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VINICIUS JOSÉ DE LIMA SOUZA

A GESTÃO NEOLIBERAL DO SOFRIMENTO PSÍQUICO NO


DIAGNÓSTICO DE TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E
HIPERATIVIDADE (TDAH)

São João del-Rei


PPGPSI-UFSJ
2021
VINICIUS JOSÉ DE LIMA SOUZA

A GESTÃO NEOLIBERAL DO SOFRIMENTO PSÍQUICO NO


DIAGNÓSTICO DE TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E
HIPERATIVIDADE (TDAH)

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em


Psicologia da Universidade Federal de São João del-
Rei, como requisito para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia.

Área de Concentração: Psicologia


Linha de Pesquisa: Fundamentos Teóricos e
Filosóficos da Psicologia

Orientador: Prof. Dr. Pedro Sobrino Laureano

São João del-Rei


PPGPSI-UFSJ
2021
Ficha catalográfica elaborada pela Divisão de Biblioteca (DIBIB)
e Núcleo de Tecnologia da Informação (NTINF) da UFSJ,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Souza, Vinicius José de Lima.


S729g A gestão neoliberal do sofrimento psíquico no
diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) / Vinicius José de Lima Souza
; orientador Pedro Sobrino Laureano. -- São João del
Rei, 2021.
105 p.

Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em


Psicologia) -- Universidade Federal de São João del
Rei, 2021.

1. mal-estar. 2. sofrimento psíquico. 3.


neoliberalismo. 4. diagnóstico. 5. TDAH. I. Laureano,
Pedro Sobrino, orient. II. Título.
AGRADECIMENTOS

Ao professor e orientador Pedro Laureano pelo acolhimento, orientações, pela confiança e


compreensão com as dificuldades encontradas durante a escrita desta dissertação no período
da pandemia de covid-19.

Ao professor e amigo Tiago Iwasawa por ter me apresentado a epistemologia histórica e a


psicanálise. Além das inúmeras contribuições feitas ao meu percurso de pesquisador desde
o período da graduação em Psicologia até os dias atuais.

Ao professor Roberto Calazans por suas valiosas contribuições para o presente trabalho de
pesquisa.

A todos os professores do PPGPSI da UFSJ pelo empenho na formação de pesquisadores.

Aos meus pais, Rubia e Eronildo, pelo apoio e incentivo aos meus estudos.

À minha companheira Raquel pela parceria diária.

Aos amigos, Leandro, Gustavo, Thaís, Marina, Jéssica, Isabela e Max, pelo afeto e pelos
bons momentos partilhados em São João del-Rei.
RESUMO

O presente trabalho de pesquisa parte da tese da irredutibilidade do mal-estar na cultura para


demonstrar como o neoliberalismo se configura uma gestão ideológica do mal-estar na
contemporaneidade. Uma das principais estratégias de socialização presentes no
neoliberalismo é a gestão do sofrimento psíquico através da produção de diagnósticos pelo
discurso psiquiátrico. Entre esses diagnósticos encontra-se o diagnóstico de Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que vem sendo diagnosticado em milhares de
sujeitos ao redor do mundo, principalmente, entre crianças e adolescentes. Nosso objetivo
geral é demonstrar como a expansão desses diagnósticos reflete a gestão neoliberal do
sofrimento psíquico. Para tanto, realizamos uma articulação teórica, a partir da psicanálise,
que visa mostrar como o mal-estar aponta para uma inadequação radical do sujeito aos
programas culturais e também como o neoliberalismo vai tentar tamponar o mal-estar através
da promoção de um forma de vida que se funda no princípio da concorrência e no modelo
da empresa como norma subjetiva. Defendemos que a promoção dessa forma de vida não se
faz sem a produção de subjetividades a partir de diagnósticos psiquiátricos e vemos nos
diagnósticos de TDAH um exemplo bastante ilustrativo disso.

Palavras-chave: mal-estar; sofrimento psíquico; neoliberalismo; diagnóstico; TDAH.


ABSTRACT

The present research work starts from the thesis of the irreducibility of the malaise in culture
to demonstrate how neoliberalism configures an ideological management of the malaise in
contemporaneity. One of the main socialization strategies present in neoliberalism is the
management of psychic suffering through the production of diagnoses through the
psychiatric discourse. Among these diagnoses is the diagnosis of Attention Deficit
Hyperactivity Disorder (ADHD), which has been diagnosed in thousands of subjects around
the world, mainly among children and adolescents. Our general objective is to demonstrate
how the expansion of these diagnoses reflects the neoliberal management of psychological
distress. Therefore, we carry out a theoretical articulation, based on psychoanalysis, which
aims to show how the malaise points to a radical inadequacy of the subject to cultural
programs and also how neoliberalism will try to buffer the malaise by promoting a form of
life that is based on the principle of competition and on the business model as a subjective
norm. We defend that the promotion of this way of life cannot be done without the
production of subjectivities based on psychiatric diagnoses and we believe that ADHD
diagnoses are a very illustrative example of this.

Keywords: malaise; psychic suffering; neoliberalism; diagnosis; ADHD.


SUMÁRIO

Introdução ..........................................................................................................................06

1. O mal-estar na cultura .................................................................................................13

1.1. A clínica das neuroses e o conflito pulsional................................................................ 13

1.2. Pulsão de morte............................................................................................................. 18

1.3. Mal-estar e sofrimento.................................................................................................. 22

2. A gestão ideológica do mal-estar no neoliberalismo.................................................. 30

2.1. Fantasia ideológica....................................................................................................... 30

2.2. Neoliberalismo.............................................................................................................. 33

2.3. A subjetividade neoliberal............................................................................................ 36

2.4. Performance e gozo...................................................................................................... 44

3.5. A gestão neoliberal do sofrimento psíquico................................................................. 49

3. TDAH: patologia da performance............................................................................... 61

3.1. A construção histórica do TDAH como fato patológico.................................................61

3.2. O culto dos estimulantes no quadro normativo neoliberal..............................................74

3.3. Saúde persecutória.........................................................................................................80

3.4. Apostar no mal-estar: a potência normativa do patológico............................................84

Considerações finais.............................................................................................................90

Referências .......................................................................................................................... 94
Introdução

As pesquisas psicanalíticas conduzidas por Sigmund Freud assinalam uma


contribuição clínica decisiva: a descoberta do inconsciente através dos sintomas neuróticos
foi também a descoberta de que não há clínica da civilização sem clínica do sujeito. O
tratamento das neuroses levado a cabo por Freud não apontou senão para a inadequação
radical do sujeito aos programas culturais. Afirmar os sintomas neuróticos como formações
de compromisso foi a maneira freudiana de dizer que o sofrimento psíquico aponta, entre
outras coisas, para a impossibilidade de esgotamento do sujeito nas formas de subjetivação
produzidas historicamente. O mal-estar na civilização (1930/2011) é a expressão de um
desacordo permanente entre o sujeito e o quadro normativo da cultura, no qual os processos
de sociabilidade exigem dos sujeitos determinadas disposições de conduta. Assinalar a
radicalidade da tese freudiana acerca do mal-estar nos parece um ponto de partida
interessante para pensar como as racionalidades dominantes no cenário social e os modos de
subjetivação, a elas correspondentes, respondem ao mal-estar na contemporaneidade.
Da primeira metade do século XX para os dias de hoje, as formas de socialização
sofreram algumas mudanças. Se nos tempos de Freud a repressão era o principal mecanismo
de coesão social vigente na sociedade, com o advento de um novo ethos do capitalismo, no
final do século XX, a repressão perdeu a sua centralidade. Segundo Vladimir Safatle (2008),
o novo ethos do capitalismo é assinalado através do esgotamento de uma sociedade de
produção e o advento de uma sociedade de consumo: a ética protestante do trabalho é
paulatinamente substituída por uma ética do direito ao gozo. Se a primeira repercutia nos
processos de socialização através do imperativo de renúncia pulsional internalizado pelos
sujeitos através de um supereu repressivo, a segunda repercute através da internalização de
um supereu que impele o sujeito a buscar permanentemente satisfações imediatas, como bem
salientou Jacques Lacan (1970-1971/2009). O novo ethos do capitalismo exige, portanto,
uma nova disposição de conduta dos sujeitos que reverbera nas formas de expressão do mal-
estar em nossa época.
Pierre Dardot e Christian Laval (2016) denominam o novo ethos do capitalismo de
racionalidade neoliberal. O neoliberalismo é conhecido entre muitos por ser uma doutrina
econômica. Mas, longe de se resumir à defesa da lei de mercado e de buscar estabelecer
limites sobre a intervenção estatal, o neoliberalismo configura-se, acima de tudo, como uma
racionalidade sustentada por discursos e práticas que produzem formas de existência. Uma
racionalidade é uma forma de pensar o existente, isto é, não é somente algo que serve para

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orientar o nosso julgamento e compreensão das coisas. Mas, é também o que funciona como
uma normatividade que intenta produzir uma forma de vida inteiramente determinada a
partir da eleição de modelos de sociabilidade que sejam viáveis e passíveis de
reconhecimento (Safatle, 2012).
Michel Foucault (2008) foi um dos primeiros a considerar o caráter de racionalidade
do neoliberalismo ao afirma-lo como uma política de sociedade. Sua análise foi precisa ao
apontar para a disposição de conduta exigida dos sujeitos nas sociedades neoliberais.
Segundo Foucault (2008), no neoliberalismo, a forma de vida exigida dos sujeitos pode ser
chamada de “empresário de si mesmo”. Também para Dardot e Laval (2016), o empresário
de si mesmo é a subjetividade forjada pelos dispositivos neoliberais para viver em um mundo
concorrencial, gerenciando sua vida em busca da maximização de seus desempenhos. Com
a produção dessa subjetividade, trata-se agora de promover coesão social através da
internalização de um “ideal empresarial de si”, forma pela qual a dinâmica pulsional dos
sujeitos é expropriada pela lógica econômica. É assim que podemos entender como
empreender parece ter se tornado a máxima das condutas em todos os seguimentos da vida:
a empresa como norma de conduta é uma diretriz formadora de modelos de sociabilidade
que reproduzem a lógica do capital nas relações entre os sujeitos.
Contudo, o que precisamos afirmar aqui é que formas de subjetivação, como a do
empresário de si, não se produzem unicamente através da internalização dos discursos
dominantes numa sociedade e dos predicados que estes fazem circular. Formas de existência
são, também, produzidas através da determinação dos desvios possíveis em relação às
expectativas sociais, ou seja, através da determinação daquilo que não se conformou ao
quadro de possibilidades de uma determinada situação. E a maneira pela qual as sociedades
o fazem é através do estabelecimento de quadros patológicos, pelo discurso psiquiátrico, que
visam determinar os modelos desviantes da normalidade para que os sujeitos tenham seu
sofrimento reconhecido e tratado pelas modalidades de intervenção consideradas válidas.
Acreditamos que essa é uma modalidade de resposta ao mal-estar fundamental no contexto
do neoliberalismo.
Isso fica mais claro se repararmos que nem toda expressão do mal-estar se traduz
imediatamente em patologia. Para que o mal-estar se traduza em patologia é preciso que
discursos o reconheçam e o nomeiem como tal. Dunker (2015) denomina de diagnóstica os
atos de reconhecimento que determinam a experiência social e individual da patologia e do
tratamento. Diagnóstica é “um sistema de possibilidades predefinidas envolvendo um
sistema de signos, uma prática de autoridade e uma gramática das formas de sofrimento que

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são agrupadas em uma unidade regular” (Dunker, 2015, p. 20). É dentro do sistema
composto pela diagnóstica que os atos diagnósticos se tornam inteligíveis. Ou seja, a
diagnóstica envolve todos os dispositivos que são mobilizados para reconhecer e oferecer
um tratamento considerado válido para determinada patologia. Dessa forma, a racionalidade
diagnóstica “opera cifrando, reconhecendo e nomeando o mal-estar em modos mais ou
menos legítimos de sofrimento e, secundariamente, estipulando, no interior deste as formas
de sintoma” (Dunker, 2015, pp. 20-21).
Desse modo, a tradução do mal-estar em patologias não é sem consequências ético-
políticas, já que uma patologia só adquire legitimidade a partir dos atos de reconhecimento
de uma diagnóstica estabelecida previamente. Ou seja, uma forma de sofrimento só é
reconhecida e tratada se enquadrar-se nos critérios estabelecidos por uma diagnóstica
produzida por discursos históricos, e que, por essa mesma razão, é impregnada pelos valores
morais e ideológicos hegemônicos em uma sociedade. Não é por acaso que Dunker e
Kyrillos (2011) vão dizer que o campo da psicopatologia guarda uma dependência histórica
de noções filosóficas, quando se coloca a pergunta acerca da universalidade e da evolução
das formas do patológico.
Dentro dessa modalidade de resposta ao mal-estar, o discurso psiquiátrico adquire
uma função decisiva ao traduzir o sofrimento psíquico em patologias mentais que serão
“objeto de tratamento por modalidades de intervenção médica que visam permitir a
adequação da vida a valores socialmente estabelecidos com forte carga disciplinar” (Safatle,
2018, p. 09). Essa tradução se opera fundamentalmente através do estabelecimento do
patológico enquanto uma alteração quantitativa dos estados considerados normais. Dentro
do paradigma biologista da psiquiatria contemporânea, as alterações quantitativas do
patológico são buscadas em marcadores biológicos, principalmente, através de pesquisas e
exames do cérebro. Dentro dessa perspectiva, os estados patológicos são compreendidos
como desvios de uma normalidade e a intervenção médica e psicológica visa à adequação
dos sujeitos diagnosticados a valores socialmente estabelecidos. Ou seja, temos aqui uma
modalidade de intervenção que estrutura um processo de normalização, como podemos
pensar a partir de Georges Canguilhem (1966/2019).
No estabelecimento dessas patologias pelo discurso psiquiátrico, parte-se do
pressuposto de que a saúde corresponde à medida exata de adequação do sujeito aos ideais
culturais. O que nos leva a considerar que as categorias diagnósticas produzidas pelo saber
médico são também uma forma de socializar sujeitos, pois, na medida em que um sujeito é
diagnosticado com uma patologia, uma série de expectativas sociais é lançada sobre ele

8
através dos dispositivos que buscarão tratar de sua condição. É nesse momento que o
diagnóstico e o tratamento se tornam uma modalidade de resposta ao mal-estar, pois tentam
escamoteá-lo através de nomeações psiquiátricas fortemente performáticas (Hacking, 2006),
que fornecem uma identidade para o sujeito e determinam seus modos de participação social.
Tendo em vista, portanto, que a tradução do mal-estar em patologias opera uma
conservação de quadros normativos previamente estabelecidos, nosso interesse se volta para
uma patologia que vem sendo diagnosticada em um número significativo de sujeitos, no
Brasil e no mundo. Nos referimos ao Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH), catalogado no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM),
atualmente em sua quinta versão.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o TDAH é o transtorno mental
mais comumente diagnosticado entre crianças e adolescentes no mundo. Nos Estados
Unidos, a porcentagem de crianças e adolescentes de 3 a 17 anos diagnosticada com o
transtorno chegou a 8,8%, em 2019, segundo o Centers for Disease Control and Prevention
(CDC).1 No Brasil, faltam dados sobre a quantidade de sujeitos diagnosticados com TDAH.
Em números bastante imprecisos, a ANVISA (2012) estimou entre 0,9% e 26,8% a
prevalência do TDAH entre crianças e adolescentes brasileiros. E revelou, no único boletim
publicado até os dias de hoje, que houve um crescimento de 117% na quantidade de caixas
de metilfenidato (estimulante utilizado no tratamento de TDAH) vendidas entre os anos de
2009 e 2011.2
Diante desse cenário é importante se perguntar: em função de qual quadro normativo
o TDAH vem se tornando uma patologia muito diagnosticada entre os sujeitos? Pois, como
salientamos mais acima, patologias mentais são identificadas pelo discurso psiquiátrico em
relação a um quadro determinado de expectativas sociais. Dessa forma, trata-se de se
perguntar qual horizonte de expectativas é reforçado através da expansão dos diagnósticos
de TDAH e o consumo crescente de estimulantes?
Nas últimas edições do DSM, houve uma tentativa de “rompimento do nexo com os
discursos psicanalíticos e social, que faziam a patologia mental depender dos modos de
subjetivação e socialização em curso, em um dado regime de racionalidade” (Dunker &
Kyrillos, 2011, p. 618). O DSM foi qualificado por seus colaboradores como supostamente

1
Disponível em https://www.cdc.gov/nchs/fastats/adhd.htm. Acesso em 10/05/2021.
2
Os medicamentos estimulantes do sistema nervoso central, como o metilfenidato e as anfetaminas, são a
principal terapêutica utilizada para tratar o transtorno. O que relaciona o crescimento no número de
estimulantes vendidos à grande quantidade de crianças e adolescentes diagnosticados com o transtorno.

9
ateórico e neutro em relação às diversas teorias existentes no campo da psicopatologia
(Resende, Pontes & Calazans, 2015). Contudo, não acreditamos que esses modos de
subjetivação não estejam presentes implicitamente na produção das categorias diagnósticas
do manual. Dessa forma, o objetivo geral do presente trabalho é demonstrar como o
diagnóstico de TDAH se configura uma resposta ao mal-estar nas sociedades neoliberais.
Nossa escolha pelo TDAH se fez por duas razões centrais: acreditamos que a
categoria diagnóstica agrupa organizações sintomáticas que guardam estreitas relações com
as formas de socialização neoliberais. Buscaremos mostrar isso relacionando os sintomas
descritos pela categoria com as principais características da racionalidade neoliberal e os
contextos de socialização nos quais o diagnóstico é mais comumente demandado. Além
disso, como a expansão dos diagnósticos de TDAH tem sido acompanhada por um
crescimento no consumo de medicamentos estimulantes, acreditamos que o transtorno
ilustra muito bem o processo de medicalização da existência posto em curso pelas últimas
edições do DSM. A cada reedição, num esforço de estabelecer sem equívocos as
modalidades de manifestação da patologia mental, o DSM torna o limiar entre o normal e o
patológico ainda mais tênue, fazendo das mais diversas manifestações dos sujeitos
expressões de sintomas de transtornos mentais. Além de promover a medicalização da vida
através de diagnósticos e tratamentos que visam o reestabelecimento dos ideais normativos
presentes na cultura contemporânea.
O que deve ter ficado claro até aqui é que nosso problema de pesquisa é de inspiração
teórica, tendo a psicanálise como principal norteador teórico. No que diz respeito a nossa
orientação metodológica, ou seja, ao modo como encaminharemos o problema de pesquisa,
utilizamos como método a psicanálise aplicada, termo cunhado por Freud, mas também
chamado por Jacques Lacan de psicanálise em extensão, como nos assevera Rosa (2004):
A Psicanálise extramuros ou em extensão diz respeito a uma abordagem – por via da
ética e das concepções da psicanálise – de problemáticas que envolvem uma prática
psicanalítica que aborda o sujeito enredado em fenômenos sociais e políticos, e não
estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico. (Rosa, 2004, p. 01)

Como vimos, trata-se de uma pesquisa em psicanálise que não se restringe à clínica
stricto senso, ou seja, não se limita às formações do inconsciente que emergem na psicanálise
em intensão, pois as manifestações do sujeito do inconsciente estão presentes nos mais
diversos acontecimentos da vida diária. Não é por acaso que em diversas ocasiões Freud
apresenta evidências clínicas e formula conceitos a partir de obras literárias, como podemos

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ver em O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen (1907/2015) e em Uma recordação
de infância de Leonardo da Vinci (1910/2013), e também a partir de casos que ele não
atendeu, como O pequeno Hans (1909/2015) e O caso Schreber (1911/2010).
Com isso, queremos dizer que o fato de não se tratar de uma pesquisa restrita à
situação de análise, não implica em perda de rigor metodológico, pois as condições que
fazem da psicanálise um método de tratamento e também de investigação, como afirmou
Freud (1922/1996), também estão presentes na psicanálise em extensão. Segundo Dunker
(2013), as condições necessárias para a realização de uma pesquisa em psicanálise –
incluindo a psicanálise em extensão – são as seguintes:
A recordação: isto é, um discurso que possa se guiar pela história e pelas filiações e
contingências que ela implica; a implicação: isto é, um discurso que possa se
interrogar eticamente sobre as formações de estranhamento com as quais se depara;
a transferência: isto é, um discurso que se articule em relação a uma suposição de
saber, que se faça, portanto, pelo menos intenção de diálogo. (Dunker, 2013, p. 71)

São três condições que, se bem observadas, nos remetem à posição de analisante. E
é essa posição que Dunker (2013) propõe na tomada do objeto de pesquisa pelo pesquisador.
Na recordação, temos uma condição que diz da trajetória do pesquisador até a formulação
do problema de pesquisa; na implicação, o não recuo frente aos impasses produzidos na
articulação conceitual; e a transferência diz respeito ao sim que dizemos aos significantes da
psicanálise a partir de uma suposição de saber, como afirma Elia (1999). Dunker (2013)
ainda assinala que para construir uma evidência psicanalítica que tenha algum poder de
generalização, é preciso que as três condições do discurso analisante sejam acrescidas de um
segundo nível de exigências metodológicas: a fixação de um conjunto de enunciados a partir
dos referenciais bibliográficos em questão. Enunciados nos quais a enunciação do analisante
será introduzida. “Desta maneira, coabitam no resultado final a universalidade (e
atemporalidade) dos enunciados e a particularidade (e temporalidade) das enunciações.”
(Dunker, 2013, p. 72).
As considerações de Dunker (2013) convergem com o que Iribarry (2003) chama de
ensaio metapsicológico:
O ensaio retoma o ócio infantil e o entusiasmo pelo já feito. Como o poeta efebo que
goza a influência de seu mestre até encontrar a liberdade de sua letra e viver uma
angústia cuja influência é a de não poder não escrever, mas agora como autor
singular. (Iribarry, 2013, p. 130)

11
Vemos nessa breve passagem como as condições citadas por Dunker (2013) e a união
de enunciado e enunciação aparecem no ensaio metapsicológico. O autor aponta para a
construção de um estilo através do qual o escritor pode autorizar-se em sua escrita, ou seja,
introduzir sua enunciação nos enunciados que compõem as suas referências na pesquisa.
Algo fundamental para que não se perca de vista o problema que anima a pesquisa. Iribarry
(2003) também salienta que um ensaio não busca estabelecer uma correspondência entre
cultura e natureza ou entre conceitos e realidade, mas sim produzir modelos conceituais a
partir dos quais a própria experiência é transformada. Isto é, o ensaio não busca soluções,
mas a produção de novos impasses.
Podemos afirmar então que em nossa pesquisa buscamos nos colocar na posição de
analisante frente ao nosso objeto de estudo, uma vez que partimos da hipótese do
inconsciente e consideramos que suas manifestações não se restringem à situação de análise,
podendo ser vistas também em fenômenos sociais e políticos. Por isso, consideramos a
psicanálise em extensão um método de pesquisa legítimo para a condução de nosso
problema.

12
1. O mal-estar na cultura3

O objetivo deste primeiro capítulo é defender a tese de que o mal-estar na cultura é


insolúvel, a partir do trabalho de conceitualização empreendido por Sigmund Freud.
Consideramos fundamental partir desta tese psicanalítica para dar encaminhamento ao nosso
problema de pesquisa, uma vez que objetivamos demonstrar como a subjetividade produzida
pelo diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) se configura
uma gestão ideológica do mal-estar, que se articula diretamente à racionalidade neoliberal.
Com esse objetivo, iniciaremos o nosso trajeto buscando no percurso de Freud, como a
cultura será alvo de reflexão a partir da psicanálise e como a tese do mal-estar aponta para
um conflito insolúvel na constituição do sujeito.

1.1. A clínica das neuroses e o conflito pulsional

As reflexões de Freud acerca da cultura não são motivadas pela pretensão de produzir
estudos sociológicos ou filosóficos da época em que viveu, mas a partir da intenção de
elaborar um trabalho sobre as causas do sofrimento humano manifesto nos sintomas
neuróticos. Foi a partir da clínica das neuroses que Freud lançou um olhar sobre a cultura,
sobretudo, em função dos casos de histeria que atendeu e pesquisou. Já nos Estudos sobre a
histeria (Breuer & Freud, 1895/1996), há uma constatação importante: os sintomas histéricos
desaparecem quando a paciente evoca uma lembrança patogênica, na maioria das vezes, uma
lembrança de cunho sexual. O que Freud depreendeu disso foi que, no estudo da etiologia
da histeria, era preciso atentar para a relação dos sintomas com as lembranças recalcadas
pelas pacientes.
Se é verdade que as causas das perturbações histéricas devem ser encontradas nas
intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a
expressão de seus desejos mais secretos e reprimidos, então a elucidação completa
de um caso de histeria implica certamente a revelação dessas intimidades e a
divulgação desses segredos. (Freud, 1972/1996, pp. 5-6)

O que a passagem acima nos mostra é que já há, nesse momento, a indicação de um
conflito como agente etiológico decisivo na formação dos sintomas. Dado que o conflito é

3
“[...] desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização [...] (Freud, 1927/1996, p. 15). Assim sendo, não
faremos distinção entre os dois termos.

13
protagonizado pela repulsa das pacientes às representações sexuais recalcadas, há certamente
a presença da moralidade cultural neste embate. É o que Freud deixará expresso em sua
primeira teoria pulsional, quando conceitualiza o conflito através da oposição entre pulsões
sexuais e pulsões de autoconservação (Freud, 1910/1996).
O que nos interessa atentar nesse início da clínica das neuroses é que os sintomas são
pensados em sua relação com um conflito que divide o sujeito. E é precisamente este conflito
que remete Freud a um exame da cultura, não para produzir uma psicologia do indivíduo,
mas porque “o que via na clínica só encontrava legitimidade quando se articulava ao
funcionamento social, não se restringindo a um suposto psiquismo que funcionaria
independentemente daqueles elementos” (Vahle & Cunha, 2011, p. 217).
A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908/2015) é inegavelmente um
trabalho de Freud, já nos primeiros anos do século XX, que expõe nitidamente a preocupação
do psicanalista vienense em recorrer a um exame da cultura para elaborar as causas do
sofrimento neurótico. Naquela altura, a doença nervosa já era associada por alguns médicos
às formas de vida produzidas pela cultura, principalmente no tocante às exigências sociais e
econômicas que o desenvolvimento das sociedades modernas impôs aos sujeitos. Portanto,
já havia a sinalização entre alguns médicos daquela época de que a cultura exigia dos sujeitos
um preço a ser pago com a doença nervosa, segundo o que relata Freud (1908/2015), a partir
de passagens de trabalhos dedicados ao tema e citados em seu texto.
Contudo, ainda que Freud (1908/2015) considerasse pertinente a preocupação de
seus colegas, ele afirmava que os argumentos por eles colocados eram insuficientes e, por
essa razão, ele foi adiante para enfatizar o que a clínica das neuroses havia revelado como
fator etiológico preponderante nos distúrbios nervosos: “a influência danosa da civilização
se reduz essencialmente à repressão4 nociva da vida sexual das populações (ou camadas)
civilizadas, devido à moral sexual ‘cultural’ nelas vigente” (Freud, 1908/2015, p. 366). Sua
constatação é atribuída ao método investigativo da psicanálise, que, segundo ele, o permitiu
descobrir que os sintomas nervosos resultam de complexos inconscientes que são uma
espécie de satisfação substitutiva para as necessidades sexuais (Freud, 1908/2015).
Os fenômenos substitutivos que surgem devido à repressão instintual5 são os que
descrevemos como nervosismo ou, mais precisamente, psiconeuroses. Os neuróticos
são aquele tipo de pessoa que, devido a uma organização recalcitrante, conseguem,

4
Deve-se entender o termo “repressão” por “recalque”.
5
Deve-se entender os termos “instintual” e “instintos” por “pulsional” e “pulsões”, respectivamente.

