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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA
MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM TEORIA PSICANALÍTICA
Dissertação de Mestrado
por
Janeiro de 2001
PSICANÁLISE E VELHICE: uma relação possível?
por
Aprovada por:
______________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog, UFRJ
(Presidente da Banca)
______________________________________
Profa. Dra. Teresa Pinheiro, UFRJ
______________________________________
Profa. Dra. Teresinha Feres, PUC/RJ
III, 81 f.
II. Título
AGRADECIMENTOS
E também,
Aos colegas da UATI que sempre se fizeram presentes e prontos para nos
apoiar e atender.
Aos alunos da UATI com quem aprendo diariamente a difícil, porém plena,
experiência do envelhecimento.
RESUMO
[...] não ser tão inteligente ou belo como desejaria (...) [de sentir]
como inalcançável (...) seu anseio de ser o ego ideal ante os olhos
dele mesmo e dos demais, ou seja, se sente não amado por seu
superego e os personagens externos [...] (Bleichmar, 1983: p. 16).
PENSANDO A VELHICE
1
Folha de São Paulo, 14/11/1998.
anos produzem nesses indivíduos. Trata-se de uma visão essencialista, de
caráter biológico e a-histórico da vida.
Ao se falar de velhice não se deve considerar apenas os fenômenos
biológicos, mas também, os aspectos psicossociais. A velhice deve ser
pensada como um processo gradual em que a dimensão histórico-social e a
biografia de cada indivíduo devem ser consideradas com relevância.
Por outro lado, os idosos não devem ser vistos como grupos
homogêneos. As diferenças históricas, sociais e econômicas dão significados
distintos à experiência de envelhecimento, obrigando-se o reconhecimento da
individualidade da experiência humana. Nessa linha de raciocínio, Hermana,
especialista em cuidados de saúde dos idosos de Copenhagen, citada por
Hadad (1986, p. 25) explica que
2
De acordo com a Organização Mundial de Saúde são consideradas idosas as pessoas com idade a partir
dos 65 anos nos países desenvolvidos e, com 60 anos nos países em desenvolvimento.
As sociedades, em diferentes momentos históricos, atribuem
significados diversos às etapas do curso da vida dos indivíduos, num
movimento de identificação e invenção de “etapas” – infância, juventude,
velhice. A respeito disso, Áries (1981, p. 48) afirma que “a cada época
corresponderiam uma idade privilegiada e uma periodização particular da vida
humana: a ‘juventude’ é a idade privilegiada do século XVII, a ‘infância’, do
século XIX, e a ‘adolescência’, do século XX”. E a velhice?
Em trabalho publicado na revista A terceira Idade, Almeida (1998, p. 38)
explica que, ao lado das variações presentes na definição de velhice, o lugar
atribuído aos velhos também sofre variações no tempo e no espaço. Existem
formas de organizações sociais nas quais a velhice, além de ser reconhecida, é
valorizada. Nessas sociedades, prossegue a autora: “os velhos assumem a
função de garantir a reprodução simbólica, ou os valores que respondem pela
identidade do grupo transformando-se em ”depositários vivos", unindo o
passado ao presente e auxiliando na projeção do futuro”.
No texto Imagens da Velhice: o olhar antropológico, aquela autora
procura mostrar em que momento surge a associação do significante velhice
ao de segregação. Essa associação teve início na Idade Média, sendo o seu
apogeu na Modernidade. Até o século XVIII, a velhice não era associada à
degeneração e à decadência, nem representava o afastamento das relações
afetivas, familiares e sociais.
O conceito de velhice adotado pela sociedade contemporânea surgiu na
passagem do século XVIII para o século XIX, com o advento da Revolução
Industrial e das suas conseqüências. Para Almeida (1998), só recentemente a
velhice passou a significar segregação, coincidindo com o momento em que o
tempo médio de vida começa a aumentar e a denunciar o envelhecimento
populacional, segundo se pode observar nas informações estatísticas.
Segundo Áries (1981, p. 48):
1.2 As estatísticas
3
Revista Época, março de 1999.
4
Revista de Saúde Pública, março de 1987.
O Brasil, nas últimas décadas, tem sido surpreendido com o crescente
quantitativo da população idosa, sendo que este segmento não tinha a sua
existência reconhecida pelas políticas públicas, pois, até então, o Brasil era
visto como um país jovem, explorando na mídia todo o viço de sua juventude.
As estatísticas vêm apontando para uma transformação na pirâmide
etária do país, composta, em 1950, na sua base, por um grande contingente de
pessoas jovens que hoje, em números, quase equivalem ao número de velhos.
Verifica-se, assim, um alargamento da pirâmide etária na sua parte superior, de
tal forma que as projeções para o ano de 2020 transformam essa pirâmide de
bases largas em um gráfico em que a base e a parte superior quase se
equivalem.
Atualmente, no Brasil, existem 8,6 milhões de brasileiros com mais de
65 anos. Em duas décadas, o país abrigará a sexta população de idosos do
mundo – 17 milhões de pessoas. Segundo declaração feita pela demógrafa
Elza Berquó, presidente da Comissão Nacional de População de
Desenvolvimento do IBGE, em 2020, “1 em cada 13 brasileiros será idoso”5.
Veras & Murphy, citados por Louzã Neto & Stoppe Junior (s.d, p.20)
afirmam que “o Brasil é o país que vem apresentando a mais alta taxa
percentual de envelhecimento populacional”6, sendo essa população
constituída, em sua maioria, por “mulheres, pobres, com baixo nível
educacional, viúvas e vivendo em áreas urbanas”.
Na Bahia, o processo de envelhecimento populacional segue as
mesmas tendências mundiais. De acordo com o censo demográfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (1994), o contingente de idosos, na
Bahia, no ano de 1991, era de 816.890 pessoas, sendo 450.450 residentes na
zona urbana e 357.440 na zona rural. De acordo com as estimativas para o ano
2.000, a população idosa na Bahia, atingiria o significativo contingente de um
milhão de pessoas.
