próprio lugar da

pesquisa - o espaço no qual nos interrogamos, onde progredimos,

onde testamos hipóteses, não no afã de descobrir pepitas factuais

adormecidas no fundo de um rio, mas com a implacável vontade de

compreender. A busca é tão mais ferrenha quanto a certeza de que

nunca se chegará ao fim. Mas pouco importa o fato de o horizonte

recuar sem parar: o importante é avançar a frente de pesquisa.


Compreender aquilo que os homens realmente fazem, com¬

preender o que realmente aconteceu. Fazemos história para res¬

ponder aos grandes acontecimentos da própria vida. Para Heródoto


e Tucídides, são as
guerras mundiais” do século V; para Políbio,o

advento de Roma,para Chateaubriand, a queda do Antigo Regime;

para Guizot e Michelet, a Revolução; para Furet, o sucesso do

comunismo; para Friedlãnder, a destruição do judaísmo europeu.


A morte do pai nas trincheiras
, o assassinato dos pais durante a
Segunda Guerra Mundial constituem um traumatismo fundador

para Chaunu, Vidal-Naquet, Momigliano, Klarsfeld, um aconteci


mento que abalou todo
universo. “Nossa concepção da história
tem uma origem sangrenta”, diz Ginzburg, filho de um militante
antifascista morto em
uma prisão nazista. A questão vital, visce

ral, que colocamos, que não podemos não colocar, explica a

Cario Ginzburg, Un seul témoin. Paris, Bayard, Vararme, 2007, p. 94.

240
As operações de veridição

obsessão da exatidão, a inflexibilidade na pesquisa. Ela alimenta

o furor de Lorenzo Valia, a “paixão histórica” de Augustin Thierry,

o fogo sagrado de todos os outros.

O que importa aqui não é o eu em sua potência romântica,

mas o esforço empreendido para controlá-lo, filtrá-lo, acalmá-lo, é


se encaminha.
o espaço de imposições e de liberdade pelo qual ele

Busca-se em si mesmo,consigo mesmo,em todas as direções, para

depois restringir-se inflexivelmente. A investigação, tudo aquilo

que se aprende graças às escavações, aos encontros, às experien

cias, ãs leituras, aos arquivos, aos testemunhos, é nossa rede de

segurança. Ela é o antídoto contra a vaidade, o espírito de sistema,

a divagação, o delírio, a baboseira. Pode-se considerar que a docu

mentação nos guia, nos indica o verdadeiro revelando aquilo que


modelo
aconteceu”. Mas podemos completar essa indução com um

hipotético-dedutivo (ou melhor, hipotético-destrutivo) no qual.

como diz o pré-historiador Jean Guilaine, a escavação é a prova


vem domar a
de verdade” de todas as especulações.^^ Aquilo que
suas hipóteses prolíficas.
emoção do pesquisador, e que contém
são as fontes. A história é a canalização de uma paixão.
eu nos
A partir de então, a história é a absoluta liberdade de um
. Podemos dizer tudo.
limites absolutos lixados pela documentação

imaginar tudo, acreditar em tudo, contanto que a investigação e

Jean Gui\a.ine,Archéologie, sdencehumaine..., op. cit., p. 53.

241
A história é uma literatura contemporânea

o
conjunto dos conhecimentos disponíveis não nos contradigam.
Se a história é uma luta contra o erro, a mentira, o esquecimento.

o silêncio, ela será uma luta contra si mesmo.

242
mÊT
8.

Os objetos ficcionais são extremamente variados:lendas, con


Platão como
tos de fadas, romances, filmes,jogos, etc. Tanto para

para os teóricos do século XVII, o termo ficção conota a mentira,

a impostura, o disfarce da verdade. Hoje, está mais bem associado

à imaginação do que ao prazer lúdico: de projetar, em um outro


não
mundo”, um universo povoado de seres e de lugares que
existem. O anão Oberon, Ranuccio-Ernesto IV Farnese, Cosette,

Sherlock Holmes, nunca viveram;em 15 de setembro de 1840,por

volta das seis horas da manhã,nenhum Ville-de-Montereau fume

gou em grandes turbilhões diante do cais Saint Bernard. A ficção


é o falso, já
não é o verdadeiro, já que não existe, mas tampouco

que não comporta qualquer intenção de enganar.

Status da ficção

Há pelo menos duas maneiras de observar os objetos da

ficção. A primeira, que podemos qualificar de intransitiva, coloca a

ficção em uma não relação com o real. Essa referencialidade se deve


ao fato de que o texto é fechado em si mesmo, autotélico, único

produtor do seu sentido. Não só a ficção remete exclusivamente a


A história é uma literatura contemporânea

SI mesma, mas romanceia,feito o rei Midas,“transforma tudo em

ficção, ou seja, em verdade de ficção”^ - processo de metabolização


ficcional que anula toda referencialidade. O único real da ficção é

ela mesma: ela cria seu próprio mundo com auxílio de todo tipo

de transformação-manipulação. Portanto, a ficção não é nem ver

dadeira nem falsa, ela é outra coisa. Não se pode esperar qualquer
elucidação ou esclarecimento vindo dela. Como escreve Barthes,

em um texto tudo deve ser desenredado, mas nada deve ser deci
frado”.^ A leitura intransitiva reúne,em dois séculos, os românticos
de lena,
os parnasianos, os críticos pós-saussurianos de Barthes a

Riffaterre, assim como certos autores do Nouveau Roman.

Esse pensamento admite várias objeções. Gerações de leitores,

de hoje e do passado, viram o mundo(ou compreenderam a socie-


dade) por meio de Madame de La Fayette, Dickens, Balzac, Eugène
Sue, Harriet Beecher Stowe, Houellebecq, Franzen. Cada um em

seu tempo,Tartufo, The Jungle e Lolita provocaram um escândalo.

Essas ficções mostravam coisas insuportáveis para os contemporâ-


neos: hipocrisia dos devotos, inferno dos abatedouros, pedofilia.
Na Tchecoslováquia comunista.
conta Kundera, as pessoas achavam
que suas vidas se pareciam com os romances de Kafka. Seriam

’ Ann Banfield, Phrases sans parole. Théorie du ré


recit et du style indirect libre, Paris,
Seuil, 1995 (1982), p. 384.

^ Roland Barthes. “La mort de lauteur”(1968)


in Le bruissement de la langue...,
op. cit., p. 63-69.

244
As ficções de método

se
alucinações coletivas, uma espécie de “efeito Werther que teria

propagado a milhões de leitores realmente muito literais ?

Suponhamos que, em dez mil anos, os homens, vivendo em

outro planeta, tenham levado consigo apenas alguns romances.

Os historiadores do período terriano teriam razão de referir-se

a eles, por falta de algo melhor: a sociedade do século XVIII seria

conhecida por meio de Manon Lescaut e a América industrial, por

meio de Philip Roth. Piada? Entretanto, é o que os historiadores

fazem hoje, quando pesquisam em Homero as estruturas da socie

dade aristocrática grega dos séculos X e IX. Barthes,inversamente,


escolhe ler Michelet e Fourier como se suas obras não visassem a

compreensão do passado ou a transformação do real, mas sim

plesmente a "felicidade da escrita”.^ Infelizmente, ao escutar a

exaltação da mensagem e não a mensagem ,violentamos o texto.

Chegamos à segunda concepção, transitiva, segundo a qual

a ficção, de certa forma, remete ao mundo. Um texto reflete.

figura, transpõe, explica, deforma o real: ele pinta a natureza .

Essa teoria do reflexo, concepção clássica que leva de Aristóteles

aos críticos marxistas, faz da ficção uma representação - espelho.

pintura, fotografia ou matéria semicondutora”.^ Mimese do real.

a ficção diz algo sobre a sociedade, os grupos sociais, as estruturas

^ Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola, Paris. Seuil. 1971, p. 13-16.


■’ Gérard Genette, Fiction etdiction. Paris, Semi, “Points Essais”, 2004 (1991). p. 226.

245
A história é uma literatura contemporânea

sociais, as relações de classe, de produção, de gênero, as situações,

as mobilidades, as mentalidades, o espirito de época, uma época


específica. Certos personagens adquirem o estatuto de quase-
-símbolos: Rastignac encarna o arrivismo do século XIX, Kurtz as

derivas da colonização. Em A comédia humana, o ciclo Rougon-Ma-

cquart ou Em busca do tempo perdido, muitas coisas são reais; tal

lugar, tal acontecimento, mas também os burgueses que vivem de


renda, a haussmanização, as ferrovias, a vida mundana no faubourg

Saint-Germain. Daí a questão das fontes e das influências; Fould e


Rothschild serviram de modelo
para o personagem de Nucingen,
banqueiro como eles,imensamente rico e judeu? Qual mulher, do
círculo de Tolstoi, se jogou debaixo de um trem?

Ao mesmo tempo que o mundo, a ficção reflete a psicologia do


escritor, sua cultura, suas convicções, seus combates, suas obses¬

sões, sua posição na sociedade ou no campo literário. A mulata


do início de Germinie Lacerteux e o negro Nab em A ilha misteriosa

revelam a banalidade da domesticidade no século XIX, mas também


os
preconceitos racistas dos Goncourt e de Jules Verne. Obser-

vou-se que os romances de Balzac descreviam menos a população


de Paris e mais a experiência do próprio Balzac. Por exemplo: se
há muitos personagens vindos de Tours entre os parisienses da

Comédia humana,é porque são numerosos em Paris, mas também,

e principalmente, porque Balzac conhecia bem a região do Vale do

246
As ficções de método

Loire.^ O romancista seria, assim, um alquimista que transforma

um material(a sociedade de seu tempo,sua própria experiência),

“correspondente” real da ficção.


Mas a leitura transitiva levanta uma dificuldade: Que nos

ensina a ficção a respeito do mundo? Podem-se distinguir três


com a realidade:
gêneros de ficção, segundo a relação que mantém

o incrível, o verossímil e as “verdades superiores .

O incrível permite penetrar no campo do mítico, do fabuloso,


do maravilhoso, do fantástico. Luciano de Samosato, um dos pri¬

meiros contadores do impossível, diz ter encontrado mulheres-vi-

deiras, vogado em um mar de leite e vivido no ventre de uma baleia

que continha florestas e cidades: “escrevo, portanto, sobre coisas


ainda sobre
que nem vi, nem sofri, nem me informei por outros e

seres que não existem em absoluto e nem por princípio podem


existir.”® Na entrada “ficção” da Enciclopédia, em meados do século

XVIII, Marmontel distingue, além das representações perfeitas,

as ficções exageradas(um gigante), monstruosas(um centauro) e

fantásticas(uma cabeça de homem no meio de uma flor).


-ver¬
O verossímil é aquilo em que se pode acreditar. O quase
no século II antes da
dadeiro” evocado por Asclepíades de Mirleia

nossa era, o argumentum da retórica clássica, o romance segundo

^ Louis Chevalier, “La Comédie Humaine: document d histoire? , op. cit.


® Lucien de Samosate, Histoire véritahle. Sur des aventures queje n’ai pas eues,Pans,
Gallimard, “Folio”, 2013, p. 11-

247
A história é uma literatura contemporânea

Nicolas Bricaire, novel segundo Clara Reeve, o realismo do século

XIX traçam as fronteiras do possível. A dicotomia entre crível e

: ''
incrível se encontra até mesmo na ficção científica: os romances

de Jules Verne flertam com o “futuro provável”(um submarino, o


cinema que fala), enquanto os de H. G. Wells encenam o impossível

(um homem invisível, um viajante que volta do futuro).^

Como corresponde a referências do público, o verossímil não

para de evoluir. No século XVII, ele respeita a conformidade e o

decoro, razão pela qual foi possível criticar a inverossimilhança do


Cid e da Princesa de Clèves. Daí
a tentação permanente de corrigir
o passado, de polir a narrátiva, a fim de torná-la um modelo ao qual
seja possível identificar-
se. a açao será melhorada” até que mostre
as coisas como deveríam ser, em conformidade com as expectativas
do espectador.® Essa técnica
será adaptada por Maupassant, que
no prefácio de Pedro e João (1888) aconselha corrigir os acon

tecimentos em proveito da verossimilhança e em detrimento da


verdade”, de modo que se obtenha uma visão “mais concludente
do que a própria realidade”.

As “verdades superiores” sao


transmitidas pela ficção super-real,
mais verdadeira do que natureza, mais real do que a realidade, que

’ Jorge Luís Borges,"Le premier Wells", in Enquétes, op. cit., p. 122-126.


® Ver Gérard Genette, “Vraisemblance
et motivation”, in Figures II, Paris, Seuil,
Essais", 1969, p. 71-99; e John Lyons,“La triple imperfection de 1'histoire",
Dix-Septième Siècle, n. 246, p. 27-42, 2010.

248
As ficções de método

comove o leitor e o faz exclamar:“É exatamente isso!” Certos roman¬

ces são tão poderosos que levam o efeito de real a um grau inédito.

Eles fazem nascer personagens larger than life que habitam nossa vida
como se os tivéssemos realmente conhecido. A relação entre o refe

rente e a ficção se inverte, e esta acaba se “tomando mundo”. Visitamos

a casa de Madame Buttefly em Nagasaki, o túmulo de Romeu e Julieta

em Verona, os caminhos de Dom Quixote na Espanha.^

A literatura, então, revela aquilo que não se sabia: os desti-


humi-
nos desconhecidos, os sofrimentos ignorados, as pequenas

lhações do quotidiano, mas também as fissuras, as contradições.

A violência que os escritores desencadeiam, Burroughs, Russel

Banks, Ellroy, mostra o avesso do sonho americano, enquanto a

historiografia do século XIX e certos lomancistas (como Horatio

Alger)insistiam no “destino manifesto” dos Estados Unidos, êxito

econômico, democracia ou progresso.

Essa tripartição não é satisfatória por pelo menos um motivo,


tributária da teoria do reflexo, ela instala a ficção em uma relação

especular, umbilical, com a realidade considerada como um dado obje


tivo. O romancista buscaria em um estoque referencial preexistente

^ Jean Jamin,“Fictions haut regime. Du théâtre vécu au mythe romanesque ,


UHomme. n. 175-176, p. 165-201, juil.-sept. 2005.

249
A história é uma literatura contemporânea

e transformaria, em seguida, sua “matéria-prima”. Com esse fim,


qualquer romance nos ensina algo sobre qualquer coisa: a condição

humana,o amor, o prazer, a felicidade, a loucura, a historicidade, o

tédio,a morte,o nada.As facilidades da literatura-espelho respondem


ao fechamento da literatura intransitiva. A arte como imitação e a

aventura semiológica: Como sair desses dois impasses?

Há uma relação entre a realidade e a ficção, mas que nao e


da ordem da
mimese. Uma ficção pode provocar uma espécie de
compreensão instantânea,fornecendo ao leitor a chave da qual ele

precisa para decodificar o real. Essa ficção-revelação assume várias


formas:
a epopeia, o mito, a poesia, a alegoria, o símbolo.

Em meados do século XVIII, o abade Batteux opõe história


(narrativa fiel de
ações naturais) e a epopeia (narrativa poética de

ações maravilhosas). Menos de um século mais tarde, esta última

é reabilitada pelos românticos em Os mártires, as Odes ou a Lenda


dos séculos. Como o escritor “vê‘
a história da humanidade por meio
de flashes extáticos, seus poemas são “realidade histórica conden-
sada ou realidade histórica adivinhada”.^° Da mesma forma, o mito

dissemina a verdade nas lendas i


imemoriais, narrativas originais,

sonhos transmitidos pelos “profetas do passado” (para retomar


uma expressão comum a Schlegel e a Barbey dAurevilly). Antes

de ser atingido pelo “raio de Julho”, Michelet buscou em Vico sua

Victor
Hugo,La légenàe des sièdes, Paris, Gallimard,“BibÜothèque de la Pléiade”.
1950(1859), p. 5.

250
As ficções de método

concepção do “verdadeiramente poético”. Homero e os latinos

foram os primeiros historiadores das nações,legando “ficções sin

gularmente em harmonia com as realidades”. Em A vida de Jesus,

o racionalista Renan não menospreza a narrativa ingênua,lendária

e plenamente expressiva dos Evangelhos, cujas aproximações são

“verdadeiras de uma verdade superior”. 0 mito libera a alma da

história, a energia vital que nela se acumulou.

A poesia (para além da epopeia enquanto gênero poético) não

fica atrás. Às vezes, é a única capaz de transmitir as experiências que

não têm palavras: a dor, a crueldade, a atrocidade, o luto. E possível

compreender por que numerosas vítimas, numerosas testemunhas

escolheram a poesia para representar a morte em massa,a exemplo

de Ludmila Titova, musicista de Kiev que acompanhou uma vizinha

judia até o barranco,em setembro de 1941:"Tu vês,tu vês, cai uma

neve sangrenta,/ Ela cai, e tudo vira cor púrpura. Pode-se dizer

Babi Yar e Treblinka com a poesia.

A alegoria disfarça a verdade sob aparência de ficção. A fábula

não é tão pueril quanto parece: essa é a razão pela qual Platão não

baniu Esopo de sua cidade ideal e que Rabelais, no célebre prólogo

de Gargântua, adverte o leitor que será preciso ir além dc sentido

Jules Michelet, Príncipes âe la phüosophie de Vhistoire, traduits de la "Sdenza


Nuova” de J. B. Vico, Paris, Renouard, 1827. p. XXIV e p. 272.
Citado em Annie Epelboin; Assia Kovriguina, La littérature des mvíns. Ècriresur
Ja Shoah en URSS, Paris, Robert Laffont, 2013, p. 176.

251
A história é uma literatura contemporânea

literal, assim como um cão que quebra o osso para lamber o “subs-

tantífico tutano”. No século XVII, a ficção participa plenamente


da reflexão filosófica, científica ou astronômica. O sonho de Kepler
13
(1609)usa uma viagem à Lua para defender teorias copermcanas.

Em sua dedicatória ao príncipe herdeiro, La Fontaine afirma que as

fábulas são mais edificantes do que a história: a fábula da raposa e

do bode(que descem ao fundo de um poço) mostra, melhor do que


a morte de Crasso
na campanha contra os partas, que “em tudo é
preciso avaliar o fim”.
Muitos romances
recorrem à ficção, à ficção científica, à alego
ria, à parábola, para desenvolver uma reflexão histórica. É o caso

das “narrativas de peste”, de Defoe a Manzoni e de Albert Camus

a Philip Roth. Um diário do ano da peste (1722) é uma ficção; mas,

fortemente inspirada nas narrativas dos contemporâneos, cons-


titui um de nossos melhores testemunhos acerca das epidemias

dos anos 1660-1720, de Londres a Marselha. Em Os noivos(1840),

Manzoni evoca, com auxílio de fontes, a peste de Milão em 1630;

paralelamente, ele continua seu trabalho de historiador em história

da coluna infame,consagrada aos “untadores”, untori, acusados de


propagar a epidemia para fazer com que as pessoas fujam e eles

Ver Frédérique Ait-Touati,"Penser le ciei à 1 age classique. Fiction, hypothèse et


astronomie de Kepler à Huygens”,Annales tlSS, n. 2. p. 325-344, mar.-avr. 2010.

252
As ficções de método

possam roubá-las. A peste, crônica cujos eventos aconteceram em


no bairro judaico
194.”, e Nêmesis, que evoca uma epidemia de pólio

de Weequahic em 1944, podem ser lidos como uma reflexão sobre a

resistência ao mal nazista. A alegoria pode, assim, dizer a verdade


'romances da
ao transpô-la. Seria possível dizer o mesmo sobre os
uma
Shoah” publicados por volta de 1960, ficções inspiradas em

experiência pessoal ou documentação histórica: Larche enseveli

de Édouard Axelrad, O último dos justos de André Schwarz Bart,

Le sang du ciei de Piotr Rawicz, Bagagem de areia de Anna Langfus.

Por fim, a simbolização consiste em abstrair um caráter,

um comportamento, uma situação, e atribuí-la a um indivíduo

que se tornará um modelo,segundo um procedimento indutivo que


pode ser observado no século XVII em Molière e nos moralistas.
novo-rico, René ou o
Harpagon ou o avaro, Georges Dandin ou

mal do século, Pinneberg ou o trabalhador proletarizado(em Little


man what now? de Hans Fallada). A lista de personagens tipo que
fato social
não existem é longa e, no entanto, eles incarnam um

perfeitamente comprovado.

Esse procedimento de exemplificação também é utilizado pelos


historiadores. Artabanes em Heródoto e Péricles em Tucídides não

seriam como Rastignac, personagens-conceito cujas falas inventadas


ou
expressam, no entanto, uma autêntica posição política, militar

Christian Jouliaud; Dinah Ribard; Nicolas Schapira, Histoire,littérature, témoignage.


Écrire les malheurs du temps, Paris, GaJlimard,"Folio histoire inédit, 2009, cap. IV.

253
A história é uma literatura contemporânea

social? Não é possível decidir a menos que se recoloque esses persona

gens em um raciocínio. Em Balzac, a ficção não é apenas mimetismo,


descrição, pedaço de vida, mirador do mundo. Ela oferece também

ferramentas para compreender uma época, uma configuração fami

liar, o funcionamento de uma sociedade. A ficção, mito ou símbolo,

contribui, portanto,com a inteligibilidade de fenômenos reais; mas é

o raciocínio histórico que,em última instância, a comanda.

Como arrancar a ficção da mimese a fim de integrá-la no pro

cesso de conhecimento? É preciso lembrar a grande descoberta


de Augustin Thierry: um bom romance contém mais verdade do

que um mau livro de história. Como explicar esse estranho poder?


Acontece que o raciocínio é
mais importante do que a representação

das ações. O problema é mais importante do que a narrativa. O pai


Goriot faz compreender a sociedade do século XIX nao porque evoca

com realismo ou verossimilhança, mas porque coloca questões a seu

respeito ao projetar o leitor na hierarquia das fortunas, na lógica


da renda, na violência das relações sociais. O funcionamento do

totalitarismo staliniano é explicado de dentro por obras de ficção


como O zero e o infinito (assim como por Kafka, se concordamos
com
Kundera) e pelas obras de ficção-científica como 1984.

Essa constatação incita a considerar a ficção de outra forma,


nao como
uma representação (ainda que fosse de um realismo

espantoso), mas como uma operação cognitiva. A ficção deixa de

ser uma imitação, um desdobramento de um “dado” que chamamos

254
As ficções de método

de real ou de história, mas uma ferramenta que ajuda a construir


um saber acerca do mundo. Em vez de considerar, como na teoria

do reflexo, que os fatos disponíveis são retomados pelo romance,

pode-se supor que certas ficções participam de um raciocínio capaz


de estabelecer fatos.

Afirmar que certas ficções fazem parte do raciocínio histó

rico não significa cair no panficcionalismo, como os detentores

da virada linguística ou os pós-modernos. Tampouco consiste

em subverter a história, como a paródia de biografia erudita que

Wolfgang Hildesheimer sobre um personagem fictício, o senhor

Marbot. A vocação de certos romances consiste em minar a pró

pria possibilidade de verdade: se os fatos não existem, se não há

interpretações,se a história não passa de propaganda do vencedor,


15
então a ficção é a única verdade. Ela permite “resistir a história ,

ou seja, denunciar a arrogância euforizante dos metadiscursos,

superioridade do Ocidente, lei do mais forte, progresso, etc.

Aquele que suprime a fronteira entre realidade e ficção, entre

verdade e fabulação, destrói as ciências sociais. Entretanto, o histo

riador tem necessidade de certo tipo de ficção. Essas ficções(usando

Julian Barnes, Une histoire du monde en 10 chapitres Paris, Stock, 1989, p.318.

255
A história é uma literatura contemporânea

O termo no plural, segundo o emprego do século XVII) são as que


chamarei de “ficções de método”. Elas não se reduzem à imaginação.

De Seignobos a Pomian, passando por Carl Becker e CoUingwood,

todos os historiadores relembraram a que ponto a imaginação era

importante para o pesquisador: ela serve para encontrar fontes,

construir teorias, provar a empatia ao se colocar no lugar do outro.

A tensão sem trégua entre ciência e imaginação é a mola propulsora


16
do trabalho do historiador”, escreve Peter Brown.

Constitutivas do raciocínio, as ficções de método são, ao

mesmo tempo,ficcionais, mais conceituais e mais indispensáveis

do que a imaginação. Elas diferem da ficção romanesca em três

pontos: elas se apresentam enquanto tais, ou seja, denunciam a si

mesmas; elas só se distanciam do real para retornarem a ele com

ainda mais força; elas não são lúdicas nem arbitrárias, mas coman

dadas pelo raciocínio. As ficções de método podem ser agrupadas

em quatro famílias funcionais: o estranhamento, a plausibilidade,


a conceptualização e o procedimento narrativo.

Como dissemos, definir um problema exige um distanciamento


do real. Mas isso não é nada óbvio: como abordar criticamente

Peter Brown, Science et imagination”, in La sodété et le sacré dans VAntiquité


tardive. Paris, Seuil, “Points Histoire”, Paris, 1985, p. 26.
Acerca da oposição entre ficção referencial e ficção lúdica, ver Jean-Marie
Schaeffer,“QueUes vérités pour quelles fictions?”, ÜHomme,n. 175-176, p. 19-36,
juil.-sept. 2005.

256
As ficções de método

esses hábitos,
aquilo que conhecemos de cor? Para lutar contra
consiste em
pode-se iniciar um processo de desfamiliarizaçao, que
o estranhamento do
desarraigar-se voluntariamente, organizar
reabilitado pelos
mundo ou a bizarrice do passado. Antes de ser
formalistas russos nos anos 1920, o estranhamento foi praticado
de Huron
pelos satiristas como Voltaire (por meio do olhar ingênuo
se empenhava
ou do Cândido) e de poetas como Wordsworth (que
em “conferir o charme da novidade às coisas de todos os dias e de

provocar uma sensação análoga ao sobrenatural ^®).


atitude de recusa e de
Em história, o estranhamento é uma
considerar que evi'
maravilhamento. A recusa, por discordar, por
não mais se com-
dência nada tem de óbvio, compreender que
ender; o maravi-
preende e, por vezes, forçar-se a des-compte
reencanta, se envolve na
lhamento, graças ao qual o mundo se
admi-
estranheza que tinha quando éramos crianças. A surpresa
rativa é uma das virtudes de Heródoto. Ao descobrir o labirinto do
na
Egito, a colheita de aromas na Arábia, a fertilidade das terras
: o banal se
Babilônia, a resistência dos cavalos citas, se entusiasma
19
transforma em thômasta, ou seja, em curiosidades extraordinárias.

18
Como narra seu amigo Samuel Coleridge em Biographia literaria(1817). cap. XIV,
■ . Ver Cario Ginzburg,
disponível em http;//w\v\v.gulenberg.org/cbooks/608l
, in À distance. Neufessais
“Lestrangement. Préhistoire d’un procédé littéváire
surle pointde vue en histoire, Paris, Gallimard, 2001, p. 15-36.
Ver François Hartog, Le miroir d'Héroàote..., op. cit, p. 364.

257
A história é uma literatura contemporânea

Essa capacidade de maravilhamento, que faz o historiador-viajante

passar por um ingênuo, é, entretanto, louvada por Estienne em


Apologie pour Hérodote, em meados do século XVI: as ‘'maravilhas

antigas são testemunho tanto da diversidade dos costumes quanto


da nossa dificuldade de escapar aos nossos costumes.

A história-juventude se baseia em uma ficção de método, a


surpresa epistemológica, que consiste em deixar de ver como todo

mundo.Augustin Ihierry ortografa os nomes dos Franks segundo

o emprego teutônico (Merowig para Merovingeo, Hilperik para


Chilperico, Chlodowig para Clovis), provocando no leitor uma “sen
sação de estranhamento
que pretende lembrá-lo que esses reis

não falavam francês. No início das Religiões da pré-história (1964),

Leroi-Gourhan imagina um extraterrestre que entra numa igreja:


ele veria um jegue, um boi, cordeiros, um homem pregado em
um poste, sem perceber a profundidade mística desses conceitos.

O mesmo ocorre conosco com relação a Lascaux.

Esses procedimentos, decisivos pela qualidade do raciocínio,


não são exclusivos da história
enquanto disciplina acadêmica. Em

1961, Daniel Spoerri(cujo pai foi fuzilado pelos nazistas) descreve


com grande minúcia sua mesa de escritório coberta por fatias de

pão, migalhas, um porta-ovo quente, uma garrafa de vinho, uma

lata de Nescafé, um pote de vidro, uma caixa de fósforos, parafusos,


um elástico: as desordens
ou os acasos quotidianos são objeto de

258
As ficções de método

um levantamento topográfico completamente defasado. Perec


usa um instrumento de desfamiliarização muito eficaz quando

sugere que “o mundo não é tal qual”. A fim de conferir o devido

valor ao que deixou de nos surpreender, ele se posta num café, no


cruzamento entre a rua do Bac e o bulevar Saint-Germain, em 15

de maio de 1973, às 19 horas, “até que o lugar se torne imprová

vel, até sentir, durante um breve instante, a sensação de estar em

uma cidade estrangeira”. Despojada de seu caráter de obviedade,

apreendida como uma “espécie de espaço” percorrido pelos ônibus

por cima e pelos esgotos por baixo, a rua se torna uma experiência
; 21
em si. Essas experiências fundam uma antropologia do infraor-

dinário” que os historiadores como Michel de Certeau, Alf Lüdtke

e Philippe Artières perseguirão.

A plausibilidade

Na Poética, a oposição entre poesia e história sobrepõe se à da

verossimilhança e do efetivo. Ao introduzir a noção de possível,


se baseava no
Aristóteles enriquece o dualismo platoniciano, que

par verdadeiro/falso; mas esse terceiro elemento só é válido para a

Daniel Spoerri, Topographie anecdotée du hasard, Paris, Éditions du Centre


Pompidou,1990(1961).
Georges Perec, “Pour une littérature realiste”, in L. G. Une aventure des années
soixante, op. cit., p. 52; e Espèces d'espaces, Paris, Galilée, 1974, p. 70-74.

259
A história é uma literatura contemporânea

poesia, enquanto os historiadores, tanto Heródoto como Tucídides,

a empregam frequentemente sob a forma do pithanos(o crível) ou

do eikis (o verossímil), A história pode se conjugar perfeitamente


no condicional.

Entretanto, há uma diferença entre o verossímil poético, trá¬

gico ou romanesco e o verossímil histórico.0 primeiro corresponde

a uma adesão lúdico-estética, que Coleridge chama de ‘‘suspensão


voluntária da incredulidade no momento”(simétrico ao estranha¬

mento de Wordsworth).^^ Trata-se daquilo em que se pode acre


ditar. O segundo diz respeito ao que não somente é possível, mas

também admissível, satisfatório, em relação ao conjunto de nossos

conhecimentos. Em história, há vários graus de verossimilhança;


o plausível é um possível mais sólido do que os outros (ou seja, a
hipótese que mais resistiu).

Esse é o tipo de raciocínio que Cícero desenvolve em Pro


Milone(52 a.C.), em prol de Milon, acusado de ter matado seu rival

Clodius. Cícero alega legítima defesa: na ViaAppia, contrariamente


ao habitual, Clodius estava
sem sua mulher, a cavalo, acompanhado

de escravos guerreiros, portanto, tudo” indica que tenha tramado

uma emboscada a Milon. Como observa Quintiliano depois de ter


comentado esse trecho. os
argumentos do advogado podem ser

extraídos de fatos conhecidos, mas também de suposições e de

Samuel Coleridge, Biographia literaria, op. cit.

260
As ficções de método

fatos fictícios (]<ath’hypotheses)P Para provar a falsidade da “doação

de Constantino”, Valia realça os anacronismos linguísticos que ela

contém, mas mostra também que ela não é verossímil: os filhos do

imperador jamais teriam deixado que os despojassem. Tampouco é

crível que, do século IV ao VIII, ninguém tenha evocado um evento

tão importante quanto a doação do Império do Ocidente ao Papa.