14
sob o influxo das exigências culturais, uma repressão dos instintos apenas aparente e
cada vez menos bem-sucedida, e que, por isso, mantêm sua colaboração nas obras da
cultura somente com enorme dispêndio de forças, com empobrecimento interior, ou
às vezes tem de suspendê-la por estarem doentes. (Freud, 1908/2015, p. 373)

A proposição freudiana acerca da etiologia dos sintomas nervosos parte da


compreensão de que, “em termos gerais, nossa civilização está baseada na repressão dos
instintos” (Freud, 1908/2015, p. 368). Temos, nessa citação, a noção de cultura que marcará
a sua obra: o trabalho da cultura exige renúncia pulsional. Em nome do bem comum, do
progresso da civilização, exige-se dos sujeitos que abram mão de uma parcela de satisfação
advinda das metas sexuais, restando-lhes buscar satisfações substitutivas em consonância
com os ideais da cultura. Freud (1908/2015) chamou a essa “capacidade de trocar a meta
originalmente sexual por outra, não mais sexual” (p. 369) de sublimação. Contudo, nem
sempre se alcança êxito nessa troca e as formações de compromisso que o sujeito faz acabam
sucumbindo ao que foi recalcado e que insiste em buscar satisfação. É a partir desse fracasso
que se manifestam os sintomas neuróticos.
Já vemos uma conceitualização, a partir da clínica das neuroses, que propõe aspectos
decisivos acerca do sofrimento neurótico. Pois, afirmar que os sintomas dos quais os sujeitos
neuróticos se queixam expressam não só a marca de um sofrimento, mas também um modo
de satisfação substitutiva, torna a contradição ou a divisão uma característica fundamental
do psiquismo.
Nesse momento, a partir dos achados da clínica das neuroses, as questões se colocam
para Freud nos termos de uma economia psíquica do prazer-desprazer. É o que veremos ser
conceitualizado em seus ensaios de metapsicologia. Trabalhos como Os instintos e seus
destinos (1915/2010), A repressão (1915/2010) e O inconsciente (1915/2010), tratam dos
processos primários do psiquismo, tendo em seu bojo o conflito entre as exigências culturais
e as pulsões sexuais do sujeito. Conflito este que leva Freud a propor os sistemas
inconsciente (Ics), pré-consciente (Pcs) e consciente (Cs), como forma de conceitualizar seus
achados. A metapsicologia freudiana vai então tratar das relações dinâmicas, econômicas e
topológicas dos processos psíquicos (Freud, 1915/2010).
Se Freud tivesse parado em seus ensaios de metapsicologia, já estaria claro que a
clínica das neuroses por ele inaugurada é também uma clínica da civilização. Mas ele foi
adiante, e explicitou ainda mais a necessidade de refletir sobre a cultura.

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Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2011) é um texto fundamental, quando
nosso objetivo é demonstrar que, em psicanálise, a clínica do sujeito é uma clínica da
civilização. Quanto a isso, Freud (1921/2011) é enfático já no início de seu trabalho ao
argumentar que a divisão entre psicologia social e psicologia individual é infundada, pois as
relações entre os sujeitos (com os pais, com o cônjuge, com o médico, etc.) são também
fenômenos sociais. Sua argumentação é fruto de uma análise que vai pensar a formação de
laços sociais ou a formação de grupos a partir dos laços libidinais.
Através da exposição das contribuições de autores como Gustave Le Bon e William
MacDougall acerca da formação das massas, Freud (1921/2011) nos mostra que uma de suas
preocupações é quanto ao que é necessário perder ou o preço que é preciso pagar para que o
sujeito se conforme às exigências do laço social. Para responder essa questão, Freud
(1921/2011) vai partir da suposição de que “as relações de amor (ou, expresso de modo mais
neutro, os laços de sentimento) constituem também a essência da alma coletiva” (p. 45). Ou
seja, será através das relações libidinais que ele buscará pensar a formação das massas.
Nossa justificativa é que a investigação psicanalítica nos ensinou que todas essas
tendências seriam expressões dos mesmos impulsos instintuais que nas relações entre
os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são afastados dessa
meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam bastante da sua
natureza original, o suficiente para manter sua identidade reconhecível (abnegação,
busca de aproximação). (Freud, 1921/2011, p. 43)

O que Freud parece ter compreendido muito bem foi que “os dispositivos de
formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são legíveis a partir
daquilo que compreendemos como sendo processos de identificação e de investimento
libidinal” (Safatle, 2008, p. 117). É precisamente o que nos mostra a proposição freudiana
de que uma massa “é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar
de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu.”
(Freud, 1921/2011, p. 76).
A proposição acima acerca da constituição das massas a partir de processos de
identificação e de investimento libidinal pode ser pensada mais amplamente em todos os
processos de socialização. Pelo menos é o que Freud (1921/2011) nos sinaliza ao reforçar as
suas elaborações produzidas em Totem e Tabu (1913/1996), quando argumentou que o
desenvolvimento do laço social guardava traços de uma horda primeva liderada por um
macho despótico, que vem a ser assassinado por seus filhos. O que Freud (1921/2011) vai

16
afirmar então, para sustentar sua tese de que a análise dos investimentos libidinais na
formação das massas nos permite dissolver a oposição entre psicologia individual e
psicologia social, é que o assassinato do pai primevo pelos filhos é motivado pela privação
a eles impostas de satisfazerem diretamente seus objetivos sexuais, forçando-os à abstinência
e ao estabelecimento de laços emocionais com ele e os demais. “Ele os compeliu, por assim
dizer, à psicologia da massa.” (Freud, 1921/1996, p. 87).
Contudo, o que Freud mostra é que o assassinato do pai não é resolutivo, pois os
irmãos se dão conta que, para que possam conviver juntos, precisam colocar algo no lugar
do pai: a Lei. E com isso, “o desenvolvimento do totemismo, o qual traz em si os começos
da religião, da moralidade e da organização social, está ligado ao violento assassínio do chefe
e à transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos” (Freud, 1921/2011, p.
84).
A massa nos parece, desse modo, uma revivescência da horda primeva. Assim como
o homem primevo se acha virtualmente conservado em cada indivíduo, assim
também pode ser restabelecida a horda primeva a partir de um ajuntamento humano
qualquer; na medida em que os homens são habitualmente governados pela formação
de massa, reconhecemos nesta a continuação da horda primeva. (Freud, 1921/2011,
p. 85)

A horda primeva não só pode surgir em qualquer reunião fortuita, mas é


fundamentalmente o que Freud via em sua clínica através do romance familiar dos
neuróticos. A presença do totemismo nas famílias burguesas do século XX pode ser vista,
por exemplo, na forma pela qual o filho, “para ser reconhecido como sujeito e como objeto
de amor no interior da esfera familiar, ou seja, para sair de uma situação de desamparo, e
ver-se garantido em sua posição subjetiva enquanto objeto de amor” (Safatle, 2008, p. 118),
necessita se identificar com aquele que sustenta uma lei repressora sobre as pulsões.
Diante disso, não é de se admirar que em relação àquele que representa a lei, o sujeito
tenha sentimentos ambíguos de amor e ódio, como bem observou Freud nos casos de neurose
obsessiva. Em Observações sobre um caso de neurose obsessiva (1909/2013), o famoso caso
de Ernst Lanzer, “o homem dos ratos”, Freud vai mostrar a presença da ambivalência afetiva
através dos sentimentos de seu paciente pelo pai, destacando principalmente a presença do
ódio como um afeto decorrente das interdições que o pai representava à realização de seus
desejos. O ódio, contudo, é um sentimento recalcado e repudiado pelo sentimento de amor
que o sujeito busca expressar em suas relações com a figura paterna.

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Vemos mais uma vez, portanto, um sujeito dividido na clínica freudiana das neuroses.
Se nos casos de histeria a divisão era marcada pela ameaça das pulsões sexuais ao eu, nos
casos de neurose obsessiva a divisão é protagonizada pela ambivalência afetiva. Na
impossibilidade de manifestar seu ódio e sua agressividade em relação ao pai, o obsessivo
recalca os sentimentos hostis e busca suplantá-los com o imperativo moral de um amor
fraterno. Os sintomas obsessivos vão então apontar para mais um fracasso nas formações de
compromisso do sujeito, ou melhor dizendo, para um conflito que o divide e que é o fator
etiológico preponderante de seu sofrimento psíquico.
O que deve ter ficado claro é como a problemática obsessiva se manifesta em Totem
e tabu (1913/1996). Segundo Vahle e Cunha (2011, p. 211), “eram a agressividade e o ódio
do obsessivo que estavam em jogo quando Freud expôs a presença destes mesmos impulsos
no ato assassino. Foi a culpa do obsessivo por assassinar o pai na fantasia que proporcionou
a ideia da culpa dos irmãos e a instalação de uma comunidade fraterna e da moral”. O que
nos permite deixar ainda mais nítido que é através da clínica psicanalítica, ou melhor, do
conflito pulsional que Freud busca fazer um exame da cultura. E também destacar que, mais
uma vez, a cultura aparece em sua obra, como pudemos ver em Psicologia das Massas e
Análise do Eu (1921/2011) e Totem e tabu (1913/1996), associada à renúncia pulsional,
embora na problemática obsessiva ela apareça também em outros termos.
Mas o que representa a realização de um exame da cultura a partir do conflito
pulsional, como o faz Freud? Vemos nesse intento uma crítica que se produz não através da
afirmação de uma realidade positiva, mas a partir da negatividade posta em cena pelo
conflito pulsional. Não se trata, para Freud, ao reconhecer o conflito pulsional como
etiologia do sofrimento neurótico, de propor a eleição de ideais como horizontes a serem
buscados na clínica psicanalítica. Mas, de salientar que é através da negatividade do conflito
pulsional que a positividade das identificações culturais deve ser pensada. Se os sintomas
dos sujeitos e outras expressões do inconsciente são tomadas como respostas ao laço social
que os atravessa, podemos afirmar também que a clínica psicanalítica inaugurada por Freud
é indissociável de uma crítica do social.

1.2. Pulsão de morte

Vejamos a partir de agora como a formulação do conceito de pulsão de morte na obra


freudiana vai mais uma vez colocar o conflito pulsional em evidência, tendo por um de seus
desdobramentos a elaboração da tese de que o mal-estar na cultura é insolúvel.

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A articulação entre o tema da morte, da destruição e da cultura pode ser vista já no
ano de 1915, nos textos de Freud sobre a Primeira Guerra Mundial.
A guerra na qual não queríamos acreditar irrompeu, e trouxe a... desilusão. Não é
apenas mais sangrenta e devastadora do que guerras anteriores, devido ao poderoso
aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel,
amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu. (Freud, 1915/2010, p.
215)

A desilusão anunciada por Freud é quanto ao insucesso das instituições sociais, e


principalmente dos Estados, em evitar um confronto armado de tamanhas proporções. A
guerra feria violentamente as normas morais que fundamentavam as próprias nações
civilizadas e frustrava a expectativa de Freud e seus contemporâneos, que acreditavam que,
embora uma guerra pudesse ocorrer, esta não perturbaria as relações éticas entre os povos e
não destruiria as instituições sociais erguidas em tempos de paz nas nações civilizadas:
“esperávamos que soubessem resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de
interesses” (Freud, 1915/2010, p. 212).
Ainda em 1915, Freud questiona, em Nossa atitude perante a morte (1915/2010) se
não deveríamos aceitar a inevitabilidade da guerra e nos adaptar a ela. Mas não só isso. Freud
(1915/2010) também questiona se “não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na
realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente
ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente?” (p. 246). São questões que
apontam para uma perspectiva trágica nos escritos freudianos: ao levantar a hipótese de um
estado permanente de guerra e de uma atitude inconsciente ante a morte, Freud começa a
“preparar o terreno” para uma tese teórica em sua obra que implicará em desdobramentos
éticos e políticos radicais, como pretendemos mostrar.
O conceito de pulsão de morte vai ser então enunciado em Além do princípio de
prazer (1920/2010). Neste texto, Freud discorre sobre a presença de tendências além do
princípio de prazer no aparelho psíquico. Tendências “que seriam mais primitivas que ele e
independentes dele” (Freud, 1920/2010, p. 176). Ou seja, trata-se de um texto
metapsicológico que tem por alvo o fator econômico do psiquismo.
O princípio de prazer é a forte tendência presente no aparelho psíquico de buscar
manter constante ou reduzir ao máximo o nível de excitação, seja através da diminuição do
desprazer ou pelo ganho de prazer (Freud, 1920/2010). Contudo, para Freud, isso não
implica em considerar que “a grande maioria de nossos processos mentais teria de ser

19
acompanhada de prazer ou conduzir ao prazer” (Freud, 1920/2010, p. 165), uma vez que, na
psique, forças ou tendências outras se oporiam ao princípio de prazer, não permitindo a
dominância deste último.
São precisamente as tendências que contraporiam o princípio de prazer que Freud vai
buscar em seu texto. De saída, o princípio de realidade e as cisões do aparelho psíquico são
apontados como potenciais fontes de desprazer. A substituição do princípio de prazer pelo
princípio de realidade, por efeito das pulsões de autoconservação do Eu, resultaria no
adiamento do prazer e na aceitação temporária do desprazer. E as cisões do aparelho psíquico
seriam efeitos da incompatibilidade das metas de algumas pulsões com as demais,
implicando na exclusão delas da unidade do Eu, e na impossibilidade, ao menos temporária,
delas alcançarem satisfação (Freud, 1920/2010).
Na sequência de seu texto, Freud vai apontar “experiências analíticas” que repetem
situações desprazerosas e que, por isso, contrariariam o princípio de prazer. A primeira delas
é o sonho na neurose traumática, no qual o sujeito revive a situação traumática. E a segunda
é a observação de uma brincadeira infantil, conhecida por “fort-da”, na qual uma criança
observada por Freud arremessa um carretel, proferindo “fort” (“foi embora”), e o puxa de
volta, proferindo “da” (“está aqui”). Segundo ele, o garoto repetia com a brincadeira a
vivência desagradável do desaparecimento da mãe.
Mas o que parece decisivo para Freud, na hora de considerar a existência de uma
tendência contraria ao princípio de prazer são suas observações “extraídas da conduta na
transferência e do destino das pessoas” (Freud, 1920/2010, p. 183). São observações feitas
em seus anos de clínica psicanalítica e que lhe fizeram reformular os objetivos da psicanálise.
Se inicialmente a psicanálise buscou reunir e comunicar ao analisando seu inconsciente
oculto, e, num segundo momento, buscava induzir o paciente a abandonar suas resistências
através da sugestão, com o tempo Freud mudou sua aposta:

Tornou-se cada vez mais claro, porém, que a meta proposta, de tornar consciente o
que era inconsciente, também não era inteiramente exequível por esse caminho. O
doente não pode lembrar-se de tudo o que nele está reprimido, talvez precisamente
do essencial, não se convencendo da justeza da construção que lhe é informada. Ele
é antes levado a repetir o reprimido como vivência atual, em vez de, como preferiria
o médico, recordá-lo como parte do passado. (Freud, 1920/2010, pp. 176-177)

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Diante disso, Freud passa a ver a transferência enquanto um fragmento de repetição,
no qual algo da vida sexual infantil do sujeito se repete. Mas o que chama mesmo sua atenção
é o fato de que aquilo que se repete é doloroso para o sujeito. Reconhecendo que se trata da
ação de pulsões em busca de satisfação, Freud parece estranhar que essa satisfação pulsional
não se desdobre necessariamente em uma vivência prazerosa para o sujeito. Muito pelo
contrário. Mesmo tendo produzido desprazer em épocas remotas, “a ação se repete, apesar
de tudo; uma compulsão impele a isso” (Freud, 1920/2010, p. 181). Freud denomina então
de “compulsão à repetição” essas vivências que sobrepujam o princípio do prazer através de
uma satisfação pulsional direta.
Será então a partir da compulsão à repetição que Freud vai formular o conceito de
pulsão de morte como a tendência pulsional a restaurar um estado anterior ou retornar ao
inanimado, presente em todo organismo vivo (Freud, 1920/2010). Esse conceito reedita o
conflito pulsional, que passa a ser protagonizado agora através da pulsão de morte e das
pulsões sexuais ou pulsões de vida. A pulsão de morte busca satisfação de forma direta,
através de descarga, e a pulsão sexual busca satisfação através da linguagem. A diferença
crucial reside em que: na primeira temos energia livre e móvel, e na segunda temos energia
ligada.
Vimos que uma das primeiras e mais importantes funções do aparelho psíquico é
“ligar” os impulsos instintuais que lhe chegam, substituir o processo primário nele
dominante pelo processo secundário, transformar sua energia de investimento livre e
móvel em investimento predominantemente parado (tônico). (Freud, 1920/2010, p.
236)

Para Freud, é essa ligação da energia livre que introduz e assegura o princípio do
prazer. Dessa forma, a pulsão de morte seria uma tendência primária no aparelho psíquico e
as pulsões sexuais estariam à serviço do princípio de prazer. Se a primeira busca retornar a
um estado inanimado, ou seja, de tensão zero, recorrendo à descarga, as segundas buscarão
produzir vida ligando a energia livre da primeira.
Dentro dessa perspectiva, a vida se torna algo a ser produzido permanentemente, já
que a pulsão de morte é primária e força o retorno ao estado de inércia original ou à morte
propriamente. Mas para que a vida seja possível, o sujeito precisa do Outro. “Com efeito,
pela mediação do Outro seria promovida a ligação entre a força pulsional, os objetos e os
representantes daquela.” (Birman, 2005, p. 214). Se a força pulsional e seus representantes
não estão desde o princípio relacionados, não havendo ligação essencial entre eles “torna-se

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impossível a concepção de uma harmonia entre o registro da pulsão e o da civilização”
(Birman, 2005, p. 213), pois não há garantias de que os objetos e os representantes
produzidos pelas pulsões sexuais satisfarão inteiramente a força pulsional. Eis então a nova
e irredutível reedição do conflito pulsional: pulsão de morte e pulsões sexuais.
O que fica evidente com a proposição do conceito de pulsão de morte é a condição
existencial de desamparo do sujeito. Para que sua vida seja possível é necessário reafirmá-
la permanentemente, o que não se faz sem o Outro. É somente a partir do Outro que o circuito
pulsional pode se constituir e os destinos das pulsões podem ser delineados. A ausência de
relação originária entre a força pulsional e seus representantes e a dependência simbólica do
Outro apontam para um sujeito desde sempre desamparado. Dessa forma, Além do princípio
de prazer (1920/2010) apresenta uma conceitualização fecunda para as proposições que
serão elaboradas em O mal-estar na civilização (1930/2011).

1.3. Mal-estar e sofrimento

As proposições contidas em O mal-estar na civilização (1930/2011) são variadas.


Dentre tantas questões trabalhadas por Freud, queremos destacar uma em especial. É aquela
que diz respeito ao sofrimento humano. Certamente, quando nos referimos ao texto
freudiano para pensar o sofrimento, a primeira lembrança que nos ocorre é acerca das fontes
do sofrimento elencadas por Freud:
O sofrimento nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao
declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças
poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros
seres humanos. (Freud, 1930/2011, p. 20)

É interessante observar que elas emergem no texto justamente no capítulo em que


Freud inicia discorrendo acerca da finalidade da vida, que é uma questão em aberto para ele,
pois acredita que não foram encontradas respostas satisfatórias para ela, e que sequer
existam. Dessa forma, seu empenho não é o de buscar essas respostas definidoras, numa
busca que para ele é característica das religiões. A questão que Freud levanta é “o que revela
a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles
da vida e desejam nela alcançar?” (Freud, 1930/2011, p. 19). Ora, sob o domínio do princípio

22
de prazer, o fim buscado pelos homens é a felicidade, seja pelo prazer ou pela evitação da
dor. Essa é a resposta de Freud nesse ponto.
Nessa procura pela felicidade, guiada pelo princípio de prazer, muitas podem ser as
vias investidas pelos sujeitos. Freud destaca algumas muito comuns. Uma forma de evitar
desprazeres é o isolamento, podendo ele se dar, sobretudo, em relação à última das três fontes
de sofrimento por ele citadas, que é a relação entre os seres humanos. Afastar-se, distanciar-
se dos outros, pode assumir a função de se resguardar de frustrações, conflitos e também da
contingência que atravessa os relacionamentos humanos, não fazendo com que os
investimentos libidinais possam encontrar a satisfação esperada. Portanto, a tentativa de
isolar-se de outras pessoas, pode representar uma maneira de buscar a felicidade através da
quietude (Freud, 1930/2011).
Não é difícil lembrar de situações cotidianas nas quais o recurso ao isolamento é
tomado como evitação de dores e sofrimento. Poderíamos citar aqui um exemplo dado por
Slavoj Žižek (2010), acerca de alguns sujeitos que buscam o isolamento através de retiros
espirituais. O mais interessante que ele salienta é que, embora um sujeito possa isolar-se dos
outros, isso não significa que ele esteja isolado do Outro do social, pois este nos atravessa e
nos é constitutivo. Seja caminhando numa movimentada rua de São Paulo ou isolados no
alto de uma montanha, estamos sempre às voltas com o Outro. Uma prova disso, para ele, é
que muitas formas de isolamento são acompanhadas de construções paranoicas. O que nos
mostra que isolar-se não garante a ausência de sofrimento.
Mas, além do isolamento, Freud (1930/2011) cita outras formas de se buscar a
felicidade. Um método, segundo ele, mais cru, mais direto, é a intoxicação química do
organismo através de substâncias que, quando penetradas na corrente sanguínea, produzem
uma série de sensações prazerosas, alterando, inclusive, as percepções em torno da realidade.
O serviço dos narcóticos na luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão
valorizado como benefício, que tanto indivíduos como povos lhes reservaram um
sólido lugar em sua economia libidinal. (Freud, 1930/2011, p. 22)

Há uma gama de entorpecentes utilizados pela humanidade. Alguns são milenares,


atravessam povos, gerações e se popularizam por seus efeitos, que podem ser estimulantes,
anestésicos, alucinógenos, entre outros. A partir dos contextos de uso, assumem funções
distintas e circulam por espaços de socialização diversos. Para Freud (1930/2011), em
muitos desses contextos o uso visa afastar a tristeza, na medida em que permite ao sujeito

23
subtrair-se em algum grau à realidade e enveredar-se num mundo diferente, no qual melhores
condições de sensibilidade e percepção se façam presentes.
Mas, não é o que acontece sempre. Por vezes, busca-se a satisfação e encontra-se a
toxicomania. Outras vezes, busca-se o alívio do mal-estar e encontram-se efeitos colaterais
insuportáveis. Basta observar os exemplos de uso de psicotrópicos na clínica psiquiátrica e
as recorrentes mudanças de doses e substituições de drogas por psiquiatras. E caberia
também afirmar aqui que, em muitos desses casos, a inadequação não se faz por meras
questões de adaptação do organismo à droga. A inadequação se apresenta também em
relação às identificações que são mobilizadas para dar sentido ao uso dessas substâncias.
Isso envolve, inclusive, o consumo de drogas que ocorre dentro das formas de vida que a
nossa cultura tenta reproduzir a partir dos discursos e práticas sociais, como demonstraremos
mais adiante, fazendo referência ao contexto das sociedades neoliberais. Desse modo,
podemos afirmar que não será sempre que o recurso à droga terá como consequência
sensações prazerosas ou agradáveis.
Há situações também nas quais os deslocamentos da libido permitem ao sujeito fruir
de atividades que o deixam menos vulnerável às frustrações do mundo externo. Isso se deve,
segundo Freud (1930/2011), às convergências dessas atividades com o quadro de valores da
cultura. São iniciativas que envolvem o trabalho de sublimação das pulsões e fornecem
prazer através do trabalho psíquico e intelectual, podendo ser aí incluídas a produção de
obras de arte pelos artistas, a satisfação de um pesquisador com os avanços de suas pesquisas,
e tantas outras formas de trabalho que garantem uma cota de prazer aos sujeitos. Em nota,
Freud destaca a importância do trabalho profissional para a economia libidinal, sobretudo,
por permitir ao sujeito deslocar componentes libidinais de outras metas. Mas, também afirma
que o trabalho costuma trazer satisfação quando pode ser escolhido livremente. E como essa
não é a realidade da maioria dos homens, torna-se uma fonte de satisfação para poucos. Além
disso, mesmo nas situações em que o trabalho mobiliza talentos e interesses do sujeito, ele
não está plenamente resguardado do sofrer, uma vez que as contingências da vida podem
introduzir mudanças que inviabilizem esta via de investimento libidinal (Freud, 1930/2011).
Podemos afirmar também que a satisfação encontrada no trabalho, seja ele artístico
ou profissional, está em larga medida atravessada pelo contexto social em que se vive e pela
forma como algumas atividades são valorizadas socialmente. Muitas profissões são eleitas
como potenciais objetos de satisfação pela cultura em função das formas de individuação
reproduzidas pelos discursos. É o que poderemos ver mais adiante, quando discorrermos
sobre a racionalidade neoliberal.

24
Freud menciona também a apreciação da beleza das coisas do mundo como uma
maneira de obter prazer. Seja através da admiração à produção de um artista: uma pintura,
uma escultura, um romance; seja também a apreciação de corpos humanos, gestos, posturas.
E, acima de tudo, a beleza encontrada nos objetos da natureza, que em sua diversidade abriga
uma infinidade de seres e lugares que costumam encantar os sentidos humanos. Embora não
se evidencie uma clara utilidade na beleza das coisas, “a civilização não poderia dispensá-
la” (Freud, 1930/2011, p. 27).
Por último, mencionamos aquela que é uma meta que costuma mobilizar um
montante elevado de energia pulsional. Falamos do amor. Freud (1930/2011) nos diz que se
outras metas se caracterizam por um contentamento em apenas evitar o desprazer, nas
relações amorosas temos a procura de uma realização positiva da felicidade. Entre as
modalidades de expressão do amor, o amor sexual é aquele que talvez mais se aproxime da
meta pretendida pelo princípio de prazer em função das sensações avassaladoras que pode
proporcionar (Freud, 1930/2011).
Não seria de se estranhar, portanto, que, na teoria psicanalítica, o amor costume
aparecer tão entrelaçado à repetição. Para Freud (1930/2011, p. 27), “nada mais natural do
que insistirmos em procurá-la [a felicidade] no mesmo caminho em que a encontramos
primeiro”. A transferência, conceito fundamental na psicanálise, assinala, entre outras
coisas, formas de investimento amoroso que se repetem na vida de um sujeito, inclusive na
relação transferencial com o analista. Em A dinâmica da transferência (1912/2015) Freud
afirma:
Tenhamos presente que todo ser humano, pela ação conjunta de sua disposição inata
e de influências experimentadas na infância, adquire um certo modo característico de
conduzir a sua vida amorosa, isto é, as condições que estabelece para o amor, os
instintos que satisfaz então, os objetivos que se coloca. Isso resulta, por assim dizer,
num clichê (ou vários), que no curso da vida é regularmente repetido, novamente
impresso, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos
amorosos acessíveis o permitem, e que sem dúvida não é inteiramente imutável
diante de impressões recentes. (Freud, 1912/2015, pp. 134-135)

O amor é, sem dúvidas, um dos principais investimentos libidinais em procura da


felicidade. Mas, também, é responsável pelas mais fortes frustrações que um sujeito pode
experimentar. Isso porque, como afirma Freud (1930/2011, p. 27), “nunca estamos mais
desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente

25
infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor”. Nesta citação, a menção ao
desamparo, questão central em seu texto, para qualificar a condição de quem mobiliza suas
expectativas de satisfação em torno do amor, não é um mero acaso. As situações de perda
do objeto amoroso, não somente na forma do amor sexual, mas também em outras
modalidades de parceria que envolvem o amor enquanto expectativa de reconhecimento de
predicados e identificações de um sujeito, mostram a condição de desamparo na qual este se
vê lançado.
É importante frisar que ao mencionar essas vias de investimento libidinal que são
regidas pelo princípio de prazer, Freud não procura esgotá-las: “Não acredito que seja
completa essa enumeração dos métodos pelos quais os homens se esforçam em obter a
felicidade e manter à distância o sofrer, e sei também que o material admite uma outra
ordenação” (Freud, 1930/2011, p. 26). O que o esforço de Freud deixa muito claro é o quanto
a libido é capaz de sofrer deslocamentos e flexibilizações, fazendo da felicidade e do
sofrimento problemas constitutivos da economia libidinal dos sujeitos. Tomando o termo
emprestado de Theodor Fontane, Freud denomina de “construções auxiliares” os recursos
adotados pelos homens como paliativos para lidar com as dores, decepções e misérias da
vida (Freud, 1930/2011). Esse termo denota que, embora não existam soluções definitivas
para acabar com o sofrimento, é possível inventar saídas singulares se valendo da mobilidade
da libido, sem a pretensão de tamponar o mal-estar.
Consideramos importante passar por esses investimentos libidinais destacados por
Freud em função de poder retomar alguns deles, posteriormente, para demonstrar como serão
priorizados na cultura atual e adquirirão sentidos muito específicos de acordo com a
racionalidade neoliberal.
Vejamos, então, com Freud: se nem através do amor, esta forma de satisfação que
mais aproxima o sujeito da felicidade, a ameaça de desamparo, de sofrimento, deixa de estar
presente, é porque o programa do princípio do prazer parece fadado às vicissitudes da pulsão
(Freud, 1915/2015).
É absolutamente inexequível, todo o arranjo do Universo o contraria; podemos dizer
que a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha nos planos da “Criação”.
Aquilo a que chamamos “felicidade”, no sentido mais estrito, vem da satisfação
repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas
como fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio de prazer
tem prosseguimento, isso resulta apenas em um morno bem-estar; somos feitos de
modo a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas

26
possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. (Freud,
1930/2011, p. 20)

A ideia de Freud é que é bem mais fácil experimentarmos a infelicidade do que a


felicidade. Reparemos nas três fontes de sofrimento apontadas por Freud: o corpo, destinado
ao declínio e dissolução; o mundo externo ou as forças da natureza, que podem se abater
sobre os homens; e, por último, as relações entre os homens ou a insuficiência das normas
que as regulam. Dessas três, as duas primeiras nos parecem bastante óbvias e aceitáveis.
Talvez por que nelas, o obstáculo à felicidade do sujeito lhe seja situado externamente. Já na
terceira fonte de sofrimento, Freud defende que “não queremos admitir, não podendo
compreender por que as instituições por nós mesmos criadas não trariam bem-estar e
proteção para todos nós” (Freud, 1930/2011, p. 30). Por instituições entendemos todas as
produções da civilização criadas com o intuito de proteger os homens das ameaças de
sofrimento. E como instituições não se fazem sem discursos que as sustentam ou buscam dar
a elas legitimidade, o que talvez seja mais difícil de admitir é que os discursos que vigoram
na civilização e tentam dar aos sujeitos um lugar no mundo, também podem produzir
sofrimento. Ao fornecerem lugares possíveis e considerados válidos para o homem no
mundo, os discursos estabelecem subjetividades ou formas de vida. Portanto, o que também
está em jogo para Freud é a defesa da ideia de que as formas de subjetivação produzidas na
civilização não implicam necessariamente na felicidade do homem.
“Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização, mas é
difícil julgar se, e em que medida, os homens de épocas anteriores sentiram-se mais felizes,
e que papel desempenharam nisto suas condições culturais.” (Freud, 1930/2011, p. 33).
Freud não só defende a existência do mal-estar na civilização, mas também mostra a
importância de pensar o sofrimento psíquico articulado ao mal-estar. Essa talvez é uma das
principais contribuições do percurso de Freud na clínica psicanalítica. Inclusive para que
possamos pensar uma crítica da cultura a partir da psicanálise. Quando Freud aponta como
fonte de sofrimento as instituições criadas pela cultura e as formas de vida que elas
reproduzem, ele não realiza um exame da cultura ingênuo ou idealista, pois não situa o
problema em termos de um déficit de aperfeiçoamento e nem propõe condições ideais nas
quais o sujeito poderia alcançar a felicidade. A tese de Freud é de que o mal-estar nos aponta
para um conflito pulsional irredutível ou, em suas palavras, para “um quê da natureza
indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica” (Freud, 1930/2011, p. 30).

