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Rio de Janeiro
2006
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Rio de Janeiro
2006
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CDD 155.5
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Aprovada em
______________________________________________________________
Profª. Drª. Lucia Rabello de Castro (Instituto de Psicologia/UFRJ)
_______________________________________________________________
Profª. Drª Esther Maria de Magalhães Arantes (PUC/ RJ)
________________________________________________________________
Profª. Drª. Jaileila de Araújo Menezes (Centro de Educação /UFPE)
Professores suplentes:
________________________________________________________________
Profª. Drª. Jane Correa (Instituto de Psicologia/UFRJ)
________________________________________________________________
Profª. Drª. Luciana Gageiro Coutinho (Instituto de Psicologia/UFRJ)
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora e professora Lucia Rabello de Castro, por todo o ensinamento, orientação e
disposição nestes 6 anos de convivência e de uma parceria feliz;
Aos meus pais, apesar de todas as dificuldades, por todo o apoio e compreensão (ou tentativa de
compreensão) durante esta importante fase de minha vida;
À minha irmã, pelo apoio e incentivo incondicionais e pela certeza que tudo dará certo;
À querida Silvia, que apesar de estar enfrentando a sua própria dissertação, esteve sempre
presente dando a ajuda e o apoio tão importantes;
A Amana, Elaine e Sonia, colegas de mestrado, amigas para a vida, com quem compartilho este
momento tão importante de nossas vidas;
Aos meus queridos amigos Paula, José Luis, Roberto, Bernardo e Roberta por todas as risadas e
noitadas tão necessárias;
Aos colegas de trabalho do NIPIAC (os de agora e os de sempre) pela torcida, companheirismo e
parceria em nossas empreitadas;
RESUMO
ABSTRACT
Citizenship is nowadays a key concept to consider the question of the relation between society
and its members, from a traditional conception related to rights. However, new conditions and
questionings of the contemporary have promoted an enlargement of the beneficiary of these
rights in a movement of recognition of differences to the detriment of the universality regarding
the citizen condition. The objective of this dissertation is to contribute to this discussion through
the problematization of the citizenship of children and youth, considered here as relevant social-
political actors. It also questions if this model of citizenship related to rights doesn’t turn out to
be an exclusive model to these subjects, once it has as presupposition a developmental logic, that
contributes to postpone the recognition of the citizenship to a subsequent moment. In order to do
this, a theoretical analysis of the historical foundations of the concept of citizenship was done,
considering the specificity of the Brazilian context; as well as an analysis of its status in the
contemporary, considering the influence of phenomenon such as the globalization and the culture
of consumption. From this analysis, it was found out that culture of consumption appears as a
fertile soil appropriated by children and youth where they obtain recognition as citizens, as
producers and consumers of culture. A new conception of citizenship can be considered related
no longer to rights but to the idea of participation. Participation is understood here as a ampler
form of political participation – not restricted to vote– and social participation – understood as
recognition as visible and relevant members of society through the aggregation of value –,
therefore promoting tension and discussion in the construction of the social life. Citizenship
considered as participation leads to questionings regarding the representative democracy,
indicating other possibilities of exercise of democracy.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO p. 07
6 CONCLUSÃO p. 106
REFERÊNCIAS p. 112
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1 INTRODUÇÃO
de atuação com questões sobre à infância e juventude encontra-se em grande parte relacionada a
maturação e preparação destes sujeitos, em uma constante aposta em um sujeito vir-a-ser, a ser
onde estes sujeitos não aparecem como categorias sociais relevantes em si, mas sim como
coadjuvantes de categorias referentes a outro universo, por exemplo, em estudos sobre a família,
Entretanto, parece ganhar força na atualidade uma concepção que passa a ter um olhar
mais focado e específico para a infância e juventude, como uma parte relevante constituinte da
certas mudanças para que estes sujeitos pudessem aparecer como tal, como por exemplo, o status
de consumidores em potencial. Entretanto, talvez seja possível pensar que a criança enquanto
outras categorias sociais, como a família – e por uma condição de menoridade, mais
característica da contemporaneidade, pois ainda é vigente um olhar que a considera como inapta,
tutelada e inferiorizada.
No que diz respeito à representação social de crianças e jovens no Brasil, o que aparece
como novidade é a expressão “sujeito de direito”. Pinheiro faz um interessante histórico das
representações sociais que crianças e adolescentes tiveram ao longo da história brasileira, que
da criança e do adolescente, no Brasil, qual seja, a sua representação social como sujeitos de
direito” (2001: 49). Sem dúvida, esta nova concepção representa um avanço no que diz respeito à
maneira de se pensar e tratar a infância e juventude no Brasil. Até então, a análise da história
social brasileira colocava a criança e o adolescente sempre enquanto objeto, seja de assistência,
de controle ou repressão. Segundo a autora “são, portanto, três representações sociais da criança e
social” (PINHEIRO, 2001 : 52), que predominaram até o final da década de 70, início de 80,
quando diversas manifestações e movimentos sociais deram início a uma série de mudanças no
processo político e social brasileiro. É neste contexto que surge e se consolida esta nova
práticas em relação à infância e juventude sofrem uma mudança: as práticas assistenciais (de
Internacional dos Direitos da Criança (1989). Os princípios regentes desses direitos são os de
básicos de alimentação, educação, saúde e segurança para esses sujeitos. A elaboração desta
convenção demonstra uma evolução no que diz respeito à participação, pois a criança passou a
ser considerada não só como objeto, mas também como sujeito, ator e cidadão. Segundo
Wintersberg (1996), esse tratado teve importância ao estender um bom número de direitos às
crianças, mas por sua vez não eliminou todas as formas de discriminação de crianças comparada
aos adultos. Para este autor, no que se refere à questão da participação, a Convenção é, por vezes,
Portanto, embora seja um grande avanço no que diz respeito à representação e ao lugar da
infância e da juventude dentro da sociedade, esta condição de sujeito de direitos não significa
uma condição de cidadão. Ainda é considerada uma diferenciação etária qualitativa e, portanto,
respeito à vida de crianças e jovens, uma vez que estes são considerados “pessoas em
desenvolvimento”. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 ao trazer pela primeira vez um
absoluta e onde são reconhecidos todos os direitos básicos destes, ressalta sua condição especial
uma expectativa de que exista um patamar a ser alcançado para se ter acesso a essa condição,
patamar este que se encontra marcado por delimitações etárias. A partir desta perspectiva
vivência do sujeito, sendo que suas atividades estariam restritas ao brincar e estudar como parte
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desta preparação para o futuro. Para Castro “[...] a lógica desenvolvimentista favoreceu uma
perspectiva de ‘menoridade’ sobre a infância, que põe em questão, ou mesmo reduz seus direitos
civis e políticos” (2001: 22). Desta maneira, acredita-se que existiria um saber a ser alcançado
somente com a maior idade, estando a criança fora do alcance deste saber. No entanto, uma
questão se coloca: trata-se de um saber político a que se tem acesso a partir de uma suposta
“maturação”, ou não seria este saber construído a partir de uma práxis, a partir de sua ação, a qual
aprendizagem baseado na experiência do cotidiano que, portanto, não está restrito somente à
infância. Como nos diz Jans, “hoje, crianças e adultos estão se tornando ‘colegas’ na medida que
ambos têm que aprender a dar sentido e forma a suas atividades cidadãs” (2004: 32). Acredito
que esta lógica desenvolvimentista tem sido usada como argumento de exclusão de crianças e
jovens na participação na sociedade, e teve efeitos em como a cidadania é pensada para esses
sujeitos.
inseridos. Entendemos portanto que a cidadania deve ser compreendida como um processo mais
de crianças e jovens apresenta-se como uma forma de inserção destes sujeitos na sociedade, não
mais presa a estratégias e ações adultocêntricas. Uma vez que na contemporaneidade vive-se um
momento onde as posições sociais não são pré-definidas e fixas, encontrando-se passíveis de
mudança, o sujeito se vê obrigado a fazer sua “inscrição” no social. Esta exigência parece se
abater também sobre crianças e jovens, e estes parecem se utilizar desta oportunidade para se
apresentarem como atores sociais com interesses próprios. Temos o exemplo disso no âmbito
privado, no papel diferenciado que crianças e jovens têm assumido na família, – mostrando-se
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mais competentes para certas atividades do que seus pais, como por exemplo, na relação com
etc. – assim como no âmbito público, o mercado parece reconhecê-los como consumidores, com
desejos próprios. A partir de padrões de consumo específicos, desenvolvem uma cultura própria,
A idéia de cidadania como participação parece uma opção para dar conta de um gap entre
problemas (JANS, 2004). A participação é entendida como condição fundamental para que as
Ao se falar em cidadania pode-se adotar diferentes definições para ela. A cidadania pode
ser entendida como conjunto de direitos, conjunto de deveres, como identidade ou como
cidadania como participação que se torna possível o exercício desta por parte desses sujeitos,
1
Capacidade de introduzirem novos sentidos no ambiente do qual participam, no caso a sociedade (Jans, 2004).
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uma interação complexa na qual ao mesmo tempo em que são determinados pela sociedade,
ajudam a determiná-la.
desacreditado, por exemplo, sendo pensado muitas vezes como restrito ao ato de votar. Observa-
se atualmente uma desvalorização e descrédito do significante político, sendo este cada vez mais
marcado por uma denotação depreciativa, talvez devido às atuações vergonhosas e pouco dignas
que temos observado de nossos representantes legislativos e executivos. Cada vez mais nota-se o
individual tendo prioridade frente ao coletivo, e a discussão de práticas e pautas políticas sendo
deixadas para que governantes se ocupem disso. Crianças e jovens encontram-se excluídos tanto
quanto adultos deste lugar, ou talvez ainda mais, uma vez que para os primeiros não se trata de
um desejo de não-participação, mas sim de uma proibição, de uma impossibilidade. Talvez esta
proibição de participação, uma vez internalizada por estes sujeitos, venha a se tornar este desejo
cidadania definida a partir da idéia de direitos acaba por amputar e prejudicar a participação
destes sujeitos na sociedade. Como abordaremos mais adiante, a eles são concedidos apenas os
direitos sociais, principalmente a educação, à serviço desta lógica de preparação dos sujeitos. De
acordo com Jans (2004), a idéia de direitos entra em conflito com a questão da ambivalência
presente hoje ao se falar em infância, seja ela, a existência de um discurso de proteção e tutela,
concomitante a um encorajamento para que sejam autores de suas vidas, de que participem mais
ativamente. Importante frisar que trata-se de uma tensão e não de uma incompatibilidade, pois
crianças e jovens precisam de proteção para que possam ser atores independentes. O desafio está
Uma vez que infância e juventude e a condição de vida desses sujeitos encontram-se
constituem o contexto da vida adulta, nada mais justo que a esses sujeitos seja permitido o
como um grupo com interesses específicos, daí a importância de que possam ter uma maior
participação na sociedade. Wintersberg (1996) afirma que crianças e jovens ao não terem voz
levam os políticos a prestarem menos atenção a elas e a suas necessidades. É ele também quem
alerta para a importância de lembrar que crianças e jovens representam a geração mais distante
dos políticos, mas por sua vez, também são as que sofrerão por mais tempo as conseqüências das
em potencial. Pretendo pensar e problematizar até que ponto um modelo clássico de cidadania
crianças e jovens na sociedade, considerando que a existência de uma diferença entre crianças,
jovens e adultos não é impossibilitadora para que estes sujeitos participem enquanto cidadãos.
Dessa forma, esta dissertação propõe-se a pensar outras possibilidades e modelos de cidadania
para crianças e jovens que não o modelo clássico, baseado em uma diferenciação etária como
índice de competência.
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análise por não apresentarem diferenças relevantes no que diz respeito ao objetivo desta
dissertação. Como afirma Bourdieu (1984), as divisões entre as idades são arbitrárias e objeto de
luta. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, por exemplo, considera criança todo ser
criança o sujeito com até doze anos de idade incompletos, e desta idade até 18 anos, adolescente.
etária entre 15 e 24 anos, opção esta utilizada na maioria das análises demográficas. No entanto,
muitos têm entendido juventude como um processo e não apenas como uma categoria etária,
processo esse que teria início na infância. A Organização Pan-Americana de Saúde resume
juventude como uma categoria sociológica, que constitui um processo sociocultural demarcado
pela preparação dos indivíduos para assumirem o papel de adulto na sociedade, no plano familiar
e profissional (MINAYO et al., 1999). É justamente esta definição que nos interessa, e que em
históricos e seu estatuto no contemporâneo. Para tanto, no primeiro capítulo procuro apresentar
direito, atentando para o fato de que essa conceituação se mostra excludente para crianças e
jovens. Nele, também questiono as dificuldades encontradas para se pensar a cidadania dessa
no terceiro capítulo, rumando para o debate sobre uma nova possibilidade de cidadania para
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crianças e jovens, apresento uma discussão sobre sociedade e cultura de consumo. Finalmente, no
capítulo quatro defendo que é no interior mesmo da cultura de consumo, através de diferentes
da cidadania.
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diversos aspectos de sua existência são levados em consideração: econômico, social, cultural,
político. O enfoque aqui dado será a este último, entendendo este como conseqüência da
existência do sujeito dentro de uma comunidade, de uma coletividade. Dentro deste âmbito do
padronizado de direitos, e pensar que sentido tem obtido atualmente frente às características do
contemporâneo.
Segundo Ferreira (2000), a cidadania não existe como um “em-si”, sua existência está
encarnada em um indivíduo, o cidadão. Este realiza a existência da cidadania e esta lhe confere
uma identidade, que identifica o indivíduo na esfera pública. Enquanto função identificatória, a
cidadão, o marginal. “A cidadania faz a mediação das relações entre os indivíduos identificados,
‘presentificados’ como cidadãos frente ao Estado, os que se incluem na ordem dos direitos e
deveres; ao fazer isto, também identifica os que estão excluídos dessa ordem, os não-cidadãos”
restrita à idéia de direitos, uma vez que esta se apresenta como excludente para crianças e jovens.