O próprio Hempel,em seu artigo de 1942 acerca das leis gerais


se um
em história, admite a existência de probability hypotheses:

menino contrai rubéola depois de ter ficado duas semanas junto

de seu irmão doente de rubéola, pode-se aceitar a ideia de que este


último a tenha transmitido. O raciocínio histórico recorre,sem parar,

a essa ficção de método que é a plausibilidade, principalmente para

esclarecer situações a respeito das quais as fontes são mudas ou lacu-

nares. O assassinato é um exemplo clássico disso. Como foi morto


Õtzi, um homem calcolítico encontrado congelado em um maciço
nas
alpino (os raios X revelaram que ele tinha uma ponta de flecha

costas)? Como podem ter sido os últimos meses de um membro do


Sonderkommando de Aushchwitz? Em “Cherry-Brandy , Chalamov

imagina os últimos pensamentos do poeta Mandelstam morrendo

de fome no gulag. Para empregar termos aristotélicos, o historia¬

dor enuncia não somente aquilo que aconteceu, mas o que pode ter

acontecido e o que provavelmente aconteceu.

Quintilien, Institution oratoire, v. 10, 50 e 95-96.

261
A história é uma literatura contemporânea

A plausibilidade estrutura, portanto, um espaço de avaliação no

qual, em uma espécie de degrade, o provável é mais forte do que o

possível, mais aceitável do que o duvidoso, superior ao implausível.

Ela entra plenamente na lógica do contra-argumento, que consiste

menos em administrar a prova e mais em destruir hipóteses concor

rentes. Mas o verossímil, ainda que fosse distendido no bom sentido

mais universal, não teria valor de prova. Ele não passa de cenário
muito possível, uma hipótese não somente moldada na realidade,
mas
tributária dela e comandada pelas fontes das quais dispomos;

em outras palavras, uma ficção bem alicerçada, visível e humilde.

Conceitos e teorias

Porque visam apreender o real, conceitualizar para além do

dado fenomenológico, as ficções de método são ficções reais.


Elas vão muito além do campo das ciências sociais. Por exemplo,
o Direito romano contém numerosas ficções: elas colocam falsa¬

mente a existência de um fato (aquele que adota finge que o que foi
adotado vem dele) ou ainda elas negam que exista(o testamento de
um cidadão morto em cativeiro é valido e, no entanto,seu cativeiro

privava de capacidade testamentária).^^ No Direito francês do

Antigo Regime, a morte civil consiste em privar um indivíduo de

Yan Thomas, Fictio legis. Lempire de la fiction romaine et ses limites médié-
vales”, Droits. Revue Française de Théorie Juhdique, n, 21. p. 17-63,1995.

262
As ficções de método

seus direitos, como se estivesse morto”. O procedimento visa os

religiosos até 1790 e os condenados até 1854.


de ele-
Em um raciocínio de ciências sociais, certo numero

mentos (postulados, conceitos, explicações causais) são ficções de

método. Esse é o caso do “como se” epistemológico, Hobbes recons

tituindo o estado de natureza, Rousseau oferecendo uma im-agem

íiel de uma humanidade sem propriedade, Kant assimilando o ser


uma
moral a um legislador universal, um economista postulando

situação de concorrência pura e perfeita, Durkheim tratando os


fatos sociais “como [se fossem] coisas", Weber buscando como cada

um teria reagido “no âmbito de uma racionalidade ideal em fina-

lidade”. O idealtipo é uma construção cujo caráter abstrato torna


mensurar
irreal, estrangeira à realidade, precisamente para poder

sua distância com relação à realidade. As duas categorias meta


● ys . 3
eo
-históricas propostas por Koselleck, o “campo de experiencia

horizonte de expectativa”, são uma atualização do passado e do


26

futuro operada pelo historiador em nome dos contemporâneos.

A metáfora relaciona, analogicamente, elementos que não têm

relação entre si. Evocar, como Proust, as jazidas do “solo mental

ou a felicidade de "perder-se no meio de uma tragédia de Racine


belo estilo”.
permite delimitar, “nos anéis necessários para um

2S
Max Weber, Économie etsociété, Paris, Plon,“Pocket”, 1995 (1925), v. 1, p. 51.
26
Reinhart Koselleck, Le futurpassé. Contribution à Ia sérnantique des temps histo-
riques, Paris, Éditions de l’EHESS, 1990(1979), cap. V.

263
A história é uma literatura contemporânea

dois objetos diferentes: a psicologia e a geologia de um lado, um

passeio e a leitura, do outro. A metáfora permite subtrair essas

realidades à contingência do tempo, mas,enquanto paradigma, ela

também carrega uma dimensão cognitiva. Falar de social drama of

Work(como Hughes)ou de "regras do jogo”(como Bourdieu),com-

parar as classes sociais a um ônibus no qual os indivíduos entram


e saem(como Schumpeter)ou a sociedade sob um céu estruturado

por constelações (como Mendras) equivale a empregar imagens-


-conceitos que veiculam uma teoria. Uma boa metáfora, assim
como uma tradução,faz compreender imediatamente.

Em seu ai tigo de 1903,Simiand descarta como sendo “brinca


deiras nominalistas
as advertências que relembram que o governo,

a Igreja, a família, a indústria têxtil são "abstrações”: o sociólogo,


exatamente como o físico, tem o direito e o dever de mobilizar

abstrações. No entanto, essas entidades invisíveis continuam sendo

ficções de método. Falar de “colarinhos brancos”, por exemplo,

é uma dupla ficção heurística, pois transpõe em uma sinédoque

um conceito sociológico abstrato (os empregados de escritório).

Da mesma forma, a metáfora das "terras de sangue”, forjada por


Timothy Snyder, remete a territórios cuja única unidade é terem
sido martirizados sob os terrores stalinista e nazista entre o início

dos anos 1930 e o final da Segunda Guerra Mundial

Marcei Proust, Le temps retrouvé, Paris, Gallimard, 1927. v. 2, p. 40.

264
As ficções de método

De maneira análoga, as ciências sociais empregam contraverda-

des para melhor apreender a verdade. Trata-se de levar em conside

ração um fato que se sabe, com pertinência, ser falso ou não tendo

ocorrido. É dessa forma que Max Weber mostra, em seus Ensaios


sobre a teoria das ciências sociais, as relações causais irreais que servem

para identificar as reais: “Que teria acontecido se...?” A construção

imaginária alternativa, confrontada ao desenlace efetivo, indica

suas molas propulsoras. Essa lógica não é estrangeira à antiga retó

rica. Para convencer os jurados que Milon não se enganou ao matar

Clodius, Cícero ressuscita-o momentaneamente. Se Clodius tivesse

vivido, teria tomado posse da pretoria, teria condenado os cônsules

e os senadores ao silêncio, teria usurpado tudo, a liberdade publica

teria sido sufocada,a RepúbEca aniquilada. O irreal retroage sobre o


real: Clodius merecia ser morto enquanto inimigo público,

Esse raciocínio, muito frequente (ainda que inconsciente), pode


a ucronia. A história con-
abrir caminho para exercícios específicos;
trafactual é um divertimento sério, raciocínio-absurdo, uma hipó¬

tese que não precisa ser testada, pois foi introduzida de cara como

uma ficção. Suponhamos que os Aliados não consigam quebrar os


Pio XII condene o genocídio em
códigos secretos dos nazistas, que

andamento, que Lincoln não assine a abolição da escravidão, que


os chineses descubram o Novo Mundo.Pôncio Pilatos poupa Jesus.

Jesus vive ainda muitos anos, ele atrai milhares de discípulos, morre

quase centenário, é enterrado discretamente,sua pregação é objeto

265
A história é uma literatura contemporânea

de múltiplas interpretações, o cristianismo se desenvolve nas sina¬

gogas como uma variante do judaísmo. Para além do humor, há uma


28
reflexão penetrante acerca do papel da crucificação no cristianismo.

A esse respeito, ainda, essa forma de pensar não é exclusiva dos

historiadores profissionais. O homem do castelo alto (1962)de Philip


K. Dick descreve o mundo
como podería ter sido” depois que as
forças do ELxo ganharam a Segunda Guerra Mundial em 1947; um

livro circula em segredo, que tem a audácia de imaginar um mundo

no qual os Aliados teriam ganhado aguerra...


O anacronismo controlado traduz
uma realidade para os leitores
de hoje. A respeito da revolta dos Gracos, no século I a.C., pode-se
evocar um “proletariado romano”,ainda que Marx não tenha nascido;

os judeus e os muçulmanos espanhóis são vítimas de uma “depuração


étnica” entre
os séculos XV e XVII; há ilegais”judeus na França nos
anos 1930. Esses erros propositais traduzem um esforço de expli-

caçao, por meio do qual o historiador tenta "dizer algo certo com

palavras erradas".- Todas essas ferramentas são ficções de método,

28
Todos
„ . esses exemplos
, foram extraídos de Robert Oowley (ed.), More tVftíJt/f?
B^nentastcnanslmagine WhatMightHa.eBeen. Londcn, Macmillan, 2002.
Ver Quentm Deluermoz; Pierre Singaravélou, Explorer le champ des possibles.
Approches contrefactuelles et futurs
,, , ^ advenus en histoire”, Revue á'Histoire
Moderne et Contemporaine, n. 59, p. 70-95, 2012
29
Antoine Prost. Douze leçons sur Vhistoire, Paris, Seuil, “Points Inédit Histoire”
1996, p. 280. Ver Nicole Loraux,“Êloge de 1'anachronisme en histoire", Le Genre
Humain, n. 27, p. 23-39,1993.

266
As ficções de método

no sentido inicial de fictio, ou seja,fabricações intelectuais capazes

de se distanciar dos fatos precisainente por pensarem os fatos.

Procedimentos narrativos

Professor de literatura e fundador da “teoria da recepção na

universidade de Constança, Hans Robert Jauss enumera três ficçôes

constitutivas da narração histórica: o desenvolvimento vetorial de

um início em direção de um final; a homogeneização da narrativa,


lacunas e os detalhes
que unifica elementos díspares e apaga as
30
se conta sozinho.
supérfluos; a objetivação de um passado que

0 modo objetivo,baseado na expulsão do “eu , o ponto de vista sinó

tico e o sonho de transparência, é uma ficção de método, ninguém

ignora, por certo, que é o historiador que fala, descreve, enuncia,


-se
em um ato de presença tão esmagador que ele prefere tornar
estivéssemos lá”, é uma
invisível. Ahipotipose, que dá a ver “como se

animação verbal particularmente bem-sucedida. O uso do presente

(ou presentificação), graças ao qual o passado se reencena em uma

representação hic et nunc, constitui outra ficção de método.

Um dos procedimentos mais férteis é a narração por símbolo,que

consiste em encapsular um fenômeno,um período,um evento,em um

indivíduo ou um objeto,julgados representativos. Essa concentração

Hans Robert Jauss, Lusage de la fiction en histoire”, Le Débat,n. 54, p. 89-113,


30

mar.-avr. 1989.

267
A história é uma literatura contemporânea

do raciocínio produz como efeito vivificar a narrativa, ao mesmo

tempo que aciona um reflexo de identificação no leitor. De um ponto

de vista epistemológico, ele permite conjurar o efeito tranquilizante

da abstração, tão temível quando se aborda a escravidão, as guerras


mundiais ou a Shoah. É
ponto de partida de Marcus Rediker em

O navio negreiro(2007). Para contar-expHcar um crime global que con

denou à escravidão 14 milhões de africanos ao longo de três séculos,


ele recorre
a uma dupla focalização do objeto(o navio negreiro)e dos
homens,atores
e vítimas do tráfico (escravos, marinheiros, capitães.

comerciantes, cultivadores, políticos). Esse posicionamento produz

como efeito a personalização da história e a dinamização da narração.

Em um campo conexo, O chapéu de Vermeer(2008)de Timothy Brook


conta a globalização no século XVII
por meio da circulação de objetos
visíveis nos quadros de Vermeer; o chapéu de feltro, a cesta de frutas,
o tabaco. Reduzir a escravidão a
um navio, ou a globalização a um
chapéu, é recorrer a uma ficção de método.
Todo raciocínio
segue um ou vários esquemas narrativos,

Hayden White atualizou aqueles privilegiados pelo século XIX;

romance, tragédia, comédia, sátira. A construção da intriga da


história supõe uma história.
e esta requer a imaginação do autor
e também do leitor. No museu de Pergamon de Berlim, a porta de

Ishtar e a procissão dos leões são muito menores do que realmente


eram na Babilônia; portanto, é preciso um trabalho de recriação
para restabelecê-los em
suas verdadeiras dimensões. Uma frase

268
As ficções de método

como Hitler invade a Polônia” constitui não somente uma metá

fora e um atalho, mas uma escolha historiográfica. Condenando ao

silêncio, o papel dos generais, dos soldados, da população alemã,

ela privilegia a decisão do Führer(teríamos dito “o grande homem

em outras circunstâncias) sobre quem se concentram ao mesmo

tempo a barbárie e a celebridade. Lenglet notava,já no século XVIII,

que o suposto herói”, Skanderberg, Carlos Quinto ou o Grande

Condé, só se apropria da carnificina feita por cinco ou seis peças


31
de canhão bem posicionadas”.

É possível que o raciocínio percorra caminhos narrativos que

“não existem”. Desde que Luciano de Samosata fez falarem os mortos

(a ideia será retomada no final do século XVII por Fontenelle), os

historiadores não hesitam em recorrer a diálogos fictícios ou póstu

mos. Em Memóiias de além-túmulo, Chateaubriand faz o imperador

comparecer diante de seus juizes. Nomes e sobrenomes? Respondeu

chamar-se Napoleâo Bonaparte.” Local de residência? Em Pyramides,

Paris,em Madri,em Berlim,em Viena,em Moscou,em Santa-Helena.

Em Pensons ailleurs, Nicole Lapierre inventa encontros que teriam

podido acontecer entre Simmel,W.E.B. Du Bois e Gandhi,no Univer

sal Race Congress em 1911,ou entre Karl Mannheim e Norbert EHas


em Londres, em 1938. Os pontos mais complexos de Hammerstein
OU a intransigência são debatidos nas “conversas póstumas que Hans

Nicolas Lenglet-Dufresnoy, De Vusage des rornans [...], Amsterdam,De Poilras,


1734, V. l,p.43.

269
A história é uma literatura contemporânea

Magnus Enzenberger imagina ter tido com o protagonista(um gene

ral alemão que se opunha a Hitler) e seus parentes.

O uso da ficção na narração histórica ou sociológica produz um


efeito de dramatização. É assim que A feiticeira de Michelet retraça

a vida de uma mesma mulher ao longo de trezentos anos e que

The rise ofMeritocracy (1958) de Michael Young se apresenta sob

forma de ensaio de ficção-cientííica no qual o narrador, que vive

em 2034, observa retrospectivamente a educação dispensada na

Grã-Bretanha entre 1870 e 2033. Confrontado à penúria de traços,

a arqueologia emprega o romance com fins pedagógicos. Em Edu


cação ateniense da viagem deAnacardis(1788)do abade Barthélemy,

Chasseurs de rennes à Solutré(1872) de Adrien Arcelin e Pourquoifai

construit une maison carrée(2006)de Jean Guilaine, os personagens

são inventados, mas as circunstâncias históricas não (respectiva¬

mente, a Grécia clássica, a época solutreana e o neolítico), como

tampouco os debates que elas suscitam. A partir do final do século

XX,o romance pré-histórico foi progressivamente substituído pelos


quadrinhos e pelo documentário-ficção.

A história também sabe ser defasada,jubüante. Em Conférences

de Morterolles, Alain Corbin entra na pele de um professor rural


do final do século XIX para contar aos camponeses a vitória de

Valmy, a conquista de Madagascar, os efeitos da glaciação ou os


benefícios do trabalho. Em seu
romance-fotográfico Reconstitution,
Philippe Artières caminha pelas ruas de Roma vestindo uma batina,

270
As ficções de método

antes de cair nos paralelepípedos, como acontecera com seu tio-avô


assassinado em 1925. A história se torna um jogo, sem perder a

seriedade. Pois as questões que Artières formula são fundamentais:

essa reconstituição histórica com figurantes (entre living history

e near-documentary) materializa a distância com respeito ao que

aconteceu, revelando, ao mesmo tempo, nossa intimidade com

o evento que mobilizamos. Encenamos a história, brincamos de

história, para evitar que a história brinque conosco.

Ativar a ficção

Essa visão de conjunto nos ensina que certas ficções têm uma

potencialidade cognitiva, e não uma simples função mimética,

reconfiguração” mais ou menos livre da realidade. Indispensáveis

para a produção de conhecimento, servem para questionar, for-


saber, a fim
mular hipóteses, mobilizar conceitos, transmitir um

de compreender o que os homens fazem na verdade. Essas ficções

de método não são compreendidas nem pela teoria literária, nem

pela história da ciência. Para a primeira, só existe ficção, mundo

envolvente sem relação com o real: a verdade não passa de palavra.

Para a segunda,só há fatos: a verdade é coletada como uma pedra.

Daí essa partilha do mundo: de um lado a literatura, reino da fic

ção”; do outro, a história, o domínio do “factual .

271
A história é uma literatura contemporânea

O erro daqueles que excluem a ficção da história é considerar

a primeira como um metarreal e a segunda como um conteúdo,


um saco repleto de "fatos”. Ora, a história é, antes de tudo, uma

maneira de pensar, uma aventura intelectual que precisa de ima

ginação arquivística, de originalidade conceituai, de audácia expli

cativa, de inventividade narrativa. Se quisermos compreender as

ações dos homens, devemos dar início a um raciocínio, ou seja,

recorrer a ficções de método,ficções controladas e explícitas para as

quais não é necessário suspender voluntariamente a incredulidade.

Ao mesmo tempo ativadas e neutralizadas pelo raciocínio histórico,


encadeamentos de uma
demonstração, essas ficções favorecem a

produção de conhecimento. A história nada tem de fábula; entre

tanto, ela precisa de certas ficções, graças às quais justamente pode


se proclamar científica.

Empregada tanto no romance como nas ciências sociais, a ficção

nao é o critério final que permite distinguir a literatura da história;


ela não é indício de nenhuma realidade, assim como a história não

é hostil por natureza à ficção. Então como distinguir a ficção roma


nesca das ficções de método? A diferença reside no uso que delas se

faz. Não há uma ficção “para a literatura”, ficçoes para as ciências


sociais”; há ficções mais ou menos captadas pelo raciocínio histórico,

mais ou menos empregadas para buscar o que é verdadeiro.

Em seu artigo sobre a "psicologia do Jacobino”(1881), Taine

inventa um personagem que condensa os traços específicos de seu

272
As ficções de método

grupo. O “Jacobino” se entrega a um monólogo interior, colagem

de fórmulas e de citações que Taine extraiu de textos da época;

esse discurso inventado permite ao leitor acompanhar “ao vivo” o


pensamento do Jacobino.^^ Criaturas de um universo romanesco,

Rastignac e Nucingen são tipos ideais no sentido de Max Weber.

Eles são claramente seres de ficção, mas também podem ser con

siderados como abstrações, casos-limite expostos em sua pureza

conceituai, ou seja, ficções de método apropriadas para pensar a

sociedade do século XIX, a burguesia, o capitalismo, a ambição,

a cumplicidade, etc. Se há uma verdade qualquer em A comédia

humana, não é porque ela seja muito realista, nem porque exponha

uma “verdade” moral ou psicológica; é porque ela coloca questões


-se
e forja ferramentas que armam o raciocínio. Isso posto, pode

dizer que Balzac ajuda a compreender o que os homens fazem.

Portanto, a ficção não é, enquanto tal, verdadeira ou falsa.

Ela não está em uma relação com o verdadeiro caso se acredite

autossuficiente. Ela está em uma relação inacabada com o verda

deiro caso se contente em representar a realidade ou em integrar

pedaços de “conhecimento” no texto, por exemplo, recopiando

verbetes de dicionário, teorias médicas ou taxinomias,como ocorre

em Zola e em Verne. Tampouco basta oferecer um apanhado sobre


a alma humana, um discurso sobre a sociedade, uma filosofia da

32
Nathalie Richard, Hippolyte Taine..., op. cit., p. 248-250.

273
A história é uma literatura contemporânea

História mais ou menos original (a vista parcial do testemunho

como Fabrice em Waterloo, a espera e a retomada da História em

Gracq). No entanto, ela pode se relacionar com o verdadeiro caso

participe do processo de produção do saber como operadora de

conhecimento sob a forma de um problema (Scott, Balzac), de uma

desfamiliarização (Sterne, Borges), de uma hipótese (Dostoievski,

Wells), de um tipo ideal(uma Madame Bovary, um mundo kaf

kiano), de uma construção narrativa(Woolf, Dos Passos, Faulkner).

De tanto repetir que não há significado último, que todo

texto é escritível, que a literatura é só polissemia, ambiguidade,

dispersão semântica, que a ficção está em toda parte, corre-se o

risco de esquecer que inúmeros romances são ficções de método,


ou
seja, problematizações históricas, questionamentos sociais,

angústias políticas: Robinson Crusoé sobre a ocidentalização do

mundo, Ourika sobre as relações de gênero e raça, Dickens sobre a


Revolução Industrial, Balzac e Zola sobre a sociedade democrática,

Faulkner sobre a dominação social e racial, Arthur Koestier e Vassili


Grossman sobre o totalitarismo.

Nada disso elimina o valor, a força, a profundidade da ficção


literária , nem o lugar que ela ocupa em nossas vidas. Mas, se ela

quiser ter algo de verdadeiro, ela não pode viver em autarquia, mundo

miniatura no qual estaríamos deliciosamente encerrados. Quanto

à ficção-espelho, ela só reflete aparências. Para aprender algo sobre


o real, é preciso, pelo contrário, distanciar-se e recuar, passando

274
As ficções de método

pelo desvio que representam as ficções de método. Colocada nova


mente no seio de um raciocínio histórico,fecundada no contato com

um problema, enquadrada por uma pesquisa, a ficcionalização do

mundo se torna um desvio produtivo, um distanciamento que tem

por objetivo compreender. Se as ficções de método contribuem para

ampliar os enunciados da verdade, pode-se dizer, reciprocamente,

que a história é uma forma de literatura que, com auxílio de um

método, ativa a ficção para produzir conhecimento.

Há, portanto, uma dimensão arbitrai, uma política da ficção.

Sua ativação consiste em desintegrá-la em ficções de método, por


elementos da
meio de uma espécie de fissão da qual resultam os

demonstração. A ficção não ativada coloca a questão da mimese,do

realismo, do verossímil, mas nunca a da verdade; esta é o privilégio

(e a fragilidade) do raciocínio histórico. Assim, é possível substituir

a oposição ficção/realidade por outra: de um lado a ficção assertiva,

lúdica, prazerosa em sua inércia, e de outro, a ficção de método,

hipótese, conceito, expressão de um problema, encadeamento de


ser
um raciocínio, forma de uma narração. A ficção realista pode

concebida como uma sucessão de hipóteses sem provas, enquanto a

ficção ativada pelo raciocínio é uma série de hipóteses submetidas

à comprovação das provas.

Em ciências sociais, a ficção nunca reina; ela está assujeitada,

subordinada a fins outros que ela mesma.A única rainha do saber,

escrevia Bayle no século XVII, é a verdade. Atualmente, diriamos

275
A história é uma literatura contemporânea

que a ficção é uma das ferramentas que servem para pesquisar e


construir o verdadeiro.

Costuma-se dizer que Wou memória de infância de Perec alterna

duas narrativas: A “ficção”(encontro com o misterioso Otto Apfestahl,

naufrágio do Sylvandre, regulamento da ilha W)e as memórias de

infância ritmadas pela “História”(desaparecimento dos país, refúgio


em Víllard-de-Lans). Mas,como Perec esclarece no título e também no

livro, a distopia de W(uma sociedade monstruosamente obnubilada

pelo esporte) é uma “história da minha infância” que ele escreveu

aos 13 anos; quando adulto, ele a redescobriu e publicou sob forma

de folhetim em La Quinzaine Littéraire. Essa informação transforma

o estatuto do longo regulamento imaginário de W. Não é mais uma


ficção, mas um arquivo de si, um documento destinado a esclarecer
uma
questão com o auxího de outros documentos,principalmente o

texto de juventude sobre a vida e a morte dos pais (reproduzido tal

qual, com notas retificadoras). Inversamente, a parte “real” do livro


está povoada de ficções: Perec criança inventa um acidente de patins

de gelo, desenha um navio cujas velas não se prendem ao mastro,

imagina-se junto de sua mãe,tirando a mesa sobre a qual “teria havido


uma toalha plástica estampada de xadrez azul”.

A partir desse momento o livro todo se baseia em recordações

de infância, não sendo mais possível opor a “ficção” a “História”

Por menor que seja, a ficção está inscrita em um raciocínio que ele

ativa, ao ponto que IV pode ser lido como uma pesquisa de arquivos

276
As ficções de método

(arquivos de si), baseada em um problema, em documentos, em

hipóteses. Nesse sentido, W é um livro de história. A narrativa

de aventuras não diz respeito à viagem a uma ilha da Terra do

Fogo, mas a uma busca dos traços dos desaparecidos e de seu filho

- o que é exatamente a função do “Bureau Veritas” encarregado

dos naufragados (os sommersi, como diz Primo Levi). Aquele que

tenta explicar seu percurso, inscrever-se em uma filiação, reunir

um conjunto de arquivos autobiográficos, sonha com história. Sua

“ação onírica” é colheita e tecelagem, jogo de detetive e melodia,


33
“temporalidade captada na raiz das emoções”.

Pode-se tentar explicar a Shoah pelo antissemitismo, pela

necessidade de “espaço vital”, guerra total,invasão da URSS,cobiça

dos bens judaicos, necessidade de eliminar bocas inúteis. Outra ati

tude consiste em assumir o caráter estupefato e incompreensível do


crime, ou desfamiliarizar-se radicalmente. A inteligência do evento

e o desejo de criar, mostra Lanzmann, têm a mesma origem: a

recusa de representar, a obstinação de não compreender,a cegueira


como verdadeira “clarividência”. Não há sequer uma imagem de

arquivo em Shoah. O filme mostra rios, estradas, estações de trem,

fazendas tais como existem hoje, faz ouvir testemunhos, procede

a reconstituições artificiais - gestos de um barbeiro, manobras

de um condutor de locomotiva. As pessoas encenam sua própria

30.
Maurice Olender, Matériau du rêve, Abbaye dArdenne,IMEC, 2010, p.

277
A história é uma literatura contemporânea

história. Como a ficção pode produzir conhecimento? De fato, essa

encenação nada mais é do que uma ficção de método, direcionada


ao mesmo tempo contra a banal narrativa do passado e contra a

ficção obscena das séries televisivas. “Shoah é uma ficção do real.”34

Desprende-se que a finalidade dessas ficções não é uma fuga


fora do mundo, o prazer do texto ou ainda o “sentido do real”, mas

a verdade. Deve-se, então, definir a história como um agenciamento

de ficções não ficcionais cujo objetivo seria dar a ver o real? Se for

o caso, não há certeza de que ela ainda tenha seu lugar entre as
narrativas “factuais”.

34
Ckude Lanzmann,"Le lieu et la parole"(1985); e “Hier ist kein warum"(1988),
in Michel Deguy (dir.), Au sujet de "Shoah". le fUm de Claude Lanzmarm, Paris,
Belin, 1990.

278
Literatura e ciências sociais
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9.
Da snã® fiicçã® à literatuBBra-TCardade

Uma coisa é afirmar que toda história é narração, outra é dar


vida a um raciocínio em um texto. Escrever a história: o projeto não é

novo. Retomando a retórica agonística, pode-se mostrar que a histó


ria (como raciocínio) e a literatura (como texto) têm a mesma origem.

Na perspectiva das belas-letras, percebe-se até que toda história é

literatura, sob a forma da história-tragédia, da história-eloquência

ou da história-panegírica. Ao final do século XIX, a história se extraiu

desse sistema, uma vez que o mundo acadêmico assimilou a literatura

à fabulação, à parcialidade, ao diletantismo, até mesmo à doença.

Depois de ter sido fundada enquanto método, institucionali

zada como disciplina, a história se permitiu a prática do não texto

profissional. Felizmente, isso não bastou para desviar os pesquisa

dores da escrita, e acho que certos livros de história do século XX


anos
pertencem pura e simplesmente à literatura. Mas quando, nos

1970, o pós-modernismo quis teorizar a literariedade da história,

a tentativa se deu em detrimento de sua capacidade cognitiva -

golpe lamentável. Desde então, reina uma espécie de desconforto.

Antes do último terço do século XIX, os historiadores não

tinham tantos cuidados com relação à literatura. Heródoto, Gibbon


e Michelet eram claramente escritores. Devem ser considerados
A história é uma literatura contemporânea

modelos? O problema é que, ainda que tenham contribuído para

fundar o raciocínio histórico, seu método não era sempre fidedigno.

ou garantido, ou claro, suas conclusões nem sempre eram exatas.

No sentido contrário, os Monod e os Seignobos não eram essas


velharias que repudiamos. Tinham o rigor e a independência, uma

verdadeira curiosidade intelectual, tinham consciência de que eram

depositários dos traços dos ancestrais, interessavam-se pelas insti


tuições e grupos sociais.^ “Devemos acreditar somente naquilo que
foi demonstrado”,
escrevia Fustel de Coulanges. Quem diría o con¬
trário. Nós,que somos seus herdeiros, não devemos ser tão ingratos.

Em uma so palavra: a revolução metódica aconteceu. As dis

ciplinas estão estabelecidas, e a história é hoje uma ciência social,


ainda bem. Uma reflexão
acerca da escrita da história nao conse-

guina, portanto, conjugar-se no passado, ressuscitando a histó-


ria “walter-scottiana”,
apostando na sociologia” balzaquiana ou
esperando o eterno retorno:
retorno à narrativa”, “retorno do
acontecimento”. retorno da biografia”.

O desafio consiste
em inventar novas formas literárias para as
ciências sociais e graças às ciências
sociais, sem regredir na direção
das belas-letras, nem derreter
no banho ácido da virada linguística.
Antes de querer retornar
a uma época em que a história não era
uma disciplina, antes de renunciar
a qualquer regra, tento desviar

Ver Antoine Prost, ●'Charles Seignobos revisite'', Vingtièr.. Siide.


dHistoire, n. 43, p. 100-118, jul.-set. 1994.

282
Da não ficção à literatura-verdade

as regras hoje existentes. Antes de tentar reconciliar o par história/

literatura, que não para de se divorciar há séculos, promovo o encon-

tro método/texto. Mas,principalmente, coloco a seguinte questão:

Qual escrita para qual conhecimento? Qual é texto do saber?

À zona de extratei:s'itorialidade

A história não é ficção, a sociologia não é romance e os dis

cursos não se equivalem. Entretanto, existe um ponto de contato


entre literatura e ciências sociais, uma zona de interpretação na

qual os pertencimentos são indecidíveis e onde seria bom que assim

permaneçam, uma biblioteca em que cada livro não tem um lugar


território neutro”,
certo numa estante. A pátria desses livros é o
no
no sentido de Fenimore Cooper; um campo mal definido, um

mans land flutuante que escapa aos beligerantes, um espaço no

qual nenhuma autoridade consegue ser exercida.


Os escritores não têm necessariamente muitas vidas, como

Michel Leiris, poeta e etnólogo, ou Jean Duvignaud, dramaturgo e


identidade con-
sociólogo.^ São os próprios livros que possuem uma

fusa, como Auster/ítz, que Sebald, recusando o termo de romance,

^ Ver Pierre Lassave, Sciences sociales et littérature. Concurrence, complémentarité,


interférences, Paris, PUF, 2002.