27
O que nos parece decisivo afirmar é que o mal-estar não se trata tão somente da
ausência de um bem-estar ou a presença de um desconforto. O mal-estar aponta radicalmente
para a ausência de um lugar. Como afirma Christian Dunker (2015, p. 196), “o mal-estar
não é apenas uma sensação desagradável ou um destino circunstancial, mas o sentimento
existencial de perda de lugar, a experiência real de estar fora de lugar”. Não é por acaso que
Freud inicia seu texto questionando o “sentimento oceânico”, que diria, entre outras coisas,
da ilusão de uma relação de continuidade entre o sujeito e suas identificações.
Quando se situa o mal-estar unicamente como negação de um bem-estar, mantem-se
o “estar” enquanto uma positividade, perdendo-se de vista que o mal-estar aponta
definitivamente para uma negatividade, uma ausência de lugar, de pertencimento. O mal-
estar ou o desamparo que ele evidencia é a condição existencial de um sujeito que não possui
garantias de que os destinos das pulsões lhe trarão felicidade ou simplesmente a ausência de
dor.
O supereu é uma figura, no texto freudiano, que aponta definitivamente para um mal-
estar constitutivo. Buscando pensar a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa,
dos ideais sociais do eu, Freud lança mão de pensar o supereu expressando a convergência
dos processos de socialização com a renúncia pulsional. “O efeito da renúncia instintual
sobre a consciência se dá de maneira tal que toda parcela de agressividade que não
satisfazemos é acolhida pelo Super-eu e aumenta a agressividade deste (contra Eu).” (Freud,
1930/2011, p. 75). Uma vez que se atribui o supereu à consciência moral, ou seja, toda a
problemática que envolve a racionalização do desejo, e o supereu é efeito da renúncia
pulsional, temos, logo, que a gênese da consciência deve ser pensada a partir de uma
negatividade e não de uma positividade. A grande questão que leva Freud a fazer essas
formulações é o fato de reparar que seguir os imperativos morais do supereu nem sempre
resulta em alívio da tensão no psiquismo. Muito pelo contrário. Quanto mais os imperativos
são perseguidos, mais se fortalecem as injunções sobre o Eu.
O que consideramos importante extrair da articulação feita por Freud entre o supereu
e a consciência moral é que os imperativos superegóicos podem nos apontar qual a economia
libidinal demandada dos sujeitos pelo contexto cultural. Esta é mais uma contribuição que o
percurso freudiano nos fornece para pensar um exame da cultura a partir da psicanálise.
Dessa forma, lançaremos mão, mais adiante, de pensar os imperativos superegóicos
dominantes em nossa época.
Com isso, acreditamos ter extraído do percurso de Freud as proposições que são
fundamentais para o nosso trabalho. A tese da irredutibilidade do mal-estar, presente na obra

28
de Freud, nos mostra não somente a perspectiva epistemológica assumida pela psicanálise,
como também sua posição ética e política. Ao defende-la, a psicanálise se torna um método
de pesquisa e de tratamento na clínica que não opera a partir dos ideais civilizatórios, mas
sim, através das respostas do sujeito que fazem furo nos discursos vigentes na cultura. Dessa
forma, a psicanálise não recua frente ao mal-estar, e, sem tentar eliminá-lo, busca fazer dele
um ponto de partida: “tal conhecimento não produz um efeito paralisante; pelo contrário, ele
mostra a nossa atividade a direção que deve tomar” (Freud, 1930/2011, p. 20). Fazer do mal-
estar uma potência criativa é um posicionamento ético e político por excelência.
Resta a cada um “descobrir a sua maneira particular de ser feliz” (Freud, 1930/2011,
p. 28). Se cada um deve descobrir um modo singular de ser feliz é porque frente ao mal-estar
as soluções universais são inoperantes.

29
2. A gestão ideológica do mal-estar no neoliberalismo

Diante das considerações desenvolvidas no primeiro capítulo, uma questão nos


parece fundamental sustentar neste capítulo segundo: como a cultura contemporânea lida
com o mal-estar? Para encaminhar esta questão consideramos necessária a investigação dos
modos de produção de subjetividades nas sociedades atuais. O que nos leva a buscar
identificar quais os discursos soberanos no cenário social e quais as características mais
destacadas das subjetividades por eles produzidas.

2.1. Fantasia ideológica

Ideologia é um termo repleto de significações na literatura. Autores dos mais diversos


campos de estudo fornecem através deste termo uma série de designações que convergem
em muitos aspectos, mas conflitam em tantos outros. Na obra Ideologia: uma introdução
(1997), Terry Eagleton mostra como atribuir um significado exclusivo ou mais generalista
ao termo ideologia é uma tarefa de considerável dificuldade, muito embora multipliquem-se
as tentativas de realiza-la através do estabelecimento de “significados convenientes”, como
afirma o autor (1997, p. 15).
Dentre a variedade de definições assumidas pela palavra ideologia, Eagleton (1997)
cita algumas delas. Podemos mencionar a concepção de ideologia enquanto um processo de
produção de significados e valores reproduzidos na vida social, não se restringindo a grupos
específicos, mas denotando quase que uma necessidade própria à vida em sociedade. Por
outro lado, o autor cita também que ideologia pode designar um corpo de valores
característico de determinadas classes ou grupos sociais. Sistemas de valores que dentro de
outras definições podem ser encarados como falsos ou ocultadores da realidade social e
também como um corpo de valores ou ideias que sustenta o exercício de poder de grupos
dominantes na sociedade (Eagleton, 1997).
Além dessas definições, Eagleton (1997) menciona que ainda é possível encontrar a
definição de ideologia como crenças motivadas por interesses sociais, podendo estes serem
atribuídos à grupos sociais dominantes. Atribuição esta que, segundo o autor, quando ocorre,
corre risco de incorrer em universalização, impedindo o reconhecimento de outros sistemas
de crenças partilhados por outros grupos ou populações que não são dominantes. Em
decorrência disso, a ideologia pode soar como exclusividade de apenas um grupo. O filósofo
afirma também que a ideologia costuma ser definida como uma ilusão socialmente

30
necessária, um pensamento de identidade, uma comunicação sistematicamente distorcida e
uma oclusão semiótica.
Diante dessa gama de definições ou significados que Eagleton denomina de
convenientes, o autor busca estabelecer em sua obra seis proposições acerca do termo
ideologia que considera fundamentais. Três delas nos chamam a atenção, tendo em vista o
problema de pesquisa sustentado nesta dissertação. A primeira delas aproxima o termo
ideologia da concepção de cultura, afirmando ser a ideologia um “processo material geral de
produção de ideias, crenças e valores” (Eagleton, 1997, p. 38). Poderíamos dizer que se
refere ao conjunto de costumes, hábitos, discursos e práticas presentes no contexto cultural.
Ou seja, o ethos característico de um determinado contexto social. É um dos aspectos que
buscaremos demonstrar, ainda nesse capítulo, ao caracterizar a forma de vida impulsionada
pela racionalidade neoliberal na atualidade.
O segundo ponto diz respeito ao entendimento da ideologia como promoção e
legitimação de interesses sociais, que implicam no estabelecimento de um quadro normativo
que delimita as formas de vida consideradas possíveis em um determinado contexto. E,
consequentemente, na deslegitimação de modos de existência considerados inadequados
para o quadro ideológico. Esse entendimento da ideologia nos ajuda a apontar para a
legitimação de formas de vida através da naturalização de discursos ou condutas individuais
e a tendência à reprodução do status quo social. São efeitos produzidos pela ideologia que
buscaremos salientar no modo de individuação reproduzido pelo neoliberalismo.
E, por último, um terceiro apontamento feito por Eagleton acerca da ideologia, que
muito nos interessa destacar no discurso psiquiátrico produtor do Transtorno do Déficit de
Atenção e Hiperatividade: a manutenção de uma (falsa) ideia de neutralidade epistemológica
na produção de conhecimentos acerca da realidade dos fenômenos. Essa é uma reivindicação
constante do discurso médico-científico e, mais especificamente, do discurso psiquiátrico na
produção de manuais diagnósticos, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM), produzido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA).
Desenvolveremos este ponto mais adiante neste capítulo.
Ao analisar as concepções mais convencionais apresentadas por Eagleton, e que
mencionamos mais acima, podemos afirmar que a maioria delas parece divergir no tocante
à caracterização da ideologia e aos efeitos produzidos por ela na vida social. Mas uma
perspectiva em comum as atravessa: a ideologia é aquilo que mascara, vela, encobre os
conteúdos da realidade. Tal compreensão pode ser vista em designações como: falsa ideia,
pensamento sistematicamente distorcido, ilusão, etc. Partindo dessa perspectiva, uma boa

31
crítica da ideologia se caracterizaria por um desvelamento, camada por camada, das
máscaras ideológicas que camuflam a realidade das coisas. Ora, se o trabalho de crítica
ideológica envolve expor a realidade das coisas, a crença que subjaz as mais variadas críticas
que podem se desenvolver nesse sentido, só pode ser a de que existe uma verdade última
sobre o real, um conteúdo, uma substância que lhe seja característica essencial.
Vemos um considerável obstáculo à crítica da ideologia pensada a partir dessa
perspectiva. E acreditamos que uma via interessante para trabalhar a questão levantada acima
é fornecida por Slavoj Žižek, a partir da noção de fantasia ideológica. O filósofo esloveno
sustenta uma crítica da ideologia que se articula bastante com o modo pelo qual entendemos
o mal-estar em psicanálise. Žižek vai defender uma noção de ideologia enquanto “uma
realidade social cuja própria existência implica o não conhecimento de sua essência por parte
de seus participantes, ou seja, a efetividade social cuja própria reprodução implica que os
indivíduos ‘não sabem o que fazem’” (Žižek, 1996, p. 306). Com o termo essência, o autor
faz referência às coordenadas simbólicas que determinam a estruturação da realidade como
fantasia. A proposição central de Žižek (1996) nos parece ser a defesa de que a ideologia
deve ser pensada enquanto uma fantasia social que fornece consistência à realidade. É o que
o permite pensar uma crítica da ideologia que não a entenda enquanto falsa consciência ou
ocultamento de uma verdade a ser desvelada. Dessa forma, a ideologia pode ser criticada em
função de sua “fuga de algum núcleo real traumático” (p. 323), e não por esconder o sentido
último da realidade das coisas.
É interessante pensarmos como ocorre este deslocamento da noção de ideologia, se
buscamos pensá-la dentro da perspectiva psicanalítica. De fato, Žižek é um dos autores, na
contemporaneidade, que tem realizado uma leitura do social através do conceito de “fantasia
ideológica”, buscando expressar a junção entre certas categorias do marxismo e da
psicanálise. Da psicanálise, Žižek retira a ideia da fantasia fundamental do sujeito como
elemento estruturador de suas relações primordiais com a realidade. A fantasia, para a
psicanálise, não mascara, portanto, uma realidade positiva, não se trata de um véu que nos
cega para o real, mas sim de uma tela apta a ocultar justamente as fissuras da realidade. Ou,
como já se encontrava articulado na obra de Freud, a fantasia fundamental é uma forma
através da qual o sujeito mascara seu desamparo, seu mal-estar intrínseco. Tal mascaramento
toma a forma na articulação entre fantasia e identificação, já que ao identificar-se com tipos
ideais o sujeito procura escamotear os indícios de seu mal-estar (Souza & Laureano, 2020).
Dessa forma, ao propor o conceito de “fantasia ideológica”, Žižek o desloca do
sentido tradicional do marxismo, na medida em que o que encontra-se oculto pelo fantasma,

32
na verdade, não seria a realidade produtiva (como na interpretação tradicional do marxismo),
mas sim os impasses imanentes a esta mesma realidade; ou, se quisermos colocar através
das categorias freudianas, seu mal-estar (Souza & Laureano, 2020).
A partir das proposições de Žižek em torno da noção de fantasia ideológica as
questões que levantamos para dar sequência ao nosso trabalho são as seguintes: qual a
fantasia ideológica dominante em nosso contexto cultural e por quais vias ela tenta
escamotear o mal-estar?

2.2. Neoliberalismo

Pretendemos agora situar o neoliberalismo como a ideologia dominante em nosso


contexto cultural, ou seja, como a principal tentativa ideológica de gestão do mal-estar em
nossa época. Logo de início, gostaríamos de destacar já em sua gênese um aspecto que lhe é
característico: a exaltação do plano individual em resposta às crises. A partir de Pierre Dardot
e Christian Laval (2016), podemos situar a gênese da doutrina neoliberal na primeira metade
do século XX, como resposta aos impasses enfrentados pelo capitalismo naquela época. A
crise econômica dos anos 1930 colocou o desafio de se pensar saídas para os problemas
sociais e econômicos vivenciados nos países capitalistas. O modelo de Estado de Bem-Estar
Social foi a principal aposta dos Estados-nações ocidentais para contornar a crise, sem,
contudo, abandonar o regime capitalista. Entretanto, nem todos se mostraram satisfeitos com
o modelo keynesiano intervencionista. Especialmente os liberais, acreditavam que este
modelo colocava limites à liberdade econômica. É dentro dessa perspectiva, que o
neoliberalismo surge na década de 1930, como tentativa de oferecer uma resposta à crise que
não passasse pelo aumento do controle estatal, mas que prezasse pela liberdade econômica
das nações, das empresas e dos indivíduos.
Dardot e Laval (2016) situam o surgimento da doutrina neoliberal mais precisamente
no Colóquio Walter Lippmann, realizado em Paris, em 1938. Este evento representou uma
tentativa de restaurar as bases teóricas do liberalismo, num contexto em que o modelo
keynesiano vinha se expandindo. Posteriormente, na década de 1940, essa tentativa será
assumida especialmente pela Sociedade de Mont Pèlerin, que contava com a presença de
teóricos fundamentais para a gênese teórica do neoliberalismo, como Milton Friedman,
Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Michael Polanyi, entre outros.
Embora a gênese do neoliberalismo seja localizada na primeira metade do século XX,
é somente na década de 1970 e 1980 que ele se torna uma racionalidade celebrada e passa a

33
orientar os governos de Margareth Thatcher, na Inglaterra, o governo de Ronald Reagan, nos
Estados Unidos, e a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Desde esse período até os dias
atuais, o neoliberalismo se tornou política de governo em várias nações, inclusive no Brasil.
Mas é importante frisar que essa racionalidade não se impõe nessas nações da mesma forma
e nem unicamente em função da força de suas ideias, mas muito em razão de condições
históricas peculiares. Sobre o neoliberalismo brasileiro, por exemplo, Andrade (2019)
defende que dificilmente iremos compreendê-lo sem lançar um olhar sobre as suas
articulações com processos e dinâmicas presentes na realidade brasileira, tais como as
transições incompletas da ditadura civil-militar e da herança colonial escravista.
Mas não é raro nos depararmos na literatura ou na vida cotidiana, com a ideia de que
o neoliberalismo nunca existiu ou que o capitalismo contemporâneo é simplesmente uma
realização do liberalismo econômico. Por isso, uma das tarefas realizadas por Michel
Foucault em O nascimento da biopolítica (2008), curso sobre o neoliberalismo ministrado
no Collège de France entre 1978 e 1979, foi enfatizar a distinção entre o neoliberalismo e o
liberalismo clássico. Foucault (2008) destaca que foi através de uma crítica às limitações da
doutrina liberal em formular parâmetros para a intervenção governamental que surgiram os
primeiros ideais da governamentalidade neoliberal. Dessa forma, o neoliberalismo não é
simplesmente uma continuidade do liberalismo econômico, nem tampouco uma
“restauração” do liberalismo original, anterior à crise dos anos 1890-1900. Incorrer nessas
duas visões nos levaria a considerar que o neoliberalismo é apenas uma doutrina econômica,
deixando de lado seu principal caráter de política de sociedade. Mas, afinal, o que apresenta
de novo essa racionalidade em relação ao liberalismo clássico?
Uma distinção marcante entre o liberalismo e o neoliberalismo é que, se os liberais
acreditavam que o livre mercado era uma lei natural que se realizaria na abstenção do Estado
e, por isso, tornavam a questão de limitar as ações de governo o seu problema central, o
neoliberalismo vai defender que a intervenção governamental é necessária para que a lei de
mercado seja uma realidade entre os homens. Ou seja, seu problema não é dar limites ao
Estado, mas “como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do
governo de si” (Dardot & Laval, 2016, p. 34). A principal saída encontrada pelo
neoliberalismo para essa questão será normatizar o papel do Estado e as formas de governo
de si dos sujeitos a partir da generalização da norma da concorrência e da forma empresa,
cabendo à intervenção governamental garantir as condições sociais necessárias à plena
execução da lei de mercado, como bem observa Foucault:

34
O neoliberalismo, o governo liberal não tem de corrigir os efeitos destruidores do
mercado sobre a sociedade. Ele não tem de constituir, de certo modo, um contraponto
ou um anteparo entre a sociedade e os processos econômicos. Ele tem de intervir
sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura. No fundo, ele tem de
intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em
cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores. (...) não é um
governo econômico, é um governo de sociedade. (Foucault, 2008, p.199)

Nesse sentido, gostaríamos de destacar como a política de sociedade neoliberal terá


no modelo da empresa a conduta mais alinhada com o princípio da concorrência. Uma
conduta a ser adotada tanto pelo Estado, como pelos sujeitos. Segundo Dardot e Laval
(2016), a racionalidade neoliberal programa a atuação do Estado de duas formas: de fora,
através de privatizações de empresas estatais, e de dentro, com a incorporação de novos
instrumentos de poder, como a avaliação empresarial de rendimentos e a estruturação de
novas relações entre governo e os sujeitos. A forma do Estado-empresa é a via imposta para
superar a falta global de eficácia e produtividade do Estado-providência, que, para os
neoliberais, custa caro e impõe obstáculos à competitividade da economia. O que muda
sobremaneira com a reconfiguração da política estatal é a ação pública, que passa a ser
submetida à lógica da concorrência para que o Estado possa administrar a sociedade,
colocando-a a serviço das empresas, e ele próprio passando a funcionar conforme as regras
de eficácia das empresas privadas. Dentro desse horizonte, a avaliação que recebe a política
de Estado se dirige a julgar a sua capacidade de respeitar as “boas práticas” econômicas de
governo. Assim como os gerentes de empresas privadas são avaliados de acordo com os
critérios da corporate governance, os gerentes de Estado são julgados pelos mesmos critérios
de controle definidos pela comunidade financeira internacional (Dardot & Laval, 2016).
Podemos ver nisso uma das razões para Alain Badiou (2017) afirmar que os
economistas são pretensamente os fiadores do real na contemporaneidade. O que fica
evidente quando reparamos nas medidas adotadas por Estados que governam adotando o
discurso dos especialistas da ciência econômica que, não raramente, travestem interesses de
grupos financeiros em dados científicos. O exemplo mais claro disso é a defesa da
austeridade como o único caminho possível para recuperar as economias das nações: os
economistas mostram uma realidade inexorável, a qual todos precisam se dobrar tal a força

35
de sua intimidação. Essa defesa costuma ter como efeitos o corte de investimentos públicos6,
a retirada de direitos trabalhistas, a diminuição da proteção social, etc. Efeitos que dizem
muito da maneira como o Estado deve estabelecer relações com os sujeitos a partir da
racionalidade neoliberal, e também da conduta que esses devem assumir numa sociedade
regida pelo princípio da concorrência (Souza & Neves, 2019). É precisamente nessa conduta
exigida dos sujeitos que queremos focar daqui em diante.

2.2. A subjetividade neoliberal

A passagem das democracias liberais para os regimes neoliberais é marcada pela


emergência de um novo ethos. É interessante percebê-lo através da ascensão de uma norma
subjetiva a ser conformada pelos sujeitos. Salientando esse processo de mudança, Dardot e
Laval (2016) vão afirmar que uma de suas características fundamentais foi a
homogeneização da vida dos sujeitos. O sujeito moderno das sociedades liberais vivia, até
certo ponto, em um regime normativo que mantinhas as esferas da vida separadas. As esferas
religiosas, políticas e mercantis, por exemplo, podiam ser situadas em espaços relativamente
distintos. “Essa heterogeneidade se traduzia na independência relativa das instituições, das
regras, das normas morais, religiosas, econômicas, estéticas e intelectuais.” (Dardot & Laval,
2016, p. 323).
É pertinente notar que o sujeito produtivo das sociedades liberais, mesmo estando
atravessado por uma norma subjetiva que o impelia à produção como forma de acesso ao
bem-estar em vários domínios da vida, ainda assim apresentava uma subjetividade plural, na
medida em que era afetado por discursos e instituições distintas em muitos aspectos (Dardot
& Laval, 2016). Essa injunção à produtividade, marcadamente fundada no utilitarismo, já se
realizava através de um casamento que se estreitaria ainda mais no neoliberalismo.
Desde cedo, a economia política teve como fiadora uma psicologia científica que
descrevia uma economia psíquica homogênea a ela. Já no século XVIII, iniciam-se
as bodas da mecânica econômica com a psicofisiologia das sensações. Esse é, sem
dúvida, o cruzamento decisivo que vai definir a nova economia do homem governado
pelos prazeres e pelas dores. (Dardot & Laval, 2016, p. 325)

6
Entre os anos de 2014 e 2018, o investimento em educação pública no Brasil caiu em 56%, reduzindo de R$
11,3 bilhões para R$ 4,9 bilhões. Os dados são do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo
Federal. Disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/05/02/em-4-anos-brasil-reduz-
investimento-em-educacao-em-56.htm. Data de acesso: 27/11/2020.

36
Esse cruzamento, descrito pelos autores, integrou um arranjo de processos de
normatização e instrumento disciplinares, que Michel Foucault denominou de dispositivo de
eficácia. Um dispositivo necessário para que a atividade econômica tivesse a subjetividade
necessária para reproduzir a lógica do capital. Quanto a isso, Vladimir Safatle (2021) é
enfático: “a economia é a continuação da psicologia por outros meios” (p. 17).
Certamente, nenhum teórico neoliberal condensou em poucas palavras e com tanta
precisão o cerne do neoliberalismo, como o fez a ex-primeira-ministra britânica Margareth
Thatcher ao afirmar que “A economia é o método, o objetivo é mudar a alma”. A frase
evidencia como o neoliberalismo objetiva modificar o próprio homem a fim de criar uma
harmonia entre a maneira como ele vive e as condicionantes econômicas às quais está
submetido. O que não se faz sem a produção de uma psicologia do indivíduo que busca
naturalizar como propriedades do ser humano as exigências de conduta individual feitas pela
racionalidade neoliberal.
Investigando os principais teóricos neoliberais, Ambra et al. (2021) vão demonstrar
como existem modos de subjetivação implícitos e explícitos na episteme do neoliberalismo.
Os discursos que a integram, embora apresentando algumas distinções, procuram estabelecer
modos de relação social, de pensamento, de afetos, constituindo matrizes psicológicas
fundamentais para o funcionamento social preconizado pela doutrina neoliberal.
Como já mencionamos mais acima, a razão neoliberal promove a concorrência
enquanto princípio regulador da vida social, acreditando ser ela a maneira de relação entre
os sujeitos mais conforme com a eficácia econômica. Para Ludwig von Mises (2010), um
dos maiores defensores do neoliberalismo, o mercado forma os homens através de situações
onde eles precisam escolher em meio à concorrência, fazendo com que eles aprendem a
conduzir suas vidas de maneira racional. O autor considera o homem um ser ativo que,
movido pela aspiração de melhorar sua própria condição, empreende mobilizando os
recursos de que dispõe para os fins que objetiva. E ao empreender, aprende com as escolhas
que faz. O pensamento de Mises expressa claramente a intenção da política de sociedade
neoliberal de promover situações de mercado que favoreçam o aprendizado constante dos
homens de como se comportar como empreendedores. Para Dardot e Laval (2016, p. 141),
“essa ciência da escolha em situação de concorrência é, na realidade, a teoria do modo como
o indivíduo é conduzido a governar a si mesmo”.
Na tentativa de estabelecer as condições sociais de funcionamento do sistema
concorrencial, o neoliberalismo tenta produzir uma sociedade de pequenas unidades de

37
produção independentes e concorrendo umas com as outras. Para tanto, como salientamos
mais acima, o fim das proteções sociais dos povos pelo Estado é fundamental, uma vez que,
para o discurso neoliberal, quanto mais o Estado concede direitos sociais, menos os homens
apresentam inclinações para alcançar autonomia econômica por suas próprias forças. Por
isso, é necessário promover situações de mercado na tessitura social de modo a forçar os
sujeitos a se comportarem como empreendedores autônomos7. Tanto a relação do sujeito
consigo mesmo, como a relação dele com os outros deve assumir enquanto modelo a lógica
da empresa como unidade de produção num cenário concorrencial (Dardot & Laval, 2016).
Esse cenário concorrencial preconizado pela razão neoliberal é caracterizado
essencialmente por um cenário de risco. Risco para quem? Não para o Estado neoliberal,
que, na verdade, deve atuar para promovê-lo. O risco deve ser inteiramente assumido pelos
sujeitos. Saúde, educação, emprego, habitação e outros direitos fundamentais tornam-se
responsabilidade exclusivamente individual, já que, supostamente, todos possuem a
liberdade de escolher os rumos da vida.
A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança
instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego”
precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a
diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes
populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de
dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. (Dardot & Laval,
2016, p. 329)

Uma vez transferidos os riscos para os trabalhadores, as empresas ficam mais livres
para exigir mais comprometimento e disponibilidade deles. Isso porque o próprio status de
trabalhador é abolido no neoliberalismo. Todos os trabalhadores são encarados como
pequenas empresas fornecendo serviços em relações contratuais. É nesse sentido que o risco
se torna naturalizado, uma vez que ele é próprio ao modelo concorrencial da empresa.
Transformar as várias esferas da vida em um cenário concorrencial de mercado não
se faz sem a mobilização constante das populações pelo medo social. Safatle (2015, p. 19)
defende que “o medo como afeto político central é indissociável da compreensão do

7
Segundo o IBGE, em 2020, o total de brasileiros trabalhando na informalidade atingiu o número de 38, 312
milhões, representando 39,7% da população ocupada no país. Disponível em
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/31/ibge-informalidade-responde-por-maior-parte-do-aumento-
da-populacao-ocupada.ghtml. Data de acesso: 27/11/2020.