Pretendo também apresentar um mapeamento mais detalhado do que vem a ser este conceito de
um sujeito possui para com a sociedade da qual faz parte. Esta cidadania está relacionada à idéia
Começaremos por recorrer a Marshall (2002), autor que trabalhou o conceito de cidadania
situando-o na Inglaterra do final do século XIX, com o surgimento dos direitos – civil, político e
Marshall (2002) apresenta de certa forma uma divisão histórica do surgimento destes
direitos. Para Carvalho, esta divisão dos direitos é também lógica, pois foi só com o exercício do
direito civil, da liberdade civil, que foi possível a reivindicação do direito político, de
participação, e só participando é que foi possível a luta por direitos sociais ou o direito “à
Os direitos definidos por Marshall são o direito civil, o direito político e o direito social.
cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que
possuíssem apenas alguns direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam
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não-cidadãos” (CARVALHO, 2004 : 9). Os direitos civis podem ser definidos basicamente como
os direitos necessários à liberdade individual e são expressos por liberdade de ir e vir, liberdade
de imprensa, liberdade de pensamento e fé, direito à propriedade privada e direito à justiça. Este
último corresponde ao direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com
O surgimento dos direitos civis teria se dado no século XVIII, e seria a base dos demais
direitos, pois sua constituição tem a ver com o estabelecimento do reino do direito, o direito
básico, o direito de liberdade. Segundo Trevelyan, “sobre aquela fundação sólida, construíram-se
todas as reformas subseqüentes” (apud MARSHALL, 2002 : 13). Portanto, o direito à liberdade
A importância deste primeiro direito para a cidadania pode ser observada ainda em outra
Quando a liberdade se tornou universal, a cidadania se transformou de uma instância local numa
No setor econômico, o direito civil básico é o direito de trabalhar. Até então prevalecia
uma distinção onde certas ocupações eram reservadas a certas classes sociais e aos habitantes da
fundamental” (MARSHALL, 2002 :13). Estas restrições passaram a ser uma ofensa à liberdade
O direito político diz respeito ao direito de participar no exercício do poder político, como
instituições. Segundo Marshall, o século XIX foi o período formativo dos direitos políticos. Estes
só puderam surgir uma vez que os direitos civis ligados ao status de liberdade já haviam
conquistado um status geral de cidadania e “[...] consistiu não na criação de novos direitos para
enriquecer o status já gozado por todos, mas na doação de velhos direitos a novos setores da
distribuição para os padrões da cidadania democrática. O direito de voto era ainda restrito a
determinados grupos. Embora no século XIX os direitos políticos não estivessem incluídos nos
Não conferia um direito, mas reconhecia uma capacidade. Nenhum cidadão são
e respeitador da lei era impedido, devido ao status pessoal, de votar. Era livre
para receber remuneração, adquirir propriedade de alugar uma casa e para
gozar quaisquer direitos políticos que estivessem associados a esses feitos
econômicos. (MARSHALL, 2002 : 16)
produto secundário dos direitos civis, no século XX, abandona-se essa posição e se associa
direito político à cidadania como tal, não sendo o último apenas complemento do primeiro. Um
exemplo disso é a instituição do sufrágio universal, quando o que se é levado em conta para votar
O surgimento dos direitos sociais se dá por último, no século XX. Até então, direitos
O direito social seria “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar
2002: 7). Os direitos sociais seriam direitos “positivos”, pretensões a determinados bens –
educação, segurança, saúde – em oposição aos direitos civis e políticos tradicionais, chamados de
“negativos”, pois são considerados geralmente como uma tolerância negativa por parte dos
outros, e não uma ação positiva (ESPADA, 1999). São chamados também de direitos sociais de
serviços sociais.
No contexto inglês, Marshall aponta que no momento mesmo de passagem para a nova
ordem (Modernidade), há uma cisão da cidadania na qual os direitos sociais se aliaram à velha
ordem – relação de proteção do senhor feudal para com seus servos – e os direitos civis à nova
ordem – que tem como pressuposto a universalidade . A partir de algumas leis que são criadas, as
reivindicações dos mais pobres não são consideradas como uma parte integrante de seus direitos
de cidadão, mas como uma alternativa a eles – como reivindicações que poderiam ser atendidas
somente se deixassem inteiramente de ser cidadãos. Como exemplo, os indigentes abriam mão do
direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento e eram obrigados a abrir mão de
quaisquer direitos políticos. Da mesma forma, mulheres e crianças eram protegidas porque não
eram considerados cidadãos. Medidas de proteção ao trabalhador eram tidas como uma afronta ao
direito civil de efetuar um contrato de trabalho livre. O direito social aparece então como forma
de controle, em troca das aquisições protetivas, a pessoa assistida deve se comportar a partir de
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uma determinada norma. No caso do trabalhador, funcionou como uma forma de controle social,
A educação é o que primeiro se configura enquanto direito social. Carvalho (2004) aponta
que, no entanto, ela se encontra fora desta seqüência histórica de direitos, pois tem sido
Para Marshall, a educação das crianças está diretamente relacionada com a cidadania, e,
quando o Estado garante que todas as crianças serão educadas, este está somente cumprindo as
Segundo ele, “o direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da
educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva [grifo meu]. Basicamente, deveria
ser considerado não como o direito da criança freqüentar a escola, mas como direito do cidadão
público de exercer o direito. Será que esse dever público se impõe simplesmente em benefício do
civilização é, portanto, um dever social e não somente individual porque o bom funcionamento
Portanto, Marshall entende que “a cidadania é um status concedido àqueles que são
membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com
Algumas críticas em relação a essa concepção de cidadania de Marshall podem ser feitas,
como a generalização a partir do caso inglês, a simplificação da emergência dos direitos nas
Mas não é somente enquanto status, enquanto conceito jurídico que a cidadania pode ser
conceito sociológico e não enquanto noção política ou jurídica. Para ele, a cidadania poderia ser
definida como um “conjunto de práticas (jurídicas, políticas, econômicas e culturais) que define a
recursos para as pessoas e grupos sociais” (TURNER, 1993 : 2). O interessante de sua proposta é
que ao dar ênfase à idéia de práticas para definir a cidadania, evita definí-la de forma jurídica e
como status, como somente uma coleção de direitos e deveres. Dessa forma, imprime um caráter
dinâmico ao conceito, uma vez que essas práticas estariam passíveis de mudanças, a partir das
condições sócio-históricas.
de recursos, situando a cidadania no debate sobre desigualdade e sobre classe social, uma vez que
o conjunto de práticas de cidadania vai definir o fluxo de recursos para a sociedade, por exemplo,
Conseqüentemente, cidadania estaria referida ao conteúdo dos direitos e deveres sociais, à forma
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desses direitos e deveres, às forças sociais que produzem estas práticas e com os vários arranjos
conceituação mais estática para uma mais dinâmica, podendo incluir crianças e jovens como um
dos diferentes setores da sociedade, uma vez que está sujeita a forças sociais e mudanças
históricas.
O surgimento seqüencial dos direitos de que fala Marshall sugere que a idéia de cidadania
é um fenômeno histórico. Enquanto tal, ela se desenvolveu de forma diferente em cada lugar. Até
então, este capítulo apresentou o modelo inglês descrito por Marshall, mas este foi apenas um
entre outros. No Brasil, o surgimento da cidadania se deu de forma diferente, pois “aqui não se
aplica o modelo inglês” (CARVALHO, 2004 : 11). Que diferenças seriam essas? Para Carvalho,
ao contrário do modelo inglês, houve aqui uma maior ênfase aos direitos sociais, em relação aos
outros; além de entre nós, o direito social ter precedido os demais na seqüência de surgimentos.
“Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da
brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa” (CARVALHO, 2004 :12).
relação aos direitos sociais, esses se relacionavam ao status do indivíduo dentro da sociedade, o
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que determinava o tipo de justiça que este receberia e que participação teria nos afazeres da
comunidade a qual pertencia. Para Marshall, este status não era de cidadania. Era, na sociedade
feudal, a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. “Não havia nenhum código
uniforme de direitos e deveres com os quais todos os homens – nobres e plebeus, livres e servos –
eram investidos em virtude da sua participação na sociedade. Não havia, nesse sentido, nenhum
princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio da desigualdade de
nação que foi possível o surgimento da cidadania. Este surgimento ocorreu através de um
processo duplo, de fusão e separação. Nos diz Marshall (2002) que esta fusão foi geográfica –
instituições independentes, como tribunais e parlamentos. Este duplo processo acarretou como
conseqüência, que cada uma destas instituições passassem a seguir um caminho com princípios
próprios, e estas passaram a ter um caráter nacional e especializado, não mais restrito e ligado de
Na Idade Média, a participação era mais um dever do que um direito. Mas com o processo
Modernidade uma mediação entre o indivíduo e o Estado. “Todo esse aparato se combinava para
decidir não simplesmente que direitos eram reconhecidos em princípio, mas, também, até que
26
2002 :11).
A cidadania foi responsável pelo processo de integração, ou melhor, por uma mudança do
uma comunidade política regida por princípios universais e por mecanismos públicos de
feudais eram unidas por um sentimento e recrutadas por uma ficção (parentesco ou mito de uma
participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio
comum. Compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei
Esta lei comum tem um papel importante enquanto cerne de uma coletividade e teria a
função de fixar regras para o jogo social e de dar conta dos conflitos, devendo ser encarada como
um princípio de organização política e social. Para Locke, esta lei comum se traduz em um pacto
de desigualdade, em relação ao Estado, uma vez que ele é o responsável por constituir e assegurar
a lei, além de estabelecer e manter a igualdade civil entre os cidadãos.A ausência dessa diferença
em relação a uma autoridade soberana, segundo ele, levaria à luta, à morte, uma vez que cada um
iria tentar se realizar individualmente, mesmo que às custas do próximo. Graças ao Estado, a essa
subordinação (FERREIRA, 2000). É no Estado que se institui a autoridade civil do qual emanam
direitos, deveres, justiça e moralidade social. Segundo Châtelet, neste contexto surge a figura dos
todos, determinando com precisão a participação de cada um na defesa e na gestão das questões
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comuns da cidade, as instâncias de onde devem provir as decisões que envolvem os membros da
coletividade, a arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos” (1985: 14). A
importância desta lei comum também é afirmada por Aristóteles: “Os cidadãos não tem outro
senhor além da lei, e essa tem como função garantir a liberdade de todos e realizar a justiça [...]
distribuindo a cada cidadão ‘o igual pelo igual’ e o ‘desigual pelo desigual’” (apud CHÂTELET,
1985: 21).
importante para o surgimento da cidadania, pois é na polis que um homem pode “viver como
convém que um homem viva”. Aristóteles em “A Política” opõe cidade a outras formas de
essência, seja ela, a de ser “um animal que possui o logos”, ou seja, a capacidade de falar e
refletir sobre seus atos. “Somente ela permite à coletividade instaurar uma ordem justa, e, ao
indivíduo, viver de tal modo que atinja a satisfação legítima – sob o império das leis [...]”
(CHÂTELET, 1985 : 15). A cidade possibilita aos homens passar sua vida na esfera pública. O
surgimento dela propiciou ao cidadão duas ordens de existência: idion – o que lhe é próprio e
A cidade é a “unidade de uma multiplicidade” sendo composta por indivíduos que são
distintos uns dos outros mas iguais perante à lei. O que esta lei garante é a liberdade dos
re-configuração política na Europa Oriental e na antiga União Soviética (onde as várias nações se
transformaram em novos Estados-nação), o que tem levantado questões sobre a relação entre
também traz questões importantes sobre o estatuto da cidadania, em relação, por exemplo, às
para fora do Estado nacional, em processos desvinculados de cidadania nacional – por exemplo,
trabalhadores ilegais – precisam de uma condição cidadã, que deve assumir uma conotação
dessa crise da cidadania estão a vulnerabilidade financeira e migratória das fronteiras nacionais,
a redefinição do papel do Estado. Além disso, podemos citar fatores referentes à diferenciação
Estes problemas de nacionalismo e identidade política não são modernos. Como nos diz
Turner (1993) em vários aspectos, estes problemas espelham problemas anteriores como o do
organização das sociedades modernas. Turner (1993) apresenta duas questões que estariam re-
relação entre seres humanos e natureza na atualidade, problematizando a relação corpo humano e
pertencimento social, através de questões como posse do corpo humano, clonagem, posição da
O processo de globalização introduz novas tensões nas instituições de cidadania uma vez
problema: “[...] por um lado, coloca em crise, ainda que não dissolva categorias concretas, tais
como trabalho concreto, interação face-a-face e comunidade entre outros. Por outro, implica em
cobertura de direitos. Como nos diz Carvalho (2004), a luta pelos direitos sempre se deu dentro
das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação, tratando-se de uma luta nacional travada
por um cidadão também nacional. Portanto, a relação das pessoas com o Estado e com a nação
tinha a ver com a construção da cidadania. Segundo Carvalho, “as pessoas se tornavam cidadãs à
medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (2004: 12). A identificação
a uma nação se dava através de fatores como religião, língua, lutas e guerras contra inimigos
comuns. A crise do poder do Estado traz conseqüências, sobretudo para os direitos políticos e
sociais. Se o poder do Estado encontra-se hoje reduzido como ele pode garantir para os sujeitos
direitos sociais, liberdade, justiça, etc? Qual a relevância do direito de participar dele? Com as
finanças estatais afetadas pela ampliação da competição internacional como ficam os gastos com
os direitos sociais? E afinal de contas, em um contexto cada vez mais globalizado, multicultural e
plural, quem é realmente este cidadão que tem direito de usufruir desses direitos se ele não é mais
somente nacional?
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agora temos essa identidade nacional dando lugar a uma identidade que se propõe mais global, a
de uma identidade humana. Como nos traz Ignatieff (1995) a noção de comunidade passa por
mudanças que a tem tornado cada vez mais global. Uma nova política vigente desde o pós-guerra
universais. Nesta política, que inclui organizações como a Anistia Internacional e Organizações
das Nações Unidas, as responsabilidades do cidadão devem ceder ante à obrigação enquanto ser
humano. Quando um homem está sendo torturado em outra jurisdição, não se pode mais recorrer
a uma diferença de cidadania como argumento para se abster de um protesto contra. Assim
acontece nas políticas de proteção ambiental, a intervenção é agora global, uma vez que as
ameaças ao ambiente são agora globais. A poluição de um lugar se torna chuva ácida em outro.
Armas feitas no laboratório de um país podem matar todos no planeta. “Se estamos nos tornando
cidadãos do mundo é porque as ameaças às nossas vidas não estão restritas apenas às fronteiras
É Turner (1993) ainda quem problematiza mais um aspecto da cidadania. Segundo ele, se
fazer a equivalência cidadania e igualdade (sameness). Alguns críticos atribuem a essa cidadania
sendo o caso por exemplo das minorias culturais, como as minorias de raça. Segundo Lavalle
diferenciadas, não são atendidas pela universalidade, uma vez que este status está caracterizado
por um pressuposto normativo (homem, adulto, branco, ocidental...) que avalia simbolicamente o
diferença.
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Devemos atentar para o fato de igualdade não significar a equalização de diferenças, o que
seria melhor definido pelo conceito de identidade, pois a igualdade pressupõe a existência da
diferença (BUTLER, LACLAU & LADDAGA, 1997). Igualdade no que diz respeito à cidadania
refere-se a ser igual em alguns aspectos, no caso ser cidadão. A igualdade teria que ter um
sejam tolerados, então a cidadania não assumirá um caráter repressivo ou coercivo para esta
diferença. Até porque, não parece haver mais exigências de supressão da diferença como
mundo cada vez mais global, a cidadania terá que se desenvolver de maneira a aceitar tanto a
globalização das relações sociais quanto a crescente diferenciação dos sistemas sociais.
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observamos que a condição de tutelado, neste modelo de cidadania apoiado em uma perspectiva
Como já foi visto anteriormente, a concepção de “sujeito de direito” tem se tornado uma
idéia forte ao se pensar a infância e juventude e tem produzido efeitos de medidas de proteção
não-governamentais cada vez mais voltadas ao atendimento desta população. No entanto, este
“sujeito de direito”, parece a meu ver, estar estrita e exclusivamente atrelado aos direitos sociais
infância e juventude, há uma forte tendência em se proteger e disponibilizar o acesso aos direitos
sociais, mas uma despreocupação em se pensar e incluir os demais direitos, ou mais gravemente,
observa-se hoje um fosso entre a existência da lei e sua execução, sem falar que mesmo garantido
a esses sujeitos todos os direitos inerentes à pessoa humana, a questão relacionada a participação
Cabe aqui questionar, assim como Wintersberg (1996), o argumento de que crianças
seriam “imaturas” e por isso não poderiam desfrutar de direitos políticos. Para ele, trata-se de
33
uma mera convenção social, a idade determinada para o exercício do direito político é arbitrária.
Prova disso está no histórico de idades regulamentadas para votar no Brasil, que já foi 25 anos e
no momento é 16 anos.