283
A história é uma literatura contemporânea

define como “um livro em prosa de natureza indefinida”.^ Essas

obras não pretendem literarizar a história, misturar “documentos'


e ficção , mas escrever o real, com as operações cognitivas que isso

implica. Elas têm por única identidade a bastardia, por meio da qual
a literatura
se torna uma ferramenta de explicação-compreensão
do mundo,um texto carregado de raciocínio. Eis uma tentativa de

classificar algumas dessas obras inclassificáveis.

O inventário de si é um texto reflexivo, sob a forma de testemu¬

nho ou de autobiografia, que visa elucidar um itinerário, dar conta


de uma experiência, üuminar uma intimidade, sair de si. Citarei, sem

qualquer ordem,A idade viril de Michel Leiris,Promessa ao amanhecer

de Romain Gary, Scum ofthe earth de Arthur Koestler, Black boy de

Richard Wright, Grenadou, a obra completa de Annier Ernaux, Ellis


Island e Je me souviens de Georges Perec (inspirada em I remember

de Joe Bramard), a trüogia famÜiar de Lydia Fiem, A lebre da Pata

gônia de Claude Lanzmann, Nas peles da cebola de Günter Grass.


Muitos pesquisadores evocaram seus percursos, Nels Anderson em

The American Hobo, Richard Hoggart em 33 Newport Street, Mona


Ozouf em Composition française, Didier Éribon em Retour à Reims,

Antoine Compagnon em La classe de rhéto. Navegando entre socio-

logia e autoanálise, esses textos manejam espaços onde nos apre-

sentamos, onde nos buscamos, onde nos engendramos.

3 Entrevista com W. G. Sebald, “Ich fürchte das Melodramatische” Der Spiegel,


12 mar. 2001.

284
Da não ficção à literatura-verdade

A radiografia social é uma tentativa de abordagem, relatório

de uma pesquisa de campo,feita geralmente em meios de grande

precariedade. Ao mostrar que ninguém vê, ao fazer ouvir aqueles

que ninguém escuta, ela confere uma dignidade aos pobres, aos

humildes, a todos os perdedores ou fracassados da sociedade. E a

missao que se impõem, desde os anos 1890, Jacob Riis no Lower


East Side de Nova York(How the other haíflives) e Isaac-Leib Peretz
nas aldeias judaicas da Europa Oriental (Tableaux d un voyage en

provincé), seguidos no século XX por Jack London no bairro de

East-End em Londres(O -povo do abismo), George Orwell no mesmo


em Paris e Londres e
lugar e junto dos mineiros ingleses {Na pior
do Alabama
A caminho de Wigan), James Agee junto dos meeiros

{Elogiemos os homens ilustres), Joseph Kesselna escória humana


trabalhadores
dos alcoólatras de Bowery, Florence Aubenas com os

das empresas de limpeza da região de Caen (Le Quai de Ouistreham).


Podemos associar a essa literatura as antropologias da vida

quotidiana que, de Siegfried Kracauer a Norman Mailer, de Roland

Barthes a Marc Augé, de François Maspero a Jean RoUn,apropriam-


,as máquinas de
-se de objetos e lugares familiares: os guarda-chuvas
escrever, as ruas de Berlim, os combates de boxe ou de luta Hvre, o

filé com fritas, a linha cheia do trem suburbano, as grandes avenidas


as palavras gostariam de
periféricas de Paris. Chega a hora em que

ceder espaço à objetividade muda das fotos, à pura materialidade

das coisas: “Se pudesse, não escrevería nada neste ponto. Havería

285
A história é uma literatura contemporânea

fotografias; quanto ao resto, retalhos, sobras de algodão, grãos de


”4
areia, relatos, lascas de madeira, peças de ferro.

O livro do mundo é um hino à partida, ao nomadismo, à expa-

triação, à descoberta. Ele reúne todas as obras-primas do jorna

lismo, seja correspondência de guerra, seja relato de viagem: as

grandes reportagens de Joseph Kessel, Albert Londres, Ryszard

Kapuscinski, mas também 10 dias que abalaram o mundo de John

Reed sobre a tomada do poder pelos bolcheviques, Lutando na Espa

nha:homenagem à Catalunha de George OrweU durante a Guerra da


Espanha,Black Lamb and Grey Falcon de Rebecca West na Iugoslávia

dos anos 1930, Gomorra de Roberto Saviano sobre os territórios da


máfia napolitana; assim
como as antropologias circunterrestres,

rota da seda entre Belgrado e o Passo Khyber em Vusage du monde


de Nicolas Bouvier, volta ao
mundo do judaísmo em Lejuiferrant
de Albert Londres, volta ao
mundo da pobreza, do Quênia à China

e da Russia a Tailândia, em Por que vocês são pobres? de William

VoUmann. Essa literatura de cadernos de viagem nos leva ao encon-


tro do outro, ao contato de sua cultura, de sua maneira de viver, de
sua beleza, de sua dor. Ao
apagar nossas referências, ela nos força
a esquecermos de nós mesmos. Ela está longe.

A exploração do abismo humano se faz por meio de livros-

■mergulhos, livros-sideração que nos forçam a olhar para aquilo

James Agee; Walker Evans, Louofjs maintenant lesgrands hommes. Paris, Pocket,
“Terre humaine / Poche”, 2002 (1939), p. 30.

286
Da não ficção à literatura-verdade

que repele. Ao fundir-se com os arquivos judiciários, interroga


clínico do mal, cro-
tórios ou artigos de jornal, o escritor se torna

nista de atrocidades. Em La séquestrée de Poitiers, André Gide nos


trancada
faz compartilhar o calvário de uma solteira de 52 anos

pela mãe, vivendo numa cama coberta de excrementos e alimen

tos podres. Claude Lanzmann e Marcei Jouhandeau desenham


amante grávida
perfil do padre de Uruffe, que estripou sua jovem

antes de batizar e esfaquear o feto. Todos os grandes casos tiveram

seu escritor-escrivão, Truman Capote em A sangue frio, Norman


O adversá-
Mailer em A canção do carrasco, Emmanuel Carrère em

rio, e Michel Foucault foi buscar no fundo do século XIX o crime


a mae,
de Pierre Rivière, esse camponês “que degolou[ei][minh]

[minh]a irmã e [meu]o irmão”.


os dois extremos de uma
Aqui, o caso policial e o genocídio são
assassina de
mesma cadeia. Gitta Sereny questiona o gesto de uma

11 anos, antes de encontrar o comandante de Treblinka em sua pri


são. Jan Hatzfeld nos mostra,como se fosse um espelho quebrado,

o facão dos matadores ruandeses. Se o crime fascina, é porque ele

mostra a face oculta de nossas sociedades. A loucura, o caos, a sel-

vageria, aguardam sua hora, escondidos nos nossos campos e nas

nossas salas; eles explodem no meio do caminho tranquilo da vida,


devastando as certezas, destruindo tudo. Essa literatura do pavor,

que se afunda nas trevas da alma humana, acaba perturbando a


ordem social. Santidade do crime, diria Genet.

287
A história é uma literatura contemporânea

A reparação do passado é obra da memória auxiliada pela jus

tiça. Essa literatura, que conta a destruição do homem pelo homem,


nasce no final do século XIX com Memórias da casa dos mortos de

Dostoievski e A ilha de Sacalina de Tchekhov, dedicados à instituição

penal russa; mas é a partir da Segunda Guerra Mundial que atinge

seu apogeu trágico. Os cronistas-vítimas da guerra, os arquivistas

dos guetos,em seguida Primo Levi era Assim foiAuschwitz e É isto um

homem?, David Rousset em Lesjours de notre mort, Robert Antelme

em A espécie humana, Charlotte Delbo em sua trilogia Auschwitz e,


depois, Chalamov em Contos de Kolima, Solenitsin era Arquipélago

Gulag têm vontade de testemunhar e contar o que viveram. Sua prosa


documental faz nascer uma literatura da exatidão e da sobriedade,

dos textos provas que se obstinam em dizer as coisas tais como

foram. Nudez do homem à mercê do totalitarismo, nudez da escrita:


seu depoimento é uma narrativa sem b menor traço de invenção
literária”.^ Órfãos como Perec
e Grumberg,filhos do pós-guerra como

Patrick Modiano, Daniel Mendelsohn e Edmund de Waal partiram

em busca daqueles que desapareceram sem deixar traços.


Esses livros, nascidos em
meio hostil, podem ser associados

a pesquisas cujo objetivo é fazer explodir a verdade (Les preuves


de Jean Jaurès, no momento do
caso Dreyfus; Facing the chair de
John dos Passos, em defesa de Sacco e Vanzetti), assim como as

5 Anatoli Kouznetsov, Babi Yar. Roman-document, Paris, Robert Laffont 2011


(1970), p. 30.

288
Da não ficção à literatura-verdade

narrativas-testemunho em memória de um ser arrancado ao amor

dos seus (Outras vidas que não a minha de Emmanuel Carrère).

Reunamos esse corpus sob uma etiqueta provisória:literatura do

real. Ela é indissociável do século XX(ainda que encontremos relações

de viagem na época dos grandes descobridores e das memórias durante

as guerras de religião). Ela é a marca que esse século deixou na lite

ratura. Suas condições de possibilidade são a sociedade industrial, a

urbanização,a miséria,o exílio, a guerra, o totalitarismo,o extermímo

em massa, mas também as novas formas de apreender o mundo,a

psicanálise, a imprensa,a fotografia, o cinema, o automóvel,o avião.

Poderiamos dizer que ela reflete uma democratização do literário, se

a exclusão social e o crime tivessem alguma relação com a democraaa.

Na era das massas, ela é a linguagem do indivíduo que reclama contra

a intimação, o servilismo, o aniquilamento dos outros e de si mesmo.

Essa literatura também é, claro, a herdeira do romance realista.

Assim como Zola, Dreiser ou Sinclair, ela quer dizer o mundo,dizer

tudo do mundo,ou seja, nada dissimular. Mas- ponto fundamental

- ela recusa a ajuda da ficção e das receitas da psicologia. Assim,

pode-se abordar esses textos pelo viés do pós-realismo, atitude


diante do real discernível em três formas literárias no século XX.

o objetivismo, o testemunho e o romance não ficcional.

289
A história é uma literatura contemporânea

Os artistas da Neue Schlichkeit, nascida no início dos anos 1920


na
Alemanha de Weimar, definem a objetividade como a descrição

sem concessão do real: prazeres da vida moderna, vida quotidiana

dos operários, deformidade do corpo, horrores da guerra. Em um

sentido amplo, pode-se qualificar de objetivismo a literatura fac-

tográfica que surge nessa época na Europa, na URSS e nos Esta-

dos Unidos. Seja reportagem, entrevista, biografia, documento


ou poesia, ela quer manter uma relação direta e operacional com
a realidade, concentrando a atenção, como diz Chklovski, acerca

da “matéria,fato real, informação”. No seio da LEF, revista de van


guarda soviética criada em 1923, Maiakovski e seus amigos, Brik,

Tretiakov, Chklovski, teorizam uma “literatura do fato”, em oposi¬

ção ao romanesco percebido como uma forma burguesa, artificial


e ultrapassada. Brik resume
programa em três pontos: eliminar

os esquemas narrativos obsoletos; reunir a maior quantidade pos


sível de fatos reais; afinar
um método para ligar, sem auxílio de
uma intriga, os fatos e os detalhes. Antes de inventar ficções, os

“factovistas” (faktovikí) adotam a centralidade do objeto, resultante

de um processo de produção e dotado de propriedades materiais:


aquecedor, roupas, cartazes publicitários, etc.^

Anos depois, nos Estados Unidos, uma corrente “objetivista”


reúne jovens poetas como Reznikoff, Oppen, Rakosi e Zukofsky.

® Leonid Heller,“Le mirage du vrai. Remarques sur la littérature factographique


en Russie”, Communications, n. 71, p. 143-177 2001

290
Da nào ficção à literatura-verdade

Este Último, influenciado pelo poeta Ezra Pound e pelo historiador

Henry Adams,publica em Poetry, em 1931, um manifesto intitulado

“Sincerity and Objectification”. Ele afirma que a poesia faz ouvir a

melodia das “coisas como elas são”. O poeta é sincero quando não

foge às condições da materialidade nem do vigor da palavra, quando

ele fala(como Reznikoff)do sapateiro sentado à máquina de costura,


rua,
do peixe que cozinha, das roupas com traças, dos passantes na

quando ele diz “as chaminés das fábricas”, “os montes de tijolos e de

gesso , 'uma viga [...] no meio do lixo”. No ano seguinte, Zukofky

organiza uma antologia objetivista. Durante o New Deaí, trabalhando

no seio do projeto Index ofAmerican Design, ele se apaixona pelas

artes decorativas e pela cultura material.


De uma forma ou de outra, a literatura objetivista pretende

encarar os desafios do jovem século XX: modernidade industrial e

urbana, ascensão das massas, desigualdades, construção do socia


lismo. As testemunhas-sobreviventes que escrevem após a Segunda

Guerra Mundial certamente não compartilham esse didatismo,

nem esse entusiasmo poético-revolucionário. Mas a experiência

concentracionária está na origem de uma ética “factográfica ,cujos

princípios sao a exigência de verdade, o escrúpulo, a sobriedade,

a desconfiança da ficção.
se
Chalamov é um bom representante disso. Operário que
tornou grande jornalista, durante certo tempo membro de um
da “literatura factual” de um
grupo trotskista, ele se aproximou

291
A história é uma literatura contemporânea

Tretiakov e, no gulag, encontrou Mandelstam, que ridicularizava

as belas-letras psicológicas”. A “nova prosa” que Chalamov cria

nos anos 1960 não se caracteriza somente por suas propriedades


de estilo (laconismo, simplicidade, medida); ela também é atestado

daquele que dominou a morte, tal Plutão voltando dos infernos.

O que garante a “verdade do real' não é a ficção, a descrição, os

personagens, a psicologia, como em Tolstoi; é o documento-me-

mória, que é pura presença, autenticidade, “prosa vivida”. Ao abo


lir as fronteiras entre
narrativa, autobiografia, ata e documento,
Chalamov pode, de uma só vez, condenar a escola realista russa e
se
autoproclamar “último bastião do realismo".^

A profissão de fé de Chalamov ilustra a passagem da literatura


do fato à literatura-testemunho (de visada testemunhai ou feita a

partir de testemunhos), cujo objetivo é menos celebrar o objeto e

mais compreender o real. O elogio que faz dos especialistas (aqueles

que falam unicamente daquilo que conhecem e daquilo que viram")


ecoa
estranhamente os bistoriadores-memorialistas do século XVII.

Na mesma época, na França, um jovem escritor tentado pelo


comunismo se torna porta-voz da “literatura realista". A revista que

ele planeja com alguns amigos,intitulada La Ligne Générale[A Linha


Geral](em homenagem ao cineasta Eisenstein, por sua vez próximo

da LEF), visa explorar a complexidade do mundo. O realismo. para

’ Variam Chalamov, Récits de la Kolyma, Paris, Verdier, 2003, p. 155; e Tout ou


rien, Paris, Verdier, 1993.

292
Da não ficção à literatura-verdade

ele, consiste em revelar as coisas, decifrar a sociedade, apreender

nosso tempo. A partir de então, a literatura e a cultura só podem ser

engajadas, ou seja, “inseridas no mundo,presas à realidade, o que

as distancia ao mesmo tempo do militantismo sartriano, político

demais,e do Nouveau Roman,que menospreza pequeno fato ver-

dadeiro”. No início dos anos 1960,Perec ainda não escreveu sobre o

desaparecimento de seus pais; mas já foi influenciado pela literatura


-verdade de Robert Antelme,“esse homem que conta e questiona, [...]
- bela
que extirpa os segredos dos eventos, que recusa seu silêncio

definição do raciocínio histórico. O pós-realismo de Perec ultrapassa


de
o realismo do século XIX,fazendo da literatura uma operação

ordenamento do mundo, um esgotamento obstinadamente lúcido.

Seu primeiro livro será As coisas (1965), que muitos críticos lerão

como um ensaio sociológico disfarçado de romance.

A Shoah inspirou um dos livros mais importantes de Reznikoff,

fundador da corrente “objetivista” junto com Zukofsky. Holocaust

(1975) foi integralmente composto de testemunhos transcritos

provenientes do tribunal de Nuremberg e do processo Eichmann.


em capítulos (“Deporta-
O poeta selecionou trechos, classificou-os

ção”,“Guetos”, Massacres”,“Crianças”) e os formatou de maneira

que parecessem versificados. A emoção provém do horror cru dos

Pour une littérature


® Georges Perec,“Le Nouveau Roman et le refus du réel e
réaliste”, in L. G. Une aventure des années soixante, op. cit., p. 25'45 e p. 47-66.
^ Ibid., “Robert Antelme ou la vérité de la littérature , p. 87-114.

293
A história é uma literatura contemporânea

testemunhos, mas também,seguindo a estética objetivista, das pró

prias palavras, de sua pureza original. É preciso nomear, nomear,

nomear sempre , para que possa nascer um ritmo e que se eleve o

coro da tragédia.^*’ Dez anos antes, Reznikoff havia publicado Testi-

mony,gigantesca montagem de arquivos dos tribunais americanos

do final do século XIX. Essa simplicidade amarga dá a impressão de


estar em contato direto com a realidade mais bruta e mais brutal,

testemunho do desespero das pessoas, indo até seu assassinato.


Assim como as narrativas de Primo Levi e de Chalamov, ou

como as lembranças de Perec, a poesia de Reznikoff não deixa de

se relacionar com a história. Em certa medida, ela se inscreve na


tradição dos anais reais
arcaicos, que se apresentam, por sua vez,
como uma
sucessão de versículos verdadeiros. Parecida com o tes-

temunho do sobrevivente, ela adota uma atitude de humüdade que


consiste em
se apagar diante dos mortos, aqueles que nunca volta
ram. Entretanto, enquanto os sobreviventes dizem eu ao mesmo

tempo em que recusam se mostrar, Reznikoff está ausente porque

é estrangeiro ao drama. Ao relatar, tal qual, a palavra pronunciada


diante dos juizes, ao recusar-se a comentá-la ou colocá-la em pers-

pectiva, Reznikoff ousa uma experiência radical: o arquivo que basta

em si mesmo. Do ponto de vista literário, é um êxito, mas de um

ponto de vista epistemológico, é um engano. O ponto interessante

Charles Reznikoff, Nommer,nommer. toujours nommer”(1977),in Holocauste,


Paris, Pretexte Éditeur, 2007(1975), p. 151.

294
Da não ficção à literatura-verdade

é que esse objetivismo faz as pazes com a abstinência narrativa dos

cientistas do século XIX. Invisível, o poeta deixa falar os fatos por

si mesmos , como no mundo objetivo. Ele abre a cortina para a vida

e a morte dos outros. Mas, acreditando abrir um acesso direto ao

real, ele põe em funcionamento efeitos de real: o fascínio pela vida

"como ela é” esquiva toda reflexão acerca da produção das fontes e

da construção do saber. Razão pela qual a obra de Reznikoff deve ser

lida pelo que é: um poema,e não uma janela aberta para o passado.
A forma como essa literatura recusa a ficção (por vezes assimi

lada ao romance do século XIX) é ambígua. De um lado, o escritor

vem depor,testemunho universal de um tribunal universal. Quando

não conta a própria experiência, ele veicula a palavra dos outros,


nada mais. Esse modelo testemunhai, que recusa a invenção e foge

de todo narcisismo,tem algo de uma contraliteratura. Mas,de outro


lado, o escritor dá continuidade à ambição dos grandes mestres,

cujas ficções se querem a serviço do real. Tolstoi, que Chalamov cita

a título contrastivo, transpôs sua experiência de soldado em Contos

de Sehastopol(1855). Zola só romanceia suas reportagens.

Na verdade, o objetivismo e a literatura-documento não pro


clamam a "morte do romance”, mas a metempsicose do realismo;

e Perec, severo quanto ao Nouveau Roman, será um dos romancis

tas mais inovadores da segunda metade do século XX. Essa ambi


valência também existe em uma terceira forma de pós-realismo:

o romance não ficcional.

295
A história é uma literatura contemporânea

A literatura não ficcional

A primeira obra de não ficção" é Operação massacre(1957)do

jornalista argentino Rodolfo Walsh, que investiga a repressão de


um
golpe de Estado ao longo da qual vários civis foram clandestina

mente executados. Nos anos 1960, escritores americanos conferem

o título de nobreza ao gênero: a nonftction novel eleva uma histó-

ria real por meio de um know-how romanesco (intriga, descrições,

personagens, diálogos, pontos de vista, suspense). Seu inventor é

Truman Capote em A sangue frio (1965), que conta um homicídio

quádruplo no Kansas; a trama de fundo é real, mas vários diálogos


são inventados. Em O canto do
carrasco (1979), Mailer retraça o

Itinerário criminal de Gary Gilmore, até sua execução em Utah.


Como esclarece no posfácio, seu livro está baseado em entrevistas,
documentos, relatórios de audiências
e outro material original”.
Para que a narrativa seja o mais exata possível”, Mailer se vale

do raciocínio histórico: corroborar os fatos cruzando as fontes,

escolher entre testemunhos contraditórios, inscrever


i os eventos
em
uma cronologia precisa. Mas ele reconhece ter tomado algumas

liberdades citando jornais e testemunhas. Em geral, a nonfction


novel só é verdadeira “globalmente”.

Essa forma seria a pendente da história que Paul Veyne definiu


como “romance verdadeiro
no começo dos anos 1970? Associando

(como Platão e os puritanos)a ficção à mentira, o escritor britânico B.

296
Da não ficção à literatura-verdade

S. Johnson salva a forma romanesca,considerada como uma espécie

de recipiente: no interior dessa forma, pode-se escrever o verdadeiro


'11
ou o fictício. Eu escolho escrever a verdade sob forma de romance.’

O projeto do novo jornalismo é relativamente próximo e

engloba, em suas reportagens investigativas, as grandes mitologias

dos sixties: os grupos de motoqueiros no HelVs Angels de Hunter

Thompson, as drogas em Acid Test de Tom Wolfe, os Black Pan-

thers e seus ricos apoiadores em Radical Chie. Os exércitos da noite

de Norman Mailer, cujo subtítulo anuncia “a história enquanto

romance, o romance enquanto história”, descrevem o desenrolar

e as digressões de uma marcha no Pentágono, durante a Guerra

do Vietnã. Essa “autorreportagem” em terceira pessoa, por vezes

melhorada, por vezes fiel aos eventos e à memória do autor, pre

tende transformar-se em “história” graças a artigos de jornal e tes

temunhas oculares. Trata-se, na verdade, de uma contra-história,

capaz de abater a “floresta da inexatidão” que a mídia cultivou em

torno da manifestação, até mesmo uma super-história, o instinto


do romancista interinando a ausência de informações quando os

eventos são violentos demais ou confinados ao mundo psíquico.

Na introdução de New Journalism (1973),Tom Wolfe enumera

as técnicas que tomou emprestadas do romance: contar a história

por meio de cenas; recorrer aos diálogos mais do que às citações em

B. S. Johnson,ArentYouRatherYoungtobeWritingYourMemoirs?, London,
Hutchinson, 1973, p. 14.

297
A história é uma literatura contemporânea

estilo indireto; apresentar os eventos de urn ponto de Wsta particu

lar; registar os detalhes que caracterizam os personagens,seu modo


de vida, seu status social. Os métodos de trabalho foram herdados
ao
mesmo tempo do naturalismo e da reportagem: documentar-se

abundantemente, iniciar contatos nos meios implicados, apreen

der as atmosferas, atualizar as estruturas que organizam a socie


dade. Fascinado por Zola, que diz idolatrar. Tom Wolfe se vê como

um observador-escrivão, “convencido de que, se você fica um mês


em
qualquer lugar dos Estados Unidos, você volta com uma exce
lente história”. O
novo jornalismo pode, ainda, ser qualificado de
pós-zoliano na medida em que acabou se convertendo ao romance.

A fogueira das vaidades, que descreve a euforia do dinheiro fácil na

Nova York dos anos 1980, ecoa Feira das vaidades de Ihacheray e

O dinheiro de Zola; Bloody Miami fala dos imigrados em uma metró-


pole cada vez mais criminalizada.
O romance não ficcional e o
novo jornalismo convergiram em
um gênero aberto às ruas dos Estados Unidos: o Creative nonfiction
(em oposição a “nonfiction’
pura e simplesmente,jornalismo tra¬
dicional ou humanidades). Ensinado na universidade, endossado
pelas revistas, ele conhece certo sucesso a partir dos anos 1990.

Um de seus teóricos o define como uma “arte do fato que con

tém quatro traços distintivos: um tema extraído do mundo real

Citado em Florence Noiville, “Le siècle de Tom Wolfe”,Le Monde des Livres 12
avr. 2013.

298
Da não ficção à literatura-verdade

e não da mente do escritor; uma pesquisa exaustiva baseada em

referências verificáveis e não um rosário de impressões; uma nar

rativa alimentada de detalhes e não uma simples reportagem; uma

narração e uma prosa trabalhadas artisticamente (fine writing) e


em
não a linguagem banal de toda a não ficçãod^ Ainda, levando

consideração que a Creative nonfiction implica pessoas vivas, elabo-


rou-se um “check-list” ético: ser fiel a suas lembranças, não mentir,

não intuir o que pensam os outros, não ferir as pessoas, submeter


14
o seu texto à leitura dos interessados antes da publicação.

“Literatura do real”,“romance verdadeiro”,“romance não ficdo-

nal”, ‘novo jornalismo”, Creative nonfiction: estamos diante de etique


misturar tudo,é
tas cujas diferenças são difíceis de apontar. Para não

preciso começar do zero colocando três questões simples. Haveria algo

específico à ficção? Que é a não ficção? Por que um texto é literário?

Da ficção

Vários pesquisadores se perguntaram se uma narrativa de ficção

teria propriedades intrínsecas; em outros termos,se existiriam indícios


de ficcionalidade. Obviamente,uma ficção é sinalizada por elementos

13
Barbara Lounsberry,“'The Realtors”. in JheArt ofthe Fact: Contemporary Artists
of Nonfiction, Westport, Greenwood Press, 1990, p. XI sq.
Lee Gutkind,"The Creative Nonfiction Police?”, in In Fact: The Best of Creative
Nonfiction, New York, Norton & Co, 2005.

299
A história é uma literatura contemporânea

extratextuais: subtítulo, capa, editora, coleção, quarta capa, tudo aquilo

que chamamos paratexto. No que diz respeito ao texto, quatro argu


15
mentos sugerem que uma ficção é reconhecível “de dentro”.

- A ficção recorre em grande parte a diálogos, cenas,


descrições, assim como aos dêiticos espaçotempo-
rais associados ao tempo do passado.
- A ficção não remete a uma documentação verifi
cável nem a dados referenciais. Contrariamente, o
historiador recorre muito a notas de rodapé.
- O estilo indireto livre engendra frases “impronun-
ciaveis” que assinalam invariavelmente a narrativa
de ficção: “Ah, isso sim! ele lembraria”, “Meu Deus!
Que seria dela?” Posto que ninguém pode saber o que
alguém pensa,a intromissão na consciência do outro
e característica da ficção.
- O romance abriga vozes narrativas independentes da
ongem autoral. A disjunção entre o autor e o(s)narra-
dor(es) desencadeia uma grande liberdade de interpre
tação: ainda que Flaubert afirme “Madame Bovary,sou
eu”,
Madame Bovary não “diz” o que Flaubert “pensa”.

Examinemos sucessivamente esses marcadores de ficciona-

lidade. Os dois primeiros


sao os mais frágeis. Como mostrou a

nonfiction novel, um repórter ou um biógrafo podem muito bem


tomar emprestados os processos do
romance: diálogos, descrições,

elementos cronotópicos, pretérito. Um historiador pode usar o


15
Ver Ann Banfield, Phrases sans parole..., op. cit, p. 377-379; e principalmente
Dorrit Cohn, Lepropre de la fiction, Paris, Seuil, 2001, cap. VII.

300
Da nâo ficção à literatura-verdade

fiash~back e a prolepse, perturbar a ordem cronológica, acelerar ou

desacelerar a narrativa. No sentido oposto, muitos romancistas se

baseiam em uma documentação verificável; Walter Scott, Emile

Zola, Robert Merle, mas também William Styron em As confissões

de Nat Turner e Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano.

Na edição de bolso de Bienveillantes, Jonathan Littel corrigiu erros

que lhe haviam sido comunicados.

O terceiro argumento, o do discurso indireto livre, ignora o

fato de que os historiadores não hesitam em entrar no espírito dos

protagonistas. Taine redige o monólogo interior do “Jacobino refe¬

rindo-se explicitamente às técnicas de Flaubert. Braudel, a respeito

de Philippe II, escreve: “não é um homem de grandes idéias. [..-] não


na
acredito que a palavra Mediterrâneo tenha flutuado alguma vez
'16
sua mente com o conteúdo que lhe atribuímos.’ Duby:“O conde

Maréchal não aguenta mais. A carga é pesada demais agora. [...]

Ele sentia que isso ia acontecer, e havia algum tempo, sem dizer

nada, ele se preparava para viver sua última aventura. Seria pre

ciso distinguir o estilo indireto livre dos romancistas, tido como


verdade”, do estilo indireto livre dos historiadores, conjetural ?

Na verdade, esta última forma é uma ficção de método.

Fernand Braudel,La Méditerranée et le monde méãiterranéen à lepoque de Philippe


II, Paris, Armand Colin, 1979(1949), v. 2, p. 514.

Georges Duby, Guillaume le Maréchal..., op. cit., p. 7-8.

301
A história é uma literatura contemporânea

O último critério, que carrega as vozes presentes no texto,

é o mais interessante. Se a ücção obedece a um “modelo disjun-

tivo”, a narrativa não ficcional(biografia, história) coloca a equação

autor = narrador”, ou seja, o nome que consta na capa. Entretanto,


pode-se considerar que em história também existem várias vozes

narrativas: alternância da narrativa dos comentários eruditos nas

notas, conjunto de provas e de contraprovas, comparecimento do

historiador diante dos “examinadores rígidos”(como diz Bayle),

interpretações em uma controvérsia historiográfica. Portanto, o

historiador pode dar voz a vários narradores que não ele mesmo.

Assim,nada indica que de um ponto de vista sintático,semântico


ou
narrativo, haja algo próprio à ficção”. Em todo caso, essas fortes

reservas implicam prudência, ou até mesmo pragmatismo.A respeito


da ficcionahdade,alguns falam,por sinal, de “indícios” e não de provas.

Do factual

Deve-se, obviamente, colocar a questão simétrica: Há algo

próprio à não ficção? Todo mundo tende a responder pela afirma


tiva, identificando a não ficção ao factual, ao real, ao referencial.

É assim que Gérard Genette, ao adotar uma atitude gradualista que

liga as diferentes formas de ficção e de não ficção, opõe “narrativa

ficcional e narrativa factual (esta engloba a história, a biografia,

o diário, o artigo de jornal, o boletim de ocorrência). A reflexão do

302
Da não ficção à literatura-verdade

filósofo da linguagem John Searle se estrutura pela mesma oposição;

na conversa normal, o locutor é responsável pela verdade de seus

enunciados, enquanto na ficção o discurso é abertamente fingido,

sem intenção de enganar. A ficção é uma simulação de asserções


18
sérias. Seu status é, portanto,“parasitário” com relação à não ficção.

A Creative nonfiction, a teoria literária e a filosofia da linguagem

têm um ponto em comum: elas confirmam a categoria de “narra

tiva factual”, cujo sentido é referencial, em oposição à ficção, cujo

sentido não o é. Não é possível fugir ao esquema, a menos que se


caia no panficcionalismo. Mas essa estruturação comete o erro
crasso de confundir todos os discursos “factuais” em oposição à

ficção. Entretanto, entre os textos que se referem “seriamente”

ao real, não haveria nenhuma diferença entre um artigo de jornal

e um livro de história, entre um guia de turismo do Marrocos e


Memórias do Mediterrâneo de Braudel? Não será possível distinguir
com base nos fatos: todos eles contêm fatos.