38
indivíduo, com seus sistemas de interesses e suas fronteiras a serem continuamente
defendidas, como fundamento para os processos de reconhecimento”. A perspicácia de sua
tese reside em constatar que a reprodução material de determinadas formas de vida, como a
forma “empresa” reproduzida pelo neoliberalismo, garante sua força de adesão através da
circulação de afetos que privilegiam certos modos de existência em detrimento de outros.
Conduzir a vida a partir de uma determinada norma implica sempre estar mobilizado pelos
afetos que lhes são específicos. Por isso, para compreender o poder é necessário
“compreender seus modos de construção de corpos políticos, seus circuitos de afetos com
regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização
que tais corpos produzem, a forma como ele nos implica” (Safatle, 2015, p. 16). Modelos
societários, como o neoliberalismo, fundamentados na institucionalização de liberdades
individuais, são indissociáveis da gestão social do medo8.
O que pretendemos deixar bastante claro é que o neoliberalismo não é apenas uma
doutrina econômica, mas fundamentalmente a promoção de uma determinada forma de vida.
Um modo de existência que, segundo Michel Foucault (2008), pode ser denominado de
“empresário de si mesmo” (p. 311). Diferentemente da concepção clássica de homo
economicus como parceiro da troca, o homo economicus neoliberal é um empresário de si
mesmo na medida em que é seu próprio capital, seu próprio produtor. Trata-se de uma
subjetividade que se vê como um empreendedor que vai produzir um fluxo contínuo de
rendimentos, investindo em si, através de técnicas e produtos variados, voltados ao
aperfeiçoamento de seus atributos físicos, psíquicos, comunicacionais, etc. (Foucault, 2008).
Ou seja, sua ação no mundo visa a valorização de si mesmo, como uma empresa que busca
aumentar seu valor de mercado. Dessa forma, podemos dizer que, para Foucault, o
empresário de si é a subjetividade forjada pelos dispositivos neoliberais para sustentar um
modelo de sociedade regido pelo princípio da concorrência. Mas, o que caracteriza
propriamente a forma de vida neoliberal do empresário de si mesmo?
Vamos encontrar a caracterização da subjetividade neoliberal também em outros
autores. Um deles é Alain Ehrenberg, que já no título de um dos seus livros é bem enfático:
O culto da performance (2010). Para o autor, em nossa época, somos incitados a agir como

8
Durante a pandemia de covid-19, a ausência de medidas sanitárias e de proteções sociais efetivas pelo Estado
brasileiro escancarou a presença do medo na população. Muitos brasileiros se viram diante de um cenário em
que precisaram abrir mão dos cuidados com a saúde para garantir a alimentação da família se expondo ao vírus.
O sujeito ter que escolher entre a alimentação ou a saúde é um cenário diretamente ligado à atuação neoliberal
do Estado. Disponível em https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/03/24/familias-vivem-pandemia-com-
medo-da-doenca-e-da-fome-na-pb-alguem-precisa-ouvir-os-pobres.ghtml. Data de acesso: 20/07/2021.

39
um atleta de alta performance, que assume heroicamente riscos em cenários adversos e
constantemente busca superar seus desempenhos passados. A norma subjetiva da empresa
impele o sujeito a viver um incessante recomeço em seus empreendimentos: seus
desempenhos nunca são suficientes, é necessário superá-los a cada novo passo. Para tanto,
todos os âmbitos da vida são encarados como potenciais recursos a serem gerenciados na
busca por mais eficácia, não importando de quais condições sociais cada sujeito parte.
O fato de que a racionalidade neoliberal não leve em conta as diferenças
socioeconômicas que atravessam a vida dos sujeitos, quando os impele ao culto da
performance, nos diz muito de suas matrizes psicológicas. Nelas, há uma ausência do Outro
do social. Não somente na determinação das condições materiais da vida, mas
fundamentalmente na constituição dos sujeitos. Segundo Ambra et al. (2021), no discurso
neoliberal, o “eu” é definido tautologicamente pelo “eu”, produzindo uma subjetividade
autorreferenciada. O que pode ser visto no predomínio de uma concepção negativa de
liberdade nos teóricos neoliberais, uma vez que para todos eles, a liberdade individual é
inversamente proporcional às intervenções do Estado que não são voltadas para o
favorecimento da lei de mercado.
Ora, fica assim claro que na noção neoliberal de autonomia, que se concretiza no
conceito de liberdade negativa, está implícito um modelo preciso de sujeito, aquele
de indivíduo independente dos outros, não submetido a norma alguma e, como tal,
sempre pensado em uma relação de exclusão mútua com o outro. (Ambra et al., 2021,
p. 82)

Ao sustentar a produção de uma subjetividade não atravessada pelos discursos


sociais, o neoliberalismo faz coincidir a conduta dos sujeitos com interesses estritamente
individuais. O empresário de si não trabalha para ninguém. Todo o seu desempenho reflete
o seu próprio interesse de se aprimorar, de agregar mais valor a si mesmo através de suas
escolhas, de suas relações contratuais.
Segundo Safatle et al. (2021, p. 50), “desde o surgimento da economia política, em
meados do século XVIII, o conceito de ‘interesse’ serve de fundamento para a concepção
liberal de ação”. E o que é mais significativo notar, é que, em inglês, a palavra “interest”,
também significa “juro”, o que já aponta sua relação com a lógica de mercado. No
neoliberalismo, essa relação será ainda mais explorada, sobretudo, a partir da compreensão
de que o sujeito é um capital humano a ser valorizado incessantemente. Capital humano é
um termo cunhado pelo neoliberal Gary Becker, da Escola de Chicago, para defender que as

40
atividades humanas, principalmente a educação, visam a autovalorização dos sujeitos, assim
como um juro valoriza ou aumenta o rendimento de um capital. A maximização de
intensidades se torna assim uma regra geral de vida, fazendo com que as ações do sujeito
sejam animadas por um empuxo ao ilimitado (Alemán, 2016).
Uma vida conduzida por essa lógica é propriamente uma vida vivida em regime 24/7
– vinte e quatro horas por sete dias na semana. Para Jonathan Crary (2016), o regime de
temporalidade 24/7 caracteriza as sociedades capitalistas atuais, nas quais “a configuração
da identidade pessoal e social foi reorganizada para ficar conforme à operação ininterrupta
de mercados, às redes de informação e outros sistemas” (p. 18). Na obra que intitula 24/7:
Capitalismo tardio e os fins do sono (2016), Crary destaca como ambientes 24/7 escondem
o custo exigido dos humanos para sustentar o ideal de performance. O autor enfatiza como
o sono nesse contexto é uma necessidade humana que contraria os ideais do capitalismo
contemporâneo, ao exigir um intervalo de tempo que se traduz em perdas incalculáveis no
tempo de rendimento.
Quando observamos na contemporaneidade a busca de sujeitos por livros de
autoajuda, cursos de autoconhecimento, drogas estimulantes, orientação de coachs, técnicas
de comunicação, etc., vemos que a preocupação com o desempenho parece ser uma marca
da vida em sociedades neoliberais. Todos esses recursos constituem o que Eric Pezet chamou
de “asceses do desempenho”, segundo Dardot e Laval (2016). Multiplicam-se as técnicas
destinadas ao aperfeiçoamento da performance do empresário de si, muitas delas se
apresentando como saberes psicológicos.
Diferentes técnicas, como coaching, programação neurolinguística (PNL), análise
transacional (AT) e múltiplos procedimentos ligados a uma escola ou a um guru
visam a um melhor domínio de si mesmo, das emoções, do estresse, das relações com
clientes ou colaboradores, chefes ou subordinados. Todos têm como objetivo
fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade, torna-lo mais operacional em situações
difíceis. (Dardot & Laval, 2016, p. 339)

A multiplicidade dessas técnicas oferecidas para que os sujeitos possam gerir todas
as esferas de suas vidas reflete uma tentativa de homogeneização da vida que intenta modular
a existência dos sujeitos a partir da produção de uma subjetividade orientada pela lógica do
capital. Como frisamos mais acima, a preocupação em produzir mais, render mais, não se
restringe mais ao ambiente de trabalho como no período das democracias liberais. No
contexto atual, é até mesmo difícil distinguir entre os momentos de trabalho e os momentos

41
de lazer ou descanso, isso porque a lógica contábil do culto da performance se tornou
também a via privilegiada de acesso à felicidade e à realização pessoal.
Lembremos como em O mal-estar na civilização (1930/2011) Freud menciona o
trabalho e os laços amorosos como significativas vias de investimento libidinal para os
sujeitos. É interessante observar como essas modalidades de investimento libidinal são
atravessadas pela lógica neoliberal atualmente. Como frisamos mais acima, as relações
trabalhistas no neoliberalismo são encaradas como relações contratuais entre empresas,
fazendo do trabalho um produto que pode cada vez mais ter seu valor mercantil estabelecido
de forma precisa. Cabe ao trabalhador, agora empresa de si mesmo, fazer pesquisas, gerir
custos e riscos, desenvolver projetos, apresentar-se no mercado e qualificar-se
constantemente. “Desse ponto de vista, o uso da palavra ‘empresa de si mesmo’ não é uma
simples metáfora, porque toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de
valorização do eu.” (Dardot & Laval, 2016, p. 335).
O mesmo vale para os relacionamentos amorosos. Safatle (2015) vai defender que os
vínculos de amor no contexto da racionalidade neoliberal se tornam relações contratuais
entre sujeitos que visam um casamento de predicados que favoreça a valorização do eu de
cada envolvido. Nessa perspectiva, a “boa” escolha amorosa é aquela que não envolve perdas
e nem muitos riscos para ambos. Alain Badiou (2013) vai dizer de uma visão securitária do
amor:
Trata-se do amor com seguro total: você vai ter o amor, mas terá tudo tão bem
planejado, tão bem e tão precisamente selecionado o seu parceiro, teclando na
internet - terá, obviamente, foto, gostos detalhados, data de nascimento, signo etc. -,
que, ao termo dessa imensa combinação, poderá concluir: “Com este vai dar certo,
não corro risco!”. (Badiou & Truong, 2013, pp. 11-12)

Não nos parece um mero acaso a menção de Badiou à internet, pois a lógica
algorítmica de funcionamento da maioria dos aplicativos fortalece significativamente a
ilusão do encontro com um objeto amoroso feito sob medida para o sujeito. Os algoritmos
prometem o incessante encontro dos sujeitos com suas identificações, preferências,
interesses, etc. Talvez tenhamos, nos aplicativos de smartphones, um exemplo atual daquilo
que Lacan chamou de latusas, os “pequenos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de
todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar
o desejo de vocês” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 153). A oferta ininterrupta de objetos de
satisfação pelos aplicativos produzidos pelo saber técnico instrumentaliza o imperativo

42
neoliberal de maximização constate de si. Nesse contexto, o objeto amoroso perfeito é aquele
que fortalece o eu, que agrega à carreira ilimitada do sujeito empresa.
Sobre isso, a socióloga Eva Illouz, em sua obra O amor nos tempos do capitalismo
(2011), afirma que “no campo dos encontros, o processo de refinamento tem uma implicação
importante: o processo de busca de outra pessoa torna-se intrinsecamente instável - ser
refinado é, precisamente, buscar maneiras de melhorar a própria posição no mercado”
(Illouz, 2011, p. 124). Essa ideia de refinamento dos interesses do eu, como forma de
incrementa-lo, agregar mais valor, é maciçamente reproduzida pela lógica de
armazenamento de dados. E, certamente, temos nessa instrumentalização das injunções
neoliberais através dos produtos do saber técnico um dos principais mecanismos de servidão
voluntária na atualidade.
O filósofo Byung-Chul Han reparou bem nisso. Estar conectado à dispositivos
tecnológicos como computadores e smartphones significa fornecer centenas de dados que
circulam em rede favorecendo um movimento de comunicação ilimitada. Os big data são
para Chul Han o pan-óptico digital de nosso tempo, com a diferença de serem bem mais
eficientes nas formas de controle do que o pan-óptico benthaminiano. “Antes de tudo, os big
data são um grande negócio: os dados pessoais são completamente monetarizados e
comercializados” (Han, 2018, p. 90). E não custa lembrar que esses dados são fornecidos
voluntariamente pelos usuários dos dispositivos através de avaliações, buscas por produtos,
localização, curtidas, etc. A partir da comercialização desses dados, as pessoas acabam se
tornando mercadorias em circulação. Trata-se, segundo o autor, de uma “ditadura da
transparência” imposta pelo capitalismo através dos avanços tecnológicos.
Em sua obra Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder (2018), Byung-
Chul Han argumenta que o neoliberalismo inaugura novas formas de exercício do poder nas
sociedades capitalistas. Psicopolítica é o termo utilizado pelo autor para se referir ao
conjunto de mecanismos de controle que sustentam o regime neoliberal na atualidade. O
filósofo inicia seu livro caracterizando o momento histórico atual como que marcado pelo
sentimento de liberdade experimentado pelos sujeitos, que se acreditam livres de coerções
externas. Para ele, contudo, esse sentimento de liberdade se constituiria já a partir de uma
forma de dominação, que viria a ser a exploração das liberdades individuais pelo capital.
Mas, como o capitalismo teria realizado tal façanha, já que liberdade individual aparenta ser
o exato oposto de uma relação de dominação?
Segundo Han (2018), o regime neoliberal pode ser caracterizado pela produção de
subjetividades empreendedoras, assim como denominou Foucault, e que, por isso, orientam

43
suas ações através de um imperativo de otimização incessante de seus rendimentos,
comportando-se como uma empresa. Entendendo que trabalha apenas para a sua própria
satisfação e que suas ações não expressam outra coisa senão a sua própria liberdade, o sujeito
neoliberal se explora acreditando que produz tão somente para si. É dessa forma que o
neoliberalismo faz coincidir sua dominação com a expressão das liberdades individuais.
O que Byung-Chul Han enfatiza muito bem é que a psicopolítica neoliberal se
caracteriza precisamente por exercer o poder não a partir de modalidades negativas, como a
violência, a censura ou a privação de liberdade, mas fundamentalmente através de
modalidades positivas, como a motivação, a injunção a formas de realização individual, etc.
Ou seja, são técnicas de poder afáveis, sedutoras, que travestidas de formas de exercício da
liberdade, tornam ainda mais difícil a detecção pelo sujeito de que se trata na verdade de
uma forma de submissão.

2.4. Performance e gozo

Lembremos, como destacamos no primeiro capítulo, que a articulação teórica do


supereu aos imperativos morais da consciência nos fornecia um norte para realizar uma
crítica dos processos de socialização. Nesse sentido, Jacques Lacan nos fornece algumas
contribuições para pensar o supereu na atualidade.
Nos cabe destacar que a emergência do neoliberalismo como ethos hodierno do
capitalismo não se fez sem a passagem na cultura de um supereu repressivo, como observado
nos tempos de Sigmund Freud (1930/2011), para um supereu que faz do gozo uma injunção.
O supereu contemporâneo nos diz “Goza!”, afirma Lacan (1970-1971/2009, p. 166).
Consideramos que para compreender como o imperativo de gozo atribuído por Lacan ao
supereu contemporâneo se articula com o culto neoliberal da performance, é interesse
resgatar de onde o psicanalista francês busca inspiração para propor a noção de gozo.
Segundo Safatle (2008), é interessante salientar que a noção de gozo, pelo menos
quando trabalhada inicialmente por Lacan, deriva “de uma certa teoria social que procura
explicar fenômenos como o sacrifício, a festa, o sagrado e práticas de consumo de objetos
(como o potlatch) que não se submete à lógica utilitarista dos bens” (p. 133). A principal
referência para Lacan aqui é Georges Bataille, escritor francês, que escreveu, entre outras
coisas, sobre um paradigma econômico baseado em ideias de excesso e sacrifício. O próprio
fenômeno do potlatch é trabalhado por Bataille, enquanto um exemplo de que há dinâmicas

44
nas quais a lógica de usufruto dos bens é subvertida pela produção de um valor através do
excesso.
O potlatch é um ritual no qual grupos medem forças através do sacrifício de suas
riquezas. Paradoxalmente, demonstra mais riqueza quem mais sacrifica ou destrói os seus
bens perante o rival. Ou seja, há um valor que se produz de forma marginal e que não diz do
usufruto dos bens, mas de sua destruição. O “mais valor” reside na capacidade de realizar
novos e mais ousados sacrifícios perante o outro. E como o “mais valor” depende da
consumação dos bens, quanto mais se consuma, mas se aumenta o valor marginal. Se você
fez alguma associação com a lógica neoliberal, talvez não seja mera coincidência, pois
segundo Bataille (2013) o fenômeno do potlatch, praticado em tribos indígenas da América
do Norte, pode ter correspondentes em nossa vida cotidiana.
Vejamos então como Lacan (1959-1960/1988) refere-se ao gozo: “Nessa coisa [...]
há no início outra coisa além de seu valor de uso – há sua utilização de gozo” (p. 279). Se
na lógica do valor de uso, lógica própria à doutrina do utilitarismo, uma das antecessoras do
neoliberalismo, o valor se liga diretamente à utilidade do objeto, no gozo o valor reside num
além. Para Castro (2019), vemos um eco da reflexão de Bataille “na elaboração lacaniana
sobre o gozo, particularmente na acepção de mais-de-gozar, que aparece como resto, como
excedente, engendrando-se um gozo no processo mesmo de renúncia ao gozo” (p. 123).
Se o supereu das sociedades contemporâneas se caracteriza por um imperativo de
gozo, qual seria então as implicações disso na economia libidinal dos sujeitos? Pois, como
vimos com Freud, às expectativas de conduta social se alinham modos de subjetivação. Ora,
se não temos mais um supereu que socializa através de medidas repressivas e de
conformação dos sujeitos a identidades, mas sim um supereu que incita ao gozo, qual ethos
poderia melhor corresponder a esse supereu que não fosse aquele da vida conduzida como
uma empresa? O culto da performance pode então ser encarado como um dos principais
aspectos do imperativo de gozo situado por Lacan. Lembremos como o empresário de si não
tem limites. Seu objetivo é superar incessantemente seus desempenhos ou estar sempre além
de si mesmo, como afirma Alemán (2016). Podemos ainda afirmar que, ao supereu do gozo,
corresponde um ideal do eu que não tenta encerrar o sujeito em modelos normativos ou
identificações específicas, mas se caracteriza por um empuxo ao ilimitado, não importando
tanto quais os conteúdos normativos que o sujeito vai assumir em sua carreira ilimitada. Se
pudermos formular isso em uma ilustração da vida cotidiana, diríamos que se os pais de
outras épocas impeliam os filhos a escolherem determinadas profissões, os pais da sociedade
neoliberal dizem “você é livre para escolher a profissão que quiser, contanto que seja o

45
melhor naquilo que for fazer”. Ou seja, o ideal do eu não diz respeito propriamente à
conformação em uma identificação determinada, mas diz mais de um empenho permanente
de autossuperação.
“Na prática, enfraquece-se a dimensão da falta, tendendo a prevalecer uma falta da
falta, uma negação da castração.” (Castro, 2019, p. 123). Tal feito, Lacan vai atribuir à torção
realizada pelo discurso do capitalista no discurso do mestre: a “Verwerfung, a rejeição para
fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de
quê? Da castração” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 88). A rejeição da castração no discurso do
capitalista pode ser vista na tentativa de dissolução do mal-estar através da produção de uma
subjetividade fundada na noção de liberdade individual. Tenta-se com o discurso do
capitalista neoliberal fazer coincidir o objeto causa de desejo com a realização da forma de
vida neoliberal. O empresário de si, não estando sequer assujeitado à linguagem,
supostamente encontraria nos objetos de consumo uma correspondência com o objeto causa
de desejo.
Mas, nesse tocante, precisamos destacar o papel do discurso cientifico. Segundo
Lacan (1969-1970/1992), no estabelecimento do discurso do capitalista a partir de uma
torção no discurso do mestre, o discurso científico desempenha função decisiva ao ocupar o
lugar do mestre através da deposição de seu poder, constituindo assim um saber emancipado
de formas externas de controle. A ocupação desse lugar pelo saber científico não é sem
consequências:
[...] a introdução do mundo novo no horizonte, das puras verdades numéricas, do que
é contável, não significará por si só uma coisa bem diferente da instalação de um
saber absoluto? O próprio ideal de uma formalização onde tudo é conta (...), não
estará aqui o deslizamento, o quarto de giro? Este é o que faz com que se instaure,
no lugar do senhor, uma articulação eminentemente nova do saber, completamente
redutível formalmente, e que surja, no lugar do escravo, não uma coisa que iria se
inserir de algum modo na ordem desse saber, mas que é antes seu produto. (Lacan,
1969-1970/1992, p. 76)

Em outras palavras, podemos dizer que Lacan chama atenção para o fato de que a
torção no discurso do mestre pelo discurso da ciência implica em um mestre moderno
significativamente diferente do mestre das sociedades disciplinares: trata-se de um mestre
que incita à satisfação direta de demandas individuais. Nesse ponto, a ciência tem um papel
determinante ao produzir objetos técnicos e lançá-los ao mercado, prometendo a satisfação

46
dessas demandas. Basta lembrar das latusas citadas por Lacan (1969-1970/1992) e a
associação que fizemos aos aplicativos como exemplo de servidão voluntária na atualidade.
Exemplo que poderia ser dado com uma infinidade de objetos no contexto da sociedade de
consumo neoliberal, pois as latusas dizem de uma modernidade na qual a captura da
satisfação pelo saber técnico é decisiva na produção de uma nova economia libidinal: os
objetos produzidos pela ciência são lançados no mercado ofertando satisfação aos sujeitos
na tentativa de apagar a diferença entre o objeto de desejo (objeto a) e o objeto de consumo.
Assim, os objetos de consumo se convertem em objetos de gozo para os sujeitos que, a partir
do discurso do capitalista, creem poder satisfazer suas demandas. O que no fim das contas
só gera insatisfação e os coloca numa busca incessante por mais satisfação, ou seja, é uma
ação que se autorreproduz. É o que assevera a passagem abaixo:
[...] a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção
extensiva, portanto insaciável da falta-de-gozar. Esta se acumula, por um lado, para
aumentar os meios dessa produção como capital. Por outro lado, amplia o consumo,
sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar
um gozo com que possa tornar-se mais lenta. (Lacan, 1970/2003, p. 434)

O que se percebe na citação de Lacan é que o discurso do capitalista organiza a


sociedade a partir do movimento circular do capital, determinando as ações dos sujeitos a
partir de uma lógica contábil e levando o desejo a ser causado pela pura medida de
intensificação, pelo puro empuxo ao ilimitado. A nosso ver, é precisamente essa produção
extensiva da falta-de-gozar como princípio da economia capitalista, como asseverou Lacan,
que podemos ver no culto neoliberal da performance.
Não vemos um exemplo melhor da presença do imperativo superegóico do gozo na
injunção neoliberal à performance que a precarização do trabalho dos entregadores e
motoristas de aplicativos na atualidade. Essa modalidade de trabalho cresce
exponencialmente no Brasil e no mundo, na medida em que o trabalho informal passa a ser
estimulado pelas políticas de desregulamentação do trabalho nos Estados neoliberais.9
As empresas de aplicativos ofertam oportunidades de trabalho que seriam marcadas
pela autonomia do trabalhador em definir seus horários, seus modos de trabalho e também
os seus ganhos. O discurso busca vender a ideia de um trabalho sem patrão, sem

9
A reforma trabalhista realizada pelo Estado brasileiro, em 2017, é um exemplo dessa desregulamentação.
Disponível em https://www.cartacapital.com.br/economia/a-reforma-trabalhista-completa-4-anos-sem-
cumprir-suas-promessas/. Data de acesso: 02/08/2021.

47
subordinação, promovendo também a ideia de que a situação de trabalho seria marcada pelo
contrato entre duas empresas (aplicativo e motorista) que estariam conectadas através de um
software, que ligaria a demanda dos consumidores à prestação de serviços dos motoristas e
entregadores.
Mas todo esse discurso de autonomia e flexibilidade esconde o alto custo exigido dos
motoristas. Sob a justificativa da flexibilidade e da ausência de subordinação nesta
modalidade de trabalho, as empresas transferem os custos e os riscos do trabalho para os
entregadores (os empresários de si). Mas a subordinação existe e pode ser vista nos critérios
que as empresas-aplicativos estabelecem para a avaliação do prestador de serviço. São
critérios sobre a agilidade do serviço, a qualidade e também o tempo de disponibilidade
ofertado pelo trabalhador. A lógica contábil enunciada por Lacan aparece aqui sob a forma
de escalas de pontuação, tempo de disponibilidade, etc. Os motoristas que rejeitam as
corridas ofertadas nos aplicativos, por exemplo, podem ser rebaixados em sua classificação
e a até banidos do aplicativo.10 Portanto, o trabalhador bem avaliado é aquele que está sempre
disponível e oferecendo sempre um “a mais” de si.
Além disso, é válido destacar que cada prestador de serviço deve se responsabilizar
pelos custos do serviço. O que envolve um exercício constante de planejamento e gestão de
custos e riscos envolvidos no trabalho. Em casos de acidentes durante o trabalho, por
exemplo, a responsabilidade pelos danos materiais e físicos é inteiramente do trabalhador.
Não resta outra alternativa ao trabalhador a não ser colocar-se sempre além de suas
possibilidades. É preciso sempre fazer mais corridas para receber mais. Mais agilidade e
disponibilidade no serviço para receber melhores avaliações. E, no fim das contas, esse “a
mais” se converte em menos saúde, menos folgas, menos descanso e um orçamento apertado.
Como bem observou Lacan (1970/2003): busca-se sempre mais e se depara com uma falta-
a-gozar na economia capitalista do gozo.
Diante disso, podemos concluir que a economia libidinal demandada dos sujeitos
pela lógica neoliberal só pode ser destrutiva. A promoção de um modelo de sociedade
fundado no princípio da concorrência e na lógica contábil do gozo implica na precarização
das formas de vida e em modalidades de socialização que são potencialmente destrutivas
para o laço social. A corrida pelo “a mais” no contexto neoliberal é cada vez mais uma
corrida pela sobrevivência em condições precárias de trabalho, saúde, educação e outros
direitos que são usurpados das populações. E o pior: uma corrida solitária, uma vez que a

10
Disponível em https://olhardigital.com.br/2016/08/04/noticias/veja-as-10-regras-que-podem-fazer-um-
motorista-ser-banido-da-uber/. Data de acesso: 02/08/2021.

48
subjetividade promovida pelos dispositivos neoliberais situa a solidariedade social como
covardia moral e promove a assumpção dos riscos como a maior virtude moral do empresário
de si.