Em relação a essa prevalência dos direitos sociais em detrimento dos demais podemos nos
perguntar: Será que essa também não é a exigência feita à crianças e jovens? Ser tutelado é não
ser cidadão? Nesta questão presentifica-se a ambivalência em torno da infância, uma convocação
à participação e uma necessidade de proteção. Mas ao contrário, como vimos com Marshall, a
participação nas comunidades e associações constituiu a fonte original dos direitos sociais, e não
adultocêntrica da cidadania moderna pois seu objetivo está em “durante a infância moldar o
adulto em perspectiva”. Wintersberg (1996) aponta que o trabalho escolar não é considerado
como um investimento das crianças na sociedade, mas sim o contrário. Ele inclusive apresenta
uma metáfora interessante: a escola seria uma fábrica onde o material bruto (crianças) é
da educação. Creio que Marshall estivesse influenciado pelo pensamento rousseaniano para quem
a formação de cidadãos passa pela instrução. “Formar o cidadão não é tarefa para um dia, e para
contar com eles quando homens, é preciso instruí-los ainda crianças” (FERREIRA, 2000 :134).
dúvida importantes para participação em sociedade, mas seriam determinantes para se produzir
34
um cidadão? Penso que se trata de uma outra aprendizagem, ao qual crianças, jovens e adultos
sociedade, envolvendo processos não só racionais mas também subjetivos como o pertencimento
e identificação a um coletivo.
portanto, uma categoria mais abstrata do que a solidariedade, que é a dimensão social, o conjunto
deslocar desta posição “naturalizada” do direito, abri-se caminho para pensar em uma outra
feudalismo para o Estado-nação, mas acabou ficando restrita a uma solidariedade abstrata e
Apesar de solidariedade ser associada de maneira quase exclusiva aos chamados direitos
comunitária. Deve-se haver um equilíbrio entre o princípio da justiça (direito) e entre o princípio
[...] embora a noção de direitos seja uma categoria relacional, isto é, uma
categoria cuja aplicação supõe necessariamente uma situação de interação que
envolva pelo menos duas partes e um contexto determinado, no Ocidente tem
35
contexto histórico brasileiro, tentando pensar como este modelo de cidadania inicial – baseado no
modelo inglês – foi assimilado no Brasil e que transformações sofreu neste processo.
36
Brasil é um país “jovem” no que diz respeito ao exercício e às práticas democráticas. Em sua
história, o Brasil é marcado por longos períodos não-democráticos: monarquia, república militar,
Estado Novo e ditadura militar. A participação do povo de forma mais efetiva se deu muito
recentemente, após o fim de 20 anos de ditadura militar, a partir de 1985. E é junto a essa
ascensão que entra em voga a palavra cidadania, assim como o surgimento e o aumento da
governamentais.
cidadania, podemos fazer um paralelo à questão trabalhada nesta dissertação, e veremos que no
que diz respeito à cidadania no Brasil, o país enquanto um país “jovem”, quando no início de sua
“vida”, foi privado de participar, sendo a população tutelada como objeto de “assistência,
Para Carvalho (2004), como já foi dito anteriormente, a cidadania desenvolve-se dentro
direitos sugere que a idéia de cidadania é um fenômeno histórico. Enquanto tal, ela se
este surgimento se deu de forma diferente, ao contrário do modelo inglês, havendo aqui uma
maior ênfase aos direitos sociais, em relação aos outros; além de entre nós, o social ter precedido
os demais na seqüência de surgimentos. Portanto, autores como Carvalho (2004), Velho (1981),
37
Santos (1994) e Sales (1994) mostram como a cidadania, a partir de nosso contexto sócio-
cidadania propiciou e que efeitos trouxe para a maneira como ela é vivida e experienciada no
Brasil. Para tal, Carvalho (2004) nos guiará durante o percurso do “longo caminho” pelo qual a
nossa independência (1822) ao final da Primeira República (1930), a única alteração em relação à
cidadania foi a abolição da escravidão, em 1888. Segundo Carvalho (2004), o Brasil herdou uma
tradição cívica pouco encorajadora. À época da independência costuma-se dizer que a sociedade
brasileira não era composta de cidadãos, mas sim de uma população analfabeta, de uma
futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à
2004:21). Entre os pólos escravos e senhores, existia uma pequena população livre, mas que não
tinha condições para o exercício dos direitos civis. Os senhores tampouco eram cidadãos, faltava-
lhes “[...] o próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante a lei”
Basicamente, no Brasil Colônia não havia sociedade política, não havia cidadãos. A
justiça estava nas mãos do poder pessoal dos senhores, não havia um poder público de verdade,
38
que pudesse ser a garantia da igualdade de todos perante a lei, uma vez que havia um
compromisso entre poder privado e Estado. “Os direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos
políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais ainda não se falava [...]” (CARVALHO, 2004:24).
independência se deu através de uma negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a
Inglaterra. Neste episódio a participação popular foi quase inexistente, restrita à manifestação de
apoio aos líderes. Após a independência houve iniciativas de se melhorar este quadro com a
“cidadãos” eram pessoas que tinham vivido até então como “não-cidadãos”. Eram em sua
maioria analfabetos, não possuíam noção de governo representativo. Muitos votavam obrigados,
em função da luta pelo domínio político local, e não como exercício de um direito. O voto era um
ato de obediência ou lealdade a um chefe local. Dessa época consta a existência de figuras como
A Primeira República ficou conhecida como “República dos Coronéis”, onde o coronel
era o chefe político local. Este período foi marcado pela aliança desses chefes locais com os
presidentes dos estados, e desses com o presidente da República. Devido a isso, esta primeira
etapa da República foi marcada por eleições fraudulentas, o que fortalecia o argumento dos que
queriam restringir o voto popular. Carvalho (2004), entretanto, aponta equívocos nesse
pensamento. Para ele, tratava-se de um equívoco achar que a população saída do “limbo” colonial
pudesse de uma hora para outra se comportar como “cidadãos atenienses”. O processo de
aprendizado democrático é lento e gradual. Assim, era um equívoco “[...] achar que o
2
Cabalista era o que fornecia uma prova, no caso uma testemunha ou apenas o juramento, sobre a renda legal do
maior número de pessoas para que elas pudessem votar em seu chefe. Nesta época o direito ao voto estava atrelado à
renda pessoal. O fósforo era a pessoa que se fazia passar pelo votante verdadeiro. O fósforo votava várias vezes, em
locais diferentes, representando diversos votantes. Convencia de que era o votante através de sua retórica. O capanga
eleitoral tinha a função de proteger os partidários e ameaçar e amedrontar os adversários (Carvalho, 2004).
39
aprendizado dos direitos políticos pudesse ser feito por outra maneira que não sua prática
uma identidade nacional. Como guerra, foi a primeira vez que havia um estrangeiro inimigo a ser
a valorização, pela primeira vez na história, dos símbolos nacionais como o hino e a bandeira e
a escravidão – que ia de encontro aos valores da liberdade individual, base dos direitos civis3 – , a
grande propriedade – que trouxe junto a figura do coronel acima da lei e legislador de uma lei
própria, ao qual toda uma horda estava submetida4 – e um Estado comprometido com o poder
privado.
Brasil, no qual afirmava que “O Brasil não tem povo”. Ele se referia ao que seria um contingente
de 6 milhões de pessoas não instruída, sem capacidade de julgar, sem aptidão cívica; encurralada
profissionais liberais e dirigentes. Esses 6 milhões não constituíam para ele um povo
Carvalho (2004), no entanto, defende que essa opinião adota uma concepção de cidadania
estrita e formal, que supõe que a manifestação política adequada é aquela que se dá no sistema
3
Chama atenção como o argumento para a abolição da escravatura foi completamente diferente no Brasil e nos
Estados Unidos. Enquanto lá se apelava para a liberdade como direito inalienável, aqui usava-se o argumento da
razão nacional, ou seja, a escravidão enquanto obstáculo à formação de uma verdadeira nação, deveria ser findada.
4
Um exemplo claro está na máxima dos coronéis vigente à época: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.
40
legal, sobretudo através do voto. “Parece-me, no entanto, que uma interpretação mais correta da
vida política de países como Brasil exige levar em conta outras modalidades de participação,
movimentos reativos e não propositivos, como rebeliões e revoltas populares5. “[...] apesar de não
participar da política oficial, de não votar, ou de não ter consciência clara do sentido do voto, a
população tinha alguma noção sobre direitos dos cidadãos e deveres do Estado” (CARVALHO,
mobilização de vários estados da federação, envolvendo vários grupos sociais como operários,
Neste contexto, ocorreu a Revolta Constitucionalista, a mais importante guerra civil brasileira do
século XX.
No período de 1937 a 1945 – conhecido como Era Vargas – houve um recuo e estagnação
dos direitos políticos; em contrapartida, os direitos sociais tiveram um avanço com, por exemplo,
Trabalho. A CLT que incluía criação de benefícios como aposentadoria, pensão, seguro, férias,
salário-mínimo; e a legislação social foram introduzidas com pouca ou nula participação política
e num período de precária vigência de direitos civis. Introduzida dessa forma, comprometeu o
5
Destacam-se neste período Revolta dos Cabanos (1832), Balaiada (1838), Cabanagem (1835) e revoltas de cunho
mais urbano como a de 1880 no Rio de Janeiro, onde por causa do aumento de um vintém no preço das passagens do
transporte urbano, 5 mil pessoas se reuniram em praça público para protestar. A revolta urbana mais importante
aconteceu em 1904 e ficou conhecida como Revolta da Vacina.
41
desenvolvimento de uma cidadania ativa, como veremos mais adiante. Tratava-se de uma política
social como privilégio e não como direito, pois o sistema excluía algumas categorias, como
interferência do Estado se dava de forma ambígua, pois se por um lado protegia com a legislação
Este populismo de Getúlio Vargas sacrificava os direitos políticos em prol dos direitos
sociais, e caracterizava-se por uma relação ambígua entre cidadãos e governo. “Era avanço na
cidadania, na medida em que trazia as massas para a política. Mas, em contrapartida, colocava os
cidadãos em posição de dependência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos
benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído” (CARVALHO, 2004:126).
Já no período de 1945 a 1964 foi a vez dos direitos políticos. A eleição de 1945, com a
derrocada de Vargas, pode-se dizer que foi a primeira experiência realmente democrática do país.
Kubitscheck, a renúncia de Jânio Quadros e a pressão sobre João Goulart, essa primeira
experiência democrática acabou terminando com o golpe militar. Durante o curto governo de
João Goulart, experimentou-se uma grande mobilização política por parte tanto da esquerda
campesinato e militares. Somente em 1963, os trabalhadores rurais que tinham ficado à margem,
42
sem nenhum dos direitos, emergiram na cena política e social do país através das Ligas
participação do povo na política cresceu significativamente, tanto pelo lado das eleições como da
ação política organizada em partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras associações [...]6”
(CARVALHO, 2004:146).
Assim como em 1937, o rápido aumento da participação política levou em 1964 a uma
reação defensiva e a uma ditadura, em que direitos civis e políticos foram restringidos. Os Atos
Institucionais (AI) foram os instrumentos legais de repressão dos direitos civis e políticos usados
neste período. Basicamente, eles cassaram direitos políticos de várias lideranças políticas e
sindicais, assim como de militares e intelectuais; aboliram a eleição direta para presidente;
dissolveram os partidos políticos criados a partir de 1945 e com o mais radical deles – AI 5 –o
Congresso foi fechado, passando o presidente general Costa e Silva a governar de forma
ditatorial.
partidos eram regulados e controlados pelo governo, era proibida a greve, a justiça militar julgava
crimes civis, a inviolabilidade do lar e da correspondência não existia, e o próprio direito à vida
era desrespeitado. Importante ressaltar o papel da juventude neste período enquanto protagonistas
Carvalho (2004) aponta uma ambigüidade presente neste momento em que o eleitorado
cresceu sistematicamente7. “O que significava para esses milhões de cidadãos adquirir o direito
político de votar ao mesmo tempo em que vários outros direitos políticos e civis lhes eram
6
Números de votantes em 1930 foi igual a 1,8 milhão de habitantes (5,6%). Em 1960, votaram 12,5 milhões de
habitantes (18%).
7
Eleitorado em 1960 era formado por 12,5 milhões de eleitores, já em 1982 este número era de 48,7 milhões.
43
negados? O ato de votar poderia, nestas circunstâncias, ser visto como o exercício de um direito
político?” (CARVALHO, 2004:167). Podemos tentar uma linha de raciocínio que nos levaria a
pensar se este tipo de comportamento político não estaria tendo efeito em como o exercício do
Assim como Getúlio Vargas, os militares também investiram na expansão dos direitos
No que diz respeito à cidadania, para Carvalho (2004), o governo militar manteve o
direito do voto, combinado a um esvaziamento de seu sentido, junto a uma expansão dos direitos
permitiu o fim da censura prévia e a volta dos primeiros exilados políticos. Vale ressaltar que
apesar de todas as proibições impostas aos direitos civis e políticos, o período da “abertura” foi
um momento de grande mobilização da sociedade civil, e talvez possamos falar que seja o
momento de seu surgimento, como a entendemos hoje. Houve a explosão do movimento sindical,
organizados de baixo para cima com a liderança dos operários e sem a intervenção do Estado,
como era na época de Getúlio Vargas. A Igreja, através da sua teologia da libertação, também
participou na luta pela defesa dos direitos humanos e através de trabalhos com a população
Surgiram também nesta época os movimentos sociais urbanos, que visavam tratar dos
classe média, a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Associação Brasileira
organizados, mas não menos eficientes na ação oposicionista, foram os artistas e intelectuais.
Apesar da censura, compositores e músicos foram particularmente eficazes graças a sua grande
1984. A pressão popular foi decisiva para a eleição de Tancredo Neves, que tinha 69% da
preferência da população.
Pode-se dizer que o autoritarismo brasileiro pós-30 sempre procurou compensar a falta de
liberdade política através do paternalismo social, isto é, funcionando o poder executivo como
dispensador de benefícios sociais. No entanto, no governo militar a eficácia da tática foi menor,
pois havia uma mobilização política anterior ao golpe e o cenário externo não favorecia este tipo
das cidades durante o período militar criou condições para mobilização e organização social. A
queda do governo militar contou com maior participação popular do que a queda do Estado
Novo.
Os avanços dos direitos sociais e a retomada dos direitos políticos não resultaram em
avanços dos direitos civis. Pelo contrário, foram os que mais sofreram durante governos
militares. Com a “abertura” estes direitos foram restituídos, mas continuaram restritos aos mais
Após a euforia com as Diretas Já, veio a frustração e o desencanto com o governo de José
República – teve início com a Constituição Cidadã de 1988 e a primeira eleição direta para
45
presidente desde 1960, em 1989. Fernando Collor de Mello apareceu então como uma figura
messiânica para a população, e representou um novo começo para a democracia no país, mas que
país. Houve uma grande mobilização popular, principalmente da juventude das grandes cidades, e
através da pressão popular conseguiu seu afastamento, por uma via democrática. Para Carvalho,
“o impedimento foi sem dúvida uma vitória cívica importante. Na história do Brasil e da América
Latina, a regra para afastar presidentes indesejados tem sido revoluções e golpes de Estado”
(CARVALHO, 2004:205). Este acontecimento foi inédito, pois deu aos cidadãos a sensação de
Apesar da Constituição de 1988 ter legitimado um aumento dos direitos sociais, na prática
reina ainda uma crescente desigualdade social e racial. Em relação aos direitos civis, foram
como a tortura. A partir da constituição foram criados a Lei da Defesa do Consumidor (1990) e
os Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais (1995), o que representou uma
justiça mais acessível para uma maior parcela da população. “No entanto, pode-se dizer que dos
direitos que compõem a vida, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências
Para Carvalho (2004), a seqüência inglesa reforçava a democracia pois as liberdades civis
eram garantidas por um Judiciário independente do Estado, e a partir delas, os direitos políticos
política que tinha o objetivo de garanti-las. Os direitos sociais eram considerados muitas vezes
incompatíveis com os demais. “A proteção do Estado a certas pessoas parecia uma quebra da
Não é que exista uma única fórmula para a construção da cidadania, mas caminhos
diferentes afetam o resultado, o tipo de cidadão e de democracia. Em nosso caso, teríamos como
conseqüência a excessiva valorização do Poder Executivo, que aparece como ramo mais
importante do poder, e que por sua vez, assume um papel paternalista, de distribuição de
empregos e favores. Nessa mentalidade, não há função para o sistema representativo, trata-se de
uma cultura orientada mais para o Estado do que para a representação dos membros que
história figuras messiânicas, representantes dessa estadania, como Getúlio Vargas – pai dos
mecanismo democrático de decisão. Além disso, em nossa cultura política, prevalece uma visão
corporativista dos interesses coletivos. Os benefícios sociais não eram direitos de todos, mas fruto
47
papel dos legisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de intermediários de favores
A partir deste histórico, nos debruçaremos agora sobre alguns autores que pensaram o tipo
de cidadania criada no Brasil, e que traços dessa relação um tanto perversa com os direitos
nossas raízes históricas, afirma que as razões para a fragilidade da noção de cidadania em nosso
país estariam baseadas na conjunção da existência de uma hierarquia enquanto valor, apresentada
individualista; e a ação do Estado enquanto ator central, onipresente, seria limite do sujeito moral
e político. Em outras palavras, a posição herdada na sociedade, seja de coronel, seja de escravo,
8
A plantation representa a estrutura da produção colonial e tinha como características a grande propriedade, a
monocultura e a escravidão.