Causa preocupação observar que em Salvador, capital do Estado com
a beleza de sua arquitetura, ladeiras, praias e carnavais, não se encontra
5
Revista Época, março de 1999.
6
No plano social, quando se fala em envelhecimento populacional não se está referindo à idade da
população ou tempo de existência, mas à proporção de pessoas idosas – de 60 anos ou mais, conforme
convenção internacional – em relação ao total.
preparada para lidar com os “seus” velhos que começam a marcar presença
nos cinemas, restaurantes ou lojas. O que acontece na cidade do Salvador, ou
no Estado da Bahia, é um exemplo, embora de forma diferenciada, da maneira
como vem sendo tratada a questão do envelhecimento no Brasil.
7
Atualmente existem duas ciências que caminham juntas em função de um mesmo objeto de estudo: os
velhos. A geriatria que é a ciência médica que cuida das pessoas idosas e se aplica unicamente ao domínio
das doenças do envelhecimento. A Gerontologia Social que se dedica aos processos psicossociais
manifestados na velhice.
Como problemas, que considera bastante sérios, cita o autor:
a) carência de maiores recursos a serem despendidos com a área de
saúde, pois as doenças que acometem os idosos são em geral,
crônicas, de tratamento prolongado e custoso ...;
b) urgência para a remoção de barreiras arquitetônicas que dificultem a
locomoção dos idosos nos centros urbanos e a criação de
equipamentos que facilitem aquela locomoção e outras atividades
dos idosos;
c) intensificação dos problemas familiares no que diz respeito à
manutenção e ao atendimento dos membros mais idosos que se
tornam dependentes ou semidependentes, tanto em termos de
saúde, como de condições econômico-financeiras;
d) pressão mais acentuada sobre os organismos de assistência pública
para a criação ou ampliação dos serviços e programas destinados à
população idosa;
e) elevação dos índices de dependência-idoso, isto é, da proporção
entre o número de pessoas de 60 anos e mais, a serem mantidos por
cem pessoas em idade produtiva (15 a 59 anos); como existe uma
tendência na redução dos estratos produtivos, a conseqüência a
médio e longo prazo é que uma quantidade cada vez menor de
agentes produtivos terá que manter uma quantidade cada vez maior
de população inativa, representando um elevado custo social e uma
grande sobrecarga para esses agentes;
f) expansão do número de aposentados e pensionistas e a defasagem
dos dispêndios públicos e privados com a seguridade social.
As condições impostas pela nova posição social ocupada pelo idoso vão
variar nas diferentes culturas, podendo, diferenciar-se em uma mesma cultura,
a depender da classe social que ele ocupe. Também sofrerá variações “o modo
como a sociedade se relaciona com o idoso e com o envelhecimento, bem
8
Prova disso são os inúmeros serviços voltados para a pessoa idosa (Centros de Convivência, Clubes da
maior idade, Universidade Aberta à Terceira Idade) cuja preocupação maior é ocupar o tempo livre do
idoso.
como as atitudes do idoso perante a sociedade” (Louzão Neto & Stope Junior,
s.d., p. 61).
Ao chegar à velhice, tendo em vista as modificações impostas pela
sociedade, o velho passa a desempenhar um novo papel na família e adquire
um novo status social e econômico.
Conforme foi ressaltado, os estudos têm demonstrado que, de uma
forma geral, a atitude da sociedade contemporânea para com o idoso é
negativa, principalmente no que se refere às suas habilidades físicas,
aparência pessoal e sanidade mental. De certa forma, essa percepção que se
tem do idoso vem dificultar a adaptação social e o bem estar desse segmento
da população (Louzã Neto & Stoppe Junior, s.d, p.62).
Apesar de criar dispositivos e desenvolver um discurso que quase
imobiliza aquele que envelhece, esta mesma sociedade espera que a
população idosa se constitua no agente transformador de uma situação criada
pelas condições reais de existência social dos homens9. Espera-se que o
idoso, sozinho, busque um lugar no qual se sinta mais compreendido e que lhe
permita desfrutar de melhores condições de bem estar, desconsiderando-se,
por completo, uma participação social mais ampla.
O que se observa é que o investimento feito pela sociedade em saúde,
educação e treinamento de profissionais restringe-se apenas às gerações mais
novas, sem permitir que o idoso continue a ser útil a si próprio e à sociedade.
Necessário se faz cuidar da prevenção e promoção desses indivíduos,
despertando ou incentivando a satisfação de viver, abrindo espaços para que
possam continuar como cidadãos produtivos e independentes.
Seria preciso que a sociedade não anulasse, com tanta eficiência, o
papel de sujeito dos seus velhos através de formas tão sutis quanto violentas,
utilizando-se da estrutura social, econômica e política.
E nesse ponto vale a pena retomar Bosi (1994, p. 20) que se pergunta
“como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem desde o
nascimento, na sociedade de competição e do lucro?”. Cuidados geriátricos
9
Neste ponto gostaríamos de enfatizar que, embora possamos identificar os problemas sociais e o
discurso discriminatório da sociedade brasileira em relação ao cidadão idoso, estamos cientes de que a
questão é mais complexa visto que a própria dinâmica psíquica do idoso tem alguma influência neste
discurso que discrimina o velho.
não devolvem a saúde física ou mental (perdidas no decorrer dos anos, quando
esses homens eram explorados pelo mercado de trabalho). “Como deveria ser
uma sociedade para que, na velhice, o homem permaneça homem? (...) Seria
preciso que sempre tenha sido tratado como homem”, complementa essa
autora.
O que fazer para que o idoso, diante desse aniquilamento imposto pela
sociedade, não se afaste do convívio social, nem se entregue às drogas
medicamentosas ou ao álcool, ou se retire do jogo da vida antes que ele
finalize? É necessário que o idoso possa elaborar o luto de si mesmo, de sua
identidade. Que, sem se transformar em objeto de cuidados, mantenha o seu
estatuto de sujeito desejante, teoria que se torna objeto do capítulo seguinte.