2.4. A gestão neoliberal do sofrimento psíquico

Chegamos em um tópico crucial de nosso trabalho. A partir de agora vamos


demonstrar como a gestão neoliberal da vida não se produz apenas a partir da internalização
positiva de imperativos de conduta reprodutores da norma subjetiva da empresa. A razão
neoliberal também produz subjetividades através de diagnósticos psiquiátricos. Ou seja,
através do estabelecimento dos desvios possíveis e passiveis de correção pelo discurso
médico-científico
É levando em conta tal estratégia que Safatle (2021) vai defender que uma crítica
atual do neoliberalismo deve se posicionar também como crítica das patologias sociais
produzidas no contexto desse regime. Sua defesa passa pela compreensão de que os modelos
de sociedade podem se caracterizar como sistemas produtores e gestores de patologias, pois
“inexiste sociedade que não se fundamente em um complexo processo de gestão de
patologias, e tal gestão é uma dimensão maior, mas nem sempre completamente explícita,
de reprodução social de afetos” (Safatle, 2018, p. 08).
A perspectiva crítica defendida por Safatle converge com a compreensão de Roberto
Calazans e Christiane Matozinho (2021): “isso não tem relação apenas com ‘cair doente’,
mas com a maneira pela qual o laço social pode ou não integrar um sintoma” (p. 75). Ou
seja, quando sintomas são colocados em evidência em um determinado contexto social
devemos nos indagar, entre outras coisas, acerca de sua função ali. É importante insistir
nesse ponto, pois a socialização não acontece apenas através da internalização de regras
pelos sujeitos, “mas principalmente ao lhes fornecer uma gramatica social do sofrimento,
ou seja, quadros patológicos oferecidos pelo saber médico de uma época” (Safatle, 2018, p.
09).
Mas para insistir nesse ponto, precisamos deixar algo bem claro. Ao contrário do que
muitos possam pensar, categorias diagnósticas produzidas pelo saber médico não descrevem
“tipos naturais”. Por “tipos naturais” podemos entender entidades ou agrupamentos que
reúnem fatos e propriedades que refletiriam a estrutura do mundo natural, ao invés de
refletirem os processos humanos de racionalização e os interesses sociais. Para Safatle
(2017), a ideia de tipo natural compreende “um agrupamento dotado de duas características

49
fundamentais: acessibilidade epistêmica (eles podem ser conhecidos) e autonomia
metafísica (eles não se reduzem a construções convencionais produzidas pelas minhas
estruturas de saber)” (p. 02). Diante disso, já poderíamos lançar a seguinte questão: seria o
transtorno do déficit de atenção e hiperatividade uma categoria diagnóstica que descreve
estruturas naturais? Ou essa categoria diagnóstica, na verdade, participa diretamente dos
processos de socialização de um determinado contexto cultural? Por hora, guardemos estas
questões, pois iremos trabalha-las no próximo capítulo.
A tese que defendemos é a de que as categorias clínicas propostas pelo saber
psiquiátrico não descrevem tipos naturais. Embora a psiquiatria tenha se empenhado em
pesquisar marcadores biológicos para explicar muitos quadros de sofrimento psíquico,
especialmente do século XX para os dias de hoje, os marcadores biológicos localizados
nunca puderam ser associados estritamente aos estados subjetivos apresentados pelos
sujeitos. Mas ao buscar uma base biológica para explicar os comportamentos humanos e
suas alterações, e ao tentar classifica-los, o saber psiquiátrico termina por produzir efeitos
diversos nos sujeitos que visa descrever. De que forma poderíamos então pensar a produção
desses efeitos nos sujeitos através das classificações psiquiátricas?
Muitos autores se empenham em fazer objeções ao realismo epistemológico de
muitas descrições sobre os processos de classificação e intervenção nas clínicas do
sofrimento psíquico, que implicam na naturalização de valores morais e de suas formas de
vida correspondentes. Um exemplo é a obra História da Loucura (1961/1997) de Michel
Foucault, que demonstrou como o ethos de valorização do trabalho nas sociedades
capitalistas tinha na psiquiatria um dispositivo teórico e prático de gestão social. Trabalhos
como o dele abordam questões epistemológicas para demonstrar como as pesquisas e as
práticas clínicas estão impregnadas de valores morais, que não deixam de ter repercussões
nos objetos que supostamente descrevem e tratam. Ou seja, as questões epistemológicas se
articulam diretamente às questões sociais que atravessam a produção de saber no campo da
clínica. Essa perspectiva de análise é crucial para o nosso problema de pesquisa.
Pois devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas
de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras, então
é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso horizonte de
cura não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual modalidades de
orientação clínica são compreendidas no interior de sistemas de influências
compostos por discursos de forte teor normativo advindos de campos exteriores à
práticas terapêuticas como, por exemplo, a cultura, a moral, a estética, a política e a

50
racionalidade econômica. Trata-se, nestes casos, de não fornecer às questões clínicas
o estatuto de problemas autônomos, mas de reinscreve-las no interior do sistema de
circulação de valores que compõem as várias esferas da vida social como um sistema
de implicação constante (Safatle, 2017, p. 02).

É nesse sentido que as proposições de um autor como Ian Hacking se tornam


fundamentais para o nosso trabalho. Para o filósofo da ciência, as classificações impostas
pelo saber psiquiátrico são interativas, na medida em que produzem efeitos performáticos
nos sujeitos que descrevem. Segundo Hacking (2004) “um tipo de pessoa vem à existência
ao mesmo tempo que a própria categoria clínica foi inventada” (p. 106). O que fica claro, na
medida em que admitimos que as classificações de transtornos mentais e suas respectivas
descrições são elaboradas reflexivamente pelos próprios sujeitos que elas descrevem.
Hacking (2006) parte da consideração de que a concepção realista da ciência é
dominante em nosso mundo, e, conforme ela, o conhecimento das coisas se produz através
de separação e classificação minuciosa, num esforço de produzir um retrato fidedigno do
mundo. Dessa forma, vivemos em um mundo repleto de classificações nos mais diversos
campos do conhecimento. Contudo, há diferenças entre o ato de classificar fenômenos,
animais ou coisas e o ato de classificar pessoas. Diferentemente dos primeiros, as pessoas
podem reagir às classificações que lhes são impostas e produzir comportamentos. O efeito
looping ocorre quando uma classificação produz um tipo interativo (Hacking, 2006), ou seja,
quando uma categoria diagnóstica determina o comportamento de um sujeito e o
comportamento do sujeito termina por produzir um estereótipo da classificação. A interação
entre o classificado e a classificação pode ocorrer tanto através de feedback positivo (quando
o sujeito se identifica com a caracterização que lhe é feita) e através de feedback negativo
(quando o sujeito rejeita a caracterização).
A classificação interativa costuma ocorrer com frequência nas ciências médicas
quando comportamentos indesejados socialmente são associados a causas biológicas
duvidosas. Ou seja, um conjunto de sintomas comportamentais ou sintomas isolados sofrem
uma biologização que implica em uma resposta por parte do sujeito classificado. Podemos
afirmar que essa resposta é, em boa medida, de feedback positivo ou de identificação do
sujeito com o conjunto de sintomas comportamentais que lhe são atribuídos. O feedback
positivo se torna ainda mais provável quando consideramos que as classificações são feitas
por instituições que gozam de certa legitimidade no laço social, além de serem reproduzidas
no exercício de poder cotidiano da autoridade médica nos dispositivos de saúde.

51
Mas, de que forma a performatividade das categorias diagnósticas psiquiátricas pode
se articular com o horizonte de valores promovido pelo neoliberalismo? Basta olharmos para
as edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), produzido
pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). Como destacamos mais acima, neste
capítulo, a exaltação da racionalidade neoliberal e sua adoção enquanto política de governo
acontece entre a década 1970 e 1980. Não por acaso, é nesse mesmo período, mais
precisamente em 1980, que é produzida a terceira edição do DSM, com mudanças
significativas na compreensão do sofrimento psíquico.
O DSM surge a partir da necessidade de colher e reunir informações estatísticas para
o desenvolvimento de uma classificação do sofrimento mental nos Estados Unidos (Dunker
& Kyrillos, 2011). Guardemos essa necessidade que dá impulso à criação do manual, pois
ela é fundamental para a diferenciação entre o normal e o patológico realizada pelo manual,
sobretudo, nas suas edições mais atuais. Vamos explorar isso mais adiante recorrendo à
Georges Canguilhem.
Em suas duas primeiras versões, lançadas em 1918 e em 1952, respectivamente, o
DSM apresentava um predomínio de categorias diagnósticas de extração psicodinâmica,
fortemente influenciadas pelo sistema diagnóstico proposto por Adolf Meyer, no qual
ressaltava-se a oposição entre neurose e psicose (Dunker & Kyrillos, 2011). O primeiro
grupo reunia, basicamente, quadros com sintomas ansiosos e depressivos, nos quais não
havia prejuízo significativo na relação do sujeito com a realidade. Já o segundo, distinguia-
se pela presença de delírios e alucinações, com perda considerável da realidade. Além disso,
as edições apresentavam uma discussão etiológica que considerava fatores biológicos e
sociológicos na constituição dos quadros, e não estabeleciam limites rígidos entre o normal
e o patológico (Dunker & Kyrillos, 2011).
No intervalo cronológico entre a segunda e a terceira edição do DSM, devemos
destacar alguns acontecimentos. O primeiro deles é o surgimento dos primeiros
psicotrópicos entre as décadas de 1940 e 1960. O desenvolvimento farmacológico que se
segue a partir daí, terá impacto significativo na compreensão do sofrimento psíquico, a partir
do DSM-III, quando boa parte dos quadros clínicos são atribuídos a uma disfunção
neuroquímica no cérebro. Mas, é importante destacar que, ao contrário do que a narrativa do
“avanço tecnológico” costuma sustentar, o desenvolvimento dos psicotrópicos não ocorre a
partir de um conhecimento mais aprofundado do sofrimento mental.
A clorpromazina foi o psicotrópico que inaugurou a “revolução psicofarmacêutica”,
na década de 1940. Pesquisadores do laboratório francês Rhône-Poulenc, buscando sintetizar

52
fenotiazinas para o tratamento da malária, sintetizaram a prometazina e observaram suas
propriedades anti-histamínicas. Sugeriram então que a substância poderia ser utilizada em
cirurgias como anestésicos e também em pacientes psicóticos, dado o seu poder sedativo. O
que fazia da clorpromazina uma “pílula mágica” era que o medicamento agia sobre regiões
do cérebro responsáveis pela atividade motora e por respostas afetivas sem comprometer a
consciência do paciente. O medicamento foi batizado de “neuroléptico” ou “potente
tranquilizante” e seus efeitos comparados ao de uma lobotomia (Whitaker, 2017). Com isso,
a primeira droga para o tratamento de patologias mentais nascia de uma pesquisa que não
visava nenhuma doença mental e que se mostrava útil por seus efeitos sedativos em pacientes
psicóticos. Ou seja, a utilização da droga no tratamento visava atingir um efeito específico
(sedar) e não tratar de uma doença.
Ao passo em que os cientistas da Rhône-Poulenc sintetizavam a prometazina, o
químico Frank Berger, da Tcheco-Eslováquia, pesquisava uma pílula mágica para matar
micróbios gran-negativos causadores de doenças respiratórias, urinárias e gastrointestinais.
Em 1947, após sintetizar o composto meprobamato, Berger observou em ratos que havia se
deparado com um tranquilizante leve. Sua descoberta foi lançada no mercado sob o nome de
Miltown pela empresa norte-americana Wallace Laboratories, em 1955, e direcionada para
a população em geral, já que se tratava de um tranquilizante leve (Whitaker, 2017).
Em 1951, o laboratório farmacêutico Hoffmann-La Roche produziu um composto
chamado iproniazida para tratar pacientes com tuberculose. Quando utilizado em pacientes
internados em sanatórios, foi observado um efeito colateral: os sujeitos ficavam alegres e
cheios de disposição (Whitaker, 2017). Viu-se então que a droga poderia ser utilizada pela
psiquiatria nos casos de depressão. Em 1957, a droga passa a ser comercializada com o nome
de Marsilid.
Foram essas as drogas que desencadearam a revolução psicofarmacológica. No curto
espaço de três anos (1954-1957), a psiquiatria ganhou novos medicamentos para
acalmar pacientes agitados e maníacos nos manicômios, para a ansiedade e a
depressão. Mas nenhuma dessas drogas foi desenvolvida depois de os cientistas
identificarem algum processo patológico ou anormalidade cerebral que pudesse
causar esses sintomas. Elas provieram das pesquisas pós-Segunda Guerra Mundial
para encontrar pílulas mágicas contra doenças infecciosas, quando os pesquisadores,
durante esse processo, tropeçaram em compostos que afetavam o sistema nervoso
central de maneiras desconhecidas. (Whitaker, 2017, p. 69)

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Contudo, não foi essa a narrativa que as instituições e os psiquiatras em conluio com
a indústria farmacêutica levaram para a população em geral através dos meios de
comunicação. Os remédios foram anunciados na grande imprensa norte-americana como
fruto de pesquisas rigorosas e como a cura para patologias mentais. Quando a companhia
farmacêutica Smith and French lançou a clorpromazina com o nome de Thorazine nos
Estados Unidos, o presidente foi aos meios de comunicação anunciar que aquela era uma
droga fruto de testes rigorosos e avaliação de milhares de médicos que comprovavam a
eficácia do medicamento. Quando, na verdade, o teste realizado pela companhia foi com
menos de 150 pacientes psiquiátricos (Whitaker, 2017). Ou seja, uma divulgação claramente
falaciosa da eficácia do remédio. Com o Miltown e o Marsilid não foi diferente.
Além de vender a ideia de que os remédios tinham eficácia comprovada, a indústria
farmacêutica e as instituições de saúde mental por ela financiadas trataram de anunciar as
pílulas não por seus efeitos específicos, mas como drogas que curavam determinadas
patologias mentais. Em 1963, o INMH conduziu um estudo de seis semanas com a
clorpromazina e outros neurolépticos, concluindo que os medicamentos eram mais eficazes
que um placebo. E enfatizou que os neurolépticos não deveriam ser considerados apenas
tranquilizantes, mas sim “antiesquizofrenicos em sentido lato” (Whitaker, 2017, p. 75).
Com os sedativos chamados de “antipsicóticos”, os relaxantes musculares chamados
de “estabilizadores de humor” e os estimulantes denominados “antidepressivos”, a
psiquiatria buscava mostrar que dispunha de remédios precisos para determinadas doenças,
assim como outras especialidades da medicina. Dessa forma, a psiquiatria acreditava
responder à altura o bombardeio de críticas que recebeu entre os anos 1950 e 1970,
principalmente, através de movimentos como “a antipsiquiatria de David Cooper, Robert
Laing e Thomas Szazs, a análise institucional de François Tosquelles, do grupo de La Borde,
de Enrique Pichon-Riviere” (Safatle, 2021, p. 37), além da reforma psiquiátrica proposta
pelo italiano Franco Basaglia. Essa variedade de movimentos apontava não só a
insustentabilidade dos pressupostos epistemológicos do saber psiquiátrico, como também
para a violência exercida sobre os sujeitos através de tratamentos asilares.
É nesse contexto que Robert Spitzer assume a tarefa de revisar o DSM, em 1974. Os
principais objetivos da revisão foram: “melhorar a uniformidade e a validade do diagnóstico
psiquiátrico”; padronizar as práticas de diagnóstico nos Estados Unidos e em outras nações;
e estabelecer critérios de regulamentação farmacêutica (Dunker & Kyrillos, 2011, p. 615).
O novo manual deveria apresentar uma categorização em inglês descritivo, abrindo mão de
estabelecer suposições etiológicas. Ou seja, em nome do estabelecimento de uma língua

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comum as práticas diagnósticas deveriam ser padronização a partir de uma lógica descritiva.
Nesse tocante, poderíamos dizer que se trata de movimento análogo ao que Theodor Adorno
(1972) identificou em algumas teorias do conflito social: a adoção forçada de uma gramática
comum para os conflitos. Em se tratando do DSM, poderíamos afirmar que se trata da
tentativa forçada de estabelecer uma única gramática social para o sofrimento psíquico.
Tal intento pode ser visto também na pretensão do manual em ser ateórico no
estabelecimento de suas categorias diagnósticas: as nosologias dos transtornos são
pretensamente neutras em relação às diversas teorias existentes no campo da psicopatologia
(Resende, Pontes & Calazans, 2015). O manual busca elencar categorias diagnósticas
universais a partir de evidências consideradas científicas, o que no entendimento da APA
garante o caráter ateórico e a neutralidade do manual. Contudo, acreditamos que se pretender
“neutro” e ateórico, já é uma postura epistemológica e política, que podemos, inclusive,
caracterizar como ideológica, a partir dos apontamentos sobre ideologia que fizemos com
Terry Eagleton no início do capítulo.
Outra característica do DSM merece destaque: é a utilização do termo “transtorno”
para se referir ao sofrimento psíquico de forma genérica. O termo “transtorno mental” é a
tradução para o português do termo inglês mental disorder, que significa também “desordem
mental”. Com isso, trata-se de designar quadros psicopatológicos pelo nível de ausência de
ordem ou pelo nível de prejuízos que implicam para o sujeito. Uma perspectiva que adota o
critério da disfuncionalidade como critério maior do manual. Para que o sofrimento de um
sujeito seja reconhecido e mereça tratamento é necessário que ele afete diretamente a sua
capacidade funcional. No DSM-V, consta a seguinte definição:

Um transtorno mental é uma síndrome caracterizada por perturbação clinicamente


significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um
indivíduo, que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de
desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental. Transtornos mentais estão
frequentemente associados a sofrimento ou incapacidade significativos que afetam
atividades sociais, profissionais ou outras áreas importantes. (APA, 2013, p. 20)

Dentro dessa definição, diagnosticar um transtorno (ou uma síndrome) é basicamente


identificar um conjunto de sinais e sintomas momentâneos e recorrentes que, a partir da
definição do DSM, caracterizariam um quadro patológico por refletirem uma série de

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disfunções na vida do indivíduo. Ou seja, um transtorno mental descreve sinais e sintomas
que impedem um indivíduo de ser funcional no contexto em que vive.
Diante da definição acima, o que nos parece crucial perguntar é: o que vem a ser um
indivíduo para o DSM? Se o entendimento do manual é o de que os diversos quadros clínicos
apresentados se caracterizam por disfunções ou perturbações nas funcionalidades de um
indivíduo, seria de se esperar que o manual não se furtasse a esclarecer o que é um indivíduo
funcional. Mas, dessa questão, o DSM parece não querer saber. Talvez porquê esclarecer o
que se compreende por indivíduo o levaria a expor que a posição neutra e ateórica que afirma
sustentar acerca do sofrimento psíquico é uma inverdade. Mas, se o DSM não se incumbe
dessa tarefa, nós a fazemos.
Para Safatle (2021), o critério de disfuncionalidade é um termo sintomático, na
medida em que aponta para um horizonte de valores sociais que tem por principal demanda
o desempenho. Ou seja, um horizonte neoliberal por excelência. Essa relação pode ainda ser
mais evidenciada em passagens nas quais o transtorno mental é visto como “risco
significativamente aumentado de sofrimento, morte, dor, deficiência ou perda importante da
liberdade” (APA, 2002, p. 29). Ora, liberdade não é uma noção propriamente clínica, mas
não nos espantaríamos se a encontrasse em discussões filosóficas ou sociológicas, muito
menos nos teóricos neoliberais, para os quais a liberdade individual é defendida enquanto
valor supremo, como pudemos assinalar mais acima. “Não é difícil perceber qual ‘liberdade’
aparece aqui como horizonte regulador e disciplinador” (Safatle, 2021, p. 40).
É importante também salientar que, com a adoção do termo “transtorno mental”, o
DSM-III sacramentou de vez o expurgo da psicanálise do manual. As nomeações “neurose”
e “psicose” vistas nas duas principais edições, desapareceram na terceira, sob o argumento
de que em nome de um quadro unificado as reflexões etiológicas deveriam ser substituídas
pelas descrições sindrômicas. E de qual reflexão etiológica se trata na concepção de
sofrimento psíquico a partir da psicanálise? Lembremos como em Freud, sobretudo, na
clínica das neuroses, como foi abordado no primeiro capítulo, o sofrimento é expressão de
um conflito pulsional ligado diretamente aos processos de socialização. O que fez o percurso
de Freud também ser marcado por um exame da cultura. Portanto, o expurgo da psicanálise
representa o expurgo de uma reflexão crítica da cultura a partir da clínica do sofrimento
psíquico. Segundo Safatle (2021), a eliminação da “neurose”, no DSM-III, representou
fundamentalmente o surgimento de um novo modelo de gestão social, no qual:
A proibição moral advinda das exigências normativas de socialização dá lugar a uma
situação de flexibilização das leis, de gestão da anomia que coloca às ações não mais

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sob o crivo da permissão social, mas sob o crivo individual do desempenho, da
performance, da força relativa à capacidade de sustentar demandas de satisfação
irrestrita. (Safatle, 2021, p. 42)

Dessa forma, as patologias sociais próprias a esse modelo de gestão são patologias
da insuficiência e da disfuncionalidade da ação, diferentemente da compreensão da neurose
que remetia o sofrimento a uma polaridade conflitual do proibido/permitido. A maneira pela
qual a psiquiatria vai buscar legitimidade para a compreensão do sofrimento psíquico
apresentada em manuais como o DSM é através da pesquisa de marcadores biológicos. Ou
seja, trata-se de buscar a disfuncionalidade, sobretudo, em marcadores cerebrais. Podemos
dizer que essa será a principal direção de pesquisa eleita a partir do DSM-III, publicado em
1980.
Para Silva Júnior et al. (2021), as décadas posteriores ao lançamento do DSM-III
assinalam o fortalecimento de um paradigma anatomoclínico na psiquiatria, que marca uma
biologização radical desse campo. O que vai caracterizar esse paradigma na psiquiatria é que
para todos as patologias mentais é pressuposto um correlato orgânico. “Nessa maneira de
pensar, todas as explicações de patologia mental devem ‘passar através’ do cérebro e de sua
neuroquímica - neurônios, sinapses, membranas, receptores, canais de íons,
neurotransmissores, enzimas, etc.” (Rose, 2013, p. 306). E o diagnóstico considerado válido
é aquele que se sustenta na associação de sintomas a esses correlatos orgânicos. Não é de se
admirar que a pesquisa em psicopatologia, a partir dessa forma de colocar as questões,
reduza-se a identificar marcadores genéticos, fisiológicos e anatômicos para associá-los a
padrões de conduta considerados disfunções. Numa manobra que visa atribuir razão
biológica para problemas que se colocam a partir do social.
A hegemonia do paradigma anatomoclínico na psiquiatria vai conduzir o diagnóstico
psiquiátrico cada vez mais para a adoção de uma perspectiva dimensional. Até o DSM-IV,
lançado em 1994, havia o predomínio de uma perspectiva categorial, na qual as categorias
diagnósticas agrupam sinais e sintomas considerados característicos de um transtorno
mental. Para realizar um diagnóstico deveria ser preenchido um checklist de critérios
diagnósticos, acusando ou não a presença de determinados sintomas. A partir do DSM-V, a
perspectiva categorial vai dividir espaço com a abordagem dimensional, que visa mensurar
a intensidade dos sintomas. Mas o que representou o surgimento dessa nova abordagem no
diagnóstico?

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Do ponto de vista do modelo anatomoclínico, a correlação entre sintomas de
patologias mentais e marcadores biológicos pode melhor se fazer através do
dimensionamento da gravidade dos sintomas, sobretudo, através de escalas que passaram a
ser cada vez mais utilizadas. Desse modo, mais do que identificar a presença de um sintoma,
é importante dimensiona-lo, partindo da suposição de que a sua intensidade traduz o nível
de sofrimento experimentado pelo paciente. Tal abordagem pode ser vista nas especificações
dos diagnósticos do DSM-V, que solicita aos profissionais que o utilizam que assinalem a
gravidade dos sintomas dos pacientes entre leve, moderado e grave (APA, 2013).
Mas, para Thomas Insel (2013), diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental
(NIMH), em 2013, o casamento de uma perspectiva categorial com a dimensional, no DSM-
V, embora conferisse confiabilidade ao diagnóstico psiquiátrico, na medida em que garantia
a adoção de um mesmo diagnóstico entre os diferentes profissionais da saúde mental, não
apresentava validade, uma vez que o diagnóstico dimensional deveria se sustentar
diretamente em medidas laboratoriais precisas.
A fraqueza é a sua falta de validade. Diferentemente de nossas definições de
cardiopatia isquêmica, linfoma ou aids, os diagnósticos do DSM baseiam-se em um
consenso sobre conjuntos de sintomas clínicos e não em qualquer medida objetiva
laboratorial. No resto da medicina, isso seria equivalente à criação de sistemas de
diagnósticos baseados na natureza da dor torácica ou na qualidade da febre. Com
efeito, o diagnóstico baseado em sintomas, uma vez comum em outras áreas da
medicina, tem sido largamente substituído desde o século passado à medida que
entendemos que os sintomas por si só raramente indicam a escolha do melhor
tratamento (Insel, 2013, p. [s.p.]).
O posicionamento de Insel marca a separação entre o NIMH e o DSM.
Posicionamento que sustenta a necessidade de uma radicalização do paradigma
anatomoclínico na psiquiatria através de uma abordagem dimensional. É a partir disso, que
o NIMH cria o Research Domain Criteria (RDoC), iniciativa de pesquisa que visa
estabelecer constructos ou sistemas funcionais universais para a realização do diagnóstico
em psiquiatria. O projeto, que ainda não se traduziu em manual de diagnóstico (o que deve
acontecer nos próximos anos), propulsiona a substituição do diagnóstico de transtornos ou
síndromes psiquiátricas por diagnósticos de disfunções ou alterações em “sistemas do
funcionamento psíquico, abrangendo emoção, cognição, motivação e comportamento
social” (Silva Junior et al., 2021, p. 140).

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Trata-se, com isso, de radicalizar, de uma vez por todas, a diferenciação do normal e
do patológico através de uma lógica quantitativa. O que não é nenhuma novidade. Em 1966,
Georges Canguilhem já criticava esse tipo de abordagem no âmbito da medicina, que agora
vemos se intensificar com o RDoC. Canguilhem (1966/2019) vai criticar que designar o
patológico como alteração quantitativa do estado normal é preservar o quadro em função do
qual a alteração é estabelecida. Ou seja, as medidas (os números) de designação do
patológico mantêm implícitas o horizonte normativo que as estabelece como desvios de uma
normalidade. Trata-se de pensar o patológico como nada mais que um subvalor derivado do
normal. Podemos ver isso em muitos termos utilizados para descrever patologias mentais,
como disfunções, déficits, transtornos, etc. Tal perspectiva “exige que o normal esteja
assentado em um campo mensurável acessível à observação” (Safatle, 2015, p. 345). Aí está
a razão pela qual o diagnóstico dimensional, sobretudo, aquele que se faz a partir de medidas
verificáveis de sistemas funcionais, torna-se uma exigência cada vez maior, como vimos
com Insel (2013).
É interessante lembrar, como mencionamos mais acima, que o DSM teve por impulso
inicial a coleta de dados estatísticos. Proposta que se manteve ao longo das demais edições
e que sinaliza para um manual que toma como normalidade os comportamentos mais
frequentes na população ocidental. Comportamentos que, no atual contexto social,
relacionam-se diretamente com o quadro de expectativas sociais de conduta impulsionado
pela racionalidade neoliberal. Lembremos também do efeito retroativo apontado por
Hacking (2006) nos diagnósticos de patologias mentais. Comportamentos socialmente
indesejáveis são correlacionados a marcadores biológicos e retornam como imposição de
uma “regra natural” através de diagnósticos com efeitos performáticos. E os tratamentos a
partir dessa lógica, só podem ser pensados a partir da recondução do sujeito à normalidade
esperada no contexto em que ele vive.
Reparemos como a radicalização da proposta de um diagnóstico dimensional feito a
partir da mensuração de sistemas funcionais ocorre num contexto social no qual o
neoliberalismo impele os sujeitos à adoção de uma lógica contábil na condução de suas
vidas. O que vai ser observado por Silva Junior et al. (2021) é que a prática psiquiátrica
assume não só a função de reconduzir os sujeitos à normalidade, mas também a de um
aprimoramento (enhancement) psíquico, diretamente ligado à lógica econômica. Com essa
nova função, trata-se de aperfeiçoar as capacidades funcionais dos sujeitos, mesmo não
havendo o diagnóstico de uma patologia mental. O imperativo que sustenta essa função é o
do gozo, imperativo da lógica contábil por excelência, e que se articula diretamente ao culto

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neoliberal da performance. A nova função da psiquiatria tem como principal efeito o
estabelecimento de uma gramática social do sofrimento psíquico que abole a dimensão do
conflito entre o desejo e a norma em prol de narrativas do sofrimento marcadas pela dinâmica
do gozo, nas quais o sofrimento psíquico deve ser pensando como um problema de
autossuperação constante dos sujeitos.
Se podemos ver em Freud (1908/2015) o reconhecimento de articulação entre
conflito psíquico e moral civilizada e o apontamento de que a diminuição do
sofrimento deve ser pensada a partir de atuações sobre o social, o que se vê na
psiquiatria contemporânea enquanto efetivação da lógica neoliberal é justamente o
seu oposto, uma lógica em que a adequação desenfreada aos ideais culturais é tomada
enquanto horizonte necessário, isto é, sem alternativa possível. (Silva Junior et al.,
2021, p. 167)

É por isso que a produção de subjetividades pelos diagnósticos psiquiátricos


desempenha uma função crucial no regime neoliberal. O sofrimento psíquico sempre
guardou um potencial político de transformação social. Quando as únicas formas de
sofrimento consideradas socialmente legítimas apenas conduzem os sujeitos à reiteração de
uma economia libidinal dominante, torna-se ainda mais difícil uma reflexão e uma ruptura
com o quadro normativo vigente. Diante disso, consideramos fundamental a articulação do
sofrimento psíquico com a tese da irredutibilidade do mal-estar, que assevera uma
inadequação radical dos sujeitos às subjetividades produzidas pelos discursos sociais. Não
foi por acaso que optamos por iniciar o nosso trabalho a partir das contribuições de Sigmund
Freud sobre o mal-estar e os seus desdobramentos éticos e políticos. Nossa intenção foi
também a de contrapor a maneira crítica como a psicanálise compreende o sofrimento
psíquico com a perspectiva ideológica das compreensões produzidas pelo saber psiquiátrico
contemporâneo, que, como demonstramos, constitui-se um campo efetivo de realização da
racionalidade neoliberal.