Fica claro que a noção de “narrativa factual” faz ignorar a ques

tão - ainda que fundamental - do estatuto epistemológico do texto

e a maneira como consegue, precisamente, estabelecer os fatos.


As ciências sociais são factuais na medida em que dizem as coisas

18
John Searle, "Le statut logique du discours de la fiction” (1975), in Sens et
expression. Étudesde théorie des actes de langage, Paris, Minuit,1982, p. 101-119;
e John Austin, Quand dire, c'est faire, Paris, Seuil, “Points Essais”, 1970, princi-
palmente p. 55 e p. 116.

303
A história é uma literatura contemporânea

verdadeiras, mas não falam dos “fatos” como quem fala do tempo

que faz lá fora. Recordemos essa pseudodefinição de Hitler como um

pequeno pintor paisagista”. Trata-se de um fato real e, portanto, de

uma micronarrativa “factua”; entretanto, ela é falsa.

Surpreende que os teóricos da literatura tenham tentado tão

pouco distinguir as diferentes narrativas “factuais” que formam,

segundo eles, o negativo da ficção. Genette singulariza, na imen


sidão da não ficção em prosa, uma “literatura de dicção” (história,

eloquência, ensaio, autobiografia) que se imporia por suas carac


terísticas formais.
Mas a reflexão diz respeito à maneira como
os
textos são lidos e apreciados, “literarizados” por assim dizer,

como se a diferença entre Michelet e o Reader’s Digest repousasse

primeiro em um plano estético e não sobre a capacidade de pro


duzir conhecimento.

Daí essa concepção factualista, que carrega a marca do cien-


tificismo. para dizer algo verdadeiro, bastaria ir às ruas e recolher

fatos (ou, como diz Tom Wolfe, passar um mês “em qualquer canto
dos Estados Unidos ). Essa é também a ilusão de certo naturalismo,

bem mais dos Goncourt do que de Zola: os romances se relacio¬

nam ainda mais com o real na medida em que exalam miséria,


imundície, álcool, sexo. Essa é, enfim, a teoria do reflexo, quando
a literatura diz ser
um espelho que caminha ao longo da estrada”.

Gérard Genette, Fiction etdiction, op. cit., p. 105-110.

304
Da nào ficção à literatura-verdade

A fim de não transformar a não ficção em um grande amon

toado de “fatos”, é preciso introduzir o critério do problema, da

investigação, da demonstração, da prova, do saber, que compõem


o raciocínio histórico. Muitas narrativas “factuais” (por exemplo

as nonfiction novels e as autobiografias) repousam sobre um pacto

de leitura, uma promessa do escritor. Assim,A sangue frio se apre-


senta como uma narrativa verídica” baseada em documentos e

entrevistas; mas, para além do fato que Capote inventa grande


all
parte dos diálogos, Balzac também, em O pai Goriot, jura que
is true’. Um livro de ciências sociais nunca anuncia que vai dizer a

verdade, toda a verdade, nada além da verdade. Se ele faz tantas

promessas,é porque ele se atém a um dever dejustificativa imediata.

citar fontes, buscar explicações, criticar uma hipótese, produzir a

prova, argumentar. O pesquisador não pede ao leitor a suspensão


voluntária de incredulidade, mas a recusa sistemática da creduli

dade. É o “difícil de acreditar” que Volney evoca diante de jovens

alunos da Escola Normal Superior no final do século XVIII.

A noção de referente pesa pouco neste caso. Assim como a

não ficção, o romance tem correspondentes referenciais: os qua


dros de Gustave Moreau em Às avessas, Kutuzov em Guerra e paz,

Saint Paul, Minnesota em Freedom. A ficção e o factual não estão


,no
separados pelo "nível referencial de análise”.^® A noção de prova

Dorrit Cohn,Le propre de la fiction, op. cit., p. 173.

305
A história é uma literatura contemporânea

entanto, é discrirninante. Uma peça de arquivo e um testemunho

não têm a mesma função que a palavra “Mississippi” sob a pena de


Mark Twain, ainda que ambos existam na realidade. É o raciocínio

que, dentro da própria não ficção, permite distinguir a narrativa fac

tual, puramente informativa, e o texto de visada cognitiva.

Graças às questões,às fontes,às provas, as ciências sociais produ

zem conhecimento acerca do real em vez de simplesmente evocá-lo.


Elas dão ao leitor a possibilidade não somente intelectual, mas física,

de sair do texto para verificar aquilo que se afirma. Elas aceitam encai-
xar
seu objeto em um conjunto mais vasto, chamado comparação ou

generalização. Em vez de aceitarem crença no fato único, elas buscam,

em outros tempos e outras configurações,semelhanças que permiti

rão definir uma sucessão, uma série, uma famíHa, um grupo. A vida
de minha avó não tem grande interesse se não está inscrita em uma

história mais ampla. A ficção e o factual podem tentar se referir ao


real(ou a pedaços de real). mas não se comparam, não comprovam,

recusam-se a demonstrar: a verdade não é seu problema.

O par ficção/factual pode ser substituído por uma triparti-

ção constituída por três tipos de narrativas: a ficção, o factual,


a investigação.

A ficção é uma narrativa imaginária na qual os personagens,


os lugares ou as ações nao existem. Seja fabulosa, realista ou

hiper-real, a ficção está implícita, encenada como se fosse ver-

dadeira , em contrapartida e temporariamente, o leitor aceita

306
Da não ficção à literatura-verdade

aderir. O prazer da ficção - essa alegria de mergulhar nela - supõe

que ainda que em uma relação de transitividade com o real, ela se

debruce sobre si mesma, autossuíiciente.


O factual é uma narrativa informativa: anais, crônica, genea¬

logia, apresentação biográfica, necrologia, relatório, manual, man

chete, previsão do tempo, blog, diário de bordo, guia de viagem,

entrada de dicionário, legenda de museu, até a Creative nonfiction

em sua configuração mais comum, “fatos reais + storyteiling .

A abordagem é fenomenológica: o fato é possuído e transmitido,

a exemplo de uma moeda que passa de mão em mão. E claro que


neu-
nenhuma narrativa é puramente descritiva: a factografia mais
um indicador de
tra sempre é minimamente explicativa, até mesmo

ferrovia. Mas a narrativa factual não persegue a verdade porque

não formula nenhuma pergunta.

A investigação é uma narrativa motivada por um raciocínio,

uma atividade cognitiva. O “fato” não é o que se expõe, mas o que se

busca, pela formulação de um problema, o cruzamento das fontes,

0 teste das hipóteses, a gestão das provas, a invenção de ficções de

método, a vontade de compreender. Esse tipo de textos engloba as


ciências sociais e toda a zona de extraterritorialidade: inventários
um
de si, radiografias sociais, livros do mundo, mergulhados em

abismo humano,reparações do passado.


realismo ficcional,
Portanto, há vários tipos de descrição: o

campo da mimese; o relatório factual, relatório de superfície.

307
A história é uma literatura contemporânea

a investigação explicativa, “densa” no sentido de Geertz. Retome-


mos
o sentido dessa tripartição. Não significa de forma alguma que
as ciências sociais seriam superiores ao romance ou ao jornalismo.

No sentido contrário, ela realça o fato de que, no que diz respeito à

compreensão do real(presente ou passado,individual ou coletivo),

o texto mais esclarecedor é aquele que contém mais raciocínio.

É por isso que é melhor ler um bom romance do que um mau livro

de história, uma relação de viagem cativante do que uma sociologia

msossa. Ainda que seja “literária", a autobiografia de Jack London,


A estrada, é uma antropologia do mundo dos hobos.
A categoria de narrativas “factuais convém menos às ciên-
cias sociais, na medida em
que elas integram, em seu raciocínio,
as ficções de método:
nesse sentido, elas não pertencem à não

ficção. Ao retomar o vocabulário de Searle, poderiamos definir a


ficção de método como uma falsidade ainda assim séria, explícita

e assumida, que implica o locutor em. relação à verdade. Ela se

distancia dos fatos para melhor retornar a eles. contrariamente


à narrativa “factual”, que crê ter que se colar à realidade
como

prova de fidelidade. Ela exige imaginação cognitiva por parte do

pesquisador, enquanto a Creative nonfiction pretende respeitar os

fatos. O paradigma da pesquisa permite escapar ao mesmo tempo

ao nihilo-dandismo pós-moderno,às ilusões da mimese e ao culto


informativo, filme das aparências.

308
Da não ficção à literatura-verdade

A investigação se opõe ao mesmo tempo ao ficcional e ao fac

tual porque de ambos emana uma plenitude. A história, por sua


vez, orna o vazio. Ela escuta um silêncio, ela rumina um desa

parecimento, ela busca aquilo que falta, persegue esse vazio que
21
talha nossas vidas como o “cânion do não Colorado”, Seria vão

querer preencher, com grandes pazadas de areia, a fossa em torno

da qual gira o pesquisador pela ficção. No entanto,é possível fazê-la

florir; pode-se cuidar de uma ausência. Da mesma forma como o

pigmento recorta na parede da gruta uma silhueta de mão desa

parecida para sempre, ou como as ruínas apontam para um espaço

doméstico hoje invadido pelo mato, as fontes constroem uma mar

gem de certeza em torno do vazio.

A história é uma investigação dos vestígios dos enterrados, dos

esquecidos: meus avós; um tamanqueiro analfabeto do século XIX em

Le Monde retrouvé de Louis-François Pinagot de Alain Corbin; uma ope

rária da região do Dauphiné,Hder de uma greve durante a BeUe Epo-

que,em Mélancolie ouvrière de Michelle Perrot. Essa é a melancolia

do pesquisador, ao qual cabe encontrar silhuetas, abraçar sombras.

“Uma história das mulheres é possível?”, se perguntava justamente

a historiadora em um colóquio em 1984. Em Léonard et Machiavel,

Patrick Boucheron se questiona acerca da misteriosa contempo-


raneidade de Leonardo da Vinci e Nicolau Maquiavel. Ambos se

Georges Perec, La disparition, Paris, Gallimard,“Llmaginaire”, 1969, p. 128.

309
A história é uma literatura contemporânea

encontram em Urbino em junho de 1502, ambos estão ligados à

corte de César Borgia, ambos se interessam pela transposição do

rio Arno em julho de 1503, e Maquiavel consta como testemunha


no
contrato deABatalha de Anghiari, afresco pintado por Leonardo

da Vinci entre 1504 e 1506. Os dois homens se encontraram, mas

onde e quando? Que disseram um ao outro? “Nunca saberemos”:

as fontes são mudas. Entretanto, Boucheron não se permite mergu


lhar no
grande banho refrescante da ficção”. Ele não inventa; ele se

aproxima, delimita delicadamente, contorna, respeita.


A investigação permite circunscrever nossas lacunas com hipó¬

teses fundamentadas. Ela precisa o enigma. É ainda mais científica


na medida em
que se abre a sua própria falta, à incerteza, à dúvida,
a nossa
ignorância, a tudo aquilo que as narrativas saturadas do

modo objetivo negam. É com gravidade que o historiador consegue


estabelecer alguns fatos; ele não conhece nem a certeza da ficção,
nem
o otimismo factual. Na historiografia do vazio, a escrita é o
contorno de uma fenda.

Do literário

A confusão que a história literária alimenta em torno da “nar

rativa factual”, á qual são relegados,indistintamente, o ensaio e o


diário, a narrativa de vida
e a história-problema, o guia de viagem e
a etnologia, explica-se por razões estéticas: a dicotomia entre ficção

310
Da não ficção á literatura-verdade

e factual equivalería à linha de separação entre literatura e não

literatura. No melhor dos casos a “dicção” em prosa compreende

algumas grandes obras, destacadas por suas qualidades formais e

pelo sufrágio dos leitores. No pior, o factual implica a “reportagem

universal” da qual fala Mallarmé. Ele é o depositório no qual se joga

fora a não ficção não literatura.

Aquilo que chamamos, por falta de termo melhor, de litera

tura do real”, constitui um gênero frequentemente menosprezado.

Muito impregnada do quotidiano, ela parece implicar conversa,

utilidade, futilidade. Enquanto a ficção, diz Gérard Genette,é cons-

titutivamente literária”, o factual é só condicionalmente, pois nada

lhe garante uma intenção literária. Daí esse neoaristotelicismo da

crítica: a literatura seria criação, capacidade de invenção, imagi

nação sem limites, enquanto a história “factual não passaria de

relatório, experiência chã, constato do acontecimento.


Entretanto, existem várias definições comprobatórias da

literatura não ficcional. Em russo, o gênero otcherk compreende

o ensaio, o testemunho, o diário, as memórias, os cadernos de

viagem, a pintura social, a reportagem e outros escritos em prosa

sem intriga”. Em japonês, o termo nikki Giteralmente anotação


dia a dia”) remete aos diários oficiais, boletins de ocorrências,

autobiografias, diários, cujo emprego é atestado a partir do século

X. É possível teorizar a literatura? Deve-se falar de narrações

311
A história é uma literatura contemporânea

documentais”, de “gravações literárias?”^^ De maneira geral, é possí

vel identificar, ao lado da ficção, uma “poética dos gêneros efetivos”

cuja propriedade é pertencer ao regime ordinário da linguagem.


Memórias, ensaios, autobiografias, comentários, diários, discursos

desempenham uma função precisa nos âmbitos institucionais e

sociais, ao mesmo tempo que mantém uma “relação de designação,


23
de consignação ou de explicação direta” com o mundo.

A ideia de que existe positivamente uma literatura do real

permite enfrentar a vulgata que prega que o critério essencial da


literariedade seria o ficcional, ou mesmo o romanesco, condenando

as demais produções a mendigar um pouco de reconhecimento.

No entanto, isso não justificaria cair no oposto diametral e acre-

ditar, com Searle, que a ficção é um epifenômeno, um "parasita”

do discurso sério. Inversamente, cabe relembrar que a dicotomia

fictício/factual, que resvala suavemente na hierarquia literário/não


literário, deprecia partes inteiras da literatura e desencoraja inúme

ras experiências. Ainda, em vez de falar de ficção e de não ficção,

poderiamos brincar de inverter a distribuição do privativo, opondo


literatura “não referencial”(ou “irreal”) e literatura “referencial”.

22
Lionel RuffeI, "Un réalisme contemporain: les narrations documcntaires”,
Littérature, n. 166, p. 13-25, 2012; e Marie-Jeanne Zenetti, Factographies.
Pratiques et réception des formes de Venregistrement littéraire à Vépoque contem-
poraine, tese de literatura comparada, Universidade de Paris VIII, 2011.
Jean-Louis Jeannelle, Écrireses mémoires auXX"siècle. Déclin etrenouveau, Paris
Gallimard, 2008, p. 321-324.

312
-verdade
Da não ficção à literatura

ser qualificados de
A que título os escritos do real poderiam
de “litera-
literários? Acabamos de nos questionar acerca da noção

tura”, termo envolto de todas as glórias cujo sentido moderno se


fixou no final do século XVIII. Definir a literatura? A ideia tem algo

de incômodo, ou de ridículo. No entanto, é necessário confrontar se

a ela a partir do momento em que certas produções (dentre as qua

as ciências sociais) são excluídas da literatura. A única definiçã

aceitável é que pode ser várias coisas ao mesmo tempo.


manifesta uma
A literatura é a forma. É literário o texto que
limitar-se à sim-
qualidade estética, uma intenção de beleza, sem
, um escritor é
pies comunicação. Desde os tempos de Furetiere

aquele que “escreve”, mas o termo designa mais particularmen


um “mestre na arte de escrever”. A construção narrativa,invença
e alimen-
lexical, o trabalho da língua,fazem nascer uma emoção
. Genette desenvolve
tam, como diz Barthes, um “prazer do texto'

essa análise escrevendo que a literatura, “arte da linguagem ,pro


voca uma satisfação estética .24

Literatura é imaginação. Desde Aristóteles, há um elo orgâ-


literária e capacidade de
nico entre poética e muthoi, entre criação

inventar histórias. O poeta não é aquele que escreve em versos,

mas aquele que inventa ficções(a ideia será retomada por Furetiere

no artigo “Poeta”). Todo escritor é um aedo, uma Sherazade, um

24
Gérard Genette, Fiction etdiction, op. cit., p. 91 e p. 105.

313
A história é uma literatura contemporânea

Tristram Shandy, um Jacques o fatalista, um Tévié o leiteiro, ou

seja, um entregador de histórias, um falador, um contorcionista,

uma máquina de narrativas, o cavaleiro que pula de um aparta


mento a outro em A vida modo de usar.

Literatura é polissemia. Assim como as ciências sociais não se

resumem a um resultado”, uma obra não transmite uma men-

sagem . Ela autoriza várias interpretações, ela alimenta mil leitu-

ras, sua característica é de nunca se deixar apreender. A obra de


Jean Genet não aceita
uma caracterização unívoca: sofrimento
da criança abandonada; plenitude do pequeno caipira no reino

animal e vegetal; espírito de revolta do delinquente homossexual;

errância do vagabundo,fascínio do desclassificado pelo crime e pelo


nazismo. Ela é tudo isso
ao mesmo tempo e muito mais.
Literatura e singularidade. Um texto literário é a irrupção de

um eu que, por sua própria visão, perturba a ordem das coisas.


Ele faz ouvir uma voz diferente de todas as outras, um verbo sem

nome, estrangeiro ao mundo,inédito. Num segundo é possível


reconhecer uma página de Proust, uma atmosfera de Kafka, um

poema de Baudelaire. Essa concepção, tomada dos formalistas

russos, leva em consideração o dinamismo das obras, ou seja, sua


força de impacto; mas ela integra também o evento da fala, essa
voz
universalmente singular que pertence a cada um enquanto
'animal literário”, como diz Rancière.

314
Da nâo ficção à literatura-verdade

Literatura é literatura. Essa tautologia constitui uma defini

ção muito profunda; ela relembra que a “Literatura”, povoada por

grandes escritores e obras, não existe, a exemplo da “História ,

com seus heróis e seus eventos dignos de memória. Pelo contrá

rio: a literatura é um conjunto de textos canônicos, canonizados,

recolhidos por uma tradição, reconhecidos por uma cultura,fami

liarizados por um ensino. É literário um texto que um autor, uma

editora, uma nação, uma época, um leitorado, consideram como

tal. Assim,importa menos definir a literatura do que discernir os

fenômenos de institucionalização e de consagração graças aos quais

textos, progressivamente arrancados de sua época, de seu campo de

produção e até mesmo de seu autor, tornam-se clássicos,frequen¬

tadores de um salão olimpiano no qual Shakespeare bate papo com


instâncias de
Victor Hugo. Não há literatura sem literarização,sem

juízo e de legitimação,sem autoridades, portanto,sem conflitos a


25
ou nao.
partir dos quais um texto é considerado como literário

Ver Christophe Charle, "Situation du champ littéraire”, Littérature, n. 44,


p. 8-20, dez. 1981; e Antoine Compagnon,Le ãémon de la théorie. Littérature
et sens commun. Paris, Seuil, "Points”, 2001, p. 48 sq.[O demônio da teoria.
Literatura e senso comum, 2. ed„ tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e
Consuelo Fortes Santiago, Belo Horizonte, Editora UFMG,2011.]

315
A história é uma literatura contemporânea

Sendo que essas pistas são bem mais perspectivas do que bifur
cações, podendo ser agrupadas todas juntas: é literário um texto

considerado como tal e que, por meio de uma forma, produz uma emoção.

Essa definição, por mais criticável que seja, tem dois méritos: sua

simplicidade, que permite fácil aplicação, e sua plasticidade, que a


torna compatível com as ciências sociais.

A crença de que a literatura e as ciências sociais são estranhas

uma à outra repousa em vários mal-entendidos. Ainda que se aceite

a ideia de que a linguagem tem duas funções, uma função utilitária

e uma função estética, por que as ciências sociais pertenceriam


necessariamente à primeira? Isso equivale a considerar apenas, a

guisa de história ou de sociologia, os escritos acadêmicos que prati

cam uma não escritura em um não texto, A fórmula segundo a qual,


em literatura, a''forma” importa mais do que o "conteúdo , convém
perfeitamente à história, que tem o direito de falar sobre tudo, à
condição que obedeça a um método. O raciocínio histórico nunca

impediu de escrever, de construir uma narração, de desenvolver um

trabalho sobre a língua, ou mesmo de ter uma intenção estética.

Um aristotelismo esquemático leva a remoer a ideia de que o

escritor inventa e cria, ao contrário do historiador, que se limita


a dizer "aquilo que aconteceu”. Mas o próprio Aristóteles define
a poiesis como um
trabalho pessoal de composição, esforço pelo

316
Da não ficção à literatura-verdade

qual um criador efetua a “montagem das ações realizadas”. Natu

ralmente, esse é o trecho que Ricoeur retém; a intriga é comum ao

romance e à literatura. Um historiador, um sociólogo, um antro

pólogo, constroem histórias. Na maior parte do tempo, eles agen

ciam aquelas que lhes foram contadas, por meio de um elemento


um
de arquivo, uma entrevista, um mito. A jubilaçâo sentida por

romancista tem equivalente: é o “gosto pelo arquivo”, o fascínio


26
-emoção que o historiador sente e tenta transmitir.
Mas isso não é tudo. O historiador “inventa” os fatos na

medida em que os pesquisa, os estabelece, os seleciona, os ordena,


é esse cien-
os hierarquiza, os liga em cadeias explicativas. Ingênuo

tificismo que acredita que, para um historiador, para um jornalista

ou um memorialista, a matéria é dada de antemão e que basta

recolhê-la no real. Como foi dito, as hcções de método permitem

passar do factual ao conhecimento. Inversamente, a ficção não é

garantia de qualquer literariedade (a coleção “Harlequim está aí

para lembrá-lo). Deve-se, então, pronunciar a “des-ligação radical

entre literatura e ficcionalidade. O fato de que o romance constitua

hoje o gênero dominante é uma situação que não deve ter nenhuma

consequência, nem teórica nem normativa.

Por fim, a história ecoa duplamente o evento da fala, porque

dá voz aos sem voz e porque é movida pela ira da verdade, capaz

Arlette Farge, LegoütdeVarchive, Paris, Seuil,“La Librairie duXX*^ siècle ,1989.

317
A história é uma literatura contemporânea

de transformar uma obsessão íntima em questão socialmente útil.

A literariedade da história provém também da idiossincrasia do

historiador, de sua visão do mundo, da coerência de seu universo.

Assim, é possível estabelecer uma ponte entre as ciências sociais

e a literatura sem regredir nem ao sistema de belas-letras, nem ao


ceticismo pós-moderno.

A história é uma possibilidade de experimentação literária. Não se

trata apenas de intriga como em White, de “escrita” como em

Certeau, de narrativa como em Ricceur, expressões que englobam


finalmente todas as formas de história, até mesmo as mais rasas.

Trata-se, sobretudo, de produzir um texto que seja integralmente

literatura e integralmente ciências sociais, que dê provas na e pela

narrativa; uma historia que é literatura porque demonstra e não


porque confere “carne”, dá sopro de “vida ’, cria “ambientes”; uma

pesquisa na qual se aprofunda um problema e não resultados joga


dos em uma não escrita feito
peixes na feira; em uma palavra, uma

literatura que obedece às regras do método. Nem a ficção em um


texto, nem o fato em
um não texto, mas a ativação de ficções no
seio de um raciocínio
que um texto materializa e desenvolve.
Escrever as ciências
sociais não consiste, portanto,em literarizar
a história. A história não caminha na direção da literatura” ao adotar

um estilo elegante. A historia é imediatamente literatura quando é


pesquisa, processo, investigação, desvelamento. A história é litera¬

tura quando é apenas ela mesma;ela deixa de ser Uteratura quando

318
Da não ficção à literatura-verdade

se deixar invadir pelos efeitos de malabarismos retóricos, efeitos

de real, efeitos de presença, efeitos de História, efeitos de vivido.

O fato de que as ciências sociais possam ser literárias sem se

renegar leva a prestar uma atenção renovada a essa literatura cha


mada “do real”. Em vez de concebê-la sob a forma de uma narrativa

factual, factografia ou mimese referencial, pode ser definida como um

texto no e pelo qual se busca dizer algo verdadeiro. É uma encarnação

do raciocínio histórico, o que une,precisamente, numerosos “gêneros

efetivos” que vão da autobiografia à grande reportagem passando


pelo documento-testemunho. Essa literatura é uma historia, uma

investigação sobre os homens,ou seja,sobre si e sobre os outros,vivos

ou mortos, a fim de compreender o que fazem - literatura-verdade,

poder-se-ia dizer, ou Creative history, na qual uma pesquisa precisa de

liberdade,inventividade e originalidade para poder existir. Os escritos


do real podem,assim,ser definidos como uma literatura atravessada

por um raciocínio, no sentido que conferi ao termo.

A pregnância das ciências sociais, seu olhar e sua plasticidade

têm repercussões sobre a própria literatura. A partir do momento

em que o raciocínio histórico vive e vibra em inúmeros textos

“literários”, deve-se acrescentar, aos critérios da forma, da ima

ginação, da polissemia, da singularidade e da institucionalização,

o critério do percurso: a literatura talvez seja também a narrativa


um
de uma busca, a angústia de um problema, a qualificação de

sofrimento, a vontade de compreender aquilo que os homens fazem

319
A história é uma literatura contemporânea

na verdade. O texto literário é uma viagem ao centro da ausência,

a energia graças à qual alguém busca respostas a suas questões, se

esforça para dizer algo verdadeiro a respeito do mundo,se entrega

a um combate contra a indiferença e o esquecimento, as crenças

e a mentira, mas também contra si mesmo, o impreciso, a falta


de curiosidade, o “nem é preciso dizer”. Essa ira é o DNA de uma

grande família de escritores, de jornalistas, de exploradores, de

poetas, de historiadores, de antropólogos, de sobreviventes, de

vagabundos, de sociólogos e de investigadores.

E visível o quão ilusória é a superioridade que a poesia acredita

ter sobre a reportagem universal”. A linguagem se redime quando

implica uma pesquisa: a própria investigação obriga a escrever, ou

seja, a trabalhar a língua, elaborar uma narração, construir um


texto, denunciar os hábitos. A escrita das ciências sociais fulgura
no texto quando este se entrega ao raciocínio histórico. Ela ilumina

uma literatura definida não por sua ambição realista, mas por seu

desejo de verdade. É a segunda revolução literária do século XX,

após a do romance moderno. Isso é o que os crimes fizeram com a


literatura — e as ciências sociais. Acrescente-se às definições ante
riores: literatura é pesquisa.

320
10.

A história, uma literatura sob coerção?

Gosto da regra

que corrige a emoção.


Braque

Se, como se costuma dizer, o romancista é todo poder

diante de sua criação, o historiador se submete não somen


resultam duas questões.
realidade, mas a regras. Dessa constatação

A existência de coerções impediria o historiador de escrever. A q


isa, seu questio
grau de originalidade pode chegar em sua pesquisa
narrativa?
namento, suas fontes, seu vocabulário, seu tom, sua

Isso significa questionar-se acerca da ars histórica, que concilia um

epistemologia e uma estética.

As regras libertadoras

A reivindicação absoluta anima o discurso do escritor desde o


diz “mais livre”
século XIX. No prefácio da Comédia humana,Balzac se

do que o historiador. Cento e trinta anos mais tarde, Robbe-Grillet

escreve que “aquilo que faz a força do romancista é justamente o


totalmente livre, sem
que ele inventa, que ele inventa de maneira
A história é uma literatura contemporânea

modelo Essa sorte de não mais estar sujeito a nada condiz com 0

mito romântico-libertário do poeta sem outro mestre que não seja


seu gênio, libertado de todas as conveniências e de todos os deter-

minismos; daí essa visão da literatura como uma aspiração solitária,


um
impulso que rompe os paradigmas, as normas, as convenções.
É o texto-nihilo.

Inversamente, de Aristóteles a Boileau, a tradição da “arte

poética se esforça para codificar as técnicas (de technè, “arte”) à


disposição do poeta. Emana que todo escritor se derrama em uma

matriz que preexiste a sua intenção criadora: o vocabulário, a sin¬


taxe, a métrica, a rima, as três unidades no teatro clássico, as subdi
visões do retrato mundano no
século XVII(corpo, mente, alma), a

verossimilhança no romance realista. É o tema, caro ao classicismo


francês e a Nietzsche, da “dança com as correntes”. Naturalmente,
es
sas regras podem ser aliviadas, contornadas, subvertidas.

Certos escritores decidem impor, a si mesmos, coerções mais


ou
menos arbitrárias. Balzac, Zola e Faulkner fazem seus persona

gens voltarem de um romance a outro. Muitos leitores de Raymond

Roussel ficaram fascinados pela genial fantasia, pelo desregra-

mento ficcional e verbal que provocam as regras que ele se fixa (ele
as explica em Como escreví alguns de meus livros). Para Michel Leiris,
o fato de se assujeitar voluntariamente a uma “regra complicada e

‘ Alain Robbe-Grillet, Pour un nouveau roman. Paris, Minuit, 1963, p. 30.

322
A história, uma literatura sob coerção?

difícil” leva a uma “suspensão da censura”, ao que não se chega por

meio da escrita automática.^ Esse jogo, muito mais profundo do

que parece, será praticado por todo o grupo do Oulipo. Ao atacar o

mito da inspiração, Raymond Queneau derruba a posição tradicio

nal: a impulsão que se acredita receber da musa, do inconsciente


ou do acaso é uma falsa liberdade. De fato,“o clássico que escreve

sua tragédia observando certo número de regras que ele conhece

é mais livre do que o poeta que escreve aquilo que passa pela sua

cabeça e que é o escravo de outras regras que ignora”.^

Perec é um dos grandes beneficiários dessa liberdade. Os proce

dimentos que ele elabora, o rigoroso caderno de especificações que

impõe a si mesmo, os sistemas de coerções nos quais se embrenha,

desde o lipograma em O sumiço até a poUgrafia do cavaleiro (cavalo


no xadrez)em A vida modo de usar, estimulam a imaginação narrativa

e verbal à maneira de “bombas de ficção”: regras são impostas para

ser “totalmente livre”.^ Esse elogio neoclássico da coerção, no qual

também se reconhece ítalo Calvino, permite reconsiderar a pseudo-

-oposição entre a liberdade (demiúrgica, rebelde) e a regra (esterili-


zante. burguesa). A verdadeira alternativa distingue uma solidão que

^ Michel Leiris, Roussel Vingénu, Paris, Fata Morgana, 1987, p. 39.


^ Raymond Queneau,“Qu’est-ce que l’art?” (1938),in Le voyage en Grèce, Paris,
Gallimard, 1973, p. 94.
“ Georges Perec, Entretiens et conférences, v. 1, Nantes, Joseph K., 2003, p. 208,
bem como p. 228 e p. 243-246.

323
A história é uma literatura contemporânea

crê não ter mestre e uma autonomia consciente de suas leis, ou seja,

uma liberdade de ignorância e uma liberdade de intenção. Quer se

queira, quer não,todo escritor impõe regras a si mesmo. David Lodge

reconhece com honestidade:“A regra de ouro da prosa ficcional é que


”5
não há regras - exceto aquelas que cada escritor fixa para si mesmo.

A atualização dessas coerções contribui para uma arte da liberdade.

O fato de que as regras não entravam a criação, mas, pelo con-

trário, a estimulam, prova que seu método jamais impedirá um his


toriador de também ser
em escritor. A noção de leis, em história,

vem da Antiguidade. Já foram evocadas as quatro regras de Cícero.