48
Estado era o ator central, não garantidor de direitos, mas sim de privilégios a poucos. Em nossa
origem a cidadania esteve marcada por uma desigualdade, por uma hierarquia de cidadãos.
Velho (1981) alerta que para nós o exercício da cidadania sempre foi constantemente
bairro, reivindicações, sindicatos, greves eram vistos com desconfiança, até o período da ditadura
militar.
Sales (1994) em seu interessante estudo sobre as raízes da desigualdade social na cultura
concedida seria baseada na relação mando/subserviência, que segundo a autora, foi a relação que
marcou toda a classe pobre livre com os senhores de terra, que em troca da obediência, seria a
provedora desses indivíduos, tornando-os dependente de favores. Cabe uma ressalva feita por
Lopes de que não só as classes propriamente pobres, mas outras partes da sociedade, como
“camadas médias urbanas, [...] agregados das casas-grande, partícipes da casa e mesa do senhor,
Neste modelo, a cidadania é entendida como dádiva e não como direito, ou seja, ela
substitui os direitos básicos de cidadania. Para Sales (1994), a cultura política da dádiva
sobreviveu aos engenhos coloniais, à abolição da escravatura, foi pregnante no coronelismo e nos
mecanismos de clientelismo que marcaram a República Velha e chegou aos dias de hoje.
Podemos também identificar esta cultura no regime populista, onde procura-se um messias,
coletividade, mas sim aquele que mostra ter condições necessárias para resolver os nossos
procura no senhor de engenho: bom orador, “fazedor da paz” e generoso provedor de sua gente.
Portanto para Sales, “a cidadania concedida, que está na gênese da construção de nossa
dependia dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando, para
poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil” (1994 : 27). Assim, a cultura política
brasileira é sedimentada na cultura do mando e da subserviência o que leva a uma cultura política
da dádiva. Esta cultura implica necessariamente em um provedor forte, que em nosso caso foi
expresso como o latifúndio, e mais tarde se atualizou na figura do Estado. Mas esse caráter
provedor não está nas características propriamente econômicas, mas sim nas características
sociais, “nas marcas de prestígio e poder do senhor rural”. Esse seria uma figura altamente
ambivalente em nossa história, pois embora fosse ele que controlasse os aparelhos de justiça, os
delegados de polícia e as instituições municipais, é essa figura também a fonte de amparo para o
homem comum perante todos esses controles. Portanto, tinha uma função tutelar para com os
homens livres e pobres. O poder do senhor de engenho não estava necessariamente na posse de
escravos, mas sim no contingente de “agregados”, que tinham para com ele relações de trabalho,
de dependência, de vida, uma vez que sua própria sobrevivência física e social passava por ele. O
50
“favor” era, portanto, a mediação fundamental entre a classe dos proprietários de terras e os
“homens livres”.
liberdade, a pessoa, o lar, os bens dos homens pobres só estão garantidos, seguros, defendidos,
quando têm para ampará-los o braço possante de um caudilho local” (SALES, 1994:29). A
importante notar que os primeiros direitos civis – liberdade individual, justiça, direito à
propriedade – foram outorgados ao homem livre, mediante a concessão dos senhores de engenho.
Logo, a dominação por parte do senhor de engenho era experimentada como uma dádiva,
como algo positivo e desejado, uma vez que só isso asseguraria os direitos.
Esse tipo de relação, que funda uma cidadania apenas concedida como dádiva ao homem
livre e pobre sofreu mudanças mas permanece até os dias de hoje. Podemos ver uma atualização
dela, por exemplo, na relação patrão – empregado, onde para este último o patrão o sustenta, sem
falar que no contexto rural creio que este tipo de relação ainda seja pregnante.
verdadeiramente representativa está que “a nossa República, em suas origens, contou com um
poder paralelo ao Estado, o poder dos antigos ‘coronéis’, remanescentes dos antigos senhores de
na forma de uma pirâmide que vai da massa de eleitores ao governo central” (FERREIRA,
51
2000:205). No entanto, o compromisso não é uma parceria, mas sim uma forma de controle, não
instauração dos direitos elementares de cidadania em nosso país (SALES, 1994 : 32). Na verdade,
oligarquias da Primeira República. Logo, a cidadania continuou tão concedida quanto antes. A
troca de favores passou a se dar agora também entre o poder público, fortalecido, e os senhores
de terra, chefes locais. Seria um compromisso, resultando num “[...] sistema de reciprocidade em
que de um lado estão os chefes municipais e os coronéis com seus currais eleitorais, e, de outro, a
situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força
aos coronéis os favores do poder público. É isso o que resiste desde então, o compromisso entre o
poder público, poder centralizado, e o poder local, que resiste graças aos favores nas formas de
dádivas.
brasileira está na cidadania regulada, formulada por Santos (1994). Com esta conceituação de
cidadania, vemos mais uma vez a afirmação de um conceito de cidadania no contexto brasileiro
caso o Estado; assim como uma manutenção de uma hierarquização, não mais escravo x senhor,
Santos define cidadania regulada como “[...] conceito de cidadania cujas raízes
ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal”
52
(1994: 68). De forma mais simples, são considerados cidadãos somente os membros da
Esta cidadania se aproximaria à cidadania que nomeei de “às avessas”, formulada por Da
Matta (1991), que veremos mais adiante; uma vez que ela é reconhecida e definida por uma lei
outorgada pelo Estado e está ligada a um sistema de estratificação, no caso ocupacional, e não a
ocupacionais que passaram a ter mais direitos que outras. Se a cidadania de Da Matta (1991),
funciona a partir das relações pessoais, a cidadania regulada de Santos (1994) existe somente para
que está intimamente ligada aos direitos sociais, a benefícios como férias, aumento, etc.
brasileiro fala de uma fraca cultura política, fruto da colonização e de relações patrimonialistas de
poder que aniquilam idéias de autonomia, liberdade e cidadania. Segundo ela, “na medida em que
o Estado subordinou a sociedade civil com relações de poder paternalizadas, a vida política
2000:201).
assim, os três parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a cidadania. Os direitos dos
cidadãos são decorrência dos direitos das profissões e as profissões só existem via
53
regulamentação estatal” (SANTOS, 1994: 69). Assim, a associação cidadania e ocupação faz com
que o mercado informal busque a regulamentação de suas ocupações pelo Estado e mostra até
que ponto esta cidadania regulada teve efeitos na ordem social brasileira e na cultura cívica do
jurídico do contrato Estado e cidadania regulada. Podemos pensar que no caso dos jovens pobres,
que ao contrário dos jovens ricos, não possuem uma relação pessoal que lhes assegure seu status
reconhecimento social passa a ser feito por categorias profissionais e a entrada na arena política
via regulamentação das ocupações. “Se era certo que o Estado devia satisfação aos cidadãos, era
este mesmo Estado quem definia quem era e quem não era cidadão, via profissão” (SANTOS,
1994: 70).
distribuição dos benefícios previdenciários, pois quem mais contribuía, mais benefícios podia
demandar. Isso levou a conflitos sociais, uma luta para conseguir este reconhecimento
melhorar sua posição. O controle dos institutos mais poderosos por parte de algumas categorias
Ministério do Trabalho.
Os efeitos são inúmeros e sérios em nossa cultura cívica. Santos (1994) alerta que essa
O preço político pago pela sociedade brasileira foi, na ditadura Vargas, o estabelecimento
de uma relação poder público e sociedade pela extensão regulada da cidadania; e na ditadura
especificidades teria a cidadania no Brasil. Ele defende que ao se falar em cidadania, considera-se
muito apenas sua definição moral, jurídica e política e deixa-se em segundo plano, ou até mesmo,
ignora-se que ela comporta uma dimensão sociológica. Isto evidencia que não se trata de algo
natural, aprende-se a ser cidadão. Esta “institucionalização política do conceito” passou a ser
Segundo Da Matta (1991), a sociedade brasileira é uma sociedade onde a relação pessoal
com a noção de cidadania clássica, que implica um indivíduo, e acima de tudo regras universais.
identidade social informada pela dimensão política e que deve operar e prevalecer em qualquer
complementaridades sociais tradicionais como sexo, idade, cor. Para Da Matta, “como cidadão,
assim, não posso me definir usando meu componente etário ou sexual, já que eu me apresentar
como um ‘homem de 47 anos’ posso produzir um efeito contrário à universalização que o papel
55
de indivíduo e de cidadão promete” (1991: 74). Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que
este papel social “cidadão-indivíduo” opere num meio social homogêneo que garanta seu
reconhecimento.
Logo, a cidadania viria para criar uma identidade social de caráter nivelador e igualitário,
onde os direitos são iguais para todos os “homens”. Abandonaria-se, portanto, o singular e o
No entanto, Da Matta (1991) em seu estudo mostra como no Brasil ocorre uma subversão,
uma perversão desta noção de cidadania, pois a relação pessoal – justamente o singular, a
complementaridade – e não o indivíduo é o que define o cidadão e seus direitos. Como nos diz
Cardoso de Oliveira, “aqui, para que se encontre reconhecimento ou consideração, a pessoa deve
possuir uma identidade específica ou substantiva e facilmente comunicável, qualquer que esta
Assim como Carvalho (2004), para Da Matta (1991) situações históricas e sociais
diferentes engendram práticas sociais diferentes. Enquanto na Europa Ocidental e nos Estados
Unidos a noção de cidadania veio para acabar com privilégios e leis particulares para nobreza e
clero, leis essas que cristalizavam hierarquias locais e diferenciações, portanto para estabelecer o
universal; no Brasil ela veio para reforçar justamente estas hierarquias e diferenciações, como
escravo x senhor, patrão x empregado, rico x pobre. A origem da cidadania em nosso país estaria
em um Estado colonial que operava a partir de instituições e leis que ele mesmo criava, daí a
importância da hierarquia para a definição do papel das instituições e dos indivíduos. Isso está
relacionado à questão do surgimento dos direitos sociais em primeiro lugar no Brasil. Devido a
nossa herança ibérica as leis universais não foram criadas para a liberação da atividade
econômica ou política – como no caso de França, Inglaterra e Alemanha – mas sim por uma
Brasil, acarreta uma inferiorização do indivíduo, pois elas “[...] servem sistematicamente para
perversão do ideário político liberal” (DA MATTA, 1991:79). Nesta, que poderíamos chamar de
Dessa forma, a noção de cidadania no Brasil não é estática mas dinâmica, passível de
desvio para baixo ou para cima, que impede de assumir integralmente seu significado político
universalista e nivelador.
contrário às leis que definem e emanam da totalidade. Já nos Estados Unidos, o individualismo é
Sendo assim, nos Estados Unidos o indivíduo isolado conta com uma unidade
positiva do ponto de vista moral e político; mas aqui no Brasil, o indivíduo
isolado e sem relações, a entidade política indivisa, é considerado como
altamente negativo, revelando apenas a solidão de alguém que, sem ter
vínculos, é um ser humano marginal em relação aos outros membros da
comunidade. (DA MATTA, 1991 : 84)
O indivíduo que não possui ligação com alguém ou algo importante, é tratado como
inferior. Para ser cidadão é preciso dizer a frase mágica: Sabe com quem está falando? Esta serve
para que se consiga um tipo de conduta e papel que contraria a lei geral ou pelo menos permite
seu amaciamento. Logo, “é a relação que explica a perversão e a variação de cidadania, deixando
perceber o que ocorre no caso das diversas categorias ocupacionais no Brasil, onde elas formam
57
uma nítida hierarquia em termos de sua proximidade do poder, ou melhor, daquilo que representa
Dessa forma, a palavra “cidadão” assume uma conotação negativa no Brasil, para marcar
universalizante e impessoal é usado para não resolver e ou dificultar a solução. A solução está no
pessoas implicadas na situação. A relação pessoal cria um fora da lei que humaniza e resgata da
Logo, ser cidadão no Brasil implica em abrir mão de suas relações, o que pode ser até mesmo
perigoso.
Ferreira (2000), assim como Da Matta (1991), ressalta o estilo político estabelecido sobre
a ordem da pessoalidade. Exemplo disso seria nossa famosa “malandragem”, uma interação
“natural” entre a ordem e a desordem, entre o legal e o ilegal, entre o favor e o direito.
Para Da Matta (1991), a rua seria o lugar da impessoalidade, das leis, do universal, em
esquema brasileiro cria uma diferenciação: na rua temos sub-cidadãos e em casa super-cidadãos.
Nas situações da vida cotidiana o brasileiro pode “sentir-se em casa” ou “estar na sarjeta da rua”
Esta forma de cidadania baseada na relação busca a exceção, assim “a lei não está errada,
ela só não deve se aplicar a mim”. Segundo Da Matta, “[...] contra a lei universal, eu me defendo
e faço valer minha vontade e minhas razões não utilizando outra lei universal, mas uma relação
liberal-universalista, as práticas políticas são feitas por pessoas, são pautadas e guiadas pelas
relações pessoais.
na esfera do privado, “[...] sem ultrapassar o nível da camaradagem e do favor, ela deixa escapar
a forma política de fazê-lo” (FERREIRA, 2000:212). Neste contexto, o conflito não leva à
ou conhecido x desconhecido.
sem a participação direta da sociedade, a partir de uma relação sempre tutelada – pelo senhor ou
pelo Estado. Relação tutelada essa que nos remete a questão principal dessa dissertação, seja ela,
Além disso, a série mando/subserviência que no Brasil foi encenada nas figuras senhor/escravo
Também a prevalência dos direitos sociais em nossa história serviu como não-cidadania,
onde por se ter, ou para se ter este direito, abria-se mão dos demais. Novamente, é como a
participação de crianças, onde a tensão sempre tende para a proteção e provisão, em detrimento
militar) onde a “proteção” através dos direitos sociais teve como contrapartida a perda da
A partir deste pequeno panorama, pode-se concluir que a cidadania sem a participação
social e política efetiva mostra-se precária, ou somente válida e existente na “letra da lei”.
“abertura”, que podemos localizar como surgimento da sociedade civil, que veremos adiante,
deu-se principalmente através de cultura. A participação política stricto senso parece estar
o instituído.
Isso faz ressonância para a questão aqui tratada da cidadania de crianças e jovens, na
medida em que este exercício de cidadania só poderia ser aprimorado, este saber político só
poderia ser alcançado a partir da contínua prática. O atraso em permitir a participação de crianças
e jovens também só pode levar ao retardamento da incorporação destes sujeitos à vida política.