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3. TDAH: patologia da performance

Já vimos como a racionalidade neoliberal é a ideologia dominante no contexto


cultural contemporâneo. Vimos também que a gestão do sofrimento psíquico é uma
estratégia fundamental na resposta ao mal-estar feita pelo neoliberalismo. Agora, nosso
objetivo é apontar para um diagnóstico específico, que ganha notoriedade nas sociedades
neoliberais pela alta quantidade de sujeitos diagnosticados. Falamos do Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Queremos demonstrar como, tanto a produção
dessa categoria diagnóstica, quanto os números elevados de sujeitos diagnosticados com o
transtorno, são parte da estratégia neoliberal de gestão do sofrimento psíquico.
Nosso objetivo é também fazer a defesa de que a distinção quantitativa entre o normal
e o patológico feita pela psiquiatria biologista só pode resultar em práticas médicas de
reiteração das normas sociais neoliberais. Diante disso, propomos, a partir de Georges
Canguilhem, que o patológico deve ser pensado em função de sua potência normativa, ou
seja, a partir das possibilidades de ruptura sinalizadas pelas respostas dos sujeitos às
normatividades hegemônicas no meio social.

3.1. A construção histórica do TDAH como fato patológico

Chegou o momento de nos determos na questão que levantamos no segundo capítulo:


o TDAH descreve um tipo natural? Ou o TDAH é uma categoria diagnóstica que reflete
sistemas de valores sociais? Acreditamos que um resgate histórico das proposições acerca
do TDAH enquanto fato patológico nos ajudará, inicialmente, no encaminhamento dessas
questões. Mas o que seria um fato patológico?
Comecemos pela noção de “fato”. Quando mencionado, o termo “fato” costuma
designar algo inquestionável. “É fato! E ponto final.” Não há margem para dúvidas,
contradições, conflitos, divergências, pois a realidade dos fatos impõe-se por si só. É o fim
dos debates, das discussões, das querelas. É, nesse sentido, por exemplo, que podemos
compreender como uma perspectiva historiográfica qualificada como “história factual” vai
se notabilizar pela intenção de propor eventos históricos incontestes, ou acontecimentos para
os quais só existe a possibilidade de estabelecer uma única narrativa. Inclusive, poderemos
ver tal abordagem, mais adiante na “história oficial do TDAH”.

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Mas, quando se trata da noção de fato, principalmente, quando a noção de fato se
articula com visões acerca do funcionamento psicológico e também biológico, um autor
como Robert Blanché muito pode contribuir com as suas proposições. Vejamos:
Um fato é, primeiramente, o que é suscetível de ser conhecido direta e
incontestavelmente, sem a intervenção de nenhuma operação intelectual que lhe sirva
de prova; é o que é tal que basta que seja mostrado para que não se possa de nenhum
modo duvidar de sua realidade. (Blanché, 1935, p. 10)

A compreensão de Blanché, claramente, está em concordância com o entendimento


que trouxemos acima. “Fato” designa algo que se impõe a todos, não se reduzindo a uma
percepção ou interpretação. Mas, em sua obra, A noção de fato psíquico (1935), Blanché
refina esta discussão e vai adiante para propor que existem pelo menos duas acepções do que
seja um fato dentro da compreensão mais geral apresentada acima. A primeira delas é a
noção de “fato bruto”, que diria de fenômenos ou imagens tal qual se apresentariam à
consciência, numa espécie de estado puro, de um dado que nos limitamos a constatá-lo. A
segunda compreensão, Blanché (1935) denomina de fato objetivo, que seria a constatação
de um fato através de sua inserção na totalidade dos fatos do universo, ou seja, num sistema
acabado de conhecimento. O que não se faria sem o domínio de um saber absoluto sobre os
fatos.
Blanché (1935) considera ambas as concepções equivocadas, além de afirmar que
elas se desdobram em falsas dualidades, tais como “objetivo x subjetivo”, “físico x
psíquico”, “realidade x pensamento”, entre outras. Todas elas traduzem uma operação
intelectual que aborda os fenômenos enquanto realidades, dissociando-os da própria
operação intelectiva que os constitui enquanto tais. Ora, para Blanché (1935), “jamais nos
achamos em presença de fatos brutos ou de fatos objetivos, mas somente de fatos situados
numa série que, segundo o sentido em que é percorrida, tende seja para o fato bruto, seja
para o fato objetivo” (p. 12). A tese do autor é a de que fatos só podem ser considerados
enquanto tais a partir de uma operação do pensamento. Não se trata, pois, de uma relação de
constatação, mas sim de um tecido de afirmações ou pressupostos dos quais se parte para
tornar um objeto inteligível.
No tocante à operação intelectual que lida com imagens ou fenômenos enquanto
realidades ou fatos, Blanché (1935) qualifica de realismo epistemológico. Em sua obra, o
realismo epistemológico é apontado, sobretudo, na Psicologia científica que se ocupa dos
fatos psíquicos os opondo aos fatos físicos. O autor denuncia o realismo psicológico no

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tratamento do psiquismo enquanto uma realidade a ser investigada, ou seja, enquanto uma
realidade que independe da operação de pensamento que a torna inteligível. A noção de fato
psíquico se caracteriza fundamentalmente pela tomada da própria operação do pensamento
como uma realidade. Podemos ver isso em muitas das funções psíquicas estudadas pela
Psicologia e pela Psiquiatria na atualidade, como a consciência, a atenção, a sensopercepção,
a afetividade, entre outras (Dalgalarrondo, 2019). Elas são tomadas enquanto a realidade do
funcionamento psíquico dos sujeitos e não a partir da operação de pensamento ou da
perspectiva epistemológica que as aborda enquanto tais.
A principal consequência do realismo epistemológico que devemos enfatizar é que
tomar o psiquismo enquanto uma realidade separada do discurso que versa sobre este tem
por consequência que o saber produzido pelos campos “psi” termina por naturalizar modos
de se colocar questões acerca do psíquico. E se as perguntas sobre o psiquismo costumam
estar atravessadas diretamente pelas demandas sociais, não é de se admirar que o que se
naturaliza é a economia libidinal demandada dos sujeitos em um determinado contexto
social.
Esse é um dos principais efeitos que podemos ver no positivismo reinante nas
ciências humanas ou sociais. O positivismo se caracteriza pela tentativa de levar o modelo
mecanicista das ciências naturais para o campo das ciências sociais, caindo no realismo
epistemológico de considerar que os objetos de ambas as ciências são realidades separadas
dos discursos que predominam nesses campos. Lembremos como o campo das ciências
naturais é marcado pelo pensamento cartesiano, que estabelece o rigor do método científico
em extensas divisões, classificações e relações sistemáticas. O que não se faz sem a
separação da subjetividade do pesquisador como condição essencial da garantia de
objetividade do estudo. Para tanto, a adoção da quantificação torna-se metodologia
fundamental de pesquisa, pois supostamente garante a validade do conhecimento.
O pensamento científico moderno, emergente com Descartes no século XVII,
marcado pela objetivação dos fenômenos, quando aplicado aos campos da medicina, da
psicologia e das ciências humanas, de modo geral, resulta no travestimento de interesses
sociais, de figuras antropológicas, de produção de subjetividades, em números, escalas,
quantificações. É, por isso, que a crítica de Blanché ao realismo epistemológico tanto nos
interessa. Pois, ela denuncia um modo de lidar com os objetos nos campos “psi” que tem
vastas repercussões sobre o laço social.
Faremos a denúncia de Blanché ecoar na construção histórica do TDAH enquanto
um fato patológico. Acreditamos ter deixado claro como o termo fato diz de uma realidade

63
tratada como inconteste. E por patológico vamos situar a visão criticada por Canguilhem
(1966/2019): o patológico pensando como subvalor do normal, ou ainda, pensado como
alteração quantitativa de um quadro normativo. Trata-se, portanto, de denunciar na
construção histórica do TDAH a tentativa de estabelecer uma realidade patológica derivada
de uma normalidade, recorrendo-se à busca de marcadores biológicos como garantia dessa
realidade. Na sequência, queremos destacar os efeitos performáticos produzidos nos sujeitos
a partir do diagnóstico dessa patologia mental.
Não são poucos os pesquisadores que se dedicam a investigar a constituição histórica
do TDAH como um fato patológico. Dentro desse esforço, muitas linhas de investigação são
desenhadas. Existem aqueles, como Rafalovich (2002), que buscam compreender a história
do TDAH a partir do discurso médico da criança idiota e do imbecil moral, no século XIX.
Matos (2013) aponta uma ideologia naturalista que sustenta o diagnóstico nos termos de um
transtorno. Já Dumit (2001) acredita que a validação do TDAH decorre diretamente da
construção da legitimidade científica da neurologia e dos exames de imagem cerebral.
Outros, como Diller (1998), Degrandpre (2000) e Whitaker (2017), apostam no
desenvolvimento das drogas estimulantes pela indústria farmacêutica como ponto
fundamental na construção do diagnóstico.
Consideramos todas essas linhas de pesquisa importantes, uma vez que salientam as
contingências sociais e históricas que atravessam a produção do TDAH como fato
patológico. Contudo, de modo geral, podemos afirmar que todas essas linhas de investigação
constituem apenas algumas das perspectivas acerca do percurso histórico do TDAH e são
pouco comentadas no debate público e na formação de médicos e psicólogos. Segundo
Luciana Caliman (2010, p. 49), o debate público sobre o transtorno apresenta um “perfil
desmemoriado”, na medida em que ignora a diversidade de perspectivas e a dissonância
radical entre muitas delas. A prova disso é a hegemonia de um único discurso: aquele que
defende a legitimidade biológica e cerebral do transtorno. A partir dele, a história do TDAH
é narrada enquanto uma sucessão de descobertas científicas que confirmam as hipóteses da
existência do transtorno. Caliman (2010) o denomina história oficial do diagnóstico.
Uma figura decisiva na construção dessa história oficial é o médico norte-americano
Russell A. Barkley, considerado uma autoridade mundial no debate clínico sobre o TDAH.
Foi na década de 90 que Barkley formulou sua teoria sobre o TDAH, na qual defendeu que
o transtorno “resulta de um defeito da inibição e da capacidade de autocontrole, sendo um
defeito da vontade e um déficit do desenvolvimento moral” (Caliman, 2010, p. 51). Mas sua
teoria não trazia muitas novidades, segundo ele. Barkley aponta que suas proposições acerca

64
do transtorno já estavam presentes no início do século XX, nas explanações de pesquisadores
como o pediatra inglês George Frederick Still e do neurologista britânico Alfred Tredgold
(Barkley, 2008).
É interessante notar na referência de Barkley à Still, o que Ludwik Fleck (1935/1979)
afirma acerca da construção de um fato científico – e no caso do TDAH, poderíamos dizer,
acerca da categoria diagnóstica: as proposições antagônicas, as descrições de sintomas
diversos, as contingências históricas e institucionais são camufladas por um discurso que
tenta unificá-las, como se todas as perspectivas falassem das mesmas coisas ou dos mesmos
fenômenos. É como se Still, no início do século, e Barkley, na década de 1990, falassem da
mesma coisa, muito embora a própria noção de transtorno sequer existisse na época do
primeiro. Para Fleck (1935/1979), o objetivo de discursos que se estruturam dessa forma é
produzir, no fim das contas, uma realidade de aparência neutra e objetiva, incólume aos
conflitos de pensamento.
Dentro da história oficial, George Still é considerado o pioneiro na descoberta das
causas neurofisiológicas do TDAH por ter realizado uma série de palestras, em 1902, nas
quais tratou de vinte crianças que, apesar de apresentarem “inteligência normal”, exibiam
dificuldades de atenção, reações violentas, malevolência, crueldade, ilegalidade e pouca
sensibilidade às punições (Barkley, 2008). Comportamentos que, para Still, representavam
defeitos de conduta moral, e que, segundo ele, estariam, possivelmente, relacionados a um
defeito fisiológico da função inibitória da vontade. O que fornecia para os desvios de conduta
uma base biológica. Para Barkley (2008), foi Still quem forneceu as bases clínicas para o
diagnóstico de TDAH.
Segundo Caliman (2010), que o médico George Still seja tomado como pioneiro na
descrição dos sintomas do TDAH não é um mero acaso. Pois, assim como, atualmente, a
tese etiológica do transtorno como um defeito da inibição e do autocontrole, relacionados às
funções cerebrais executivas (Barkley, 2020), tenta localizar a sede da moral e da vontade
no cérebro, Still também representou com suas proposições uma tentativa de atribuir bases
biológicas para condutas consideradas imorais. Mas é interessante também observar como a
história oficial do TDAH, narrada por autores como Barkley, omite a discrepância entre os
sintomas estudados por Still e os sintomas atuais do transtorno. Segundo Caliman (2010), o
déficit de atenção é um sintoma marginal nas descrições do médico inglês, que enfatizava
muito mais condições como fúria emotiva, crueldade e desonestidade em algumas crianças.
Além disso, Still não tomava os sintomas como garantia de uma patologia, mas como
prováveis condições patológicas. O que nos mostra a tentativa do discurso oficial de narrar

65
uma história ausente de contradições, com somente descobertas sobre a sintomatologia e o
avanço de tecnologias de exame e tratamento.
O que é importante também salientar é que se a descrição sintomatológica de Still é
diferente da atual, não é porque o transtorno foi melhor estudado de lá para cá. Mas, como
os sintomas dizem fundamentalmente respeito à conduta moral dos sujeitos, as descrições
mudam em conformidade com o contexto social, ou seja, mudam as demandas dos processos
de socialização e mudam também as descrições dos sintomas que incomodam em uma
determinada sociedade. A inteligibilidade do objeto estudado (o transtorno) muda em função
dos processos de socialização a partir dos quais ele é formulado enquanto um problema.
Mas, como o objeto é tomado a partir de uma perspectiva realista, ou seja, é tratado como
uma realidade separada dos discursos que o produzem, sua caracterização é proposta como
uma realidade que foi desvelada pelas descobertas científicas. Sabendo disso, deve nos
interessar muito mais lançar um olhar para a maneira como os problemas são formulados a
partir de um determinado quadro normativo, do que acreditar que as descrições dos sintomas
evoluíram em função do desenvolvimento de tecnologias científicas.
Além das contribuições de Still, Barkley (2008), Benczik (2000) e Whitaker (2017)
apontam que a epidemia viral de encefalite letárgica que afetou o mundo entre os anos 1917
e 1928 causou em muitos estudiosos o interesse de pesquisar os sintomas comportamentais
e alterações de humor apresentadas por crianças acometidas pelo vírus. Segundo Benczik
(2000), profissionais de saúde observaram comportamentos inquietos, desatentos e
hiperativos em crianças recuperadas da encefalite, e que não os apresentavam antes do
desenvolvimento da doença. Com isso, pesquisadores como Holman, apontaram que esses
comportamentos eram indícios de uma lesão cerebral provocada pela encefalite. A grande
quantidade de crianças acometidas pelo quadro levou muitos pesquisadores a se interessar
pela investigação de lesões cerebrais. Barkley (2008) destaca que, uma vez estabelecida uma
relação entre os comportamentos patológicos e uma desordem cerebral, muitas doenças,
como encefalite, sarampo e traumas natais, foram investigadas numa tentativa de relacioná-
las a manifestações de hiperatividade, desatenção e impulsividade.
Segundo Bonadio e Mori (2013, p. 28), “no período entre 1920 e 1950, termos como
motivação orgânica e síndrome de inquietação, são empregados para descrever crianças com
as seguintes características: inquietação, hiperatividade, impulsividade e dificuldades
acadêmicas”. De acordo com Barkley (2008), nesse mesmo período, pesquisadores notaram
uma similaridade entre crianças hiperativas e primatas com inquietação por causa de lesões
no lobo frontal. O que os fazia crer que as crianças desatentas, hiperativas e/ou impulsivas

66
deveriam ter alguma lesão cerebral, ainda que fosse leve. Um desses pesquisadores é Alfred
Strauss, que propôs, em 1947, que o problema fundamental dessas crianças era a falta de
atenção. Por considerar que esses sintomas evidenciavam uma lesão no cérebro, Strauss
buscou encontrar em bases orgânicas e exames neurológicos a comprovação do diagnóstico.
Não obtendo sucesso na comprovação, ele e seus colaboradores denominaram de lesão
cerebral mínima o quadro de sintomas estudados (Bonadio & Mori, 2013). O termo
“mínima” é utilizado em função da ausência de constatação da lesão.
Segundo Benczik (2000), a dificuldade em comprovar a existência de uma lesão
cerebral produziu uma série de embaraços no momento de realizar diagnósticos, que
terminavam sendo feitos a partir de critérios subjetivos e de uma diversidade de termos. Essa
dificuldade se mantém até os dias atuais, fazendo com que o diagnóstico seja feito muito
mais em função da queixa de pais e professores levadas aos médicos ou psicólogos, do que
propriamente através da localização de lesões ou alterações fisiológicas no cérebro das
crianças. Tal dificuldade aparece também em outros diagnósticos do DSM-V e constitui a
principal razão para a insatisfação do NIMH com o DSM, que levou à criação do Research
Domain Criteria (RDoC), anunciado por Thomas Insel, em 2013, como vimos no capítulo
anterior. Daí a intenção do RDoC de estabelecer sistemas funcionais neurológicos a partir
dos quais os sintomas de patologias mentais possam ser mensurados e o diagnóstico possa
ser feito a partir dessa medida objetiva. Eis um exemplo de insatisfação ou crítica ao DSM
que gera o reforço da ideologia naturalista sobre o sofrimento psíquico. Voltaremos a esse
ponto mais adiante.
Continuemos na construção do TDAH como fato patológico. Em 1952, a segunda
edição do DSM circunscreve os sintomas investigados por Strauss e outros pesquisadores no
diagnóstico de “síndrome cerebral orgânica”. De acordo com Bonadio e Mori (2013, p. 31),
“a partir da década de 1960, houve a necessidade de definir essa síndrome com vistas a uma
abordagem mais funcional. Desta forma, estudiosos enfatizaram o excesso de movimento
como o principal sintoma, caracterizando a hiperatividade como uma síndrome de conduta”.
Em 1962, um simpósio realizado em Oxford, na Inglaterra, com o intuito de estabelecer um
diagnóstico padrão para a síndrome, teve por um dos resultados a substituição do diagnóstico
de Lesão Cerebral Mínima (LCM) por Disfunção Cerebral Mínima (DCM). A substituição
já havia sido proposta por Dehoff, em 1959, justificando a ausência de comprovações
efetivas de lesões cerebrais (DeLuccia, 2015). No evento de Oxford, buscou-se também
estabelecer uma melhor conceituação da síndrome através de associações etiológicas, tais
como: a paralisia cerebral (em casos mais graves), a imaturidade do sistema nervoso central,

67
a subordinação aos fatores genéticos e a prevalência da síndrome no sexo masculino
(Bonadio & Mori, 2013). Ainda na década 60, o DSM–II é lançado refletindo o acento
colocado pelos pesquisadores na hiperatividade e descrevendo a síndrome como “Reação
Hipercinética”. E na Classificação Internacional de Doenças – CID 9, o quadro foi
denominado de “Síndrome Hipercinética”.
Nesse cenário, a DCM passou a remeter àquelas crianças com inteligência média ou
superior, mas com dificuldades de aprendizado ou distúrbios de comportamento,
associado a discretos problemas no funcionamento do sistema nervoso central e que
se manifestam por déficits na conceituação, linguagem, memória e controle da
atenção, dos impulsos ou da função motora. (Bonadio & Mori, 2013, p. 32)

A mudança na compreensão da síndrome teve como consequência inevitável a


inclusão de mais crianças nesse quadro. O diagnóstico incluía uma série de disfunções, tais
como: falta de atenção, problemas de coordenação motora, dificuldades na fala, na leitura,
na escrita e na aritmética; além de hiperatividade (Bonadio & Mori, 2013). Não por acaso,
o diagnóstico de DCM teve ampla aceitação social por possibilitar o diagnóstico e o
tratamento de crianças de “inteligência normal”, porém com condutas desviantes e
problemas de aprendizagem (Legnani & Almeida, 2008). Nos Estados Unidos, o diagnóstico
ganha destaque nessa época principalmente graças a um estudo sobre o fracasso escolar dos
filhos da classe média.
Na década de 70, o déficit de atenção se tornou o principal sintoma do quadro clínico,
principalmente a partir das contribuições da psicóloga canadense Virginia Douglas, no ano
de 1972. Em 1980, o quadro clínico é descrito pela primeira vez como Transtorno de Déficit
de Atenção (TDA), no DSM-III, abarcando também sintomas de hiperatividade e
impulsividade. Na década seguinte, o DSM-IV é lançado e o quadro clínico passa a se
chamar Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), no qual os sintomas
de déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade apresentam igual relevância. Em 2000,
uma revisão do DSM-IV é publicada e o texto descritivo sofre alterações em função da CID-
10.
Em 2013, o DSM-V é publicado nos Estados Unidos. A categoria diagnóstica passa
a se chamar Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e integra a seção de
transtornos do neurodesenvolvimento, pois considera-se que o TDAH é um transtorno de
base neurológica que se caracteriza pela manifestação de sintomas, principalmente, durante
o desenvolvimento infantil. São descritos 18 sintomas, divididos em dois grupos: 9 sintomas

68
de desatenção e 9 sintomas de hiperatividade e impulsividade. Vejamos, na atual versão do
DSM, quais são os critérios diagnósticos do transtorno:
Tabela 1:
Critérios diagnósticos para o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
A. Um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que
interfere no funcionamento e no desenvolvimento, conforme caracterizado por (1) e/ou
(2):

(1). Desatenção: seis (ou mais) dos seguintes sintomas persistem por pelo menos seis
meses em um grau que é inconsistente com o nível de desenvolvimento e têm impacto
negativo diretamente nas atividades sociais e acadêmicas/profissionais:

a. Frequentemente não presta atenção em detalhes ou comete erros por descuido


em tarefas escolares, no trabalho ou durante outras atividades (p. ex.,
negligencia ou deixa passar detalhes, o trabalho é impreciso).
b. Frequentemente tem dificuldade de manter a atenção em tarefas ou atividades
lúdicas (p.ex., dificuldade de manter o foco durante aulas, conversas ou leituras
prolongadas).
c. Frequentemente parece não escutar quando alguém lhe dirige a palavra
diretamente (p.ex., parece estar com a cabeça longe, mesmo na ausência de
qualquer distração óbvia).
d. Frequentemente não segue instruções até o fim e não consegue terminar
trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho (p. ex., começa as
tarefas, mas rapidamente perde o foco e facilmente perde o rumo).
e. Frequentemente tem dificuldade para organizar tarefas e atividades (p. ex.,
dificuldade em gerenciar tarefas sequenciais; dificuldade em manter materiais
e objetos pessoais em ordem; trabalho desorganizado e desleixado; mau
gerenciamento do tempo; dificuldade em cumprir prazos).
f. Frequentemente evita, não gosta ou reluta em se envolver em tarefas que exijam
esforço mental prolongado (p. ex., trabalhos escolares ou lições de casa; para
adolescentes mais velhos e adultos, preparo de relatórios, preenchimento de
formulários, revisão de trabalhos longos).
g. Frequentemente perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (p. ex.,
materiais escolares, lápis, livros, instrumentos, carteiras, chaves, documentos,
óculos, celular).
h. Com frequência é facilmente distraído por estímulos externos (para
adolescentes mais velhos e adultos, pode incluir pensamentos não
relacionados).
i. Com frequência é esquecido em relação a atividades cotidianas (p. ex., realizar
tarefas, obrigações; para adolescentes mais velhos e adultos, retornar ligações,
pagar contas, manter horários agendados).

(2). Hiperatividade e impulsividade: seis (ou mais) dos seguintes sintomas persistem
por pelo menos seis meses em um grau que é inconsistente com o nível de
desenvolvimento e têm impacto negativo diretamente nas atividades sociais e
acadêmicas/profissionais:

a. Frequentemente remexe ou batuca as mãos ou os pés ou se contorce na cadeira.

69
b. Frequentemente levanta da cadeira em situações em que se espera que
permaneça sentado (p. ex., sai do seu lugar em sala de aula, no escritório ou em
outro local de trabalho ou em outras situações que exijam que se permaneça em
um mesmo lugar).
c. Frequentemente corre ou sobe nas coisas em situações em que isso é
inapropriado. (Nota: Em adolescentes ou adultos, pode se limitar a sensações
de inquietude.)
d. Com frequência é incapaz de brincar ou se envolver em atividades de lazer
calmamente.
e. Com frequência “não para”, agindo como se estivesse “com o motor ligado” (p.
ex., não consegue ou se sente desconfortável em ficar parado por muito tempo,
como em restaurantes, reuniões; outros podem ver o indivíduo como inquieto
ou difícil de acompanhar).
f. Frequentemente fala demais.
g. Frequentemente deixa escapar uma resposta antes que a pergunta tenha sido
concluída (p. ex., termina frases dos outros, não consegue aguardar a vez de
falar).
h. Frequentemente tem dificuldade para esperar a sua vez (p. ex., aguardar em uma
fila).
i. Frequentemente interrompe ou se intromete (p. ex., mete-se nas conversas,
jogos ou atividades; pode começar a usar as coisas de outras pessoas sem pedir
ou receber permissão; para adolescentes e adultos, pode intrometer-se em ou
assumir o controle sobre o que outros estão fazendo).
B. Vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estavam presentes
antes dos 12 anos de idade.
C. Vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estão presentes em
dois ou mais ambientes (p. ex., em casa, na escola, no trabalho; com amigos ou
parentes; em outras atividades).
D. Há evidências claras de que os sintomas interferem no funcionamento social,
acadêmico ou profissional ou de que reduzem sua qualidade.
E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou outro
transtorno psicótico e não são mais bem explicados por outro transtorno mental (p. ex.,
transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno dissociativo, transtorno da
personalidade, intoxicação ou abstinência de substância).
Nota: Adaptado da American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-V). Arlington, VA: American Psychiatric
Association.