Em Como escrever a história, Luciano de Samosato exige o respeito

da verdade, a imparcialidade, a benevolência para com todos, a hie

rarquização dos fatos segundo sua importância. Ao final do século


XVII,as “regras da história’
que Mabillon prescreve para si, ecoando
a regra de São Benedito
e que é a sua, relembram que a história exige
certa ascese, uma forma de humildade e de obediência. É claro que as
“leis” do escritor
não são equivalentes às do historiador, ainda que

seja porque umas pretendem Ubertar a ficcionalidade,enquanto as

outras trazem sempre o real de volta. Por um lado. há uma técnica

para estimular o imaginário, uma jubilação de inventar, a gênese de


uma obra-mundo e, de outro, as fontes, os instrumentos do raciocí

nio histórico, uma exigência ética, uma visada de verdade.

= David Lodge, The Art of Fiction: lllustrated trem Classic and Modern Texts.
London, Penguin Books, 1992, p. 94.

324
A história, uma literatura sob coerção?

Entretanto, pode-se delimitar um paralelo entre essas dife

rentes regras. Todas são livremente consentidas, escolhidas no


âmbito de uma atividade intelectual. Essas coerções, no interior

das quais e graças às quais o trabalho criador se desenvolve, são

fontes de liberdade com relação ao mundo, quer se deseje dele esca

par pela ficção, quer se busque compreendê-lo por um raciocínio.

Elas existem para serem respeitadas, mas, às vezes, também para

serem transgredidas. O cliname, em Lucrécio, Jarry e Perec, é o

“pequeno erro” que abala todo o sistema, o desvio que perturba


a norma. Em A vida modo de usar, ainda que o edifício figure um

quadrado de 10 por 10, há apenas 99 capítulos, já que a adega,

embaixo à esquerda, não é descrita. A “razão” é que uma menina


um
mordeu um pedaço do seu biscoito - pirueta que mostra que

escritor nunca é prisioneiro de seu próprio sistema de coerções.


Da mesma maneira, acontece de a história transformar suas

próprias regras: é a revolução historiográfica. Braudel estuda

“o Mediterrâneo na época de Philippe 11”, em vez da política medi

terrânea de Philippe II. Álain Corbin confere dignidade histórica

a odores, sonoridades, margens de rio, tecido, orgasmo, sombra

das árvores, o tempo lá fora. As ficções de método têm algo de

cliname, defasagem insólita, fantasia epistemológica que implica


raciocínio: estranhamento, desordens, ucronias, anacronismos, etc.
Cabe a cada historiador escolher seus limites.

325
A história é uma literatura contemporânea

O estilo podería ser a segunda coerção que vem entravar a cria

tividade do pesquisador. À primeira vista, a imparcialidade parece

impor uma total neutralidade de tom,uma espécie de acromatismo;


mas essa
injunção é uma herança da época cientiíicista que, além do

mais, não a respeitava (basta ler a história-panegírica de Lavisse).

A Antiguidade conhece uma grande variedade de estilos.

Quintiliano distingue o charme "doce e límpido” de Heródoto, a

densidade nervosa de Tucídides, a brevitas um pouco abrupta de


Salústio, a suavitas ou abundância cremosa” de Tito-Lívio. Desde

a época de Cícero, as escolas se afrontam por meio de grandes


controvérsias. O aticismo, que caracteriza Lísias, Xenofonte ou
Tucídides, consiste em
um estilo puro e claro, simples, beirando
despojamento. O asianismo, importado da Ásia Menor, emprega

contornos rebuscados, florilégios ou brilhos, para inflamar o audi


tório. É essa influência que os neoáticos acreditam identificar em

Cícero, condenando suas reviravoltas, suas redundâncias, seus


ritmos.
seus efeitos dramáticos. Em O orador, este último replica
que o brilho e a abundância também pertencem aos áticos, de Lísias

a Demóstenes. Próximo da Escola de Rodes, Cícero se situaria mais


no
meio do caminho entre a gravidade ática e o patetismo asianista.
Gerações de historiadores, de oradores, de filósofos, per-

guntaram-se qual era o estilo mais conveniente para a história.

326
A história, uma literatura sob coerção?

A história-tragédia, a história-eloquência e a história-panegírica

propuseram uma resposta, cada uma a sua maneira. Todavia, parece

que, a partir de Tucídides, a história enquanto atividade racional

tenha se situado mais no estilo ático. Para Luciano, que escreve seis

séculos após a Guerra do Peloponeso, o historiador não deve ser


nem obscuro nem confuso. Sua ordem se manifesta pela clareza.

Sua narrativa é um “espelho límpido, claro e preciso”, no qual cada

evento está no seu devido lugar, onde cada coisa é designada pelo

seu nome. Ele chama de “figo um figo” e de “vaso um vaso


No século XVI, o nascimento da história-ciência é acompa

nhado da redescoberta do “estilo nu”: a verdade precisa de des-

pojamento e de gravidade, e não de belos discursos. Em Lidée de

Vhistoire accomplie (1599), La Popelinière elogia, três décadas após

Bodin, o estilo simples, da expressão clara e da densidade das pala

vras, qualidades que ele admira em Tucídides, Xenofonte, Catão

e Salústio. Com essa ética da pureza e da austeridade, moderni

zada sob os auspícios do calvinismo, o historiador é comparável à


melhor moeda:“Em menos matéria, mais valor. ^ Um século depois,

Bayle apoia a convergência entre cientificidade e sobriedade de

estilo: desdenhando o estilo pomposo e figurado, ele elogia, con

tra Teopompo, “essa simplicidade grave que convém ao caráter

® Lucien de Samosate, Comment écrire Vhistoire, op. cit., § 41 e 51.

’ Henri Lancelot-Voisin de La Popelinière, Vidée de Vhistoire accomplie...,op. cit.. v. 2,


p.7-108. Ver Claude-Gilbert Dubois,La conception de Vhistoire..., op. át,p. 124sq.

327
A história é uma literatura contemporânea

histórico”. Quando da querela que o opõe a Adorno em 1969,

Popper relembra que o cientista (e até mesmo o intelectual) deve

falar uma linguagem “simples e clara”, e não uma conversa fiada

intimidante, sendo que a “opacidade brilhante” é o refúgio da

trivialidade, ou até mesmo do erro.® É a crítica que Searle fará a


Derrida nos anos 1970.

Enquanto faz ciências sociais abertas à discussão crítica, um his

toriador não tem o direito de falar uma linguagem obscura, verbor-


rágica, vaga, dúplice, como na mântica da Grécia arcaica. Temendo

ser arrastado na direção da ambiguidade ou do “brilhantismo”, o

historiador universitário do século XIX tornou-se o porta-voz do não

estilo. Essa reabilitação revelou-se tão destruídora quanto vã. Pois,

com seus efeitos de real e de presença,"como se você estivesse lá”, o

modo objetivo promove uma narração muito mais teatralizada, até

mesmo patética, do que aquela de Tucídides. Além disso, assim que


publica obras eruditas, o academismo se contenta facilmente com

o estilo agradável, cheio de curvas e de elegância.

Mas até mesmo a historia nuda é intrinsecamente literária,


assim como
são literárias a simplicidade, a precisão e a limpidez.
Um estilo claro e conciso, uma pontuação comum, não parecem

representar grandes obstáculos para a literatura”, escreve Joseph

Karl Popper. “Raison ou révolution?", in Iheodor Adorno; Karl Popper et al,


De Vienne à Francfort. La querelle allemande des Sciences sociales, Bruxelles.
Complexe,1979(1969), p. 237-247.

328
A história, uma literatura sob coerção?

Conrad a respeito das Máximas de La Rochefoucauld.® A clareza e


a sobriedade são escolhas indissociáveis da escrita e vieses episte-

mológicos: rigor, distanciamento, recusa do espetacular, suspeita

da ênfase e da autocomiseraçao. Essa é exatamente a escolha que

fazem os escritores-deportados quando retornam dos campos.

Primo Levi talvez seja o mais ático dentre eles. Seu modelo não

é o poeta maldito, mas o químico que redige seu relatório semanal.

A composição de É isto um homem? obedece a vários princípios,

“uma clareza extrema e, segunda regra, o mínimo de obstrução

possível: ser compacto, condensado. [...] Meu modelo de escrita é

o ‘relatório semanal’ que se faz nas fábricas; ele deve ser preciso,

conciso e utilizar uma linguagem compreensível para todos da hie


”10
rarquia industrial, É indiretamente, a respeito de uma estrela,

que Levi aborda a questão crucial da descrição. É precisamente

porque os superlativos do horror violentam a inteligência do leitor

que é preciso ter “a coragem de eliminar todos os adjetivos que


11
tendem a suscitar a surpresa .
criador de uma língua
Sempre em busca da palavra certa, o

idônea. Primo Levi, conta da forma mais econômica. Seu senso

^ Joseph Conrad,“En dehors de la littérature",in Le naufrage du Titamc et autres


écrits sur la mer, Paris, Arléa, 2009(1924), p. 65.
10
Primo Levi."Lecrivain non-écrivain"(1976).in Vasymérie et la vie. Paris. Robert
Laffont, 2004, p. 181-187.
Ibià., “Une étoile tranquille”, in Lilith et autres nouvelles, Paris, Liana Levi, “Le
Livre de Poche”, 1989, p. 87-88.

329
A história é uma literatura contemporânea

de concisão, suas fórmulas nas quais só sobram os músculos, sua

capacidade de ir direto ao ponto, sua arte do atalho e seus finais

abruptos constituem elementos de uma hrevitas impressionante.


Em A trégua, após ter evocado seus
companheiros de quarto, per
sonagens espalhafatosos, cômicos e loucos, ele faz o retrato de
um
minúsculo pedreiro siciliano”, reservado, muito limpo, obce

cado pelos percevejos, ridículo com o batedor que ele fabricou


para matá-los. Todos riem dele, mas na verdade todos o invejam:

Dentre nós, DAgata era o único cujo inimigo era concreto, pre
sente, tangível, suscetível de ser
combatido, atingido, esmagado
12
contra uma parede.’
Essa literatura analítica, que nada tem da

narrativa factual nem do modo objetivo, alça o matter-of~fact a


um
grau de pertmencia e de lucidez inigualados. Ele coincide com
a posição de vários historiadores, para os quais a Shoah deve ser
contada da forma mais “literal’
possível; a estetização, o espetacu-
lar e a transformação em romance eram formas inaceitáveis tanto
no plano moral como no
epistemclógico.
Mas a história-ciência
não significa impassibüidade. Ao mesmo

tempo que desmonta a impostura da "doação de Constantino”,

Lorenzo Valia interpela o falsário:"Canalha! Malfeitor! [...] É assim


que falam os Césares?" O século XVIII, considerando que os sábios

jamais falavam sem uma chama, aceita a ideia de que "não se deve

Ibid., La trève, Paris, Grasset, “Le Livre de Poche", 1966, p. 120

330
A história, uma literatura sob coerção?

contar as coisas friamente”, ainda que seja em históriad^ Portanto,

a exaltação e a indignação não são incompatíveis com a pesquisa.

De maneira comparável, Levi jamais adota um estilo friamente clí

nico. Pelo contrário: ele vibra de paixão, de raiva, de vergonha, de

dor e, em outros momentos,ele destila ironia. Não a insensibilidade,

mas o comedimento; não a ausência de sentimentos, mas o pudor.

O grande desafio do estilo, para o historiador, é conter a raiva

da verdade.Sem amarras, ela explode em furor romântico. Abafada,

ela transforma a pesquisa em erudição, em mecânica profissional.


A chama da libido sciendi não deve nem se consumir nem consumir,

ela arde sob as cinzas. O historiador em luta consigo mesmo busca

filtrar seus sentimentos,serenar sua impaciência,seu amor,sua com


hino de luto
paixão. Portanto, pode-se definir a história como um
da vida, e sua escrita como um Romantismo em surdina, um lirismo

despojado. O fato de que seja uma epistemologia em uma escrita per

mite escapar das oposições cristalizadas, atismo/asianismo,secura/

abundância,inteligência/sensibilidade. A emoção,se é que tem lugar

nas ciências sociais, nasce da sobriedade, da concisão, da obstinação

na pesquisa, e não da hipérbole e das queixas. A emoção provém


uma
do esforço em conter a emoção. Ela é a pedra fundamental de

investigação que avança e de uma língua que afinada.

Bernard Lamy,La rhétorique ou Vart de parler, Paris, Poirion, 1741. p. 117.

331
A história é uma literatura contemporânea

Definitivamente, é possível enumerar pelo menos seis formas


compatíveis com a pesquisa em ciências sociais.

O não estilo. Cai-se nele quando se esquece ou se recusa colocar

a questão da escrita. Se a ciência se opõe à literatura, o “apalavra-

mento da pesquisa (como quem fala de “empacotar”) se torna

laboriosa, um mal necessário. O importante é transmitir um resul¬

tado, independentemente da forma; usa-se palavras como quem


coloca uma roupa qualquer. O não estilo também anuncia o tédio
do erudito. Em 1881,
próprio Seignobos se surpreende com o fato
de o professor alemão metralhar seus alunos com um amontoado
de detalhes, em detrimento da 14
perspectiva e [da] vida”.

O estilo agradável. É o estilo, próximo áo genus médium, que


Cícero recomenda ao historiador: flui naturalmente e se derrama

com quietude, sendo ele mesmo (contrariamente ao discurso do


orador, tenso e vivo). Quintiliano fetoma a metáfora evocando

um rio que corre suavemente. O estilo admitido pelos historiado


res metódicos do século XIX,
puro e firme, saboroso e pleno’V^ é

uma variante. Ao autorizar-se algumas fórmulas, mostrando certa

pompa, ele é o herdeiro da história-eioquência e a encarnação do

Charles Seignobos,“Lenseignement de 1’histoire dans les universités alleman-


des", Revue Internationale de l'Enseignement,v. 1,1881 p 563-601
Charles-Victor Langlois; Charles Seignobos,Introãuction aux études historiques,
op. cit, p. 252.

332
A história, uma literatura sob coerção?

“belo estilo” acadêmico, concebido para decorar os termos. Rodeado

dessa graça de convenção, torna-se eminentemente apresentável.

O estilo romântico. Emanação do gênio do historiador-escntor,

ele ecoa a voz dos conquistadores,faz trovejar o ruído dos canhões,

retém o grito do povo,sopra o vento da “História”. A ressurreição

dos heróis (quer se chamem Alexandre, Mediterrâneo, Revolução

ou América) desencadeia o entusiasmo e arrepia. Veemente, fui

minante,“sublime” segundo Cícero, capaz de conduzir o leitor em

uma história-epopeia, esse estilo inspira hoje numerosas narrativas

e documentários para o público em geral.

O estilo irônico. Ele permite construir sobre o mundo um olhar

defasado, nietzschiano, que se esquiva da armadilha da Historia

a partir da qual os vencedores se justificam. A forma como ele con

testa as provas, a distância que sabe guardar com relação a tudo,


do
a consciência aguda que tem de si mesmo são muito próximas

espírito científico. Sua irreverência e sua recusa de deixar-se con


tar lhe conferem certo ar de subversão. Pivô da teoria tropológica

de Hayden White, ele é também o estilo preferido da história e

da sociologia “antissistema” dos anos 1965-1975. Assim, a escola

americana não contribuiu para nenhuma liberação, mas serviu para

reforçar uma ordem desigualitária e racista ao submeter crianças

333
A história é uma literatura contemporânea

de classes desfavorecidas a um “controle social”. O suposto pro


16
gressismo da escola não terá passado de uma farsa.
O estilo ático. Por meio de sua sobriedade, clareza e caráter racio

nal, ele relaciona Tucídides, César, os pais da Igreja, Bodin, du Vair, La

Popelinière, Bayle, Taine,o escritor-deportado e o pesquisador da era

democrática. Ele visa a fórmula perfeita, a concisão quase geométrica.

Radiante com a elegância discreta da beleza “sem adereços”, chegando

a figurar a “ascese ao mesmo tempo moral, intelectual e estética da


17
verdade”, ele parece o mais indicado para a história-ciência, mas

também para o relatório investigativo, o boletim de ocorrência, o

testemunho e o ato jurídico. Suas qualidades indissociavelmente lite

rárias e epistemológicas permitem atingir aquilo que Perec chama de

“verdade da literatura” em seu artigo sobre Robert Antelme.

O estilo contido. Ele é a paixão depositada na disciplina do


rigor. Ele é o lirismo que transborda por meio de um escrúpulo.

Incorruptível, mas vibrante de raiva muda, de surpresa ingênua,


de revolta sem nome. Dizer o mundo com exatidão é sua forma de

chorar: é assim que ele desmente a austeridade ática, doma o ardor

romântico, recusa o riso irônico. Por vezes, ele deixa irromperem

as emoções à vista de todos: perfura a rocha que o comprime, ele


irrompe e toma outros cursos,como uma torrente subterrânea que

Ver Michael Katz, The Irony ofEarly School Reform: Educational Innovation in
i
Mid-Nineteenth-CenturyMassachusetts, Boston, Beacon Press, 1968.

Marc Fumaroli, Lage de leloquence..., op. cit., p. 689.

334
A história, uma literatura sob coerção?

irrompe na superfície. A língua se autoriza fraquejar: cedendo a

si-mesma, ela adota outros tons, outros níveis de narrativa, outros

registros. Há nisso uma espécie de cliname: aceitar, quando preciso,

subverter sua própria regra.

O estilo contido é um hiperestilo, um estilo que contém todos

os outros? Para Aristóteles, o discurso não deve ser nem raso nem

inchado, mas claro e apropriado, “conveniente”. O orador ideal,

diz Cícero, deve saber manipular e variar todos os estilos, em fun

ção das circunstâncias é o falar-adequado (apte dicere), que proíbe

de falar de uma sarjeta em estilo sublime e do povo romano em

estilo simples. Transposta para as ciências sociais, essa concepção


não deve desembocar em um relativismo literário que consistiria

em dizer que o estilo deva ser adaptado ao tema tratado, forma


e “fundo” caminhando no mesmo ritmo. No entanto, é possível

combinar estilos. Ao final do seu livro De Munich à la Libération

(1979), Jean-Pierre Azéma abandona um “estilo deliberadamente

distanciado” para homenagear os homens e as mulheres da França

livre, como esse resistente que escreve, alguns dias antes de engolir

sua cápsula de cianureto, que seus últimos meses foram prodi

giosamente felizes”. Emoção dupla: uma carta dilacerante; essa

mudança de tom, da parte de um historiador que nunca escondeu

que era o filho de um jornalista colaboracionista.


Essa lista nada tem de exaustivo, mas, entre esses seis estilos,

apenas os três últimos são capazes de dar vida a um raciocínio

335
A história é uma literatura contemporânea

histórico no texto; ou seja, capazes de conjurar a alternativa entre

um método sem literatura (não estilo e estilo agradável) e uma

literatura sem método (estilo romântico). É com eles que se pode


renovar a escrita das ciências sociais, e não com a inflação “literária’

da história-tragédia ou da história-eloquência.

Grandeza e miséria da nota

Qualquer leitor é capaz de perceber que um livro de ciências

sociais contém notas de rodapé. Nascida na República das Letras

no século XVII, criada para alcançar o status de arte por Gibbon no


século XVIII, adotada pelo sistema universitário alemão no século
XIX, a nota tornou-
se o ingresso a ser apresentado para entrar no
templo da ciência. Ela tem a faculdade de fazer “sair” da narra¬

tiva. narrativamente, mas sobretudo epistemologicamente, for


necendo a referência bibliográfica ou arquivística que confirmará
a proposição: o historiador
não é a própria fonte, e aquela que ele
invoca como apoio a seus dizeres é verificável. Esse sistema de
comprovação é bem mais uma viga:
vi a arquitetura do raciocínio

histórico. Mas a nota tem outras funções: pedagógica (“Eis aqui

uma precisão suplementar, pois talvez não estejam familiarizados


com esse
debate ), deontológica( Eu cito esse livro porque outro

Anthony Grafton, Les origines tragiques de Vérudition... op. cit.

336
A história, uma literatura sob coerção?

teve e ideia antes de mim ou formulou-a melhor do que eu”), crítica

(“É possível contestar o que eu proponho, eis aqui, por sinal, um

contraexemplo”), e deve-se confessar, carismática (“Vejam como

sou erudito, quantas caixas de arquivos investiguei”).

Ainda assim, a nota pode ser considerada como o começo e o fim

das ciências sociais. Primeiramente,isolada, ela não prova nada: ela

não passa de remissão a outra coisa, e é somente reinserida no seio

de um raciocínio que se torna significante. Além disso, numerosas

obras de erudição comportam notas: glosas na Bíblia hebraica e cristã,

comentários dos gramáticos romanos sobre Virgílio, Guemara judaica.

enquadrando a Mishna, por sua vez rodeadas de textos de Rashi.

A nota pertence também ao universo da ficção, e a partir do século

XVII,“sedições infrapaginais” se disseminam nos textos: enunciados

irônicos, autocomentários,denegações,inferências pseudoeditoriais,

apostilamentos, bifurcações narrativas, experiências estéticas,jogos


19
de ilusão, paródias de aparato crítico.
Acima de tudo, a nota suscita desconfiança, ou mesmo des

gosto, até entre os historiadores. Emblemas da filologia alemã da

primeira metade do século XIX, Niebuhr e Ranke são tentados pela


escrita de uma história linear sem notas,liberada de todo pedan

tismo. Em seu prefácio de 1868 à História da Revolução Francesa,

Michelet adverte que cita raramente as remissões que constituam

Andréas Pfersmann, Séditíons infrapagimles. Poétíque historique de rannotation


littéraire (XVII'' XXF siècles), Genève, Droz, 2011.

337
A história é uma literatura contemporânea

O inconveniente de “cortar a narrativa ou o curso das idéias”.

Em 1927,Kantorowicz publica seu Frederico II sem nenhum aparato

crítico, nem para as citações, nem para a bibliografia, nem para a

discussão erudita. Alfinetado por seus colegas, ele publica, alguns

anos depois, um Ergànzungsband, suplemento totalmente cons

tituído de anotações e comentários eruditos. Marc Bloch, severo

quando da publicação do livro, concede-lhe então um beneplá

cito: com suas referências “generosas e claramente apresentadas”,

Frederico II tornou-se um “precioso instrumento de trabalho".

Mas certos livros de Bloch são, por sua vez, mesquinhos quanto

às notas (por exemplo A sociedade feudal).

Como explicar esse desconforto diante de um signo tipográ

fico que deveria oferecer uma garantia de cientificidade? Inúme

ros escritores-historiadores detestam interromper o tempo todo

a narrativa, desfigurar seu texto com pontos de sutura, inflar o

livro com excrescências. A respeito das notas presentes no final


de Cromwell, Victor Hugo retifica:

É obra de poeta, não labor de erudito. Depois de


exposta a decoração do teatro diante dos olhos do
espectador, por que arrastá-lo para trás da tela e
mostrar as equipes e as polias? O mérito poético da
obra ganha algo com essas provas testemunhais da

Citado em Peter Schõttler, "Lerudition - et après? Les historiens allemands


avant et après 1945”, Genèses, n. 5, p. 172-185,1991.

338
r

A história, uma literatura sob coerçâo?

história? [...] Nas produções de imaginação, não há


21
documentos comprobatóríos.

Ainda que as tenham, Scott, Chateaubriand e Hugo acabam

por indicar suas fontes nas sucessivas edições. Desde o início do

século XIX, a nota se tornou indispensável para aquele que quer

fazer história ou dar a sensação de fazê-lo.

Surge uma situação paradoxal: certos escritores brincam com

a nota, certos historiadores a rejeitam. De fato, a verdadeira linha

divisória é a aceitação ou a recusa de sua dimensão veridicional,

que permite escapar à ficção e até mesmo ao texto. Como explica

Bernard Pingaud, a presença de notas, aceitável em uma obra de

informação ou de reflexão”, é chocante em um romance: ela quebra

a continuidade, ela produz uma abertura. No entanto, o fecha

mento do texto literário é o primeiro signo que permite reconhecer


seu caráter “literário”. De maneira mais ampla, a nota derruba
um dos mitos mais caros ao escritor: sua autonomia. Ela contra

ria o sonho do gênio criador autoengendrado, que descobriu tudo

sozinho, sem ajuda de ninguém, tirando um universo inteiro da

própria imaginação.

Victor Hugo,“Note sur ces notes”, in Cromwell, in CEuvres complètes. Drame,


V. 2, Paris, Renduel, 1836, p. 410.
22
Citado em Andréas Pfersmann, Séditions infrapaginales..., op. cit., p. 18-19.

339
A história é uma literatura contemporânea

Observa-se a recusa da nota em várias obras, ficcionais ou

não, que se baseiam em uma documentação exterior. No melhor

dos casos, as referências figuram no final do livro, sob forma de

agradecimentos. Do contrário, são simplesmente omitidas, em

uma ocultação que revela que o escritor não quer dever nada a

ninguém (com exceção de prestigiosos antecessores). Reconhecer


uma dívida seria fracassar, transformar o Dichter em erudito, tal
vez
em copista. É assim que, em Um túmulo para Boris Davidovich,
Danilo Kis faz
empréstimos” a livros e manuais de história, sem

citá-los. Quanto a suas novelas, ele se inspira em 7000 dias na


Sibéria de Karlo Stajner, conferindo-lhe uma lacônica dedicatória
23
no início do capítulo.

A obra-prima de Patrick Modiano,Dora Bruder(1997),livro-in-

vestigativo acerca de uma adolescente deportada a Auschwitz, ali

menta-se de pesquisas que o historiador e advogado Serge Klarsfeld


efetuou a pedido do autor, entre Paris e Nova York; declaração do
censo
de 1940, fichas de polícia, prisão dos pais, internação da

jovem no campo de Tourelles, fugas, identificação de uma teste


munha que conheceu a instituição situada no Boulevard de Picpus,

fotos. Ora, no livro, não somente não há qualquer alusão a essa


ajuda, como Modiano chega a atribuir a si mesmo as descobertas

feitas por Klarsfeld. Daí a surpresa deste quando da publicação do

Ver Alexandre Prstojevic, Un certain goüt de 1’archive (sur 1’obsession docu-


mentaire de Danilo Kis) , disponível em httpi//www.fabula.org/.

340
A história, uma literatura sob coerção?

livro: “A investigação, tal como narrada por você,tem mais a ver com

o romance do que com a realidade,já que você me apaga”. Klarsfeld

se pergunta se esse apagamento é significativo “de uma presença

excessiva de minha parte nessa pesquisa, ou se é um procedimento

literário que permite que o autor seja o único demiurgo”.

O termo de desonestidade não é apropriado neste caso: toda

literatura é reescrita de outros textos, empréstimo voluntário

ou inconsciente, homenagem, vampirismo, ficcionalização, e até


25
mesmo as citações do historiador compõem um “texto folhado .

No entanto, pode-se dizer que Kis e Modiano optaram por se libe-


citar suas fontes.
rar de uma limitação, aquela que consistia em

Mas qual regra a literatura ainda pode aceitar a esse respeito?

Alguns responderão que a criação não tolera nenhuma limitação,

nenhuma moral, principalmente a do reconhecimento, e que a

nota produz um abismo no texto ao mostrar aquilo que Victor

Hugo chama de equipes e polias. Entretanto, o fato de respeitar

a ética da nota engrandece as ciências sociais, inclusive no plano


”26
literário. Pois a “servidão de citar faz nascer uma liberdade nova:

enriquecimento da argumentação, possibilidade do debate crítico.

21
Citado em Maryline Heck e Raphaèlle Guidée (dir.), Patrick Modiano, Paris,
UHerne, 2012, p. 186.
2S
Michel de Certeavi, Lecriture de 1'histoire, op. cit., p. 130.
26
Pierre Bayle, prefácio da primeira edição (1696). Dictionnaire historique et a i-
tique, V. 16, Paris, Desoer, 1820, v. 16, p. 6.

341
A história é uma literatura contemporânea

comunicação do texto com sua exterioridade, recusa do narcisismo

autoral, emancipação do leitor com respeito a crenças e achismos-

Ainda assim, as ressalvas dirigidas à nota são perfeitamente


aceitáveis. Seu engessamento erudito transforma-a em uma espécie

de sala de máquinas , e é compreensível que o leitor prefira passar

mais tempo na sala de estar: o texto. Além disso, muitos livros de

ciências sociais empurram as notas para o fim do volume, longe

dos olhos. Como conjurar o estrabismo que afeta hoje inúmeras


pesquisas, desmembradas entre
uma narrativa e precisões, entre
uma história e sua glosa? Ou
nos atemos à nota e a reintegramos

com honrarias na narração, ou ela não é mais que receptáculo de


um excesso erudito e a cortamos.

A prova sem nota

Se quisermos devolver toda a dignidade à nota, é possível


transformá-la em um
objeto literário disseminando a narrativa
em
vários níveis de nota ligados ao texto: referências, comentários
reflexivos, estado atual da questão, discussão erudita. É a geniali

dade do Dicionário de Bayle, cuja paginação labiríntica não reflete


um
capricho de esteta, mas uma exigência intelectual e narrativa.

Trata-se de uma criação, não de uma rotina.

Em sua história do Império Romano, Gibbon utiliza as notas

para revelar um sentido literal, destacar uma ambiguidade,introduzir

342
Ta».

-t

A história, uma literatura sob coerçâo?

'5
um comentário sarcástico, estabelecer uma cumplicidade com o lei

tor. A nota complexifica a narrativa ao multiplicar as vozes narra


tivas. A respeito de Constantina, a mulher do novo imperador(em

meados do século IV), Gibbon escreve; “Ainda que tenha renunciado


às virtudes do seu sexo, ela mantinha sua vaidade. Foi vista aceitando

um colar de pérolas, como prêmio suficiente para o assassinato de

um inocente.” A explicação figura em nota: trata-se de Clemente de r


Alexandria, cuja sogra obteve a cabeça oferecendo um colar à impe-

radora. Enfim,chega a indicação da fonte: o livro XIV de História de

Roma de Amiano Marcelino.^^ Tem-se aqui três narrativas: a asserção

geral, o exemplo que permite a indução e a referência. A nota dissipa

a ilusão de imediatez(a história que se desenrola diante de nossos


j. ■

olhos) e de autoridade(o historiador teria um saber infuso). Ela vem

para danificar o modo objetivo.

Outro emprego, ainda mais audacioso: em The Outline ofHis-


tory (1920), H. G. Wells convida seus colaboradores a completar,

precisar, ou ainda a desmentir suas palavras nas notas. Ele obtém,

assim, um livro animado, uma espécie de conversa de grupo, e Marc

Bloch o saúda como “lição de método”. O leitor compreende que


tem sob os olhos não o fruto de uma revelação, mas o resultado

27
Edward Gibbon,Histoire du déclin et de la chute de VEmpire Romain, Paris, Robert k
Laffont,“Bouquins”, 1983(1776), p. 504.

343 u
L
A história é uma literatura contemporânea

de um “pensamento coletivo que se busca”. Em Bayle, Gibbon e

Wells, a nota é assumida como forma literária; e nenhuma de suas

potencialidades - ironia, mise en abyme, implicação do leitor, eco

das vozes narrativas - é negligenciada.

Inversamente, seria possível livrar-se pura e simplesmente

da nota enquanto forma retórica e signo exterior de erudição ao

mesmo tempo que conserva sua inestimável função conceituai.


Tanto no século XVIII como no início do século XXI, certos histo
riadores completam suas narrativas com um comentário erudito:

Observações e provas” em Observações sobre a história da França

(1765) de Mably, “Provas e ilustrações em History ofthe Reign

ofthe Emperor Charles V(1769) de Robertson, “Considerações” e


“Justificativas
em Récits des temps mérovingiens(1840) de Augustin
Thierry. No final de Léonard et Machiavel, Patrick Boucheron acres¬

centou um adendo intitulado “Dívidas, textos, fontes”. Se quiser,


o leitor adentra
a narrativa antes de se comprometer com uma
historiografia mais desenvolvida.

Assim, seria possível restringir o emprego da nota integrando


ao texto as informações indispensáveis: Kis e Modiano teriam

podido honrar suas dívidas por meio de uma frase. Em vez de

separar narrativa e prova por meio da nota, seria possível reunir

ambas pedindo à narrativa que assuma toda a função veridicional.