CAPÍTULO 2
A expressão “sujeito desejante”10 não foi cunhada por Freud, mas por
Lacan quando da releitura dos textos do mestre; ainda assim, segundo o nosso
entendimento, esta expressão designa com propriedade as questões
freudianas relativas ao desejo.
Freud vai falar do desejo ao longo de toda a sua obra porém existem
dois momentos que podemos considerar como marcos da definição desse
conceito: o Projeto para uma psicologia científica, onde se refere à experiência
de satisfação, introduzindo, também, a questão da ação específica, e o
trabalho sobre A interpretação de sonhos (1901), que traz o desejo como
inconsciente apresentando-se com “uma dupla característica: em primeiro
lugar, sua distorção necessária; e, em segundo lugar, seu distanciamento com
respeito à satisfação” (Garcia-Roza, 2000, p. 146-147).
Neste capítulo, buscaremos circunscrever o desejo a partir de uma
compreensão da constituição e do funcionamento do aparelho psíquico.
10
Mesmo o termo sujeito quando utilizado por Freud, não terá a mesma importância que terá mais tarde
para Lacan.
segundo o qual os neurônios tendem a se desfazer de Q11 e a fugir dos
estímulos, sejam eles provenientes do meio externo ou do próprio corpo.
Porém, quando se trata dos estímulos endógenos12, essa fuga não é
possível e, para satisfazer as exigências de descarga desses estímulos, o
sistema nervoso não pode descarregar toda a energia recebida, devendo
suportar uma certa quantidade de Q para esta finalidade. Trata-se da lei da
constância, segundo a qual, o sistema nervoso é obrigado a manter uma quota
de Q num nível mais baixo possível, ao mesmo tempo em que procura se
proteger contra qualquer aumento daquela cota, ou seja, procura mantê-la
constante.
Tem-se, então, o início do processo prazer-desprazer, em que o
desprazer está associado à tensão decorrente do acúmulo de Q e o prazer à
descarga dessa Q excessiva. “O prazer é a própria sensação de descarga,
sendo que qualquer manutenção de Q no sistema nervoso é apenas tolerada, o
que significa dizer que implica sempre uma certa dose de desprazer. O prazer
total resultaria da descarga total de Q” (Garcia-Roza, 2000, p. 51).
Para falar de um quantum de energia que precisa ser descarregado
Freud irá elaborar a concepção de desamparo original do ser humano e
apresentará a experiência de satisfação que tem conseqüências decisivas para
o desenvolvimento das funções individuais.
Quando surgem, no bebê, os estímulos endógenos, geradores de
necessidades primárias tais como a fome e a sede, o infante buscará
descarregar a tensão surgida através do movimento (‘expressão emocional’).
No entanto, a situação permanecerá inalterada uma vez que a excitação
proveniente de uma necessidade ou de um estímulo endógeno é uma força
que se encontra em funcionamento contínuo, só podendo ser modificada
através de uma ação específica, uma alteração do mundo externo. Nesses
casos, afirma Freud (1950, p. 422),
11
A quantidade de excitação ligada à estimulação sensorial externa.
12
Estímulos que se originam no próprio corpo e que dão origem a necessidades tais como fome, sede etc.
se encontra a criança, mediante a condução da descarga pela via de
alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a
importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo
inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos
morais.
13
Sistema de neurônios impermeáveis, que está em conexão direta com os estímulos endógenos.
“um componente permanente e outro mutável” (Freud, 1950), ou seja, inibir o
desejo quando se trata de um objeto alucinado.
Nesse ponto, Garcia-Roza (2000), chama a atenção para a diferença
existente entre o ego apresentado no Projeto e o ego da segunda tópica - o
ego sujeito, como indivíduo ou como totalidade do aparelho psíquico. O ego do
Projeto é uma diferenciação no interior do sistema y, sem acesso à realidade
e, portanto, sem ser sujeito da percepção, da consciência ou do desejo. O
acesso à realidade, no Projeto, é realizado pelo sistema perceptivo – neurônios
w.
Esse caráter primitivo de alucinar o objeto de desejo passará por um
processo de evolução sendo substituído por uma atividade mais elaborada
capaz de distinguir o objeto alucinado do objeto real. Freud dirá que ocorrerá
um processo de educação que juntamente com o ego primitivo
14
Freud se refere ao biológico como metafísico e pergunta a Fliess se pode usar o nome de
metapsicologia para a sua psicologia que vai além da alma.
desejo; um desejo recente só conduz a um sonho quando consegue
estar em conexão com material proveniente desse período pré-
histórico, quando o desejo recente é um derivado pré-histórico. Ainda
resta examinar até que ponto serei capaz de ater-me a essa teoria
extremada e até que ponto poderei expô-la no livro dos sonhos
(Freud, 1950, p. 369-370).
15
São eles: restos diurnos não satisfeitos, restos diurnos recalcados, desejos que não têm nada a ver com a
vida diurna, mas que pertencem ao inconsciente e emergem durante o sono e, os impulsos decorrentes de
estímulos noturnos (fome, sede, sexo etc.).
Freud acrescenta ainda outras duas características ao inconsciente e
todo o seu conteúdo: a indestrutibilidade e a atemporalidade. O passado
conserva-se inalterado no inconsciente, de tal forma que, como o sonho é um
processo regressivo, são os desejos mais infantis que funcionam como
indutores permanentes de seus conteúdos. Articulando esta questão com
nosso tema podemos observar que na velhice verifica-se “o desencontro entre
o inconsciente atemporal e o corpo, templo da temporalidade” (Berlink, 1998, p.
297), enquanto a rememoração e as recordações daqueles que envelhecem
podem revelar desejos infantis, considerações que serão retomadas e
desenvolvidas no próximo capítulo.