Para diagnosticar crianças é necessário constatar a presença de pelo menos seis


sintomas dos dezoito sintomas listados acima. Já em adultos é necessário a presença de
apenas cinco. O DSM-V ainda requisita a especificação da apresentação dos sintomas: se
são predominantemente sintomas de desatenção, se são predominantemente sintomas de
hiperatividade/impulsividade; ou se há predominância dos dois grupos de sintomas.
Mas o que fica bem claro mesmo é como os sintomas descrevem disfunções na
execução de demandas sociais pelos sujeitos, sobretudo, no contexto escolar e do trabalho.
Ou seja, o patológico é encarado nitidamente como um desvio dos comportamentos
70
considerados normais para uma determinada fase do desenvolvimento ou do contexto social.
Desse modo, a categoria diagnóstica se sustenta basicamente no critério de normalidade
como funcionalidade. Ou seja, a existência da categoria diagnóstica se justificaria pelo fato
de que os sinais e sintomas que compõem o transtorno implicam em disfuncionalidade para
o paciente diagnosticado. Por disfuncionalidade podemos entender a série de prejuízos que
o quadro sintomatológico acarretaria nas atividades sociais desempenhadas pelo sujeito,
sejam elas atividades relacionadas ao trabalho, aos estudos, aos relacionamentos
interpessoais, dentre outras modalidades de laço social. O que torna evidente a estreita
relação entre o diagnóstico e as expectativas sociais de reconhecimento das condutas
individuais.
As causas para as disfuncionalidades do TDAH descritas no DSM-V continuam
sendo buscadas em marcadores biológicos. Segundo Barkley (2020), as principais linhas de
pesquisa atuais buscam apontar as causas do TDAH em deficiências na química cerebral, na
baixa atividade em algumas regiões do cérebro e em imaturidades estruturais ou reduções
no tamanho de algumas regiões cerebrais. Todas essas linhas de pesquisa assumem uma
perspectiva quantitativa para estabelecer uma diferenciação entre o normal e o patológico.
As pesquisas sobre a química cerebral buscam firmar a tese de uma deficiência na quantidade
de neurotransmissores, principalmente da dopamina, como uma das causas para os sintomas
de TDAH. Já as pesquisas voltadas para a atividade cerebral buscam apontar uma redução
do fluxo sanguíneo e da atividade elétrica na região frontal do cérebro, através de exames
como o eletroencefalograma (EEG) e a tomografia por emissão de pósitrons (PET Scan). E
outras pesquisas tentam apontar que o volume do cérebro de pacientes com TDAH é
significativamente menor que o cérebro da maioria das pessoas (Barkley, 2020).
O que todas essas linhas de pesquisas deixam claro é que o realismo psicológico
segue forte no século XXI, principalmente, na psiquiatria biologista. Os pesquisadores
seguem tentando encontrar marcadores biológicos para os comportamentos humanos
considerados inadequados para o contexto social atual.
Diante disso, façamos, então, o exercício de demonstrar o efeito performático
produzido por uma categoria diagnóstica como o TDAH. Lembremos, conforme apontamos
no final do capítulo dois, com Ian Hacking (2006), que as categorias diagnósticas da
psiquiatria produzem tipos de pessoas, ou melhor, produzem subjetividades. Pudemos ver
na tabela 1, que a descrição dos sintomas de TDAH no DSM-V, diz respeito à
comportamentos considerados inadequados para o contexto social, especialmente da escola
e do trabalho. São sintomas como “dificuldade em gerenciar tarefas”, “dificuldade em

71
sustentar a atenção em atividades”, “levanta da cadeira com frequência”, “fala demais”, entre
outros. A psiquiatria vai então buscar associar esses sintomas às teses biologistas que vimos
mais acima, tentando situar fundamentalmente a sede da conduta social dos sujeitos no
cérebro.
Há, desse modo, duas consequências que podemos localizar a partir de Hacking
(2006). A primeira delas é o efeito de looping: ao atribuir um comportamento social a bases
biológicas, sempre que os sujeitos diagnosticados apresentam condutas novas ou diferentes,
principalmente em função de mudanças no contexto social, a própria descrição da patologia
muda, havendo então um efeito de retorno. No TDAH, isso pode ser visto inclusive na
diferença de sintomas presentes em crianças e adultos. Os sintomas da suposta patologia
mudam porque as demandas sociais costumam mudar de acordo com a faixa etária. Ou seja,
fica claro como na psiquiatria biologista o patológico é determinado a partir das demandas
de socialização.
A segunda consequência é aquela que diz respeito ao efeito performático dos
diagnósticos. O diagnóstico de TDAH produz uma subjetividade principalmente através
daquilo que Hacking (2006) chama de feedback positivo dado ao diagnóstico pelo sujeito
diagnosticado e por aqueles que convivem com ele. Poderíamos chamar, usando um termo
mais psicanalítico, de identificação. Lembremos como Freud (1921/2011) enfatiza a
centralidade dos processos de identificação nas modalidades de laço social que um sujeito
pode estabelecer com os outros. Além de enfatizar que o que é fundamental nas
identificações é a incorporação de traços ou de significantes ofertados pelo Outro.
Dessa forma, quando o diagnóstico veicula uma identidade social assentada em bases
biológicas, ou seja, assentada naquilo que é situado como que da ordem do inexorável, há
um potencial efeito de cristalização do sujeito nos predicados que o discurso veicula. Está
no seu gene, está na sua atividade cerebral. Trata-se de um determinismo biológico do qual
o sujeito pouco pode escapar, segundo o discurso psiquiátrico. E essa naturalização favorece
em grande medida a identificação dos sujeitos a essas identidades. Até porquê são saberes
veiculados por instituições socialmente legitimadas. Sobre isso, Uribe e Roja (2007)
apresentam a fala de uma mãe:
[Depois de receber o diagnóstico] já todos entendemos. Todos tentamos mudar as
atitudes com ele. [...] Não é que se faz de surdo. [...] a professora nos disse que ele
mudou cem por cento, na atitude com seus colegas, tudo. [...] [a professora] o tinha
rotulado. Julgava-o por coisas que ele não havia feito. Ao saber que o menino tinha
isso [TDAH], a professora também passou a vê-lo diferente. A não vê-lo mais como

72
a criança que tem culpa de tudo, mas sim como uma criança hiperativa. [..] Não
porque ele queira, digamos assim. O diagnóstico mudou a vida de Rodrigo. Bastante.
(p. 279)

O exemplo nos mostra que, além da provável identificação do sujeito com o


diagnóstico, aqueles que com ele convivem passam a estabelecer laço a partir do lugar ou da
identidade que o diagnóstico o fornece. São os pais que passam a considerar no
comportamento do filho aquilo que antes não viam. É a professora que agora “entende” o
seu comportamento, porque sabe que se trata de um caso de TDAH. E, assim por diante,
poderíamos listar uma infinidade de espaços sociais nos quais a existência do sujeito passa
a ser mediada exclusivamente pela referência ao diagnóstico. “Há que se insistir nesse ponto,
porque se reconhecer como portador de uma patologia é indissociável do ato de se
reconhecer em uma identidade social com clara força performativa.” (Safatle, 2018, p. 09)
O TDAH é o transtorno mais comum entre crianças e adolescentes no mundo atual,
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Se, como vimos, o diagnóstico reflete
diretamente demandas de socialização, podemos então sustentar que o diagnóstico de TDAH
desempenha um papel importante na dinâmica das sociedades neoliberais. De acordo com o
boletim do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), entre os anos de 2016 e
2018, 10,8% da população total de crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 17 anos, foi
diagnosticada com TDAH, nos Estados Unidos.11 Já a OMS estimou, em 2019, que entre 5-
8% da população mundial apresenta o transtorno.12 No Brasil, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) emitiu até o ano 2021, um único boletim sobre a prevalência
do TDAH entre crianças e adolescentes brasileiros, no qual apresentou números bastante
inconsistentes, afirmando ser de 0,9% a 26,8%.13 O país carece de dados mais precisos para
que haja um melhor dimensionamento da quantidade de crianças diagnosticadas com o
transtorno.
É importante observar também a quantidade de prescrições de estimulantes, já que o
tratamento medicamentoso é o mais utilizado para os sintomas de TDAH. Nos Estados
Unidos, a droga mais utilizada para o tratamento de TDAH é o Adderall®. Em 2018, esse
medicamento se tornou a 24ª droga mais consumida no país, sendo prescrita mais de 25,3

11
Disponível em https://www.cdc.gov/nchs/data/hus/2019/012-508.pdf. Acesso em 10/05/2021.
12
Disponível em
https://applications.emro.who.int/docs/EMRPUB_leaflet_2019_mnh_214_en.pdf?ua=1&ua=1. Acesso em
10/05/2021.
13
Disponível em https://www.anvisa.gov.br/sngpc/boletins/2012/boletim_sngpc_2_2012_corrigido_2.pdf.
Acesso em 10/05/2021.

73
milhões de vezes.14 Whitaker (2017) salienta que foi a partir da terceira edição do DSM,
quando o transtorno foi identificado por “Transtorno do Déficit de Atenção” (TDA), que o
número de diagnósticos começou a crescer e os estimulantes passaram a ser mais utilizados
no tratamento de crianças. Já no Brasil, a droga mais consumida para o tratamento de
sintomas de TDAH é a Ritalina®. Em 2012, um boletim de Farmacoepidemiologia da
ANVISA, o único publicado até o ano de 2021, já apontava para um crescimento de 117%
na quantidade de caixas do medicamento vendidas entre os anos de 2009 e 2011 (ANVISA,
2012). Os números atuais devem ser ainda maiores, mas, como não temos boletins mais
recentes para apontá-los, ficamos sem saber.

3.2. O culto dos estimulantes no quadro normativo neoliberal

Mas por qual razão o aumento no número de pessoas diagnosticadas com TDAH se
reflete num aumento de prescrições de medicamentos estimulantes? Ora, como vimos mais
acima, a construção histórica do TDAH como fato patológico é marcada pela tentativa de
atribuir marcadores biológicos aos sintomas do transtorno. Dentre as teses biologistas para
o transtorno, a mais disseminada é a concepção de que o TDAH se caracteriza por um
desequilíbrio neuroquímico, o que justificaria o tratamento medicamentoso como principal
recurso terapêutico. Dessa forma, os medicamentos estimulantes promoveriam um aumento
de concentração do neurotransmissor chamado dopamina nas fendas sinápticas, produzindo
uma melhora dos sintomas de desatenção e hiperatividade (Barkley, 2020).
Contudo, vale lembrar que o desenvolvimento dos psicotrópicos não se deu após o
avanço do conhecimento das patologias mentais ou da localização de seus marcadores
biológicos. Muito pelo contrário. Como vimos no capítulo anterior, os psicotrópicos
nasceram da observação dos efeitos produzidos no sistema nervoso por outras substâncias,
como antibióticos e anti-histamínicos. E foi, principalmente, após o DSM-III que os
psicotrópicos foram promovidos como o tratamento mais adequado para diversos quadros
de sofrimento. O mesmo ocorreu com os estimulantes. Foi testando uma anfetamina recém-
sintetizada para tratar dor de cabeça em crianças, que Charles Bradley, em 1937, reparou
que as crianças ficavam mais quietas e concentradas nas tarefas escolares. Foi assim que
surgiu o primeiro medicamento estimulante, a Benzedrina (Whitaker, 2017).

14
Disponível em https://clincalc.com/DrugStats/Top300Drugs.aspx. Acesso em 10/05/2021.

74
Mas foi somente em 1956, que a companhia farmacêutica Ciba-Geigy lançou um
estimulante que ganharia bastante notoriedade, a Ritalina® (metilfenidato). O medicamento
foi inicialmente indicado para o tratamento de narcolepsia, mas depois foi indicado por
médicos para o tratamento de crianças “hiperativas”, que supunham eles ter alguma lesão
cerebral (Whitaker, 2017). Dessa forma, assim como outros psicotrópicos, os estimulantes
são inicialmente descobertos por seus efeitos fisiológicos, mas passam a ser promovidos pela
indústria farmacêutica e pela psiquiatria biologista como a “cura” para os transtornos
mentais.
Segundo Whitaker (2017), a indicação de estimulantes para tratamento do TDAH
aumenta exponencialmente nos Estados Unidos após a terceira e a quarta edição do DSM.
“De repente, podiam-se encontrar crianças com TDAH em todas as salas de aula. O número
das que receberam esse diagnóstico subiu para quase um milhão em 1990 e mais do que
duplicou nos cinco anos seguintes.” (Whitaker, 2017, p. 229). Já no ano de 2010, havia a
estimativa de que aproximadamente 3,5 milhões de crianças norte-americanas tomavam
algum estimulante para o TDAH (Whitaker, 2017).
Mas, afinal de contas, os estimulantes cumprem a promessa de diminuir os sintomas
de TDAH? Vimos na tabela 1 como os sintomas listados de TDAH são muito relacionados
às demandas de socialização do contexto escolar e também do contexto de trabalho. E a
promessa da indústria farmacêutica em conluio com o discurso psiquiátrico foi de que os
fármacos poderiam diminuir consideravelmente os principais sintomas do TDAH,
principalmente, a hiperatividade. Mas não foi bem isso o que as pesquisas mostraram,
sobretudo, no longo prazo. Há mais prejuízos do que benefícios no uso desses fármacos.
Segundo Whitaker (2017), pesquisas apontaram que, no curto prazo, o principal
efeito dos estimulantes é deixar as crianças mais quietas em sala, facilitando o manejo dos
professores e também dos pais. Alguns pesquisadores chegam a descrever crianças apáticas,
inexpressivas, retraídas e excessivamente concentradas. Mas, a quietude dessas crianças
cobra um alto custo de efeitos colaterais, tais como alterações no apetite, cefaleia,
irritabilidade, hipertensão, doenças hepáticas, entre outros. E o pior: estudos de longo prazo
apontam que não há comprovação significativa de melhora em aspectos do funcionamento
infantil. Há, na verdade, uma grande chance de que os sintomas descritos no TDAH se
intensifiquem, uma vez que com o uso prolongado dos fármacos o funcionamento cerebral
sofre alterações fisiológicas consideráveis (Whitaker, 2017).
É sobre esse último ponto, que talvez reside uma das teses mais fortes do livro
Anatomia de uma epidemia (2017), de Robert Whitaker. Os psicotrópicos não agem no

75
cérebro corrigindo desequilíbrios neuroquímicos. Eles agem, na verdade, introduzindo
alterações no funcionamento cerebral para induzir o cérebro a funcionar em um novo padrão.
A noção de desequilíbrio não se sustenta em nenhum marcador biológico. Ela traduz muito
mais os julgamentos morais aplicados às condutas humanas através da psiquiatria. No
TDAH, a noção de déficit deixa isso muito claro: o termo diz muito mais de uma
inadequação aos processos de socialização, do que propriamente a marcadores biológicos
que a psiquiatria tentar localizar, acumulando fracassos sucessivos.
Mas não foi a tese do livro de Whitaker (2017) que foi disseminada entre a população
mundial. O discurso médico-científico obteve sucesso na disseminação da associação entre
os comportamentos humanos e as supostas causas cerebrais. E o sucesso não se deve ao êxito
de suas pesquisas como vimos, mas sim porque os diagnósticos psiquiátricos assumem uma
função crucial na adequação dos sujeitos aos processos de socialização. Basta ver, por
exemplo, como o consumo de estimulantes acontece hoje não somente entre os sujeitos
diagnosticados com TDAH, mas também por sujeitos preocupados com o seu desempenho
nas atividades cotidianas de modo geral15. Na verdade, consideramos esses dois públicos
indissociáveis, porque a demanda é uma só: performance.
O documentário Take your pills (Pictures & Klayman, 2018) apresenta contribuições
significativas para o nosso trabalho. Nele, o considerável consumo de estimulantes na
sociedade norte-americana revela como os modos de participação social dominantes naquele
contexto estão atravessados pela ideia de que as pessoas são capitais humanos passíveis de
gerenciamento. A fala da cientista política Wendy Brown, no início do documentário é
enfática: “Basicamente, eu diria que o que nos leva a usar drogas que melhoram o
desempenho é quando nos dizem: sua tarefa é se concentrar para ter o melhor desempenho
possível, durante o tempo que for necessário” (Pictures & Klayman, 2018). Na sequência, a
entrevistada afirma que essa fala se tornou comum no contexto de um mundo extremamente
competitivo, no qual as pessoas passaram a se enxergar como um capital humano. Uma
competição que não é somente para conseguir uma vaga numa faculdade ou um emprego,
mas é algo sem-fim. Dentro dessa forma de vida, medicamentos que prometam mais tempo
de rendimento e engajamento em atividades se tornam fundamentais. Através de vários
relatos de jovens que utilizam estimulantes nos Estados Unidos, o documentário mostra
como ser diagnosticado com TDAH é algo buscado por muitos deles, pois o diagnóstico
permite que se tenha acesso legal a uma substância que promete melhorar o rendimento nos

15
Disponível em https://jornaldebrasilia.com.br/brasilia/disque-ritalina-faz-entrega-de-medicamentos-
controlados-sem-receita/. Data de acesso: 10/06/2021.

76
estudos e nas atividades laborais. Ou seja, o diagnostico possui a função de permitir que
esses sujeitos tenham acesso a uma terapêutica medicamentosa que supostamente os
adequará melhor aos modelos de sociabilidade dominantes no contexto em que vivem.
Os exemplos do documentário são preciosos para o nosso trabalho de pesquisa. Eles
mostram como o diagnóstico de TDAH é quase que um “suplemento” necessário, se assim
pudermos dizer, para fazer parte de um mundo no qual a sobrevivência exige um esforço
constante de melhora na performance. Dentro desse panorama, o aumento no número de
sujeitos diagnosticados com TDAH, e o consumo de estimulantes a ele relacionado, são
processos fundamentais para que vejamos como a produção de patologias está relacionada
com os modos de sociabilidade dominantes numa sociedade.
É interessante observar uma comparação feita por Alain Ehrenberg (2010), em O
culto da performance. Ele diz que se antes as pessoas utilizavam drogas para se desconectar
da realidade ou se descontrair, atualmente, elas buscam drogas para encarar a realidade. Não
é difícil concluir que, perante as injunções ao gozo do discurso do capitalista neoliberal,
principalmente quando faz coincidir gozo e performance, um medicamento que promete
mais concentração, diminuição da sensação de fadiga e aumento do estado de ânimo, surja
como uma pílula mágica. É assim que os medicamentos estimulantes, como a Ritalina®,
parecem alojar-se no imaginário social. Através de seus efeitos de significação,
principalmente a promessa de estar ativo e rendendo por mais tempo é que podemos melhor
vislumbrar as relações existentes entre o aumento no consumo de estimulantes e o contexto
social atual.
Mas o que mais nos interessa destacar nisso tudo é como o discurso psiquiátrico,
materializado em manuais diagnósticos como o DSM, vai se articular ao discurso do
capitalista neoliberal, produzindo subjetividades através de categorias diagnósticas como o
TDAH. Creditamos a essa articulação “uma espécie de mutação do valor social do
diagnóstico” (Dunker, 2015, p. 33). Se antes o diagnóstico psiquiátrico era temido por ser
encarado como instrumento de opressão e sinônimo de exclusão, atualmente ele se torna
uma prática desejável e perfeitamente integrada ao funcionamento das sociedades
capitalistas. O crescimento no número de diagnósticos de TDAH e o consequente consumo
massivo de medicamentos estimulantes nos parece um exemplo nítido dessa articulação na
atualidade. Ao associar o comportamento de crianças e adolescentes a disfunções
neuroquímicas, o discurso médico torna patológica a existência de milhares de sujeitos e põe
em marcha um processo de medicalização dessas existências que representa um verdadeiro
ajuste normativo aos ideais neoliberais de desempenho.

77
Dessa forma, o diagnóstico de TDAH adquire o estatuto de um instrumento de
socialização nas sociedades neoliberais e, sobretudo, torna-se uma modalidade de resposta
ao mal-estar crucial. A partir do diagnóstico, subjetividades são produzidas, relações sociais
são moldadas e as mais diversas situações são encaradas através de uma ótica que privilegia
aspectos patológicos individuais. Basta observar, por exemplo, como o fenômeno do
fracasso escolar é constantemente reduzido à explicação de sintomas de transtornos mentais
em crianças e adolescentes, que são diariamente encaminhadas para avaliação psiquiátrica
ou psicológica (Silva et al., 2018). O que termina por camuflar uma série de fatores que
atravessam o contexto educacional e que contribuem para as dificuldades enfrentadas no
processo de ensino-aprendizagem, tais como: métodos de ensino, modos de socialização,
políticas públicas, entre outros.
Dentro desse cenário, podemos notar que a articulação do discurso psiquiátrico ao
discurso do capitalista neoliberal tem por efeito a coincidência de um ideal de saúde às
expectativas sociais de reconhecimento em voga no neoliberalismo. E os medicamentos,
enquanto mercadorias lançadas no mercado, encarnam a possibilidade de se atingir esse ideal
de saúde. As pesquisas sobre neuroquímica impulsionam e são impulsionadas pela indústria
farmacêutica, que visa à venda de seus produtos, sendo possível articular que a lógica de
mercado interfere nas escolhas e nas práticas de saúde. Nesse sentido, os psicotrópicos
ultrapassam o campo cientifico e a prática médica e se apresentam como bens de consumo,
que trazem a promessa de bem-estar, felicidade e realização (Lacet & Rosa, 2017, p. 244).
Os medicamentos encarnam não só a possibilidade de se atingir um ideal de saúde,
mas também a promessa de que existe um objeto apropriado para o mal-estar do sujeito. E é
justamente essa promessa do discurso do capitalista que põe em movimento a produção
insaciável de uma (in)satisfação. Buscando o diagnóstico mais preciso, o medicamento mais
certo, a dose mais apropriada para o silenciamento de seu mal-estar, o sujeito é reduzido a
processos neuroquímicos e colocado numa lógica ilimitada de consumo. Portanto, quando o
discurso psiquiátrico reduz os sujeitos a processos orgânicos na tentativa de explicar
patologias através de categorias diagnósticas e aponta para os medicamentos como a solução
terapêutica mais válida, ele se coaduna ao discurso do capitalista na produção de um
consumo massivo de objetos. “O objeto consumo remédio, assim como qualquer outro
objeto de consumo, na lógica capitalista opera criando necessidades que não existiam
anteriormente.” (Lacet & Rosa, 2017, p. 244).
Nesta perspectiva, Brant e Carvalho (2012) vão afirmar que o uso do estimulante
Ritalina® com a finalidade de potencializar o desempenho dos sujeitos faz do medicamento

78
um gadget na atualidade. Um gadget é um objeto fabricado pela ciência e pelo discurso do
capitalista para ser lançado no mercado e rapidamente consumido.
De posse de um gadget, o sujeito se depara com um produto que proporciona um
ganho real menor do que fora prometido no ato de sua aquisição. Diante de um prazer
efêmero, instantâneo, que o deixa com a percepção de ter obtido apenas algo pela
metade, o sujeito começa a buscar, numa sucessão interminável, outros meios na
tentativa de encontrar o produto que lhe permita completar a parte faltante. (Brant &
Carvalho, 2012, p. 630)

Isso fica ainda mais claro quando atentamos para as formas libidinais do
medicamento. Para Eric Laurent (2004), “todo medicamento é inseparável de uma ação
subjetiva” (p. 35). É o que leva Laurent a se interessar pelo medicamento não como objeto
epistêmico, mas como objeto libidinal. Pois, é através das formas libidinais do medicamento
que podemos perceber como as pílulas podem se tornar um gadget em nossa civilização.
Duas das formas libidinais do medicamento escritas por Laurent (2004), nos
interessam destacar no consumo massivo de estimulantes. A primeira delas é “o mais-de-
libido” ou “o efeito libidinalizante do medicamento” através de sua promessa de
condensação de um mais de vida (p. 35). Nos estimulantes isso fica claro através dos efeitos
de significação que os permitem alojar-se no imaginário como pílulas da concentração, da
eficácia, do mais de rendimento, do mais de satisfação, do mais-de-gozar, para fazer
referência à injunção ao gozo, como salientou Lacan (1970-1971/2009).
É interessante também observar que, além de não encontrar no medicamento a
satisfação prometida, ou seja, que satisfaça o imperativo superegóico de gozo, o sujeito ainda
pode se deparar com uma série de efeitos colaterais, que vão de alterações na fisiologia do
organismo à relação de dependência com a droga. É quando fica em evidência a segunda
forma libidinal da pílula: o phármakon - palavra que designa no medicamento o remédio e
o mal. Segundo Laurent (2004), “o sujeito procura a homeostase e o bem-estar do organismo
e encontra o terrível hábito, o aumento das doses, a dependência” (p. 34). É o que podemos
ver no consumo de estimulantes, pois, a injunção aos altos níveis de desempenho individual
pelo discurso do capitalista neoliberal parece produzir uma sociedade de adictos.
Para Jorge Alemán (2016), a adicção é uma das formas de mal-estar na
contemporaneidade: ela aparece como contrapartida clínica da experiência do empresário de
si, que, submetido a um contexto de redução das proteções sociais pelas nações capitalistas,
busca na performance individual não somente uma satisfação, mas também uma forma de

79
sobrevivência. A adicção é seguramente uma tentativa de sustentar-se na carreira ilimitada
e circular do empresário de si, na qual o tempo inteiro se estaria começando. “Conceber-se
o todo o tempo como um empresário de si, necessita desde logo consumir muitos livros de
autoajuda, muitos livros de autoestima, muitos coachs...” (Alemán, 2016, p. 34). E
poderíamos acrescentar: consumir muitos estimulantes.
Diante desse cenário, não é difícil ver surgir na psiquiatria o paradigma do
enhancement, ou, o paradigma do aprimoramento de si, como anuncia Silva Júnior et al.
(2021). Que os diagnósticos psiquiátricos e suas práticas de tratamento correspondentes
sejam vistos como tecnologias de aperfeiçoamento de si, isso só nos mostra o quanto a
psiquiatria contemporânea reproduz a lógica neoliberal. Não deve, portanto, ser motivo de
surpresa se, nos próximos anos, o diagnóstico de TDAH se transformar no diagnóstico de
disfunções de sistemas funcionais, a partir da compreensão colocada em marcha pelas
pesquisas do RDoC. Atualmente, o RDoC realiza pesquisas reduzindo o funcionamento à
seis séries de constructos, todas mensuráveis em unidades de análise. Uma delas é a
cognição, que compreende constructos como a atenção e memória de trabalho (Silva Junior
et al., 2021). E algumas pesquisas já começam a utilizar a metodologia do RDoC e seus
sistemas funcionais para avaliar sujeitos com queixas de prejuízos na atenção (Kleinman,
2013).

3.3. Saúde persecutória

Um ponto que nos chama a atenção é o discurso persecutório que acompanha aqueles
que sustentam o TDAH como um fato patológico. Podemos ver nele dois aspectos
fundamentais do neoliberalismo. O primeiro deles é a eleição do medo como um afeto
político central, como destacamos com Safatle (2015), no capítulo anterior. É o medo de não
sobreviver em uma sociedade extremamente competitiva e supostamente com recursos
materiais escassos. É o medo do fracasso na carreira ilimitada do empresário de si. É o medo
de não ter saúde, educação, emprego, segurança, entre outros direitos fundamentais que
deveriam ser garantidos pelo Estado.
O segundo aspecto se articula diretamente ao primeiro. É a responsabilização
individual, inclusive pela própria saúde. Num cenário no qual as proteções sociais são cada
vez mais restritas, cada um deve assumir a responsabilidade pela garantia de sua saúde. Cabe
ao empresário de si planejar, calcular custos e otimizar sempre a sua saúde. Dessa forma,

80
não é de se admirar que encontremos no discurso psiquiátrico tanto uma mobilização dos
sujeitos pelo medo, assim como um apelo à responsabilização individual pela saúde.
Em seu livro TDAH: transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (2020),
Russel A. Barkley é enfático já no prefácio de sua obra, dirigindo-se aos pais de crianças
com o TDAH:
Se você tem um filho assim, será não só inadequado, mas potencialmente prejudicial
para o bem-estar psicológico e social dele que você minimize os problemas ou fique
apenas dando um tempo até que ele amadureça um pouco mais. Isso pode causar
problemas para você e outros membros da família que tenham que lidar com essa
criança todo dia. (Barkley, 2020, pp. 19-20)

O tom é de urgência na intervenção. É necessário agir o mais cedo possível para que
problemas futuros não acometam o bem-estar da família e do sujeito. É em nome do bem-
estar que fala Barkley, salientando que o bem-estar deriva em grande medida do grau de
ajustamento do sujeito às demandas sociais correspondentes a sua faixa de desenvolvimento.
Portanto, ignorar ou desacreditar que crianças que apresentam dificuldade em sustentar a
atenção por um longo intervalo de tempo, em controlar seus impulsos e manter níveis mais
baixos de atividade, são acometidas de uma psicopatologia do neurodesenvolvimento é
encaminhá-las para um futuro potencialmente catastrófico.
Os custos do TDAH para a sociedade são impressionantes, não apenas em termos de
produtividade e subemprego em adultos, mas também em reeducação. E o que dizer
dos custos gerados por indivíduos subeducados, mais propensos a acidentes e com
maior probabilidade de se envolver em comportamento antissocial, crime e abuso de
substâncias? Mais de 20% das crianças com TDAH têm provocado sérios incêndios
em suas comunidades, mais de 30% se envolveram em furtos, mais de 40% foram
desviadas para o consumo precoce de tabaco e álcool, e mais de 25% foram expulsas
da escola secundária por problemas graves de comportamento. (Barkley, 2020, p. 60)

Barkley não apresenta a fonte desses dados, que dizem respeito à realidade
estadunidense, mas sua intenção se mostra clara: associar problemas de conduta social ao
TDAH, sobretudo, aos casos não tratados. Não por acaso, um dos objetivos centrais de sua
obra é fornecer orientações aos pais de crianças com TDAH, a partir dos últimos achados
científicos, para que possam buscar tratamentos e realizar mudanças em suas vidas e na vida
do filho “para que ele chegue bem ajustado à idade adulta” (Barkley, 2020, p. 27).