Marc Bloch,“Une nouvelle histoire universelle: H. G. Wells historien”, in L'His-


toire, la Guerre, la Résistance, Paris. Gallimard, “Quarto”. 2006, p. 319-334.

344
A história, uma literatura sob coerção?

Neste livro, decidi recorrer à nota de rodapé somente para oferecer

a referência de uma citação ou da origem de uma ideia.

A técnica da colagem permitiría substituir o trecho ou a citação

pelo próprio documento,reproduzido com a indicação de sua origem.

No século XX,certos escritores tiram proveito dessa técnica com fins

realistas: resenha de uma sessão do processo Zola em Jean Barois

(1913) de Martin du Gard; cartazes, discursos, artigos de jornal e

outras “atualidades” na trilogia USA.(1938)de Dos Passos. No movi¬

mento cubista, dadá ou expressionista, artistas como Braque,Picasso,


Grosz, Heartfield e Max Ernst realizam colagens usando recortes de

jornal, fotos, objetos da vida quotidiana. Após Georges Rodenbach

em Bruges-la-morte(1892),os romancistas inserem ilustrações e fotos


em suas obras. O mais conhecido nesse sentido é W. G.Sebald.
final da obra, o
Em vez de relegar as informações técnicas ao

historiador pode desenvolver um site internet graças ao qual ele


e nas quais se baseou.
torna disponíveis as provas que ele exumou

O site www.affairedreyfus.com, concebido por Pierre Gervais, Pauline


,o
Peretz e Pierre Stutin, oferece ao público, em acesso gratuito

essencial das peças ligadas ao Caso: dossiê secreto montado pela


s; o corpus dos dife-
contraespionagem francesa para assolar Dreyfu
debates do Tribunal de Justiça,
rentes processos, as investigações e

a memória de Alfred Dreyfus,totalizando aproximadamente 10.000


em modo texto; todo tipo de obra
páginas e permitindo pesquisas

ligada ao caso; centenas de imagens, principalmente uma galeria

345
A história é uma literatura contemporânea

de perfis dos protagonistas. Com suas possibilidades infinitas, seus


vários níveis de leitura, suas abas e links ativos abrem uma cascada

de documentos, de textos, de fotos e de filmes. A internet é hoje o

instrumento de uma história neobayliana. Para além do espaço de

armazenamento propriamente dito, o bigdata permite conjugar


arborescências narrativas e uma pesquisa democrática.

As ciências sociais poderiam se inspirar nessas experiências.

não para aumentar a ilusão realista, mas para incorporar seu sis-
tema de comprovação no próprio texto. Obteríamos outras formas
de contar, de debater, de aludir ao
que está fora do texto. Seguem
alguns exemplos.

A narrativa-arquivo apresenta uma fonte. um corpus, um encon

tro, uma conversa, um tesouro”:shve narratives, memórias de Pierre


Rivière, dossiê de Jean Genet para a Assistência Pública francesa,

narrativas de vida recolhidas por um sociólogo. Assim como chá

mergulhado na chaleira, o arquivo precisa de tempo de infusão, Ele se


torna o tema do livro. É o
que faz Timothy Gilfoyle em A Pickpoc-
ket’s Tale(2006), história de um
pequeno delinquente de Nova York,
nascido em meados do século XIX de um chinês e de uma irlandesa.

O livro de Gilfoyle baseia-se, em grande medida, nas memórias do

batedor de carteiras, escritas no final de sua vida, que fazem desco

brir o mundo do crime e do castigo em Nova York underground dos


anos
pós-Guerra de Secessão. Seguimos o herói pelas ruas malfa-

madas, estabelecimentos correcionais, casas de ópio, casas de jogo.

346
A história, uma literatura sob coerção?

antes que se converta trabalhando para a Société de Prévention du

Crime [Associação de Combate ao Crime].

Os fragmentos de história designam uma coletânea de arquivos,

uma antologia de excertos, um scrapbook à base de jornais ou de

lembranças, o conjunto todo compondo uma narrativa. Esse agen-


ciamento de matéria bruta conta uma história ao mesmo tempo

que revela o quotidiano do pesquisador e a emoção que provoca c

contato entre os traços. Ele radicaliza a recomposição à qual pro

cede o “texto folheado". É o princípio de Stalingrad(1964), no qual

Alexander Kluge agencia jornais, radiogramas, diretrizes, trechos


difrata a céle-
do regulamento militar e organogramas,nos quais se

bre batalha. A biografia Vidal le tueur de femmes(2001), de Philippe

Artières e Dominique Kalifa, é uma montagem de textos (relatórios

policiais, judiciais, de alienistas, artigos de jornal, autobiografia de

Vidal),“dispositivo de escritas” que confere ao assassino uma iden

tidade de papel. Esse livro não é escrito, mas recortado no arquivo.

A história visual integra, em fac-símile, desenhos, gravuras,

peças de arquivo, fotos de lugares e de pessoas. Aqui, é a imagem

que narra. Essa forma permitiria estreitar os laços entre a historia


e a fotografia, que Kracauer compara na medida em que possuem

“uma relação homológica com a realidade : cada uma mediatiza o

real, fragmento ao mesmo tempo presente e incompleto, nostalgia


do evento. Em ambos os casos, trata-se de encontrar o equilíbrio
ao
perfeito entre uma tendência realista (reprodução, fidelidade

347
A história é uma literatura contemporânea

real, cópia) e uma tendência formadora (criatividade artística, com-


29
posição, imaginação).

O diálogo apresenta as correspondências, trocas e debates aos

quais se dedicaram os pesquisadores no âmbito da investigação.

Em Martin Varchange(1985), o historiador Philippe Boutry e o psica-


nalista Jacques Nassif confrontam
suas visões acerca da religião, da
crença, do delírio, da história da
monarquia, a respeito das aparições

que o pequeno lavrador teve em 1816. O sociólogo Howard Becker


e seu
colega Robert Faullcner publicam em Thinking Together(2013)

os e-mails cheios de ideias, de intuições, de projetos e de piadas que


trocaram enquanto preparavam um livro sobre os músicos de jazz.

Há algo de socrático nesses diálogos em que, pelo tatear e de con-

tra-argumentos, caminha-se juntos em direção do verdadeiro. Isso


pode engendrar confrontações, exercícios a quatro ou seis mãos,

textos-passeios por meio dos quais se constrói um objeto de saber.


A obra documental combina textos, fotos, desenhos, mapas,

gravações sonoras, vídeos, trechos de filmes. Muitos historiadores

de hoje fotografam os arquivos e, depois de gravarem em seus com-

putadores, os examinam em formato digital, com mais calma do

que teriam em um arquivo. Da mesma forma, um sociólogo grava


uma testemunha, um etnólogo filma uma cerimônia. Na internet,

não é mais necessário usar nota para citar: um link permite abrir

Siegfried Kracauer, Ihéorie du film. La rédemption de Ia réalité matérielle, Paris


Flammarion, 2010(1960), p. 63-77.

348
A história, uma literatura sob coerção?

um PDF, ler um artigo on-Une, assistir a um vídeo, escutar uma

música ou um programa, assistir a uma aula. Pode-se usar o zoom

sobre um arquivo, clicar sobre uma foto. As humanidades digitais

dão origem a hipertextos que representam, ao mesmo tempo que

explicam, o real. Essa obra total será, certamente, a forma que ado
tarão as ciências sociais no século XXI, modernizando o culto que

os humanistas consagravam aos originais,‘ad fontes .

A moâesrmzaçâo das ciências sociais

Acerca da questão de sua literariedade, a história-ciência social

acumulou um pouco de atraso. Ela deve saber que os documentos

são “traços”; que toda pesquisa é "construída”, que é valorizador ser


uma
“pluridisciplinar”. Mas a escrita costuma ser percebida como

etapa não essencial da operação historiográfica, fase puramente


sua
técnica ou fantasia epistemologicamente árdua. O romance, por

vez, é "moderno” desde Tristram Shandy (seria possível remontar

até o Satiricon, no qual citações e paródias advertem o leitor que


ele não deve cair na armadilha da ficção). Ele se abriu amplamente

aos anônimos,às pessoas como você-e-eu, aos não acontecimentos,


aos acidentes da vida), aos sofrimentos ignorados. Acima de tudo,

ele aprendeu a mudar de tom e de ponto de vista, a manipular a

349
A história é uma literatura contemporânea

ironia, a quebrar o efeito de real, a experimentar, a desconstruir

a linearidade, a não mais “seguir o fluxo”, de Roma a Lorette.^o

No início do século XIX, a história se revitalizou em contato

com Scott e Chateaubriand. Um século mais tarde, ela passou ao

largo da revolução de Proust, Woolf, Joyce, Musil, Faulkner, Dos

Passos, Céline. Entretanto, é possível avaliar a emergência de um


discurso operário, por volta de 1830, em “um tipo de narrativa à
Virginia Woolf, na qual há vozes
que se entrecruzam aos poucos”.^^

As investigações antropológicas de Oscar Lewis se inspiram, ao


mesmo tempo, no teatro (o elenco é definido no início do capítulo,

com as relações de parentesco e a idade de cada um)e à técnica de


Kurosawa em Rashomon (descreve
r um mesmo evento por meio

do olhar de diferentes testemunhas,a fim de produzir uma auto-


biografia multifacetada”^^).

Por que a história não foi afetada pelo cinema nem pelo romance
moderno como na época dos Waverly novels? Isso talvez esteja rela-

cionado a um complexo com relação à literatura. A história-ciên-

cia a desdenha e a inveja ao mesmo tempo, No primeiro terço do

30
Laurence Sterne, La vie et les opinions de Tristram Shandy. gentleman. Paris
Gallimard Folio classique", 2012, p. 101.[A ^ida e as opiniões do cavaleiro
Tristram Shandy. tradução da José Paulo Paes, São Paulo, Cia das Letras, 1988.]
31
Jacques Rancière,"Histoire des mots, mots de Fhistoire"(1994),in Et tant pis
pour lesgens fatigués. Entretiens, Paris, Amsterdam, 2009, p.76.
32
OscatLevAs.LesenfantsdeSánchez.AutobiographiedanefamiHemexicaine.Paris.
Gallimard, 1963, p. 14.

350
A história, uma literatura sob coerção?

século XX,as ciências sociais entraram na modernidade graças ao seu

método,e não à escrita. A título rememorativo, o primeiro número

dos Anais, em 1929, é praticamente contemporâneo do Processo

(1925), de O som e a fúria (1929), de O homem sem qualidades(1930)

e de Viagem ao fim da noite (1932). Por causa desse encontro que

nunca aconteceu, a história não rompeu completamente com suas

certezas do século XIX, não estilo, modo objetivo, etc.

Assim, é útil pensar a modernização das ciências sociais, que

consistiría em ajustar à escrita um esforço de compreensão, de

explicação e de veridição, que são suas razões de ser. Tal ambição

não pode ser prescritiva, mas apenas retrospectiva. Sabe-se o que

se quer evitar - não texto, estilo assepsiado,jargão erudito, nós

de majestade, solenidade da introdução e da conclusão,litania da

enunciação do plano,lastro da nota erudita, dispositio mecânica que

fixa as partes independentemente do tema, pretensão de exaustivi-

dade nas biografias, pseudoneutralidade do pesquisador, realismo

“transparente” -, mas não se prega nada ex cathedra, felizmente,

pois cada historiador-escritor forja seu próprio estilo. Vamos nos

contentar com algumas fórmulas acerca das técnicas literárias, a

construção narrativa e o prazer da leitura.

Uma coisa é certa: é na narração, e não contra ela, que a pesquisa

se desenvolve. As ciências sociais podem tomar emprestado tudo

o que quiserem do romance, da tragédia, da poesia, do muthos, e


assim contradizer Aristóteles no seu capítulo 9 da Poética. Nenhum

351
A história é uma literatura contemporânea

procedimento poderia soar estrangeiro; estabelecimento da intriga

e agenciamento das ações, mas também espera, efeito de suspense

(esse diffhanger que deixa o herói suspenso na beira da falésia), efeito

surpresa (paradoxon), peripécia, clímax, contrastes, diálogos, jogos

de pontos de vista, listas, ironia, cumplicidade com o leitor, desfa-

miliarização, monólogo interior, voz em rizoma,intertextualidade,

trabalho de focalizaçâo, enquadramento,cenografia. Toda essa "arte

da ficção , segundo a fórmula de David Lodge, pode ser empregada

pelo escritor em geral e pelo historiador em particular.


O tempo, que constitui nossa matéria, merece um cuidado

especial. Início in medias res, fim abrupto, descontinuidade,


fiashhack, anúncio, vai e
vem, variação de ritmo, aceleração, desa

celeração, nervosidade de ritmo: mais uma vez, tudo é possível de

acordo com a necessidade de demonstração, o importante sendo de

flagrar na mentira o abade Batteux, para quem a narrativa histórica


segue a "ordem do tempo”, para que "tudo avance diretamente e

sem desvios".^^ É possível que se chegue a uma melhor retórica

quebrando a retórica, ou seja, variando infinitamente os modos de

narrativa, efeito de experiência, arte da crônica, ruptura digressiva,


galeria de retratos, hipotipose documentária.

Da mesma forma como Philippe Artières, em Rêves ã’histoire

(2006), assombra os "entrelugares”, corredores, escadarias, escalas,

Abbé Batteux, Príncipes de la Iktérature, v. 2, op. cit, p 329

352
A história, uma literatura sob coerçâo?

bares nos portos, Patrick Boucheron evoca, em Entretemps(2012),

as “dobras” nas quais se abolem as grandes coerências, as raízes

e outras continuidades nas quais gostamos de acreditar - como

forma de “amassar a linha do tempo”.^** Atenas existe em momentos

de fraqueza, mas também no tempo de Péricles. Em outras pala

vras, ali também há história e, principalmente, quando ali não há

história. Mais do que estabelecer cronologias, o historiador escreve

o tempo. Melhor ainda: ele difunde temporalidades em um texto.

A construção narrativa (a “composição”, como se dizia no

século XIX) é a estrutura sobre a qual tudo se organiza, a ordem

por trás da desordem; é o raciocínio feito narrativa. Os nove livros

de Histórias são atravessados por um único tema: a oposição fatal

entre os gregos e os bárbaros. A escrita de Heródoto talvez corra

como um rio, com a tranquilidade do fluens ciceroniano, mas ao

curso da narrativa - água abaixo, narrativa abaixo - acrescentam-se

torrentes, fontes, temporais. Assim como os contadores iônicos,

Heródoto integra cenas, discursos, descrições, conversas, anedo-


tas. Entretanto, nenhum desvio é gratuito: o Egito, conquistado

por Cambises, pertence ao Império Persa, motivo pelo qual é inú

til interessar-se pelo Nilo, ou pelas pirâmides ou pela mumifica-

ção. Um evento inesperado suspende admiravelmente o auge das

Patrick Boucheron,“Apologie pour une histoire inquiète. Entretien , nonfiction.


fr, 19 juin. 2012.

353
A história é uma literatura contemporânea

batalhas: o dente que Hípias perde na areia ao desembarcar em

Ática, o zurro do burro que defende o exército de Dario na Cítia.

Essas digressões não servem apenas para divertir o leitor, mas

enriquecem uma problemática unificada. E esse espírito da narração

que incomodará Tucídides e, muito tempo depois dele, os metódi

cos do século XIX(a sociedade grega ainda não tinha o “gosto pela

verdade nua e crua”^^). É claro que a construção narrativa depende


do raciocínio que ela mobiliza. A história universal à Políbio alça

voo bem alto no céu. Saul Freidlánder orquestra um canto, Pierre

RosanvaUon monta uma estrutura de madeira, Romain Bertrand

equilibra uma balança. O comparatismo obriga a ver duplo ou tri

plo; e toda pesquisa que põe em contato o passado de um objeto

com o presente de uma questão obriga a um pouco de ziguezague.

Há Uvros-catedrais, hvros-quebra-cabeças,livros-estelas, livros-geo-


métricos, livros-trilhas que sobem como flanco de colina. Cada um

tem uma profunda unidade,como os quadros de Cézanne nos quais


cada ponto tem “consciência de todos os demais”.^®

Nem sempre são os personagens que agem ~ as açoes que

efetuam algo. Assim como o escuro em Rembrandt, como uma

cor sombreada num retrato de Manet, a ausência é capaz de con

tar. Há uma inteligência da dúvida, uma vibração do silêncio, uma

35
Amédée Hauvette, Hérodote..., op. cit., p. 505.
36
Rainer Maria Rilke, citado em Françoise Cachin etal, Cézanne. Paris, Galeries
Nationales du Grand PaJais [...], Paris, RMN,1995, p 172

354
A história, uma literatura sob coerçâo?

integridade do fragmento, uma plenitude do vazio. E a narrativa

cede lugar a outra coisa: uma atmosfera.

A criação em ciências sociais poderia adotar a forma de uma

experimentação acerca da forma. Trata-se de preparar novas ficções

de método. Por exemplo, contar uma história de maneira regres

siva, não partindo do ponto mais distante do passado, mas distan

ciando-se pouco a pouco do momento presente; acompanhar um

personagem com a câmera nos ombros, respeitando os possíveis

que se apresentam a ele, seus futuros ainda por vir; inaugurar


uma narrativa com vários inícios, mas sem dar-lhe um final (e

vice-versa); confrontar momentos de vida; fazer história a partir

de uma incoerência; associar transcrições de entrevistas,imagens-

-citações, vídeos-documentos. O formato dos textos seria reduzido,

ao modo de um artigo de jornal ou de uma novela, de forma a


torná-los mais contundentes. Para uma narrativa mais longa, o

recorte seria como para a série de televisão. O ritmo seria o de um

filme de suspense. Em outros momentos,o historiador emprega

ria o futuro do pretérito, que integra ao mesmo tempo o caráter

passado dos eventos e nosso olhar retrospectivo. Por sinal, esse

é o tempo verbal preferido de Modiano:"O futuro do pretérito é

o tempo da re-visita do passado e da reparação impossível. E um


”37
tempo que contém diferentes camadas, diferentes espessuras.

37
Entrevista com Patrick Modiano, Madame Figaro, 9-10 nov. 2012.

355
A história é uma literatura contemporânea

Ou o futuro do presente, pronunciado a partir do passado. Ou

presente, ao mesmo tempo para o passado e para hoje.

A condenação do prazer - gosto, interesse, emoção estética

— em nome da verdade remota, mais uma vez, a Tucídides que

despreza as “charlatanices teatrais". Desde a época das Luzes, a

dedução se liga às ciências e retira o prazer às letras. No século

XIX, na Alemanha, na França, nos Estados Unidos, a partir do

momento em que a história se define como uma disciplina uni


versitária, organizada em torno de cursos e de seminários fecha
dos, os historiadores começam a escrever para seus pares, no seio

de um círculo ultraespecializado. Será preciso estar imbuído de

si mesmo para querer tocar outras pessoas que não os próprios

colegas? Leitor torna-se uma palavra suspeita, ou mesmo tabu.

A comunidade acadêmica autoriza o pesquisador a produzir exclu


sivamente artigos de periódico ou, na falta destes, livros que serão

lidos por obrigação profissional.

E possível reabilitar, nas ciências sociais, o prazer do leitor.


Não somente seu ganho intelectual, mas também seu interesse,sua

curiosidade, sua paixão, a leitura em ^'primeiro grau” dos nossos

doze anos, que não emperra, mas, pelo contrário, encoraja aborda¬
gens mais distanciadas. Rabelais não dizia a mesma coisa? É possí

vel imaginar uma história que, simplesmente, daria vontade de ser

lida, porque ela seria nova e cativante, mas também porque con-

jugaria sobriedade e obstinação, porque seu esforço de decifraçao

356
A história, uma literatura sob coerção?

seria perturbador em si mesmo,porque sua busca tocaria em algo

universal. Talvez seja o que conseguem fazer os Uvros que são lidos
como romances , e isso, sabemos, não implica recorrer ao pathos

da história-tragédia, nem ao efeito de real que-dá-estofo.

Ciências sociais que produzem prazer? A ideia parece provo-

cadora, mas, na República das Letras e até meados do século XIX,

a fórmula seria um tanto banal. A divisão que Bayle opera em seu

Dicionário - uma narrativa histórica e um grande comentário - visa

precisamente “capturar melhor o gosto do público”. O estudioso

prevê ainda lugares um pouco alegres para atenuar a aridez do

dicionário e “descontrair os leitores”.^® Rigor extremo e cuidado com

o leitor: assim como a Enciclopédia meio século depois, a revolução

intelectual e narrativa de Bayle tem como condição o êxito comer

cial, portanto, a aprovação do leitor. No século XIX, em Racine e

Shakespeare, Stendhal relembra que a história da França antes de


Barante era “entediante demais de se ler”. Depois de ter, ainda

criança, devorado Os mártires, Augustin Thierry recusa-se a escre

ver “um livro de ciência pura, instrutivo para aqueles que buscam,

repulsivo para a massa de leitores”.®® Na França, a Vida de Jesus de


Renan é um dos maiores sucessos de livraria do século XIX. Hoje,
nao
a invenção de novos objetos históricos oferece um prazer que

38
Pierre Bayle, prefácio da primeira edição (1696), op. cit., p. 2; e Dissertation
(1692), op. cít.,p.2979.
39
Augustin Thierry, prefácio de Récits des temps mérovingietis, op. cit., p. 5.

357
A história é uma literatura contemporânea

oferecem as aulas escolares aprendidas de cor: as tatuagens,faixas,

neons e pichações estudados por Philippe Artières; as estações

de trem e as casas assombradas estudadas por Stéphanie Sauget.

Dar prazer, mas também sentir prazer. Se é feliz fazendo pes

quisa porque investiga-se e descobre-se, mas também porque se

exercita intensamente a liberdade. Porque escolhe-se o lugar onde


nossa mente vai viver durante vários anos. Essas são as razões pelas

quais não se deve hesitar em abraçar um tema que nos toca pessoal

mente, empreender uma pesquisa motivada por um acontecimento

pessoal, uma busca identitária; admiração, amor, desejo,lembrança

de infância, sentimento de dívida, mas também abandono,suicídio,

perda, exílio, ultraje ao racismo, ao antissemitismo, à misoginia, à

homofobia,à dominação social. Pesquisador, não temas a tua ferida.

Escreve o livro da tua vida, aquele que te ajudará a compreender

quem és. O resto vai de si: rigor, honestidade, excitação, ritmo.

Nos anos 1860, um mestre se autoprescrevia: “Ter a paixão.

Guardar nos meus livros um sopro forte que,ao se elevar da primeira


página, carrega o leitor até a última. Conservar meus nervosismos.”40

Essas três palavras poderíam ser um lema para o pesquisador. Uma


nova limitação? Claro! A exemplo da vida em sociedade, as ciências

sociais são uma mistura de direitos e deveres; e os deveres ali estão


exclusivamente para aumentar a liberdade de todos.

Émile Zola,“Notes générales sur Ia nature de 1’ceuvre ,inLesRougon-Macquart...,


V. 5, op. cit., p. 1742.

358
11.

o text®-pesquaisa

Meu desejo não é de


ensinar aqui o método
que cada um deve seguir
para guiar a razão,
mas apenas dar a ver a forma como
tentei construir o meu.
Descartes

Eu gostaria, neste capítulo, de atualizar o subtexto do meu livro

Histoire des grands-parents [História dos avós que não tive]d Esse livro

é uma experiência literária e epistemológica que consiste em contar o


método. Não se trata de renovar a escrita das ciências sociais combi

nando a revolução metódica do século XIX e a revolução romanesca


do século XX. Trata-se, antes, de inscrever as ciências sociais em

uma forma que se relaciona ao mesmo tempo com a investigação, o

testemunho,a autobiografia, a narrativa - história enquanto desen-


cadeadora de um raciocínio, literatura na medida em que faz viver

um texto. Essa hibridação permite não somente representar as ações

^ Comecei a fazê-lo em “Écrire l’histoire de ses proclies”,Le GenreHumain,p. 35-59,


sept. 2012; e também em Nouvelles perspectives sur Ia Shoah, Paris, PUF, 2013
(com Annette Wieviorka); e Venfant-Shoah, Paris. PUF,2014(em coautoria).
A história é uma literatura contemporânea

dos homens, mas de compreendê-las por meio de um raciocínio que,

desenvolvido em um texto, produz uma emoção.

A situação do pesquisador

Para atualizar a potencialidade literária das ciências sociais, é

necessário tomar o contrapé do modo objetivo, que nem a invenção

do romance moderno nem o advento da história-problema conse

guiram fazer desaparecer. Esse modo nega a subjetividade do nar

rador dissimulando-a em uma ausência-onipresença. Ao postular

que a objetividade implica o sacrifício do eu, ele tenta se livrar de

tudo aquilo que não é a realidade “exterior”. Como isso é impos

sível, ele substitui o ponto de vista do pesquisador pelo ponto de


vista no narrador-Deus.

Esses procedimentos não teriam maiores consequências se nao

viessem acompanhados por uma renúncia. Como explica Popper,


os cientistas que eludem a questão do ponto de vista adotam um

ponto de vista sem ter consciência disso, e essa ignorância anula

seus pretensos esforços de objetividade, já que é impossível ter


um olhar crítico sobre o próprio trabalho se não se tem clareza

do próprio ponto de vista.^ Daí essa hipocrisia do cientificismo:

3- censura dos juízos de valor nunca impediu de instilar valores.

^ Karl Popper, Misère de Vhistoricisme, op. cit., p. 190-191.

360
o texto-pesquisa

A essa fraqueza narrativa e epistemológica vem se acrescentar uma

falta de natureza política. A história atenuada por meio do discurso

de autoridade: sua superfície oculta ao leitor a complexidade das

operações que o historiador efetuou, e a nota de rodapé é remédio


como um
pouco eficaz a essa opacidade. A pesquisa é apresentada

produto final, um resultado acabado, e não, exatamente, como

uma pesquisa. Em uma só palavra: o modo objetivo não é mais

compatível com a exigência das ciências sociais.


Se os cientistas temem tanto assim o “eu”, é porque só enxergam

nele um tipo de subjetividade, aquela do eu detestável de Pascal,

intimista,impudico,complacente,autocentrado,o eu-parcialidade da

história-panegírica ou da história-requisitório. De fato, encontramos

esse eu em alguns lugares, por exemplo, quando Gibbon aborda a


conversão de Constantino ao cristianismo:“Um século servil e efemi

nado adotou facilmente a santa indolência da vida monástica. ^ Qual

é o verdadeiro defeito do Frederico II de Kantorowicz para além do

aparato crítico? Ser grosseiramente hagiográfico, protonazi? No final

das contas, o historiador também é um indivíduo, e Kantorowicz

tinha todo o direito de trabalhar, no final dos anos 1920, sobre a

figura de um imperador porque tinha esperança na chegada de outro

“grande homem”. Do ponto de vista metodológico, é inaceitável


com
que ele não tenha sido capaz de qualquer distanciamento nem

3 Edward Gibbon,Histoire du dédin et de h chute de lEmpire romain, op. cit.. p. 1157.

361
A história é uma literatura contemporânea

relação a suas fontes, nem com relação a suas convicções. Por não

as ter discutido,faz coincidir sub-repticiamente sua posição pessoal


e o saber histórico. Áli reside a desonestidade: o ego do historiador

comanda secretamente a narrativa.

Entretanto, muitos historiadores reconheceram que seu eu agia

durante a pesquisa. Augustin Thierry defende o Terceiro Estado por

piedade fòlial . Em seu prefácio de 1869 à História da França, Michelet

reivindica a imbricação entre a história e o historiador: “Nenhum

retrato tão exato, tão conforme ao modelo, sem que o artista não

tenha colocado um pouco de si.” É como admitir que o historiador


está presente em sua história assim
como o narrador está presente

em seu texto, homodiegético. Nos anos 1930, Beard critica o mito

neorrankeano da objetividade, “esse nobre sonho", relembrando

que todos os historiadores são influenciados por sua educação,suas

crenças, suas experiências, seus interesses de classe, de sexo ou de

raça. Por exemplo, Ranke encarna a reação conservadora prussiana.^


Essa confissão poderia não passar de vaidade um prurido

romântico ou uma provocação de ativista. Na verdade, tem um


alcance considerável. Ele revela
uma segunda subjetividade, des
conhecida pelos cientistas: a do pesquisador situado. Essa subje

tividade não consiste em entregar-se a confidências ou dar sua

opinião, mas em saber de onde se fala. Em sociologia, por exemplo,

“ Charles Beard, “That Noble Dream", American Historical Review, V. 41, n. 1,


p. 74-87, oct. 1935.

362
o texto-pesquisa

ela indica o ponto de vista do sociólogo enquanto algo que emana

de um sociólogo; enquanto um instrumento de documentação e

de análise; enquanto incitador de reflexividade.^ Todo pesquisa

dor está em situação, mas não basta relembrar. É preciso, ainda,

assumir seu eu, seu enraizamento espaçotemporal, sua categoria

social, seus interesses, sua filosofia, sua posição no campo; ou seja,

calcular a distância que separa seu ponto de ancoragem do objeto

de estudo escolhido. Esse esforço de localização contribui para


ser refém
não se deixar enganar pelos próprios preconceitos, não

dos próprios interesses, não ser marionete de si mesmo. Mais do

que a empatia e o Verstehen, permite liberar-nos de nós mesmos.


com a
A objetividade em história, portanto, nada tem a ver

extinção do eu,a neutralidade(ou melhor,a neutralização), o esca


moteamento-onisciência do narrador. Pelo contrário, ela repousa

sobre a descrição de sua posição, prévia à crítica individual e cole

tiva de suas hipóteses. O problema não é ser um herdeiro, mas


deixar de dizê-lo. Três “eus” contribuem para o processo epistemo

lógico: o eu-testemunho, o eu de pesquisa e o contra-eu.

O eu-testemunho. O pesquisador está em contato direto com seu

objeto de estudo, ainda que seja porque as operações de investiga

ção - a escavação, o encontro, a experiência - se fazem no presente.

Somos todos contemporâneos da história. Chega a ser possível que

= Richard Brown, Clefs pour une poétique de la sociologie, Aries. Actes Sud, 1989
(1977), p. 85.

363
A história é uma literatura contemporânea

O especialista tenha estado misturado aos eventos que relata. É o


caso dos memorialistas, de Retz a Lanzmann. Também é o caso de

vários historiadores antigos: Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Salus-

tio. Presente em sua história tanto como historiador quanto como

personagem, Políbio explica com simplicidade que deve “colocar

alguma verdade nos termos empregados para falar de mim”, pois

a repetição constante do seu nome acabaria cansando, ou mesmo

irritando. A situação dos etnólogos, sociólogos e repórteres e


é com-
parável: a observação participante os torna menos tímidos do que

os historiadores. O antropólogo-viajante recomenda exibir seu coe

ficiente pessoal abertamente”: ele aumenta, assim, o valor de seu

testemunho.® "Testemunha entre os homens”,tal podería ser o lema

do pesquisador. É o lema de Kessel, um dos grandes jornalistas do


século XX, que o inscreve no frontão de suas obras.

O eu de pesquisa. Toda a corrente hermenêutica, de Dilthey

a Ricceur, realça a implicação pessoal do pesquisador, devido ao

fato de que ele pertence ao mundo que descreve. Interpretação

compreensão, experiência da alteridade, simpatia pelos outros

homens, empatia ou sentimento de indignação são o motor do

conhecimento. O fato de que os eventos estejam muito distantes,


como que fixados em sua irreversibilidade, não altera nada: o his

toriador não pode escapar a sua própria historicidade. Como disse

® Michel Leiris, VAfrique fantôme, in Miroir de VAfrique, Paris, Gallimard,"Quarto”


1995, p. 395.