Assim, podemos dizer que uma cidadania sem a participação, torna-se um conceito vazio
de sentido. Ao longo da história, a cidadania sempre veio de cima para baixo, sendo concedida,
regulada e não fruto de lutas e de conquistas pelo exercício dela. A própria origem dos direitos se
vemos em quando a sociedade se viu convocada a exercer seu direito – quando começou a ter o
direito ao voto – não soube como. Esta distância (=não participação) reflete-se na falta de prática,
o que por sua vez, reforça opiniões de que o “povo não quer nada”.
60
isso, deve-se questionar a adoção de uma concepção de cidadania estrita e formal, que supõe que
a manifestação política adequada é aquela que se dá no sistema legal, sobretudo através do voto.
Por esses motivos, outras modalidades de participação, menos instituídas devem ser levadas em
conta. Carvalho (2004) apontou que mesmo quando o voto não era (bem) exercido, outras
entre os princípios de justiça e solidariedade, nos quais a falta de respeito aos direitos do
pessoas que se mostram “especialmente dignas de consideração”. Falta justiça no acesso aos
direitos, mas sobra solidariedade, ou como fala Da Matta (1991), relação pessoal. Se no Brasil
temos um desequilíbrio em relação à solidariedade, nos Estados Unidos a balança pende para o
A essa relação direito e participação, talvez possamos aproximar a outra relação concreto
e abstrato, usada nas ciências sociais por Marx e Weber. Esses autores sempre consideraram a
cidadania como uma categoria relacionada às formas de vida concretas dos indivíduos e das
comunidades (AVRITZER, 2002). Como concreto, era entendido a comunidade, como forma real
de vida estabelecida pelos indivíduos, assim como formas de solidariedade éticas de comunidades
específicas e participação; enquanto abstrato seriam as categorias impostas pelo Estado e pelo
direito. Dessa forma, podemos dizer que se esta relação concreto e abstrato são complementares e
cidadania. As bases para cidadania estão na própria dimensão do concreto, ou seja, nas práticas
função das mudanças ocorridas no contemporâneo. Além disso, no que diz respeito à crianças e
jovens, esta cidadania apresenta-se excludente uma vez que parece apoiada em uma lógica
somente ao direito social – educação – mais como um dever de preparação ou como uma relação
tutelada. Vimos também, como, aproximando-se de nosso universo, o contexto brasileiro, esta
princípios mais básicos, onde a relação de direito nunca atuou como intermediador entre o
indivíduo e o Estado, tendo como conseqüência uma cultura política em descrédito, tanto para
Como foi discutido anteriormente, uma outra forma de se conceituar a cidadania pode se
dar a partir da participação. A hipótese a ser desenvolvida nesta dissertação é que a cidadania
estatuto de cidadão para crianças e jovens. A participação possível seria feita no contexto da
possibilitadora de lugar na sociedade para crianças e jovens. Para tal, discutiremos o que vem a
ser esta cultura ou sociedade de consumo e como o consumo possibilita elementos para o
exercício da cidadania. O objetivo do capítulo não é dar conta de uma teorização da sociedade ou
cultura de consumo, mas sim trazer aspectos interessantes dessa discussão para se pensar a
Para se abordar a relação entre cidadania e consumo creio ser importante nos debruçarmos
sobre o papel da globalização e sua implicação com o consumo, já que este fenômeno da
globalização trouxe mudanças profundas para a atividade de consumo. Esta discussão é trazida
aqui, não só por este fenômeno contemporâneo promover mudanças na atividade de consumo,
globalização no sentido de que no primeiro, há fronteiras entre bens materiais e simbólicos entre
sociedades, enquanto que no último, o que se produz no mundo está em todo lugar e é difícil
A globalização não pode ser definida apenas como a existência de um novo sistema de
técnicas de informação, fruto do avanço da ciência do fim do século XX, é também resultado das
ações que asseguram a emergência de um mercado dito global. Para Santos (2000), neste
contexto ocorreria a emergência de uma dupla tirania – dinheiro e informação – base do sistema
ideológico que legitima as ações mais características da época atual e formam um novo ethos de
relações sociais e interpessoais. Este novo ethos seria marcado por um retrocesso da noção de
políticas do Estado, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social.
desfalecimento das fronteiras com o imperativo da globalização, e a essa idéia dever-se-ia uma
dos Estados nacionais, que perdem a capacidade de formular políticas nacionais autônomas
devido à influência do mercado. O problema para ele é que a cidadania está ligada ao Estado
nacional, que por sua vez, encontra-se enfraquecido. A idéia de cidadania clássica ligada ao
território, à nação, não combina com o ideal de uma “democracia cosmopolita” da atualidade,
onde as fronteiras e os limites são cada vez mais frágeis e que supõe uma diversidade de
Canclini (1995) focaliza sua questão sobre a globalização na oposição “próprio” – produto
nacional – e “alheio” – produto de outro lugar, que segundo ele, deixa de existir com a
globalização. Os objetos não são mais nacionais ou estrangeiros. Os objetos são agora
lugares, até mesmo simultaneamente. A partir da existência desses objetos multinacionais não se
pode mais definir uma identidade nacional. “Os objetos perdem a relação de fidelidade com os
traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ter e utilizar”
territoriais, monolinguísticas com regiões e etnias delimitadas dentro de um espaço nação – para
mercados. Trata-se de uma cidadania que sofre a perda dos referenciais jurídico-políticos da
Européia) e que comporta novas formas de pertencimento, cujas redes se entrelaçam com as de
consumo, já que as identidades são mais definidas pelo consumo do que por outras categorias
Canclini (1995) apresenta como principais a transferência relativa ao exercício do poder público
redefinição do senso de pertencimento e identidade, cada vez menos por lealdades locais ou
e objetos de consumo em comum, tem deixado de ser nacional e se tornado cada vez mais
transnacional, devido aos processos de globalização. Para Canclini (1995), vivemos um momento
etnia, classe ou nação. Uma nação hoje é melhor definida como uma “[...]comunidade
modo peculiar com os objetos e a informação circulante nas redes internacionais” (CANCLINI,
contemporâneo, dentre elas, a cidadania, uma vez que vem abalar as estruturas nas quais estão
baseadas o Estado-nação. Dessa forma, o consumo parece então assumir um lugar destacado
noção de cidadania.
66
uma outra perspectiva de cidadania. Para ele, a lógica do consumo exacerbada acaba por
delimitar o consumidor como um novo paradigma de cidadão, uma vez que vive-se cercado por
um sistema ideológico construído em função do consumo, motor tanto de ações públicas quanto
privadas. No entanto, essa lógica de consumo, para Santos (2000), restringe a possibilidade de
cidadania àqueles que não se encontram inseridos nesta lógica. Penso que existam
impossibilitados de participar de forma mais ativa no consumo, mas todos, enquanto membros de
participar enquanto membros, ou seja, têm sua subjetividade marcada por ela. No momento em
que valores referenciais tradicionais da sociedade – como nação, religião, política – parecem não
mais servir como referências, o consumo enquanto cultura parece assumir esta função. Como
afirma Khel, “na sociedade pautada pela indústria cultural, as identificações se constituem por
meio das imagens industrializadas. Poucos são aqueles capazes de consumir todos os produtos
que se oferecem [...] mas a ‘imagem’[...] difundida pela publicidade e pela televisão, oferece-se à
Parece haver um consenso entre os autores (SAID, 2003; CANCLINI, 1995; SANTOS,
globalização, fruto deste projeto. No entanto, ao falarem desta relação consumo e cidadania,
possibilitadora de uma forma de cidadania (CANCLINI, 1995; CASTRO, 1998) enquanto outros
participação política entre Santos (2000) e Canclini (1995). Enquanto o primeiro problematiza a
entrada do consumo na seara política, o segundo defende o consumo como alternativa à atividade
política tradicional. Alinhamo-nos aqui com Canclini (1995) e outros autores no sentido de
encontrar na atividade de consumo uma nova forma de participação cidadã, uma vez que mesmo
podendo ser excludente devido à questão do dinheiro, do poder ou não consumir, atualmente
estariam hoje vivendo sob a égide de uma sociedade de consumo que tem efeitos na produção
desses sujeitos, ao estarem sendo constituídos por condições históricas, políticas e culturais
partir da segunda metade deste século modificou a inserção social dos sujeitos, já que a lógica do
A sociedade contemporânea de maneira geral tem sido definida por muitos como
contemporânea mas que pode ser vista na Modernidade (BARBOSA, 2004; COSTA, 2004).
Nos séculos XVII e XVIII, [...] o grosso da atividade industrial não visava à
fabricação de bens de capital, como se poderia pensar, mas à de bens
supérfluos, como ‘brinquedos, botões, alfinetes, cadarços, espelhos, broches,
cartas de baralho, bonecas, palitos, etc.’, todos itens rotulados pelos políticos
[...] como frivolidades. (COSTA, 2004:142)
68
Creio que resistências frente à idéia de se pensar o consumo como relacionado à cidadania
são oriundas de uma conceituação de consumo associada a uma moralidade e crítica social em
sua análise. Como alerta Barbosa, “a conseqüência [da associação] automática e inconsciente
de consumo e do consumo com debates de cunho moral e moralizante sobre os seus respectivos
desigualdades produzidas pelo capitalismo a uma crítica moralizante sobre o consumo. Bauman,
por exemplo, é um dos autores que compartilham desse pensamento. Para ele, o consumo está
direcionado para o prazer (BARBOSA, 2004). No entanto, podemos pensar se não há uma
avaliação utópica de épocas anteriores, e até questionar se algum grau de hedonismo sempre
esteve presente no consumo, assim como pensar se este seria realmente o único motivo para se
consumir. Como nos diz Costa, “a imagem do burguês indiferente ao Bem Comum e obcecado
pelo consumo de objetos é uma idéia feita que não sobrevive ao testemunho da história. Nem o
idéia de indústria cultural. Segundo a Escola de Frankfurt, o consumo causa uma transformação
redução dos valores da alta cultura aos mais baixos denominadores e uma ausência de padrões e
poder das imagens culturais na produção de mudanças sociais com a necessidade de crenças
69
integradoras para sustentar ou produzir mudanças sociais, em detrimento dos modos como a
restrita somente às “artes” mas sim como uma produção cultural mais ampla, também nas esferas
da ciência, do direito e da moralidade. Uma das principais mudanças da cultura pós-moderna está
O que gostaria de ressaltar é que parece haver uma estreita relação entre consumo e
cultura, um viés o qual muitos autores têm pensado enquanto lugar importante de participação de
crianças e jovens. Através desta relação, valores são colocados em circulação, inclusive por estes
sujeitos. Um exemplo disso é o lugar idealizado e almejado que a cultura juvenil ou adolescente
tem ocupado em nossa sociedade atualmente. Kehl (2004) nos conta que este prestígio é recente,
principalmente através do consumo, foi a maior responsável por isso, uma vez que os valores e
medida em que os objetos culturais, enquanto objetos materiais, ajudam a estabelecer o sentido e
surgir outros modos de participação e inserção social. Para ele, as pessoas quando interpeladas
[...] muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que
direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses
– recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e meios de
comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia [...] .
(CANCLINI, 1995:13)
televisão para conseguir o que as instituições cidadãs não proporcionam: serviços, justiça,
Talvez pudéssemos ir além e afirmar que novas formas de participação coletiva hoje
estejam marcadas pelo consumo, trazendo novas características ao político. Dentre essas novas
características podemos citar uma nova configuração do espaço público, uma mudança no
seara política, etc (AVRITZER, 2002). A separação privado-público pensada por Arendt não
parece mais condizer com o que acontece hoje. Uma sala de uma casa pode ser mais pública do
que uma praça, e o consumo, que estaria ligado ao oikos, ao privado, aparece como algo público,
como lógica do coletivo. Dessa forma, como nos diz Canclini (1995), as identidades não são mais
definidas por essências a-históricas, mas configuradas no consumo. Dependem daquilo que se
possui, ou daquilo que se pode chegar a consumir. Estas identidades se tornam instáveis, pois
contemporaneidade.
71
Para dar conta da suposta degradação do político, Canclini (1995) sugere que se concentre
no núcleo daquilo que na política é relação social: o exercício da cidadania. Defende a cidadania
vinculada ao consumo, pois é através da prática desta atividade que pertencemos, fazemos parte
de redes sociais. Para ele, “[...] quando selecionamos os bens e nos apropriamos dele, definimos
o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos com que nos integramos e nos
1995:21).
[...] ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos
aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as
práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que
se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes
de organização e de satisfação das necessidades. (CANCLINI, 1995:22)
É interessante esta nova forma de definir quem é o cidadão, pois desloca-se de uma
definição jurídica para uma definição social, através de práticas sociais e culturais onde crianças
que sinaliza para formas socialmente estruturadas, pelas quais as mercadorias são usadas para
hábitos, identidades e diferenciações. No entanto, como bem ressalta Barbosa (2004), o uso da
No entanto, penso que a diferenciação, apesar de toda desigualdade social e toda ênfase
dado ao luxo e à “boa vida” na atualidade seria menos exclusiva do que de uma sociedade de
classe, mais rígida onde um pária “nunca” poderá ascender à condição de brâmane.
Nas sociedades tradicionais – como a sociedade de corte francesa – status e estilo de vida
eram variáveis dependentes entre si e independentes de renda. “Isto quer dizer que a posição
social de uma pessoa determinava o seu estilo de vida, independentemente da sua renda, ou seja,
das condições objetivas que esta pessoa possuía para mantê-lo e menos ainda do seu desejo
pessoal de querer fazê-lo ou não, sob pena de ser excluído da sociedade de corte” (BARBOSA,
2004:20). Esta relação de dependência entre status e estilo de vida e de independência em relação
liberdade de escolha e autonomia na decisão de como queremos viver prevalecem, desde que se
tenha como arcar por essas escolhas. Portanto, se na atualidade, argumenta-se que há uma
exclusão baseada na condição social, na desigualdade social, antes não deixava de haver
exclusão, só que o parâmetro era outro. Além disso, trata-se de uma exclusão na atualidade que a
meu ver, se dá de outra maneira, pois como o consumo é o do signo e não da mercadoria em si,
um jovem rico pode usar um tênis de “marca”, assim como o jovem pobre, que pode lançar mão
cidadania. O consumo serviria como novo paradigma da cidadania, pois “serve para pensar”. O
consumo seria o momento do ciclo de produção e reprodução social, lugar em que se completa o
73
processo iniciado com a geração de produtos, onde se realiza a expansão do capital e se reproduz
a força de trabalho. Não se trata de necessidade ou gastos. No consumo não se trata somente de
econômica e contando com uma alienação do sujeito à ideologia do consumo, o que levaria a um
essencialmente cultural. Através de atividades cotidianas como beber, comer e vestir, mediações
entre significados e a vida social são estabelecidas e afetam identidades, relações e instituições
sociais, como a cidadania. Portanto, trata-se de não reduzirmos a atividade de consumo somente à
esfera de produção. Um argumento para tal está em, por exemplo, dizermos que ao contrário do
que se pensava até pouco tempo, uma revolução do consumo precedeu a Revolução Industrial, ou
seja, a industrialização só pôde ocorre em bases capitalistas a partir da existência prévia de uma
demanda (BARBOSA, 2004). Como bem ressalta Costa, há que se distinguir a intenção de quem
mercadoria não interpreta o valor do que adquire da mesma maneira que o produtor/vendedor”
(2004:159). Ao se comprar pode-se querer atingir outros objetivos que não o lucro. Pensar a
questão da cultura de consumo é não mais considerar o consumo enquanto derivado da produção
(FEATHERSTONE, 1995). Uma ocasião em que o consumo torna-se uma atividade cidadã
74
importante de se ressaltar seria o consumo político, onde o consumidor faz do seu consumo um
ato político e percebe seu poder influenciador e transformador. Um exemplo deste consumo está
nas questões ligadas ao meio ambiente, através de boicote de alguns produtos que contribuam
aspecto da economia global política de sociedades. Trata-se de uma função de uma variedade de
práticas e classificações sociais, e não uma emanação misteriosa de necessidades humanas, uma
resposta mecânica à manipulação social ou restrição de um desejo voraz e universal por objetos
disponíveis. Logo, “Demanda é [...] a expressão econômica da lógica política de consumo e logo
sua base deve ser procurada nesta lógica” (APPADURAI, 1986 : 31).