Freud define os sonhos como a realização de desejos inconscientes e é
esta característica (ser inconsciente) que vai diferenciar, na psicanálise, a
noção de desejo de outras concepções. Mesmo os sonhos desagradáveis, que
geram angústia, ou os sonhos de punição são considerados por Freud, nesse
momento de sua elaboração, como realizações de desejos. A explicação dada
é que se a realização de um desejo inconsciente e recalcado produz prazer, ele
também produz angústia ao ego do sonhador, tendo em vista que as
exigências do inconsciente não são as mesmas do sistema pré-
consciente/consciente. Ou seja, o mesmo acontecimento que pode provocar
prazer ao nível do sistema inconsciente, pode causar angústia ao nível do
sistema pré-consciente. Há, portanto, dois desejos a serem satisfeitos: o do
inconsciente e o do pré-consciente/consciente e, nem sempre, eles estão de
acordo.
Ao postular um aparelho psíquico dividido em inconsciente e pré-
consciente/consciente, “o pensamento freudiano se distancia da concepção de
razão identificada com a consciência (...), subvertendo a idéia de que a partir
da consciência se tem acesso à verdade” (Herzog, 1996, p.9). Trata-se do
“terceiro golpe” sofrido pela humanidade: “o ego (...) não é senhor nem mesmo
em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações
acerca do que acontece inconscientemente em sua mente” (Freud, 1917b, p.
336). O que é fundamental na postulação de que no sujeito “há algo de
desconhecido” (Herzog, 1996, p.11) é o fato desse ‘desconhecido’ apresentar-
se, sempre, impregnado de desejo.
Mas, então, o que vem a ser o desejo para a teoria psicanalítica?
A noção de desejo em psicanálise diferencia-se da biologia, pois, para
esta ciência, o desejo é entendido como satisfação de uma necessidade, o que
implicaria em uma tensão interna, de ordem física e biológica, que impele o
organismo em determinada direção onde encontra satisfação através de uma
ação específica. Nesse contexto, o desejo visa a um objeto específico que
permite a redução da tensão.
O objeto de desejo, na teoria psicanalítica, surge desde a experiência de
satisfação como um objeto perdido, satisfação que procura realizar-se através
de uma série de substitutos que formam uma rede contingente mantendo a
permanência da falta do objeto. Como foi mostrado na experiência de
satisfação, o que caracteriza o desejo é o impulso que busca reproduzir
alucinatóriamente uma satisfação original, um retorno a um objeto perdido
considerado por Garcia-Roza (2000) como sendo “a nostalgia do objeto”. O
desejo é irrealizável tendo em vista que o seu objeto não é algo concreto que
se oferece ao sujeito, deslizando, por contigüidade, numa série interminável de
significações. É esta insatisfação primordial, denunciada por Freud, que
responde pela constituição do aparelho psíquico.
Ao definir o desejo, Garcia-Roza (2000, p. 83) diz que a “sua entrada em
cena requer uma preparação prévia do espectador, a criação de um clima que
valorize o momento de seu aparecimento”. Os sonhos, ao sofrerem intervenção
da censura, aparecem deformados pela elaboração onírica, que os torna
irreconhecíveis. Neste sentido, o desejo freudiano é marcado por duas
características fundamentais: a sua distorção necessária e seu afastamento no
que diz respeito à satisfação.
Os sonhos, no entanto, não são a única forma de realização dos desejos
inconscientes. Os sintomas histéricos, assim como todos os eventos
neuróticos, também são realizações de desejo. No entanto, Freud afirma a
existência de uma característica essencial nos sintomas, quando se trata de
realização de desejos. Nesses casos o que ocorre não é a expressão de um
desejo inconsciente realizado, mas a realização de dois desejos opostos (o
desejo que não surge do inconsciente é invariavelmente uma seqüência de
pensamento que reage contra o desejo inconsciente), surgidos cada um de um
sistema psíquico diferente, que convergem numa expressão única. “Dessa
maneira, os sintomas terão pelo menos dois determinantes, cada um deles
surgindo de cada um dos sistemas envolvidos no conflito” (Freud, 1900, p.
606).
Seguindo as indicações de Freud, poderíamos definir o desejo como
uma idéia (Vorstellung) ou um pensamento que, ao ter como correlato as
fantasias do sujeito desejante, busca sempre ser realizado.
16
Energia psíquica, expressão anímica da pulsão sexual, ou ainda uma força suscetível de variações
quantitativas que poderia servir de medida para os processos e as transformações no domínio da excitação
sexual. Inicialmente, a libido estava ligada apenas às pulsões sexuais e é somente em Além do princípio
de prazer (1920), com a introdução do conceito de pulsão de morte, que o dualismo assume sua face
definitiva: as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação são unificadas sob o nome de pulsão de
vida, cuja energia é a libido, e contraposta à pulsão de morte, cuja energia é a destrutividade.
No entanto, como já foi referido, esse reencontro é impossível, a
identidade perceptiva é impossível. Essa discordância entre o objeto buscado e
o objeto encontrado funda a primeira dialética da teoria da sexualidade em
Freud e move a busca do objeto perdido (mas que na verdade nunca foi tido).
(Garcia-Roza, 1999). No caso do idoso, como veremos mais adiante, esse
retorno à experiência de satisfação não é uma simples regressão ao passado e
à dependência do infante em relação ao outro; trata-se, acima de tudo, de uma
relação enriquecedora que irá revalorizar o viver, na medida em que permite o
afastamento da solidão e a valorização das relações com os semelhantes.
Retomando a questão da constituição do sujeito, Freud considera que,
no momento inicial, o que existe são as pulsões auto-eróticas, sendo
necessário o desenvolvimento de uma instância que verifique a realidade da
existência do objeto “alucinado”. Também é necessário que algo se acrescente
ao auto-erotismo, uma nova ação psíquica, para que o narcisismo se constitua,
ou seja, a representação complexa que o indivíduo faz de si mesmo, não mais
vivenciando seu corpo como um corpo fragmentado.