364
o texto-pesquisa

acerca daquilo
Carl Becker nos anos 1930, fazemos história não

que é importante em si, mas acerca daquilo que nos toca, que nos
história é
impressiona, que resiste a nossa inteligência. Já que a

inseparável do historiador”,"^ é vão opor subjetividade e objetivi

dade: uma é o aprofundamento crítico da outra.


nem desejável:
O contra-eu. A “neutralidade” não é possível
valores fundam a huma-
independentemente de quais sejam, os
eferível atualizá-los,
nidade do pesquisador. Assim, é portanto pr

ou seja, lutar contra si mesmo, contra os próprios segredos de

fabricação, contra as próprias preferências, contra a evidência

narcísica pela qual acredita-se ser normal ser eu - etapa pouco

confortável, principalmente no caso de um antigo comunista q


escreve
trabalha sobre o comunismo, um neto de deportados que

sobre a Shoah, etc. Essa introspecção torna mais objetivo e menos

brutal o olhar do pesquisador, aquele mesmo que pretende dizer


a verdade sobre os outros. Ao expor seu método, desmistifica sua

pessoa e dessacraliza seu discurso.


intelectual deve se emanci-
A Karl Mannheim,que pensa que

par das tradições para aceder a um olhar dissipado sobre o mundo,

Popper responde que a objetividade não repousa sobre a imparcia


lidade dos estudiosos (feito esse antropólogo vindo de Sirius ),

’ Henri-Irénée Marrou, De Ia connaissance historique, op. cit., p. 51.

365
A história é uma literatura contemporânea

mas sobre o caráter antagonista e público da ciência.® A bem da

verdade, essa confrontação e essa publicidade começam muito

antes, no momento em que o pesquisador aceita considerar sua


implicação no processo de conhecimento. Ao desvendar a posição

biográfica, familiar, acadêmica, social, política de onde fala (antes

de indicar o encaminhamento de sua pesquisa), ele organiza as

condições de sua própria crítica: isso porque está dotado de um

ponto de vista que um discurso é criticável e, portanto, científico.

A contextualização de um pesquisador é condição prévia ao teste

de suas hipóteses. Essa crítica do absolutismo em ciência goza de

um benefício em literatura: o enraizamento em uma história, um

meio, um campo contradito do mito da “criança de rua” que se

criou sozinha, que não tem que prestar contas a ninguém, que só
herdou de Shakespeare ou de Rimbaud.

Portanto, é possível dizer que a objetividade nas ciências sociais

reside, coletivamente, no debate crítico e, no plano individual, na


análise de sua situação. Assim como a recusa do eu caracteriza o

cientificismo, o autoexame do pesquisador, a objetivação daquele

que objetiviza(para falar como Bourdieu)pertencem ao método das


ciências sociais. Adotar um ponto de vista acerca de seu próprio

ponto de vista” permite romper com os não ditos do modo objetivo.®

Karl Popper,"La logique des Sciences sociales” op. cit.

^ Pierre Bourdieu."Lobjectivation participante". Acfes de Ia Recherche en Sciences


Sociales, n. 105, p. 43-58, dez. 2003.

366
o texto-pesquisa

É uma pena que Bourdieu não tenha aplicado esse “programa antro

pológico cognitivo reflexivo” nem em seu artigo sobre os celibatários

do Béarn, nem em seus estudos de etnologia cabila e apenas muito

levemente em Homo academicus, no qual a experiência pessoal do

sociólogo - seu “conhecimento autóctone”-foi, no entanto, decisivo.

Vê-se que a análise do eu no âmbito de um exercício refle

xivo não carrega a marca do relativismo; pelo contrário, ela torna


eus
o conhecimento mais objetivo. A ativação de todos esses

participa do método das ciências sociais, e é sob a forma de uma

socioanálise autobiográfica que pode, aqui, unir-se à literatura.

O “eu” do pesquisador guia e enriquece seu trabalho, mas não

necessariamente aparece na narrativa sob a forma de um eu .

Eu-mesmo e eu: a distinção capital. Porque uma coisa é reconhecer

teoricamente o papel da subjetividade, em uma obra de epistemo-

logia, um livro de entrevistas ou uma autobiografia tardia, outra

coisa é assumi-lo em trabalhos de pesquisa. O eu de pesquisa é

uma virtude compreensiva herdada da tradição hermenêutica; mas

o “eu”, ao injetar essa epistemologia no coração da narração, incita


a escrever um texto. O "eu” é esse pronome tabu que faz passar do

modo subjetivo ao modo reflexivo, do verismo hialino à narrativa

367
A história é uma literatura contemporânea

de investigação, da impessoalidade acadêmica à caderneta de pes

quisa, à autobiografia crítica.

Em Heródoto,a primeira pessoa do singular é parte integrante do


raciocínio e,assim, da narração. Para além da referência ao indivíduo

que é o viajante-investigador, o eu tem várias funções; ele atesta a

presença física da testemunha (aquele que vai a Tebas, que descreve

o monumento,que só viu o fênix em pintura); ele constitui um elo do

raciocínio (hipótese,argumento de verossimilhança, comparação entre

diferentes versões, confissão de impotência); ele expressa o juízo do


autor(orgulho insano de Xerxes,sabedoria de Ciro). É possível encon-

trar suas funções,em diversos graus, nos memorialistas da idade clás

sica, assim como em certos trabalhos do século XX. O livro de C.L.R.

James,BeyondaBoundary(1963), dedicado ao críquete nas sociedades

caribenhas, assume uma parte de autobiografia, de tanto que esse


esporte marcou sua infância, sua vida profissional, sua consciência

de raça, sua poHtização, por meio de sua dupla experiência de jogador

e de jornalista esportivo. Duby também fala enquanto testemunha.


Em O domingo de Bouvines(1973),ele conta ter “conhecido camponeses

que ainda tremiam um pouco quando o mau tempo os forçava a ceifar

aos domingos . Esse eu expressa uma modéstia epistemológica, que

visa menos decretar o verdadeiro e mais sugerir o provável:“É minha


maneira de advertir meu leitor.”^'^

Georges Duby, Vhistoire continue, op. cit., p. 81.

368
o texto-pesquisa

Ainda que seu uso seja antigo, o “eu” poderia ser considerado

como uma fronteira das ciências sociais, uma perspectiva total

mente aberta. Suas três funções se entrelaçam no fio da narração.

Em primeiro lugar, trata-se de indicar uma situação. Esse “eu”

de posição serve para reconhecer uma filiação, um enraizamento,

um percurso, um pertendmento, uma motivação, um gosto, uma

preferência, um sistema de valores. Caso se aceite a ideia de que

a história é inseparável do historiador ou que tropos estruturam

sua visão, deve-se proceder de forma a que texto esclareça a

relação particular e íntima com o objeto de estudo escolhido, que

nós escolhemos. Essa autoanálise, operada in situ, permite que o

pesquisador-escritor efetue sobre si mesmo uma operação que ele

pratica normalmente com os outros: a contextualizaçâo.


raciocínio. Esse “eu”
Em segundo lugar, permite desenvolver um

de investigação permite descrever a escavação (como fazem


Schliemann, Leroi-Gourhan, Brunet), o encontro(como Malinowski

e os sociólogos de Chicago), assim como a experiência (como faz

uma equipe médica quando descreve seu protocolo). Ele serve para
os
expor a razão histórica; argumentar o por e o contra, pesar

fatores em presença, fazer proliferar e destruir hipóteses, explicar,

justiíicar-se, contestar a si mesmo, apresentar contraexemplos

para si mesmo, questionar seu próprio método e, por fim, tomar


uma decisão íntima e consciente depois de ter apresentado suas

razões. Essa explicação entrega modo de usar da pesquisa, seu

369
A história é uma literatura contemporânea

código fonte e, assim, prepara a discussão crítica. E a razão pela

qual o emprego do “I” (ou do “we”) é tão frequente nas ciências

mais rigorosas, física, biologia, medicina, economia, matemática,


essas ciências duras” que são vistas como tão objetivas:“Eu meço,

eu utilizo, eu acredito, eu busco, eu encontro, eu não encontro, eu


”11
mostro, eu observo, eu comparo.

Enfim, testemunhar um percurso. É o “eu” de emoção. O pes¬

quisador não é um robô, mas um indivíduo que investiu uma parte


da sua vida em uma
pesquisa. Seria surpreendente que, ao longo

da pesquisa, ele não sinta nada, não se surpreenda com nada, não
aprenda nada. Por que não falar dessas infradescobertas sobre

as quais repousa o resultado final”? Por que não admitir que foi
tocado por uma paisagem, perturbado por um encontro, cons

trangido por uma situação, desestabilizado por uma descoberta?

Não há qualquer egocentrismo aqui, mas uma simples constatação:


o processo de conhecimento costuma ter como efeito abalar nossas

certezas. Essa implicação do pesquisador (aquilo que se podería

chamar de domínio do saber) mostra que ele é tanto o ordenador

da pesquisa quanto seu próprio objeto, seu estofo.

Dois exemplos entre milhares: Michelangelo von Dassow et al, “Surprisingly


Simple Mechanical Behavior of a Complex Embryonic Tissue”, PLOS ONE.
V. 5, n. 12, dez. 2010; e Alwyn Young, “Inequality, the Urban-Rural Gap and
Migration”, The Quarterly Journal ofEconomics, v. 128, n. 4,2013.

370
o texto-pesquisa

O “eu” de posição, o “eu” de investigação e o eu’ de emoção


constituem as três formas do “eu” de método. Esse triplo eu”,

próprio de um narrador ao mesmo tempo distanciado e homodiegé-

tico, é uma das passarelas que ligam as ciências sociais à literatura.

Ele pertence ao ensaio, à reportagem,à investigação, à narrativa da

testemunha, ao diário de viagem, mas não ao romance realista, que

ele dissimula para aumentar o efeito de real, nem à autobiografia

clássica, que é autocentrada. Um pesquisador-escritor diz eu para

se desfazer de si mesmo, para falar dos outros de maneira mais

objetiva, enquanto que um romancista fala dos outros sem obje

tividade e que um autobiógrafo fala de si mesmo subjetivamente.

O “eu” de método,cruzamento de forças, de grupos, de impo

sições, de tendências,faz com que a subjetividade se curve: ele nos

recorda que somos “nós mesmos” tanto pela nossa unicidade e

nossa liberdade quanto pelo encontro em nós mesmos do processo

que nos ultrapassa. Não o “eu, eu, eu”, mas o “ele-eu enquanto eu

sou construído, modelado por outras coisas além de mim,inter

seção de feixes que implicam instituições, classes sociais, valo


res. princípios educativos. A distância que adquiro acerca de mim

mesmo me confere um lugar no quadro, um ponto de apoio do qual

me projeto. Esse “eu” comunica, assim,facilmente com o nós da

equipe, do coletivo reunido em torno de um projeto,longe do nós

de majestade empático e vazio.

371
A história é uma literatura contemporânea

Consequência: o “eu” de método pode ser implementado inde

pendentemente do tema de estudo. Não há qualquer necessidade de

se trabalhar sobre a própria cidade, ou partido ou família para bene

ficiar de suas virtudes epistemológicas. Pois ele é ao mesmo tempo

um raciocínio e uma forma, um raciocínio em uma forma. Melhor

do que a nota de rodapé, ele permite fissurar o modo objetivo, que

escamoteia a integralidade do processo de pesquisa para apresentar

um resultado simplesmente grosseiro e superficial. Ele lembra, por

meio de narrativas encaixadas, que um indivíduo em situação se

lançou numa busca, pesquisou, viu, sentiu. Não é mais a História que

fala, é o pesquisador. O enunciado tem finalmente um enunciador.

Em Composition française, a infância bretã de Mona Ozouf ilu

mina as identidades regionais, as crenças religiosas, as diferenças

sociais, as geografias do quotidiano e as relações de gênero, e como


isso tudo explica a educação da menina. É essa tensão entre indi

víduo, grupo social e nação que existe em Michel Winock, em sua

biografia familiar Jeanne et les siens como no pioneiro La République


se meurt, no qual o estudante de 20 anos conta sua descoberta da

política francesa e internacional no final dos anos 1950, de Poujade

a de Gaulle, do caso Khrushchov à tortura na Argélia. Autobiogra


fias, narrativas de vida, crônicas, histórias, esses livros chegam a

emocionar,a cativar e a fazer compreender,tudo ao mesmo tempo.

Da mesma forma. Tristes trópicos (1955) concilia a cientifici-

dade e a literariedade do "eu”. Aquilo que é literário, na narrativa,

372
o texto-pesquisa

não é a descrição de um pôr do sol ou a ambição romanesca que

acabaria produzindo, nas palavras do próprio autor, um “Conrad

muito ruim”. A literatura, aqui, é a forma nova pela qual o antropó-

logo-viajante desestabiliza o familiar e apreende o estranhamento.

Impossível ser o olho absoluto surgido das nuvens. Pelo contrário:


Lévi-Strauss recorreu sistematicamente a um “eu” de método.

Ele se reconhece como o produto de uma história: judaísmo,

lembranças provincianas, gosto da montanha, concurso de filo

sofia, tédio na Sorbonne, chamado da caatinga do Brasil Central.

Ele conta a preparação da investigação: compras nos atacadistas

parisienses, seleção dos homens e das mulas em Cuiabá, aprendi


com o raiar do sol e
zagem do nambikwara, obrigação de acordar

de ser o último a ir dormir. Ele descreve, para além das diferenças.

o parentesco dos sistemas culturais, a fraternidade do selvagem .

Ele expressa seus sentimentos, entusiasmo, surpresa, concupiscên-

cia, cansaço, tédio, dúvidas e até mesmo o inconfessável: Q.ue vie¬

mos fazer aqui? Na esperança de quê? Com qual objetivo? Que vem
se infiltre a melan-
a ser uma pesquisa etnográfica?” Ele deixa que

colia que toma conta dele diante desses homens condenados à

extinção, vítimas e contrários a nossa “modernidade .


os detalhes, as
O antropólogo deveria se imunizar contra
anedotas de aventureiro, os acontecimentos insignificantes.

“As verdades que vamos buscar tão longe só adquirem valor se

separadas desta ganga”,ironiza Lévi-Strauss na introdução.0 livro

373
A história é uma literatura contemporânea

é um admirável desmentido: sem a ganga e a vida do garimpeiro, o

ouro não passa de metal comum. Trinta anos depois, o escritor se

perguntará se em Tristes trópicos não haveria uma verdade maior do

que em suas obras mais acadêmicas, porque ele “reintegrou o obser

vador ao objeto de sua observação”, com todas as distorções que


12
isso implica, como em uma objetiva fotográfica em olho-de-peixe.

O emprego do “eu” é mais uma liberdade epistemológica do

que uma escolha de escrita. Por razões científicas, será preferível a

verdade-processo à história-resultado; ou seja, a maneira racional,

explicável, alterável, sobre como se tende a um objetivo. A questão,

a investigação, a pesquisa, a demonstração são as balizas do cami

nho cognitivo. Inversamente, um fato sem prova,sem o raciocínio

que o sustente, não teria muito interesse, ainda que fosse “verda
deiro”. Como diz Perec citando Marx no final de As coisas: “Os meios

fazem parte da verdade tanto quando os resultados. É preciso que


a busca da verdade seja, ela mesma, verdadeira.”

Aquele que desconfiar da história-resultado, Palas nascida já


armada do cérebro de Júpiter, abrirá seu ateliê a todos. Por falta de

interesse nos segredos de alcova, nas portas entreabertas e outras

Entrevista com Claude Lávi-Strauss,Aposürop/2es, Antenne 2,4 de maio de 1984.

374
o texto-pesquisa

coxias da História, é possível fazer visitar as coxias do próprio

livro. Convidado a passar do outro lado da cerca, o leitor descobre

uma pesquisa em fabricação, ansiosa para expor suas razões, seus

postulados, suas definições, suas associações de idéias, preocu

pada em deslindar as operações lógicas e arquivísticas da qual é

feita, com seus argumentos,suas provas,seus procedimentos,seus

agenciamentos, suas lacunas, seus êxitos, seus fracassos. Para o

leitor, é útil compreender como a história permite compreender.

Em outras palavras, compreender ao quadrado.

Para o pesquisador, é gratificante mostrar como o conheci

mento se fabrica. É importante mostrar que a história se faz em

um ateliê, mas também fora dele, assim como os impressionistas

que pintavam ao ar livre. É agradável acolher o não especialista

como se fosse um amigo, em vez de relegá-lo ao papel de adminis

trador passivo. Esse alterego teria podido fazer a mesma coisa do

que eu, se tivesse tido tempo e vontade. Ao descrever a história


como a história da nossa errância, nós nos tornamos aquilo que

somos: escritores que tentam produzir enunciados de verdade, e


não autoridades decretando o que é verdade.

Esse princípio de coprodução do saber influi, evidentemente,


na construção narrativa. Antes de introduzir o visitante nos quar

tos, é melhor fazê-lo escalar os andaimes. Assim como há tetos

com vigas aparentes, há narrativas com provas aparentes, uma


história em enxaimel. Ela consiste em mostrar como a construção

375
A história é uma literatura contemporânea

se sustenta. A pesquisa é integralmente apresentada - estrutura,

construção, acabamentos na duração do seu trabalho (no sen

tido em que se diz que a madeira “trabalha”), na espessura de

sua gênese, de sua realização, de seu inacabamento, porque ela é

inseparável não apenas do percurso intelectual que ela segue, mas

também das dificuldades que levanta e continua levantando. Assim


como o historiador e
sociólogo, o antropólogo pode precisar as

condições de sua observação, contrariamente aos pesquisadores


que preferem apresentar suas conclusões acabadas, sem nada

desvendar de sua gênese A narrativa da investigação permite

tocar a textura. A tela deixa adivinhar o esboço, o acúmulo de cor,

o movimento do pincel. Aqui se consuma a ruptura com a “estética

do acabamento , que é a marca do academicismo,tanto nas ciências


sociais como na pintura.

No fundo, o modo objetivo é paradoxal. Eleito pela histó-


ria-ciência, ele produz uma narrativa saturada de efeitos de real,

dela expulsando as provas e outros elementos críticos, reduzidos a

notas-rabichos. A fim de respeitar melhor a exigência das ciências

sociais, seria possível deslocar o centro de gravidade da narração

e dedicar uma parte da narrativa à própria pesquisa, ou seja, à

maneira como se raciocinou, investigou, duvidou, comprovou.


O cerne do livro não seria mais a narrativa histórica, mas a narrativa

Bronislaw Malinowski, Les Argonautes du Pacifique Occidental, Paris, Gallimard,


“Tel”, 1989(1922), p. 58-60.

376
o texto-pesquisa

do raciocínio histórico, a reportagem da atividade intelectual sem

a qual a história não passaria de algo “narrado” superficialmente.

Temos tudo a ganhar com essa mudança. Uma investigação

tem essa miraculosa propriedade de adotar o método das ciências

sociais ao mesmo tempo que seduz o leitor: estadia de Malinowski

entre 1914 e 1918 em um arquipélago ao longo da Nova Caledônia

oriental, onde vários milhares de parceiros trocam braçadeiras

e colares de conchas desprovidos de qualquer função utilitária,

investigação de Nuto Revelli sobre os traços do “desaparecido


caserna de San
de Marbourg”, esse alemão solitário que vivia na
Rocco andava a cavalo todas as manhãs, conversava com as crian-
no verão de 1944 - nem
ças, antes de ser morto pelos partisanos

herói nem carrasco, estava mais para um homem corajoso. Nas

grutas do paleolítico superior, Leroi-Gourhan nos faz descobrir


os desenhos abstratos que acompanham as grandes composições

de animais: pontos, linhas, ranhuras, grades, meandros. Apos

alguns agrupamentos, ele se dá conta de seu caráter constante e

regular. Em Las Monedas,na Espanha, aparece o mais surpreen

dente ‘rabisco’ do paleolítico”: círculos e bastonetes, parecidos com

essas figuras incoerentes, e no entanto significantes que alguns


ao telefone. Esse
traçam em um pedaço de papel enquanto falam
resíduo desencorajador
“painel de contornos inacabados”, esse

André Leroi-Gourhan,Préhistoire de Vart Occidental, Paris, Citadelles et Mazenod,


1995 (1965), p. 204-206.

377
A história é uma literatura contemporânea

de rabiscos”, é, no fundo, aquilo que todo pesquisador tem diante

dos olhos. E também Leroi-Gourhan, que nos conta ao mesmo

tempo os traços sibilinos, o enigma que eles instauram e os esforços

feitos por ele para decifrar, ou em uma palavra, sua batalha para

compreender. Outra alegoria da caverna.

Para transcender e realizar a mimese,o texto das ciências sociais

pode tomar a forma de uma estrutura de dupla hélice, composta

por uma narrativa que representa-explica os fatos (como dizem os

narrativistas) e por uma narrativa da investigação que permitiu esta


belecer esses fatos - história de um objeto e, indissociavelmente,

história do indivíduo em situação que se debruçou sobre os traços

desse objeto. O texto-pesquisa, enquanto forma, consiste, portanto,

em reunir em uma mesma narrativa passada,a prova da investigação.

Seu verdadeiro herói não é o grande homem,nem o acontecimento,

nem o historiador, mas o raciocínio. No final, as notas de rodapé,

as cicatrizes vergonhosamente escondidas, poderão ser reabsor-

vidas; reintegradas à narração, terão se tornado a própria matéria

na narrativa. Essa reincorporação tem algo de uma profissão de fé:


o raciocínio histórico é o cerne de nossa atividade.

Abrir o ateliê do pesquisador, construir um raciocínio com vigas

aparentes: essas metáforas da visibilidade têm uma relação estreita

378
o texto-pesquisa

com o ideal de transparência. Não se trata mais da “casa de vidro”

naturalista, um tanto ilusória, nem da transparência totalitária,

aquela da ausência de intimidade e da autocrítica forçada. O verismo

hialino e o esmagamento do indivíduo têm as mesmas consequências,


matam o debate crítico. A verdadeira transparência consiste em qua

lidade democrática que possui uma gestão(ou uma decisão) quando

é integrada e conforme a procedimentos conhecidos por todos.


,ou
O raciocínio é, portanto, transparente quando é analítico

seja, integralmente explicitado e assumido; quando se baseia em

definições claras, hipóteses, deduções, exemplos, contraexemplos.

Quanto mais visível, mais dá a ver seus mecanismos,linhas de força

e de falha, seus limites.0 esforço ps-ra não esconder nada, que nada

tem a ver com o exibicionismo,também é um convite à discussão,

a essa amizade-rivalidade que funda toda ciência. Um temor seria

que a transparência esterilizasse o texto. Na verdade, ela preserva

o não texto. A exigência de “accountabiíity”, esse termo de respon

sabilidade, a expressão da dúvida, a confissão do inacabamento,

incidem sobre o caráter “positivo do discurso, que nada tem para

oferecer a não ser sua satisfação. O rigor em relação a si mesmo

impede de apresentar um resultado” unívoco, e a preocupação do


15
pesquisador confere ao texto sua profundidade narrativa.

15 Ygj. Patrick Boucheron,“On nomme littérature la fragilité de l’histoire”. Le


Débat, n. 165, p. 41-56, mai-aoút 2011.

379
A história é uma literatura contemporânea

Há um quê de estoicismo nesse exame de consciência.

Todo livro de história podería se associar aos Ensaios: “Eis aqui um

livro de boa-fé, leitor.” Muitos escritores se apresentaram ao leitor,

sua finitude incarnada em uma obra: Montaigne, Santo Agosti

nho, Salústio do fundo de seu retiro. Em Por que vocês são pobres?,

William VoUmann faz questão de lembrar que não conheceu a misé-

ria, contrariamente a London e Orwell, e que, portanto, não sabia


do que estava falando. No início de Stèles, dedicado aos 36 milhões

de chineses vítimas da fome entre 1959 e 1961 (entre os quais o

próprio pai do autor), Yang Jisheng tem a coragem da confissão:

responsável de propaganda para as Juventudes Comunistas, ele

louvou até o fim o Grande Salto para Frente: “Meu pesar quando
16
da morte do meu pai não abalou minha confiança no Partido.'

Qual é o contrário dessa transparência? É a furtividade de

Jauss, que teoriza o uso da ficção em história sem se perguntar

em que essa desrealizaçâo o interessa no plano pessoal, enquanto

antigo ex-voluntário e oficial da Waffen-SS. Como diz Stierle, seu

sucessor em Constança, na universidade alemã do pós-guerra, “o

lema do apagamento do eu diante da objetividade da ciência masca-

rava, frequentemente, outra ciência, a do horror”. Qual o remédio

Yang Jisheng, Stèles. La grande famine en Chine, 1958-1961, Paris, Seuil, 2012,
p. 14-16.
17
Citado em MauriceOlender,“Lesilencedunegénération”,inRacesanshistoire,
Paris, Seuil, “Points Essais”, p. 249-291.

380
o texto-pesquisa

para essa inautenticidade? Que o pesquisador caia em si mesmo

antes de caminhar na direção dos outros. Pois quem é ele para se

outorgar o direito de dizer a verdade dos homens? O investigador

interroga e critica as testemunhas, mas,pergunta Volney, será que


ele mesmo é isento dos mesmos defeitos, negligência, preconcei
”18
tos? “Não é tão homem quando eles?

Objetivar sua subjetividade,lançar um mandato de busca a si

mesmo, abjurar toda superioridade: esses exercícios fazem parte


no
do método das ciências sociais. Depois que nos posicionamos
encon-
tabuleiro de xadrez do mundo, entre os demais, podemos

trá-los enquanto sociólogos, observá-los enquanto antropólogos,

estudá-los enquanto historiadores. Péguy zombava dos historia


se
dores que se recusavam a figurar na “categoria histórica ,como
um médico se recusasse a ficar doente e morrer. Nós,historiadores,

também somos seres de história.

A pesquisa em ciências sociais ajuda os vivos a viverem.

Ela torna inteligível seu passado, seu percurso, o mundo em que

vivem. Ela permite que as pessoas frequentem épocas e espaços dis

tantes, mas também que se apropriem de suas próprias experiên

cias, que reencontrem as palavras das quais o traumatismo as pri-


vou - abandono,solidão, pobreza, discriminação, racismo, guerra,

morte. O historiador é um Mensch que ajuda seus semelhantes.

Volney, Leçons d'histoire prononcées à lÉcoleNorinale..., op. cit., p. 21.

381
A história é uma literatura contemporânea

que é mais humano na medida em que tenta compreender o que os

demais humanos fazem; esses homens nos tempos que ele estuda

a partir do seu ponto de vista de homem no tempo. A história é

aquilo que nos permite ligar-nos aos outros, tanto aos nossos filhos

como aos nossos antepassados. É a pergunta que carregamos em

nós e que no final da nossa vida nos arrependemos de nunca ter

perguntado, homenagem interesseira que um vivo faz aos desa

parecidos em nome dos vivos, antes de desaparecer por sua vez.


Uma melancolia pungente habita O declínio da Idade Média(1919)

de Huizinga. Quando o mundo era cinco séculos mais jovem”, os


eventos se destacavam com contornos mais claros. Havia menos alívio

contra a adversidade;se gozava mais avidamente da riqueza. É preciso

lembrar dessa facilidade de emoções caso se queira conceber “a aspe

reza do gosto, a violência da cor que a vida daquele tempo tinha”. As

expressões de Huizinga,"a vida daquele tempo”,"havia então , mais

do que hoje , mostram qúe o sentimento do passado não cria nenhuma

descontinuidade. Pelo contrário, ele faz com que a estranheza dos

irmãos humanos que nos precederam se torne ainda mais sensível,

graças a um movimento de idas e vindas entre o passado e o presente,


deles a nós, um retorno a si. Isso se chama oraçao.

3S2
o texto-pesquisa

Recapitulando, enuncio os quatro princípios do modo refle

xivo, que tem a virtude de integrar o esforço metodológico na pró

pria narração.

A implicação do pesquisador. Ainda que os séculos tenham aca

bado sua obra, o pesquisador está ligado a seu tema por mil fios

invisíveis. Sua epistemologia beneficia de um eu fiel à exigência

de Pascal, um anti-Narciso composto de um eu-testemunha, de

um eu de pesquisa e de um contra-eu.

O "eu"de método. Ao integrar a subjetividade do pesquisador na

narração, o “eu” torna suas formulações mais objetivas: ele escla¬

rece a posição de onde fala, as circunstâncias da investigação, as


as certezas e as dúvidas.
sustentações e os resultados do raciocínio

Humilde e lúcido, ele pertence ao protocolo científico.

Um ponto de vista acerca do ponto de vista. Como está em situa

ção, o pesquisador luta com o real, em um depósito de arquivos


ou em uma periferia, no fundo de um túmulo ou no meio de um

deserto de areia, em busca de traços. Consciente de sua situação,

recusando-se a dominar o mundo,capaz dessa auto-observação que

se chama teshuva em hebraico, ele produz enunciados de verdade

suscetíveis de serem refutados.

A transparência democrática. É o raciocínio em sua mais elevada


honestidade. Ele se torna analítico quando é explicitado, quando

383
A história é uma literatui'a contemporânea

se baseia em definições claras, postulados, hipóteses, deduções,

exemplos e provas. Um pesquisador não precisa se exibir; ele deve

apenas dizer as coisas e mostrar como foram feitas.

Imbuído desses princípios, o modo reflexivo pode romper com


a narrativa dos romancistas realistas e dos historiadores acadêmi

cos. Ele prefere a retidão à objetividade, a honestidade ao neutra-

lismo, a intranquilidade à certeza, o cheio ao vazio, a explicitação à

ciência infusa. O narrador objetivo sabe tudo e libera a informação

segundo sua vontade; o narrador reflexivo nada sabe e constrói

um raciocínio. O modo objetivo pratica o método em detrimento

da literatura e a literatura em detrimento do método,sob a forma

da história-tragédia, da história-eloquência ou da história-panegí

rica; o modo reflexivo se faz literatura para contar melhor a ativi¬

dade científica do pesquisador. Ele se reivindica como uma pesquisa

e uma forma, em nome do método. Ele permite viver a história,


na impossibilidade de ressuscitar os mortos.

Essa profissão de fé pode perturbar. Declarar de maneira

elevada sua lucidez, apresentar uma pesquisa em andamento,

multiplicar os “talvez” e os “provavelmente” não é prova de rigor.


Em outros termos, como evitar que o modo reflexivo ofereça mais

um espetáculo, uma encenação de si? O delator dos efeitos de real,

dos efeitos de História, dos efeitos de vida, dos efeitos de estilo,

não estaria, por sua vez, recorrendo a “efeitos de honestidade”?

384
o texto-pesquisa

O único efeito que o pesquisador pode reivindicar é o de dis

tanciamento, o Verfremàungseffekt de Brecht, esse procedimento

feito de humor, de ironia, de advertência, de desilusão e de cum

plicidade. No teatro, o V-Ejfekt incita o espectador a avaliar a cena


com um olhar investigativo e crítico”: iluminação muito forte,

visibilidade das fontes de luz, atuação deslocada dos atores, diálogo

com o público. A sala, despida de toda magia, não cria mais nenhum

“campo hipnótico”. Brecht estabelece explicitamente um paralelo


entre o efeito de distanciamento e o olhar científico. Tanto um

quando outro constituem uma “técnica de suspeita sistemática”


com relação a tudo o que parece óbvio: o ator deve estabelecer entre

si
ri e 0 presente “essa distância que o historiador assume diante dos

eventos e comportamentos do passado O fato de recusar toda

mística não impede de viver plenamente o teatro; simplesmente,

as emoções são de outra natureza.


Muitos artistas e escritores foram influenciados pela teoria

brechtiana, sua recusa da adesão passiva, sua vontade de desper

tar o leitor, de estimular seu espírito crítico. Perec declara, em

1969, ano de publicação de La disparition: Fui educado na escola

de Brecht, sou pela frieza, o recuo.”^° Da investigação até a ironia,

as ciências sociais dispõem de todos os instrumentos para quebrar

Bertolt Brecht, “Nouvelle technique d’art dramatique (1935-1941), in Écrits


sur le théâtre, Paris, L'Arche, 1963, p. 330-337.
20
Georges Perec, Entretiens et conférences, op. cit., p. 106.