81
Lembremos como o neoliberalismo se caracteriza fundamentalmente por responder
às crises sociais exaltando as individualidades. Foi assim que suas primeiras formulações,
pelos teóricos neoliberais, surgiram na primeira década do século passado. Reparemos como
a mesma resposta é fornecida por Barkley ao associar uma série de problemas sociais a uma
patologia do indivíduo, convocando a família a se responsabilizar por problemas que sequer
aconteceram, mas que já são antecipados pelo discurso do expert em TDAH.
É crucial notar como as associações afirmadas por Barkley acerca do TDAH e dos
problemas de conduta acima citados se faz sem considerar as contingências sociais e
históricas que atravessam os fenômenos humanos. Buscar explicar fenômenos diversos
estabelecendo estreitas correlações com componentes individuais é uma forma de esvaziar
o debate social e político. Ainda mais quando se recorre a uma suposta patologia mental de
base biológica para estabelecer as determinantes do comportamento individual, como
acontece com o TDAH.
Esse também nos parece um aspecto crucial para que a articulação do saber
psiquiátrico com as racionalidades vigentes no contexto social fique evidente. Pois, para que
essas associações se tornem inteligíveis é necessário que elas se façam numa base comum.
Ou poderíamos melhor dizer, numa gramática de concepções epistemológicas, de figuras
antropológicas e projetos de sociedade. Dificilmente, uma explicação acerca de fenômenos
humanos se torna aceitável em um determinado contexto se ela não partilha das concepções
de homem e das visões de mundo propostas e reproduzidas na vida material das sociedades
por racionalidades que se colocam como as únicas possíveis para a manutenção do laço
social.
As associações e afirmações catastróficas realizadas por Barkley acerca de
indivíduos com o TDAH, sobretudo, ao seu tom de urgência para o tratamento precoce,
muito nos lembra a obra The minority report, de Philip Kindred Dick, considerada por
muitos uma ficção científica distópica. Ela foi publicada em 1956 e tornada filme em 2002.
A história se passa em 2054, em Washigton DC, e retrata uma divisão de polícia pré-crime.
Seus agentes são três humanos alterados geneticamente, que possuem uma capacidade de
pré-cognição que os permite antever crimes e agir antes que eles aconteçam. A “bola de
cristal” dos agentes é um tanque de fluido que os fornece imagens de vídeo com os nomes
do criminoso, da vítima, do local e de quando o crime irá acontecer. O grande dilema que
envolve a história é a prisão de pessoas que ainda não cometeram crimes. Como acusá-las?
Como puni-las por um crime que não cometeram?

82
Para Luis David Castiel e Carlos Álvarez-Dardet (2007) o dilema de The minority
report apresenta-se também no paradigma preventivo-persecutório das práticas
contemporâneas da medicina, nas quais já se diagnosticam pré-doenças que podem ou não
acometer pacientes. Para eles, esses diagnósticos de fatores de risco como se fossem
doenças, propriamente, representam, “em nossas sociedades modernas, o controle social e o
estabelecimento e aplicação de normas, as dimensões morais relativas à culpa, sobretudo no
que tange a aspectos de vigilância” (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007, p. 22). Isso ocorre,
sobretudo, a partir da medicina baseada em (e)vidências e tende a se intensificar ainda mais
com o paradigma do aprimoramento de si promovido por iniciativas como o RDoC, pois a
partir deste não é necessário sequer estar doente para que uma intervenção psiquiátrica se
justifique. Basta que algumas alterações quantitativas em algum constructo funcional sejam
identificadas, ou que não correspondam aos ideais de desempenho esperados de um sujeito,
para que uma intervenção psiquiátrica possa se justificar como forma de prevenção ou de
aprimoramento. Eis um caminho aberto para a produção de subjetividades alinhadas com a
racionalidade neoliberal.
Não nos espanta que possamos localizar essa lógica persecutória na literatura sobre
o TDAH. O transtorno mental mais diagnosticado entre crianças e adolescentes, no mundo,
assume a função de socializar sujeitos desde muito cedo nas sociedades neoliberais.
Socializar através de um diagnóstico psiquiátrico que nomeia um déficit nos níveis de
desempenho do sujeito: eis uma estratégia ideológica de reproduzir uma economia libidinal
calcada num imperativo de performance, perante o qual os sujeitos estão sempre em déficit.
Não nos admira também que a quantidade de diagnósticos aumente justamente em um
período no qual a teoria do capital humano avance sobre o cenário da educação, no Brasil e
no mundo (Simões, 2021). Lembremos como o âmbito educacional foi privilegiado por
Becker quando formulou sua teoria, que impele os sujeitos e as instituições a encararem os
processos educacionais como processos de valorização permanente de indivíduos, assim
como um capital deve se valorizar constantemente pelo acréscimo de juros. Portanto, não é
uma mera coincidência que a maioria das demandas por diagnósticos de TDAH venham das
instituições escolares.
Outro ponto no discurso de Barkley (2020) sobre a importância do tratamento
precoce para o TDAH nos interessa destacar. É o apelo ao discurso econômico para justificar
a severidade dos casos não diagnosticados e não tratados. Na citação direta que colocamos
mais acima, o autor começa por enfatizar o quanto os sujeitos com TDAH não tratados
podem ser onerosos para a sociedade. E continua no trecho que segue:

83
Outros economistas têm mostrado também que criar um filho com TDAH gera mais
que o dobro de despesas com médicos em relação às famílias com crianças que não
tem o transtorno, sem contar os custos extras relacionados ao transtorno efetivo da
criança com TDAH em decorrência principalmente do maior uso de serviços de
pronto-socorro e outros serviços médicos ambulatoriais. Tudo isso mostra que o
TDAH não é um transtorno neutro ou benigno em termos econômicos. Ele é custoso
para a família, a comunidade e a sociedade em geral. (Barkley, 2020, pp. 60-61)

Ora, não nos parece uma simples coincidência que o apelo à lógica contábil do
discurso econômico seja o recurso privilegiado para justificar o tratamento de um transtorno
mental. Principalmente, quando faz questão de situar o sujeito diagnosticado como
potencialmente oneroso à sociedade de modo geral. Tecendo considerações sobre a
economia moral presente no neoliberalismo, Safatle (2021) diz que “ser contra a austeridade
é inicialmente uma falta moral [...] é assim colocar-se fora da possibilidade de ser
reconhecido como sujeito moral autônomo e responsável” (p. 18). Ou seja, assumir uma
postura proativa no tratamento precoce do TDAH representa a virtude moral de um sujeito
que calcula custos e assume a responsabilidade da ação.
O apelo de Barkley, dirigido, principalmente, aos pais de crianças com prováveis
sintomas de TDAH, nos leva a pensar o impacto que esse discurso reproduzido por um
profissional da saúde pode ter nos laços estabelecidos entre pais e filhos. Sobretudo, nos leva
a antever os efeitos performáticos que a descrição feita pelo autor e as antecipações de
prováveis problemas futuros possam ter sobre o sujeito e aqueles com quem convive. Desse
modo, não há como negar que o realismo psicológico presente na psiquiatria biologista
contemporânea está impregnado da economia moral promovida pela racionalidade
neoliberal.

3.4. Apostar no mal-estar: a potência normativa do patológico

Iniciamos o presente capítulo, defendendo que a construção do TDAH como fato


patológico aponta a presença de um realismo psicológico no discurso psiquiátrico
hegemônico na atualidade. A característica fundamental do realismo, na qual se sustentou a
nossa argumentação foi a tentativa da psiquiatria biologista de atribuir ao psiquismo humano
o status de uma realidade através de pesquisas voltadas para a localização de marcadores
biológicos. Mencionamos inúmeros esforços nesse sentido, tais como as pesquisas sobre a

84
química cerebral, sobre a atividade elétrica e sanguínea no cérebro, e também os sistemas
funcionais do RDoC.
Um de nossos objetivos ao apontar o realismo psicológico no discurso psiquiátrico,
com Robert Blanché, foi defender que tratar o psiquismo enquanto uma realidade resulta
num processo de naturalização das funções psíquicas, a partir do qual são estabelecidos
desvios das funcionalidades esperadas dos sujeitos no contexto social. Ou seja, tratar o
psiquismo enquanto uma realidade separada dos discursos que versam sobre ele implica na
naturalização dos problemas socialmente formulados. Não se trata, pois, de recair no
dualismo do “pensamento x realidade”, mas em defender que qualquer objeto de estudo é
formalizado a partir das questões que são levantadas sobre ele. Isso quer dizer que os objetos
são produzidos e não constatados.
Essas proposições nos levam a voltar o nosso interesse para a forma ou os termos a
partir dos quais os problemas são colocados. Foi esse o exercício que tentamos fazer
discorrendo sobre a categoria diagnóstica do TDAH. E ao fazê-lo, pudemos articular esse
diagnóstico aos processos de socialização vigentes no contexto de gestão neoliberal da vida.
Isso só foi possível, entre outras coisas, porque nos voltamos para a forma como a psiquiatria
biologista coloca os problemas em torno do sofrimento psíquico na contemporaneidade. O
que é feito fundamentalmente a partir de noções como “transtorno” e “disfunções”. Mas,
disfunções em relação a quais funções? Ou a quais expectativas de conduta? Foi aí que
pudemos situar o quadro normativo neoliberal, naturalizado a partir dos diagnósticos
psiquiátricos.
Dessa forma, se há uma continuidade entre a racionalidade neoliberal e as
subjetividades produzidas pelos diagnósticos psiquiátricos, sobretudo, no diagnóstico de
TDAH, como demostramos, é importante também apontar para uma ruptura que pode ser
operada através de outras gramáticas do sofrimento psíquico que não recorram ao realismo
psicológico. Foi pensando nisso, que buscamos em nosso trabalho, sobretudo no primeiro
capítulo, oferecer centralidade à tese do mal-estar na cultura, pois os desdobramentos éticos
e políticos que ela implica na consideração do sofrimento psíquico são extremamente
fecundos para que os tratamentos dados ao sofrimento na cultura não se traduzam na
continuidade dos processos de subjetivação produzidos pelos discursos dominantes no
cenário social.
Quando afirmamos que os diagnósticos psiquiátricos produzem subjetividades, nossa
intenção é enfatizar que eles produzem uma objetivação do sujeito, tal como o
compreendemos a partir da psicanálise: um sujeito dividido, marcado pela condição

85
existencial de desamparo. Ou seja, os diagnósticos não são subjetivantes, no sentido de
ensejarem a produção de um espaço subjetivo e singular para cada sujeito, mas são
objetivantes ao promoverem a conformação dos sujeitos aos imperativos de ordem social,
que são travestidos ou naturalizados através de medidas fisiopatológicas. Há, dessa forma,
uma diferença radical entre a forma como a psicanálise compreende o sofrimento psíquico e
os postulados da psiquiatria biologista.
Pudemos demonstrar no capítulo um, através do percurso de Freud, como a
compreensão psicanalítica do sofrimento psíquico é indissociável de uma crítica dos
processos culturais de subjetivação. Tal indissociabilidade aparece na articulação da tese do
mal-estar às expressões do sofrimento psíquico trabalhadas por Freud na clínica.
Lembremos, por exemplo, como o sintoma, os atos falhos, os chistes, são tomados como
respostas do sujeito aos processos de socialização. A própria etiologia da neurose é
sustentada através do conflito pulsional, que, como vimos, atravessa a obra de Freud, e é
tomado como irredutível na própria constituição do sujeito.
Mas onde a psicanálise vê respostas do sujeito, a psiquiatria costuma ver disfunções
através de déficits neuroquímicos, alterações fisiopatológicas e uma gama de substratos
orgânicos através dos quais se tenta naturalizar o sofrimento, e, consequentemente,
individualiza-lo. E individualizar é certamente um dos compromissos mais fortes entre a
psiquiatria e o neoliberalismo. Como vimos, no capítulo dois, a doutrina neoliberal foi
concebida em um momento de crise do capitalismo. E a resposta dada à crise pelos
neoliberais foi a elaboração de uma política de sociedade pautada na exaltação do indivíduo
como uma empresa de si mesmo, como forma de situar as liberdades individuais como valor
supremo do laço social. A mesma resposta podemos ver em cada diagnóstico psiquiátrico:
eles costumam ser dados em momentos de crises ou impasses no percurso de um sujeito. E
a resposta que o saber psiquiátrico oferece é um diagnóstico que situa no indivíduo a razão
da crise e também a oportunidade de trata-la através de uma reiteração da norma em função
da qual a crise se estabeleceu.
Segundo Safatle et al. (2021, p. 47), “a crise é um momento decisivo. Na medicina
grega antiga, a palavra descrevia o ponto em que o organismo doente começava a reagir e
lutar. Esse instante era esperado pelo médico: um momento de crise que leva à cura”. Trata-
se de pensar, nessa perspectiva, a cura não como reestabelecimento de uma normalidade da
qual o sujeito se desviou, mas sim como um processo de ruptura radical com esta. Sobre
isso, ninguém melhor do que Georges Canguilhem para situar como o momento de crise
carrega um potencial disruptivo.

86
Em O normal e o patológico (1966/2019), Canguilhem situa que o problema ao qual
vai se debruçar em sua obra é se a distinção entre o normal e o patológico é apenas
quantitativa, como pode ser visto nos estudos de fisiologia de Augusto Comte e na medicina
experimental de Claude Bernard. Ou seja, o patológico se resume a designar alterações
quantitativas de funções em estado normal? Canguilhem (1966/2019) salienta a importância
de se deter nessa questão uma vez que a distinção entre o normal e patológico fundamenta a
atuação clínica do médico, justificando que é “à necessidade terapêutica que se deve atribuir
a iniciativa de qualquer teoria ontológica da doença” (Canguilhem, 1966/2019, p. 9).
O esforço inicial nos primeiros capítulos vai ser o de destacar os impasses de uma
diferenciação do normal e do patológico feita através de diferenças quantitativas. Um esforço
que muito nos interessa, tendo em vista que o patológico é estabelecido nesses termos pela
psiquiatria biologista contemporânea. Sobre os estudos fisiológicos de Comte, Canguilhem
vai afirmar que eles se sustentam no princípio de Broussais, no qual o fato vital primordial
é a excitação. O que se segue é que o patológico é compreendido como excesso ou falta
de excitação dos tecidos do organismo em comparação com o estado normal. Dessa forma,
não há diferença qualitativa entre um estado e outro, apenas uma mudança na intensidade da
excitação. Isso faz com que o tratamento passe pela correção dos níveis de excitação como
forma de recuperar a saúde (Canguilhem, 1966/2019).
Na medicina experimental de Claude Bernard o fundamento da intervenção médica
é buscado na observação e na extensa descrição dos fenômenos fisiológicos. O patológico
reside no desarranjo das relações fisiológicas, que podem variar em níveis diversos. Ou seja,
trata-se também de uma perspectiva que preserva uma continuidade qualitativa entre o
normal e o patológico e os distingue somente pelo grau de variação do funcionamento
fisiológico. Mas adoecer seria essencialmente ter o organismo funcionando em padrões de
excesso ou de déficit em relação aos estados fisiológicos considerados normais ou mais
frequentes na população? Ou haveria uma descontinuidade entre o normal e o patológico?
Eis as questões que inquietam Canguilhem.
Para Canguilhem (1966/2019), a principal consequência da explicação da patologia
como variação quantitativa e extensão experimental do normal é que a prática médica
termina por se orientar por uma racionalidade que subtrai à compreensão do patológico a
dinâmica vital de transformação e evolução das formas de vida. “Assim, o modelo da
patologia baseado na normalidade só pode produzir como efeito uma racionalidade médica
cada vez mais obcecada pela determinação objetiva das doenças e de seus modos de
expressão.” (Neves, 2018, p. 44). E, consequentemente, conservadora no tocante às formas

87
de vida hegemônicas. Tal racionalidade pode ser vista na psiquiatria biologista, sendo um de
seus principais efeitos atuais a determinação de modos de subjetivação congruentes com a
dinâmica do neoliberalismo.
Mas qual relação poderíamos pensar entre o normal e o patológico que não incorre
numa diferenciação quantitativa que vise manter a vida em um quadro normativo estático?
Pois bem. Canguilhem vai defender que o que é próprio à dinâmica vital dos organismos é a
produção de normas. O que à primeira vista pode parecer bastante estranho, principalmente,
para uma perspectiva crítica que tome o termo “norma” como sinônimo de coerção. Mas é
precisamente no termo “norma” que reside o potencial subversivo da tese de Canguilhem. A
normatividade vital enuncia a atividade valorativa de todo organismo em sua relação com o
meio e não um processo de determinação dos valores pelo meio. Sobre a tese de Canguilhem,
Safatle (2015) vai dizer que a normatividade vital não conhece “determinações semânticas
estáveis, já que são mera expressão da capacidade do organismo entrar em movimento. Não
é por outra razão que Canguilhem dirá que a norma da vida é exatamente sua capacidade em
mudar continuamente de norma” (p. 343).
Percebamos que se trata aqui do movimento inverso ao da psiquiatria biologista. Se
esta busca fundamento no biológico como forma de cristalizar normatividades sociais,
Canguilhem vai defender que o que é próprio ao funcionamento biológico é uma mudança
contínua das normas. “Assim, se Canguilhem fala em normas é para determinar o organismo,
e não o meio, como potência normativa, invertendo assim a direção normalmente
pressuposta da atividade normativa.” (Safatle, 2015, p. 343). Contudo, salientar essa
inversão da direção comumente suposta na atividade normativa, não é sem consequências
para o meio. Pois defender que o organismo é uma potência normativa é um modo de afirmar
que o mesmo pode responder ao meio estabelecendo novas normas em contraposição a este.
Mas como a tese da normatividade vital de Canguilhem vai se traduzir num modo
inteiramente distinto de pensar o normal e o patológico? Para ele, o patológico não pode
jamais ser encarado como antítese da normalidade, ou tomado como uma realidade estática
oposta à saúde e derivada quantitativamente desta, como o fazem Comte, Bernard e a
psiquiatria contemporânea. Uma vez que cada organismo é uma potência normativa, a
experiencia do adoecimento deve ser sempre encarada como uma experiência
qualitativamente distinta do estado de saúde. Sendo somente na atividade clínica
(relação médico-paciente), ou seja, na escuta dos sujeitos, que o patológico pode aparecer
como um valor negativo para cada sujeito (Neves, 2018).

88
A patologia, ou a experiência de sofrimento, surge assim como a consciência de
decréscimo ou perda da capacidade de alcançar um novo modo de ajustamento com o meio,
a partir do momento em que o organismo, afetado pela mudança da doença, já não funciona
mais da mesma forma. A partir de Canguilhem, o patológico pode então ser compreendido
tanto por uma espécie de conformação a um determinado estado de coisas, como também
pode sinalizar a produção de novas normas que operam transformações no quadro normativo
do meio, embora possam não ser reconhecidas por este. Desse modo, é sempre numa
perspectiva relacional que o normal e o patológico devem ser pensados. O que inviabiliza
completamente qualquer racionalidade que se pretenda fixa na determinação dos marcos da
fronteira entre o normal e o patológico.
A tese de Canguilhem é extremamente fecunda para o nosso trabalho, pois ela nos
permite situar a diferença radical entre a compreensão psiquiátrica do sofrimento,
principalmente aquela que sustenta manuais estatísticos como o DSM, e a compreensão do
sofrimento psíquico a partir da tese do mal-estar na psicanálise. Quando enunciamos que o
que mais interessa à clínica psicanalítica são as respostas dos sujeitos aos processos de
objetivação, como aqueles promovidos pela racionalidade neoliberal e o discurso
psiquiátrico, estamos, por outras vias assumindo a tese de que há uma potência criativa e
disruptiva no sofrimento psíquico. Tese que, para a psicanálise, sustenta-se
fundamentalmente na irredutibilidade do mal-estar enquanto expressão de uma inadequação
radical dos sujeitos aos programas culturais. Dessa forma, há na tese do mal-estar uma
potência transformativa do laço social.
Escutar as respostas dos sujeitos aos processos de socialização na clínica do
sofrimento psíquico é rejeitar fazer da clínica um espaço de ajustamento às normas sociais.
A atividade clínica, para Canguilhem e para a psicanálise, é fundamentalmente um espaço
de aposta na produção de novas normas. Ou seja, um espaço subjetivante por excelência, no
sentido de apostar na escuta das formas de vidas que não fazem sentido para as formas
dominantes de laço social. Se pensarmos então na contemporaneidade do contexto das
sociedades neoliberais, escutar os sujeitos em sua singularidade é apostar que novas formas
de vida, dissonantes da subjetividade do empresário de si mesmo, são possíveis.

89
Considerações finais

Em mais de uma oportunidade, no presente trabalho, fizemos menção às latusas,


nomeação dada por Lacan (1969-1970/1992) aos objetos produzidos pela ciência e ofertados
ao consumo pelo discurso do capitalista neoliberal. Destacamos como essa oferta tenta
realizar um apagamento da diferença entre o objeto causa de desejo e os objetos de consumo,
numa manobra característica do discurso do capitalista que é a rejeição da castração. A
promessa encarnada por esses objetos é a de uma satisfação irrestrita, que pode ser entendida
também enquanto a promessa de objetos feitos sob medida para o desejo. Ora, com sua oferta
o discurso do capitalista não promoveria outra coisa senão a tentativa de dissolução do
conflito entre desejo e norma.
Através desses objetos podemos pensar todas as identificações que circulam no laço
social através do imperativo de gozo. E se repararmos bem, neste trabalho apontamos para
um objeto de consumo que avança no laço social prometendo uma localização precisa para
o mal-estar do sujeito. Falamos da categoria diagnóstica TDAH. Como não ver, a partir das
articulações que tecemos, que esse diagnóstico, uma vez que tenta escamotear o mal-estar
através da descrição de sintomas isolados e de tratamentos baseados em medidas
fisiopatológicas, integra o edifício discursivo da razão neoliberal? O TDAH, assim como
outras categorias diagnósticas produzidas pelo discurso psiquiátrico, reproduz a tentativa de
apagamento da irredutibilidade do conflito pulsional. Multiplicam-se os diagnósticos, os
exames, as técnicas de tratamento na psiquiatria, no sentido de um esquartejamento do
sujeito. O que nos sinalizam as edições do DSM, senão a multiplicação de categorias
diagnósticas que cada vez mais subtraem o atravessamento do Outro do social na
constituição do sujeito? Como não ver que a adoção de uma gramática do sofrimento em
termos de disfunções, relaciona-se diretamente com uma racionalidade que coloca o
aprimoramento de si como norma subjetiva?
É notório que, não só os tratamentos psiquiátricos, mas os próprios instrumentos
balizadores do diagnóstico, ou a maneira pela qual o normal e o patológico são definidos,
reproduzem a lógica do neoliberalismo. O modo de diagnosticar, o modo de nomear são
estruturados pela razão diagnóstica promovida no contexto das sociedades neoliberais.
Quando caracterizamos o neoliberalismo como a fantasia ideológica dominante, na
atualidade, foi para salientar o seu esforço de escamotear o mal-estar, sobretudo, através da
gestão do sofrimento psíquico. Lembremos, com Žižek (1996), como a fantasia ideológica
se caracteriza fundamentalmente pela fuga de um real traumático que aponta a condição de

90
desamparo do sujeito, seu mal-estar constitutivo. A partir disso, a rejeição da castração no
discurso do capitalista, como apontou Lacan (1971-1972/2011), pode ser vista numa gestão
do sofrimento psíquico que promove gramáticas do sofrimento que excluem a dimensão do
conflito pulsional. Não foi o que vimos no segundo capítulo, com o expurgo da psicanálise
do DSM, e também com a radicalização da proposta de diagnóstico dimensional assumida
pelo RDoC? Tanto o manual como a iniciativa de pesquisa do NIMH participam da produção
de patologias sociais nas sociedades neoliberais, recorrendo fundamentalmente à
naturalização do sofrimento psíquico em marcadores biológicos, tomados a partir de
medidas quantitativas na determinação do patológico. Isto é, são iniciativas que, pela
maneira como colocam as questões acerca do sofrimento, só podem produzir processos de
normalização dos sujeitos.
Nesse cenário, o diagnóstico de TDAH se configura uma patologia da subjetividade
neoliberal. Vimos como a construção do TDAH como fato patológico é marcada por
tentativas sucessivas e fracassadas de situar a patologia em marcadores biológicos. E o mais
importante: a maneira como o transtorno é encarado na psiquiatria biologista já parte de uma
impostura epistemológica. Caracterizamos as pesquisas sobre o TDAH como obras de um
verdadeiro realismo epistemológico, que trata tanto as funções psíquicas como uma
realidade, como também os marcadores biológicos aos quais tenta associa-las. A principal
manobra dessa postura realista é tentar sob o selo da objetividade cientifica e da neutralidade
esconder o horizonte normativo que orienta a operação de pensamento que confere
inteligibilidade a essas pesquisas. Horizonte normativo que, como pudemos ver a partir dos
contextos nos quais o diagnóstico de TDAH é mais demandado, e também pelas descrições
dos sintomas, caracteriza-se em grande medida por cobranças em torno do desempenho e da
performance dos sujeitos.
Desempenho e performance são termos privilegiados num contexto no qual a noção
de capital se tornou matriz psicológica na produção de subjetividades. Vimos como Gary
Becker pensou essa noção dentro de uma proposta de educação para os sujeitos. E não nos
parece um mero acaso que seja justamente no contexto educacional que a demanda por
diagnóstico de TDAH seja mais recorrente. A teoria do capital humano avança cada vez mais
nas instituições escolares, impelindo os sujeitos a orientarem as suas vidas pela norma
subjetiva da empresa. Nesse contexto, educar é promover uma redução dos processos
educacionais à produção de gestores de si mesmo, sujeitos voltados para a sua performance,
para a gestão de recursos humanos como modos de valorizar-se enquanto capital.

91
O culto da performance reflete diretamente o imperativo de gozo que Lacan (1970-
1971/2009) apontou no supereu da contemporaneidade. A lógica contábil do gozo pode ser
claramente situada na busca por superação incessante das performances do empresário de si
mesmo. Naquilo que Alemán (2016) muito bem denominou de “estar sempre além de si
mesmo”. O empuxo à performance requisita dos sujeitos uma economia libidinal do gozo
que pode ser vista na produção de uma (in)satisfação permanente, ou para usar termos de
Lacan (1970/2003), na produção de uma falta-a-gozar.
Acreditamos que duas situações apresentadas ao longo desta dissertação dizem muito
dos efeitos produzidos no laço social pela injunção superegóica ao gozo através da
performance. A primeira delas é a situação de precarização dos motoristas de aplicativos,
modalidade de trabalho que cresce nas sociedades neoliberais na medida em que os Estados
estimulam o crescimento dos trabalhos informais. O discurso da flexibilização, da ausência
de subordinação e da livre determinação do motorista ou entregador na produção de seus
lucros, vendido pelas empresas-aplicativos, traduz-se numa forma de trabalho totalmente
desregulamentada, na qual os trabalhadores arcam com os riscos das operações de trabalho
e precisam se submeter a ferramentas de avaliação que os impelem a dar sempre mais, além
de suas possibilidades.
A outra situação foi aquela que descrevemos como culto dos estimulantes no quadro
normativo neoliberal. O consumo massivo de estimulantes acompanha o crescimento da
quantidade de diagnósticos de TDAH na população mundial. É a droga vendida como pílula
mágica para o aperfeiçoamento da performance. O que fica bem claro através do efeito
libidinalizante do medicamento, como mencionamos a partir de Eric Laurent (2004). São
pílulas da eficácia, do mais de performance, do mais-de-gozar. Mas são também phármakon,
nos quais o sujeito “procura a homeostase e o bem-estar do organismo e encontra o terrível
hábito, o aumento das doses, a dependência” (p. 34).
Mas o que haveria de comum entre essas duas situações que trabalhamos no presente
trabalho? “A ação se repete, apesar de tudo; uma compulsão impele a isso” (Freud,
1920/2010, p. 181). Uma compulsão à repetição, nos diria Freud. E como vimos no primeiro
capítulo, em psicanálise, a compulsão à repetição é a marca característica daquilo que Freud
(1920/2010) chamou de pulsão de morte. Haveria, então, no imperativo de gozo do discurso
do capitalista neoliberal um empuxo à pulsão de morte? É o que nos leva a crer a tentativa
de escamoteamento do mal-estar através culto à performance e do consumo massivo de
objetos produzidos pelo saber cientifico, como as pílulas estimulantes.

92
É por isso, que acreditamos que a proposição de Lacan acerca das latusas pode ser
bem aproveitada na discussão acerca da gestão neoliberal do sofrimento. As categorias
diagnósticas, os psicofármacos, os exames de imagem do cérebro, e outras tantas técnicas
promovidas pelo saber psiquiátrico, são ofertadas na busca por fazê-las coincidir com o
tamponamento do mal-estar. Ou seja, trata-se de uma tentativa de estabelecer uma relação
direta entre o sujeito e esses objetos. E que não poderia ter outra consequência que não a
objetivação do sujeito em formas de individuação promovidas pelo neoliberalismo.
Contudo, devemos insistir: o conflito pulsional no sujeito, entre a pulsão e o registro
da cultura, não pode ser aniquilado pelas formas de vida promovidas pelo neoliberalismo.
Mesmo que a lógica neoliberal produza subjetividades impelidas por uma lógica mortífera,
o mal-estar não deixa de convocar o sujeito ao trabalho psíquico. Isto é, os sujeitos não
deixam de produzir respostas. E as respostas produzidas por cada sujeito devem ser sempre
tomadas como soluções de compromisso singulares diante do mal-estar. Pois, as produções
do inconsciente estão sempre a apontar para a impossibilidade de esgotamento dos sujeitos
nas figuras antropológicas eleitas pelos discursos. É nisso que a psicanálise aposta, buscando
através da clínica ofertar um espaço subjetivante de escuta dos sujeitos. Pois, sem clínica do
sujeito, não há clínica da civilização.

93
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