No artigo escrito em 1914, Sobre o narcisismo, trabalho que tem um
papel fundamental na evolução dos conceitos a serem desenvolvidos por
Freud, vemos surgir conceitos como narcisismo e ideal do eu e, questões
relativas às relações entre o ego e os objetos externos, ficando clara a
distinção entre “libido do ego” e “libido objetal”. O ego, reservatório da libido
narcísica, passa a ser analisado, permitindo uma distinção clínica entre as
psiconeuroses em neuroses de transferência e neuroses narcísicas.
Neste artigo, o narcisismo deixa de ser concebido como perversão e
passa a ser considerado como forma necessária de constituição da
subjetividade, apontando para as origens da vida psíquica: é condição de
formação do eu, chegando mesmo a se confundir com o próprio eu (Garcia-
Roza, 1999).
A constituição do eu dar-se-á a partir da projeção do narcisismo dos pais
sobre o filho. Os pais revivendo seu próprio narcisismo, atribuem ao filho todas
as perfeições, reeditando, na criança, uma idéia de completude. É, também,
em face da junção feita de seu próprio corpo e do narcisismo desse adulto, que
a criança poderá pensar-se como um ser completo e não desamparado,
equipando-se de um eu que Freud chamará de eu ideal (Ideal Ich), um eu
imaginário construído tendo como base uma idéia de completude.
Nas questões relativas à velhice veremos o narcisismo pela ótica das
feridas narcísicas que acometem o idoso de forma radical, tendo em vista que
representam o acúmulo das perdas de toda uma vida, mas analisa-se, também,
o efeito do narcisismo na medida em que afasta o sentimento de finitude, do
desamparo e da falta e possibilita o surgimento de um sentimento de
onipotência que é traduzido em comportamentos competitivos, agressivos e,
até mesmo, de uma negação da morte.
Freud refere-se, ainda, à existência de um narcisismo secundário como
o resultado de um retorno ao eu dos investimentos feitos sobre os objetos
externos. O processo dá-se pelo investimento, num primeiro momento, da
libido no próprio eu do sujeito; em seguida, passa a ser investida, também em
objetos externos, voltando, posteriormente a ter o eu como objeto. O que se
pode constatar é que entre os dois tipos de narcisismo (primário e secundário)
há um investimento da libido em objetos externos ao eu. Porém, é importante
observar que, em ambos os casos, há um investimento do eu e, na verdade o
que pode acontecer é uma concomitância das formas de investimento (do eu
ou objetal), ocorrendo a predominância de uma delas.
Temos, então, no texto de 1914, dois narcisismos – primário e o
secundário. Originalmente, o eu é o objeto privilegiado de investimento libidinal,
a ponto de se constituir como o “grande reservatório da libido”, armazenador de
toda a libido disponível. Esse momento, Freud denomina narcisismo primário.
Posteriormente, o investimento libidinal passa a incidir sobre objetos, o que
corresponde à transformação da libido narcísica em objetal. No entanto,
registra Freud (1923, p. 81), “durante toda a vida do indivíduo, seu ego
permanece sendo o grande reservatório de sua libido, do qual as catexias do
objeto são enviadas e para o qual a libido pode correr novamente de volta dos
objetos”. O retorno desse investimento libidinal ao eu, após ter investido em
objetos externos, Freud denomina narcisismo secundário.
A distinção ente narcisismo primário e narcisismo secundário só adquire
contornos bem definidos a partir da segunda tópica freudiana.
Inicialmente, a expressão “narcisismo primário” parece indicar uma fase
intermediária entre o auto-erotismo e o narcisismo secundário ou narcisismo
propriamente dito, correspondendo ao momento de unificação do eu, que
Freud denomina eu ideal (Ideal Ich).
Se para Rodrigué (1995) podemos considerar o narcisismo primário
como “um tempo hipotético da libido infantil, (...) um estado primevo fictício, que
vem a ser interrompido pelo auto-erotismo”, Garcia-Roza (1999) sugere a
admissão de um único narcisismo subseqüente ao auto-erotismo, ao mesmo
tempo em que levanta a hipótese de que a única coisa que justifica essa
separação (narcisismo primário e secundário), seria a distinção feita por Freud
entre o eu ideal (Ideal Ich) e o ideal do eu (Ich Ideal), ‘instâncias ideais que (...)
servirão como condição mínima [ao sujeito] para se submeter à imposição de
faltante que a castração impõe’ (PINHEIRO, 1995, p. 22).
As emoções pulsionais libidinosas sofrem o efeito do recalque quando
entram em conflito com as representações culturais do indivíduo. O ideal ético
obriga a recalcar tudo aquilo que, ao emergir na consciência, diminuiria a auto-
estima. Assim, que leitura se pode fazer da questão dos ideais na velhice,
quando o corpo que envelhece, o afastamento do trabalho produtivo e a perda
dos amigos atinge a auto-estima?
O eu ideal (Ideal Ich), é um eu imaginário, construído a partir de uma
idéia de completude. Já o ideal do eu (Ich Ideal) é algo externo ao sujeito,
exigências que ele terá que satisfazer e que se situam no lugar da lei. Trata-se
dos ideais da cultura em que o indivíduo está inserido e, em se tratando da
nossa cultura, poderíamos dizer, uma cultura que valoriza o novo, o produtivo,
o belo. Enfim, tudo o que vai de encontro ao conceito de velhice.
Freud em Sobre o narcisismo (1914, p. 111) diz que “o homem se
mostra incapaz de abandonar uma satisfação da qual ele usufruiu”. Esta
satisfação é a que resultou para ele da perfeição narcísica de sua infância.