385
A história é uma literatura contemporânea

a ilusão de História ou do vivido “como se estivesse lá”. O texto-

-pesquisa não cai bem à necessidade de acreditar. Ele impede, por

procedimentos cognitivos e literários, essa deliciosa demissão que

consiste em se deixar acalentar pela voz do Passado que conta ao

redor da fogueira. A satisfação não está em acreditar, mas na recusa

em acreditar, no prazer do despojamento e no sentimento de ter

compreendido - um pouco.

E a esse preço que a narração dramática, encarnada nos pro

tagonistas célebres ou anônimos, volta a ser aceitável. A identifi

cação que ela produz é simultaneamente anulada pelo efeito de

distanciamento,forma de apaixonar o leitor sem nunca o prender

na história-tragédia. Flerte com o cliname: o escritor-historiador

tem a liberdade de recorrer aos efeitos de presença e outros efei

tos de real, desde que sejam desmentidos por uma pesquisa em

ato, contada como processo vivo e reflexivo, o R-Effekt das ciên

cias sociais, de certa forma. É exatamente a definição da ficção de

método. Assim como o escritor, o pesquisador tem o direito de ser


um
pouco mágico, mas deve revelar seus truques.

386
12.

Não sei 0 que é o cinema


e é por isso que continuo
fazendo fUmes.
Kurosawa

Uma reflexão sobre a escrita das ciências sociais permite inte

ressar-se pela forma da pesquisa, mas também trazer um novo


olhar à questão das relações entre a literatura e o real. Ao recu-
sar identificar a literatura ao romance e as ciências sociais ao não

texto acadêmico, ao escolher encarnar um raciocínio em um texto,

chega-se a outra forma de fazer ciências sociais e a outra forma de


conceber a literatura.

Hoje, a história e a sociologia são legítimas o bastante,insta


ladas o bastante na universidade e na cidade para poder abrir-se

novamente à literatura, enquanto que, há um século e meio, para


impor-se, elas acreditaram dever “purgar-se (sem necessaria

mente conseguir, é claro). No século XIX, o advento do método


correspondeu a uma estratégia institucional bem compreensível.
A história é uma literatura contemporânea

mas também a uma divisão do trabalho profundamente sexuada.

A ciência, cabia a verdade dificultosa; à literatura, cabiam os encan

tos da vida. Os cientistas, exclusivamente masculinos na época,

romperam com a literatura, da mesma forma como um asceta se

proíbe olhar para as mulheres.

É inegável a contribuição das diferentes disciplinas profissio

nalizadas desde então, mas essa institucionalização teve um preço

que não se pode negar. O eco dos pioneiros, repercutido ao longo

do século XX - da Revue de Synthèse de Henir Berr em 1900 aos

Anais. História, ciências sociais de 1994 é cada vez mais fraco.

É produtivo reagrupar, num mesmo programa de pesquisa, espe

cialistas definidos por seu pertencimento disciplinar, mas é crucial

também lembrar que a pluridisciplinaridade convida a trabalhar na

fronteira, mudar de ferramentas, alterar os hábitos, cruzar dife

rentes abordagens em um único texto.

Empreguei os termos de ciências sociais" e de “raciocínio his-


tórico
para falar da história, da paleontologia, da sociologia, da

antropologia. Esforcei-me em mostrar que o raciocínio histórico em

geral e a história em particular não tinham uma ligação orgânica

com a História, que não se limitavam ao estudo do passado, que

permitiam a compreensão das sociedades contemporâneas, de

anônimos, do não acontecimento. Essas escolhas terminológicas

não traduzem nenhuma imprecisão (ainda que possa ter falado de

“ciências humanas”), nem um imperialismo historiador qualquer.

388
Da literatura no século XXI

Têm por única ambição atualizar aquilo que une,justamente,todas


essas atividades intelectuais.

O paradigma da investigação permite reunir ao mesmo tempo


as ciências sociais e narrativas que hoje recorrem à literatura. Todas
essas formas são capazes de desenvolver um raciocínio em um texto.

Isso não significa que Perec seja igual a Friedlãnder e que Bourdieu

seja igual a Faulkner. Isso significa apenas que a literatura faz bem
às ciências sociais e que as ciências sociais fazem bem à literatura.
Uma pós-disciplinaridade herdeira da revolução metódica
poderia parecer com o que segue: conciliar, em um texto, diferentes
experiências de saber e de escrita; praticar não uma história que se
tomaria “literária” como quem veste adereços (ou como um asceta
se autoriza, finalmente,a olhar para as mulheres), mas uma história

que é mais sensível e vibrante à medida que é investigação, raciocínio,


método, ciência social; um texto no qual há um combate,com todas
as armas dessabusca desenfreada,traços, encontros, hipóteses e via

gens,“eu” e ficções de método,funcionando como operadores de Ute-

rariedade. Quando digo uma história mais literária, quero dizer mais
rigorosa, mais transparente, mais reflexiva, mais honesta consigo
mesma.Porque a história é mais científica na medida em que é literária.
Se a narrativa história vai até hoje, se a história não tem rela

ção particular com a História, se as ciências sociais abrem cami


nho para a investigação, se o historiador viaja e encontra testemu
nhas, é naturalmente porque o texto se abre a novas experiências.

3S9
A história é uma literatura contemporânea

O historiador, com as ferramentas de que dispõe, pode entronizar

a atualidade, um fenômeno contemporâneo, um problema de socie

dade, um meio, um território. E não há qualquer razão para que se

prive do auxílio das artes visuais e audiovisuais.

Ao entrar na pós-disciplinaridade, as ciências sociais podem

aceder à modernidade, uma modernidade sem pós-modernismo,


um rigor sem academismo, uma literatura na qual não se teriam

outorgado todos os poderes à ficção. Nenhum dos instrumentos

aos quais a pesquisa em ciências sociais recorre serve para tomar

o poder. Eles são apenas meios orientados que tendem para um

fim: a produção de conhecimentos. O romance e a poesia foram

o tubo de ensaio da modernidade literária. Hoje, poderíam ser as

ciências sociais, toda essa literatura âe evasão que sabe, graças às


provas, escapar a si mesma.

As ciências sociais conquistaram essa liberdade graças às regras


que fixaram para si mesmas em conhecimento de causa. Entre elas

está aquela que autoriza a transgredir todas as outras ~ às vezes.

Contrariamente ao que reza a vulgata romântico-libertária, é possí

vel emancipar-se obedecendo a um método. Isso permite substituir

a história realista do século XIX por uma história literariamente

moderna,que entrelaça vozes narrativas, circunscreve vazios, divulga

códigos, respeita tão visivelmente as regras que acaba subvertendo-

-as. As ciências sociais são uma escola de liberdade, e o pesquisador

390
Da literatura no século XXI

pode, sem renegar-se, ser um escritor. Ainda que acabe se dando

conta somente no final da carreira,já grisalho!

Certos antropólogos dos anos 1930-1950, Alfred Métraux,

Michel Leiris, Claude Lévi-Strauss, publicaram uma obra literária

(autobiografia, diário) depois de voltarem de suas pesquisas de

campo,“segundo livro” destinado a ser o contraponto de suas publi

cações acadêmicas.^ Nem todo mundo teve essa audácia. No início do

século XX,o antropólogo Paul Rivet estava trabalhando no Equador.

Perturbado pelo sofrimento dos índios, cheio de um sentimento de

revolta diante do desperdício representado pela conquista espanhola,

ele escreve poemas, um texto sobre as causas dessa tragédia, uma

descrição de uma pequena cidade do Norte na qual reina a miséria.

Ele nunca mais publicou. Por quê? Porque, para Rivet, a literatura é

incompatível com uma ambição científica e uma reputação de aca

dêmico. Fugindo à emoção, engolindo sua cólera, negligenciando


contar as atividades de médico em exercício junto aos índios, ele

prefere optar pelo “cientificamente correto’ da erudição e da área

acadêmica. Para a jovem etnologia francesa em vias de institucionali

zação, a poesia e a literatura de viagem são uma escola detestável ?

’ Vincent Debaene, Ladieu au voyage. Lethnologie française entre Science et litté-


rature, Paris, Gallimard, 2010.
^ Christine Laurière, ‘Détestables écoles dethnographie’. Littérature interdite,
poésie censurée”, VHomrne, n. 200, p. 19-24, oct. 2011.

391
A história é uma literatura contemporânea

A carreira de Rivet é brilhante (ele fundou o Museu do Homem

e a rede de resistência de mesmo nome). Mas quanta autocensura,

renúncia, mutilação para um percurso desses? Quanto subsiste de

Rivet, hoje, nas universidades do mundo todo? Entre instituciona

lização e literatura, escolheram a primeira. Entretanto, é possível

ter ambas, porque a literatura é a forma nova e exaltante que as

ciências sociais são capazes de apresentar hoje.

“Tentemos a experiência”, como diziam os Anais em um edi

torial de 1989. Não digo que seja necessário, superior; digo ape

nas que é possível. A pesquisa em ciências sociais também é uma

pesquisa sobre suas próprias formas. Ela serve para desestabilizar

gêneros,instilar a dúvida, deslocar as linhas, derrubar o que estava

bem organizado. A verdadeira pluridisciplinaridade é um elogio ao

híbrido - uma forma instável, um texto não definido, que pode ser

ao mesmo tempo investigação, testemunho, documento, observa

ção, narrativa de viagem, história dos desaparecidos e história dos

filhos espirituais que somos. Dentro de algumas regras, esqueça

mos aquilo que aprendemos a fazer.

Por um neociceronismo

Para além da diversidade das iniciativas e a profusão de expe

riências, há consenso possível entre dois ou três grandes princípios?

Em qual tradição inspirar-se? Da mesma forma como Heródoto é

392
Da literatura no século XXI

desdenhado por Tucídides, ou como a literatura preocupa a his-


tória-ciência, o ciceronismo tem papel repulsivo, e certamente o

seria se pudesse ser resumido à história-eloquência ou à história-


-panegírica. Nós sabemos: o objetivo da história não é celebrar

os poderosos, nem oferecer receitas práticas de conduta de vida.

Felizmente,há uma diferença enorme entre essas formas ultrapas

sadas e o academismo entediante. Dizem que a história educa para a

cidadania. Os historiadores também podem agir na cidade. Eles partici

param,enquanto pesquisadores,aos combates pela verdade que ador


naram 0 século XX.São os herdeiros do orador ciceroniano,cujo verbo,

dotado de eficácia, permite iniciar um “verdadeiro combate” no pretório


e no fórum.Assim como a retórica de Aristóteles e de Cícero,a história

é agonística: ela serve para lutar contra a indiferença, a amnésia, a

mentira, as controvérsias. Assim como o orador, o pesquisador tem

responsabilidades públicas. Para assumi-las, não é preciso se registrar

ou participar de programas de televisão: produzir e difundir conheci

mentos já significa engajar-se. Mas,para isso, é preciso aceitar falar em

público. Daí a necessidade de refletir sobre o gênero eloquência ,que


é o mais conveniente às ciências sociais.

O orador ciceroniano sabe emocionar o juiz e o auditório. Como o

historiador deveria tocar seu leitor? Sua atividade racional não tem

por único objetivo a busca do verdadeiro? A patética grandiloquência

não seria uma violência para com o leitor? No entanto, cabe dizer que

uma pesquisa pode ser emocionante. Não o é necessariamente pelo

393
A história é uma literatura contemporânea

conteúdo, mas pela forma,quando assumida, quando a investigação


é contada, com suas vitórias e fracassos. Pois é só então que traba

lhamos sobre nós mesmos, sobre nossa liberdade e nossa finitude.

Em uma só palavra, sobre nossa história.

A exemplo da eloquência antiga, as ciências sociais poderíam

assumir três missões: provar, agradar, emocionar.

Em uma pesquisa, o raciocínio vem sempre primeiro. Baseado

na prova, ele é o elemento fundamental do texto; todos os demais

dependem dele. Para Cícero, probare passa pela persuasão, pela


potência verbal. No século XXI, um historiador não busca conven

cer, mas,sim, demonstrar. Para Cícero, o talento supremo consiste

em perturbar. Esse é o "trunfo” do orador. Um historiador tem

um só trunfo: compreender que queria compreender, ou seja.

afrontar uma questão de maneira probante.

Escrever um texto implica levar em consideração o interesse do

leitor. Um pesquisador pode ter sucesso respondendo a uma per


gunta muito simples: Quem terá vontade de me ler além daqueles

que, colegas e estudantes, seriam obrigados a fazê-lo?” Mas conci-

liave não consiste em persuadir o grande público, seja atraindo-o

pelo sensacionalismo, seja numa tentativa de impressioná-lo pelo


paratexto e aparato crítico. É pelo prazer da leitura - entusiasmo

da investigação, originalidade do tema, prazer de aprender, emoção


estética - que se pode persuadir o leitor.

394
Da literatura no século XXI

Da mesma forma como o orador instila a “chama no coração do

juiz,”^ o historiador entrega seu fogo sagrado ao leitor. Essa chama


nao se transmite diretamente, pelo caráter patético do movere,

mas insidiosamente, pela intransigência da exatidão, pelo esforço

de veridição, pela humildade do investigador-viajante. O estilo

adotado se deixa, por vezes, atravessar pelo entusiasmo ou pela

aflição que nele circulam. Dessa forma,o sublime (para falar como

Cícero) brota da sobriedade. A emoção é o desespero da verdade.

Provar, agradar, emocionar. Essas três palavras de ordem permi


tem substituir uma história-literatura por uma história enliteratu-

rada”. O prohãve é uma vacina contra a tendência ao panegírico, que

desqualifica certas biografias (“Era um visionário, um gigante, um

rebelde, um mártir”). Em vez de elogios, a vontade de compreender.

À guisa de homenagem,a simples verdade devida aos desaparecidos,


no
a sobriedade de uma prece que recapitula. O conciliare, baseado

prazer do texto,é um remédio àhistória-eloquência, que capta o leitor

pelo viés de adjuvantes exteriores: sistema escolar, prestígio da erudi

ção, dever profissional. Por fim, os estratagemas da história-tragédia

e do story-telling podem ser substituídos peia emoção que emana da

própria pesquisa.
Essa trindade neociceroniana poderia ajudar as ciências sociais

a conquistas de novos leitores.

^ Cicéron, De Vorateur, livre II, XLV, 188.

395
A história é uma literatura contemporânea

Uma contraliteratuara

O romance reina hoje sobre a literatura. É um fato que não


poderia mais ser contestado nem lamentado. Mas existe outra

literatura, sem nome bem definido, uma literatura efetiva cuja

natureza consiste em ater-se ao real. Esses textos, que criticamos

por serem prosaicos, ou mesmo triviais, formam uma literatura

da inteligibilidade. Eles carregam a marca do raciocínio histórico.


Neles também reside a escrita das ciências sociais.

Demonstrar a literariedade das ciências sociais implica fundar

uma literatura do real, caracterizada, antes de mais nada, por sua

relação com o mundo. Essa literatura não se define pelo seu objeto

(os “fatos”) nem pela falta dele (a "não ficção”), mas pelo seu desejo

de compreensão,sua potencialidade explicativa. Em outros termos,

se há uma literatura do real, ela é mais cognitiva do que realista.


Teoria de uma escrita-desvendamento: em vez de imitar o real,

ou inventar histórias, a literatura pode tentar dizer o verdadeiro

a respeito do mundo.

Todos esses textos desdenhados são uma mina de ouro.Se a ficção

é um texto sem condições, a literatura-ciência social pode ser definida

como um texto sob condições, consciente das regras que o moldam e

liberam. Essas mesmas condições multiplicam os poderes do texto -

uma literatura que quebra todo efeito de real, que sabe do que é feita,

que passa seu tempo refutar a si mesma,a criticar a si mesma,a sair

396
Da literatura no século XXI

de si mesma,a proliferar, a se negar e renegar, uma literatura feita de

documentos,de citações, de trechos, de partes, de traços, uma litera

tura em pedaços,uma espécie de contraliteratura, que não tenta sê-lo,


mas que acaba sendo apesar de tudo porque é pesquisa.

Pesquisa no real, pesquisa sobre si: essa literatura tira vanta-

gem da reflexividade das ciências sociais e de sua extraordinária


capacidade de experimentação. Assim emergem formas híbridas,

texto-pesquisa, autobiografia-percurso, investigação no passado,

reportagem sócio-histórica, escrita audiovisual, teatro documentá


rio. Essas formas literárias também são historiadoras, sociológicas,

antropológicas. Elas trazem uma solução a esse duplo desafio, reno


var a escrita das ciências sociais e propor uma escrita do mundo.

Genette tem razão: o romance é, atualmente, a literatura consti

tutiva”. Mas é precisamente porque a ficção goza desse privilégio, por

que ela é a primogênita,a preferida,a institucional, que é interessante

tomar outro caminho, aquele que leve à frontier, no meio do no man s

land, na margem dos bastardos. Brinquemos de desficdonalizar a ficção,

ativando-a por meio de um método,de um engajamento crítico, de um

R-Effekt. Para fazer história e literatura de outra forma, pode ser que

tenhamos que começar dando as costas para a história e para a literatura.

Para escrever, não mais ser escritor, mas ser químico,jornalista, padre,

médico, explorador, advogado, pesquisador, ou apenas um intemauta


anônimo. Da mesma forma como o Sr. Zé-ninguém é seu próprio his

toriador,somos todos capazes de compreender nossa própria vida.

397
A história é uma literatura contemporânea

No início do século XVII, o escritor é uma espécie de copista,

um funcionário público, cartorário ou organizador de papelada.

Atualmente, ele pode ser também um “escritor não escritor”, como

diz Primo Levi, alguém que exerce uma profissão, redige relatórios,

encontra pessoas, transmite informações, comunica uma experiên

cia. Felizes os profetas, os adivinhos, os poetas-videntes, escrito-

res-xamãs. Mas se não estamos entre os eleitos, sempre podemos

ser um investigador, um militante, um buscador, um histôr, uma

testemunha,em escriba, um “escrevedor”, como diz Perec, um pes

quisador que foi atrás de traços daquilo que perdeu, ou de mundos

que desapareceram, ou de estruturas que não são visíveis, ou de

pessoas que foram esquecidas. Isso é o que o século XX fez com as

ciências sociais e com a literatura; essas são nossas provisões para


a incursão no novo século.

O texto do scriptor moderno não divulga “a mensagem' do

Autor-Deus”, mas constitui “um tecido de citações, oriundas de mil

lugares da cultura”.^ Uma boa forma de enterrar definitivamente

o Autor é fazer ciências sociais, citar suas fontes, inscrever-se em

um coletivo, submeter-se à crítica alheia, e uma boa forma de ler

as ciências sociais é escrevê-las. A democratização do saber desfaz

a “sagração do escritor”. Ela abre os cenáculos dos happy few e os

seminários de especialistas à multidão.

Roland Barthes,“La mort de 1’auteur”, op. cit.

398
Da literatura no século XXI

Os tempos estão maduros

Tanto na literatura como nas ciências sociais, as experiências


sao inseparáveis dos lugares que as abrigam. Desde 1989,a coleção

La Librairie du siècle “A Livraria do século XX”, a editora Seuil

(que se tornou,em 2001,“A Livraria do século XXI”)renovou pro


fundamente as escritas do saber, abrindo suas páginas a romancis

tas, historiadores, dramaturgos, sociólogos, poetas, antropólogos.

Há aproximadamente quinze anos, as iniciativas se multipli

caram, não em um espaço de pesquisa específico, mas na maneira

de escrever os mundos passados e os atuais. Gostaria de evocar a

coleção “Nos héroines” [“Nossas heroínas”], da editora Grasset, e a

coleção “Histoire de profil” [“História de perfil”], da Belles Lettres,

nas quais se mesclam biografia, literatura e história; a revista Écríre

VHistoire, que se propõe “contá-la, pintá-la, filmá-la, encená-la,

cantá-la”, e, assim, sempre, repensá-la; a revista Lafoynht/ie, “lugar

de pesquisa e de experimentação no campo dos saberes literários,

filosóficos, históricos e sociais”; o festival Banquete do Livro, orga

nizado em Lagrasse pela associação Le Marque-Page junto com a

editora Verdier,frequentado por um público oriundo de diferentes


horizontes e de idades variadas; o festival Waíls and Bridges, organi

zado pela Villa Gillet, que reúne artistas e pensadores das ciências

sociais, da literatura e do espetáculo; a revista on-line La Vie des

Idées, lugar de debate que animamos,ligado ao Collège de France,

399
A história é uma literatura contemporânea

graças a uma equipe pluridisciplinar; a revista XXI, que alia repor

tagens, entrevistas, HQs e fotos, componentes de uma literatura

apta a compreender o mundo; o projeto “Raconter la vie” [“Contar

a vida”], cujos livros e site Internet trabalham para escrever coleti

vamente “o romance verdadeiro da sociedade de hoje”. Toda essa

efervescência é produto de uma liberdade: a decisão de abordar

de outra maneira o passado e o presente, misturando diferentes

abordagens, diversas formas, vários tipos de raciocínio.


Falei, neste livro, do encontro entre ciências sociais e litera

tura. Seria preciso escrever outro para evocar as artes visuais e

o cinema.^ Mas a ideia está lançada: não somente ousar novas

experiências, mas projetar em mil suportes as ferramentas de

inteligibilidade que nossos antecessores forjaram e que nos são

importantes. Virá um tempo em que não parecerá maluco incarnar

o raciocínio histórico em uma exposição de fotos, em uma HQ,em

um jogo de videogame, em uma peça de teatro. Nesse sentido, a


Internet é nossa mais íiel aliada.

Se os escritores, os jornalistas, os desenhistas, os fotógrafos

inventam formas novas para contar a sociedade e compreender o

real, não se deve esquecer que as ciências sociais são produzidas

5 Ver, para a HQ,Art Spiegelman, Maus.A história de um sobrevivente, São Paulo,


Quadrinhos na Cia., 2005,e Alan Moore,Eddie Campbell,From Hell. Une autopsie
de JackVêventreur, Paris, Delcourt, 2011 (1991); para o cinema: Natalie Zemon
Davis,Jean-Claude Carrière; Daniel Vigne,Le retour de Martin Guerre, Paris, Robert
Laífont, 1982,e Antoine de Baecque, Vhistoire-caméra, Paris, Gallimard, 2008.

400
Da literatura no século XXI

essencialmente na universidade. "Universitário^ é uma palavra

enganosa, que significa ao mesmo tempo a nobreza da pesquisa, a

preguiça diante do academismo e a miséria dos estabelecimentos

cada vez menos financiados. Submetida à concorrência das áreas

mais produtivas e das formações mais profissionalizantes, a ins

tituição é obrigada a mudar. Sua riqueza são seus docentes e seus

estudantes; mas não se pode esquecer que os efetivos de Letras,


Ciências Humanas e Sociais não param de diminuir. Certos depar¬

tamentos já se encontram sinistrados.

Concedamo-nos o prazer de imaginar um futuro diferente.

Ateliês de escrita, em ciências sociais e nas letras; estágios de

campo coordenados por equipes de tutores pluridisciplinares; teses

e livre-docência que comportem uma parcela de Creative history, não

por conformismo, mas porque se trata de uma face das ciências

sociais; departamentos de humanas transformados em lugares de

pós-disciplinaridade, ou seja, de experimentação e de trocas, em

relação com escolas de arte, de cinema, de jornalismo; textos-pes-

quisa publicados em revistas, em editoras, na Internet, e destinados

a um grande público. É de espantar que a França, tensa em torno

da sua “identidade”, assombrada pela ideia de declínio, seja o país

onde as iniciativas intelectuais e editoriais sejam as mais florescen

tes. Não é um acaso: é porque se deparam da maneira mais brusca

com a crise que os pesquisadores franceses ousam vivenciar, arris-

cando-se em formas novas, tentando coisas estranhas. A dúvida

401
A história é uma literatura contemporânea

é nossa maior sorte. Ela justifica, em todo caso, a manutenção de

uma pesquisa em língua nacional.

Assim como existe uma “jovem” literatura, há uma “jovem”

história e uma “jovem” sociologia. São o feito de pesquisadores

que se reconhecem no projeto das ciências sociais - esse crisol no

qual as disciplinas se tornam ligas. Hoje surgem novas misturas,

com o teatro, as performances, a foto, o vídeo, as artes gráficas.

Se esse efeito de geração é totalmente bem-vindo, o contexto, por

sua vez, não o acompanha: cabe a nós criar novos objetos intelec

tuais para responder à crise avassaladora que atinge a universidade,

assim como a edição em ciências humanas. Cabe a nós atrair os

estudantes, os leitores, novos públicos.

Cabe a nós reinventar nossa profissão.

O espirito de resistência

As ciências sociais são um serviço público. Elas ajudam a com

preender de onde viemos e aquilo que somos. Elas mostram à socie

dade o seu passado, seu funcionamento,sua pluralidade, sua com

plexidade, suas saídas. Elas fazem ouvir uma palavra livre, razão

pela qual, assim como a nota de rodapé, elas têm origens “trágicas”.

O ofício é perigoso porque se interessa pela verdade - de maneira

ainda mais forte sob uma tirania, como bem o lembra Vidal-Naquet

citando Chateaubriand citando Tácito.

402
Da literatura no século XXI

É por isso mesmo que não é certeza de que o perigo seja, hoje,
a opressão política ou religiosa. As ciências sociais devem resistir
a algo menos visível, mais insidioso: a ordem das coisas. o con¬
sentimento cego, a evidência espalhada, mas também as palavras

desprovidas de sentido, a retórica vazia, o jargão vazio, o ruído


midiático, a mentira
que se encarna nos slogans, os discursos que
só falam de franqueza e de verdade para corrompê-las.
No século XIX, o romance permitiu que seus leitores decifras
sem o social, compreendessem as perturbações que os afetavam.
Foi 0 primeiro a apreender a democratização da sociedade, o desafio
da igualdade, o advento do capitalismo industrial e da civilização

urbana. Dois séculos depois, a ficção não é mais suficiente para

compreender um mundo que voltou a ser opaco a si mesmo. Hoje,


precisamos de ciências sociais para desafiar a tirania da comu
nicação de massa e da publicidade, remediar a invisibilidade das

experiências, combater a indiferença. É por isso que é tão impor


tante que estejam presentes na cidade, socialmente apropriáveis,

acessíveis ao demos que as financia e que as solicita, incarnadas em


um texto onde as palavras encontram seu sentido; que elas sejam

tão rigorosas e literárias quanto possível.


Quando as palavras não querem dizer mais nada,o real é expulso
de si mesmo.Assim que aceitam habitai'a língua, produzindo enun
ciados de verdade em e por meio de um texto, as ciências sociais

voltam a se tornar uma palavra pública, democrática, republicana.

403
A história é uma literatura contemporânea

antidespótica, ou seja, uma literatura, no sentido que Madame de

Staêl conferia a essa palavra.

Mas como infringir hoje, quando temos o direito de fazer

tudo e de acreditar em tudo? A investigação carrega verdade, ou

seja, contestação. Explicar por que uma sociedade é obcecada por

seus “jovens da periferia”, mostrar aquilo que um administrador

de fortunas esconde por trás do segredo bancário, interessar-se

pelos “segredos de Estado” abrangentes demais, revelar aquilo que

um industrial coloca em um cigarro, um produto alimentício, um

medicamento,já é um ato de resistência.

O verdadeiro rebelde, hoje, é aquele que diz as coisas, com essa

coragem e essa probidade {Redlichkeit) que Nietzsche confere ao estu

dioso. E o parresiasta, esse “insuportável interpelador” que puxa os

homens pela manga.® É o artífice, segundo Foucault, que despedaça

o velho mundo de dentro, em vez de incendiar os templos. É o pro

fessor de liberdade, como esse triste professor de matemática bretão,

apelidado de Buschenwald” por seus alunos porque de lá viera, que

conseguiu superar os determinismos sociais ao permitir que um

torneiro mecânico de 15 anos, Robert Castel, tornasse-se um dos

grandes sociólogos do nosso tempo. Essa é precisamente a herança

^ Michel Foucault, Le courage de la vérité. Legouvernement de soi et des autres, II,


Paris, Gallimard, Seuil, “Hautes études”, 2009, p. 19.

404
Da literatura no século XXI

de Buchenwald: “Manter vivo o espírito de resistência”, ainda que

isso implique atualizar aquilo diante do qual é preciso resistir ^

Ser subversivo é tentar compreender aquilo que os homens

fazem na verdade, explicar como se perpetuam as limitações, os

modelos, as crenças, os estereótipos, as desigualdades, as crises,

os ódios; é colocar um pouco de inteligibilidade em nossas vidas.

A coragem da verdade é audácia da palavra e liberdade da cria

ção, mas também vontade de se arrancar aos próprios hábitos,

esforço para fugir ao academicismo deturpando as regras existen

tes. Assim é possível incomodar.

Com o jornalista e o magistrado, o pesquisador é um dos poucos

a poder sustentar publicamente um discurso de verdade. Seu capital

é constituído por seu método e sua consciência, produtores não de

riquezas privadas, mas de bem público. Ao abraçar essa missão, ele


nao se
expõe mais diretamente à prisão nem ao exílio. Ele corre

principalmente o risco de não ser ouvido, de se ver enterrado na

indiferença, preso a sua ilegibilidade. Para assumir melhor seu apos-

tolado democrático, as ciências sociais têm a possibilidade de escre

ver. O pesquisador pode se fazer ouvir enquanto escritor; e o escritor

pode dizer algo verdadeiro enquanto pesquisador.


A realidade é uma ideia nova.

’ Robert Castel, “À Buchenwald”, Esprit, p. 155-157,juil. 2007.

405
Este livro foi composto em Chaparral e impresso no
sistema offset, sobre papel pólen soft 80g/m^, com capa
em papel-cartâo supremo 250 g/m^
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Entre seus títulos mais recentes, dès-


tacam-se Laêtitia oü la fin des hommes,
baseado emum caso criminal e Prêmio-.,
Médicis de melhor rom^ce de 2016;
Camping-car (2018),Lecorpsdesautres '
(acerca do trabalho de‘esteticistas); .e
Des hommes justes:, du papiarcát aux , '
nouvelles masculinités, reflexão desen-
. cadeadã pelo movimento #MeeToo,
publicado em 2019. É um dos edito-
res-chefe da revista on-line La Vie des
Idées (laviedesidees.fr) e coordenador .

da coleção La République dés Idées,


também publicada pela Seuil.

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A “investigação”, a “cena da ausência”, o “eu de método”, a ‘história
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com nos são algumas das expressões presentes nas obras mais . ●»
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historiador? Como dizer o desamparo (tanto dos pais quanto dos ■■ p; i-r t
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filhos)? É possível dar voz aos que estão à margem da sociedade?
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r Estas questões exigem formas específicas. Na continuidade dos

c. ● historiadores Paul Veyne e Michel de Certeau, o autor carto


r
grafa e explora formas textuais em ciências sociais, campo que
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●7A! se caracteriza por “escritas do real”. No entanto, realça que nem . .i; ●V
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T toda história é um “romrnice verdadeiro”, e nem toda literatura
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é romance. Partindo desse projeto, estudou principalmente o
.●4..
trabalho da assistência social ftrancesa e da história de mulheres

f
(sua avó Idesa Jablonka, comunista e assassinada em Auschwitz,
,1; ●
a jovem Thérèse e a imigração forçada que a conduz à loucura, a
jovem Laétitia e seu corpo desmembrado). Assim, o leitor se depara
●5
●4 : ; com ensaios, romances e o chamado “terceiro continente”: os “tex- 1

tos-pesquisa”, novas formas que emergem com cada investigação,


pois a reconciliação entre pesquisa científica e literatura se faz,
segundo o autor, pela investigação de novas formas. As pistas são
exploradas e podem ser aprofundadas ou abandonadas em função
de uma única necessidade: um dizer verdadeiro.

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ISBN 978-65-5846-031-2
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