Em seu estudo sobre a relação mercantil e a política, Appadurai (1986) aponta que há uma
consumo. Propõe assim uma nova perspectiva para a circulação de mercadorias na vida social.
Para ele, ao se falar em consumo não se trata somente de economia, pois há uma dimensão
política na troca econômica, pois é esta troca que cria o valor incorporado nas mercadorias. A
política está justamente na ligação troca e valor. Recorrendo a Simmel, Appadurai (1986) afirma
que a troca não é um sub-produto da valorização mútua dos objetos, mas sim sua fonte. É na sua
O consumo carrega um caráter social, pois trata-se de mercadoria, algo feito para a troca,
ou seja, socializável. Ao se falar de consumo, não estamos falando simplesmente de coisas, mas
pelo homem, um valor social. “[...] mercadoria são coisas com um tipo particular de potencial
social, distinguíveis de ‘produtos’, ‘objetos’, ‘coisas’, ‘artefatos’, e outras coisas – mas somente
75
em alguns aspectos e a partir de um certo ponto de vista” (APPADURAI, 1986 : 6). Ao estarem
servem para pensar e ordenar politicamente cada sociedade, pois “o consumo é um processo em
1995:59). O desejo de possuir não atua como algo irracional ou independente da cultura coletiva
da cultura coletiva. O consumo não é algo totalmente privado, atomizado e passivo, mas sim
O que torna a sociedade contemporânea marcada pelo consumo é que agora trata-se de um
consumo específico, consumo de um signo – commodity sign. Featherstone (1995) enfatiza que a
contemporânea, uma vez que os bens materiais funcionam como comunicadores e os princípios
de mercado – compra, venda, troca – operam no interior das esferas dos estilos de vida, bens
uma economia de mercado, como também do ponto de vista cultural, tem o consumo como
principal forma de reprodução e diferenciação social. “Os objetos e as mercadorias são utilizados
como signos culturais de forma livre pelas pessoas para produzirem efeitos expressivos em um
cultura e vida social estão novamente alinhados, agora na forma da estética de commodity,
de uso do valor de troca. A mercadoria e sua associação é exclusiva – eu diria muitas vezes –
76
Baudrillard dá ênfase há uma manipulação dos signos por parte da mídia, propaganda e
marketing. A meu ver, a associação simbólica pode ser feita independente da manipulação e de
forma espontânea pelo sujeito. Ou como sugere Costa (2004), a partir da hipótese ecológica da
motivação psicológica – onde a relação do organismo humano com seu ambiente é o pano de
fundo para expressão da vida emocional – o sentido que o objeto pode vir a ter depende da
relação sujeito-mundo. Para ele, o problema do consumo está em uma transformação da moral
corporificarem ideais éticos, passaram a serem consumidos para auto-absorção no próprio corpo,
tornaram-se descartáveis, pois não herdam mais o sentido moral e emocional que já tiveram. Não
são os objetos que teriam uma natureza alienante, mas nossos ideais de felicidade que mudaram.
Já Sennett (apud COSTA, 2004) traz uma interessante discussão sobre a função dos
objetos na sociedade. Para ele, a cultura da intimidade, surgida no século XVIII e XIX, ao trazer
estar no mundo. “As crenças emocionais [...] encontraram na apropriação dos objetos um meio de
distinto, implicava em materializar caráter e gostos em objetos que poucos ou ninguém possuía.
O núcleo da personalidade para Sennett dividia-se tanto no interior sentimental quanto nos
mais que nunca, lança-se mão de objetos para a construção e afirmação da identidade. Podemos
ver hoje em dia, como o engajamento de jovens em campanhas e mobilizações sociais, na maioria
das vezes, necessita de um substrato material, seja uma camiseta ou uma pulseira. Há aí a
associação do aspecto hedonista a uma função pragmática e social. O hábito de comprar não é
77
transição entre o potencial biológico e a manifestação cultural, o fato emocional não teria como
se tornar visível, entendível, partilhável por todos. Esta realização concreta ou material pode ser
uma flor, no contexto de uma relação amorosa, ou o uso de papel reciclável na defesa de uma
causa.
No consumo trata-se de uma relação dialética onde não só se envia como também se
recebe mensagens. Os jovens introduzem na cultura seus valores através de seus desejos,
costumes e práticas; ao mesmo tempo que consomem o que a cultura disponibiliza. Slater (apud
BARBOSA, 2004) afirma que a cultura do consumo implica que os valores relacionados à
atividade de consumo transbordem para outras áreas até então certificadas por outros critérios,
A cultura de consumo, no que diz respeito à crianças e jovens, possibilita um status mais
igualitário através da identidade de consumidor. Como nos diz Castro, o consumo “[...]
desmontou a visão de que as crianças deveriam esperar por um tempo ulterior para se integrarem
na dinâmica social, empurrando, assim, as crianças e jovens para o cenário social tornando-os
consumo, neste caso, está justamente na integração de novos atores sociais ao fazer coletivo da
cultura. “Como consumidoras, as crianças adquirem um tipo de cidadania que as faz iguais aos
demais, que também são apenas consumidores em potencial” (CASTRO, 1998: 60). O consumo
em uma posição não só de objeto de tutela, nem de sujeito de direitos, mas de ator e participante.
78
relações entre cultura e política. Afinal, a proposta é pensar uma cidadania a partir de uma via
cultural, embora cidadania esteja mais tradicionalmente ligada ao âmbito do político. Há, no
entanto, uma certa ressalva em se fazer aproximações entre essas duas dimensões. O principal
questionamento sobre a intersecção entre esses dois campos reside, segundo Eagleton (2000), na
idéia de que a política é o campo do conflito, das lutas, dos antagonismos; enquanto a cultura
teria como objetivo e condição a abolição e resolução desse conflito, em um nível imaginário.
emancipatórias, uma vez que reinava a doutrina da igualdade, e não havia lugar para a diferença.
Cultura e sociedade eram excluídas da política e da economia, pois estes eram “value-free” e a-
culturais e a-sociais. Na atualidade, não se pode afirmar isso, pois “somente em uma sociedade
cuja existência cotidiana fosse seca de valores, poderia a cultura chegar a excluir a reprodução
tipo de pedagogia ética que nos formata para a cidadania política liberando o ideal ou self
coletivo em nós [...]” (EAGLETON, 2000:7). Ou ainda, a defesa de que a melhor preparação para
independência política é o exercício da cultura apontando uma relação direta entre política e
cultura. A idéia de que uma humanidade produziria uma cultura que então estabeleceria uma
política é falsa, apóia-se na idéia de preparação. Na verdade, a política é que controlaria uma
cultura a fim de promover uma versão particular de humanidade. Portanto, vemos que uma
consumo própria de crianças e jovens, estamos assumindo o sentido de cultura a partir das
indicações de Raymond Williams: cultura como modo de vida e como estética (EAGLETON,
79
2000). A título de conceituação, cultura poderia ser definida como um “complexo de valores,
(EAGLETON, 2000:34). A cultura como modo de vida considera uma diversidade de existências
em diferentes contextos (nações diferentes, dentro de uma mesma nação, momentos diferentes), o
que ao contrário de uma idéia de cultura normativa universal, torna-se âmbito de disputa e
conflito entre essas diferenças. Já a cultura como estética, apresentada principalmente pelos pós-
modernistas, teria a condição de ser moeda mesmo de embate político enquanto expressão de
signo, significado, valor, identidade de um determinado grupo. “Na Bósnia ou Belfast, cultura
não é o que se coloca para escutar, é pelo o quê você mata” (EAGLETON, 2000: 38).
Eagleton afirma que a cultura “[...] é um antídoto para a política moderando sua visão
fanática e seu apelo de equilíbrio, mantendo a mente sinceramente despoluída [...]” (2000:17). No
entanto, ele mesmo irá se contradizer ao afirmar que por permitir diferentes modos de vida,
diferentes manifestações estéticas, ela se torna partidária, logo conflituosa, e não totalizante.
É ele também quem nos diz que a cultura é uma força política, pois fornece os termos nos
quais um grupo pode procurar e almejar sua emancipação política. Pode ser definida como um
experienciada e explorada. Ela provém uma estrutura simbólica para aspectos importantes ao
social. A cultura, enquanto força política, “[...] pode transfigurar a mesma ordem social do qual é
interação entre crianças e mulheres negras responsáveis por seu cuidado, promoveram uma re-
80
invenção da linguagem dos costumes e dos hábitos até então, contribuindo assim para uma re-
A cultura visa não a crítica da vida, mas sim a crítica a uma forma de vida dominante ou
majoritária por uma forma de vida periférica. Assim, a criança e o jovem através da cultura de
consumo contribuem para a construção de uma comunidade política, a partir da diferença que
9
Aula ministrada em 31 de agosto de 2005.
81
ATRAVÉS DA CULTURA
Fala-se muito sobre a pouca participação e desinteresse dos jovens em relação à política.
Sobre a época da ditadura militar, um tempo de grande agitação e mobilização política, Velho
(1981) realizou um estudo sobre a classe média, e que embora não tivesse esse objetivo, acabou
colhendo dados relativos a representações e comportamentos políticos dessa classe social. Este
estudo revela um grande desinteresse dos adultos então pelo o quê normalmente se entende por
política. Este desinteresse refletia-se, por exemplo, no meio de comunicação mais utilizado por
essa classe, a televisão, no qual os assuntos que mais agradavam eram sempre relativos à futebol,
problemática e somente a partir do final dos anos 80, mostrou-se mais organizada e efetiva.
Assim, crianças e jovens somente recentemente encontraram um capital social – uma herança de
representação política e a sua relação com o nível de mobilização política dos cidadãos ou a
82
tradição cívica das sociedades” (2005:46-47) influem na compreensão dos níveis de participação
dos jovens.
Vimos como foi estabelecida uma relação “tutelada” entre a sociedade e o Estado, onde o
exercício pleno dos três direitos dificilmente aconteceu e como, ainda mais, o direito à
participação política ou à herança social não foi conquistado, reivindicado, mas sim “concedido”
ou “regulado”. Como traz Carvalho (2004), a prevalência e precedência do direito social acabou
reforçando essa tutela pois as reivindicações sociais obrigava os cidadãos a abrir mão da
condição própria de cidadania. Para ser protegido, deveria deixar-se de ser cidadão.
e torna possível a presença de crianças e jovens nesta comunidade, neste capítulo buscou-se
aprofundar esta articulação de como a cultura de consumo parece ser o pano de fundo sobre o
qual pôde ser desenvolvida a participação política e social de crianças e jovens. Ao fazer isso, a
cidadania. A participação política está sendo entendida aqui não como restrita às identidades
eleito e eleitor, mas como manifestação e participação nos destinos da sociedade. A importância
da participação social por sua vez está na presentificação destes sujeitos enquanto um grupo
social relevante.
competência social, que por sua vez, avalizaria a competência política. A competência social é
possibilidade de se realizar algo. Logo, participa somente quem se acha apto a participar e tem
sua participação reconhecida. Para Bourdieu, “ter competência significa ter o direito e o dever de
83
ocupar-se de algo” (1984:254). O que está por trás de uma competência política é uma
Isto não quer dizer que a competência técnica não existe, sim que a propensão a
adquirir o que se chama de competência técnica aumenta à medida que cresce a
competência social, quer dizer, à medida que alguém tem maior
reconhecimento social como digno de adquirir esta competência [...].
(BOURDIEU, 1984:254-255)
Em outras palavras, são aceitos como tecnicamente competentes os que são socialmente
designados como competentes, e basta designar alguém como competente para causar uma
começam a serem vistos como competentes socialmente, condição para que se tornem
De outra forma, podemos falar do sentimento de ser cidadão como sendo um sentimento
de pertencimento e de competência. “[...] ser um cidadão não é simplesmente crescer para ser um
adulto competente socialmente, e então simplesmente sair para o mundo do dia-a-dia para
que parece importante é a maneira pela qual o posicionamento de alguém, não somente dá origem
a sentimentos que motivam e guiam na luta para ser cidadão, mas também, dá (ou não) acesso a
fontes ontológicas necessárias para estar apto a participar corretamente nesta luta.
A participação cidadã de que trata esta dissertação seria definida como uma forma mais
ampla de participação política e social, tendo a cultura como facilitadora de seu desenvolvimento
e expressão. A participação política não estaria mais restrita ao voto, que está longe de esgotar as
formas de representação e intervenção pelas quais pode se dar essa participação, mas sim definida
como manifestação e participação nos destinos da sociedade e podendo assumir diversas formas
como abaixo assinado, contato com um político, consumo político, entre outros. A participação
84
social.
A cultura atua assim como local de manifestação dessa participação, sendo, portanto, “[...]
meio de concorrência pela atenção pública, entendendo esta como o mecanismo intermediário
que liga a opinião pública ao sistema político representativo” (CASTRO & CORREA, 2005:17).
Assim, a influência nos processos decisórios pode ser indireta, pela criação de alternativas de
expressão e presença, e não apenas pela inserção formal e instituída de representação política.
democracia representativa, pois essa forma de participação aponta para outras vias de
democracia, ligada, por exemplo, à cultura, ao consumo político, etc. A manifestação cultural
como modo de falar político possível tem mais efeitos na prática e não fica restringida ao
domínio da lei.
Se fizermos uma pequena incursão em nossa história veremos que o jovem de alguma
consumo teve como canal de comunicação e expressão de valores dos jovens, como maior
sociedade de consumo não seriam fenômenos interligados, se a juventude como entendemos hoje
Se a infância tem seu “surgimento”, enquanto categoria específica tal como hoje a
tradicional para a sociedade moderna – século XVII –, podemos talvez afirmar que a
adolescência aconteceu muito mais tarde, no início dos anos 50 – século XX – com o surgimento,
que a adolescência seria um mito inventado no começo do século XX, que vingou, sobretudo no
pós-2a guerra mundial. Anteriormente, até existia como faixa etária, mas não enquanto grupo
modernidade tardia que essa moratória se instaura, se prolonga e se torna enfim mais uma idade
onde a morte se tornou uma experiência individual, não mais submetida e continuada na vida da
individualizada, não há mais lugares pré-estabelecidos que o sujeito ao nascer vem a ocupar
numa rede social. Agora, espera-se que se construa e invente um lugar para si, uma posição
A infância é uma invenção moderna, a idéia de um tempo de vida distinto da idade adulta,
miticamente feliz, protegido pelo amor dos pais e, não definido simplesmente pela espera
apressada de se tornar adulto. Graças às crianças e aos jovens, a insatisfação torna-se suportável
pois os pais e os adultos estendem a elas o sentido e a expectativa de suas vidas. “A infância
2000:65). Podemos pensar que esta proibição de participação para crianças e jovens venha da
talvez o corpo e o espírito estejam prontos, mas não sejam reconhecidos como tal. Daí ser
onde, paradoxalmente, ele se marginaliza logo no momento em que viria a se integrar. Pois o que
lhe é proposto é tentar, ou melhor, forçar, sua integração justamente se opondo às regras da
comunidade” (CALLIGARIS, 2004:33). Logo, talvez esta seja a explicação para que até pouco
tempo prevalecesse duas tendências interpretativas para a juventude, vista como delinqüente ou
revolucionária.