Convém reproduzir o parágrafo:
[...] o ego dividido, separado em duas partes, uma das quais vocifera
contra a segunda. Esta segunda parte é aquela que foi alterada pela
17
Possivelmente o que Freud chamará, na construção da segunda tópica do aparelho psíquico, de
superego.
18
A partir de 1920, Freud elabora a segunda tópica. Segundo Laplanche & Pontalis (1978), o motivo que
leva Freud a introduzir essa mudança é, não só, o surgimento cada vez mais incisivo das defesas
inconscientes, o que não permite fazer coincidir os pólos do conflito defensivo com os sistemas
anteriormente estabelecidos (o recalcado com o Inconsciente e o ego com o sistema Pré-
Consciente/consciente) mas, também o “papel desempenhado pelas diversas identificações na
constituição da pessoa e das formações permanentes que depõem no seio dela (ideais, instâncias críticas,
imagens de si mesmo)”. Na segunda tópica teremos três instâncias: “o id, pólo pulsional da personalidade;
o ego, instância que se situa como representante dos interesses da totalidade da pessoa e que como tal é
investido de libido narcísica; e, por fim, o superego, instância que julga e critica, constituída por
interiorização das exigências e das interdições parentais” (Laplanche e Pontalis, 1978, p. 660).
introjeção e contém o objeto perdido. Porém a parte que se comporta
tão cruelmente tampouco a desconhecemos. Ela abrange a
consciência, uma instância crítica dentro do Ego, que até em
ocasiões normais assume, embora nunca tão implacável e
injustificadamente, uma atitude crítica para com a última. (...) A essa
instância chamamos de ‘ideal do ego’ e, a título de funções,
atribuímos-lhes a auto-observação, a consciência moral, a censura
dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é
o herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil desfrutava de
auto-suficiência; gradualmente reúne, das influências do meio
ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não
pode sempre estar à altura (Freud, 1921/1977, p. 138).
19
Espécie de regressão ao mecanismo da fase oral.
mais importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai
em sua própria pré-história pessoal” (Freud, 1923/1977, p. 44).
Freud descreve como o processo identificatório se apresentará durante
o complexo de Édipo, destacando a ambivalência decorrente do “complexo de
Édipo completo”.
[...] ele vincula não somente a libido narcisista de uma pessoa, mas
também uma quantidade considerável de sua libido homossexual,
que dessa forma retorna ao ego. A falta de satisfação que brota da
não realização desse ideal libera a libido homossexual, sendo esta
transformada em sentimento de culpa [angústia social] (Freud, 1914,
p. 119).
20
Uma identificação paterna e uma identificação materna.
Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de punição pelos
pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais
tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas.
A freqüente causação da paranóia por um dano ao ego [ferida do
Ego], por uma frustração da satisfação dentro da esfera do ideal do
ego, é tornada assim mais inteligível, bem como a convergência da
formação do ideal e da sublimação no ideal do ego, e ainda a
involução das sublimações e a possível transformação de ideais em
perturbações parafrênicas.
A velhice não foi objeto de estudo da teoria freudiana e, mais que isto,
Freud, ao longo da sua obra, em diferentes momentos, coloca como uma das
limitações do tratamento psicanalítico, o tratamento de pessoas idosas21.
Alguns fatores podem ser levantados como possíveis determinantes
deste posicionamento do criador da psicanálise, que fala em limites
momentâneos da teoria e da possibilidade de que esses mesmos limites
possam ser superados. Entre eles, podemos apontar a baixa expectativa de
vida no início do século – em torno de 50 anos – e o pessimismo de Freud em
relação ao envelhecimento.
Além disso, Freud estava interessado em identificar a etiologia das
neuroses, e segundo comentário de Machado (1992, p. 78), era preocupação
daquele autor descobrir “as leis que regem o aparelho psíquico e o método que
levaria a tal, (...) a associação livre [e, portanto] as patologias que não se
adequavam ao método de tratamento” eram afastadas por Freud de suas
pesquisas. Se para Freud, nos idosos, “todos os processos mentais,
relacionamentos e distribuições de forças são imutáveis, fixos e rígidos
[ocorrendo] uma espécie de entropia psíquica” (Freud, 1937, p. 267), eles não
eram elegíveis como objeto de estudo nas pesquisas freudianas.
21
Freud considera como idosas as pessoas de mais de 50 anos.
trabalhos nos quais faz alguma referência a temas como velhice, senilidade,
senescência, senectude, climatério e menopausa.
Cabe lembrar que o posicionamento de Freud é o posicionamento de um
homem que viveu no final do século XIX, início do século XX, não podendo
evitar, portanto, a influência à representação feita sobre a velhice naquela
época. Um outro fator que não deve ser esquecido é a formação médica de
Freud, o que termina por fazê-lo pensar em um declínio do ser humano em
termos de um modelo bilogizante23.
Até o início do século XX a expectativa de vida estava bem abaixo da
atual e, conseqüentemente, a população mundial de idosos era inexpressiva
em relação à população geral. Assim sendo, a velhice ainda não tinha se
transformado em objeto de estudo da ciência.
Seguindo cronologicamente a teorização de Freud vamos encontrar nos
Extratos dos documentos dirigidos a Fliess as primeiras referências a esses
temas, mais precisamente na Carta 18 e no Rascunho E.
Na Carta 18, datada de maio de 1894, ao falar de suas idéias a respeito
das neuroses, Freud irá levantar o que chamou de os aspectos mais gerais
como ponto de partida para classificar as neuroses. Dentre estes aspectos
destaca a senilidade que será definida como “uma degeneração normalmente
adquirida na velhice” (Freud, 1950, p. 260), sem privilegiar a forma como ela (a
senilidade) estaria associada às causas da neurose. Ao que tudo indica,
mesmo antes de criar a Psicanálise, Freud já associava a sexualidade com a
etiologia das neuroses.