O que na infância é proibição, torna-se uma promessa na adolescência que funciona como
espelho. Para Calligaris (2000), a semelhança física com o adolescente ajuda a manter estes
sujeitos protegidos pois a felicidade seria “mais gratificante”, mais próxima pois trata-se de um
ideal não só comparativo mas também identificatório. O adolescente seria a imagem do adulto,
que espreita qualquer cultura que recusa a tradição e idealiza liberdade, independência,
insubordinação, etc” (CALLIGARIS, 2000:73) por que permiti-los participar e acabar com esse
lugar? A partir desta identificação a um ideal adolescente baseado em uma imagem de felicidade,
87
promessa, liberdade, gozo, irresponsabilidades; talvez haja por parte dos adultos um esforço em
década de 50. Os motivos dessa preocupação em conhecer o jovem estão relacionados à relativa
autonomia que estes conseguiram em relação aos pais, o alongamento do período escolar e o
no final do século XIX, que acabou atingindo também os elementos da cultura, criando o que
passou a se chamar “indústria cultural”. A cultura de massa não está restrita a um grupo social
meios de comunicação (cinema, rádio, TV, disco, fotografia, etc) passaram a alcançar um número
cada vez maior de pessoas sendo caracterizada agora como cultura de massa. “O que temos,
Para Heller (1988), ao contrário das previsões mais pessimistas, a cultura de consumo não
trouxe uma padronização de gostos como na cultura de classe10, mas sim uma enorme
10
Para a autora, antes da Modernidade e do surgimento da divisão de trabalho moderna, a cultura era sub-dividida
em uma cultura superior – da aristocracia – e uma cultura inferior – camponesa – , cada uma com regras, padrões e
elementos particulares, que não admitiam a entrada de novos elementos (Heller, 1988).
88
cultura de que estamos falando, como veículo de participação para os jovens, sempre foi
as “formas de vida e padrões culturais podiam agora ser escolhidos em toda liberdade, sobretudo
pela nova geração, e hábitos culturais antes exclusivamente ligados a classes começaram então a
O que até então era definido por Heller (1988) como cultura de classe, passa a ser algo
mais flexível, onde elementos de outros lugares em escala global passam a ser assimilados
também. O surgimento da cultura jovem, portanto foi possível com o declínio da cultura de classe
reconhecido nele pelos adultos. Talvez tornando-se este ideal os jovens tenham conseguido
visibilidade e relevância. “Tudo leva a fazer da adolescência um ideal social. É até bem possível
cooptado pelo consumo, o que pode ser visto como algo negativo, como uma submissão a uma
cultura de massa; o jovem se manifesta. Algo – uma idéia, um ideal, um produto, uma maneira de
se expressar, de vestir – é apresentado por um sujeito ou por um grupo, que então é absorvido
89
pelo consumo. Logo, o jovem através da moda, por exemplo, introduz seus valores na sociedade.
A juventude antes de ser mercadoria para consumo, é idéia, valor, e por ser absorvida pelo
consumo, consegue difundir essa idéia e valor. Um exemplo disso está nas novas pesquisas de
marketing, no qual empresas coolhunting, são voltadas para a captação de tendências de consumo
em meio à cultura jovem. Esta caçada ao cool11 visa descobrir quais, dentre a milhares de coisas
que estão acontecendo na cultura jovem, serão mais importantes no sentido de constituírem
provocando atitudes críticas por parte da juventude. “[...] o jovem, a partir da criação e do
tornaram possível à sociedade refletir sobre uma nova realidade histórica” (BRANDÃO &
DUARTE, 1990:8).
e valorização de sua identidade, seus valores e estilos de vida. “Mas interessam ao mercado
também pela influência que exercem sobre a decisão e a consolidação de modas, que
através do consumo ocorre uma verdadeira reviravolta onde o modelo adolescente reconhecido
pelo adulto – de liberdade, juventude e novidade – torna-se o almejado por ele. Até os anos 50, o
ideal, principalmente estético dos adolescentes era a idade adulta. Antes dos anos 50, não havia
oposição jovem x não-jovem. Existia o “homenzinho” (CARMO, 2001) que buscava se vestir
como um adulto.
11
Maneiro, legal.
90
Para Brandão & Duarte (1990), os jovens representam os principais articuladores dos
movimentos de transformação social das últimas décadas, configurando-se como novos atores
sócio-históricos com novo discurso e nova prática social. A chamada “cultura da juventude” teve
sua origem nos anos 50 e seria definida por um sistema próprio de valores, dentro e fora dos
devido à explosão demográfica e à expansão econômica. Neste contexto, surgiu uma cultura
A partir dos anos 60 – neste contexto – a juventude passou a apresentar críticas mais
contundentes à sociedade moderna, “[...] não só negando os seus valores, mas tentando criar e
introduzem para discussão na sociedade temas e questões como drogas, sexo, racismo, ecologia,
partir do que venho apresentando, pode ser definida como sinônimo de uma cultura da juventude,
e mudanças sociais.
91
Brandão & Duarte (1990) também contextualizam o surgimento de uma cultura jovem
nos anos 50, mais especificamente nos Estados Unidos. O pós-guerra americano fez com que o
pós-guerra. Com isso, a partir de 1950, essa sociedade possibilitou o surgimento de uma cultura
jovem, fazendo com que grande parte da indústria cultural fosse dirigida à juventude norte-
americana através de revistas, filmes, discos, etc. O mercado voltou-se então para esta emergente
cultura jovem.
Neste momento, surge o rock and roll que trazia uma mensagem contestadora e
revolucionária.
Segundo alguns autores, o rock and roll funcionou como uma inversão
psicológica na relação dominador (branco)/dominado (negro) que prevalecia na
sociedade norte-americana. A cultura promovida pela juventude, a partir do
rock and roll, seria uma forma de os jovens de classe média branca se
colocarem como oprimidos em relação à sociedade estabelecida por seus pais,
assumindo, mesmo que inconscientemente, certos valores da cultura negra
como bandeira. (BRANDÃO & DUARTE, 1990:20-21)
O rock and roll foi um canal de expressão para os movimentos jovens no final da década
de 60 e que mudou os valores de toda a sociedade. Sua importância pode ser apontada no
surgimento e expansão de uma música negra para um mercado nacional, de maioria branca, que
refletiu a luta pela afirmação dos direitos civis dos negros durante a década de 60. Vale ressaltar
que somente em 1964, foi decretada a Lei dos Direitos Civis, que tornou ilegal a discriminação
racial nos Estados Unidos. O rock and roll chegou ao Brasil via cinema, e encontrou uma
O Brasil foi um dos países influenciado pela difusão da cultura americana na década de
contribuiu para a influência da cultura estrangeira, que foi incorporada pela classe média e
postulava idéias e agia de modo oposto aos valores apregoados por uma sociedade considerada
O ponto alto deste movimento ocorreu na França e ficou conhecido como Maio de 68.
Consistiu de protestos estudantis que acabaram desencadeando uma greve geral de 10 milhões de
trabalhadores, com paralisação de toda vida social francesa. Essas manifestações demonstraram
que as entidades organizadas (partidos, sindicatos, etc) não detinham o monopólio da iniciativa
política. Nesta época, houve até a criação, nos Estados Unidos, de um Partido Internacional da
Juventude (YIP) que reivindicava, dentre outras coisas, a legalização da maconha e o direito de
voto para maiores de 12 anos e restrito a maiores de 50 anos. Estudantes em vários países do
ditadura.
para a política, onde os processos de contracultura foram assimilados. “[...] o final da década de
93
60, a nível mundial, foi realmente um tempo de muita agitação, esperança e inovação nas formas
de participação política dos jovens, que emergiam como a principal força transformadora da
dos partidos tradicionais, deu-se início a uma nova forma de contestação e mobilização social.
Consolidava-se cada vez com mais vigor a transformação da juventude, como grupo etário, num
feminista e na atualidade influencia inúmeros outros movimentos, como o de defesa dos direitos
No Brasil, vemos o fortalecimento da UNE e seu Centro Popular de Cultura (CPC), que
participar de algum modo dos acontecimentos políticos do país, e levou alguns jovens a se
A UNE, na ilegalidade desde 64, liderava os protestos, através de greves e passeatas nos
quais se protestava contra a falta de liberdade e contra a política educacional do governo Castello
Branco, que queria transformar as universidades públicas em fundações privadas com cobrança
de mensalidades.
através de suas letras representaram as primeiras manifestações que abordavam o corpo como
fonte de prazer, o amor, o namoro, os beijos, considerados então elementos de transgressão dos
valores moralizantes da época. Além dele, movimentos culturais como o Cinema Novo e o
Tropicalismo, que fundiu elementos tradicionais da música popular brasileira com a modernidade
Após este momento de maior efervescência e agitação, nos anos 70 aparece o fenômeno
da discoteca, que ao contrário dos movimentos anteriores, tinha uma relação bastante distante das
questões políticas. No entanto, a reação veio com o movimento punk, caracterizado por uma
postura autocrítica, e altamente crítica em relação à sociedade. Seu surgimento foi conseqüência
da crise econômica pela a qual o mundo ocidental passava neste momento com o aumento do
desesperadora e sem perspectiva da juventude, o punk tinha como lema: “Faça você mesmo!”,
exercido no surgimento das revistas de fanzine, nas gravações independentes, nas roupas criadas
12
Em 1970, 56% dos 500 presos políticos eram estudantes ou haviam sido da juventude revolucionária (Carmo,
2001).
95
No Brasil, o movimento punk aconteceu mais tarde, no final dos anos 70 e início dos anos
80, e pela primeira vez, foi um movimento que teve origem e se desenvolveu na juventude pobre,
classes trabalhadoras, desemprego, exclusão social, repressão da polícia. Para Carmo (2001) não
se tratou de uma cópia importada, mas sim de uma identificação – com o discurso de revolta
inglês – adaptada a nossa realidade. “Ser membro do movimento significava ‘pertencer’ a algo,
ser alguém, ter a oportunidade de fazer amigos, de compartilhar diversões comuns, de expressar
algo que envolvesse criação cultural” (CARMO, 2001:147). O jovem então, com sua morbidez e
seu sentimento de vazio existencial, era sintomático de uma época marcada pela recessão,
desemprego e desespero.
ganha força com os jovens londrinos da classe operária identificados à situação de miséria da
população do Terceiro Mundo. Talvez hoje no Brasil, observamos este mesmo fenômeno na
Para Heller (1988), os movimentos culturais a partir dos anos 80 consistiam em uma
geração pós-moderna, onde a mensagem era vale tudo. “ ‘Vale Tudo’ pode ser lido da seguinte
maneira: Você pode se rebelar contra qualquer coisa que queira, mas deixe-me rebelar contra a
coisa determinada que eu quero. Ou alternativamente, deixe-me rebelar contra nada, porque eu
movimentos de hoje, mais individualistas e realistas. Diz ainda que não é que fosse uma geração
apolítica, apenas não defendia qualquer tipo de política particular. Heller (1988) valoriza esta
96
geração como sendo a da vitória do relativismo cultural, uma “onda” que comporta todos os tipos
de movimentos artísticos, políticos e culturais. Vale a saúde, sexo, ecologia, paz, política...
Para muitos autores não houve movimentos contraculturais. Houve movimentos pacifistas, anti-
armamentistas e ecologistas, eventos em prol de causas mundiais como USA for África, Live
Nos anos 80, o rock nacional, através de bandas como Ultraje a Rigor, Legião Urbana,
Ira!, tornou-se um dos principais meios de crítica do jovem brasileiro em relação à triste realidade
social. “Rebelando-se contra tudo e contra todos, o jovem procurou criar uma cultura própria,
alternativa e ligada ao cotidiano, do seu jeito, fora dos padrões estabelecidos pela sociedade”
relação à política no Brasil, com a eleição do primeiro presidente civil em quase 30 anos. Mas o
então presidente da república eleito, Fernando Collor de Mello evolveu-se em uma rede de
frustração muito grande, desilusão e descrença generalizada acabou causando uma mobilização
da sociedade, principalmente através dos estudantes que saíram em passeatas de protesto pela
A importância desses jovens e ao mesmo tempo diferencial em relação aos jovens dos
anos 60, foi principalmente o de serem atores privilegiados em uma ampla mobilização da
sociedade civil e política contra o governo, e não uma oposição Estado militar e movimento
manifestação da sociedade civil. Não foi um movimento que poderíamos chamar de independente
ou espontâneo, mas não se deve cair no ceticismo de atribuir o fenômeno somente à manipulação
pela mídia ou partidos. Apesar dessa suposta manipulação, foi também uma experiência
importante, indicativa de mudanças estruturais e culturais, tanto na vida e perspectiva dos jovens,
Carmo (2001) alerta para o perigo da retroação, de tentar ver “um 68 em 92”. Eram outros
jovens que não queriam rupturas radicais, não pensavam em abandonar tudo por uma causa,
como nos anos 60 e 70. Se nos anos 60, havia uma juventude cheia de certezas, atrevida,
revolucionária, os jovens dos anos 90 eram cheios de dúvidas, buscavam mudanças sem
revolução. Como bem colocou Zuenir Ventura, eram conservadores sem serem reacionários;
narcisistas, mas não egoístas (CARMO, 2001). Até porque o mundo é outro, não há mais
indicadores de certo e errado, bom e mau, tão concretos. “A visão pós-moderna associa-se à
idéia do fim das ideologias. Na atualidade, não se fala mais em grandes movimentos. A revolução
que está sendo travada é molecular. Os jovens de hoje não são tão preocupados em partir para
Carmo (2001) cita Abramo em uma entrevista concedida à época, na qual ela defende que
a geração anos 90 não seria mais apática ou despolitizada do que a dos anos 60 e 70, mas sim,
que os métodos de ação empregados hoje seriam diferentes. Assim como talvez possa ser dito
que a política é diferente. Segundo Abramo, “[...] o enorme e crescente interesse dos jovens pela
cultura pode ser uma forma de participação social” (apud CARMO, 2001:170).
Zuenir Ventura também afirma que os caras-pintadas foram uma geração anos 90, não a
geração, talvez a mais visível. Temos uma outra juventude, os jovens pobres, que passaram a
No Brasil, nos anos 90, a música de protesto aparece de outra forma, com outra origem e
outro discurso. Se na década de 60 sua origem estava em universitários classe média, e tinha
periferia, e retrata as dificuldades de seu dia-a-dia. Sobre a questão da juventude pobre, acredito
que uma ambivalência se constitui frente à cultura de consumo. Por um lado, a partir de sua
condição sócio-econômica, estes sujeitos encontram-se excluídos. Por outro lado, como estamos
observando, é esta cultura que dá lugar para sua manifestação e para que seu discurso torne-se
visível. Empresto a noção de escalas trabalhada por Castro, onde “[...] as escalas são construídas
a partir de negociações sociais[...]” (2004:103) e ouso afirmar que novas escalas são criadas com
a cultura de consumo, com a aproximação feita, no caso entre juventude pobre e juventude rica,
através do mercado de bens e serviços. Vemos por exemplo, como forçam sua inclusão através
escutar o protesto do segundo. Se não podemos notar mudanças num plano imediato e mais
concreto, também não podemos afirmar que não haja efeitos do contato com esse discurso, num
plano mais inconsciente e dos afetos. Além disso, cabe ressaltar que participando enquanto
produtores da sociedade de consumo, estes sujeitos encontram uma maneira de terem acesso à
herança social, incluída nos seus direitos mas não assegurada na prática.