No Rascunho E (data provável, junho de 1894), dedicado ao estudo da
origem da angústia, Freud começa por afirmar que a angústia está diretamente
relacionada com a questão da sexualidade e ao referir os casos nos quais a
angústia se origina de uma causa sexual cita como exemplo os “homens que
vão além do seu desejo ou da sua força, pessoas de mais idade, cuja potência
22
Muitas vezes um depoimento pessimista e depressivo, chegando mesmo a contraindicar o tratamento
psicanalítico para pessoas com idade a partir dos cinqüenta anos.
23
O modelo biológico de desenvolvimento afirma que existe um movimento ascendente, do nascimento
até vida adulta, seguido de um período de estabilidade, quando cessa o crescimento e atinge-se a fase da
maturidade reprodutiva, à qual sucede, por sua vez, uma fase de declínio, que finaliza com a morte; este
último período é representado por uma curva descendente e o período de involução é visto como um
período de declínio.
está diminuindo, mas que, ainda assim, se impõem à realização do coito”
(Freud, 1950, p. 263). O que há de comum entre todos os casos, segundo
Freud, é a abstinência.
Há ainda os casos em que a angústia surge com a
24
A primeira vez que Freud empregou a técnica de pressão foi com Fräulein Elisabeth von R. (1892)
Verifica-se uma ligeira incongruência nos relatos sobre este método. Não se sabe exatamente quando
Freud abandonou essa técnica de pressão. Tudo indica que já havia desistido dessa prática antes de 1900,
tendo em vista que não a menciona quando se refere ao seu método no começo do Capítulo II de A
Interpretação de Sonhos.
suas instalações convertidas em “lar de mulheres idosas” (‘Hospice pour la
vieillesse (femmes), [1813]’. Na Salpetrière, Freud teve como objeto de estudo
idosas que terminaram por enriquecer as suas observações clínicas. Essa
experiência também deve ter influenciado a opinião que Freud apresentará
mais tarde quanto à inaplicabilidade da terapia psicanalítica a pessoas idosas.
Ao escrever Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma
síndrome particular intitulada ‘neurose de angústia’, em 1895, Freud trata sobre
senectude, climatério masculino, climatério feminino, menopausa. Aqui, mais
uma vez, encontramos a senescência como um dos fatores etiológicos da
neurose de angústia que, segundo Freud, “é acompanhada por um decréscimo
da libido sexual ou desejo psíquico” (Freud, 1895, p. 126).
Ao apresentar “os determinantes sexuais da neurose de angústia nos
homens”, Freud refere-se à angústia em homens idosos e diz que, assim como
nas mulheres, é possível verificar, em alguns senescentes do sexo masculino,
um climatério. Nesses casos, afirma Freud, verifica-se o desenvolvimento de
uma neurose de angústia que é concomitante com um decréscimo de potência
e aumento de libido. Assim “como no climatério feminino, ocorre um aumento
tão grande da excitação somática que a psique se mostra relativamente
insuficiente para controlá-la” (op. cit. p. 129).
De acordo com a afirmação freudiana, nas mulheres, a neurose de
angústia ocorre nos casos de viuvez e abstinência voluntária, na grande
maioria das vezes com uma combinação com idéias obsessivas e, nos casos
de climatério, “quando aumenta, pela última vez, a necessidade sexual” (op. cit.
p. 118).
Neste ponto, é importante observar que Freud trata sobre “uma última
vez da necessidade sexual”, como se com o climatério as mulheres perdessem
essa “necessidade”. Esta posição parece bastante influenciada pelos
pensamentos de sua época e, até mesmo, por uma falta de aprofundamento
acerca de como se dão os processos durante a velhice.
Freud, ao discutir a questão, aponta como situação comum entre
homens e mulheres senescentes o aumento de libido que, diante da
incapacidade relativa de escoar a excitação sexual somática pela via da ação
específica, provocaria a neurose de angústia. Assim sendo, torna-se comum
durante o envelhecimento o surgimento das neuroses atuais tendo em vista a
quase impossibilidade desta descarga.
Apesar de verificar e afirmar que o envelhecimento é um dos fatores
etiológicos da neurose de angústia, em 1898 Freud vai fazer referência às
limitações da sua teoria, incluindo aí, as pessoas idosas.
Um cavalheiro idoso foi acordado certa noite por sua mulher, que
ficara alarmada porque ele estava gargalhando muito alto e
desenfreadamente em seu sono. A seguir, o homem relatou que
havia tido o seguinte sonho: Estava deitado na cama e um cavalheiro
que me era conhecido entrou no quarto; tentei acender a luz mas não
pude fazê-lo: tentei –o repetidas vezes, mas em vão. Depois, minha
mulher saiu da cama para ajudar-me, mas ela tampouco pôde
consegui-lo. Mas, como se sentia embaraçada em frente do
cavalheiro por estar ‘en negligé’, finalmente desistiu e voltou para a
cama. Tudo isso foi tão engraçado que não pude deixar de gargalhar.
Minha mulher perguntou: “Por que está rindo? Por que está rindo?”,
mas só pude continuar a rir até acordar. — No dia seguinte, o
cavalheiro estava muito deprimido e com dor de cabeça; tanto riso o
havia perturbado, pensou ele (Freud, 1900, p. 505).
25
O fato da investigação e exploração psicanalíticas não indicarem resultados rápidos e a resistência
poder resultar em desagrado.
26
Não faremos referência aos outros casos uma vez que não se situam no âmbito desta pesquisa.
27
Ferenczi, que morreu aos sessenta anos; Breuer, aos oitenta e quatro Charcot, aos sessenta e oito anos;
Lou Andréas-Salomé, aos setenta e seis anos.
um homem que não mais pode copular, diz o povo com seu grosseiro
amor pela verdade, ainda resta o prazer de cagar; podemos dizer de
tal homem que há volta ao erotismo anal, que existia antes do
erotismo genital, e foi reprimido e substituído por este último impulso.