99
extensão da ‘cultura jovem’ para jovens trabalhadores e das periferias, é confirmada por estudos
recentes sobre os jovens brasileiros durante a modernização conservadora dos anos 80”
(1997:143). A identidade jovem era até então muito cristalizada no ser estudante. A partir de
então, outras significações, outras redes acabam estendendo a identidade jovem para uma parcela
maior da sociedade, principalmente por identidades ligadas ao consumo e aos estilos culturais,
O funk tem sua origem nos anos 70, enquanto manifestação cultural suburbana.
Inicialmente defendia a afirmação de identidade e valores negro, como por exemplo, o “orgulho
negro”. Sua origem está diretamente ligada à black music. Aos poucos, foi perdendo seu caráter
de consciência racial e ao se abrasileirar assumiu um caráter mais social, onde o pobre fala de sua
Já o rap – rhythm and poetry – é uma adaptação do canto falado da África Ocidental.
Enquanto gênero musical tem seu surgimento nos anos 60, com jovens adolescentes pobres nos
bairros negros e latinos de Nova Iorque. Enquanto cultura marginal traz temas sobre o cotidiano
das comunidades negras desfavorecidas e a linguagem e rituais das ruas. Além da música, a moda
também foi sua grande divulgadora. A palavra de ordem era “atitude”, que seria uma “[...]
postura íntegra de consciência social e racial, ser coerente com seus princípios e ideais”
(CARMO, 2001:180). As mensagens cantadas pelos MCs – mestres de cerimônia – eram sobre a
comunidade, e não sobre suas vidas íntimas. Interessante notar como ao se difundir pelo mundo,
sempre foi adotado por grupos de excluídos. Se nos Estados Unidos foi pelos negros e latinos
pobres, na Alemanha foi por imigrantes e filhos de imigrantes turcos, na França por argelinos, em
Portugal por angolanos e no Brasil pelos jovens pobres, principalmente nordestinos e negros. Daí
100
o surgimento de grupos como Pavilhão 9, Racionais MCs, que o utilizam como veículo de
instituições, podemos então afirmar que os jovens, através da participação social e cultural,
formas de cidadania e na diversificação dos modos de ação política. Se o voto tem uma
importância simbólica, de passagem para a entrada no mundo adulto, como defende Müxel
(1997), ele por si só, se não acompanhado de outras práticas e vivências perde importância e
valor. O voto por si só não é sinônimo de ação política ou participação cidadã. Um exemplo disso
está na primeira eleição após a Constituição de 1988, onde o voto foi estendido para todos os
maiores de 16 anos, e somente metade dos jovens esperados tirou seu título de eleitor. Como
vimos, anterior a essa competência técnica, deve existir uma competência social, ou seja, o
reconhecimento de que se está apto a adquirir esta competência técnica, no caso, política.
apresentar-se como competentes socialmente, como atores relevantes sendo que suas práticas
tiveram repercussão na sociedade como um todo, com a disseminação de seus valores e com
conseqüências nas práticas de maneira geral (ecologia, preconceito, sexualidade, consumo, moda,
modernismo 13 houve uma “prodigiosa expansão da cultura por todo o domínio social, a ponto de
13
Pós-modernismo marco de mudanças culturais fundamentais Em sua origem, pós-modernismo significava a
perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma tradição de
101
se poder dizer que tudo em nossa vida social [...] tornou-se cultural” (JAMESON apud
FEATHERSTONE, 1995:26).
Se Jamenson está certo, “[...] parece que são os jovens que são os maiores responsáveis
pela manutenção deste nível elevado de produção. Isto coloca jovens, e a aparente facilidade com
a qual participam nesta forma de produção cultural informal, em uma posição mais crucial ainda”
(MCROBBIE, 1994b:179). Muitas dessas produções simbólicas podem então ser interpretadas
como a voz de jovens e a nova subjetividade que circunstâncias sociais em mudança produzem.
Não é mais o caso de levar em conta o argumento tradicional de que a cultura jovem seria
produzida de alguma forma em condições de pureza, e que suas expressões seriam autênticas
num primeiro momento, pelo menos não contaminadas por uma cultura comercial ambiciosa.
Este argumento foi substituído por um entendimento mais amplo das dinâmicas entre cultura,
mídia de massa, comércio e Estado. Os produtos que emergem de espaços para expressão,
descoberto por jovens dentro e fora de instituições que regulam e controlam seus movimentos e
política sobre juventude tradicional. Mas a proliferação de tipos de cabelo e músicas, de eventos e
rituais, de modas e revistas, de imagens e artigos, e a velocidade no qual isso tudo acontece,
mudança e ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da apropriação e da
citação de obras do passado.
102
Esta importância está que ao assumir um viés político, a cultura jovem torna possível a
parece ser desenvolvido em o que parece ser um frenesi de produção cultural. Isto parece para
muitos autores como McRobbie um verdadeiro engajamento com o social. “Cultura jovem, no
formato que tenha, faz um investimento na sociedade. É neste sentido que é político”
(MCROBBIE, 1994a:156).
Um exemplo disso está na forte impressão que os jovens continuam a deixar na paisagem
urbana, contribuindo diretamente para nossa experiência da realidade social. “Eles apresentam
uma versão particular da realidade, e funcionam como textos sociais fortes, sinais de resposta que
indicam um registro ativo de mudanças sociais amplas sobre as quais tais agrupamentos de outra
forma não possuem controle nenhum” (MCROBBIE, 1994a:160). Como traz Pais (2005), a
estática, formatada a partir da concepção de direito, dá lugar a uma cidadania fluida e empática
Essa fluidez é um atributo dessa paisagem urbana e é encontrada na performatividade dos jovens
nela (skaters, grafite, estudantes “zoando” pela rua). Os jovens enquanto marginais “[...] são
tornando-se assim a cultura despolitizada e palatável para o consumo popular. McRobbie (1994)
onde a cultura jovem seria contaminada por “aproveitadores” que forçariam sua entrada nesta
103
cultura em busca de lucro. Segundo ela, seria um modelo que dividiria uma cultura jovem “pura”
de um mundo exterior contaminado, ansioso para transformar qualquer coisa que tivesse ao
alcance de suas mãos em um item vendável. O punk, por exemplo, usou a mídia – predatória,
facilmente explorável e aberta – para publicidade. Para McRobbie, as revistas, músicas, roupas
fazem mais do que publicizar esta cultura pois também fornecem a oportunidade de aprender e
Isso leva a uma experiência de empoderamento dos jovens, principalmente jovens pobres,
uma vez que cria outras oportunidades de carreira e profissão, assim como lhes dá lugar no
social.
cultura e do consumo, um lugar com um status de cidadão que lhes é negado. “[...] uma das
atrações de cultura está precisamente em oferecer uma subjetividade forte através de significados
coletivos que emergem das combinações distintas de signos, símbolos, objetos, estilos e outros
sistemas de significado e valor. Roupas usadas e a ética de reciclagem, por exemplo, não apenas
produzem imagens “retros” nas ruas, elas também fornecem um contraponto à moda cara.
104
uma imagem mais ativa do envolvimento de jovens, mas também encorajar uma dimensão mais
longitudinal que conecta estar em uma cultura com o que acontece ao redor (MCROBBIE,
1994a). Também o elemento estético da cultura jovem, particularmente a interação criativa entre
música, dança, moda e outras formas, ajuda a promover um deslocamento de ser consumidor para
ser produtor.
Nesta nova forma de exercício da cidadania, a participação se torna cada vez mais
orientada por ações pontuais e objetivadas, de acordo com interesses específicos de certos grupos.
A participação agora visa atacar por meios “concretos”, os “verdadeiros” problemas, os do dia-a-
dia e também os que dizem respeito à sociedade em escala planetária. Segundo Müxel (1997),
não se trata de mudar o mundo, mas de tão somente melhorar as coisas. A idéia de associação,
mais do que de filiação partidária, ganha força, como engajamento mais fraternal, onde se tem
um controle mais direto sobre a realidade dos problemas, um laço mais estreito com os atores
parece dar lugar a outras formas de participação como uma forma mais legítima de atuar e
As organizações sociais são pautadas por ações sociais de intervenção direta, desprovidas
direitos e participação, ao mesmo tempo, de criação e ação cultural. Como afirma Müxel (1997),
outros recursos podem ser usados para alimentar e substituir a atividade política, como por
Podemos dizer que um aspecto importante dos movimentos culturais de juventude está em
questionar e encontrar caminhos que fizessem a sociedade rever determinados valores e refletir
105
sobre questões até então ignoradas ou superficialmente discutidas, como drogas, sexo, racismo,
ecologia, pacifismo, etc. Problemas, dúvidas, incertezas e soluções de hoje são fruto da
participação do jovem ao longo da história. No plano político, mostraram que revolução não se
faz apenas através de confrontos armados e partidos políticos, mas também através de idéias,
críticas, protesto. A produção cultural, via cultura de consumo, aparece como principal campo de
manifestação. Da revolução nos costumes que fizeram, vivenciamos seus resultados até hoje.
formas: rádios e jornais comunitários, fanzines, produção de vídeos, dança de rua, coral,
violência, contra a fome, pela cidadania, etc. Como pensa Novaes (2002), é através de atividades
culturais e sociais que os jovens podem trazer para a discussão pública a questão dos sentimentos
Assim, essa forma de fazer política, embora não formatada enquanto ações coordenadas
de participação” que apontam para uma renovação e redefinição da cidadania enquanto dinâmica
social.
106
6 CONCLUSÃO
A presente dissertação teve como objetivo principal pensar de que maneira crianças e
jovens podem, na atualidade, exercer sua cidadania enquanto atores sócio-políticos relevantes.
Esta questão partiu da idéia de que uma concepção clássica de cidadania, atrelada principalmente
apresenta-se como excludente para esses sujeitos. No que diz respeito ao exercício da cidadania,
criou-se uma expectativa de que existiria um patamar a ser alcançado para se ter acesso aos
direitos civis e políticos, patamar este que se encontra marcado por delimitações etárias. Dessa
sujeito, sendo, portanto, restrita sua participação na sociedade. O que se pretendeu apontar aqui
foi que a existência de diferenças entre crianças e jovens, e adultos, não é impossibilitadora para
que estes sujeitos possam exercer sua cidadania, através de uma nova concepção.
A discussão sobre o conceito de cidadania apresentado por Marshall foi abordada, uma
vez que esta conceituação – baseada no modelo histórico inglês e definido a partir de três
direitos: direito civil, direito político e direito social – assumiu a maneira privilegiada de se
definir cidadania. Nessa análise, observou-se como crianças e jovens acabaram excluídos do
acesso a esses direitos, sendo permitido a eles somente o acesso ao direito social, principalmente
à educação. Na verdade, mais do que um direito, a educação é considerada como um dever, uma
vez que esperava-se dessa forma que o indivíduo preparasse sua entrada em cena como cidadão.
Este pensamento apóia-se em uma estratégia desenvolvimentista que considera crianças e jovens
como sujeitos em preparação, sujeitos “vir-a-ser”. Constatou-se como este tipo de relação reforça
uma tutela, pois muitas vezes para dispor do direito social deve-se abrir mão dos demais direitos.
107
direitos sempre esteve restrita ao território nacional, no entanto, as fronteiras que definem esse
território encontram-se cada vez mais dissolvidas e ampliadas para o contexto mundial ou
transnacional.
Um outro aspecto importante observado no que diz respeito à cidadania hoje está
no direito tem como pressuposto uma universalidade, ou seja, a idéia de que a partir da existência
de um sujeito universal os direitos são definidos e acessíveis a todos que cumpram o padrão
definido como universal, sendo portanto, iguais perante a lei. Esta suposta universalidade acaba
muitas vezes ocorrendo no erro de pensar a igualdade como uma identidade. Dessa forma,
minorias e particularidades, dentre as quais podemos colocar crianças e jovens, teriam que estar
subordinadas a essa identidade hegemônica, no caso aqui abordado, à identidade adulta. Fica o
alerta de que não se trata de equalizar diferenças, a igualdade no acesso aos direitos deve ser um
contexto geográfico, social e político de seu surgimento, nos voltamos para uma abordagem do
caso brasileiro, o contexto em questão. Ao longo deste trabalho, constatou-se como o direito ao
ser apropriado a partir das características sócio-históricas brasileiras acabou por sofrer uma
mas como dado importante todos parecem apontar para, como em nosso caso, os direitos eram
vistos como dádivas, foram concedidos, uma vez que foram outorgados, sem a participação da
sociedade, conquistados sem lutas. Prevalece no contexto brasileiro o direito social sobre os
demais, uma relação tutelada da sociedade para com o Estado, e ao contrário da existência de
uma universalidade, vigora uma hierarquização atualizada das mais diferentes maneiras (escravo
se então fazer um paralelo com a questão principal desta dissertação, de maneira que constatou-se
que o país “jovem”, assim como crianças e jovens, foi prejudicado em sua cidadania, uma vez
que da mesma forma que para esses sujeitos, direitos sociais foram privilegiados e a participação
pode levar ao retardamento da incorporação dos cidadãos à vida política. Observamos isso em
nossa história e o mesmo parece ocorrer com crianças e jovens. Um resultado importante
observado, portanto, foi que a cidadania sem participação torna-se um conceito vazio.
potencialidade colocada tanto para crianças e jovens quanto para adultos, e também na
como um papel de produtor também é possível através do consumo tendo uma função de
modernidade – como nacionalidade, língua, religião – não parecem mais cumprir esta função. O
consumo aponta que não só através de direitos, mas também através de práticas sociais e culturais
podemos nos definir como cidadãos. O consumo está sendo encarado como uma nova forma de
ação coletiva, de cidadania, como central no processo de reprodução social e cultural, logo, não
O cenário da cultura de consumo apareceu, portanto, como um pano de fundo onde todos
são levados em consideração, uma vez que independente de sua condição econômica, todos
relação cultura e consumo, crianças e jovens podem colocar em circulação seus valores e dessa
forma participar mais ativamente, contribuindo nas tensões, discussões e destinos da sociedade.
uma cultura jovem. Constatou-se como a primeira pareceu ser condição para o surgimento da
expressadas muitas vezes pela via do consumo, crianças e jovens puderam contribuir e participar
A cidadania possível para crianças e jovens passa a ser a de uma cidadania definida pela
participação. A participação aparece como uma modalidade de exercício político menos formal,
externo aos mecanismos legais de representação. Se no início deste trabalho, foi afirmado que a
contínua ação e narrativização, a cultura de consumo parece funcionar como um mediador para
essa ação-participação. A participação aqui implica em uma dupla articulação entre participação
política – não mais restrita ao voto e levando em conta inúmeras outras formas de expressão
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Portanto, é preciso fazer-se visível e reconhecido para poder participar de forma mais estrita. Isso
foi possível através da participação social ou cultural. A cultura foi o mediador para o
reconhecimento de uma competência social, como foi visto, requisito para a ação política e/ou
social.
representativa tradicional pode ser repensada, pois essa forma de participação aponta para outras
vias democráticas, ligadas por exemplo, à cultura, ao consumo. A cidadania clássica, ligada ao
direito, pertence talvez a um modelo de discussão democrática que como vimos tende a silenciar
ou desvalorizar algumas pessoas ou grupos. A participação pela cultura nos remete a uma
mais rígidos, no caso adultocêntricos, exigentes de uma retórica rebuscada para uma
argumentação no qual diferenças culturais, sociais e principalmente etárias, não são empecilhos
Portanto, uma forma de cidadania mais dinâmica, não mais restrita a um conjunto padrão
participação na sociedade. Assim, a participação como cidadania, apresenta-se como uma forma
podem ser reconhecidos socialmente, como atores relevantes, sendo que suas práticas têm
jovens têm o direito de saber e comentar o que está sendo pesquisado sobre eles. Portanto, nosso
questionamento se dirigiria a saber desses sujeitos o que eles entendem como sendo participação
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