Os sonhos de defecação podem assim ser também sonhos de
impotência (Freud, 1957, p. 254-255).
Um ano mais tarde, Freud afirma que “são as vicissitudes da libido que
decidem em favor da doença ou da moléstia nervosa, e que (...) a disposição
neurótica reside na história do desenvolvimento da libido” (Freud, 1912, p.
291). Ao apresentar o quarto “tipo de desencadeamento da neurose”, dirá que
isso pode ser explicado pelo fato dessas pessoas, em especial, encontrarem-
se em um determinado período de suas vidas (puberdade e menopausa), em
que a quantidade de libido sofre um aumento considerado suficiente para
provocar problemas de saúde e desencadear a neurose.
Embora a menopausa e o climatério apareçam em outros textos, Freud
não parece preocupado com os eventos da velhice ou com as possibilidades
de cura para os transtornos que surgem a partir daí. A sua preocupação
direciona-se para a nova vertente da pesquisa psicanalítica que são as causas
precipitantes das neuroses.
28
Na Conferência XXV (1917) e em Análise terminável e interminável (1937), Freud tratará o surgimento
da ansiedade na menopausa e na adolescência relacionado com o aumento de libido.
No Tema dos Três Escrutínios (1913), Freud traz os temas da velhice e
da morte através das lendas, dos mitos, contos de fadas e da literatura, onde
um homem deve escolher entre três mulheres, sendo que a mais jovem
sempre aparece como a melhor29. No caso do Rei Lear, a escolha será feita
entre três filhas, e Freud associa a escolha entre três filhas e não entre outras
três mulheres quaisquer ao fato dele ser representado como um velho, que
“não pode escolher muito bem entre três mulheres, de nenhuma outra maneira.
Assim, elas se tornaram suas filhas” (Freud, 1913, p. 370). Surge então a
questão: por que a escolha deve recair na terceira? A explicação psicanalítica
dada por Freud é que “se nos decidirmos a encarar as peculiaridades de nossa
‘terceira’ como concentradas em sua ‘mudez’, então a psicanálise nos dirá que,
nos sonhos, a mudez é uma representação comum da morte” (op. cit., p. 370).
Trata-se da própria Morte, a Deusa da Morte. Pelo fato do Rei Lear, apesar de
velho e moribundo, não estar disposto a renunciar ao amor das mulheres e
querer ouvir o quanto é amado, Freud tecerá o seguinte comentário:
Mas é em vão que um velho anseia pelo amor de uma mulher, como
o teve primeiro de sua mãe; só a terceira das Parcas, a silenciosa
Deusa da Morte, tomá-lo-á nos braços. (...) A sabedoria eterna,
vestida deste mito primevo, convida o velho a renunciar ao amor,
escolher a morte e reconciliar-se com a necessidade de morrer.
Cabe aqui, então, uma questão: só resta àquele que envelhece escolher
a morte? Tudo nos leva a crer que aos cinqüenta e sete anos de idade, esse
era o pensamento de Freud. Um pensamento absolutamente pessimista, sem
29
O pastor Páris, tendo de escolher entre três deusas, declara ser a terceira a mais bela. Cinderela também
é uma filha mais nova, preferida pelo príncipe às duas irmãs mais velhas. Psiqué, na história de Apulcio, é
a mais jovem e bela de três irmãs.
expectativas, poderíamos dizer até mesmo depressivo, em relação às questões
do envelhecimento. Desencantado ele dirá que “com as mulheres temos
primeiro a menstruação, depois o casamento e posteriormente a menopausa.
Finalmente a morte constitui uma verdadeira ajuda” (Freud, 1912, p. 264).
Após o climatério e a menopausa só resta a morte. Esse é um raciocínio
lógico para alguém que vê na velhice o fim das possibilidades criativas, a
rigidez dos processos mentais, a entropia e para um saber popular de uma
época em que se considera que o único prazer que resta ao velho é o “prazer
de cagar”, em substituição ao prazer sexual. A impotência aparece aí, como
uma conseqüência inevitável da velhice.
Ao que tudo indica, a sexualidade do velho não existe para Freud. A
sexualidade, tema central da teoria psicanalítica, só existe na infância, na
adolescência e até certa etapa de vida do adulto. Parece-nos que aqui há a
influência do modelo biológico de desenvolvimento, segundo o qual, após a
fase de maturidade ocorre uma fase de declínio, um período de involução que
finaliza com a morte.
Em Moisés e o Monoteísmo, já no final da vida, Freud volta a falar de
seu desencanto em relação à velhice, enfatizando, agora, o enfraquecimento
dos poderes criativos e vai discordar da opinião de Bernard Shaw, segundo a
qual
3.2.2 Os ideais
30
Não se trata dos quadros psicopatológicos descritos pela nosografia psiquiátrica e sim, de “estilos
psíquicos diferenciados de o sujeito se defrontar com a tragicidade da morte em estado puro e a
inexistência de um futuro possível” (Birman, 1995).
É preciso se traçar projetos que possam ser realizados em um
espaço de tempo mais curto, é preciso se pensar no possível e não
mais no ideal como algo que pode ser alcançado. (...) Os sonhos e
projetos só podem ser idealizados se há a possibilidade de realizá-los
em curto espaço de tempo. Vê-se aí instalada uma certa limitação
tanto do Eu ideal, como do Ideal do eu que podem remeter o sujeito a
uma redescrição do seu próprio mito. (Berlink, 1996, p. 297-301).
3.2.3 O Luto
[...] por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo.
Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si
próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (...) para substituir os
objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos
(Freud, 1916 [1915], p. 348).
ÉPOCA, São Paulo: Editora Globo, 1999, semanal, Ano II, n. º 65.
MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
PITTA, A. Hospital: dor e morte como oficio. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1994.
VERAS, R. [et al]. Terceira idade: desafios para o Terceiro Milênio. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará: UnATI / UERJ, 1997.